Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

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SUBVERSA VOL. 3 | N.º 7 | nov./2015

ISSN 2359-5817

Ilustrações SHARISY PEZZI

MILTON REZENDE CAROLINE POLICARPO MAURICIO LIMA ERIC COSTA GIULIANA BRUNI FERNANDO RAMOS ABÍLIO PACHECO ALEXANDRA LOPES DA CUNHA ESTEVAN KETZER MARIA JOÃO VAZ SAMUEL H DIAS


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 3 | n.º 07

© originalmente publicado em 01 de novembro de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações SHARISY PEZZI |sharisy.pezzi@gmail.com | SITE

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realida


SUBVERSA VOL. 3 | N. º 7 | NOV/2015

ISSN 2359-5817

MILTON REZENDE | GOLES DE LEVEZA | 06 CAROLINE POLICARPO |PELO CAMINHO| 08 MAURICIO LIMA | ARANHAS | 13 ERIC COSTA | CHRONOS| 18 GIULIANA BRUNI | VERMELHA DOR |21 FERNANDO RAMOS | KARDEC versus SADE | 31 ABÍLIO PACHECO | MEDITAÇÃO AO TOCANTINS| 34 ALEXANDRA LOPES DA CUNHA| MINERAL | 40 ESTEVAN KETZER | MÍSSIL-FÓSSIL (2): A CONFISSÃO DO QUE NÃO SABE| 43 MARIA JOÃO VAZ |CATARSE | 51

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EDITORIAL “Bem-vindo à nossa câmara cibernética de mil aninhos!” Estevan Ketzer

A Subversa tem uma relação especial com o tempo. Ela só existe como resultado de um tempo de maturação e compromisso literário. Só existe porque acreditamos que a literatura é, em si, um relógio à parte no mundo, que vai marcando seu ritmo lenta e substancialmente. Ela existe, também, porque acreditamos que a literatura está nascendo o tempo todo. No Brasil, em Portugal e onde quer que exista o desejo de produção e expressão através de uma forma nova. O penúltimo mês do ano inicia e o Volume 3 ainda anunciará mais três números até o final de 2015. Iremos até o número 10, firmes e perseverantes, dedicando um tempo linear e sistemático para desenvolver os planos de crescimento e expansão da revista. E esse é um tempo objetivo, cronológico, marcado em números, dividido em semanas, dias, minutos e fusos. Ainda que com alguns tropeços, eis o tempo da Sub. Turbulento, mas constante, como nas profundezas mais desconhecidas do Atlântico. “Só vai levar alguns milênios, alguns universos”, escreve Caroline Policarpo, uma das autoras deste número. “Rimos, por fim, ao dizer com um sorriso tão temporário como nós mesmos que matamos por costume e tradição”, você lê na crônica de Eric Costa, que já é da casa. E assim vamos andando, a favor do tempo, preenchendo-o com páginas, versos e imagens que, hoje, são assinadas pela gaúcha Sharisy Pezzi, de Caxias do Sul, uma das regiões mais frias do Brasil. As temperaturas lá, no inverno, se aproximam às do inverno português, que vem se instalando, aos poucos, no tempo do continente europeu. Estamos do lado de cá e do lado de lá. Satisfeitas em apresentar uma revista que desliza sobre o tempo e permanece nele, acreditando na sua verdade. O maior compromisso que podemos ter com o tempo é simplesmente não pensar nele. As editoras.

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014) Adquira e apoie o crescimento da revista. 5


GOLES DE LEVEZA MILTON REZENDE | Ervรกlia, MG.

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chás & cicatrizes aromas em lata com ferrugem (sachês e receios) o intervalo do trajeto entre o chão e o travesseiro (lapsos e hiatos) melhor ser um homem deitado que um andarilho de joelhos, e bêbado.

MILTON REZENDE possui nove livros publicados e alguns pássaros. | MILTON.REZENDE@YAHOO.COM.BR

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A CAMINHO CAROLINE POLICARPO | S達o Paulo, SP.

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sim, estarei aí, vou chegar estou indo

assim que a tempestade amainar um pouco quando o incêndio for apagado quando o tempo acabar, ressurgir, estilhaçar-se na finitude das pilhas e baterias que movem relógios e eu finalmente estiver livre quando o mapa mostrar o caminho certo e meus pés forem capazes de segui-lo

só vai levar alguns milênios, alguns universos, eu só preciso atravessar uma ponte sobre um oceano num outro planeta que orbita outro sol

só preciso atravessar a rua

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na faixa cada listra branca bem maior do que pode um passo só preciso saltar para a próxima listra e tentar não cair no abismo escuro do entre universos a distância é de centímetros segundos anos-luz e milênios infinitos

agora somente uma porta sob a qual vejo abismos a maçaneta dura, invencível, muralhas labirintos no trajeto até a entrada no próprio obstáculo que é a chegada estando aí deixo de estar a caminho

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se acontecer de eu estar aí se tiver chegado lembre-me de que esqueci do resto de tudo das chaves diga que não devo arrombar nem chamar mas entrar simplesmente no silêncio calmo da certeza sozinha segura sabendo se eu chegar achando que sei que o tempo existe e que o mapa está certo se eu pensar ter encontrado me lembre até que eu vá e volte e me perca de novo

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para me achar não na ponte, mas no oceano e no buraco entre as faixas até ter me tornado também labirinto e ser capaz de todos os caminhos sem sabê-los

se eu chegar achando que ficar resolve não me deixe ficar para que um dia eu fique mesmo, por inteiro, sem pedaços de mim nos caminhos não percorridos mas se por acaso eu não voltar: me desculpe

CAROLINE POLICARPO é autora do livro de poemas Palavras Andarilhas, publicado em 2015 pela Penalux. Estudante de letras, participou de várias coletâneas de contos, incluindo Sonhos Lúcidos, Utopia, Ponto Reverso e King Edgar Hotel. Também tem publicações nas revistas Trasgo e Friday. É fascinada por astronomia, aspirante a desbravadora de universos (inclusive os inventados) e escreve por necessidade existencial. | CAROL_POLICARPO1@HOTMAIL.COM

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ARANHAS

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MAURICIO GOLDANI LIMA | Novo Hamburgo, RS.

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Enquanto pegava os itens para o rango da madruga na geladeira, senti uma cosquinha no pé. Percebi após alguns segundos que uma pequena aranha o havia percorrido e agora sapateava no tapete. Cocei o peito de um com a sola do outro, peguei o pote de margarina e tentei esmagar. Não a vi mais. Presumi que estivesse morta. Coisas que não vemos estão mortas. Me dei conta que esta não era a primeira vez que havia visto uma dessas aranhas. Aliás, estava ocorrendo com certa frequência. Eu sentia coceiras no colchão enquanto dormia, tocando violão no sofá velho, na cozinha, sentado descalço e comendo. Eu tava sempre me coçando e com pequenas feridas no corpo. Estava sendo comido vivo por pequenas aranhas que haviam migrado para a sujeira de minha casa e agora espreitavam à espera de mais um pedaço meu. Foi uma epifania. Ao colocar o pote de margarina e os saquinhos plásticos com frios na mesa, meu braço tocou uma teia. Ficou enroscada um bom tempo em mim, confirmando o fato. Lembrei também que quando entrei em casa havia me enroscado em outra, e atrás da cortina do chuveiro certamente ainda está lá uma intrusa ignorada, que sempre vem me cumprimentar quando ligo o chuveiro, saindo daquela crosta indistinguível acumulada que tinha na borda que tocava o chão. Sentia-se em casa. Era provável que eu andasse sempre com algum pedaço de teia de aranha grudado em mim como feridas, mas eu não saberia, não tinha espelho. E estava sempre desligado. Como será que eu estava? Todas indagações e realizações diluíram-se na urgente vontade de comer um sandubão maroto. Voltei ao que havia anteriormente me disposto mentalmente a realizar. Pão. Ok. Margarina. Ok. Presunto. Amareladinho, meio melecado, mas ok. Queijo. Bordas ficando esverdeadas?! Juro que nunca havia visto.

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Também, vencido dia 27. Me lembrou aqueles queijos fedorentos importados. Me senti chique. Por um momento considero experimentar os fungos exóticos importados de países exteriores e fermentado nas mais profundas cavernas orientais por anos que estavam ALI!!! DE GRAÇA!!! Só pra mim. Fino demais. Eu era mais povão no quesito rango. Tirei as bordas. Queijo. Ok. Orégano por cima. Pra dar aquele toque gourmet...Só faltou um nome legal: Sandubão Sensação!!! Aliás, Sensational Feelings Sanduba, pra dar toque americanizado. E vender por 15 conto em food trucks nas festas vegans. Ah, não!!! Tinha presunto e queijo. Porra! Que merda comiam os vegans? Festa? Que tipo de vida se comemora se não come presunto?! Melhor esquecer essa ideia...não ia dar certo mesmo. Fecho o sanduba. Me acomete um súbito tesão por uma torrada. O queijo derretido, as bordinhas tostadas do presunto, o pão quente e torradinho. Coloco na torradeira. Fecho. E, ansioso, começo a andar de um lado para o outro da casa, mordiscando o corinho dos dedos, já que as unhas eu havia roído ontem. Gastar com tesourinha era um desperdício ridículo!! A água tava faltando, e do jeito como abusavam de tesourinhas elas logo haveriam de acabar também e aí eu estaria do alto do meu trono com unhas roídas e todos iriam querer meus dentes, mas não! Os dentes são meeeus! MEUS!! Não, pera, tem algo errado. Ah, sim!!! A torrada! Corro ávido para a torradeira. Abro. Lá jaz o pão. Branco. Imaculado. O queijo estático e frio abraçado no presunto. Olho a tomada. IDIOTA!!! Tinha esquecido de ligar. Ligo. Penso em preparar um copo de Nescau com leite, mas a geladeira sempre fazia um barulhão quando abria, porque uma parte da porta estava levemente quebrada por dentro. Normalmente isso não fazia a menor diferença, mas quando chegava aquela época do ano que eu não descongelava a geladeira por uns 6

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meses, o gelo e a rachadura na porta se encontravam quando abria. Era um barulhão que só! Eu precisava descongelar. Mas só fazia isso quando o gelo impedia o fechamento da porta. Além do mais, eu não tinha tempo pra isso. Tinha que fazer a torrada. Ah, um Nescau enquanto isso até que cairia bem. Mas tinha o barulho e era madrugada, eu não queria acordar os vizinhos. Foda-se. Pronto! Abro a torradeira. Fumacinhas me convidam para dançar. O queijo se derrete por mim, o presunto ruborizado me olha de canto, (QUE PÃOOOOOOO!). Pego a faca na mesa. Peraê! Não me recordo qual faca suja é a de anteontem e qual é da semana passada. Via das dúvidas, pego a última limpa na gaveta. Higiene é importante. Retiro o alimento do altar, bordas de queijo grudam na torradeira. Retiro-as com a faca e me deleito, é um bacanal. Um pedaço de queijo cai ao lado, em cima do micro-ondas que ficava em baixo da torradeira e em cima do forno. Era legal tudo empilhado assim em cima do armarinho, parecia um totem, um aparelho único, multifuncional e imponente. A verdade é que era muita mão ficar escolhendo lugar, então joguei tudo ali mesmo. Mas a mística deixa a história mais bonita. O problema era aquele cantinho ali onde o queijo tinha caído. Era meio que um cemitério de pedaços queimadinhos de queijo que caíam ali e eu não me arriscava a comer pela poeira acumulada que eu não tirava. Aquele pedaço estava condenado. Não adiantava chorar. A vida ensina valiosas lições. Bola pra frente. É esperar a borda torrada do próximo sanduba. Vou para a cama. Enquanto como, uma aranha me pica. Pode ter sido uma pulga. O Barba era foda, não dava banho nunca nos gatos. Vivia com a mulher e o filho naquele ferro velho. Sobrevivente de uma miniatura de um cenário pós-apocalíptico criado por ele mesmo. Um gênio. Louco. Se bem que entendo. Tentar manter a casa limpa e

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organizar a vida ao mesmo tempo pode levar um homem lentamente a uma loucura irreversível (assim como matar aranhas todos dias, ou ser comido vivo). É uma batalha que não se pode ganhar. Agulhas no palheiro, insetos pelas frestas escuras do quarto. Milhares de seres se alinhavam, quebravam a formação e se espalhavam, espreitando. Milícias microscópicas e inteligentes. Tão pequenas que nem pareciam batalhas. Mal apareciam, raramente vistas. Pensava nisso enquanto deitado comia. O exército silencioso ganhava terreno, pouco a pouco. Suculento, desabo como migalhas de pão na torradeira do colchão. Sonhos saem como fumacinha do abraço do sono. Milhares de olhinhos me fitam no escuro. Sedentos. Feridas me deixam crocante. No ponto. Patinhas se esfregam como um lamber de beiços enquanto dou a última mordida. E fecho os olhos mais uma vez. Satisfeito. Pronto.

MAURICIO GOLDANI LIMA não fala em terceira pessoa, pois isso é coisa de louco. Era um mosquito que escrevia para se livrar do amontoado de papel que possuia, mas foi comido vivo por aranhas. Isso foi o que restou.

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CHRONOS

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Eric Costa | Currais Novos, RN.

Quando se procura “tempo” em sites de busca – quase oráculos nos

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tempos atuais – mil respostas vêm à tona, com a única característica em comum de fuga do essencial. Nuvens, céu aberto (ou seria tempo firme?), Sol, tempestades em quase perfeita e anárquica simetria como nunca dantes visto. Elementos aéreos de nosso referencial – já que tudo se faz em torno e depende deles. Sinal adequado, talvez. Personagens esvoaçantes do real sentido que se procura ou pelo menos se deveria procurar. Muitos caminhos convergem ao mesmo lugar ao passo que tantos outros divergem do essencial e imprescindível: do tempo, em essência e crua disposição. Cá estamos. Ora sim. Ora, ao sabor do vento e do imponderável, não. Há cordas no universo – mas, afinal, o que ele é? – e outras incomensuráveis variáveis. Cá estamos ao sabor do desconhecido que julgamos conhecer, explicar e prever. Mera afronta a uma insignificância que nasce e morre conosco, rapidamente colocando todos no pé de igualdade em que sempre estivemos, mas da qual nossos bilhões de neurônios afastaram com maldosa astúcia. Somos apenas um pouco de energia. Um resto de pó das estrelas, talvez, e nada além disso, no mesmo estágio do ambiente que nos cerca – que de tudo vemos muito pouco ou quase nada. Achamos que medimos o tempo. Sequer medimos nossa própria temperatura. Como ter certeza da agitação de partículas que nem vemos, não é mesmo, Heisenberg? Só estimamos. Estimando, idealizamos a passagem de um tempo cuja ação sequer carrega um verbo exato. Mas como dizem as páginas do livro na cabeceira, ele - que teimamos em personificar – não passa pois simplesmente talvez seja a própria existência universal.

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São nossos relógios, teimosos no sonho de medir o desconhecido - que passam, andam, vêm e vão. Perante – chronos, divergimos da medida. Apenas convencionamos e chutamos em busca dele, com a precisão da trajetória de uma bola no vácuo. Rimos, por fim, ao dizer com um sorriso tão temporário como nós mesmos que matamos por costume e tradição. Solenemente – quiçá sorrateiramente – é ele que nos enterra, porém, como com sabedoria um atemporal (!!!) de Assis certa vez nos apontou. Ah, quantas ideias implícitas há, assim, que embarcam a meio caminho em linhas "inocentes e puras".

ERIC COSTA é acadêmico de Medicina na Universidade Federal do Maranhão. Vê o escapismo dos seus dias, às vezes solitária, no futebol, na música, literatura e em sua própria introspecção. | ERICMDCOSTA@GMAIL.COM

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VERMELHA DOR GIULIANA BRUNI| Bagé, RS.

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O quarto estava iluminado. Era dia. Acho que o Sol mal tinha se posto e eu não conseguia engolir a saliva, meu corpo tremia frio. No quarto do segundo andar da casa, com a sacada de frente para a rua, eu olhava para meu marido. Leal. Leal é moreno, tem olhos pretos, cabelo com cachos largos. Leal sempre foi uma pessoa boa. Nos conhecemos há cinco anos no bar da faculdade, começamos a namorar e acabamos nos casando. Na verdade, apenas moramos juntos no piso superior do sobrado. Na parte inferior, moram minha mãe e minha tia. Daí quando se sentem sozinhas, sobem para conversar conosco. Mas, nesse dia, ninguém poderia entrar naquele quarto. Vi um rosto esbranquiçado e perplexo olhar para o espelho e fitar fixamente o chão. Leal, em pé, estava com uma arma na mão. Calibre 38, preta. No chão, um sujeito grandalhão, careca, vestia uma camisa azul para dentro de uma calça jeans surrada e um sapato preto de bicos arredondados. Vi sangue. Vi muito sangue escorrendo da cabeça do sujeito. Não sei por que eu estava ali, não sei por que Leal fez isso. Quem era aquele homem? Por que Leal tinha uma arma na mão? - Meu Deus, olha o que você fez! Você matou um homem! – minha voz saiu falhada, arranhada. - A gente precisa esconder esse corpo. Ninguém pode descobrir. – Leal estava sério, segurando a arma na mão. O olhar estava confuso, ele tentava pensar rapidamente. -Tranca a porta.- ele sussurrou. Os passos estavam vindo em direção ao nosso quarto. Era minha mãe, Marina. Ela é uma mulher bonita, usa cabelos que caem nos ombros, daqueles loiros de quem não envelhece. Os óculos com aros quadrados e fininhos ficam apoiados no meio do nariz fino e por trás da lente são revelados olhos azuis. A mãe é daquelas pessoas teimosas, que gostam tudo do seu jeito.

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Ela sempre convence os outros a fazerem o que ela quer. Talvez seja por isso que eu e o Leal moramos com ela, tamanha foi a insistência para ficarmos na casa. Ela dizia: “Com uma casa desse tamanho como vamos morar apenas eu e a Carolina, Alícia?” Ah, esqueci de me apresentar. Me chamo Alícia, tenho 35 anos e trabalho com vestuário, vendo roupas na casa das clientes e, vez ou outra, arranjo algum trabalho no comércio em apenas um turno. Tenho os olhos do meu pai, um castanho cor de mel, puxadinhos. Mas dizem que todo o restante sou a cópia da minha mãe. Nariz fininho, pele clara e sorriso largo. Mas não naquele dia. Naquele dia meu rosto era pálido em frente ao espelho, e minha mente se retorcia em perguntas sem respostas. Fechei a porta, girei a chave rapidamente e apertei com muita força a porta de madeira atrás de mim. Olhei para Leal. Ele largou a arma em cima da cama e, com o dedo indicador, fez sinal de silêncio, tocando levemente os lábios. – Filha, vocês estão aí? – a voz da minha mãe era animada. O silêncio tomou conta do quarto. – Cheguei agora, estou começando a preparar a janta, se vocês quiserem descer para me ajudar... - Pode deixar, dona Marina, daqui a pouco já descemos. – Leal respondeu, com a voz tranquila. Ouvi os passos dela em direção à escada. - O que está acontecendo? – sentei na cama, com o rosto tapado pelas mãos, minha voz saiu ainda mais abafada. De costas para o homem que estava estirado no chão, vi o sangue escorrer por debaixo da cama. Leal fez a volta na cama, sentou ao meu lado e, olhando fixamente a parede branca do quarto, balbuciou alguma coisa que não entendi.

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- Fala Leal. Por que você matou esse cara? Quem era ele? - Alícia, eu... – as palavras iam trancando na garganta de Leal – eu estava devendo um dinheiro para ele. - Como assim? Por que você não me pediu? Ainda mais agora que tenho dois empregos! – um grito fino saiu da minha garganta. As lágrimas iam escorrendo sem que eu pudesse segurar. Sentindo meu corpo amolecer, me dobrei sobre as pernas e chorei. –Você tirou a vida de um homem. – minha voz saía entre soluços. - Eu estava devendo um dinheiro que não conseguiria pagar. Ele era agiota e me emprestou cinquenta mil reais, só que os juros começaram a aumentar muito, eu já estava devendo mais de cem mil. Juntando o meu emprego e o teu, eu jamais conseguiria pagar! Eu não queria ter feito isso, mas ele me ameaçou, descobriu onde a gente morava. Ameaçou até matar toda a família. Ele entrou escondido aqui em casa, vi a faca na cintura dele e percebi que dessa vez era sério. Era eu ou ele. -Onde eu estava enquanto isso? – perguntei, assustada. -Aqui no quarto. A gente estava aqui, deitados na cama, conversando, lembra? Girei o pescoço lentamente, fixando o olhar na parede branca. Olhei para o chão. O sangue continuava escorrendo perto dos meus pés. -Não lembro. Eu não estava aqui. -Sim, você estava. – ele insistiu. – Mas foi tudo tão rápido. Ele entrou sem avisar, você levantou da cama e se encostou na parede, muito assustada. Ele me ameaçou com a faca. Só que desta vez fui mais rápido,

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peguei a arma que estava escondida no guarda-roupa e atirei. Não era para matar, era só para assustar. Agora não temos o que fazer. Precisamos esconder o corpo. -Tem muito sangue nesse quarto. O quarto está todo vermelho. ouvia a minha própria voz retumbar entre aquelas paredes, que me pareciam vermelho gritante. Tudo em mim gritava. Minha garganta estava seca e eu precisava engolir o choro, o medo e aquela cor vermelha horrível. - Calma, não tem. A gente precisa tirar ele daqui. – Leal respondeu, tentando segurar meus braços, que se agitavam. Ficou tudo preto. O Leal está no quarto? Onde estou? Cadê o corpo? Acordei. Esfreguei os olhos. Estava na parte inferior da casa assistindo televisão. Vejo meus pés com meias brancas descansando sobre um banquinho. Olho para o lado e minha mãe está lendo uma revista. -Oi mãe, aconteceu alguma coisa? - Não, a gente estava aqui assistindo a novela e você caiu no sono. – ela foi dizendo lentamente. -Ah está bem. Cadê o Leal? – meu corpo deu um impulso para frente. Sentei no sofá, firmando os pés no chão. - O Leal? Não sei, deve estar trabalhando. – ela respondia lentamente, sem tirar os olhos da revista.

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-Trabalhando? – levantei, afastei a cortina da janela da frente e avistei a rua, onde os carros passavam depressa. – Hoje é dia de semana? Que dia é hoje? - Terça-feira, filha. - Terça? Eu deveria estar trabalhando. Não avisei o chefe que não iria trabalhar. - Calma, já avisei ele. – ela disse, com a voz tranquila, enquanto continuava segurando a revista, entre as mãos. Puxei a revista das mãos dela. - Mãe, por que você não me acordou? Por que não fui trabalhar? – fui atropelando as palavras, formando frases antes que minha própria mente conseguisse formular as perguntas. - É que – ela fez uma pausa, ajeitando os óculos – filha, você não tem se sentido muito bem. Na última semana você tem dormido quase todo o dia e acorda gritando, acho que são pesadelos. - Dormindo bastante? Pesadelos? – levei a mão até a boca, fitei o teto. Não entendia o que ela estava falando. - Em cima da geladeira estão teus remédios. São três. Assim que te sentires mal, e tiveres pensamentos ruins podes tomar. Mas observa a ordem e os horários, estão todos marcados direitinho. - Não entendo. Você está supondo que estou ficando louca? Esses remédios são para loucura? – minha voz oscilava. Meu corpo tremia e eu estava com raiva da minha mãe.

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Subi até meu quarto. Entrei. As paredes continuavam brancas e a cama, no meio do quarto, imóvel. A grande janela da sacada estava aberta. Olhei os carros passando. Devia ser três horas da tarde. O Sol estava alto. Fitei o quarto atentamente. Olhei embaixo da cama. Onde estava o corpo? Abri o guarda-roupa marrom que se estendia até o teto. Senti o cheiro de roupas perfumadas, cuidadosamente dobradas. Não encontrei armas, nem facas. Deitei. O quarto começou a ficar todo vermelho. O chão e as paredes estavam vermelhos. Ouvi meus gritos para dentro, mas dessa vez arranhavam minhas entranhas. Leal chegou e me segurou pelos braços, me deitou na cama. -De novo, não, Alícia. Não, já vai passar.- ele gritava. Vi minha mãe com um copo de água e um comprimido amarelo. Antes que eu pudesse continuar gritando, engoli o remédio e a água. E tudo ficou escuro. O despertador tocou. Olhei para o lado. -Leal, o que está acontecendo? Por que não tenho ido trabalhar? E aquele remédio que minha mãe me deu ontem? – falei com voz tranquila, sentindo minha testa enrugar. - Não tem nada acontecendo, Alícia. – Leal falava com tom de firmeza. -Não consigo lembrar de nada nos últimos dias. Não sei o que aconteceu ontem. Mas fui visitar a Dorinha e o seu Alberto disse que ela não podia me ver, estava ocupada. Ele me olhou com uma cara estranha. – enquanto eu falava, percebia as sobrancelhas de Leal se erguendo lentamente. A testa se enrugava. A boca, entreaberta, ensaiava palavras.

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- Não é para você sair de casa. Por que você saiu de casa? – ele me segurou forte. Depressa me soltei, empurrei os lençóis e levantei da cama. - Exijo que você me explique o que está acontecendo. – gritei com ele. - Não sei do que você está falando. Pelo que sua mãe me disse, você anda estressada e pediu afastamento do trabalho para se tratar, apenas isso. – o tom de voz foi baixando. Senti que ele tentava me acalmar, mas tinha algo estranho acontecendo. – Agora preciso trabalhar. Deitei na cama enquanto ele vestia as calças e a camisa. Senti muito sono, fechei os olhos. Eu estava deitada dentro de um guarda-roupa quando acordei. Escutei alguns passos e ruídos vindos da sala. Ouvia a voz da minha mãe, da minha tia e do Leal. Eles falavam afobados, ao mesmo tempo. - Ela enlouqueceu mesmo, Leal. Não sei o que fazer com ela. – disse minha mãe. - Temos que internar ela. E depois chamar a polícia. – minha tia, Carolina, afirmava com ênfase. - Mas se ela for presa vai pirar ainda mais. – Leal, em tom sério. -Já descobrimos que foi ela que matou aquele homem. Por mais que seja minha filha, precisa pagar por isso. – Minha mãe tinha um tom de voz frio. Fiquei tanto tempo em silêncio fitando a prateleira marrom do guarda-roupa que perdi a noção de tempo. Talvez fosse dia de semana, talvez fosse feriado, talvez noite ou dia. Saí do roupeiro do quarto da minha

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mãe e caminhei até o corredor. Era fim de tarde e a casa começava a escurecer. Enxerguei muitas gotas de sangue no chão, uma atrás da outra ao longo de todo o corredor. Corri até o banheiro para buscar um pano e comecei a esfregar o chão. Eram muitas gotas vermelhas, tinha muito sangue impregnado naquela casa. Esfreguei incontáveis lajotas brancas. Quando me levantei e pude esticar o corpo, voltei os olhos para o início do corredor, e as manchas continuavam vermelhas, muito vermelhas, e fui esfregando e limpando. Minha tia, Carolina, apareceu. - O que está fazendo, Alícia? – ela parou com as mãos na cintura. - Tia, tem manchas de sangue, tem muito sangue nesse chão. Essa casa está vermelha. – minha voz ia aumentando sem que eu pudesse controlar. - Não tem nada aqui, Alícia. - Carolina gritava comigo. E quanto mais ela gritava, mais eu esfregava o chão. Leal e minha mãe apareceram querendo saber o que estava acontecendo. Eu chorava e gritava palavras que nem eu conseguia compreender. - A casa está vermelha. O chão está sujo de sangue. Aquele homem morreu. Leal e minha mãe me fitavam, sérios, sem nenhuma reação. Carolina parou de gritar. Minha voz ecoava sozinha pelas paredes vermelhas da casa. - Alícia, não tem sangue nenhum. Não tem nada vermelho nessa casa. – Leal estava bravo. E tentava me levantar do chão. – Eles devem estar chegando.- ele disse, olhando para minha mãe.

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- Eles quem? – eu quis saber. Meu olhar corria do Leal para minha mãe, e dela para minha tia. A campainha tocou. Minha mãe e o Leal me levantaram do chão. Larguei o pano. Minhas mãos estavam sujas de sangue. Vermelho, muito vermelho. Policiais vieram em minha direção. Eu não entendia o que estava acontecendo. Três homens me seguraram e me algemaram. Enquanto eles me arrastavam olhei pra trás. Leal, Marina e Carolina não expressavam absolutamente nenhuma emoção. Apenas quis gritar que Leal matou um homem, mas minha voz não saía, era um grito abafado pra dentro. Leal, parado entre minha mãe e minha tia, envolveu-as em um abraço. Entrei na viatura da polícia e bati tão forte com as mãos contra os vidros que o sangue vermelho, muito vermelho, escorria quente por entre meus dedos. Antes que o carro desse partida, avistei os três na sacada da casa. Eles cantavam e dançavam. Seus corpos se movimentavam de um lado a outro. De longe pude ler as últimas palavras que viriam deles: “Eu vou viver dez, eu vou viver cem, eu vou viver mil, eu vou viver sem vocꔹ. Agora escrevo de um lugar gelado, com tetos altos e janelas pequenas. Minhas mãos começaram a cicatrizar. E o vermelho continua aparecendo em todos os lugares. Aquela música toca todos os dias dentro da minha cabeça. Leal matou um cara. Vejo muito sangue. Vermelho. 1 – Música “Não enche”, de Caetano Veloso. GIULIANA BRUNI é jornalista, amante da escrita criativa e do jornalismo literário. Passeia entre a realidade e a ficção. Apaixonada por histórias, já produziu documentários, poemas e contos. Descobre, diariamente, que o contato direto com pessoas é que move o universo do imaginário. Autora do blog Meu Mundo e as Palavras e integrante do projeto Pessoas de Bagé. | GIULIANA_BRUNI@HOTMAIL.COM

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KARDEC versus SADE FERNANDO RAMOS | S達o Paulo, SP.

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Morte e vida coexistem tangenciais. Morte domínio do Nada. Vida morada do Todo. Planos que resvalam quase atritos tântricos. Se o Universo pode circunavegar morredouros nascituros implodir antimatéria jorrar luz ao fundo do buraco negro também poderá humano pó estelar emergir alfombras ressurgir viscoso olvidado e pequeno da seiva volátil de Eros imantar infinitas partículas sem massa até que o peso do vento eleve cordilheiras e procelas e sinapses eletrolíticas de bactérias marinhas per fluam a inteligência dos mares e os arcabouços da carne bebam consciência da nave onde o Nada volve o corpo à finitude big bang explode gozo uterino do cosmo Caos de éter fecundo zigoto de asteroides do limbo onde a fome dorme carmas morrer sonambular por vazios corredores do sonho nascer ejacular sair do coma furar

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redoma amniótica do Nada afogar em oxigênio boro metano cuspir o sal do oceano interior saltar da doce letargia fetal à surda dissonância umbilical à indissociável estranheza das mãos que levadas a cobrir tímpanos para calar maquinária em desmundo ora preferem introjetar relógio paranoico cardiovascular sou mesma paúra de Allan Poe retrofuga abissal de Cousteau tanatofobia clichê que gritava há trinta e dois mil anos nas paredes da caverna de Chauvet. [Até que chegue o último metrô esporrando luz no hímen da noite]

FERNANDO RAMOS nasceu em São Pauloem 1984. Desde 2000 publica poemas e contos, tendo textos na Revista Cult, Zunái, Germina Literatura, cadernos culturais e antologias. Compositor, assina 150 musicas, tendo parcerias com grandes nomes da MPB. Publicou ensaios no livro Os Filmes Que Sonhamos (Lume) e nos DVDs da Coleção Sergio Ricardo (Lume Filmes). Escreveu e dirigiu o longa metragem documental A Praça Pede Passagem sobre a urgência da retomada dos espaços públicos e o direito à cidade - estreia em festivais nesse ano. Escreveu 4 roteiros de longas ficcionais a serem dirigidos a partir de 2016. Publicará pela Editora Patuá seu primeiro romance: Egonia - 9 mm de Prosa. | PARAFERNANDORAMOS@GMAIL.COM

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MEDITAÇÃO AO TOCANTINS ABÍLIO PACHECO | Marabá, PA.

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debruço-me em sua amurada alto de álcool, ébrio de versos memórias das tardes quentes de olhos arenosos e rubros garganta seca de gorjeios caminhada pausada à borda pendente na ponta dos dedos a lata de líquido loiro

meu amor não me ensinou a ser simples como um barquinho deslizando nas águas dos rios que bem banham marabá

***

ergo-me cotovelos doridos olhos secos e rubis de luzes laranjadas acinzentantes do ocaso espelhado nas águas a voz não vale o verso olvido pouso dedos sob o queixo no pomo que deglute goles

meu amor quis me fazer crer na lição leve dos batelões que cortam a paisagem

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de fim de tarde em marabá

***

caminho em molejos gauches como a vida fosse toda ela essa paisagem, essa passagem de vesperal fenecendo e sigo pausados passos à borda em clima de huzun, de lennui curado/ampliado por lábios beijando a borda gelada de metal de pouco peso

meu amor não viu em mim por paralelo a certeza dos barcos e dos batelões nessas águas a marulhar

***

baixo a bauxita lixiviada o braço estende-se penso a goela regada à cevada a voz lubrificada e nova para o verso que não vem mas fica-me o aroma de malte

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e de lúpulo em levedura canto de ave aninhando

meu amor não me viu símile de certeza singela e chã em remos e quilhas seguras nessas águas tocantinas

***

balanço os braços brandos o corpo tonto e torto neste caminhar de olhos, ouvidos e boca de versos palavras, sons e pausas fito o ocaso desrubrando a tarde deixada às costas e a lâmina flúvia-chã aplainada em calmaria de criação

embarcações dispersas e ausentes viram versos livres, vorazes e já não há voz a pedir simpleza se sou todo fogo, água e ar

***

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ouço o leito lento liso ausente de banzos e banzeiros refletindo pássaros silentes em pontos e riscos pelo céu de tetro lusco-fusco difuso e de meus descompassos de oblíquos passos líricos cesuras, acentos e pausas em leve entorpecimento

ao cais adernos de retorno ressoam cadências desiguais motivos ditados aos versos a emergirem de vãos olvidos

***

esgoto todas as latinhas de amarga água aloirada preenchido a ponto de pouca noção me restar (feito fiapo de fita fina) da tarde clara e vaga e meu brado se faz aroma de fruta madura vinhada de doce azedura apurado

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o verso abole o simplório, o singelo agir, o sossego inaprendido na lâmina dágua a permanecer agora opaca

***

procuro porto e paragem um locus de líteros litros repouso a pernas e braços costas, mãos e pensamento de onde veja a noite vindo desarrelio a olhos irritados com seu manto estendido de nítidos, claros lembrares

atracação à borda das águas lentas ledas leves líricas ……………………. e sou todo linguagem

ABÍLIO PACHECO é professor universitário de literatura. Autor do romance Em Despropósito (mixórdia) (Literacidade-2013), do livro de poemas Canto Peregrino a Jerusalém celeste (Literacidade-2013). Seu primeiro destaque literário foi aos 17 anos, quando obteve o primeiro lugar nacional num concurso organizado pela Casa do Poeta Brasileiro de Praia Grande-SP. Atualmente cursa o doutorado em Literatura (THL-UNICAMP/LAI-FU-Berlin/DAAD) e é Assistente Editorial (freelancer). | ABILIOPACHECO@GMAIL.COM

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MINERAL ALEXANDRA LOPES DA CUNHA

| Porto Alegre, RS.

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Talvez, talvez. Nenhuma certeza. Evade-se, invado-o: intrometo-me em sua vida, imponho minha presença. Encolhe-se, constrangido. Mas não irritado. Covarde, encolhe-se. Molusco em sua concha. Faz de conta que me sorri, encabulado. Olha para os lados, receoso que o vejam ao meu lado, pretexta compromissos. Se pergunto o que tem, responde que nada, trabalho, o de sempre. Despede-se, apressado. Promete me procurar. Eu creio. Covarde, odeio-o. Durante dias e noites, sonâmbula, eu vivo a angústia da chamada redentora. Como as unhas, as carnes dos dedos. Levo para a cama as mãos vazias, a cabeça cheia de sonhos. As mãos não sossegam percorrem-me o corpo, representam outro par que tão bem me conhece. Ganindo sozinha, finjo que o tenho. Fingida, enceno a pantomima de prazer

compartilhado.

Odeio-me,

adoro-o.

Detesto-o,

lamento-me,

gargalho e choro. Saciada, desolada, desfaleço até o começo da manhã seguinte. Manhãs, tardes e noites se seguem até que as deixo de contar. Em um dia comum, de céu lavado, desperto. Lavo o rosto, sigo a rotina, autômata, quase feliz. Então, ele chama, me quer. Exulto, estúpida. Preparo-me: perfumes e sedas. Recebo-o, solícita. Adoro-o outra vez. Ama-me talvez? Talvez, talvez, evade-se uma vez mais. É tarde, me diz, é tarde e se vai, vestindo à porta casaco e as botas. Desejo que volte, pergunto se sim. Sorri amarelo, promete ligar. Um banho, a roupa, um pente, os cabelos. Vestida e limpa, penteada, correta, a porta fechada, caminho à rua, procuro as calçadas. Os pés nos sapatos tropeçam sozinhos. Os olhos no chão perscrutam trapaças. Os passos, cuidados, o medo da queda. Os braços envolvem meu corpo sozinho.

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No meio da quadra, encontro uma pedra. Pequena, esférica, polida do tempo, dos chutes, das chuvas, de rolar pelo mundo. Fascina-me. Abaixo-me, tomo-a entre as mãos. Aliso-a, afago-a. Uma pedra comum que ninguém repara. Tive-lhe pena, ternura: um nada, sozinha. Levo-a à boca. Não sabe, insossa. Brinco com ela sobre a língua. Faço com que bata em meus dentes. Engulo-a por fim. Sinto seu peso em meu estômago. Eu, menos sozinha.

ALEXANDRA LOPES DA CUNHA, natural de Brasília, escrevo e leciona. Tem dois livros publicados: Amor e outros desastres e Vermelho-Goiaba, ambos de contos. Com o último, ganhou o primeiro prêmio na categoria autor-estreante no concurso IEL 60 anos, patrocinado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul. Recebeu menções honrosas em concursos nacionais e internacionais. Seu blog, Cinderela Descaída, no qual escreve ensaios e crônicas, já ultrapassou a marca de duzentos e cinquenta mil acessos. | ALEXCUNHAM@GMAIL.COM

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MÍSSIL-FÓSSIL (2): A CONFISSÃO DO QUE NÃO SABE ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | Porto Alegre, RS.

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- Entra, pode entrar, entra aí. Isso foi dito pelo homem com um cãozinho, manso, olhando-o profundamente. Eram olhos de um azul vivo de quase esquecimento, típico das pessoas daquele canto do mundo. Ele entra mesmo receoso, depois de observar a fachada de tijolos vermelhos argilosos do antigo míssil-fóssil. Começa a escutar um canto gregoriano ao abrir a porta de madeira, entrando em um corredor sem fim, sem direção, buraco negro dos corpúsculos da Criação. Tão frio e assustador como o instante em que uma pessoa deixa de respirar. Seus passos levam-no a uma câmara de onde sai uma luz amarelada das rosáceas e ao fundo ele observa o famoso quadro de Edvard Munch, expressando aquele famoso grito ininterrupto. A porta fecha atrás de si, num estrondo. “É, o que vou encontrar aqui dentro?”Pensa no cantinho de seu temor curiosíssimo. - Bem-vindo à nossa câmara cibernética de mil aninhos! – Assim foi recebido com a simplicidade eufórica de um homem idoso, barbudo, chapéu e paletós negros, olhando através de seus óculos escuros, estilo John Lennon, e tão eufórico quanto um adolescente saindo de férias. – Senta aí, muchacho. Fez o que seu interlocutor indicou, sentando sobre um desconfortável banco de madeira, já cansado de esperar sua namorada sem dar notícias. Ele sente como está frio naquele lugar. Contudo, uma espécie de conforto vinha das vinte vozes do coral, propiciando o descolamento daquela velha lágrima e fazendo seu rosto entrar em conformidade com sua profunda solidão. Paralisado, ainda sem saber onde por as mãos, dispensou por um segundo suas incertezas. Nota um monitor gigantesco ao lado de uma réplica de O Grito, de Edvard Munch. “Droga!”Pensa isso quando nota aquele homem alto, sentando ao seu lado esquerdo e despejando ladainhas. - Está vendo – aponta para um dígito no enorme monitor –, o euro está valendo $ 3,4891... é impraticável viajar assim! Você não se pergunta por que não arredondam esses 91 para que o feche 3,49? Essa crise econômica se estende para justamente ficarmos na pátria amada e odiá-la ainda mais, crendo que as

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políticas econômicas igualitárias se tornam caudilhismo e descambam em comunismo latino-americano. Quem não gostaria de por as mãos nos meios de produção? É claro, porém, como dispensar as análises de Thomas Piketty sobre como as elites condensam suas fortunas? (repentino alarme de ambulância inunda o ambiente com luzes vermelhas piscando de modo frenético). Contudo, nada do que o velho disse o deixara impressionado. Afinal, ele está esperando por ela, como combinado, dentro do estranho e misterioso míssil-fóssil. Ele começa a pensar nas proporções daquela tela computadorizada, montada numa espécie de altar ecumênico com mais de cinquenta metros de altura. “Como alguém teria feito isso com tanta exatidão há mil anos?” Mas as luzes de um amarelo queimado gótico, continuavam iluminando o coro em sua liturgia despretensiosa. A tessitura embalava o grave e o agudo em polifonias modais, dissonantes e emotivas. Esse mesmo telão começa a passar o vídeo da mulher que o acompanhava poucos minutos antes. Observava sua namorada: seus quadris, suas pernas, o olhar vivo de um rosto esbranquiçado o suficiente para desaparecer nas fotos digitais de péssima qualidade. Esse fato, o lembrou do quanto o Sol a fazia ficar de mau humor... Mas foi lembrar-se de seu sorriso e de seu perfume que o motivaram diante da tela: “Sim, é ela!”. De repente as silhuetas femininas foram transformadas na imagem de uma raposa (o alarme de ambulância termina). - Está vendo este animal aí? – disse o homem à esquerda. – Os egípcios eram zooantropomórficos: um ser humano reencarnava em um animal no futuro. Adiantaram o espiritismo em quatro mil anos. Fantasmas ambulantes! Não podemos esquecer que está interdita na Torá qualquer comunicação com o mundo dos mortos... pena os cristãos terem levado tão ao pé da letra esse mandamento, teriam queimado menos pessoas durante a Inquisição. - Eu sinto falta dela – o jovem revela comovido –, pois quando abrimos os olhos decidimos que queríamos voltar a fechá-los...

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- Segure-se aí, muchacho! – Ao dizer isso o banco começa a levantar, transportando os dois até a abóbada central da nave, a trinta metros do solo. Ali o caleidoscópio cintilante brilhava intenso. A luz que provinha do vitral era realmente reconfortante, pois essa dimensão onírica do passado iluminado de suas memórias revelou sua entrega a uma certa paixonite aguda e isso acontece com alguns homens diante da fragilidade feminina. - Olhe agora, daqui já podes ver a dimensão de nossas instalações: temos uma sala especializada em engenharia genética reencarnacionista; outra em transcriação de línguas alienígenas; outra para desprogramar o cérebro de jogadores de vídeo-game compulsivos e fãs do seriado Friends. Estamos nesse exato momento com nossas pesquisas focadas na descoberta de organismos vivos que desenvolvam apetite por Urânio enriquecido, uma vez que o mundo acabou em uma guerra nuclear, há exatos cinco minutos. - O quê? Mas eu só passei por aquela porta! Como isso aconteceu? - Não centre os problemas do mundo em você, meu caro. Já ouvi falar na carta de Albert Pike? A Rússia se aliou ao Estado Islâmico e, como era previsto, rivalizaram com o bloco econômico da União Europeia e dos Estados Unidos para impedirem a extinção de Israel. O fato de você chegar é apenas uma mera coincidência. Leia os jornais! - E agora? Como vai ser? - Boa pergunta: um milhão de dólares se você me responder! Se bem que um milhão de dólares não valem absolutamente mais nada. Sinta-se contente porque as nossas paredes estão revestidas com chumbo grosso. Só lamento os Maias terem errado no cálculo do calendário, mas eu diria que dois anos equivalem a meros segundos diante da história do universo, uma vez que supervalorizamos a exposição do tempo dentro de nós. Então, bem- vindo à era pós-apocalíptica! – O homem pega duas taças e o estoura uma champagne. – Vamos brindar!

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- Não viu que eu perdi tudo? Perdi a mulher que eu amava! - Perdeu? Será que você procurou bem em seu coração? Não se deixou levar por uma satisfação sexual das mais efêmeras? Não se esqueça: assim como o capitalismo nos incita a comprar, o sexo e o chocolate também liberam tanta serotonina quanto o THC da cannabis sativa pode proporcionar... - Olhe, eu não sou hippie! - Perdoe meus modos. Eu não equaciono bem o funk carioca com a erudição da escuta. Deve ser um dos problemas teratogênicos da minha má formação devida à alta exposição de televisão durante a infância. Mas vencerei os meus traumas para poder te escutar. - Espere! Se o mundo acabou e ouvimos canto gregoriano ali embaixo, se estamos sozinhos e eu terei de encarar essa barra existencial sem ela, fica nítido que toda a beleza e a poesia que você me propõe perderam o sentido também. Ela carregava nosso filho na barriga! Essa alegria e expectativa se foram! Não tem volta e estamos tão alto que eu não pensaria duas vezes em pular daqui e terminar tudo... - Tudo o quê? O mundo acabou, meu rapaz. - Vê como até isso é difícil de entender? - Dê tempo ao tempo! Olhe, tome essa espumante comigo. Já observou O Grito, de Munch, com atenção? Reparou que ele tapa os ouvidos para se proteger do que vem de fora? É como se a boca aberta representasse sua onipotência narcísica. - Belo interpretaço. - Além do mais, enquanto falo, estou dando tempo para que tu elabores esta fase ruim (segundo a perspectiva dos jogadores de vídeo-game compulsivos). Nada contra a possibilidade do teu suicídio ter sido efetivado se ao menos tivesse

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acontecido há dez minutos. Entretanto, examinando friamente a nossa atual situação, se você se suicidar eu provavelmente ficarei sozinho aqui com esse coro, levando-me, impreterivelmente, a me sentir um inválido e ao consequente fim

da

humanidade

razoavelmente

pensante

(não

estou

levando

em

consideração o otimismo de que haja outra nave cheia de experts fora do planeta, mas espero que a verba do Governo Federal para o desenvolvimento de pesquisa de ponta não tenha chegado com atraso de 515 anos como foi com a nossa...). Só resta eu te fazer um convite para a inauguração do asteróide B612! Sim, aquele do Pequeno Príncipe! Afinal de contas, vamos entender melhor o que significa “Tu te tornas responsável por aquele que cativas” (sempre me perguntei se o verbo apprivoiser não possui um sentido negativo, tal como submeter alguém a uma vontade alheia). - Pois é, pelo visto não tenho grandes escolhas... – pausa dramática para um gole amargo de lágrima contida junto à doçura do espumante moscatel. - Escolhas? Você ainda está preocupado com elas? Olhe, temos a liberdade de fazer tudo, pensar tudo: não há chefia de mau humor no final do expediente; não tem políticos hipócritas; nem engarrafamento de duas horas. Não tem sogra! Sublime! A humanidade começa agora. Olhe, como você acha que sua namorada reencarnou em uma raposa? Porque estamos repletos de animais aqui! Isso sem falar no material genético da torcida do Flamengo, da Pâmela Anderson e do Albert Einstein em nossos laboratórios! - Pâmela Anderson fez filmes pornôs e Einstein tinha dislexia... - Nossa humanidade pode lidar com as dificuldades de cada um sem moralismo! Mais do que gerar gente diferente, vamos cuidar para que ninguém se destrua. Teremos gente ruim como sempre... Mas tentaremos mais uma vez! Podemos encontrar nas pessoas os mesmos traços que há poucos minutos estavam exigindo que a sua decisão fosse o suicídio.

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- Olha, ao entrar aqui eu não sabia que ela já tinha ido embora e agora sei que ela não voltará mais. Como pode um instante trancar todo o resto de decisões que tornar-se-ão futuro? Como nossas simples questões se resolvem assim? O que você fala parece ser a garantia do futuro, escrito em uma língua programada e consolidada em uma realidade de puro empirismo, testada e aprovada pelo INMETRO. E onde está a capacidade de resolução de problemas fora desse útero eletrônico? Certamente, você não previu isso na sua bola de cristal: o que não conseguiremos lidar, o que não temos capacidade para escutar, sejam os problemas decorrentes das bactérias que assimilam Césio-137, ou canto das baleias ou os decibéis de uma raposa. E mais, pode haver tudo na sua nave, mas até agora não sei o seu nome. - Ah! Estive tão empolgado com todas essas coisas que não tive cabeça para ser educado, perdão. Eu me chamo Noé. - Por que não estou surpreso em saber disso? Afinal é um nome, ou melhor, a forma nominal de um verbo. Esse tipo de pergunta é meio básico, não é mesmo? Sinto o quanto estão faltando ações em nossa conversa. - Noé significa Aquele que descansa, em hebraico. Mas me diga quais ações você quer realmente fazer? – Despertando a curiosidade em seu interlocutor. - Sim, era de se esperar muito descanso para você e sua ONG pós-apocalíptica. Mas eu não quero descanso! Quero continuar a me perguntar, quero fazer a pergunta que o sono embalou até agora, o que enrubescia de pudor o olhar, o que o medo mantinha trancado e o que meu misterioso desejo fez chegar até os olhos dela como resultado das minhas sinceras idiossincrasias. - Acredito que o bom resultado da sua vida poderia ter sido seu filho – O rapaz é invadido de uma sincera e determinada tristeza, baixa os olhos até o chão, enquanto os cantores gregorianos mudavam de canção em suas partituras. – Isso só reforça o quanto você tem amor-próprio, uma qualidade importante para poder gostar de outra pessoa.

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- Mas talvez não seja o suficiente para eu gostar verdadeiramente de mim! - Se você fosse uma pessoa com o ego grande, inflamaria seus músculos também, caindo de vez na cultura ostentatória da velha elite brasileira: uísque, Red Bull e um Camaro amarelo. Depois, usaria alguns esteróides lipossolúveis e teria litros de pus nos seus bíceps. Lamentável... Mas isso não aconteceria com o tipo de pessoa que você é, pois pelo jeito você tem cara de quem curte expressionismo alemão. A humildade costuma despertar a ira dos vaidosos e foi assim o fim do nosso mundinho. Ah! Isso me lembrou uma coisa! – Não somente o banco começou a subir mais alto, como toda a estrutura do térreo se deslocou e foi se acoplando de modo ao altar central da nave mostrar-se como uma torre de controle, comandada por um joystick de vídeo game nas mãos do homem barbudo. – Pronto! Podemos partir, muchacho? - Sabe, não consigo mais fechar os olhos e não vou pedir um Rivotril mesmo sendo tentador. A vida toda sempre quis ser pintor... Afinal de contas, não tenho útero e precisarei parir coisas novas, já que estou em dívida com uma digna atividade sublimatória. Então, vamos lá: alfa, ômega, beta centauros, o asteróide B-612, mais línguas alienígenas para decifrar e um pouco de tristeza, mas apesar de tudo isso... você não teria outra garrafa de champagne por aí?

ESTEVAN KETZER é psicólogo clínico. Doutorando em Letras pela PUCRS. Pesquisa a relação entre poesia, filosofia e psicanálise na obra do poeta Paul Celan. Além de ensaísta, é poeta.

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CATARSE MARIA JOテグ VAZ | VILA FLOR, Portugal.

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Tantas vezes a razão ignorou o instinto que, em silêncio, floresceu. Tantas vezes calamos os sentidos em nome de uma razão que cresceu e se perdeu! Quantas vezes fomos felizes na penumbra do que todas as razões proíbem? Como sorríamos, sorrimos! E o que importam as mil e uma razões, se os sorrisos respondem e calam todas as questões?!

MARIA JOÃO VAZ é licenciada, mestre e doutoranda em ciências jurídicocriminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e aluna de intercâmbio na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Escreve regularmente no seu blog, “the philosophy of little nothings” e é colunista do blog luso-brasileiro de literatura, “letras in.verso e re.verso”. Publicou um poema na Antologia de Poetas Portugueses Contemporâneos da Chiado Editora, “Entre o sono e o sonho” e ganhou o prémio de poesia Fernanda de Castro, atribuído pela Confraria luso-brasileira, em Maio deste ano. | MARIA-VAZ100@HOTMAIL.COM

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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