SAMUEL H DIAS | GABRIELA RUGGIERO NOR EVANDRO DO CARMO CAMARGO| TÂNIA ARDITO CATIA PENALVA| BRENO RICARDO MORGANA RECH | LUIZA FERREIRA
8ª Edição | DEZ /2 2014
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SubVersa | literatura luso-brasileira |
8ª Edição
© originalmente publicado em 15 de Dezembro de 2014 sob o título de SubVersa ©
Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito
Fotografias: ©Luciana Belinazo: Das Imagens |Pensamentos Mortos | Ser poesia é habitar a música | O ONS do RU | Mas tu sabias, pai | Jeci © Tânia Ardito: Lírica Grega © Morgana Rech: Siri morrendo
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
8ª Edição Dezembro de 2014
GABRIELA RUGGIERO NOR | © DAS IMAGENS | 5 EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © SIRI MORRENDO|9 SAMUEL H DIAS | © PENSAMENTOS MORTOS | 13 LUIZA FERREIRA | © SER POESIA É HABITAR A MÚSICA | 16 BRENO RICARDO | © O ONS DO RU | 19 CATIA PENALVA | © MAS TU SABIAS, PAI | 21 TÂNIA ARDITO |© LÍRICA GREGA| 22 MORGANA RECH | © JECI | 25
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EDITORIAL
Apresentamos a 8ª edição da SubVersa, a
última
do
ano
que
representa
o
encerramento de um ciclo. Com certeza, daqui a um tempo, nós editoras sentiremos saudades boas e orgulho desses seis meses de acertos, muitos erros, ideias entusiasmantes, experiências, risadas e aprendizagem. Já na
nossa
chamada
para
a
oitava
edição,
apresentamos o 8 como o símbolo do infinito, sendo o nosso maior desejo para o ano que se aproxima
e
para
o
novo
começo
da
SubVersa, que possa ser um novo ciclo infinito de ideias, textos, colaboradores e parceiros deste projeto. Sim,
a
Sub,
como
carinhosamente
chamamos, está em fase de remodelação. O nosso trabalho visa ser, cada vez mais, uma ponte
luso-brasileira
da
literatura
contemporânea, sem nos esquecermos do nosso conceito inicial, o desejo de ser uma mais-valia a quem procura espaço dentro do difícil mundo literário. Estamos de volta ao começo, não num
retrocesso, mas
num
processo de evolução. Voltar às origens será sempre necessário para evoluir e ultrapassar os desafios do caminho. O mesmo que esperamos aos autores e leitores. Desejamos a todos um 2015 repleto de energia, entusiasmo e inspiração. É o que nos move!
DAS IMAGENS
GABRIELA RUGGIERO NOR SÃO PAULO, SÃO PAULO, BRASIL
Labirintos e a perseguição sem trégua, fugindo – depois de correr até o coração parar, termino num grito abafado, lençóis que mudaram de lugar sem que eu visse. (como queria puxar sua mão junto comigo, para o fundo fundo fundo) meu corpo como o de um pássaro; leve, frágil, as asas cortadas de Frida – alas rotas y ganas de volar – recosida mi espalda por la mañana, el dolor solo en el punto más central de la lumbar – uma estrella y todos los amores vividos y frustrados en mis riñones – pero me muevo como los gatos y ¡de pie estoy! Antes que lo sepas ya me fui era um cachorro morto, pendurado pela pele solta, com o focinho humilde despencado – era a dor de novo, mais minha porque não em minha pele, mais minha porque causada por nós
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ela, por quem eu quase desisti de tudo, tinha um perfume forte de invadir as narinas e ficar o dia inteiro amortecendo os poros – ela, cujo perfume sinto às vezes inesperadamente, carregado no vento, sem sinal da íris violeta e das pupilas de gato, deixando-me na confiança esquiva do faro humano – era uma bruxa. eram as sobrancelhas doces, doces, claras, loiras, que se tornavam cruéis, a lua pesada em cima de todos, a lua pesada e o carro azul; azul-escuro, profundo, de se ir pra dentro e não sair – até o penhasco ele dirigiu e de lá seus olhos se avermelharam para sempre, nunca mais suas sobrancelhas claras claras de sol, nunca mais seus olhos azuis, agora, porém – un coup de dés jamais n'abolira le hasard – as cartas que ela (Madame Pequenina) consultou disseram que seríamos abençoados, que eu tinha uma inclinação espiritual – revelação? inclinação espiritual (da qual me livro com álcool que retorna em pesadelos e sede em madrugada verde. Da qual me livro com o embotamento de todo e qualquer sentido – extrasentido – paranormalidade –
le hasard, la
femme-oiseau, moi, celle qui va mourir seule sans chats et sans savoir coudre les chaussettes de mon fils imaginaire – une bouteille de vin à côté de mon livre favori, jamais écrit mais bien chéri) era o corpo amado festejando em suor alheio, era a garganta amada gritando nomes outros que não o meu, eram os olhos amados denunciando a falta grave, e o desprezo que acompanha as traições sofridas e a culpa que acompanha aquelas praticadas. era a sombra que se instalava sem permissão e não ia embora nunca, eram as marcas debaixo dos olhos que retornavam mais vívidas;
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a carne saliente cada vez mais apodrecida, cada dia 22 do mês em que os cachorros mordem mais, era o signo canhoto registrando cada visão de morte, eram as mãos dele nos quadris perfurados de desejo que não saciava nunca, era a frigidez que chegava após o gozo e a tormenta de novamente submeter o corpo às alucinações do quarto escuro e frio bones that crackled in the bed, legs wrapped in nightmares [I had a rented skull and borrowed brains to be able to go to college in the morning: stealing everyone else's souls with a fake bright smile there I went – will you sing along my dear, sing along, sing along, will you sing along when my wings get loose? when my arms are released from the smothering confinement of his lips, will you sing along? when my deprived body comes to light again? will you blow the ashes off my pale skin when I'm finished burning every bit of this rock this marble this thick silver layer that encloses my teeth? Let's make a promise an agreement an art to live by and through – let's hold hands till our hands vanish] à noite toquei profundamente em suas mãos e soprei na ponta de seu queixo; beijei suas pálpebras doces, escovei com as pontas dos dedos os seus cílios, abençoei seu corpo nu, pedi aos anjos que não te deixassem nunca, rezei para que sempre fosse feliz, e tranquilo, e que a vida fosse boa com você, e que você fosse bom com as pessoas, que seus filhos fossem fortes e te suportassem o peso na velhice, que sua esposa tivesse olhos de lua e sorriso de cristal, murmurei repetidamente que Deus respeitasse a ingenuidade de minha prece, que eu queria você sempre feliz e alheio à dor e ao medo, que eu queria que você
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tivesse sempre onde descansar suas costas, que tivesse sempre um prato cheio de comida, que nunca passasse frio, que não se deixasse consumir pelo desejo ou pelo dinheiro, que você continuasse forte e bom, com os braços fortes e bons de quem se levanta repetidamente para acompanhar a doente até o leito, braços fortes e bons de quem carrega a bondade maior, mais elevada, mais firme, eu rezei pra que a pureza que conserva nos olhos passasse adiante numa geração dourada, altiva, contente que nunca ninguém te abandone que me seque o veneno dos lábios que me faça uma prece por hoje.
GABRIELA RUGGIERO NOR é professora de línguas e doutoranda em literatura brasileira. Escreve também sobre maternidade consciente e humanização no atendimento da mulher.
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SIRI
MORRENDO
EVANDRO DO CARMO CAMARGO ILHABELA, SÃO PAULO, BRASIL
Tem um siri muito sério Na areia da praia, olhando triste Seus dois bracinhos, Com suas garrinhas, Caídos na areia, Separados do corpo. Coitadinho do siri. Pego ele na mão e reparo: Falta ainda a última perninha de trás, do lado esquerdo. Mas ele está vivo. Com medo, Recolhe os olhinhos retráteis quando o apanho.
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Tento grudar suas perninhas, Não colam mais. Penso em colocá-lo na água, Mas acho que seria comido, ou morreria afogado. Tento fazê-lo andar, Andar já não pode. Está quebrantado, Imóvel. Uma mosca percorre seu casco.
Siri morrendo II Sento-me em um balanço embaixo de um chapéu-de-sol, E fico imaginando na situação do siri, Reflexivo. A mosca não o deixa mesmo em paz. Muito de vez em quando, o siri faz que vai andar. Cansadamente, flexiona lento as perninhas que restaram. Mas não sai do lugar, Resignado. Penso de novo em colocá-lo na água. É um animal marinho.
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Deve preferir morrer na água salgada. Pelo menos não tem moscas. E vai que no mar as perninhas restantes não ficam mais espertinhas? Talvez nadar ele ainda consiga. É isso mesmo! Vou salvar o bichinho. Pra ele não ficar assustado, Coloco-o na areia, em um lugar onde uma ondona acabou de bater, mas que agora está seco. Fico à espera de outra onda daquelas, mas nada. Eu esperando e ele lá, paradão. O chato é que não dá pra saber o que ele prefere. Às vezes tem de novo aquele espasmo. Mas não sei se quer ir logo pra água ou fugir dela. E essa onda que não vem... Chega a vinte centímetros dele e nada mais. Impaciente, coloco o bicho mais adiante, Onde, sem mais tardar, se banhará talvez pela última vez nas águas frias do Atlântico sul. Uma onda termina a cinco centímetros dele. Está com os olhinhos arregalados, acho. A outra que vem, vem forte, e derruba nosso herói, Que agora está de ponta-cabeça, mexendo as perninhas.
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Não esperava esse acidente. Não esperava. Mesmo. Meio zonzo, me afasto rápido, olhando pra trás, Preocupado. Minha súbita retirada o coloca em desespero. As perninhas frenéticas e os olhinhos estalados parecem querer dizer algo.
EVANDRO DO CARMO CAMARGO
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PENSAMENTOS MORTOS
SAMUEL H DIAS MUZAMBINHO, MINAS GERAIS, BRASIL
- Um corte um pouco acima do pescoço, às nove horas da manhã de um sábado bem enjoativo, o café frio espalhado pelo chão e meu assassino sentado em meu sofá comendo um sanduíche de presunto e tomate, a TV estava ligada, ele tinha quase dois metros de altura e vestia um sobretudo preto e até tendo certeza que eu já estava morto era cuidadoso e não retirava o capuz, era muito cedo para ser morto e estava muito cansado para ser morto. " Suspiros" - Minha visão já não está tão clara como a de alguns segundos atrás, estou me curvando para o lado, estava até agora pouco encostado no
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armário embaixo da pia da cozinha, lembro-me de ter deixado a ração do Bob ali dentro, lembro-me também de ter comprado a ração errada, maldita promoção e maldito salário mínimo que não paga nem mesmo meus impostos. " Queda" - Meu corpo encontra o chão gelado de meu apartamento, agora não consigo ver o assassino, tudo que vejo é o balcão de mármore no qual há alguns minutos atrás estava sentado tomando meu café e comendo aquele sanduíche, mal consegui dar duas mordidas e tão repentinamente quase não pude ver ele surgindo das sombras. " Dor" - Não era humano, eu vi com meus próprios olhos as sombras saírem pelas paredes e por entre elas este estranho homem encapuzado, arrisco dizer que era a morte, mas se for, não é muito simpática e como dizem: vem sem avisar. " Sangue" - Minha visão some, estou no escuro e o único sentimento vivo dentro de mim é o medo, meu coração já está desacelerando como um trem chegando na estação, nunca mais verei este mundo nojento ao menos é isto que penso, já que nenhuma lembrança minha ficará para alguém, se existe algo pior do que morrer, talvez seja não ser lembrado. "Lágrimas"
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- Já não me restam mais forças... " Sorriso" - Ao menos foi rápido, pois não sinto dor. "Morte"
SAMUEL H DIAS
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SER POESIA É HABITAR A MÚSICA LUIZA FERREIRA RIO DE JANEIRO, RIO DE JANEIRO, BRASIL
Viveu no esquecimento de sabores, dos cheiros, do sentir e da companhia de si mesma. Perdeu sua aura colorida, seus indecifráveis mistérios que tornava-na única. Desfez-se da natureza, perdeu o olfato ao cheirar uma rosa e o paladar ao saborear as frutas de outono. Buscou os caminhos das ideias perfeitas, dos ideais e do que está acima de todas as suas experiências, sentidos e paixões. Foi acompanhada pelo falso e, em suas trilhas imaginárias, segurou infinitos que foram quebrados meio a palavras de ferro e sem a menor chance tentar reconstruir os cacos deixados pelo chão. Fez-se só. Acolheu-se nos braços de sua alma, segurou o abismo na mão esquerda e, com a direita, ainda procurava um resquício de equilíbrio. A chuva a derrubou e a tempestade a fez desistir. Desfez-se nos mares das lembranças, afogou-se em melancolias resguardadas de um verão em vão, e cobriu-se de silêncio da cabeça aos pés. Era como um choque. Uma canseira que lhe tirava o sono, um
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silêncio barulhento, uma linguagem travada e suas rimas que não rimavam mais. Começava pelas suas pernas, tomava conta de suas costas e chegava até os seus braços. Eram ventanias trazidas de um mar remoto, nostálgico, breve e antes leve. Era o barulho das ondas quebrando nos seus ouvidos através de estalos, de pânico, de um ser, mas não ser. Antes, com seus pés descalços e suas mãos sobre a areia, conseguia contemplar toda a vista daquele mar, que a acariciava gentil e sereno. Filha das conchas e dos oceanos, foi invadida nas profundezas de toda sua alma e, aquelas águas, antes amigas, tornaram-se caminho para a queda. Foi imobilizada pelos seus sentidos e desprendeu-se de seus quereres remotos quaisquer. Assim que chegou aos seus ouvidos, o movimento que lhe revestia, foi interrompido e seguiu outra direção. As
janelas
tremeram.
Algo
mudou.
Ouviu,
pelos
vidros
empoeirados antigos, e pela transparência de uma noite escura e inesperada, uma distante melodia. Uma melodia que a lembrava o canto de sereias e que a chamava para se levantar e procurar de onde vinha o que seduzia seus ouvidos. Era a melodia das estrelas. Correu até onde pudesse estar mais próxima àquele som que, com cheiro de flor e que alivia a dor, se apresentava como uma espécie de mudança. Cantarolando meio a nuvens perturbadas e meio ao resmungo da Lua, insistiram em notas, em canto e em movimentos circulares e paralelos. Entrelaçaram seus corações e fizeram de várias, um só ponto brilhante. Ao cantar naquela noite solitária, vazia de tudo e conturbada por ruídos de uma multidão silenciosa, tornou-se o centro das atenções e, principalmente, das atenções de uma mulher. Tudo ia se refazendo. Como se os dias perdidos fossem iluminados por uma espécie de sensibilidade incansável. Estava tudo tão longe e tão perto! Era como se aquela noite tivesse acenado para uma espécie de passado não-vivido e apresentasse uma aventura: aquela colorida e que aliviava o cinza,
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de cheirar flores, brincar com a lua, beber gotas de chuva. Sair do que tem cheiro de bomba e gosto de solidão, pra fazer abraçar a alma e rejuvenescer a aura. A partir daquela pequenina cantora de danças serenas, pôde sentir e habitar, pelos seus ouvidos, as profundezas de todo seu espírito. Assim como passava horas em sua mistura de canto interior com exterior, imaginando além do que sê vê e toca, juntando devaneios e colocando em papéis brancos e amarelos, e em mergulhos em letras embaralhadas e rabiscadas, encontrou, no canto, na música, a poesia que acalentava o seu rosto, rejuvenescia sua alma perdida e mostrava-lhe as flores de um passado bom. Já não era mais um rabisco derrubado inacabado. Era um desenho completo, de rabiscos que se completavam, pintados por cores coloridas e escuras. Trouxeram-lhe de volta às dimensões prediletas, aquelas de quando ainda podia dialogar com as plantas, voar com os passarinhos e nadar naquele mar das sereias, de ondas aventurosas e não agressivas. Era como enxergar a si mesma. É indescritível como uma canção, um só som, uma melodia contínua pode fazer com que saiamos de nossa dimensão comum e contemplemos os nossos mais distantes encontros com nós mesmos. É fascinante como se consegue alcançar o próprio eu, reconhecer os nossos próprios estados, através da musicalidade de algo – o que quer que seja – que exista a música. A poesia está nos mares, nos ventos, nos dias difíceis. Ela ilumina, abre caminhos e abriga o coração na palma de uma mão. A música é amiga da poesia. E ser poesia é habitar a música.
LUIZA FERREIRA é estudante de Português-Inglês da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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O ONS DO RU
BRENO RICARDO JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS, BRASIL
“Invém o ons do RU!” Sob a propagação de tais palavras, o espírito do aluno da UFJF se exalta, o sangue lhe ferve e corre veloz pelas veias dilatadas. A empolgação se lhe instala e a expressão desta são as correrias – sim, um punhado de jovens correndo felizes como crianças premiadas com um doce, até que ocorra a reunião de todos em torno do ons cinza, de sua estreita porta traseira que se abre, refrescando-nos a alma pelos seus característicos sons. Adentram os estudantes, sorridentes. Conversam alto, como bêbados num bar. Uns têm onde sentar, outros – não. Ao chegar no ICB, mal se tem como subir, todavia sempre é possível, menos devido ao ons ser um coração de mãe, que pela necessidade que nos rege e a solidariedade que nos faz dizer: “Vai ter que caber!”. Amontoamo-nos partilhando de um calor humano, no frio juiz-forano, urgente; em seu calor, sofrível. Seguimos pelos morros, entre belas sequências de pinheiros. Passamos pelas Artes e pelos artistas; pela Engenharia e Arquitetura – paramos, chegamos. Para descer, paciência. Depois,
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tickets e filas, assinaturas – e mais filas: paciência! As revoltas estomacais trazem-nos à memória aquilo que nos dá esperança: o Restaurante Universitário. Um estudante da UFJF que passa toda a sua graduação sem prover-se de ao menos um almoço no RU, em verdade em verdade vos digo – não teve uma graduação completa. Ele é de tão sumo valor que deveria ter sido construído no centro do campus. Apesar de esse local de honra estar ocupado pela Reitoria, porque é de praxe a inversão de valores no Brasil, no nosso coração reina o RU e o seu ons, que são a magia dessa mágica universidade. A realidade que, em oposição à magia, é triste, é que somos 1500 cabeças necessitadas. Afinal, o sobrenome do RU é Necessidade. A comida às vezes é boa, contudo, o suceder de tal fato é tão raro que nos surpreende e, abismados, perguntamo-nos se o nosso paladar já não está perdido, desprovido de bons valores morais, e já julga comestível, a comida duvidosa. O suco, contudo, mantém-se intacto: com gosto, sem ele, doce ou amargo, o seu sabor ruim é imperturbável. A despeito disso, como mulher de malandro, recusamo-nos a trocá-lo pela água, que se supõe mais saudável – todavia, pouco se sabe sobre ela. Reclamamos, mas almoçamos. A antítese do amor e do ódio é o tema de nossas conversas. E isso só finda, temporariamente, no advento do ons do RU, quando o vemos dobrar a esquina da Engenharia, em toda sua simplicidade e esplendor. Reduz distâncias, economiza energias, mantendo-nos descansados. Sinceramente, mesmo a ojeriza que por vezes nos provoca, é como a da mãe quando vê o filho em ruínas: deve prover do amor! BRENO RICARDO escreve poemas, peças teatrais e crônicas. Já foi diretor de um grupo de teatro amador; possui três livros publicados online e, atualmente, publica crônicas no blog da Capela Anglicana do Bom Samaritano. CANALSUBVERSA.com
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MAS TU SABIAS, PAI.
CATIA PENALVA VIANA DO CASTELO, PORTUGAL
O Alzheimer conduzia-te de volta à África, à tua oficina, às ferramentas que me pedias no quarto do hospital com o olhar desaparecido, circular. Mas tu sabias, pai, sabias que eu estava grávida e eu julgava-te louco. Mas tu sabias, pai! Dois meses depois, o teste deu positivo. Atónita, corri ao hospital e lá estavas tu outra vez em Malange. Segurei-te a mão e sorriste-me " já não vou conhecer a minha neta." Eu não quis acreditar, pai, mas tu sabias!
CÁTIA PENALVA já foi professora do 1º ciclo do ensino Básico e agora é Mestre em Educação Artística e dá formações de escrita criativa na sua cidade.
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LÍRICA GREGA
TÂNIA ARDITO SÃO PAULO – PORTO
Agora estou neste quarto… com as paredes todas pintadas de branco, tão impessoal, sem nenhuma marca das histórias que passaram por aqui. Começo a pensar como eu as preencheria, como escreveria nestas paredes com as minhas canetas multicoloridas; escreveria minhas histórias, versos, meus e dela e penso nela…só consigo pensar nela. Saudades? Será mesmo que tenho saudades dela? Aqui me sinto tão só, precisando de alguém para segurar a minha mão, confortando, dizendo “tudo vai ficar bem” “logo você estará em casa”. Casa. Sinto saudades de um lar também, mas não da casa que dividi com ela, mas o lar dos meus pais, que abandonei batendo a porta após uma briga. Sinto falta da minha mãe, como sinto a sua falta, mesmo com todas as nossas diferenças, mesmo ela nunca tendo se conformado e das nossas discussões. As brigas dela com o meu pai porque não queria que ele apoiasse a minha opção… que falta me faz agora o meu pai, vejo aquele rosto bondoso piscando o olho para mim e dizendo: “deixa, logo
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ela se acalma”. Lembro o escândalo que a minha mãe fez quando levei minha namorada para um almoço de família, coitada tinha vergonha. Hoje eu entendo, na época só achava que ela tinha de aceitar e ponto. Agora até consigo compreender, era mesmo difícil, os comentários, as tias olhando com aquela cara de reprovação, reprovando mais a minha mãe do que a mim, pois afinal culpavam-na e diziam que ela não soube me criar. Será que demoram ainda muito? Engraçado eu estar ansiosa para passar por isso… eu não quero ficar sem meu…nem consigo ainda pensar direito nisso, definitivamente não quero passar por isso, mas qual a alternativa? Deixar que tome conta do meu corpo? O doutor disse que hoje há implantes muito bons, fica igualzinho… de repente, aumentar a autoestima, me sentir mais mulher…está aí,
eles nunca
entenderam que eu era ainda uma mulher, com toda a minha feminilidade, será que agora vou mesmo me sentir menos feminina, menos mulher? Será mesmo isso um castigo? Eu li num desses artigos que a opção de não ter filhos aumenta a chance de desenvolver a doença. Fui eu que procurei isso? Eu lembro que uma vez nós queríamos, até conversamos na possibilidade de um doador… mas qual ficaria grávida? Eu logo descartei a possibilidade, estava numa fase de vida de muito trabalho e confesso que nunca tive o sonho de ser mãe… será mesmo isso possível, a mulher foi feita para parir, essa é a nossa função? E se a minha história com ela não tivesse durado tanto tempo? Meu pai consolava a minha mãe afirmando que era passageiro “são experiências da juventude, logo ela enjoa, conhece um rapaz e vai encher a casa de netos”… minha mãe morreu esperando por isso, ela até me perdoou, conviveu cordialmente com a minha companheira, mas nunca se conformou. Coitada rezava todas as noites para a Virgem Maria me dar juízo. Virgem Maria, a mãe de todas as mães… queria
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rezar para ela também, mas não sei se ela me ouvirá, andei tão distante…e não sei se tenho o direito…no fundo me culpo, mas por que me culpo? Não lutei a vida toda pelo direito de ser quem eu sou, fui uma boa pessoa, cumpridora de meus deveres… será que ela que foi o meu grande amor também se sentia culpada? Ela que sempre foi tão mais forte do que eu…e agora me sinto tão frágil, culpada… mais do que me senti durante a vida toda. Quando descobri a doença... Doença, é assim que eu chamo, tenho medo do seu nome, como se fosse ficar mais doente se eu disser câncer, sim tenho um tumor no seio que vai obrigar-me…preciso ser forte, corajosa, afinal não é difícil só para mim, quantas não passam pelo mesmo que eu? O médico até comentou que eu tive sorte, pois descobri a tempo… sorte, se isso for sorte eu não sei dizer o que é azar. Talvez, na lógica médica isso é ter sorte, mas como posso sentir-me uma afortunada, se vou ser mutilada, retirar o meu símbolo, sempre fui tão elogiada por ter belos seios… uma vez ela até escreveu uns versos neles e achou tão bonito que insistiu para que eu fizesse uma tatuagem. – Nunca – protestei - gostava deles assim, da pele sem nenhuma marca… e agora, vou ficar marcada pelo resto da vida, será que o implante fica mesmo bom? Logo que sair deste hospital… detesto este cheiro de remédio misturado com suor…estas paredes brancas, tão brancas que faz sentir um vazio… logo que sair vou consultar um cirurgião plástico… isto não há de ser nada, vai passar… como passou a dor por tê-la perdido, foi-se embora… apaixonou-se por um professor especialista em lírica grega, me senti duplamente traída, sabia que o romance começou quando lia com o seu ar provocatório os mesmos versos…pensei em ligar, mas depois desisti. Não quero pena, é o pior sentimento. Só queria uma mão… uma mãe… mas, tenho que ser forte… vai passar. TÂNIA ARDITO é cofundadora e editora do Canal Subversa.
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JECI MORGANA RECH PORTO ALEGRE, RS, BRASIL
Acordar subitamente assombrada pela tontura e descobrir que aquilo tudo estava acontecendo era como respirar dentro de uma sacola plástica. A dor na garganta penetrou pelo rosto e, depois, pelo corpo, adormecendo a pele por onde passou. Do espaço que consegui abrir nas pálpebras, pude ver um céu encoberto e poluído. Fazia muito calor. Percebi que um líquido vinha da minha camisa e pingava, denso, no chão. Vinham das costas, pois eu estava sendo carregada por dois homens robustos, um pelos pés, outro pelas mãos. A comunicação tornou-se impossível quando parei de ouvir o que eles diziam para apenas ouvir o ar entrando e saindo dos meus pulmões. Lembrei-me de quando fiz um mergulho numa praia do Rio de Janeiro. Desci três metros para o fundo do mar e a sensação de calmaria era exatamente a mesma. Não fosse o calor que saía e entrava cada vez mais forte pelo meu corpo, numa onda de ebulição
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frenética, eu poderia jurar que me levaram para lá de novo, para a paz que havia nas profundas águas marítimas. O calor ficou insuportável quando caí para fora. Pensei que me fosse ver livre e chegar à superfície, respirar, descobrir que era a aproximação com o Sol que estava esquentando a subida. Mas tudo piorou quando o carro começou a acelerar mais e mais. Foi por uma corda que me dirigi lenta e penosamente à morte. Do fundo do mar para o pior dos contatos com a terra, tive naquele momento a consciência de tudo. O sangue dos tiros rapidamente se fundiu com os da pele, que derreteu a roupa ao passar pelas fibras de tecido. Algumas pessoas se aproximaram, tentando me ajudar a fazer uma pausa na viagem. Ouvi mais tiros. Neste momento perdi outra vez a consciência e não saberia dizer ainda se eram novos ou antigos os tiros que ouvi naquele momento, pois aos poucos me acostumei com eles. Ao reabrir as pálpebras, desta vez um pouco mais, a imensa luz amarela e quente tomou conta do meu corpo para sempre. Amortecida, não valia mais a pena tentar entender para onde fui em concreto. Permiti, como se fizesse parte da luz solar, que as mais altas temperaturas finalmente estivessem em paz comigo e me levassem para onde bem entendessem. Derreti-me por completo. A minha vida, igualzinha a minha morte, foi uma luta belíssima.
MORGANA RECH é cofundadora e editora do Canal Subversa.
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Responsáveis técnicas: MORGANA RECH E TÂNIA ARDITO
Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM Diretrizes para publicação: WWW.CANALSUBVERSA/DIRETRIZES
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