Revista subversa vol 3 nº6 Outubro 2015

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SUBVERSA VOL. 3 | N.º 6 | OUT/2015

ISSN 2359-5817

Ilustrações FRANCISCO BEN

FELIPPE REGAZIO | TAYLANE CRUZ | ISABELLE ALMEIDA HEITOR DE LIMA | EDUARDO VALMOBIDA DANIELLE FULLAN | WILSON NANINI | EDSON DUARTE PEDRO SILVA SENA | SAMUEL H DIAS


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 3 | n.º 06

© originalmente publicado em 15 de outubro de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações FRANCISCO BEN |franckbeneto@gmail.com | Facebook

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realida


SUBVERSA VOL. 3 | N. º 6 | OUT/2015

ISSN 2359-5817

FELIPPE REGAZIO | CINEMÁTICA | 6 TAYLANE CRUZ |GALINHA COM BATATA E SANGUE| 08 ISABELLE ALMEIDA | O LADRÃO E O MENTIROSO | 12 HEITOR DE LIMA | APORIA | 19 EDUARDO H. VALMOBIDA | VIDA LOUCA |23 DANIELLE FULLAN | DESASSOSSEGO | 27 WILSON NANINI | M. DA TRAVESSIA ABRUPTA | 30 EDSON DUARTE| SEJAMOS CÚMPLICES | 33 PEDRO SILVA SENA | O XEQUE VERDE | 36 SAMUEL H. DIAS | TINTA VERMELHA |41 SOBRE Francisco Ben | “Da arte suas linguagens” | 43

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EDITORIAL

Já chegamos a meados de Outubro e, além de apresentarmos o nº6 do volume 3, também queremos deixar assinalado que neste mês comemora-se o dia mundial do escritor. Sendo esta uma revista literária que tem no seu intuito apoiar e divulgar escritores luso-brasileiros, deixamos aqui a nossa homenagem para aqueles que escrevem por diferentes motivos e razões e que tornam as experiências mais interessantes, questionáveis e compartilháveis. Um elemento importantíssimo para a continuidade da Subversa é a ampla participação de professores, tanto da rede pública como privada, assim como dos mais variados níveis de ensino. Ter a aceitação da comunidade acadêmica no trabalho que é feito aqui não só nos impulsiona e motiva, mas alimenta o nível de compromisso e seriedade com quem está envolvido no círculo de produção e divulgação literária, no Brasil e em Portugal. Por isso, deixamos registrado nesse número o nosso agradecimento aos professores que escrevem e leem a Subversa, assim como manifestamos nosso apoio constante na causa da valorização da profissão de mestre de todas as áreas do saber. Nesse número contamos com o retorno do artista plástico, músico instrumentista e arranjador Francisco Ben, que deixou a sua mensagem final a respeito da arte e de como ele enxerga as suas variações linguísticas. Desejamos uma excelente leitura a todos. As editoras.

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014) Adquira e apoie o crescimento da revista. 5


CINEMÁTICA FELIPPE REGAZIO | Jacareí, SP.

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todas as milhares de mágoas que você plantou em mim enferrujaram em meu coração e agora toda vez qu'eu tento pronunciar seu nome há apenas um rangido e tudo silencia as sirenes os grilos as cabras. veja bem qu'eu fico sem ar eu começo a descobrir constelações eu não consigo eu não consigo parar de analisar o alaranjado da ferrugem. veja qu'eu não posso parar de rir se você se irrita comigo e isso é só o começo de tudo isso osso pele fruto fosso tudo. veja bem que alberto quer escrever um livro. alberto quer escrever sobre si mesmo e mesmo assim a violência atravessa a rua do seu bairro com toda a calma de todo começo e eu só quero dizer de um trópico uma linha um casaco de linho. veja se me ensina a dizer que sim porque parece que até chove dentro do relógio se a sua saia azul balança e alumia o mundo numa garrafa de vinho como se você vestisse o céu como se você me olhasse como se você me olhasse só pra eu te olhar dormindo. cê me olha porque é o fim da lata de brahma de coca de aguarrás de frases que você grita quando briga comigo me mandando embora me dizendo ojerizas e eu rindo e eu rindo e eu rindo. eu não consigo parar.

FELIPPE REGAZIO, nascido em Minas Gerais, Brasil, vive no estado de São Paulo desde seus cinco anos. É assíduo leitor de portas de banheiros e pichações rua afora. Felippe é autor do livro de poemas "Oceana", lançado em edição independente em 2013 em formato impresso e online e do livro "Atentado Contra a Vida das Coisas Belas" lançado em microedição artesanal em 2015, e também em formato online. O autor desenvolve ainda trabalhos na área das artes visuais, é membro do coletivo de arte Invento Coletivo e atualmente estuda Letras na Universidade de São Paulo. | FELIPPE.MORAES@ZOHO.COM

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GALINHA COM BATATA E SANGUE TAYLANE CRUZ | Aracajú, SE.

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Não sou de reclamar. Nunca fui. Como na paciência, como dizem. Mas há limite para tudo nesta vida e naquela tarde maldita – maldita não é a palavra que quero usar, mas desconheço poesia - Marli ligou, a voz pifando feito rádio velho, as palavras espaçadas como se eu fosse perita em entrelinhas: foi de repente, um troço no coração. Burra como o diabo, Marli me obrigava sempre a remendar seus verbos: “enfartou, foi?”, tentei imitar a frieza divina. Filha de uma puta – e aí eu já tinha batido o telefone, claro, os cabelos em eletrochoque. Eu sabia que ela – a defunta que não cito aqui o nome pra não lavar a boca com água sanitária depois – um dia faria isto. Quarenta anos repetindo a mesma ladainha sem futuro “não morro antes de você”. Morre, não, é? Saí pela rua, um véu amarelo ao redor – a luz dos postes, tudo poesia desnecessária - os vizinhos me olhando complacentes. Recusei-me a entrar. Fiquei na porta, o pé descalço apoiado no murinho. Meu calcanhar preto da poeira que carreguei durante o dia deixou uma mancha redonda na parede dela. Aquela parede ridícula pintada de branco gelo. Eu falei mil vezes “pinta de roxo que demora a sujar”. Meti o calcanhar mesmo de maldade. Foi uma vingança imediata, só para aquela minha urgência de momento. Antenor foi-se chegando sonso, esperando me dar um afeto, um colo, vem cá, Verinha, nós dois a amávamos. Nunca fui pessoa de amar ninguém, nem bicho nem gente, nem nada, nem coisa alguma, nem Deus – só abro exceção para Santa Clara, por razões que não conto. Antenor insistiu com sua paz: Ela morreu feliz. Pois que fique feliz, ora! Não me importo, disse ao homem que tinha um sorriso mórbido na cara, mas meu negócio mesmo era com aquela puta ordinária. Espantou-se com o rompante o homem. E não arregale estes olhos de cu pra mim, porque verdade seja dita: uma safada, infeliz da pior espécie. Foi juntando gente, me olhavam penosos, eu ali no meio feito galinha zonza, desabalada em viés algum.

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Voltei para casa esculhambada. Enterraram a defunta numa cova rasa, eu soube. Não fui olhar. Exprobro quem se vai. A morte é um despropósito. Mas não quero falar de morte. Ruim para ela – a defunta – que agora come terra. Virou comida de minhoca, as mesmas minhocas que colhíamos com palitos de picolé fazendo miolinho na terra, justamente estas minhocas agora têm dela tudo. Eu aqui fico melhor, tem sempre uma unha pra fazer, um banho pra tomar. Mas explico o motivo do meu descontentamento: a defunta me prometeu uma galinha cozida com batata e molho de sangue – o sangue era um extratinho delicioso que ela fazia com os tomates aqui de casa. Colocou este nome para soar dramático. Ordinária! Via poesia em tudo. Morreu me devendo um almoço farto, um arroto sem culpa. Se eu me importasse, corria agora no quintal do Zé pra buscar uma galinha gorda e bobalhona, apoiaria ela na perna, descangotava até ouvir o crac!; pendurava a bicha no varal pra o sangue descer. Enquanto isso, arrumava água no caldeirão. Mergulhava na água fervendo pra tirar as penas, depois puxava a faca e decepava tudo, do jeito que a defunta, aquela puta poética, me ensinou. Cortava ao redor do cu pra puxar as tripas, depois pescoço, miúdos, fígado, moela, coxas, pés, asas. Mas agora não vou, não. Não faço serviço de morto, não recolho os restos. Mais fácil deixar a gula de lado e beber um copo de água gelada para a goela esfriar sem a necessidade de invectivas. Esta manhã voltei para casa e fui mijar apressada, horas zanzando pela cidade sem um instante de paz, os mocotós febris. Corri para o banheiro, a louça

branquíssima

evocando

meus

melhores

líquidos.

Sentei-me

confortável, o mijo desceu num jato forte, amarelo feito ouro. Mas ao sentir o frio da louça nas minhas nádegas amolecidas, lembrei-me de Célia, sua cara doce. Para ela, prazer na vida era mijar num vazo limpo cheirando a Pinho Sol: banheiro limpo é uma benção, Verinha. Aquela cretina! Uma

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puta, desqualificada em níveis impronunciáveis, cara macilenta, feia, defeituosa até o oco do umbigo, mas que morreu antes do prometido e levou junto o coração de uma pessoa que prefiro não citar o nome para evitar poeticidades desnecessárias.

TAYLANE CRUZ é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe e escritora. Natural de Aracaju, SE, em 2015, lançou seu primeiro livro de contos, "Aula de Dança e Outros Contos". Tem textos publicados em sites e blogs literários. Apaixonada pela poesia de Adélia Prado e pelas narrativas da escritora neozelandesa Katherine Mansfield, tem verdadeira obsessão pelos temas que permeiam o cotidiano e é deles que nascem as personagens de seus contos. | TAYLANECRUX@GMAIL.COM

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O LADRÃO E O MENTIROSO ISABELLE ALMEIDA | São Paulo, SP.

A cidade de Gothn se preparava para mais uma noite de chuva. No céu, nuvens negras borravam o horizonte até onde os olhos conseguiam enxergar. Os primeiros sons da trovoada cortaram o silêncio da planície e nos limites do penhasco o farol do Morro Branco apagou sua luz. Todos os cidadãos de bem já tinham se recolhido para suas casas e com suas portas trancadas e janelas fechadas, esperavam pelo jantar. Já era de conhecimento público que nada de bom acontecia em noites escuras como o breu. O Mentiroso olhou para fora da janela, sem muito interesse pela noite negra ou pela chuva pesada que iria cair. Ajeitou a gravata pela última vez e saiu do prédio. Lá fora tudo estava tão escuro quanto

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imaginou que estaria. Ninguém ao redor e um silêncio absoluto. Manchas pretas por todos os lados. Teve a impressão de que por mais que tentasse não conseguiria entender o que se passava. Ele se sentia assim de vez em quando, como se estivesse perdido em um mundo espalhando-se como tinta por um pedaço de papel, sem muito sentido. Mas dessa vez era diferente, agora ele não apenas sabia, como sentia que se colocasse seus pés para fora da rua, nada poderia protegê-lo. O que se poderia fazer? O Mentiroso seguiu em frente sem olhar para trás duas vezes. Vagando em zigue-zague pelas ruas vazias, o Policial bocejava entediado. “Vai ser uma longa noite” pensava. Ele poderia estar com a esposa, comendo pizza ou assistindo TV. Era um homem de gostos simples, não precisava de muito para sentir-se satisfeito. Poderia estar aquecido pelos cobertores na segurança de sua casa. Poderia estar vendo um filme de terror sobre um policial lutando contra o crime em noites sombrias. Mas não estava. “Essa é a graça da vida, não é? Você nunca está fazendo o que gostaria de estar fazendo, não é?” Disse em voz alta para ninguém em particular. Ele conversava sozinho de vez em quando, nada demais. Um carro vermelho cor de sangue cruzou seu caminho tão rápido quanto uma flecha. O Policial anotou sua placa. “Ele não vai gostar nenhum pouco do que vai ter que pagar por isso”, riu consigo mesmo. Esse foi provavelmente foi o ponto alto de sua noite. O Policial já estava pronto para seguir em frente e esquecer-se completamente daquela rua e daquele lugar, se não houvesse distinguido abruptamente

entre

as

sombras

dos

prédios,

como

uma

ilusão

despropositada, a figura de um velho, encolhido pela chuva como um pequeno inseto ao relento. Aquela figura borrada e desconectada do tempo e espaço, com um olhar desafiador que o Policial jamais imaginaria

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encontrar no rosto de um idoso, o fitou de volta como se perguntasse “você não entende o que está acontecendo, entende?”. “O senhor não deveria estar aqui fora numa noite como essa” Gritou o Policial para o homem. O velho, de cabelos muito brancos e um casaco escuro, encolheu os ombros, e sorriu com uma risada irônica de quem sabe muito mais do que jamais confessará, mas nada respondeu. “Minha nossa, estão todos loucos hoje?” Pensou com desgosto o Policial levantando o vidro novamente. Ele desviou da figura escura do velho e estacionou um pouco mais a frente no final da rua. “Sim, vai ser uma longa noite”. Pensou, apoiando a cabeça no banco. Com a respiração pesada e a consciência tranquila, caiu no sono. “Deve haver um outro jeito para fora daqui” Pensou o Ladrão ao alcançar o final do corredor. Ele forçou a porta de madeira apenas para se ver confinado em um quarto escuro e sem janelas. Soando distante, como que perdido na imensidão da cidade, ouviu tocarem o rugido enlouquecido das sirenes de polícia. Ou talvez fosse apenas sua imaginação. Não era uma noite que perdoa erros, ele sentia isso no ar da mesma forma que sentia que não iria ser pego. “Deve haver outro jeito”. O Mentiroso parou em frente a uma construção curiosa. Uma casa de grandes janelas de vidro e aparência leitosa, que se erguia estranha entre os arranha- céus que cortavam o céu negro da cidade. Tocou a campainha sem esperar por uma resposta. No meio do quintal escuro, entre cactos e samambaias, o Ladrão se arrastava pelas sombras, levando consigo uma maleta de couro que não lhe pertencia. Ouviu um latido de cachorro, mas não havia cachorros na vizinhança. Talvez fosse um sinal, um mal sinal. Ao se virar pensou ter visto de relance a mulher de cabelos loiros que havia amordaçado e

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trancafiado como um animal no porão. Ela tinha um olhar de censura no rosto e seu nariz sangrava. Um sangue vermelho vivo, escorrendo pelo queixo da moça como uma torneira aberta. Seus cabelos estavam desgrenhados e suas mãos foram atadas com violência. Ele teria usado muita força com ela? Em uma situação diferente poderiam ter se tornado amigos, quem sabe até amantes. Se estivessem em um bar, ele certamente a chamaria para dançar. Não, não importava, ele precisava seguir

em

frente,

todos

essas

besteiras

estavam

lhe

tirando

a

concentração. Tudo era apenas sua imaginação e seus medos dissipados na noite escura. Sua vida inteira parecia se resumir a isso, medo e imaginação. “Estou ficando louco?”. Com pressa e cambaleante, o Ladrão se escondeu para trás de algo que lhe pareceu um pedaço de madeira apodrecido assim que ouviu o batente da porta dos fundos ranger e se abrir. “Minha casa está sendo assaltada!” Gritou a voz estridente de uma mulher do outro lado da linha. O Policial se empertigou no banco e ligou a sirene. A noite estava apenas começando. O Mentiroso com seu pesado casaco de lã, adentrou uma sala escura. Ele ascendeu as luzes. Para sua surpresa não havia ninguém. Algo de importante estava acontecendo, mas ele não entendia o que poderia ser. Pegou na mão o retrato da mulher que estava quebrado no chão. Uma moça de cabelos muito dourados e um sorriso de belos dentes brancos lhe encarava do outro lado da moldura. “Elise, você está por ai?” Gritou

ao

vento,

sem

obter

nenhuma

resposta.

“O

que

está

acontecendo?” se perguntou ao perceber que a porta dos fundos estava entreaberta. O Policial foi levado por ruas incertas até uma parte por ele desconhecida da cidade. Do outro lado da rua, distinguiu uma casa que

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não lhe parecia nem estranha nem conhecida. Talvez já houvesse passado um milhão de vezes por aquele lugar e não tivesse reparado. As coisas sempre são diferentes quando a noite é muito escura. “Positivo, estou no local”, respondeu pelo walk-talk. O Mentiroso se esgueirou para o quintal. Não havia nada ali além de plantas e de uma grande piscina azul. Ele não esperava mesmo ver nada diferente, até que viu. “Parado! Mãos para o alto!” Gritou o Policial para o homem de casaco de lã. Ele teve dificuldades de distinguir a aparência do homem. Não era nem velho e nem novo, e também não se moveu. O Policial nunca atirava em pessoas pelas costas. Foi o seu grande erro naquela noite. “Mãos ao alto!” Gritou mais uma vez, sem que ainda soubesse disso. O Ladrão, coberto pela lama e pelo pedaço de madeira, escutava com atenção o que se passava a sua frente. Por um momento lhe pareceu que o Policial iria atirar, mas então o homem de aparência sombria sorriu de uma forma particularmente esquisita. “Boa noite senhor Policial” Disse o Mentiroso sorrindo. “Eu estava esperando pelo senhor. Uma noite muito ruim, não? Eu detestaria estar em serviço em uma noite como essa” “Ponha suas mãos onde eu possa ver!” Gritou o Policial apontando seu revólver para o peito do homem, como sempre lhe ocorria em momentos de tensão, seu sangue subindo até o rosto e seus dedos já entrelaçados no gatilho, prontos para atirar. Mas ele não tinha medo, sabia lidar com engraçadinhos desse tipo, havia sido treinado para isso. O Ladrão ouviu um tiro mas não conseguiu distinguir quem havia caído. “Meu Deus, estão todos loucos hoje?” se perguntou ao olhar um filete de sangue escorrer fresco pela grama molhada.

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O Mentiroso tirou a arma do policial estirado e morto no chão. A chuva começava a cair mais e mais pesada. “Mas que porcaria” Pensou ao fitar o rosto contorcido do Policial. Por nenhum motivo aparente, um grilo pousou na boca ensanguentada do morto. Talvez aquilo fosse um mal sinal. Péssimo dia para se sair de casa. “Você tem algo que me pertence” O Ladrão ouviu o a voz do Mentiroso ecoar grave como um trovão “Não existe saída daqui, você está encurralado”. O Ladrão sorriu desdenhoso enquanto se esquivava para o lado. Ele tomava cuidado para que o Mentiroso não o visse. Não havia sido pego, não ainda. Como um bom mágico ele ainda tinha um ou dois truques na manga. “Você e eu já passamos por isso e esse não é o nosso destino. Então não vamos falar besteiras agora, já está ficando tarde”. Disse ficando frente a frente com o homem de sorriso estranho. “Existe muita confusão por aqui” Replicou o Mentiroso ao Ladrão. “Mas nós entendemos melhor as coisas, a vida não é nenhuma piada”. Continuou com a mesma voz cadenciada e grave, como se suas palavras pudessem ter algum significado maior e mais grandioso, que só poderia ser entendido pelas pessoas certas. Pessoas como ele e como o Ladrão. O Ladrão concordou, e por alguns instantes pensou que entendia. Foi tudo muito rápido. O barulho de dois tiros cortaram a distância. “Foi apenas o vento. Termine de comer sua salada” Disse o Pai para o menino de olhos assustados. “Foi só o vento, e nada mais”. O Pai olhou para fora da janela, mas não distinguiu nada além da neblina espessa pairando sobre a cidade como uma doença infecciosa. “Foi só o vento” Repetiu para si mesmo tão baixo quanto um sussurro, fechando a cortina.

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Ninguém saberia dizer o que aconteceu com o Ladrão e o Mentiroso naquela noite estranha de agosto. O que levou aqueles dois homens tão distintos quanto inimigos a se cruzarem entre todas as pessoas do mundo permanecerá um mistério. A neblina se espessou e a manhã surgiu tímida no horizonte. As mulheres já haviam levantado, o café da manhã já estava posto em mesas limpas nas respeitáveis casas de Gothn. As crianças vestiam seus uniformes azuis e estavam prontas para ir para a escola. “Que noite horrível, mal consegui pregar os olhos”, disse a Mãe para o Filho. Sem prestar atenção a nada disso, entre uma torrada e o suco de laranja, o Pai assistia ao noticiário matinal. “Dois homens estão foragidos acusados do assassinato de um Policial na última madrugada. Segundo relatos, o Policial teria sido assassinado em serviço durante a investigação de um roubo em uma mansão no sul da cidade. O paradeiro dos dois criminosos ainda é desconhecido”.

ISABELLE ALMEIDA não faz nada de muito relevante na vida além de escrever contos de ficção e estudar jornalismo na Universidade de São Paulo. | BELLEMASO@GMAIL.COM

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APORIA HEITOR DE LIMA | Fortaleza, CE.

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All things save Beauty alone. Ezra Pound Acorda-te antes que comece o sonho. sob travas e números certa pupila veste-se com rumores, gorgolhando entre fantasmas de topázio e brilha imensamente como gota de astro. Brilha baixo. Haverá de existir muitos segredos onde o lume no silêncio bruxuleia e as mulheres olham à janela algo na avenida lúcida, plantinhas enrugadas de tempo. Certo como quando acordas à mesma janela a roda do seio espera alguma fala como quando olhas para o teto e espera um algo ou horizonte que em ti nada espera. Estás ao lado dum desolado cofre que guardas no passado, memórias de estrume e plasma. Vejo uma série de corpos conjugados. Brotos de pele nascem nas radículas da terra transbordando uma seiva cifrada n’alguma floresta de ruídos. Esqueço-me de perguntar o gosto do mármore aos que pensam muito e esculpem um episódio escurecido no espaço.

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Tende um resto da saliva no galo. Tende um resto de conversa para fora. Tende um momento de náusea. Uma testa do oceano engolindo teus olhos. O contorno erodido na areia parindo um caranguejo mutilado de sombras. Escreves teu recado à maneira do eclipse. A caminhada precede imagens como pedra e água. Também o olhar à praia, o espelho no cloro: erguem-se como frio na espinha no curso de vértebras de vidro. Tende um momento de náusea. Como é a roupa exata do cascalho exaustivamente esmagada por gente com botas alegrinhas. A marola furta o presente solar com suas flores de nuvem. -Amor, daremos aos que passam qualquer boca em seus lábios secos. Suas pernas exaustas ao cortar os dias e receber goles de cimento apodrecido. E todos contando salas e relógios, e todos a latir e babar, todos compondo um canto morno como o alimento; Andamos enfim à borda, numa poeira inventada, e um vestígio de âmbar nos olhos da menina de penas e seda esplende e some no fastio dos teus passos e parte no mel do ar para a estrada vazia do meu peito; Nasce algum floco de estrela no céu a noite se agita. Falam assíduos como no Hugh Selwyn

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os veios descuidados do pulmão de fumo em fumo. * Descamasse talvez teu ritmo, teus braços e neutrinos, algo de infinito e além no ângulo de tua orelha. Há poetas feitos de orelhas Poetas feitos da carne do sol Poetas além de Orfeu como lastro aos mortos de março. Há poetas com sede de cromo e prosas na alameda. Há poetas de leite materno e consolo estival Poetas de madeira e jade, poetas de Celan E a poesia é sobre seu cerne alado. “Amor, daremos aos que passam qualquer boca de lábios secos” Há poetas feitos de orelhas vertendo seus Ícaros informes. Queimando o ar a terra e difundindo-os pensando na lama e no beijo no gosto inverossímil do teu riso. e sigamos com todos, sozinhos.

HEITOR DE LIMA rabisca em versos desde os 9 anos de idade, espera que o mundo escolha a poesia, mesmo que inconsciente. Vive a heterogeneidade de ser quem é. | HEITOR_LIMAQ@HOTMAIL.COM

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VIDA LOUCA EDUARDO VALMOBIDA| São Paulo, SP.

“Estou tendo problemas para crescer.” Ele me disse. Um cigarro entre os dedos e o olhar oblíquo, perdido entre as ruas lá em baixo. Desconcentrado ante os passantes e folhas viajando ao vento.

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“Sabe o que é? É que eu me sinto cada vez mais infantil, a cada dia, mais conflitos, surgem mais ideias loucas e uma preguiça de viver se instalando sorrateira entre os meus ossos. É que eu não queria que as coisas fossem dessa forma, e ao mesmo tempo eu não consigo imaginá-las diferentes. Como se qualquer faísca de esperança se perdesse no instante em que existe, é-não-é-nunca-foi. “Eu pensei que seria mais fácil, sabe? O tempo iria passando e eu iria aprendendo a viver, encontrando alegria em ser quem sou e no que sou. Mas o descontentamento é cada vez maior. “Outro dia me peguei olhando no espelho e me sentindo feio, amorfo, até pensei em fazer uma plástica. Dá pra acreditar? Me rejeitando a tal ponto… Eu queria um pouco de paz comigo. Já não basta meu pai ter me batido tanto quando criança, ou minha mãe que nos deixou, sumiu, assim, puff. Estava lembrando do Otavio também, se lembra dele? Tanto tempo juntos e aí, do nada, ele disse ‘cansei’, e foi isso… Fora o medo de apanhar na rua. Tem sempre uma tensão no ar que me acompanha. Fico com medo de eu mesmo estar gerando essa tensão.” Por alguns minutos não disse nada, concentrando-se em seu cigarro e no vento que balançava as árvores e no tempo que escorria lento. “Eu via, antes, minha vida como um livro em branco, e esperava preenchê-lo com aventuras e grandes histórias, de amor e de ódio gratuito, encontrar grandes verdades e pregar minha história pelo mundo. Quem sabe escrever um livro. Eu queria dar certo… Mas hoje tudo parece um torpor, uns rabiscos e esboços de caras no papel de impressões enganosas, um confessionário meia boca regado a um chuvisco melancólico de grandes esperanças desfeitas. Me pergunto se alguém consegue ‘dar certo’…

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“Tava pensando também se não me falta um deus. Alguém ou alguma força maior em que me focar e ter fé de que vai me auxiliar e guiar, sabe? Eu ando tão perdido… Haha, tipo uma nota de cinquenta contos no mar. Uma prima minha encontrou uma boiando uma vez, quando éramos crianças. Ela está bem hoje em dia, eu acho. Cada um foi pro seu lado… Ou melhor, ela foi, eu me sinto estagnado naquela infância ainda, esperando as ondas trazerem dinheiro flutuando até mim, trazerem uma chance. No estado em que estou aceitaria sorridente uma moedinha que fosse. “Ao mesmo tempo me sinto tão ridículo por reclamar… As coisas deram certo, de certa forma, posso até dizer que minha vida é boa, que tenho o que preciso. É que eu não sei o que fazer com essas coisas ou com essa vida. Eu é que não dei certo. “Mas como se faz para dar certo? É só ir aceitando e sorrindo e agradecendo? ‘Fazendo limonada’ como se diz? E se eu não gostar de limonada? Que é que eu faço com os limões senão espremê-los nos meus olhos para tentar derrubar algumas lágrimas e, assim, esvaziar um pouco desse mar morto que carrego? “Tenho a impressão de que se começasse a chorar, se conseguisse, haveria um dilúvio de verdade.” Com um pouco de dificuldade ele se sentou no parapeito da janela, uma perna para o lado de dentro e a outra balançando lá fora. Quis dizer para tomar cuidado, mas fiquei quieto. “Eu só queria saber o porquê de toda essa minha inquietação. Eu queria a paz de mim. A paz do fim.” Acendeu outro cigarro e ficou em silêncio, e suspirava. Eu me inquietei e fiquei em pé, mas não ousei me aproximar. Ele apenas me olhou com olhos esverdeados e vazios, meio marejados.

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“Dizem também que ‘a prática faz a perfeição’, mas eu não tentei o bastante? Não tentei viver um pouco de cada coisa? E digo que mesmo que tenha sido pouco, foi intenso a cada vez. Não fui paciente o suficiente? Eu achava que teria uma daquelas epifanías e de repente saberia… Saberia os comos e os porquês, mas não sei nada. Acho até que desaprendi aquilo que todos sabem por instinto… Só me restaram as vontades, e mesmo essas, eu sinto se acabando. “Só sinto vontade de dormir, de passar dias inteiros deitado deixando o tempo escorrer sobre minhas pálpebras. Só levantar para ver o Sol se pôr, e para aquela última hora antes do Sol nascer, quando a bruma da noite começa a desvendar a cidade sonolenta. Voltar a dormir quando o mundo acorda. “Tenho vontade também de ver a Aurora-Boreal. Uma tensão sexual de ser imaginário. E de, por uma ultima vez, me lançar ao mar. “Você acha que eu enlouqueci? Eu acho é que estou vendo e sentindo a vida em seu estado mais bruto e puro, como se retirassem os véus. A minha vida, pelo menos. Mas talvez ela seja louca mesmo.” Como se despertasse de súbito, ele jogou o cigarro pela janela, entrou de volta, com os dois pés no chão de tacos, me olhou diretamente nos olhos. “Desculpa, acho que falei demais. Mas eu precisava, você sabe… Nem deixei você falar. Quer me contar alguma coisa?” Silenciei. EDUARDO HENRIQUE VALMOBIDA nasceu em Jundiaí, interior do Estado de São Paulo, e atualmente é refugiado na capital, onde cursa Letras na Universidade de São Paulo. Aos vinte anos, ainda se prende à cor azul, resquício da infância, assim como à figura do mar, que reverbera tanto em sua escrita como no cotidiano banal. | EDWARD.HV7@GMAIL.COM

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DESASSOSSEGO DANIELLE FULLAN |Belo Horizonte, MG.

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Ela odeia arrumar as malas. Falta-lhe o necessário para fazê-lo: paciência, organização e espaço. Coragem ela até tem. O que a tornou precoce em muitas coisas e a adiar outras tantas. A cortina verde e pesada deixa o quarto ainda mais abafado. Esses cachecóis e casacos também não combinam com o verão que engoliu a primavera. Sabe que provavelmente eles nunca mais serão usados, mesmo assim se recusa a deixá-los para trás. Sempre deixa algo para trás, normalmente coisas que não enchem uma mala, mas pesam sobre os ombros. Dobra, enrola, amassa e desiste. “Se é pra sofrer, que seja de uma vez”, pensa e se apressa. O Sol que não se põe antes das 22 horas só aumenta seu desassossego. Ela não quer um dia mais extenso do que sua angústia. Quer noite, sua insônia contumaz. Tira o calendário da parede. Faltam três dias. Fecha os olhos e verifica de novo. E ainda faltam três dias. Pensa na quarta-feira, suspira. Quer que ela chegue logo, quer carregar as malas pelo metrô sem escada rolante e sem nenhuma gentileza. Quer pesar a bagagem e constatar que um ano de sua vida é feito de 40 quilos de roupas e livros. Quer passar a madrugada no aeroporto, lendo, fingindo que está tudo bem. Quer dizer à bientôt, Paris! com o pesar de uma lista de coisas que gostaria de ter feito e não fez. Logo alcança a quinta-feira. A troca de avião em Lisboa terá o tempo necessário para que ela se perca pelos corredores e se desespere com a possibilidade de ter que pagar outra passagem. Chegará atrasada ao avião, deixando o óculos cair. Cogita usar as lentes e interrompe os próprios pensamentos lembrando que os olhos ficam secos quando voa. A

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garganta também. Decide não beber água porque não vai pedir licença ao vizinho de poltrona para ir ao banheiro. Vai fingir que dorme, sem papo com estranhos enquanto repassa mentalmente todas as frases a dizer quando encontrar a família. Quem veio? Quem abraçar primeiro? Vai chorar? Alguém ligou para ele? Ele ligou para ela? A verborragia livre da distância e do passé composé. O jetlag é seu trunfo para quando a conversa ficar mais séria e ela não souber o que dizer sobre o que vai fazer daqui para frente. E o calor. Aqui o calor atropela o inverno. Ela olha aquela mala cheia de cachecóis e casacos que não fazem nenhum sentido aqui também e que a despertam do delírio para a realidade aflitiva de uma mala por fazer. Ela, que vai embora na quarta-feira. Ela, que odeia arrumar malas.

DANIELLE FULLAN tem alma lírica, coração melancólico e cabeça dura. É jornalista e letrista, amante das intermidialidades. | DANIFULLAN@GMAIL.COM

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M. DA TRAVESSIA ABRUPTA WILSON NANINI | Botelhos, MG.

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“eu de porco invés de alma” o ainda árduo sol nos olhos de M. já morta falavam – o aborto malfeito: “o feto para sempre encruado me fala em dialeto de demência sobre minha meiguice estagnada (morrem velhas e anoréxicas minhas muitas princesas enjauladas)” ela a defunta menininha cardápio de cópulas mendigas boneca de pano violada a preço ínfimo (por simulacros de éden várias vezes acesos em latinhas de alumínio) eva ofídica “sei: a carne é mera via para que o desejo evole-se...” ... evole-se embrenhe-se evada-se ora não canta a ave migratória

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se estatelando de encontro ao automuro subterrâneo soubesse dizer diria “a vida me foi tão efêmera como um fósforo”

WILSON TORRES NANINI é mineiro de 1980, vive em Botelhos/MG . Autor dos livros Escafandro (Patuá, 2015) e Alcateia (Patuá, 2013). | WILSONNANINI@GMAIL.COM

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SEJAMOS CÚMPLICES EDSON DUARTE | Campinas, SP.

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Sejamos cúmplices da trajetória da vida. E nunca mais esqueçamos que um dia o voo vem: sem asas e sem nenhum artifício. Sejamos cúmplices sem culpa protocolada em cartório ou álcool que nos sustente. E, sendo assim, tudo amacia, tudo declara que nada vale mais a pena do que o definitivo silêncio. Em toda busca há isso do perder-se em si e o saber-se vela ao mesmo vento. Lembrança sempre presente sem precisão de apropriar-se da palavra inexistente. Vacinar-se contra a solidão, ausência de si mesmo, estar ao léu, planta que nasce e cresce em qualquer lugar, seja uma terra árida, seja uma terra insana, mas onde sempre se nasce. Estejamos assim nada suplicantes de desejos, que haja, sim, o instante seguinte, que nada seja adiado, que não haja nenhuma súplica, que nós possamos habitar o tempo sem um contorno que seja tão explícito. Sem tanto corpo em que percorremos o espaço inútil e apertado, que susto, de nosso sentimento. Nunca conhecemos bem o sabor de construir lentamente o alicerce de um destino que a si mesmo se contempla. Seremos mais uma semana, gratuita, meses, anos, e só assim é o tempo. Coisa fácil. E só assim os segundos se refazem, minutos que se completam, sacrificando os dias, e os sonhos sendo os fios dos quais tudo se tece. A cada dia um dia beija a boca de um novo dia. E assim continuamos a vida, seres singulares e anônimos. Na porta de entrada há uma luz que desconheço. Isso me inspira medo e confiança. Assusta. Não é possível descrever as cores, são como que um milagre em susto, coisa encontrada feito um impossível contorno de um corpo que agoniza em minha frente. Não é preciso dizer mais nada.

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Esforço-me para ser claro, direto, objetivo. Mas é quase impossível fazer um trajeto, um plano que se siga sem nenhum desvio do planejado de início. Impossível não calar diante de tanto desperdício. É possível, é preciso ir um pouco mais além, sem controlar tudo, sem uma direção que nos diga os caminhos seguros da existência. Que não se peça nada. Que não se implore. Nem se esmole um pouco do prazer vendido na liquidação da esquina. Que nada disso que se fala tão certo, tão correto, seja a única opção sensata de se livrar do perigo. Que não haja isso de determinar de antemão a polêmica do encanto. Que nada seja tenso, embora intenso e chama, que nada seja preparado feito prato pronto, fast food, que nada seja o querer assim determinado e justo. Coisa pronta. Coisa fria. Roteiro definido. Domingo à noite. Definitiva sociedade com o já visto. Sejamos cúmplices da fúria. Do afogamento dos sentidos. Do dilapidar todos os bens, desejos devastando tudo, línguas de fogo incontroláveis e insanas. Sejamos cúmplices do desastre. Da catástrofe. Da ruína.

EDSON COSTA DUARTE estudou Letras na Unicamp, onde também fez mestrado sobre a obra de Clarice Lispector. Entre os anos de 1992 a 1996, organizou o acervo documental da escritora Hilda Hilst, que foi negociado em duas partes com o Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio”, Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, em 1995 e em 2002. Em 2002, mudou-se para Florianópolis para fazer meu doutorado, na UFSC, sobre a poesia de Hilda Hilst. Desde 2006 voltou a morar em Campinas. Entre 2007 e 2009, fez um pósdoutorado sobre a prosa de Hilst, sob supervisão do professor Dr. Jorge Coli, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp. | DUARTEAZUL@IG.COM.BR

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O XEQUE VERDE PEDRO SILVA SENA | Lisboa, Portugal.

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1 Luísa vai sentada à janela de um dos lugares traseiros do 32 – serviço urbano que sobe a avenida em esforço: um rasto evanescente de monóxido de carbono. Ocupa-a uma mensagem ao smartphone cor de prata, Olá. Vou agora à aula gabinete c o xeque verde, tou nervosa, preciso dum 16! Dp ligo beijos fofa L, passam-lhe despercebidas as acácias floridas, a limpidez aguda do céu de Junho, a sem parança nos passeios. O autocarro aproxima-se da berma. Quando ela se levanta para sair, olhares apreciam-lhe o viço desenvolto e narizes surpreendidos sentem-lhe o odor dos cabelos. 2 Luísa chega atrasada ao Instituto, já passou das quinze um quarto de hora. Mas não leva muita pressa; os professores fazem pausas entre aulas de gabinete – é o cigarro e o café, a traça do estômago, as conversas de departamento, o interesse inesgotável dos alunos empenhados. O professor está ao balcão do bar. Luísa cumprimenta-o com alguma timidez. O sorriso dele é cortês, Olá Luísa. Dê-me cinco minutos, pede-lhe ele, a chávena do café suspensa a meio caminho entre a boca e o balcão transparente da vitrine refrigerada. Assente e afasta-se para a porta do pátio, que é uma cortina de luz cegante. Senta-se num banco de madeira sem espaldar, debaixo dos placares envidraçados onde são afixadas as listas das avaliações, e tira da mochila o maço de cigarros prateado – o aviso anti-tabágico negreja como um obituário de página de jornal.

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3 A luz crua assenta-lhe bem na pele cor de chocolate de leite, a qual rebrilha nos ombros magros descobertos pelas alças. Já deve ter ido à praia no Algarve, de onde é. Ele apaga o cigarro num cinzeiro de vidro e apressa-se para ela, jovial, Então, está pronta? Luísa diz que sim e sorriem de alvura os seus dentes certos, os olhos dele fixam-na castanhos-mel e intensos. Entram no gabinete, ligeiros e silenciosos, e tomam lugar junto à janela. Ele tira uma pasta de dentro da mala de cabedal, abre-a, procura algo na desordem de fotocópias, ofícios, livros. Ela aguarda, hesita-lhe a atenção entre os gestos dele e o brilho azulado do pátio. Os gabinetes do Instituto são rectângulos exíguos de dimensões idênticas, alinhados quase anonimamente – não fosse o nome de cada docente estar afixado, em placa discreta, à altura do olhar que o procure – e afastados das salas de aula. O Instituto é um edifício quadrado de três pisos, construído em ferro, cimento e vidro, sobre um desnível da colina. No interior o sobredito pátio, um anfiteatro relvado, chão de calçada, árvores de porte. Dentro do gabinete foram colocadas duas secretárias, uma diante da outra. As paredes têm um forro de livros, dispostos sem ordem aparente em estantes de madeira; há cartazes de colóquios e de conferências afixados assimetricamente, prateleiras, secretárias de escritório e computadores personalizados com objectos pessoais: pequenas esculturas em barro e em pau-preto, fotografias de familiares, de amigos, paisagens, postais, desenhos escolares de uma criança, traços coloridos ainda incertos: o sol verde eriçado, casas tortas de janelinhas amarelas, gente sorrindo em muitas cores acenando, automóveis vermelhos, autocarros alaranjados, nuvens de feltro azul claro. Ele começa a ler as anotações ao ensaio – os gestos contidos e suaves das mãos largas e delgadas, os maneios da

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cabeça e os trejeitos da boca, acompanham o discurso numa coreografia serena: O texto é bastante fluído, as frases estão geralmente bem construídas, as ideias são expostas de uma forma clara e concisa, articulada, embora pudesse recorrer de mais exemplos que ilustrassem os argumentos (sublinha). Por fim, demonstra o conhecimento de um vocabulário alargado e aplica-o devidamente. (breve pausa, sorriem) E agora gostaria de discutir consigo, de uma forma mais detida, alguns pontos menos claros que assinalei no seu texto. 4 Luísa

defende

os

seus

argumentos,

levanta

dúvidas,

reconhece

imprecisões e incoerências. O professor, atento e exigente, confirma gradualmente a nota que pensou atribuir ao ensaio; não só a aluna é inteligente e empenhada, como consegue exprimir estas qualidades; raciocínios escrito e oral pertinentes e muito bem articulados. A aula de gabinete está quase a terminar. Luísa, numa excitação feliz, expressa-se com viveza, ri com frequência – ele tem um humor culto mas sedutor –, os dois fumam descontraidamente, de pernas cruzadas. Ele tem uma polaróide colada à moldura do écran do computador: os rostos dele e de uma mulher brilham em sorridências num fundo negro. Fotografia de casal: deve ser a namoradinha. Ou a mulher. Ele interpreta-lhe a mímica de quem está à vontade, de quem adivinha um bom resultado. Os cabelos de Luísa são cor de amêndoa, muito curtos, quase da tonalidade dos olhos. A tee-shirt de alças, alva e apertada, alteia-se sobre o peito solto e morre-lhe às calças de linho escuro. Sandálias de couro calçam-lhe os pés pequenos e morenos. Terá ela os joelhos tão bonitos quanto os pés?

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5 Quando o professor a informa do resultado da avaliação, Luísa sente uma vertigem agradável, tem vontade de saltar da cadeira e enterrar as mãos naqueles cabelos cor de cinza. Então Luísa, o que vai fazer? Comemorar com os amigos? Ele sorri dois sorrisos. Outra vertigem, visceral, segundos: polaróide estragada, branca e aquosa como leite: ela soergue-se repentinamente e beija-o, com lentidão e tremuras, nos lábios secos. Ele fita-a sem espanto. Levanta-se sem pressa, tranca a porta, cerra os estores, e volta a sentar-se diante dela.

PEDRO SILVA SENA é tradutor, editor da revista de poesia Inefável e autor do blogue Contrabandos. Tem publicado poesia (Cancioneiro do Absurdo [1999] e Poemas de Cal [2004]) e prosa (Joel, 2015) no espaço da língua portuguesa, em diversos suportes, do livro ao ebook, passando pela colaboração em revistas (DiVersos, Piolho, Incomunidade, Sibila, etc.) e antologias (Canto do Mar (2005). | PEDROSILVASENA@GMAIL.COM

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TINTA VERMELHA SAMUEL H. DIAS | MUZAMBINHO, MG.

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Eu abro minhas asas, querendo ir em direção ao vasto céu azul. Mas até hoje não encontrei respostas para minha terrível indecisão. Quando acordo pela manhã, eu vejo aquela imagem nossa entre belos campos floridos, imaginávamos que os dias seriam eternos. (Eu quero morrer) E continuo condenado a dizer a resposta mais óbvia, que ela mesma pode obter de seu coração envenenado. Quando então despertar do coma, será que serei como todos os outros que temem a verdade que incomoda seus ouvidos? Não existe a resposta que você deseja e a partir deste momento me diga apenas o que quero ouvir, meu egoísmo grita. Eu levei um longo caminho para perceber que todos ao meu redor estavam aplaudindo a ignorância que me machucava. (Eu quero viver) Chegarei ao fim desta indecisão com a resposta que apenas os outros desejam obter, mas guardarei em meu interior a verdade. Mesmo que se decomponha... Voe alto e alcance os céus.

SAMUEL H DIAS é colaborador frequente da Subversa e dispensa biografia. | SAMUELHENDIA@GMAIL.COM

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SOBRE FRANCISCO BEN | “Da arte e suas linguagens”, por ele mesmo.

A arte pictórica é uma linguagem; a música é outra linguagem e é assim também com a escrita e a dança. Ainda existem as canções que utilizam duas destas linguagens; o teatro e o cinema unem todas elas. Este o poder da arte, dona de várias linguagens para que nenhum ser humano fique fora de seu alcance, deslocando-o de seu cotidiano para projetá-lo ao mundo fantástico da alma. A linguagem e a arte são frutos da necessidade especificamente humana de comunicação. Há quem discorde disso pelo fato de sua subjetividade ser, por vezes, intrínseca ou vaga, mas se a música não é objetiva como a palavra, o que seria da poesia se toda palavra fosse objetiva? Na verdade, tudo depende de quem ouve, de quem lê e interpreta. A priori, é o sentimento ávido por comunicação que se expressa através de símbolos (convencionais ou não), gestos, sons e imagens, por muitas vezes inusitados e inéditos. A linguagem é esta manifestação da alma, no entanto a arte é empírica, resulta de experiências e práticas que a tornem esteticamente comunicável com o sentimento alheio. Pela complexidade de sua origem - uma essência do espírito, que é o sentimento - talvez uma linguagem não consiga expressar outra linguagem em sua plenitude. Tal dúvida surgiu quando um amigo, que nasceu deficiente visual, pediu-me para definir como é uma cor, qualquer cor. Depois de infrutíferas tentativas, descobrimos a impossibilidade de

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explicar em palavras o que é uma cor para quem não tem nenhuma referencia visual anterior. O marrom é da cor da terra, o amarelo pode ser da cor do Sol ou da laranja, que já é outra cor. O Azul é um matiz da cor do céu e pode ser a cor do mar, que, por muitas vezes é verde, da cor da mistura de matizes que colore as folhas das árvores, sem falar da infinita gama de tonalidades. Portanto, nada melhor que a música para falar por ela mesma, afinal música não fala, mas toca. Nada melhor que a palavra para defender todas suas vertentes. Nada melhor que a cor e a forma para expressar na íntegra a cor e a forma. Francisco Ben | franckbeneto@gmail.com | Facebook

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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