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União entre o mercado financeiro e o agronegócio

O passo a passo da união entre mercado financeiro e agronegócio

Unidos pelo golpe de 2016, os dois setores dão sustentação a Bolsonaro

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por João Peres, com colaboração de Carol Almeida

Em 7 de outubro de 2021, a edição do Jornal Nacional foi aberta com a notícia de que a economia patina. O comércio sofre, a indústria virou pó, o consumo segue no congelador. O telejornal mais importante do país passou à margem de um acontecimento que, talvez, tenha sido o mais importante do dia: a Brasil Agro, empresa do agronegócio, vendeu uma fatia de sua fazenda em Alto Taquari, no Mato Grosso, por R$ 589 milhões.

Tem sido assim sempre que se trata do agronegócio: cifras astronômicas sobre balança comercial e recorde de exportação, sem uma explicação do que significam na prática. Bom, na prática, a venda de 3.723 hectares de uma empresa desconhecida do público é o ápice de um processo tão bem organizado que os recordes que vão se renovando com o passar de cada dia.

Não importa que a economia esteja mal. Não importa que metade da população esteja na miséria. Na verdade, alguns dos péssimos indicadores econômicos colocam ainda mais combustível no motor do agronegócio. Agricultores combalidos, inflação de alimentos e supervalorização dos grãos criam um cenário perfeito para um ciclo de expansão sem precedentes.

Cada hectare da Brasil Agro custou ao comprador (cujo nome não foi divulgado) o equivalente a R$ 218 mil. O dobro do que a empresa conseguiu por uma outra fatia dessa mesma fazenda apenas um ano antes. E quase o triplo em relação a 2019. Usando os preços atuais da soja, o comprador precisaria de 23 anos de produção intensa para recuperar o montante de R$ 589 milhões. Um exemplo evidente de que não é de soja que estamos falando. Se antes as terras brasileiras já haviam se transformado num dos investimentos mais lucrativos do mundo, agora avançamos a um novo patamar.

Na verdade, o fato mais importante do dia não se deu em Alto Taquari, mas a 1.040 quilômetros dali. É na Avenida Faria Lima, no centro de São Paulo, que pulsa o coração do agronegócio. Lá, são tomadas as decisões sobre o destino de nossas terras, da Amazônia e do Cerrado e da produção dos nossos alimentos. É ali que fica a sede da Brasil Agro, uma empresa que você vai ouvir nos próximos anos.

Foto por Manuela Silva

O edifício situado no número 1309 da Faria Lima tem o mesmo visual de muitos outros que abrigam empresas de agro e tecnologia. São prédios enormes, espelhados, com torres envidraçadas, cascatas e fontes. Não há mais resquício dos sobradinhos de classe média que foram demolidos para dar espaço à operação de verticalização da região.

Brasil Agro e SLC Agrícola são as duas empresas mais importantes em um processo simples: comprar terras, deixá-las prontas para cultivo, esperar a especulação fundiária e vender no melhor momento. Poucas semanas antes de anunciar o negócio em Alto Taquari, a Brasil Agro havia lucrado com um outro pedaço de fazenda na Bahia, por um valor que até então altíssimo: R$ 130 milhões. Mas aqueles R$ 53 mil por hectare ficaram parecendo uma brincadeira para crianças.

Desde que Jair Bolsonaro vislumbrou o poder, a Brasil Agro vislumbrou as nuvens. O valor das ações da empresa mais que triplicou desde as eleições de 2018. “Eu falo que a gente está dez anos à frente do mercado. Por que eu falo dez anos à rente do mercado? Nós começamos a terceirizar nossa operação lá no início da companhia, em 2006 e 2007. O mercado está começando a terceirizar operações agrícolas agora, depois que passou a reforma trabalhista em 2016”, disse André Guillaumon, presidente da empresa, durante uma transmissão online. Ou seja, estar à frente do mercado é desafiar leis que em algum momento serão revogadas.

Cada vez que uma peça do tabuleiro se movimenta em Brasília, o mercado financeiro responde em São Paulo. Ou em algum lugar na nuvem digital que faz negócios em cima de milho, boi e soja com a mesma facilidade com que negocia armas, petróleo, carros,entre outros.

Nem sempre é fácil entender qual peça do tabuleiro se mexeu. A ofensiva do agronegócio é tão bem coordenada e tão vertiginosa que se torna complexo procurar uma relação direta entre um pico de movimentação financeira e uma medida política. Mas o balanço geral não deixa qualquer dúvida: o agronegócio abraçou de vez o mercado financeiro. Ou o contrário.

No final de abril, a Comissão de Valores Mobiliários, que regula o mercado, enviou um questionamento à Brasil Agro: o que estava acontecendo com as ações da empresa? A movimentação era gigantesca: R$ 770 milhões em um único mês. Foram cinco milhões de papéis negociados num único dia – apenas um ano antes, a empresa raramente ultrapassava o patamar de duzentos mil, e durante o mês inteiro movimentou apenas R$ 53 milhões.

A empresa respondeu que não tinha conhecimento de nenhuma irregularidade. E informou que dois relatórios importantes, do BTG Pactual e da Empiricus, recomendavam o investimento em seus papéis. “Tais relatórios, apesar de não trazerem nenhuma informação nova não divulgada anteriormente pela Companhia, são utilizados por agentes de mercado em suas decisões de investimento e podem ter contribuído para tudo isso”.

Como tem sido a praxe entre os atores do agronegócio relacionados ao mercado financeiro, o recorde da Brasil Agro rapidamente ficou para trás. Em maio a empresa chegou a 819 milhões de reais.

o agronegócio abraçou de vez o mercado financeiro. Ou o contrário.

Assim como se dá em outros investimentos relacionados ao agronegócio, a Brasil Agro passou a atrair parte do enxame de pessoas que investem na bolsa – abordamos esse fenômeno na primeira reportagem da série. “A gente viu uma entrada importante de pessoas físicas na companhia. A gente teve aí, em seis meses, um salto de 3 mil CPF para 9 mil CPF na companhia”, disse André Guillaumon. Não custa lembrar que isso foi em julho de 2020, antes de um novo boom da empresa multinacional Brasil Agro.

Em outubro de 2021, foi a vez de a SLC Agrícola responder ao questionamento da CVM sobre por que havia tanta movimentação em torno dos papéis da empresa. Foram seis meses seguidos com mais de R$ 1 bilhão em negociações, a começar pelo recorde de maio. O R$ 1,7 bilhão daquele mês representa 17 vezes mais do que o obtido um ano antes.

O recorde se deu na semana em que a Câmara aprovou o projeto de lei que dispensa o pedido de licenciamento ambiental para vários empreendimentos. Relatado pelo deputado e ex-ministro da Agricultura Neri Geller (PP-MT), o PL 3.729, de 2004, facilita o uso agrícola de terras indígenas e quilombolas que não tenham sido demarcadas.

Mas, nesse caso específico, a CVM estava questionando sucessivos dias de frenesi durante setembro. De um lado da Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal discutia (e não concluía) o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Do outro, o Senado avançava com o projeto sobre licenciamento ambiental. Os papéis da SLC e da Brasil Agro tiveram forte movimentação.

Este ano, a SLC comprou uma outra gigante, a Terra Santa, e arrendou uma grande área em Correntina, na Bahia. A estimativa da própria empresa é de chegar a 660 mil hectares, um crescimento de 40% em relação ao começo de 2021 e o equivalente a quatro cidades e meia do tamanho da grande São Paulo.

Terra e água à disposição

A mistura de desmatamento da Amazônia e do Cerrado, queimadas, avanço sobre terras indígenas, revogação de subsídios para a agricultura familiar e ode eterna ao agro pode fazer algumas pessoas arrancarem os cabelos, mas é motivo de euforia entre investidores, para quem tudo isso é uma garantia de que o enorme território e as reservas de água brasileiras estarão à disposição pelos próximos anos, até que se encontre uma maneira para especular.

Até 2020, a Brasil Agro havia negociado 85 mil hectares e um total de R$ 925 milhões. Bastante. Mas pouco, perto de 2021. Com apenas 9.546 hectares vendidos, a empresa fez R$ 786 milhões de caixa. Se nos 14 anos anteriores a média de negociação foi de R$ 10 mil por hectare, agora já está no preço de 80 mil reais .

A Brasil Agro controla 280 mil hectares, duas vezes a cidade de São Paulo. “Nós somos a única empresa do mercado que de fato combina resultados. A gente tem um resultado imobiliário e o resultado operacional, e isso está no nosso DNA”, afirmou Guillaumon, em referência ao modelo de negócios que mescla a venda de terras com a produção de diversos como por exemplo a soja, milho e cana-de-açúcar.

Criada em 2006 e controlada por investidores argentinos, a empresa nem poderia ser dona de terras no Brasil, a menos que tivesse obtido autorização do Incra e do Congresso Nacional. A Brasil Agro é investigada desde 2016 por aquisições ilegais de terras. Se havia alguma incerteza sobre a possibilidade de estrangeiros comprarem imóveis rurais, a Brasil Agro não parecia ter dúvida alguma de que conseguiria autorização. Tanto assim que os dois principais gestores dos novos investimentos do agronegócio, BTG Pactual e XP Investimentos, têm listado a Brasil Agro como um ótimo negócio.

O maior banco de investimentos da América Latina é um emblema do casamento entre agronegócio e mercado financeiro. O BTG lançou os primeiros fundos ligados ao setor, esperando atrair um total aproximado de R$ 1 bilhão.

foto da fachada do Edifício do Pátio Malzoni

Foto po CTE

O prédio da empresa é, também, um emblema da nova fase da Avenida Faria Lima, que se transformou no coração do mercado financeiro. As duas torres do Edifício Pátio Victor Malzoni, com 19 andares, são ainda a morada do Google e ficam no ponto-chave de um processo de valorização imobiliária que tem os fundos de investimento como fator-chave. Nas últimas duas décadas, dezenas de sobrados foram abaixo para dar lugar a um mar de edifícios gigantes e espelhados que abrigam corporações de tecnologia, startups e, agora, o agronegócio.

É esse processo que o mercado financeiro espera replicar na zona rural. No ano passado, os fundos imobiliários bateram recorde de movimentação, com mais de um milhão de pessoas físicas investindo. O montante de R$ 53,9 bilhões representou um crescimento de 67% sobre 2019. Como mostramos na primeira reportagem da série, este ano foram aprovados e regulamentados os fundos de investimento do agronegócio, Fiagro, que já começam a movimentar seus primeiros milhões.

Sem cercas

Já em junho de 2020, a Climate Bonds Initiative e a Iniciativa Brasileira de Finanças Verdes publicaram um estudo conjunto, o Plano de Investimento para a Agricultura Sustentável, encampado com tanta ênfase pelo Ministério da Agricultura que se torna difícil saber onde estão as linhas entre público e privado – o trabalho foi coordenado por um servidor do BNDES que, em seguida, migrou a uma corporação privada de saneamento.

O documento aposta que o agronegócio pode atrair R$ 692 bilhões em finanças “verdes”. E comemora várias das mudanças introduzidas pela Lei do Agro, em particular aquelas que atrelam as terras brasileiras a investidores estrangeiros.

“Esse desdobramento recente pode promover e facilitar emissões de títulos verdes para produtores médios, cooperativas e outras empresas do setor de agronegócio.”

A Climate Bonds é financiada pelos pesos-pesado do mercado financeiro, como BlackRock, State Street Global Advisors, Citigroup, Goldman Sachs, HSBC, Credit Suisse, Barclays e BNP Paribas.

Como mostra a investigação feita pelo Intercept dos Estados Unidos em parceria com o Joio, a empresa não verifica se os títulos “verdes” estão de fato cumprindo com o prometido: ela repassa essa atividade a terceiros. Em outra frente, as grandes gestoras de investimentos do mundo fizeram lobby contra mecanismos que poderiam definir padrões obrigatórios, e não voluntários. “Estamos abertos a ambas abordagens”, disse Leisa Souza, líder da CBI para a América Latina. “Claro, não vamos dizer que é preciso haver regulação e que isso precisa ser feito, porque, mesmo que consideremos apenas o mercado como um todo, o processo de autorregulação funciona muito bem.”

No formulário apresentado ao mercado financeiro, a EcoAgro lista os riscos relacionados a seu negócio. E um chama atenção: “Movimentos sociais podem afetar as atividades dos emitentes dos

O documento aposta que o agronegócio pode atrair 692 bilhões em finanças “verdes”

Créditos: movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Comissão Pastoral da Terra, são ativos no Brasil. Invasões e ocupações de terrenos agrícolas por grande número de participantes desses movimentos são comuns e, em algumas áreas, os proprietários não contam com a proteção efetiva da polícia nem com procedimentos eficientes de reintegração de posse.” Nesse sentido, a conjuntura fortemente repressiva atenua bastante o risco para os investidores – em outras palavras, repressão vira dinheiro.

Assim como tem a primazia em relação aos CRAs, a EcoAgro explicitamente aposta em liderar a era dos CRAs verdes. Em mais uma mistura entre público e privado, em abril de 2021 Tereza Cristina anunciou a emissão, em caráter experimental, de CRAs com garantia do BNDES. O valor total de R$ 29 milhões é intermediado pela EcoAgro paraa empresa que é uma das maiores cooperativas do país, a Cotrijal, do Rio Grande do Sul.

Em paralelo, a EcoAgro esperava captar mais R$ 60 milhões, dessa vez para a usina Rio Amambai, em Naviraí, no Mato Grosso do Sul. O mercado de títulos verdes vai passando do papel à prática.

A Climate Bonds, via de regra, aparece em cena acompanhada de uma outra empresa que você provavelmente desconhece: a EcoAgro. Criada em 2009, é a maior emissora de CRAs do Brasil

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