Revista subversa v 2 nº10 2015

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SUBVERSA ISSN 2359 – 5817

Vol. 2 | n.º 10 | Junho de 2015

Edição ilustrada | OBRAS DE FRANCISCO BEN LEONARDO BARBOSA | BRUNO MAGNO ALVES MORPHINE EPIPHANY | JULIANA BEN REGINALDO OSNILDO | SAT AM | JÉSSICA LUZ PEDRO CARDITA | FABÍOLA WEYCAMP ROCHA OLIVEIRA | A.MIYAJIMA |ANDERSON S. FREIXO 1


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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 2 | n.º 10

© originalmente publicado em 01 de junho de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações | Obras Plásticas de FRANCISCO BEN www.facebook.com/pages/FrancBenedetti franckbeneto@gmail.com Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade

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SUBVERSA V. 2 | N.º 10 | 01 DE JUNHO DE 2015

LEONARDO BARBOSA | © NATUREZA XIII | 5 BRUNO MAGNO ALVES | © NÃO LHE CONVÉM |7 MORPHINE EPIPHANY| © CLAREIRA | 15 JULIANA BEN| © DIA DE SIM |17 REGINALDO OSNILDO| © O FILÓSOFO | 20 SAT AM |© CYGNUS X1 | 27 JÉSSICA LUZ|© COLISÃO | 29 PEDRO CARDITA| © À FLOR DA PELE | 31 FABÍOLA WEYCAMP| © TU ANDAS IMPOSSÍVEL EM MIM | 34

ESPECIAIS ROCHA OLIVEIRA| © SILÊNCIO | 36 A.MIYAJIMA| © O ABSINTO | 38 ANDERSON S. FREIXO| © ANTIPLATÃO| 43

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EDITORIAL Falta pouco para terminarmos o Volume 2 e o número 10 inaugura o mês de Junho, que chega com os ares do amor, com as comemorações dos santos populares e com bastante sardinhas. Em junho, mês do nascimento do monumental Fernando Pessoa, podemos observar as influências culturais e religiosas portuguesas no Brasil e os modos como foram absorvidas e ressignificadas. No Brasil, foi por causa do culto a Santo António trazido pelos portugueses que no dia 12, véspera do Santo Casamenteiro, os namorados têm o seu dia especial. Por isso, é tempo de comemorar os santos populares com festas que tomam conta das cidades portuguesas, derivando, no Brasil, nas chamadas festas juninas. E, se Junho assinala o amor e a troca de presentes apaixonados, também valerá a pena registrar a nossa homenagem a Pessoa e as cartas de amor que deixou, todas elas ridículas. Afinal, se não fossem ridículas, não seriam cartas de amor. Aliás, se Fernando Pessoa é o poeta do desdobramento do eu, com uma obra que trata do amor à mais profunda reflexão do ser, os textos que compõe esse número prestam de certa forma uma homenagem à reflexão, aos mistérios das cousas e ao amor. As belíssimas obras do artista plástico Francisco Ben entram no clima e conversam

com os

textos formidavelmente. Para ele,

na arte

contemporânea, a psique define o belo pela intensidade de sua ação direta sobre o ser. Para nós (e esperamos que para todos), a experiência seja transformadora. Boa leitura. As editoras.

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NATUREZA XIII LEONARDO BARBOSA Brasília, DF.

mecânica heurística de uma lógica em desordem aberta à roda ininterrupta que pesquisa a engrenagem do movimento rotatório

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de seu centro

uma oração rica de riso estatuto ontológico do magma abrupto que integra as faíscas hábeis do que nos é imprimível

círculos descontínuos investigados pela mutação autodidata alegria prismática da invenção

LEONARDO BARBOSA é poeta e cineclubista. Vai publicar seu primeiro livro de poemas, ” Poemancia”, junto com o filme Terra Ronca, de Rafael Frazão e Vitor Guerra. O livro virá com um pen drive com o filme, com edição artesanal a sair em 2015.

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NÃO LHE CONVÉM BRUNO MAGNO ALVES Rio de Janeiro, RJ.

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O pai de Tarso apresentou-lhe a Fera no meio de março, quando os céus nublados e o vento cortante costumam não colaborar com uma primeira impressão. Talvez por isso a expressão azeda do garoto. Veja como é linda, tentou o pai, parte contrariado, um pouco desconcertado, o tamanho, a beleza, tudo isso! Mas Tarso virava o rosto e baixava a cabeça, dizia que para ele tudo bem, fazer o quê, não tinha escolha, teria que ficar com ela. Seu pai, contudo, não se dava por vencido; não lhe convinha que o filho aceitasse a Fera a contragosto, e de todos os argumentos empregou para que fosse essa uma mudança recebida de bom grado. No final, o pobrezinho teve que fingir que gostava, mais para não magoar o pai do que por qualquer outra coisa. Não que fosse repulsiva por si — tratava-se de outra coisa, sensação indescritível de erro, de inevitável desastre. Evitava encará-la nos olhos, na visão daquelas cavidades a imensidão fixa de um mergulho sem volta. O preto de breu, sem brilho, da besta irracional, em contraste com a atração de sua boca, os dentes planos como se de gente, o focinho achatado como batente. Era não obstante uma Fera dócil, seu pai lhe prometera, uma com a qual ele se acostumaria, e, não disse mas sabia, com a qual, para todos os fins, tinha de conviver sem real escolha. Tarso se virava. E mamãe? Sua mãe não vem, não vai ter de ser avaliada por seus olhos, sua boca, seu focinho. Não terá de acariciar seus pelos curtos, bem aparados; ou dar a volta, observar cada centímetro de sua casca. A Fera, dissera papai, é apenas para nós dois. Vai se acostumar. Não precisará nem vê-la todos os dias. Aos fins de semana, por exemplo, a Fera ficará sozinha, poderá muito bem evitá-la, mas seria legal se gostasse e a acolhesse nesses dias também, ele veria, a Fera era dócil, agradável, um doce. Não ficasse de tanta má vontade, o rapaz!

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Estava vazia por dentro quando seu pai lhe apresentou naquela terça-feira. Entraram pela boca, ignorando seus dentes, andaram de um lado para o outro, Tarso a tomar nota, atravessar os pedaços estreitos, procurar por seus espaços melhores. Você poderá ficar com ela aqui, perfeito, seu pai havia lhe dito, o espaço tão diferente, tão vazio, tão escuro. O rapaz nada disse, mas seu rosto falava por si, e o pai respondeu, um tanto a contragosto, em breve colocaremos suas coisas aqui, você nem vai reparar na diferença. A mãe de Tarso, de cabeça baixa, aguardava-lhe da calçada de sua casa de verdade quando ele retornou, sozinho, ao entardecer. Ela o abraçou como se nunca mais fossem se ver, acariciou seus cabelos com as pontas das unhas mal cuidadas. Afundada a cabeça em seu ombro, ele sentiu seu calor protetor contra o corpo, o nostálgico aroma de seus cabelos, proteja-me. Não quero, disse Tarso, e ela não respondeu,

apenas

lhe

abraçou

com

mais

força.

Ignorava

o

desconhecido, a Fera, seus dentes. Vamos entrar, mamãe, está frio aqui fora. O pai de Tarso lhe apresentou à Fera no meio de março, com os céus nublados e o vento cortante. Um quarto na penumbra, uma cortina entreaberta, um livro fechado na escrivaninha. Da vista, uma rua vazia, os céus pretos: choveria. Deitado na cama, um gato. Diferente em gênero, grau, espécie, tamanho e temperamento da Fera do outro lado do bairro, esse animal lhe encarava com os olhos brilhantes cheios de vida, em forte contraste com o vazio da imensidão da besta de concreto. Jerônimo tinha seus pelos menores e cinzentos, bem aparados e penteados, e exalava um odor de banho recente, o que talvez combinasse com sua expressão de provocante desgosto. O rapaz lhe acariciou na cabeça, os olhos fecharam, o bichano entregando-se à carícia.

Tarso

virou

o

rosto

para

a

rua,

a

mão

a

executar

inconscientemente sua tarefa. Cogitou se sentiria saudades do cenário

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vazio do outro lado da janela, da luz que provinha do exterior enquanto se dedicava a uma leitura na escrivaninha. Jerônimo miou, e Tarso voltou o olhar ao bichano que lhe encarava da cama. Pimpão, o gato colocou-se de quatro patas e passou a andar de um lado para o outro, tirando o olhar do garoto. Depois disso, desviou e pulou para a escrivaninha, onde um tomo envernizado de poeira aguardava um término de leitura com prazo indefinido. Tarso seguiu o gato e se aproximou do livro fechado, de capa dura, páginas amareladas e título desgastado. Um livro de sebo, uma história pouco envolvente, largada com desânimo sobre um tampo de mesa. Jerônimo ignorou o tomo, ignorou Tarso, pulou para o chão e se espreguiçou. Pelos eriçados e um bocejo. Voltou a olhar para o rapaz, que sorriu ao se abaixar para lhe fazer um cafuné novamente. Mas o gato não estava assim tão afim. Saiu andando, desinteressado, pela fresta da porta. Já sozinho na penumbra, Tarso sentou-se na cama. A Fera pairava com agouro sobre sua cabeça, procurando destruir a tudo o que ele havia conquistado em seus poucos anos de vida. Obra de seu pai, acabava-se a sua opção de ignorá-la. Um beijo na bochecha de sua mãe, um quieto momento de compaixão quando suas lágrimas escorrem de suas bochechas e molham o rosto, tudo o que lhe seria legado. Depois de uma despedida — e seu pai estaria lhe olhando feio, porque era tudo temporário, nada mudando, que acreditasse! — ele e a Fera seriam reunidos em definitivo, e Tarso teria de encarar seus dentes e seus olhos e abraçá-la, ficar com ela para sempre. Deitado, com apenas o teto a lhe encarar, pensava na tensão. O que fazer a respeito? O que uma voz poderia lhe dizer em seus sonhos, um sussurro de sugestão, uma fala imaginária em meio ao som dos ventos de março? Dormiu o sono inquieto dos perturbados. Choveu na quarta-feira.

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Tarso passou o dia em seu quarto, consciente de que do outro lado do bairro, parada em meio às gotas incessantes, fixa em meio a seu tapete de pelos, falsos, esverdeados, a Fera lhe esperava, com seus olhos vazios e seus dentes planos como se de gente. A despedida de sua mãe foi feita com um abraço, oito lágrimas e um conselho. Te vejo em breve, querido. Você vai ver, vai dar tudo certo. Tarso entrou pela segunda vez com uma mochila nas costas e Jerônimo nos braços. Pela boca, seguindo os dentes, desceu a garganta até se alojar em um pedaço especialmente espaçoso no estômago. A Fera lhe acolhia de bom grado, com a doçura travessa de uma dioneia, seu olhar vazio todo deboche. Ao lado, o pai coordenava a nova organização do mundo, e mandava e desmandava, imperioso, sobre súditos de camisas sem manga. Queixo longo, testa curta, sobrancelhas juntas, eis o soberano. A gaiola do gato ficou no novo espaço de Tarso. Sem luz humana, apenas o que sobrava era o sol iluminando as cavidades do ambiente. O rapaz sentiu no espaço vazio a solidão para ele incompreensível da idade avançada. No auge da infância, sentiu-se frágil frente ao enorme peso de um sentimento que não deveria ser seu. Jerônimo andava por sua nova casa, sentindo o cheiro, atacando com a pata os cantos do interior da Fera. Miou para a besta de concreto e alvenaria, sentiu-se acuado, e se encolheu, de pelo arrepiado, para junto do pequeno mestre. Tarso mais uma vez acariciou o bichano, sentado no meio do cômodo, observando a parca luz que incidia sobre o cômodo. O sol mostrava sua mão, cartas pouco úteis no quarto enorme, de uma extensão de três por quatro Tarsos, com dois Tarsos de altura. Teto alto e as dimensões exageradas, inumanas. Não gosto daqui. Jerônimo miou em concordância. Estamos tão deslocados.

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O mundo parou por um momento quando o soberano abriu a porta. Por que está tão quieto? Andou na direção de Tarso, ajoelhou-se em frente ao filho, os olhos repletos de desconcerto, de uma mal contida irritação mesclada à tristeza de uma percepção que gostaria de afastar. Filho, você vai gostar daqui. Não fique assim. A Fera vestia a pele de seu pai. Você está com saudades, não é? Eu sei que é difícil no começo, mas tenha fé. Vai tudo ser muito bom. Aqui é lindo, e estamos juntos até o fim, tudo bem? Ele sorriu, mas era algo amarelo, não combinava com seu queixo, testa, sobrancelhas. Era um sorriso da Fera, repleto de falsidade. Um aceno de cabeça bastou. Os olhos se levantaram com o paiFera, que lhe bagunçou os cabelos e fugiu para os outros recantos do interior da besta. Esta Fera vai nos devorar a todos. Jerônimo miou. Tarso se levantou e andou até a janela, agora mais uma vez sozinho. Os céus eram agora brancos. Era o meio de julho, com seus céus nublados e o vento cortante, que Tarso conseguia ouvir batendo contra os vidros, açoitando as árvores, castigando os corajosos estúpidos que saíam para viver o dia. Dali, conseguia ver o paiimperador-Fera comandando seus súditos descendo as caixas do caminhão, agora no final de seu ofício. Acabado o suplício. Todas as nossas coisas estão aqui. Esta Fera vai nos devorar a todos. Na quarta noite dentro da besta, circundado por ela de todos os lados, preso como um pássaro de gaiola, Tarso andava a esmo por seu interior, ignorando o sono pesado de seu pai, a indiferença crescente de Jerônimo, e seus próprios demônios, que mandavam que desistisse da empreitada. Tinha uma lanterna fraca à mão, resquício dos presentes de Natal de dois anos passados, e pijamas para cair na cama. Sentia o piso gelado do inverno contra os pés descalços, a desolação da noite nublada, o medo constante de um homem

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devorado. Tarso iluminava os cantos e recantos do interior da besta, procurando por seu ponto fraco. Silencioso como Jerônimo, perspicaz como um detetive, o jovem atravessava os cômodos ainda vazios. Seu pai não comprou todos os móveis ainda, e não trouxe todos os pertences. Uma sala vazia era como um prédio abandonado. Mas não deveria reclamar do pai. A Fera o devorou, mas não deixarei que o faça comigo também. Uma lágrima em homenagem a seu pai, outra em homenagem à mãe. Ambos perdidos, ainda que de formas diferentes. Finda a exploração dos espaços em branco, Tarso se sentou no meio da sala, sentindo o chão gelado contra as pernas. Desligou a lanterna. Ali, no escuro absoluto, o gelo e o ar estagnado ao seu redor, uniu-se com a criatura na qual havia sido inserido. Suas duas lágrimas, uma de cada olho, rolavam faces abaixo, contornavam as bochechas e procuravam o caminho mais econômico a atingir o piso. Aqui, eu sou a Fera. Assim, ela não me devora. Decifra-me. Seus arredores se convertiam na própria esfinge. Tarso não abria os olhos. Procurava se agarrar com garras, dentes, com seu sangue e seu desespero, à sanidade e ordem de uma vida em família que não mais existia. Estava sozinho com a casa-Fera-esfinge, que, sem piedade, circundava-lhe da escuridão silenciosa. Tarso sabia que, se abrisse os olhos então, estaria perdido ainda, e não encontraria mais o caminho de volta. Continuar era a única solução. Decifra-me. Decifra-me ou te devoro. De dentro da Fera, o rapaz desafiou a besta que lhe rodeava a mostrar suas verdadeiras cores. O silêncio morto já dizia mais do que qualquer palavra. Mamãe não vai voltar.

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A boca escancarada da Fera, os dentes planos, os pelos esverdeados do quintal bem cuidado. Se Tarso desaparecesse agora, seu pai perceberia? Ou estaria entranhado demais na mente da besta para recuperar uma humanidade paternal? Jerônimo sentiria sua falta. Sua mãe, havia pouco perdida, choraria por ele, selado eternamente na escuridão abissal e silenciosa dos confins do interior de uma criatura letal. A Fera era bonita, grande, majestosa, tudo o que seu pai lhe dissera. Bonita o bastante para conquistá-lo. Decifra-me— Uma mão no ombro. O rosto austero ocultado pela sombra longa de uma casa irreal. Queixo longo, testa curta, sobrancelhas juntas. O que

você

está

fazendo?

Lanterna

acesa,

uma

expressão

de

desconcerto. Um desejo de destruição, de matar a Fera, de acabar com o suplício, derrubar tijolo a tijolo até que apenas a poeira se assente sobre o solo, queimar a grama, sal no solo, obliteração das chances de surgir alguma, qualquer tipo de vida nas terras secas e geladas do meio de julho. Um desejo não consumado, como resultado apenas um rosto de criança no colo do seu imperador, uma lágrima em homenagem a seu pai, outra em homenagem à mãe, com um mantra para que não desabasse de vez, eu não quero isso, eu quero ir pra casa, por favor, ainda podemos ser felizes.

BRUNO MAGNO ALVES é paulistano de nascimento, jundiaiense de criação e carioca honorário. É revisor por profissão e produtor editorial em formação. Publicou uns contos avulsos em 2014 e 2015, mas ainda tem alguns engatilhados. Começa a manter um site em nadamaisreal.wordpress.com.

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CLAREIRA MORPHINE EPIPHANY Sรฃo Paulo, SP.

Amadureci em uma casa no vento De uma carne dura me cobri Limpos sussurros voando pelo ar Dormindo ao som daquela enferrujada corda solta O toque dos dedos no aรงo Eu tenho um casulo precioso em seus dedos Eu teci um ninho precioso em teu colo

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Fósforo antigo das cabanas velhas Eu era uma vela apagada Cortante estampido da chuva na telha Eu era uma nuvem pesada Distanciei-me com cabelos soltos Esta é a amarga pele que teci Matas cheias dos perigos a rondar Derretendo, me fiz vela zelando por gente morta Te retirei deste meu compasso Eu me cobri de palha criança a brincar de esconder Eu estou toda em falha criança sou agora a me esconder Fósforo antigo das cabanas velhas Eu era uma vela apagada Cortante estampido da chuva na telha Eu era uma nuvem pesada

CRISTIANE VIEIRA DE FARIAS é formada em Produção de Música Eletrônica na Universidade Anhembi Morumbi. Escreve poesias, contos, crônicas e roteiros de audiovisual. Integra o Coletivo MINQ- Música Independente da Quebrada. Participou dos seguintes curtas: Obscuro (2007), Privado (2008), O dia que a floresta parou (2009), Eu quero, eu posso, eu vou consumir (2009) e Boggy (2012).

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DIA DE SIM JULIANA BEN Porto Alegre, RS.

Hoje eu quero falar de ti Cansei de falar de mim e da gente Cansei de colchas de retalhos

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E do meu leve permanente.

Hoje eu quero buzinas flamejantes Cortados anúncios de bolhas-casa Destroçadas ideias esvoaçantes Pousadas e rasantes no muro.

Hoje eu quero o grito das gaivotas A sombra do que eu não vejo O frango do prato ao lado As cores da tua pisada funda

Hoje eu quero o não-dito O abismado O passado imperfeito A torre esquecida A valsa podada

Hoje eu quero a saída Dividida em muitas janelas Em pontes que nunca ando Em pedras que nunca pego.

Hoje eu quero a tua mão vazia O teu pesar perdido Tuas tensões invadidas

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Pinceladas em tecido.

Hoje eu quero o latente O caminho que não foi traçado O troço destroçado Os moços da esquadra leste.

Hoje eu quero falar de ti.

JULIANA BEN é educadora, poeta e pesquisadora. Cientista Social de formação e escritora por intuição, é autora de Te encontro nas minhas linhas em branco (2012) e colaboradora do projeto de diálogos artísticos http://multigraphias.wordpress.com/. Nascida em Porto Alegre, RS, atualmente reside em Florianópolis, SC.

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O FILÓSOFO REGINALDO OSNILDO Florianópolis, SC.

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Nasci todo perdido, ao menos era o que mamãe dizia. Parece que ainda a ouço falar, como naquele tempo ela fazia: - Zécalo, tagi onde? Avoando naix nuvi? Ti pari perdidinho, perdidinho. Mamãe não sabia filosofar, tão pouco o motivo pelo qual eu filosofava. Eu sempre estava a pensar, isso a incomodava. Centenas de vezes ganhei um sopapo enquanto capinava. - Vai carpi Zécalo! Pense na mão terrível e pesada. Lambada que mamãe dava era a dor da razão batendo na lata. O cascudo vinha, não importando se errado ou certo estava. Sentia, mas não reclamava. Tudo isso porque eu queria entender sobre tudo e me envolver nos assuntos. Lembro o dia que um parente foi nos visitar. - Bom dia, José Carlos - me disse o Tio Lico, Lardeli para mamãe e Laudeli nos documentos. Fiz sinal para que entrasse. Tio Lico não era má pessoa, mas eu não simpatizava com ele. Mamãe tratava bem, mas não tinha o porquê, não era irmão dela e não era irmão do meu pai. Minha avó contava que o achou no arrozal envolto em maus lençóis. Depois, quando adulto, tio Lico tornou-se um verdadeiro picareta. Tentou comprar, por preço de um prato feito, as terras da família que o alimentou. Só soube disso tempos depois, na época não gostava dele sem entender o motivo. Depois que o convidei para entrar, fiquei de ouvido na conversa. Mamãe trouxe o café e ficou a olhá-lo e escutá-lo. Lembro que o papo era sobre o governo e as terras boas para o gado. Mamãe não tratava de bois, nada disse para ele. Entrosei-me na conversa e falei sobre o que li nas revistas que ganhava dos vizinhos. Não lembro bem o que foi, mas recordo da

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grande bronca e a força da lambada. Se eu não fujo coçando a cabeça, mamãe me quebrava a vassoura de palha. - Naun ti méti, Zécalo! Ela tratava ele bem, mas não o levava até a porta, era eu que o dizia: - O senhor vai, mas vê se volta. Isso era todo fim de mês, quando a fome batia na casa. Assim que ele saia, a velha dizia para mim: - La sivai o man divaca. Tio Lico, tempos depois, ficou rico emprestando dinheiro. Certo dia ele se foi e esqueceu-se de onde é que veio. Nossas vidas seguiram sem ele, não fez falta o embusteiro. História de vida é assim, tem que ter ovelha negra, no caso da minha família, eu que fui a má surpresa. Mamãe quando ia para a roça me apontava as condições, se eu não a ajudasse ficaria sem "culhões". Dizia que o homem, para bom ser, trabalhava para o sustento manter. Muitas noites dormi com fome, mas nunca deixei de ler. A roça é lugar carregado, difícil de viver, mas para o que vai para peleja não falta o que ter na mesa. Na cidade por outro lado, eu que tenho bom estudo, vejo comida do mundo todo nas prateleiras do supermercado,

mas

sem

dinheiro

não

compro,

pois,

estou

desempregado. O estudo me fez bem, graças a ele tenho eu bom papo, mas cresci um homem preguiçoso, isso não nego, é um fato. Prefiro coletar recicláveis a trabalhar no pesado. A vara de marmelo ainda sinto, mesmo passados cinquenta anos sem receber varada. Mamãe, tio Lico e tantos outros se foram, até o papa, mas a surra de vara ficou em mim eternizada. Confesso, doía menos quando recebia as vassouradas.

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Hoje; sexagenário, filósofo, desempregado, segurando a casa nas costas; faço da velha praça o meu escritório e da figueira centenária o meu lar e meu negócio. Tem os que sentem pena de mim porque uso uma bengala e aparento problemas na perna. Deus me livre se eles descobrem que a bengala é minha estratégia, terei que sair correndo e abandonar o lugar de onde findo minha miséria. A mentira tem que ser boa para que até eu me convença do fardo. Assim, só na hora que deito é que deixo a bengala de lado; faço isso para não ser surpreendido com algum benfeitor revoltado. Dormir não é tão difícil. Difícil é ter que acordar. Sair para procurar comida é o mesmo que garimpar. As pessoas não ajudam como faziam antigamente, já passei cinco dias com fome. Sobrevivi com um pacote vencido de torrone e um litro de leite. O que não gosto é de resmungar, o problema é, eu resmungo. Falo baixo comigo mesmo, quando observo o imenso mundo. Sou mendigo nativo. Nunca sai de onde nasci, porém, pessoas de todos os continentes passam por perto de mim. Meu escritório é bem localizado, e me rende alguns amigos. Um deles é professor, vez ou outra me traz um livro. Entretanto, o alemão é que é um barato, jura que fala português comigo, se eu não arranhasse um pouco de inglês jamais o teria entendido. O dia chuvoso é ruim, mas quando nevou foi horrível. Nunca, em toda minha vida, neve eu tinha visto. Não morri congelado por não ser o meu dia de me chamarem finado amigo. O falecido José Carlos morreu de hipotermia, diriam. A morte de mim não ganhou. Ainda bem que eu tinha cachaça; e a benção de Nosso Senhor. O meu pai sim era bravo, homem de poucas palavras, mas se visse nevar na cidade, creio eu que ele enfartava. Cansei de ver ele chorar quando na nossa plantação geava. Para me fazer trabalhar, o homem velho não gritava, de longe dizia o meu nome.

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- Zécaaaaaaaaalo! Lá ia eu com a enxada. Respeito aprendi no berço, e no berço aprendi a dormir. - Zécaaaaaaaaalo! Acordava e voltava a carpir. Namorei duas moças na vida, uma era Rosa, outra Setembrina. Rosa era linda e formosa e cheirava a fruta caqui. Queria beijá-la e travar os meus lábios, nunca consegui. Rosa fugiu com um vereador da cidade, casou e nunca mais vi. Rosa fazia os bons se perderem. Até eu, por ela, me perdi. Um dia ela pediu para mim: - Carlinho, me traga um presente que brilhe. Levei um espelho e falei que o sorriso que ela me dava era o que eu tinha de mais precioso. Queria que ela visse o sorriso que me deixava orgulhoso. Ah, se eu soubesse que ela queria ouro... Setembrina não era bonita, mas era prendada e de mim gostava. Se analisar profundamente, um parafuso nela faltava. Um dia, quando era mais moço, vi um carro de boi desgovernado descendo o morro, estava voando a todo vapor, carregado de troncos. Olhei para ela, mas não viu que o carro de boi estava descontrolado. Por sorte, cheguei bem a tempo, agarrei-a e pulamos no mato. O carro de boi passou perto, foi cair no penhasco. Bina, como chamavam, estava tremendo em meus braços. Me beijou, me beijou, me beijou e o pai dela nos amarrou um laço. Na queda, bati com a perna. Foi quando fingi estar coxo. No bairro todos diziam que eu era o herói do povo. A dor que me "acometia" foi desculpa para que eu estudasse, larguei a lavoura de fumo e arroz, mancando fui estudar na cidade. Minha preguiça acumulou nos tempos que estava cursando. Meus pais diziam aos vizinhos que eu seria "dotor iuns ano". Mas na

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classe eu dormia e dava mancada quando a aula não me agradava. Sempre aprendi o que me ensinaram, não levava dever para casa. Setembrina, que me foi prometida, se orgulhava de me ver estudar. Toda a família da Bina ia aos domingos lá em casa para prosear. Eu já podia entrar na conversa, mas não era tudo que eu podia falar. Se o assunto não agradasse mamãe, meu pai me lançava "aquele" olhar. - Zécaaaaaaaaalo! Me formei no colegial no mesmo ano que casei com minha Bina. Eu mancava e não tinha emprego formal, levei ela para morar com minha família. Quando fui cursar filosofia no terceiro grau, iniciou minha sina. Na política havia o povão, os militares e os comunistas. No curso de filosofia que fiz, tinha uma cadeira para formar jornalista. Os espiões do governo militar ficavam dentro das salas de aula, decidiam quem era do povo e quem era comuna de corpo e alma. Os colegas, que falavam do jogo, sumiam em passe de mágica. Me assustei com que via ali, desejei voltar para casa e a lavoura. Meus amigos que um dia eu vi, desapareceram de uma hora para outra. Uma noite, eu caminhava sozinho e um homem veio me perseguir. Como eu mancava, ele chegou até mim. - Polícia! Você tem que me seguir. Eu corri. Parei de mancar e corri. E ele gritava. - É comuna! Prendam! Estava mancando para disfarçar! Prendam! É comuna! Meu retrato percorreu a cidade, mas o povo não sabia o porquê. Larguei tudo que tinha para trás e deixei a barba e o cabelo crescer. Minha Bina morreu de desgosto, pensou que ninguém mais a ia querer. Os meus pais, naquela época, disseram no morro que o filho acabara de morrer.

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José Carlos morreu, e nasceu o filósofo que não completou o estudo que se propôs a fazer. Intitulei-me amante do saber e fui esmolar, mancando para sobreviver. Se quiser dinheiro vá para outro lugar, porque aqui é onde trabalho. Preciso de espaço para pensar, tente pedir na Álvaro de Carvalho. Boa sorte e cuidado onde dorme, do contrário, deitará com a morte.

REGINALDO OSNILDO é autor do livro “Vidas quebradas: reflexos do crack”, jornalista, escritor e palestrante. Natural de Florianópolis, Santa Catarina, tem apreço pela narrativa realista, romanceia o cotidiano que observa para transmitir a verdade crua em palavras suaves. Aprendiz de escritor é sua autoclassificação, aperfeiçoa o estilo que possui em cada novo texto.

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CYGNUS X1 SAT AM Curitiba, PR. Astro colossal de dúvidas e medo, A esfera solitária que a tudo consome, O tempo em sua presença nada é, Nós em sua presença nada somos, E mesmo assim celebramos essa dança ridícula e sem propósito da vida. Um fim moderno dado aos de boa vontade, Cercados pelas mentiras e vazio de um mundo fugaz e sem propósito, O pessimismo em sua mais pura força de ação, A ilusão da liberdade única que nos foi “dada”.

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E nesse vazio, negro espaço colossal de dimensões falsas, Abraçando a realidade de planetas distantes formados de poeira cósmica, Observando de seu altar majestoso a patética sede pelo amanhã. E eu, a quem comumente rotulam de louco, De solitário, de egoísta, Cá estou a contemplar em silêncio o brilho de sua aurora profunda, Em meio ao grito imaginário de coisas que se movem nos sonhos. O berro que a tanto guardas escondido de nossa benevolência, Aquela melodia infernal que precede o fim, O baque seco no fundo de um poço de angustias e desilusões, A voz estridente que marca o renovar do colapso, Trazes à tona como ondas iluminadas na mais pura desilusão. Quem sou eu para julgar sua grandiosidade? Quem somos nós para dizer o que seremos ou fomos? De que me vale todo o conhecimento e esperanças no futuro, Quando não há nenhum? E preso a essa doença mental que flui como palavras, Entorpecido por dores psicológicas que não tem fim, Envolto no manto da perdição espectral do ar puro, Cercado por blasfêmias ambulantes que muito me enojam, Aguardando seu despertar sonoro aos ouvidos nossos, Pecadores... SAT AM é estudante de Letras-Japonês da Universidade Federal do Paraná. Desde que se entende por gente, escreve poesia/músicas como válvula de escape. Seus textos sempre estão carregados dos seus pensamentos: Ódio, raiva, terror, luxúria, são temáticas recorrentes nos meus trabalhos.

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COLISÃO JESSICA LUZ Porto Alegre, RS.

No princípio havia o nada. O fim do princípio foi apenas o começo: Num sopro a explosão, berço do Universo: E então, nós: Tu eras de Ares fragmento; eu, pífio grão de Antares. Opostos, rivais, complementares. E naquele sistema tão certo, um sentimento incerto: tamanha crueldade é existir a gravidade, em que orbitávamos na esperança de um encontro que jamais ocorreria. Íamos e vínhamos, num amargo baile cósmico, em que os amantes dançam calculadas coreografias, cortejando-se eternamente sem que nunca se possam tocar; bailando por bilhões de anos, rodopiando entre astros na ânsia daqueles sacros

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momentos a cada ciclo, em que poucos graus nos separavam. Tão grande atração e magnetismo, girando e girando, tal qual dois ímãs amaldiçoados à espera de uma colisão impensável, impossível. Não me consolava ser parte de uma estrela tão grandiosa, tinha mesmo era inveja de Fobos e Deimos, que podiam livremente orbitar ao teu redor, ao contrário de mim, que necessitava esperar pacientemente que tu te aproximasses.

Ciência,

magia,

destino?

Maldição!

Desejei

tão

fortemente a almejada colisão, que o cosmos, compadecido de tão injusto

destino,

de

tão

sofrida

sorte,

concedeu-me

ocasião:

Renascemos, em carne: sem brilho, sem fulgor, sem magnitude, feitos de poeira de estrelas, regidos pelo signo de Scorpio. E na pequenez de um corpo humano, descobri a liberdade. Novos ciclos se passaram até que eu pudesse te reencontrar neste imenso orbe azul a que chamam Terra, no entanto, quando finalmente aconteceu, esqueci-me de que era agora humana, e mesmo livre da maldição dos astros, orbitei ao teu redor, criando um novo ciclo; criatura insensata, tola, inapta! Percebi que para ser livre é preciso saber muitas coisas que a mim, mero vestígio dos astros, não era dado conhecer. Senti-me injustiçada uma segunda vez, e sob o fardo de meus próprios atos, chorei doces lágrimas de estrela. Aqui neste lugar de tempo impreciso, amaldiçoada por ser criadora de minha própria coreografia que não sei dançar, indago: agora que te fostes, quanto demoras a voltar? Quanto tempo medirá o próximo ciclo? Quantos giros, quantas voltas? Não importa, hei de esperar, ainda que precise renascer, e renascer ainda, nesta angústia astronômica, buscar-te-ei por quantos ciclos precisar, através das eras orbitarei até te encontrar, e então nos fundiremos, em tenro abraço, profundo e profano, e ainda assim sagrado: uma colisão de estrelas.

JESSICA LUZ é estudante de Letras pela PUCRS, atua no Núcleo de Pesquisa da Companhia Teatraria e esporadicamente publica textos experimentais em sua página In-Própria-Mente.

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À FLOR DA PELE

PEDRO CARDITA Montijo, Portugal Consoante ouve o ruído da tesoura a cortar os seus fios de cabelo, sente o batimento cardíaco cada vez mais acelerado. Mordisca os lábios e vai respirando fundo. Mas sente que tem algo entalado.

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Balbucia baixinho um desejo que não se faz ouvir. Fecha os olhos e vê este momento como se já tivesse acontecido, mas com um final diferente. Continua concentrada a ouvir o som da tesoura a cortar o cabelo, até ser interrompida pela Cabeleireira, que lhe pergunta se o corte está do seu agrado. Por momentos, ela olha para o espelho e sente que ainda não está como quer. Faz um pedido à Cabeleireira, como se nem se estivesse a aperceber do que está a fazer e fosse tudo um sonho. Sente-se tentada a olhar para o espelho, mas não consegue levantar os olhos. Cabisbaixa e pensativa, arrepia-se ao sentir a máquina de cortar cabelo a aproximar-se da nuca. O ruído característico da máquina fá-la arrepiar-se cada vez mais e sentir uma forte mistura entre medo e ansiedade. À medida que a máquina começa a deslizar pelo seu cabelo, sente que é tarde demais para recuar, mas ao mesmo tempo sente uma súbita alegria e alívio a invadirem-lhe o estado de espírito. Fecha os olhos e sente a máquina a desbastar-lhe o cabelo, que vai ficando muito curto. Esboça um leve sorriso de lábios fechados. Ouve a sua fortíssima palpitação e a respiração aceleradíssima como um carro de fórmula 1. Cerra as mãos nos punhos da cadeira. Sente um formigueiro a percorrer-lhe o corpo. Agita-se para descomprimir. Respira de alívio. Finalmente está a tomar uma posição, que lhe dá confiança para enfrentar as adversidades e solidificar a sua identidade.

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Recorda que ao início quando caminhou para a cadeira, temia que o chão fica-se movediço e fosse sugada, tal o medo que sentia por uma decisão errada. Quando a Cabeleireira lhe tocou no ainda cabelo longo, sentiu um forte arrepio de desconforto. Já não aguentava o peso da longa cabeleira, mas ao mesmo tempo era invadida por um inesperado e terrível saudosismo. Agora ao tocar no seu cabelo extremamente curto, sente que acabou de renascer. Olha para o espelho e sorri para si própria. Com firmeza, pousa os pés no chão e já não sente que será engolida pelo mundo, mas que pode destacar-se!

PEDRO CARDITA concluiu em 2010 o Curso Profissional de Técnico de Vídeo na Escola Profissional de Imagem, Lisboa, onde escreveu os meus primeiros argumentos para curta-metragem. No último ano do curso, escreveu o argumento “Jogo da Vida”, que foi escolhido por um júri para ser uma das seis PAP (Prova de Aptidão Profissional), a ser realizada.

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TU ANDAS IMPOSSÍVEL EM MIM

FABÍOLA WEYCAMP Pelotas, RS.

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contesto contexto exposto no ártico ventrículo esquerdo da parte mais interna que essa palavra cava coração ou cérebro? contexto contesto não digo nada te observo com meu olho astigmático guardando a caneta bic no bolso direito tu andas impossível em mim

FABÍOLA WEYCAMP, segundo o poeta gaúcho Marcelo Martins, “é poeta, faz telepatia com cães (Otto confirma o fato) e é devota de Leminski. Em sonho seus poemas são cantados por Gal Costa”. Ainda neste ano, terá publicado seu primeiro livro, Resenhas da solidão – um livro de poesias e dor cotidiana, pela editora LiteraCidade, fruto da conquista de um concurso literário nacional. Seu trabalho pode ser encontrado no blog versodigital.blogspot.com.br

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SILÊNCIO ROCHA OLIVEIRA São Gonçalo, RJ. Diz-me, amor, – ao menos –, por que cala; e fala-me, outrossim, do seu silêncio. Pois que este corta os ares e o meu peito, qual um Zeus estruge e vibra um céu medonho. Silêncio que incomoda e que ensurdece; que ecoa dentro em mim qual um trovão. Fala-me, que eu, c'o ouvir risonho, direi que não é vão este momento. E o silêncio teu, que hora me enlouquece, vezes há que é pausa em sinfonia... Pianíssimo d’amor e calmaria... Quando pois em me abraçar, enfim, te calas, e reclinas tua cabeça em meu peito. Faz deste meu ombro o teu leito, e adormece a sonhar em meu regaço. Ah e a sussurrar meiguices e ternuras. Se não de sua alcova, faz teu ninho, e arrula (bem baixinho) um afável canto. Mas

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não me negue nunca a palavra, ó meu bem-querer, meu doce encanto! Se não podes me dizer o quão me amas, fala-me – silente: “Te amo ainda”.

ROCHA OLIVEIRA é romancista, contista e poeta. Inspirado especialmente em obras clássicas, particularmente em Camões e Machado de Assis. Escreveu a coletânea de sonetos Como Nasce um Poeta, um livro de contos sob o título d’Outros Rasgos, e o romance juvenil Ao filho das Estrelas (entre os céus e a Terra). Está em fase de conclusão de um livro de poemas, um de contos e outro de microcontos. No momento, além de contos eventuais, trabalha em três romances.

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O ABSINTO A. MIYAJIMA Ah! Tomei demasiado daquilo… Soube imediatamente que havia inscrito o meu nome no inferno dos malditos, sabia o antes, muito antes…e, enquanto o pensava, entardecia, e, a nublada luz crepuscular tingia de fogo, o copo de absinto. Para quê negá-lo, senti prazer profundo no definhar do dia; e, arrebatado por estranha vertigem, senti prazer ainda mais profundo, no robustecer da luz nocturna. Uma aragem macilenta e quente percorreu-me a espinal-medula. Um frémito espasmódico incendiou-me os lábios e o coração. Estava certo que delirava… como se estivesse eu certo de algo…

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Uma detonação alcoólica, seguida de um clarão, num jogo de causa-efeito, tomou-me o espírito; e não havia impotência nisso, tanto mais, que se despontou em mim um sorriso cruel e maldoso; e, obedecendo à minha violenta natureza, ri. A luz aveludada tornara-se fria e escura, o que tomou para mim, novamente, grande proporção de gozo. «- Não tive eu, uma juventude, adorável, heróica e nacionalista? Não tem sido, o meu vigor, usado para um fim maior? Porquê receber agora o rude golpe da estroinice? _Ah!, Mas como tudo se torna perfeito e como a minha alma se alegra por uma vez na vida!» No céu, a tibiez fria do opúsculo, tingia de sombra todos os corpos… e, que pintura maravilhosa! A luz, agonizando e perdendo virescência, tornando-se negra e fria. E, eis que, subitamente, a noite nascera e talvez para sempre. Ouvi canções inglesas e obscenas vindas do porto. Três companheiros meus saíram nessa direcção. A voz do mais novo, cálida e falha pela nalewka, enojou-me profundamente. Com um gesto brusco indiquei-lhes que se afastassem. Permaneci sentado. E, por momentos, contemplei-a, à garrafa de absinto. Era bela e erótica, desprovida de outro propósito. Levei-a à boca e sorvi as réstias do seu veneno. Um coração de fogo novo pulsava-me no peito, como uma fera ensanguentada, numa jaula. …E que sinuosidade de treva abobadada a desta bela, cruel e estranha volúpia!... Ludibriava-me de mim próprio e com raiva maldosa escarnecia dos outros bebedores. Coloquei-me de pé. Cambaleei. E por diversas vezes perdi o apoio e me despenhei no chão; e, por pouco não me mataram nessa noite; tornara-me uma criatura sem disciplina e de carácter ausente.

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Sovei com gravidade o primeiro brigadeiro que vislumbrei. Não penseis, meus senhores, que me penitencio perante vós, pois não o faço; relato simplesmente um feito e não desejo absolvição ou indulgência e muito especialmente a vossa. Recordo

que

estava

atormentado

e

que

as

veias

me

ribombavam sob a pele; numa nova espécie de saúde estranhamente viril. Habituava o espírito à alucinação simples e ao devaneio imediato. Um suor verde, como o absinto, queimava-me os olhos e os cantos dos lábios, e, eu suava, abundantemente. Os meus pulmões ardiam e as entranhas revolteavam-se. A minha natureza ébria e truculenta desenhava-se de perfil na viela, mas, tudo era deleite e excesso e tudo era gozo profundo e encanto único. «- A que aspiraria eu nessa noite? Que instante e excesso me havia o destino reservado? Porque me sabe o peito da minha querida Warszawa a estranho fel?» O uniforme militar estava uma lástima. Já havia perdido uma bota e uma insígnia. Um lanho sulcava-me a cabeça e, no entanto, sentia uma liberdade incondicional. Soube, nesssa noite, acerca dos prazeres do criminosos e dos prisioneiros guerra, que na cela definhavam, como aves de rapina, roubadas à natureza. Diria que me cresciam chifres e que o meu carácter azedava ou se ensombrava. E, dito isto, eis que por mim passa, uma bela mulher negra. Detenho-a, pelo pulso fino. Contemplo-a, profundamente. Parece assustada, mas não reage. Prontamente, exclamo: - «E se vós quisésseis eu não estaria neste deprimente estado! Pelas asas desconexas da doce Volúpia vos suplico: dai-me o crepúsculo luminoso de vossos lábios e o inferno pagão de vosso ventre! Por Deus, suplico-vos!...» Dito isto, beijei-a, e a minha língua mergulhou na dela, que a enlaçou, numa humidade de claustro e se demorou a cuidá-la, como

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se tratasse de um animal ferido, mas, tomado de ira, afastei-me, com passada decadente, deixando-lhe na boca o sabor esverdeado e doce do absinto, o amo lascivo e dolente, que me capitaneava nessa noite.

A. MIYAJIMA | Uma vez que as biografias mentem desagradavelmente; sendo bastante mais interessante dizer mais com menos. Contemplei com simpatia, admiração e algum temor o homem, que apenas desembarcado de perigosa viagem, se alistou imediatamente numa outra, como se a terra lhe queimasse os pés ou como se o coração seu procurasse quietude para a uma paixão violenta e terminada de forma

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abrupta, num qualquer porto, numa qualquer costa distante, num qualquer outro amor, num qualquer outro exĂ­lio, assim me foi apresentado o escritor, Monsieur, A. Miyajima.

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ANTIPLATÃO ANDERSON S. FREIXO Salvador, BA.

Se eu tivesse que te contar sobre o mundo lá fora, eu nem saberia por onde começar. Você já leu Dostoiévski? O mundo é cheio de pessoas loucas que não

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sabem o que querem, como você. É cheio de morte, cachorros com fome, mulheres bonitas e sonhos de vida melhor. O mundo é cheio de becos, de gente escrota e de esperança. O conhecimento que você tem e acha que é todo não é nada. Essa sua tristeza que descamba pro tédio é sede, mas você não sabe que não sabe. O que dizer? Você lê Pessoa? Você tem que aprender com quem já se fodeu antes de nós. A vida é essa foda mal dada que cansa, que esgota, mas na persistência a gente também goza. E eu te escrevo de uma casa suja, de uma vida suja, com meu corpo marcado. É que eu vivi. Ah, se eu conseguisse te dizer como é a vida lá fora... Lá fora, as pessoas matam por nada e arrumam coisas pelas quais morrer. Elas riem por besteira, como se estivessem bêbadas. Eu também. Eu também bebo. A vida nos acaba. Nós fomos feitos pra acabar. Pra sermos acabados pela vida. Nós nos fazemos humanos nos cansando com o que um dia já foi novo. Já falei das mulheres bonitas? O que eu posso dizer do mundo? Ele é cheio de dores. Dói muito. Mas não é essa sua dor clínica. O mundo tem dores sem nome que amenizam nos porres, nos papos, nos fôdasses. Mas é preciso sofrer, pra ser feliz quando a dor passa. Do contrário, é tudo um vazio grande que te engole. Mas pra sofrer é preciso sair de casa e deixar que a vida te inunde. Deixar que ela acabe com seus sonhos, pra você criar sonhos novos, melhores e a prova de balas. É preciso que ela mate o que você ama, pra você saber que amava e amar mais. É preciso amar. Você ama? É preciso sair de casa pra perder. Perder as chaves, as pessoas, a consciência. Perder é uma forma dolorosa de ser livre. É que nem perder o cabaço. A liberdade dói. O mundo lá fora não é bom, nem justo, nem fácil. Mas é cheio de pessoas como você, mas que também são diferentes. Você conversa com elas, você as abraça, sorri com elas, chora com elas, trepa com elas, adiciona elas no Facebook, recomenda livros e filmes, se decepciona com elas, as perdoa, as condena, empresta dinheiro, atravessa a rua quando as vê vindo na sua direção, vira a cara, ou então abre um sorriso, ou se emociona, chega a lacrimejar. O mundo não é nada sem as pessoas. É por causa delas que dizemos "eu sou" e acabamos sendo alguma coisa. Elas são nosso vínculo com o tempo que passou. Elas tem o corpo cujo contato nosso corpo pede. Elas tem os ouvidos que nossa voz demanda. E elas tem a voz carregada do novo que não é você, mas também do que é você.

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E você na boca do outro, na alma do outro, é a alegria de não ser só. Mas as pessoas estão no mundo. E o mundo está la fora. Se eu conseguisse te contar...

ANDERSON S. FREIXO nasceu em Niterói (RJ), mas reside desde os 19 anos em Salvador, onde se graduou em Letras. Já foi auxiliar de escritório, ambulante, vendedor de livros, revisor e tradutor autônomo e atualmente trabalha no IBGE como agente de pesquisas. Começou a escrever aos 14 anos e em 2012 conquistou o segundo lugar na categoria poesia do IV Prêmio Literário Jorge Farina, com seu poema intitulado Saudade da Dor. Além disso, teve contos publicados pelas revistas eletrônicas Outros ares e mallarmargens, sob o pseudônimo de Don Soares, e também na Revista Samizdat. Atualmente mantém o blog Zona do Freixo – ex-bêbado, ex-drogado e ex-critor, onde compartilha seus poemas, contos e reflexões.

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

Colaboração especial: FRANCISBO BEN | franckbeneto@gmail.com

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