Revista Subversa Volume 2 | n.º 3 | fev 2015

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SUBVERSA 11ª Ed | FEV/2

ESPECIAIS LITERATURA E FUTEBOL | “Rubyanã Futebol Clube” e “Carlos Alberto” INTERTEXTOS | “O Encontro” e “O Dono do Mundo”

ILUSTRAÇÕES | PEDRO FONSECA

ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS | SAT AM HEITOR LIMA | EVANDRO DO CARMO CAMARGO CATIA PENALVA | ROGERIO LUZ | DIEGO DE TOLEDO LIMA LUCAS GASPAR | PEDRO BELO CLARA | HELDER ROCHA SAMUEL H. DIAS | ELAINE MATTOS


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SubVersa | literatura luso-brasileira |

11ª Edição

© originalmente publicado em 16 de Fevereiro de 2015 sob o título de SubVersa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações: © Pedro Fonseca www.behance.net/reidenada www.facebook.com/oreidenada psfonseca@live.co.uk

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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11ª Edição Fevereiro de 2015 ROGERIO LUZ | © A CAMBAXIRRA | 5 ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS | © CASCA|8 PEDRO BELO CLARA | © A PROSTRAÇÃO DAS NOITES | 10 SAMUEL H DIAS | © STEFANY E A BIBLIOTECA SECRETA | 12 EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © TEORIA DA QUEDA | 18 ELAINE MATTOS | © ZÉ DAS ALMAS | 19 SAT AM |© OUÇA| 24 LUCAS GASPAR | © MOSCAS VOLITANTES | 26 HEITOR DE LIMA | © O ESPELHO DESTE PAI | 28 CATIA PENALVA | © À PROCURA | 30 ESPECIAIS | 31 EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © CARLOS ALBERTO | 32 SÍLVIO EDUARDO PARO | © RUBYANÃ FUTEBOL CLUBE | 37 DIEGO DE TOLEDO LIMA| © O DONO DO MUNDO | 42 HELDER ROCHA| © O ENCONTRO | 45

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EDITORIAL Eis a SUB 11, a foliona, marcando a presença literária neste Carnaval. Nesta edição, queremos fazer um agradecimento especial

aos

autores

“da

casa”,

que

colaboram

frequentemente com a revista e, também, aos novos nomes que vem confiando seus textos à Subversa e ajudando a consolidar esta ponte luso-brasileira, Para ilustrar a edição, contamos com o trabalho belíssimo do mineiro Pedro Fonseca, especialista em Artes Visuais na Universidade Federal de Juiz de Fora, e ilustrador e gerador de conteúdo do atelier Bodoque e Ofícios, que captou com uma sensibilidade também poética os temas e o espírito da edição. Desejamos a todos um excelente feriado de Carnaval. Seja no verão do Brasil ou no inverno de Portugal, esperamos que a leitura da Décima Primeira seja e melhor companhia para uma boa leitura!

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©PEDRO FONSECA

A CAMBAXIRRA ROGERIO LUZ RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL

Cambaxirra. Rubrica: ornitologia. Regionalismo: Rio de Janeiro (Dicionário Houaiss).

Meu gato caçou uma cambaxirra E deitou a meus pés o seu troféu. O passarinho toda manhã chama pelo sol Para que se levante de sua noite de céu e de sonhos E não se esqueça de que não é eterno o mergulho nas trevas. E toda manhã eu o saúdo meio emocionado Como quem dá graças aos deuses sem saber por quê.

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Desde que o mundo é mundo gatos caçam pássaros E ao consultar a Carta dos direitos universais dos animais Notei que não há nada a fazer contra a natureza de gatos e pássaros Os trêmulos bigodes do gato à espreita da presa E a cor fascinante de suas pupilas topázio Contra o voo saltitante da cambaxilra Também chamada assim por seu chilrear a chamar pelo sol. Lembrei-me então que, na condição de animal, Tenho o direito de protestar contra os crimes da Natureza Não contra os crimes contra a Natureza, como está na moda Os crimes contra a bondade, a verdade e a beleza Os crimes de sangue e os crimes cotidianos Os divinos crimes que exterminam os cantos E procuram afogar, antes que nasça, o cego sol dos seres.

ROGERIO LUZ é professor universitário aposentado e doutor em comunicação social pela Universidade de Louvain. Tem artigos e livros publicados na área de teoria e crítica da arte. Publicou também seis coletâneas de poesia, dentre as quais: Escritas. Goiânia: Editora da U.F.Goiás, 2011 (primeiro prêmio no concurso literário daquela universidade) e Os Nomes. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014, prêmio de poesia do Governo do Estado de Minas Gerais de 2013. CANALSUBVERSA.com

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©PEDRO FONSECA

CASCA

Andréa do Nascimento Mascarenhos Silva SALVADOR, BA, Brasil

vinho de hoje não lava feridas velhas nem fogos ou água salgada muito menos o sol que vence a madrugada não recubro chagas que ainda não sararam daí em vão compras esfoliantes e areias brilhantes

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novas cascas nascem por baixo pululam velhas dores miras espelhos alheios e não te vês por cá viajo a outros centros com cada eu que me constitui passeio em mares de dentro que me navegam piso seixos nem sempre arredondados tiram e me dão átimos de imensidão impressão de pessimismo ronda esse rastro d'escrita

ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS SILVA é docente da área de Literatura na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Ficou em 13º lugar no 'XII Festival de poesia, crônica e conto', organizado pela Fundação Cultural de Imperatriz – MA (2001) com o poema intitulado Procissão da espiritualidade. CANALSUBVERSA.com

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©PEDRO FONSECA

A PROSTRAÇÃO DAS NOITES Pedro Belo Clara LISBOA, PORTUGAL

Um sussurro imperceptível; rumor imperecível. Algum mar enfeitiçara os sentidos com promessas de piratas, sereias, galeões e tesoiros por reclamar. Galguei os flamejantes braços do sol na esperança de tropeçar no voo dalguma ave perdida.

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Mas no litoral do peito naufraguei em lábios fendidos, exígua fonte d'águas profundas. Em teus olhos vim respirar o perfume que escapulia, a juventude plena dos dias eternos. Cego outrora, no espírito brotou a lustra visão das flores. De que sonho te moldaste para resgatar a cor dos frutos? De que estrela desceste para incendiar a frigidez do dia? Diante desse beijo primeiro todas as noites se renderam.

PEDRO BELO CLARA é autor das obras “A Jornada da Loucura” (2010), “Nova Era” (2011), “Palavras de Luz” (2012) e “O velho sábio das montanhas” (2013). Além de prelector de sessões literárias, é actualmente colaborador e colunista de publicações literárias. Outros trabalhos seus poderão ser encontrados no seu blogue pessoal, “Recortes do Real” (crónicas diversas).

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©PEDRO FONSECA

STEFANY E A BIBLIOTECA SECRETA Samuel H. Dias MUZAMBINHO, MG, BRASIL

Stefany Humbier é uma jovem de 22 anos, cabelos longos e olhos castanhos. Como era uma garota reservada, poucas coisas lhe despertavam interesse. Mas os livros eram seus companheiros e consolo, então desde muito criança mergulhou no mundo da leitura. A necessidade de ter sempre novos contos para se distrair fez-lhe cadastrar fichas em várias bibliotecas da cidade. Seus livros favoritos eram O gato de olhos roxos e O gabinete. Aquele dia não parecia tão promissor. Ao olhar pela janela do seu quarto, tudo o que se podia ver era um céu cinzento, típico de um dia frio. Stefany já lera os livros da estante tantas vezes, que não tinha vontade alguma de folheá-los naquele momento. A família, na sala, parecia bastante entretida com a programação banal da TV dos dias

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de domingo e, para variar, indiferentes com a presença da garota. Enrolada

em

uma

blusa

surrada,

mas

aconchegante,

,

saiu

discretamente sem se despedir de ninguém e decidiu dar uma caminhada pelas ruas daquele bairro tranquilo. A chuva se anunciava, explicando a solidão que encontrou nas ruas. Em frente de uma casa ou outra, tinha a ideia de uma convenção: todas as famílias tirando o dia para ver TV, rindo alto de todas as bobagens que não faziam sentido algum para Stefany. Sem pressa alguma em voltar, decidiu matar o tempo indo até a biblioteca mais longe de sua casa. Ouvira falar em um livro chamado A árvore Francis, sobre o qual estava curiosa por se tratar de uma história de suspense, cujo personagem principal era um garoto solitário com quem se identificava. Durante o trajeto, refletia sobre as críticas que havia lido sobre a obra. O clima ia esfriando e, quando deu por si, já estava lá, na ampla e bela biblioteca "Le Conocimiento - Biblioteca Municipal". O local era um patrimônio da cidade, orgulho dos moradores, de arquitetura antiga, cuidadosamente restaurada para manter sua majestosidade. As diversas árvores que cercavam o local possuíam agora folhas castanhoavermelhadas, típicas do outono. Stefany se sentia mais em casa ali do que em seu próprio lar. Após subir a larga escadaria, dirigiu-se a passos apressados até o bibliotecário, ansiosa por encontrar um exemplar do livro que desejava. Pediu logo pelo título , que lhe foi prontamente negado, pois havia sido alugado naquele dia. Chateada, começou a vasculhar a biblioteca, como de costume, procurando algo para ler naquela noite. Para muitos, seguir por aquelas alas repletas de livros poderia parecer uma tarefa exaustiva, mas Stefany se deliciava. Vez ou outra puxava um livro mais antigo e amarelado, só para apreciar o cheiro característico. Seguindo para o último corredor de livros da biblioteca ela não havia ainda encontrado nada que despertasse seu interesse,

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ou que já não tivesse lido. O lugar estava tão vazio de presença humana, e tão próximo do horário de fechar, que resolveu desistir. Foi quando ouviu uma voz que soou como um sussurro: - Pssiu... Aqui embaixo. Stefany olhou ao redor na esperança de ver alguém por ali. Afinal, estaria louca, ouvindo coisas? Mas, aquilo pareceu tão real e, em seu íntimo, tão convidativo... Decidiu seguir as instruções daquela voz, olhando para o chão como se fosse encontrar algo. Sentiu-se um pouco boba fazendo aquilo, mas... Não perderia nada em investigar. Procurando reviver aquele instante mentalmente, a voz parecia vir de trás da última estante de livros. Seria aquilo alguma pegadinha? Tornou a olhar para os lados como se procurasse por alguém que fosse rir pela suposta armação. Deu de ombros e, um pouco hesitante, se abaixou e se deixou a olhar para os livros. Enquanto os demais estavam corretamente enfileirados, os mais próximos da parede estavam simplesmente amontoados , como se quisessem encobrir algo. Sentiu-se indignada quando os viu naquele estado e decidiu arrumá-los, afinal, detestava bagunça e principalmente com seus amados objetos. Ainda com uma expressão birrenta no rosto, passou a mão por cada um deles para limpá-los parcialmente e foi pousando-os no chão. Até que, para a sua surpresa, quando retirou todos de lá, deparou com uma maçaneta, pequena e discreta, mas que realmente parecia ser uma espécie de passagem secreta, como já havia lido tantas vezes em suas viagens literárias. Temeu que estivesse prestes a entrar em um local que não fosse permitido para si, mas a curiosidade falou mais alto. Certamente não seria presa por xeretar lugares da biblioteca. No máximo, mandariam que se retirasse de lá. Pensando dessa forma para justificar sua curiosidade, não esperou por mais nenhum segundo para abrir a porta. Espremeu-se com alguma dificuldade por entre o vão da estante e os livros, mas, ao ver-se ali quase entalada, praguejou contra

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os quilos que lhe sobravam no corpo. Demorou a acreditar no que via. Era como se houvesse adentrado em um ambiente totalmente novo. A vista demorou um pouco a se adaptar à iluminação, que ficava por conta de algumas velas acessas e enfileiradas, como tochas. Sentiu um arrepio percorrer toda a coluna quando atravessou aquele longo e rústico corredor, que lembrava os castelos medievais. Suspirou quando se deparou com outra porta; sabia que só havia andado por alguns minutos naquele corredor, mas aquilo pareceu ter levado uma eternidade. Com receio do que encontraria pela frente, surpreendeu-se novamente quando chegou a um salão idêntico à biblioteca que estava há pouco. Lá estavam estantes repletas de livros tão familiares a si. Naquele momento, já estava arrependida de ter saído de casa e tudo estava tão confuso, até que percebeu: havia alguém mais. Um homem magro, que parecia ser o bibliotecário, usando um chapéu pontiagudo bem gasto, e uma faixa branca que lhe tapava a visão. Com algum receio, questionou: -Senhor... Onde estou? Que lugar é este? O homem imediatamente inclinou o rosto na direção da garota. Seus movimentos não eram naturais; eram bruscos e duros, de modo que se assemelhava a um robô. Pareceu um pouco mais cordial quando enfim lhe respondeu: -Seja bem-vinda à biblioteca secreta! Se chegou aqui, foi porque a própria biblioteca a convidou, então sinta-se à vontade para olhar e folhear os livros. Você tem o direito de escolher apenas um livro para levar, e ele será seu, somente seu, para sempre. Ele então voltou a cabeça para baixo, como se houvesse desligado do mundo. Stefany parou por um momento para refletir, pensou que aquilo podia ser um sonho ou outro setor da biblioteca, mas enfim não pôde resistir de passear pelos livros. Os títulos eram estranhos, um se chamava Como Ser Imortal e outro Como viver em um mundo de

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sonhos, havia também Você quer ficar rico fácil?. Stefany estava achando todos muito suspeitos, até que decidiu voltar e falar com o bibliotecário, que deu de ombros ao ouvi-la e comentou distraidamente sobre esta questão. -Aqui estão os livros que todos querem ler. Ela deu meia volta e tornou a olhar os livros, cada um com suas promessas e propostas tentadoras. Mesmo que desejasse, achou que não teria tempo de folheá-los, então só restava se distrair com aqueles títulos chamativos. Parou em frente a um livro que havia lhe chamado mais atenção do que os demais: O Livro Infinito, que parecia intrigante por simplesmente não saber o que esperar do conteúdo daquelas páginas. Só em folheá-lo brevemente, se encantou com o que leu e não teve mais dúvidas de que aquele seria o livro perfeito para si. - Eu gostei muito deste posso levar? A história é muito boa, eu adorei! Posso? O bibliotecário ergueu a cabeça e comentou. - É claro! Ótima escolha, este é o último exemplar de O Livro Infinito. Você deve tê-lo achado interessante, pois ele é, como o próprio nome diz, infinito. Mas, tem mais uma coisa, ele cria a história para você ler com base naquilo que você deseja ler, assim você nunca se sentirá frustrada ou cansada dele. Ele te dará exatamente a história que você quer ler. Stefany suspirou de felicidade, segurou o livro com as duas mãos, pois era exatamente aquilo que ela desejava, mas ficou com uma dúvida... - Como o livro faz isto? O estranho bibliotecário bateu as mãos em sua roupa escura para tirar um pouco de poeira e disse: - Ora, este é um segredo desta biblioteca que não posso contar, mas deixe-me avisá-la que quando sair daqui também não poderá voltar. Como já decidiu o livro que quer, agora, por favor, saia, pois já

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iremos fechar. Stefany concordou com a cabeça e saiu pelo mesmo local que entrou, muito satisfeita com o que havia conseguido. Fechou a porta atrás da estante e logo estava novamente na biblioteca que já lhe era conhecida. Passou tão sorridente e saltitante após aquela experiência tão surreal, que até as poucas pessoas que lá estavam, a olharam estranhamente. Mas nós leitores novamente somos tragados e imersos ao interior daquela biblioteca secreta e vemos por uma última vez a imagem daquele misterioso e estranho bibliotecário se desfazendo como areia, os livros desaparecendo como cinzas, tudo sendo engolido pela escuridão e uma voz fria e rouca falando: "É hora de fechar".

SAMUEL H. DIAS CANALSUBVERSA.com

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©PEDRO FONSECA

TEORIA DA QUEDA Evandro do Carmo Camargo ILHABELA, SP, BRASIL

Depois da tormenta, A avaria. Retesar o mastro Remendar a vela Consertar o casco E seguir em frente. Desprevenido do próximo revés. Sempre.

EVANDRO DO CARMO CAMARGO

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©PEDRO FONSECA

ZÉ DAS ALMAS Elaine Mattos ARARUAMA RJ, BRASIL Cinco da manhã. O galo canta e o despertador acompanha em ritmo desafinado. Está na hora de acordar e pegar o mesmo caminho de 30 anos. Uma canequinha de café, uma rosca mal dormida, a velha calça e a camisa quadriculada, o caderninho de anotações na mão e sobras de comida na outra. E lá ia Zé das Almas pela cidade de Jaboatinga da Serra. A cidade tem cerca de três mil habitantes e segue sua rotina tão obediente que todos sabem o que cada um está fazendo, não importa o momento. Cinco e meia Zé das Almas cruza o caminho de algumas crianças que andam cerca de três quilômetros a pé para ir para a escola, cumprimenta o rapazinho que faz entrega na padaria que passa de bicicleta, acena timidamente com a cabeça para a vózinha que CANALSUBVERSA.com

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amanhece na janela do velho sobrado, e segue ladeira acima até chegar ao cemitério. Zé das Almas nasceu José. A mãe era uma menina quando ele nasceu e logo foi embora.

Filho do coveiro da cidade ia desde

pequeno acompanhar o pai ao trabalho. Gostava de ver o ritual dos enterros e nunca teve medo. Era o trabalho do pai. Como se fosse para uma oficina mecânica ajudar o pai a apertar parafusos, ele ia contente ajudar o pai a arrumar o defunto, colocar as flores e recolher donativos para as viúvas. Não frequentou a escola por muito tempo. Com seu jeito magricela não era bom com o jogo de futebol no campinho atrás da igreja e nem fazia amigos com facilidade. Nunca era chamado para as brincadeiras dos moleques, que nasciam em profusão na pequena cidade. Na quinta série ele decidiu que não levava jeito com as palavras e nem com os vivos. Ele se entendia melhor no mundo dos mortos. Logo depois de fazer 20 anos, o pai morreu de morte súbita. O galo cantou, o despertador tocou e o pai não acordou. Zé imediatamente assumiu o posto de coveiro, arrumando o pai com o único terno de ir à igreja e cuidou de enterrá-lo como um profissional. Nunca mais largou o emprego no cemitério local. Logo ganhou o apelido de Zé das Almas. As crianças provocavam, fingindo ter medo dele, corriam e gritavam, mas Zé não se abalava. Seis da manhã ele abria as portas do cemitério, colocava o livro de anotações na mesa de madeira descascada pelo tempo, varria todas as folhas caídas, tirava as flores velhas dos túmulos, colocava os restos de comida que trazia de casa e água fresca para o cachorro, ajeitava a capela e esperava por mais um dia em que ele teria a última palavra. Era de poucas palavras, mas quando alguém dizia que a morte era o fim da linha ele retrucava.

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- Eu sou o fim da linha. Eu venho depois da morte e ela tem que esperar até que tudo esteja do jeitinho certo pro sujeito poder morrer de verdade. Essa era a máxima de Zé das Almas: ele se achava mais importante que a própria morte. Nunca teve uma namorada. As meninas tinham certo receio dele pela naturalidade que ele arrumava os defuntos, penteava o cabelo, passava pó nas mulheres, pedia batom aos familiares para colorir os lábios arroxeados e colocava flor na lapela dos homens. Zé das Almas era um homem só.

Quando morria alguém ele

passava a noite no cemitério velando o corpo com a família e fazendo as honras da casa, para não faltar nada. Nenhuma vela se apagava sem que ele imediatamente trocasse, as pessoas se debruçavam sobre o caixão e Zé das Almas ia rapidamente esticar a roupa e limpar as gotas das lágrimas que caiam no rosto do pobre coitado. Quando não tinha defunto ele fechava os portões do cemitério ás cinco da tarde em ponto e passava na vendinha para um copo de cachaça e um cigarro, que passava o dia esperando no bolso da camisa xadrez. Uma vez por semana anotava na caderneta um pacote de arroz, um punhado de feijão, café, a carne seca e um saco de farinha. Tudo pago com o salário municipal no final do mês. Lá era capaz de trocar umas poucas palavras sobre o defunto do dia. Se foi um bom sujeito ou uma mulher de virtudes. Mas nunca falava mal de um cliente. Quando não tinha nada de bom para dizer, tomava a cachaça em silêncio e voltava a descer a ladeira com o cigarro ainda aceso na boca. Chegava em casa, sentava na varanda na mesma cadeira que seu pai sentou durante anos, ligava o pequeno rádio de pilha que teimava em demorar a sintonizar a única radio local e ficava ali até os olhos começarem a pesar, a cabeça cambalear e era hora de entrar,

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comer alguma coisa e dormir. Em cima da cama, colado na parede, a foto da mãe bem menina, do pai e de um bebe. Antes de dormir, Zé das Almas dava uma espiada na família, para ter certeza de que ela estava ali. Dormia sem nunca sonhar. Nem sonho bom, nem sonho ruim. O verão chegou e a cidade que já era quente ficou ainda pior. Subir e descer a ladeira que separava a casa do cemitério já não era tarefa tão fácil. Com 55 anos, Zé das Almas tinha aspecto envelhecido. Muito magro e alto, parecia equilibrar o corpo com dificuldade. As bolsas em volta dos olhos cresciam e ficavam cada dia mais escuras e os ossos rangiam na ladeira. Era sábado de muito sol. Zé das Almas foi avisado que chegaria um menino de cinco anos para ser velado e enterrado. Isso era uma coisa que ele não gostava da profissão. Ajudar a encomendar o corpo de um velho era tarefa natural, mas enterrar uma criança não parecia justo. Caixão branquinho e dourado, feito sob medida na carpintaria em frente ao cemitério. Muitas flores do campo colhidas no caminho pela família e Zé das Almas deixou tudo arrumadinho para um dia especial. Enterrou o menino, se despediu da família que conhecia desde sempre, prometeu cuidar do túmulo diariamente, como ele fazia por hábito da profissão. Passou na venda, tomou a cachaça em silêncio, acendeu o cigarro e foi se sentar na varanda. A cabeça pesou e era hora de comer alguma coisa, tomar um banho de água rala, olhar a família e ir dormir. O galo cantou, o despertador tocou e Zé das Almas não acordou. Já passava das sete horas e o cemitério estava fechado. A cidade estranhou. Não havia defunto, mas as folhas estavam caídas no chão e o cachorro avisava que tinha fome entre as grades de ferro. Em pouco tempo todos se perguntavam onde tinha ido Zé das

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Almas. Alguns moradores se reuniram e foram em direção à casa de Zé. Tudo estava normal. A calça pendurada nas costas da cadeira, a camisa lavada secando no pequeno varal e Zé ainda estava na cama. Sem respirar. Imóvel como é comum aos mortos. Todos se olharam e fizeram a mesma pergunta silenciosa: quem vai cuidar do enterro? Só o Zé das Almas tinha a chave do cemitério e sabia onde havia espaço para mais um. Foi um corre corre na pequena sede da Prefeitura e sem saída, o Prefeito mandou buscar a Kombi oficial e levar o corpo pra Cambucas. Uma cidade a 60 quilômetros, com mais estrutura e um crematório.

ELAINE MATTOS é jornalista, trabalha com roteiros para vídeos institucionais e redação de textos para sites e blogs. É editora da revista Praia Etc, da região dos lagos, no Rio de Janeiro. CANALSUBVERSA.com

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OUÇA Sat AM CURITIBA, PR, BRASIL

©PEDRO FONSECA

A morte lhe foi dada. Use-a! Um ciclo só chega ao fim se for interrompido. Uma vez cortada a cabeça a serpente não se move. Quem se importa? Seu corpo. Sua vida. Faça o que bem entender, não tema. A marcha que toca em seus ouvidos. Fúnebre a quem possa a mesma perceber. Nada mais é que o cantarolar de pássaros perdidos. Distantes de uma realidade a outros olhos vistos. Esta estúpida dependência pelo ar. Pelo livre.

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Pelo certo, bem, verdade. De que me valeu tudo isso até hoje? Uma vez que a forca ainda aperta meu pescoço. E em companhia desses gritos medonhos que povoam minha mente. Eu pergunto... Você alguma vez me conheceu de verdade? Parou para entender o abismo que me separa do mundo. Real? Essas são palavras vazias de um cético louco. Escute-as.

SAT AM é estudante de Letras-Japonês da Universidade Federal do Paraná. Gosta de escrever textos como a temática dos sentimentos de ódio, raiva, terror e luxúria.

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©PEDRO FONSECA

MOSCAS VOLITANTES Lucas Gaspar SÃO PAULO, SP, BRASIL I quem é que eu vejo no espelho babando pasta de dente enquanto escovo meus dentes? II algumas vezes consigo tirar o sapato sem desamarrá-lo mas colocá-lo de volta não

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III quando parece que há (e não há) uma formiga em meu corpo ela após um tempo surge em outro ponto IV depois de uma freada brusca às vezes eu me sinto desconfortável no banco detrás V esfregando meus dedos dos pés suados sinto ser um peixe

LUCAS GASPAR é estudante de Letras.

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©PEDRO FONSECA

O ESPELHO DESTE PAI Heitor de Lima FORTALEZA, CE, BRASIL

O espelho deste pai, onde que habita? Sem mínima estrutura, herói incompleto. E o fez eterno êxodo intuitivo. Sumir no pai, sumir. E o pai: sumir O que dizer do filho que não o ama? Dizer ao pai que a infância agora é noite. O olhar que existe é pai e o filho é outro. Romper ou segurar, família ou filho? Sequer resposta vem, se é que há pergunta. Seus ciclos serão meus, serão sentidos

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no âmago mais físico, sem história, sem urânio. Esse teu descompassado epitáfio, que vivo ou morto está escrito à prática do filho autômato. O acolhimento estrábico e sanguíneo do pai, que é o filho, e ainda vive atado a coisa-hóstia cara a todo amor é mesmo atroz abismo azimutal. O filho e o pai somados são dois nômades. São sócrates sem senso, sem ciência e místicos estranhos, nenhum mérito primordial ou linguagem ou cinema: Pai e filho. Que astúcia, que momento: A mente: vírgula, procriadora. O pai e o filho, espelhos um do outro na concretude cínica da idade... o filho é mesmo o pai, ou sonho apenas? Que culpa tem o filho sem um pai, desenha um falso espelho que a si mesmo reflete, sem tecido e distraído. Sem pai o fiho é pai. E continua a troca, continua extremamente filho, com a semente a mover tudo.

HEITOR DE LIMA rabisca em versos desde os 9 anos de idade, espera que o mundo escolha a poesia, mesmo que inconsciente. Vive a heterogeneidade de ser quem é. CANALSUBVERSA.com

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©PEDRO FONSECA

À PROCURA Catia Penalva VIANA DO CASTELO, PORTUGAL

CATIA PENALVA já foi professora do primeiro ciclo do ensino básico e agora é Mestre em Educação Artística e dá formação de escrita criativa na sua cidade.

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ESPECIAIS

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©FOTO DO AUTOR

CARLOS ALBERTO Evandro do Carmo Camargo PARAGUAÇU PAULISTA, SP, BRASIL Estou no tiro de guerra, esse lugar de nome tão estranho onde, toda segunda, das oito às dez, eu e uns amigos maltratamos obstinadamente uma bola já meia-vida. Estou no time de fora, esperando os dez minutos regulamentares, e entabulo conversa com um rapaz, de quem me lembro do meu tempo de infância. Menino magro, alto, de um moreno meio desbotado, o rosto ossudo e anguloso, cabelos crespos e curtos. Tem a atitude corporal de um malandro. Meio encurvado pra frente, mãos nos bolsos da calça jeans ordinária, olhando tudo muito. Ele não está no time de fora. Aparece ali às vezes para assistir aos jogos. Uma vez apenas o vi jogar. Faltava gente e, como ele se sentisse animado aquele dia, jogou uns dez ou treze minutos da última partida. Mas isso não vem ao caso. No começo da conversa, ficamos alguns

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instantes comentando, animadamente, os lances do jogo. Passado algum tempo, percebo algo: não sei o nome do rapaz com quem converso. Sempre o vejo na rua, cidade pequena sabe como é, mas nem imagino como se chama. Conheço-o como todos o conhecem: Carequinha. O apelido vem com certeza da época em que ele e mais dois ou três irmãos ou primos ou vizinhos, não me lembro, usavam sempre o mesmo e mais econômico corte de cabelo que ainda se inventou: máquina zero. O corte careca, além de facilitar a vida de quem corta, que pode muito bem dar um desconto ao freguês, é o que mais tempo demanda para que se precise cortar novamente. Batata! Mas que era estranho aquela molecada magra, careca e maltrapilha, era. Sempre perturbadora a presença daquele grupo de meninos, apesar de eles serem bem mais novos do que nós. Quando digo nós, me refiro aos alunos da sétima série A da E.E.P.G Isidoro Baptista, o GEP, meu inesquecível colégio da segunda à oitava série. Se tínhamos, eu e os meus, por volta de treze anos, a idade da obscura turminha não ultrapassava os nove, devendo o mais novo deles não ter mais que sete. Lembro-me de um fato curioso ocorrido nessa época. O Carequinha já tinha esse estranho costume de assistir jogos. Refletindo melhor, talvez o desejo do menino fosse jogar conosco, ou com quem quer que fosse. Mas não me lembro de vê-lo jogando. Suplício dos suplícios: no país do futebol, berço de Pelé, Garrincha, Biro-Biro, Mário Tilico e tantos craques inesquecíveis, o Carequinha sofria de exclusão futebolística. Com o tempo, tal exclusão viria a se tornar crônica, como comprova o fato de o rapaz ainda hoje só assistir jogos. Só joga quando falta alguém para completar o time. Ainda assim, vale lembrar: só em último caso. Quando já se consultou toda a assistência e, entre contusões e “Já tomei banho hoje”, não sobra mais ninguém, aí sim é a vez do Carequinha. “Tem o Carequinha”, diz alguém no meio do campo, de forma abafada e esquiva.

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O Carequinha, às vezes, já tomou banho também. Nunca está com trajes adequados à prática do antigo esporte bretão – acho que nunca deve ter comprado um tênis de futebol de salão, que tem a vantagem de poder ser usado em outras ocasiões que não a peleja, e muito menos uma chuteira. Porém, solícito, fica sem graça de negar o favor aos boleiros. Como resistir ao canto da sereia? Tão sonoro... “Vem, Carequinha!” “Vem!” Lança fora o tênis roto, arregaça a calça jeans ordinária, dando várias dobras na barra e expondo as finas canelas. Timidamente, vai para o jogo. Não sei se joga bem ou mal. É daqueles que não chamam a atenção; jogador discreto a quem todos fazem questão de ignorar. Nada esperam do Carequinha e ele dificilmente ocupará posições importantes no escrete, tais como centroavante, meia fominha, zagueiro central ou mandão do time. Fica sempre meio no meio, meio escondido, dando, ora ou outra, um pontapé tímido na bola. Bem. O fato é que, desde a época em que Carequinha ainda era careca e andava com sua temível turminha, só se cogitava incluí-lo na brincadeira quando não havia quorum suficiente – sempre tem um que a mãe não deixa ou que fica jogando Atari a tarde inteira. Ainda assim, dado o aspecto ameaçador do menino, preferia-se, o mais das vezes, jogar com um a menos. Por essa época, a gente costumava jogar futebol de salão com bola de futebol de campo porque a bola de futebol de salão era muito dura e também ninguém tinha uma bola de futebol de salão – quem seria louco? – na quadra da ACEPP, uma associação de descendentes de japoneses pouco afeita a quem não tivesse olhos puxados. Tínhamos um amigo japa e ele dava um jeito de podermos usar a quadra, hoje desativada para a prática desportiva devido à sua decrepitude crônica. Mas nada disso interessa. Já contei que nosso herói apreciava deveras as partidas de fut, não? Pois então. O fato é que nosso amigo Carequinha, por vezes, gostava de apreciálas de ângulos pouco convencionais. No dia em questão, estava ele

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sentadinho em cima do travessão, pertinho de onde este se encontra com a trave esquerda do goleiro. O famoso “ângulo”, o “v”. Estava ali, miudinho, esquálido, quietinho, só a cabeça pendendo irregularmente de um lado para o outro, parecendo não conseguir equilibrar-se bem. As perninhas inseguras ficavam cobrindo um pedacinho do gol, atrapalhando o goleiro, que tinha que jogar um pouco adiantado. É claro que o goleiro não gostava nem um pouco da brincadeira, mas nada fazia por conta do medo que o pequeno Carequinha lhe inspirava. O que ninguém esperava era que uma bola fosse atingir a parte mais visível e exposta do nosso herói. Uma formidável bolada na cabeça e Carequinha se estatelou no chão, onde ficou por alguns instantes, a princípio choroso e resmungão, mas passando rapidamente ao seu usual tom ameaçador. Rimos bastante, como não poderia deixar de ser, e não sei que fim levaram Carequinha e sua trupe. Sumiram por aquele dia. E por outros mais. Carequinha se foi. Se foi para aparecer só algumas vezes, de passagem, pelas ruas sossegadas da cidade. De repente, fico curioso. “Ô Carequinha. Agora você nem é carequinha mais e eu só te conheço por Carequinha. Como é seu nome?” Carequinha sorri. Parece que o assunto lhe agrada. Assim como agrada a qualquer um assuntos acerca da sua própria pessoa. Gostamos de ser personagem, que falem de nosco, que se interessem por nosco. Um perigo. Não sei se algo desse teor passou pela cabeça do nosso herói. O fato é que ele gostou do assunto. Abriu um sorriso tímido e respondeu orgulhoso: “Carlos Alberto.” “Puxa, Carequinha!” “Que nomão!” Carequinha se ri mais um pouco, timidamente. “Nome forte, Carequinha.” “Causa impacto.” “Carlos Alberto...” Sorrio também. É um belo nome. “Carlos Alberto!...”, repito enfaticamente. “E tem o Carlos Alberto Parreira”, digo, entusiasmado. Ele concorda balançando afirmativamente a cabeça, hoje mais firme em cima do pescoço, e lembra, orgulhoso, o Carlos Alberto de Nóbrega. “Pois então!...”

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“Nomão!...” “Você deu sorte no nome rapaz.” “Ah...”, diz Carequinha, pensativo. “Se eu tivesse um nome muito estranho, eu ia trocar.” “É...”, digo. “Não deve ser legal ter esses nomes esquisitos que existem por aí. Eu mesmo. Meu pai queria colocar meu nome de Ubiratan. Imagina? Nada contra os Ubiratans que haja por aí, mas é um nome incomum. Sorte que minha mãe não deixou”, digo, aliviado, apesar de não gostar muito do meu nome também.

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©DEB DORNELES

RUBYANÃ FUTEBOL CLUBE Sílvio Eduardo Paro SÃO PAULO, SP, BRASIL Rubyanã é a cidade em que nasci. Uma cidade de médio para grande porte, encravada no interior do Estado de São Paulo, no Brasil, e que possui algo em torno de cem mil habitantes. Uma cidade que me faz sentir extremada saudade todas as vezes que dela me recordo, uma vez que, como todo o Rubyanense, eu também sou apaixonado pela minha terra e pelas coisas que nela existem, como, por exemplo, o Rubyanã Futebol Clube. Qualquer pessoa que pronuncie aquela frase mais do que desgastada que o futebol é uma paixão internacional e não conhecer a idolatria dos Rubyanenses pelo time de sua cidade, não sabe o que realmente venha a ser a paixão verdadeira por uma esquadra de futebol. O Rubyanã Futebol Clube é um time modesto, que possui

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um acanhado estádio, com capacidade para somente treze mil pessoas, e que atualmente está na terceira divisão do futebol paulista. Entretanto, apesar do tamanho do time e da divisão em que se encontra, o amor dos moradores de Rubyanã pela equipe de camisa de cores grená e azul é algo que já foi estudado até mesmo por doutores de diversas universidades estaduais e federais de todo o Brasil e de algumas universidades de outras partes do mundo. Ao final de suas dissertações acadêmicas, os catedráticos concluíram que não há, em todo o mundo, torcedores mais apaixonados por seu time do coração do que os habitantes de Rubyanã. O quê? Você não acredita? Ora, você tem a minha palavra de que é verdade... Não basta? Hummm! Eu entendo o seu “pé atrás” com o que falo. Acha que é apenas conversa de um escritor apaixonado pelo time de sua cidade natal, não é isso? A sua desconfiança chega a me ofender, no entanto é compreensível. Leia, porém, esse meu relato de quando o Rubyanã Futebol Clube ainda estava na quarta divisão do Campeonato Paulista de Futebol e tenho absoluta convicção de que você mudará o pensamento em relação ao grande clube de minha adorada metrópole. Vejamos, então, o caso: como disse anteriormente, no estádio do Ruby, que é como chamamos afetuosamente o time de nossa cidade, cabem treze mil pessoas e para que todos que queiram frequentar o estádio nos jogos do Rubyanã Futebol Clube possam assistir aos jogos há um bem organizado rodízio de torcedores, que só conseguem ir ao campo a cada três ou quatro meses, uma vez que é muita gente querendo frequentar os jogos ao mesmo tempo. E não importa o jogo. Desde um jogo importante até um amistoso entre o Rubyanã e os times de cidades próximas. Para se ter uma ideia da paixão dos Rubyanenses pela

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esquadra grená e azul, os treinos do Ruby, quando há poucas pessoas, há uns oito mil espectadores, que pagam para ver os treinamentos, com a finalidade de poderem ajudar o clube a terminar o majestoso estádio que está construindo com capacidade para trinta e oito mil pessoas, para que o tal rodízio de torcedores possa ser menor que o atual. A escolha de quem vai ou não ao estádio do Rubyanã Futebol Clube assistir aos jogos oficiais é feita por sorteio, mais ou menos assim: o torcedor compra os ingressos para o ano todo e espera um sorteio feito pelo presidente do clube futebolístico para saber quem vai ao jogo na partida seguinte. Sorteio bem organizado, com presença de auditores e tudo o mais. Sorteio oficial mesmo. Coisa séria. Não há fraude de forma alguma. E foi exatamente por causa do rodízio de torcedores que se sucedeu um fato interessantíssimo: Dejanira e o marido, Dejair, foram contemplados em uns desses sorteios que acabei de mencionar. Naquele sorteio, diferentemente de outros tantos já realizados, ficou estipulado que iria tão somente certa quantidade de pessoas com nomes iniciados com cada letra do alfabeto e, porque os nomes dos dois começavam com a letra “D” e já havia excedido a quantidade de torcedores que começavam com esta letra, somente um poderia comparecer ao jogo. Por causa disso, deveriam escolher do casal quem iria assistir ao Ruby disputar a grande final do Campeonato Estadual da quarta divisão de 2009. Se vencesse o jogo, por haver empatado na casa do adversário, o Rubyanã Futebol Clube subiria para a terceira divisão. É claro que os dois apaixonados queriam ver no estádio o time do coração atuando em uma partida tão importante. Dejanira e Dejair sempre foram apaixonados um pelo outro e, do mesmo modo, pelo Rubyanã Futebol Clube. Faziam um par

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perfeito,

amavam-se

em

demasia,

tinham

três

filhos

e

viviam

harmoniosamente e ostentando um semblante de felicidade de causar inveja. Moravam em uma casa humilde, mas bem cuidada da periferia, não por acaso pintada com as cores oficiais do clube do coração: grená e azul. Jamais se separavam. Se um não pudesse ir a um lugar o outro jamais iria. Cinema, teatro, noivados, reunião de família, jogo de cartas,

enterro,

parte

nenhuma.

Se

um

não

comparecesse

a

determinado lugar, por estar doente, por exemplo, ou sem vontade de ir ao local do festejo, o outro também não comparecia. Eram considerados pares perfeitos, almas gêmeas mesmo. A água e o grão no chão ressecado. O côncavo e o convexo. No entanto, o amor pelo Rubyanã

Futebol

Clube

era

incomensurável.

Acima

da

compreensão humana. No começo da conversa para decidir qual dos dois iria ao famigerado jogo, a conversa permanecia amigável e dentro dos parâmetros considerados razoáveis entre um casal que se ama e se respeita, não obstante os dois raras vezes terem sido vistos discutindo um com o outro. Posteriormente, com a ideia imutável de ambos de irem ao jogo, começaram a discutir acaloradamente, coisa que jamais fizeram nos vinte e cinco anos de casamento. O homem, já cansado de tanto bate-boca, não achando melhor argumento para conseguir a entrada para o grande jogo e, extremamente alterado pelo nervosismo que sentia no momento, ameaçou a mulher, dizendo que a largaria se ela não desse aquele ticket a ele. Completou em altos brados que o casamento de anos iria se findar naquele instante caso a companheira não lhe cedesse a vez. Articulou a ela, ao mesmo tempo, que pensasse bem se daria a entrada ou não. Era, sim, o último aviso. Ou o bilhete para o jogo ou a separação seria certa e imediata.

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No dia seguinte ao jogo da final, no maior jornal da cidade, o Rubyanã News Today, era possível observar em uma enorme foto tirada da arquibancada do estádio do Ruby, estampada na primeira página, uma pessoa em destaque, sorrindo intensamente, parecendo em êxtase por causa da felicidade que sentia em assistir a seu time do coração vencer e mudar da quarta para a terceira divisão do futebol paulista. Era Dejanira! Pelo Rubyanã Futebol Clube, nem o casamento de vinte anos nem os três filhos adorados nem o amor verdadeiro e eterno que sentia pelo marido Dejair fariam com que ela deixasse de assistir ao seu clube do coração, o Ruby, ascender de divisão. O divórcio dos dois saiu em menos de três meses. É por isso que posso afirmar que, para o torcedor de minha amada cidade, o Rubyanã Futebol Clube não é uma mera questão de amor ou de ódio, de vida ou de morte, é bem mais do que isso. Chega a ser uma paixão absurda, que se aproxima do desvario.

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© FOTO DO AUTOR

O DONO DO MUNDO Diego de Toledo Lima JOANÓPOLIS, SP, BRASIL Fabiano, peão de boiadeiro experiente, agora retirante à própria sorte. Homem de fé forte, correndo terra e estradas longas devido à seca, que chegou sem avisar, matando os pastos e animais, minguando as águas. A única alternativa foi subir a serra, buscando recanto em lugares cada vez mais altos e longe da civilização. Bicho gente, culpado por isso… Derrubaram a mata, queimaram os campos e lotearam os matos. E agora? Mesmo assim, Fabiano não guardava rancor. Também não tinha raiva, apenas queria continuar sua vida… Em idos tempos, ainda criança, Fabiano havia subido até o alto daquela serra e lá encontrou uma pulsante fazenda, muita gente trabalhando, uma casinha branca na meia encosta, pés de fruta, um curral cheio de animais, a verde mata e muita água. Na busca de suas


lembranças, ele seguia pela estrada de terra batida, passando porteiras e mata-burros. Atravessou os cerrados, sem entender tanta beleza numa seca tão intensa, ali tinha capim para o gado que duraria meses. Levantou a aba do chapéu, respirou fundo e prosseguiu no morro grande, encosta dura de ser vencida. Venceu tortuosas curvas e, ao lado de um resistente pinheiro, olhou a cidade ao longe, abandonada… Lá embaixo, ele seria um cowboy fora da lei, aqui em cima apenas um vaqueiro. Subiu mais e mais, chegou ao teto do lugar… Quase chorou, vendo tudo amarelado. Olhou para trás, uma trilha no meio da mata e um grande Jequitibá. Lembrou que era ali, só podia ser ali. Foi em frente, conduzido por um assobio alegre das aves mantiqueiras. Parou na porteira, madeira grossa e lisa, trancada por uma densa corrente. Com somente um salto Fabiano estava do outro lado. Bebeu água da fonte, matando a sede de dias. No céu, gaviões em voos circulares, num balé sincronizado pra lá e pra cá. Deixou a margem do rio, acompanhou a cerca, subiu uma ladeira, chegou a uma mangueira. Fazia tempo que não via sombra. Estava no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido. Fabiano procurou em vão perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da casa, bateu, tentou forçar a porta. Encontrando resistência, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou a tapera, alcançou o terreiro do fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de aroeiras murchas, um pé de goiabeira e o prolongamento da cerca do curral. Trepou-se no mourão do canto, examinou o pasto, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou

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a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo tenção de se hospedar ali. Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa

anilada

baixava,

escurecia,

quebrada

apenas

pelas

vermelhidões do poente. Miudinhos, perdidos no deserto queimado, o fugitivo agarrava-se, somava as suas desgraças e os seus pavores. Passada as horas, a lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro. A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo…

DIEGO DE TOLEDO LIMA é técnico, engenheiro e servidor público estadual. Andarilho e cronista, com ênfase na vida do campo e natureza. Autor do livro “Crônicas Mantiqueiras”.

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© MORGANA RECH

O ENCONTRO Helder Rocha VITÓRIA DA CONQUISTA, BA, BRASIL Pela janela ele olhava sempre para fora. De forma embaçada não dava para ver direito, tinha sempre uma pequena barreira, algo que se colocava sutilmente entre um desejo de ganhar a rua e o medo de ficar exposto. Nos olhos da criança que vislumbrava os movimentos da rua podia se ver muito além do que uma mente ainda em formação, contrariando as teses da tábula rasa. Havia mesmo um brilho no olhar de alguém que inventava futuros coloridos sem mesmo conhecer os perigos do segundo seguinte. Lá fora se aproximava lentamente o responsável pela imagem dividida entre o anseio de conquistar o mundo e o resguardo seguro da província. Era o autor de inúmeras estórias escritas com leves modulações entre as lembranças de experiências de quem as viveu e as invenções de uma mente criativa que não tinha freios e nem sequer sabia o significado da palavra acanhamento. Guimarães Rosa chegava apeado em seu

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cavalo, num galope que perdia a velocidade constantemente. Quando viu a janela, o célebre escritor olhou com calma, sorriu um riso sincero, de quem chega feliz de uma longa travessia repleta de aventuras. O ser que estava do lado de dentro não imaginava o que aquele outro que estava do lado de fora pensava ao sorrir daquela maneira. Por alguns instantes aquela visão tomou toda a atmosfera imaginativa do menino, pois era uma imagem grandiosa de um cavaleiro chegando montado em seu cavalo, todo imponente, como quem vem de longe com muitas experiências guardadas na memória, ainda que todas elas também muito inventadas. O moço todo lorde, nascido em Cordisburgo, adorava seres pequeninos de alma pura e mente larga e expansiva. Eram as criaturas que ele mais apreciava, juntamente com os bois e burrinhos do sertão. Enquanto se aproximava da janela, mais se lembrava de sua infância na cidadezinha do interior mineiro, quando corria solto pelo mato, brincando com os animais e as outras almazinhas da cidade. Lembrou-se de que também tinha um olhar muito impressionado e de que qualquer coisa galante lhe parecia muito maior do que realmente era como, por exemplo, a imagem de um forasteiro chegando montado em seu cavalo. Ele, quando pequeno, costumava associar a imagem dos vaqueiros aos Pares de França, estória que ouvia ao redor de uma fogueira, pela voz dos mais velhos cantadores da região, que tinham na rima a chave mnemônica para as fantasias vividas por outros lá pelos idos da Idade Média. Tempos de reis, monges e bruxas. Eram festanças realizadas em pleno sertão com muita comida e muita imaginação, sem aquela miséria típica de outras pinturas do cenário interiorano do país. Ali, dava para surpreender a vida acontecendo, pois a morte era o fim daquela travessia que exigia o pensamento do ser humano como condição primeira, antes mesmo que a força do lugar lhe dominasse.

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A vidraça que separava aquele menino e aquele velho escritor, já famoso, separava, também, dois mundos inconciliáveis entre uma infância perdida e uma realidade presente do homem cheio de preocupação

pelos

sofrimentos

do

mundo,

repleto

de

responsabilidades sociais. Aquela visão do Miguilim, seu passado longínquo, já não se tinha mais desde o dia em que aquele senhor montado no cavalo, doutor da cidade, lhe pusera os olhos de vidro para poder ver o mundo com mais detalhes e sem muitas distorções. Pois o que passou a ver, daquele dia em diante, foi a existência sofrida de um homem que acredita tanto no diabo ao ponto de largar sua própria vida aos destinos arrebatadores das condições sociais e geográficas do lugar. Mas não eram os sertanejos, seus compadrios queridos, que ele via assim. Eram os seres viventes da cidade grande, sobretudo aqueles da estranja, de terras que estavam ameaçadas pela guerra e pelo horror totalitário do desejo de poucos, que ele costumou a ver como de mentes fracas, sem muita imaginação, com tendências fortes a se curvarem ao ambiente hostil de uso da ciência e do progresso em prol de mortes em série e tristezas sem fim. Lembrou-se de que seu sertão era um mundo, um mundo que para os olhos dos avançados, progressistas e modernos se tratava de uma solitária terra atrasada, repleta de violência, de códigos esquecidos de uma época em que o Estado ainda não tinha força perante outras instituições. Era um mundo que aos olhos dos estrangeiros parecia dominado por forças ocultas, submetidas à fé a ao misticismo. Mas, para Rosa, não. Ali se tratava de um mundo ainda possível de se viver, de imaginar e de se desenvolver como ser humano, aliás, bem diferente das terras onde viveu por algum tempo quando trabalhava fazendo diplomacia. Estava sempre transitando em línguas e culturas diversificadas. Enquanto se passava um flashback autorreflexivo na mente daquele homem velho e vivido, pela cabecinha daquela criança havia

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um mistério grande, povoado das mais ingênuas curiosidades e quimeras, pelas quais se passavam sagaranas variadas, antes mesmo de um contato verbal entre aqueles dois seres, que se encontravam separados pelo tempo até mais do que pelo espaço tomado pela nem muita espessa parede de vidro. Esse breve e interessante encontro proporcionava àquele menino, de agora em diante, sonhar e pensar de forma ruminativa as coisas mais elementares que o cercavam, como o porquê se tinha que aprender a falar que nem gente da cidade na escola. As verdades do existir para essa alminha de olhos encantados passaram a ser motivo das perguntas mais frequentes, de dimensões infindáveis, que ele sempre fazia para alguém mais velho, que, por sua vez, nunca se tinha respostas abrangedoras para tal. Era o começo de um aprendizado difícil, mas que no mundo julgam necessário, aquelas explicações sem sentido para perguntas que, ao mesmo tempo, eram tão simples e tão complexas. Passados alguns instantes, G. Rosa começa a se afastar daquela janela, ainda apeado em seu cavalo, e acena levemente para seu amiguinho, despedindo-se daquele menino que muito lhe fazia lembrar-se de si mesmo. Enquanto isso, aquele pequenino que houvera sido modificado pelo contato inesperado daquele cavaleiro, pronuncia mirradas palavras entre soluços e lagriminhas que iniciavam uma descida rápida pelas margens de sua face: - Ai seu mocinho bom. Ai seu mocinho bom. Não vai se embora para trás. Não vai se embora para trás. Um rio correu os olhos do menino. Guimarães Rosa voltara para a sua vida atual. HELDER ROCHA é graduado e mestre em Letras pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB, com pesquisa no âmbito da Literatura Brasileira contemporânea. É oficineiro de leitura do Comitê Proler/UESB e foi classificado em 3° lugar no “Prêmio Damário Dacruz de Poesia”, realizado em 2012.

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Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM Diretrizes para publicação: WWW.CANALSUBVERSA/DIRETRIZES

Colaboração especial: Pedro Fernandes

: Deb Dorneles

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