Revista subversa vol 3 n.º8 NOV.2015

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SUBVERSA Vol. 3 | n.º 8 | Novembro de 2015 ISSN 2359-5817

EBER CHAVES BRUNO FLORES ANDERSON FREIXO BOMQUEIROZ MILTON REZENDE GLAUBER COSTA MARCO AURÉLIO DE SOUZA DEMETRIOS GALVÃO PEDRO BELO CLARA KRISHNAMURTI

Ilustração A MIMURA


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 3 | n.º 08

© originalmente publicado em 16 de novembro de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações A MIMURA

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realida

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SUBVERSA EBER CHAVES | DRAMA | 7 BRUNO FLORES | A MARCHA DE ALBERTO | 10 ANDERSON FREIXO | CHÁ DE BOLDO | 16 BOMQUEIROZ | DELÍRIO | 18 MILTON REZENDE | EXPURGO | 20 GLAUBER COSTA | O RIO | 22 MARCO AURÉLIO DE SOUZA | O VELOTROL | 26 DEMETRIOS GALVÃO | OS CENTAUROS TAMBÉM AMAM | 28 PEDRO BELO CLARA | A CHEGADA DAS NUVENS | 31 KRISHNAMURTI GÓES | A PALAVRA NUNCA | 33

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EDITORIAL

Os textos que compõem este número já foram escolhidos há algum tempo, os autores sabem disso. O que ninguém sabia é que eles seriam publicados como uma espécie de ressaca de um fim de semana em que o terror saltou mais uma vez aos olhos de todos e chamou a atenção para o terrorismo cotidiano ao qual ainda estamos condenados. O terror não bate à porta de uma só nação. Ele entra em salas de espetáculos e também na natureza. Desce rio abaixo e depois a gente mesmo prova-o na língua. O atentado do homem é contra a própria obra humana, artística ou civil. A crueldade não está fora de nós, ela só se apresenta através de uma forma insuportável, de tempos em tempos e, eventualmente, faz a nossa própria imagem de refém. Talvez hoje a Subversa que fala de desamparo, descrença e loucura seja pequena demais. Que trabalho, afinal, pode fazer a literatura diante da tragédia? Colocar o homem diante de um espelho, talvez, apaziguar um pouco as agruras, visualizar a possibilidade de um mundo harmônico. Mas, acima de tudo, mostrar a importância que tem um autor no mundo atual, seja rico, pobre, homem ou mulher. O problema maior na desvalorização do escritor não é, na verdade, político. O problema é não sermos capazes de entender que um escritor faz parte daqueles que não querem a paz somente dentro de si, mas sentem a necessidade de colocá-la para o lado de fora e fazê-la circular nas ruas. Quiçá, entre as nações. As editoras.

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DRAMA EBER CHAVES | Vitória da Conquista, BA. I O quão penoso foi quando atravessei a aflição do revolto mar azul de infortúnios e no meio do caminho avistei uma ilha. Mas ao abrigar-me sob a sombra acolhedora de um coqueiral imaculado, não resisti atribulado ao desejo de olhar o sol a olho nu. O quão penoso foi quando atravessei a solidão do insensível deserto de indolências e no meio do caminho avistei um riacho. Mas ao transpô-lo e molhar os pés em vívidas águas, livrei-me das sandálias e, descalço, caminhei sobre o musgo de pedras afiadas. II Quando as naus cortaram a aflição do mar sem fim, quebrando noites, ondas azuis e marés infortunas,

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o desembarcar: de trevas abissais, noite densa foi alívio. Alívio incinerado ao alvorecer: voavam cinzas soltas ao vento para um lugar além da imensidão aonde os olhos alcançam. Alívio que buscaram na sombra acolhedora de um coqueiral imaculado, vã busca, já estavam deslumbrados pelo desejo de olhar o sol a olho nu – e isso cegou-os. E quando nômades romperam a solidão do deserto sem fim, saltando dias de areias e sóis cor de ouro e cor de fogo, o mergulhar: de inferno, sol do meio-dia foi alívio, desafogo. Desafogo afogado em águas rasas: corria inerte a correnteza para um lugar além da imensidão aonde os olhos alcançam. Desafogo que buscaram na transparência de cristalino lago, vã busca, já estavam descalços caminhando sobre o musgo de pedras afiadas – e isso dilacerou-os.

EBER CHAVES nasceu em 1979, em Itaquara, Bahia. Atualmente, reside em Vitória da Conquista/BA. Graduado em Administração, é blogueiro, apreciador de psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, filmes de ficção e fantasia, rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. | EBER.CHAVES79@GMAIL.COM

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A MARCHA DE ALBERTO BRUNO FLORES | Rio de Janeiro, RJ. Alberto Silveira Braga, almirante quatro estrelas reformado, abria caminho com duas sacolas de compras entre o Gandhi, a Marilyn Monroe e o Saci Pererê. Corpos suados bailavam entre confetes e serpentinas, enquanto uma colorida bola de praia era estapeada pra lá e cá sobre o mar de cabeças. Um palhaço de circo passava em pernas-de-pau, uma fadinha purpurinada balançava um bambolê e homens

travestidos

de

noivas,

baianas

e

quengas

tocavam

instrumentos. Nem Lewis Carroll imaginaria tamanha lógica do absurdo materializada no mundo real; a vitória inquestionável da insanidade coletiva. Afinal, não se tratava de um pesadelo nem o velho Braga estava alucinando ou ficando gagá. Era, sim, o carnaval do Rio de Janeiro; período em que a cidade obtinha o alvará da vagabundagem para cinco dias de embriaguez, galhofa e sem-vergonhice. O teu cabelo não nega mulata Porque és mulata na cor Mas como a cor não pega mulata Mulata eu quero o teu amor A marchinha trouxe lembranças dos bailes de gala no Teatro Municipal, ele e os amigos de escola naval vestindo fraques elegantes, as mulheres brilhando em fantasias de Cleópatra. Tempo de alegrias comedidas, sem drogas ou libertinagem, rumo à estabilidade: uma esposa decorosa e comprometida a criar futuros gênios da medicina, advocacia ou política. Doutores e senadores. Seus rebentos. “Os Braga? Estes sim são exemplares, modelo de estirpe, não há uma semente ruim entre eles, todos ajuizados e bem-sucedidos”, diriam os colegas de farda, de Clube Naval, e, mais tarde, de seus seletos círculos de

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gabinete. Acreditou que tudo fluiria no automático quando casou-se com Marieta, e a sensação de dever cumprido o permitiu dedicar-se a sua outra obrigação, comandando corvetas pelo Rio Negro e São Francisco. Hoje, a simples troca de uma lâmpada lhe exigia um esforço sobre-humano. O tempo é mesmo uma amante inescrupulosa; nos tira tudo e arruína nossa existência. Sortudo havia sido o Heraldo, morto durante o “milagre” do Médici, muito antes de experimentar os dissabores dessa rotina sem apetite sexual, escrava da diabete, hipertensão e colesterol galopante. Tens um sabor bem do Brasil Tens a alma cor de anil Mulata mulatinha meu amor Fui nomeado teu tenente interventor Alberto sempre fora entusiasta da boa e velha ironia, mas essa, que o destino miserável lhe imputava, era demais até pra ele. Aquela mesma marchinha, criada por uma geração que sonhava com um Brasil progressista, agora era entoada por esses baitolas e imbecis que deviam estar atrás das grades por perturbação da ordem pública. Como haviam se enganado! Anos e anos desperdiçados tentando limpar a merda desse país, para que, cedo ou tarde, os bueiros todos fossem abertos e a podridão se instalasse como musgos sobre a terra. Que esgoto a céu aberto! Sentiu o rosto em chamas, uma fúria que lhe varria as vísceras, e bendisse sua sorte por não ter trazido o trinta e oito. Se tivesse, sem dúvida esvaziaria o tambor para pôr fim àquele ultraje. Um rapaz loiro fantasiado de sheik árabe chacoalhava o esqueleto com cerveja na mão. Alberto se deu conta de que lembrava muito Henrique: mesmo tipo franzino, fracote, com olhar de palerma. Deu uma trombada violenta no moleque, que foi ao chão levando outros dois junto com ele, como num jogo de dominó. - Qualé coroa!?

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- Calma ai, meu senhor! - É carnaval... Seguiu em frente com um sorriso de canto de boca, num lampejo de satisfação ao interromper, mesmo que por um minuto, a farra daqueles pulhas. Já estava puto da vida por ter tido que sair na rua. Desde a morte de Marieta, todo ano fazia um estoque de comida e bebida antes dessa ode à estupidez chamada carnaval. Ficava trancafiado os cinco dias, distraindo-se com seus livros e telejornais, apenas ouvindo, a uma distância segura, rumores da algazarra. Sempre dava certo e ele conseguia evitar o estresse, mas esse ano calculara mal a quantidade de vinho do porto, religioso acepipe antes de cada refeição. Não conseguia engolir uma garfada sequer sem antes entornar duas doses de Porto Quevedo. Ainda assim, decididamente, não tinha valido a pena pisar fora de casa. Entrou e sobre a mesa da sala estava uma carta. Porteiro filho da puta! Já advertira o Antônio, seu filho mais velho, que essa história do porteiro ter uma chave do apartamento era não apenas desnecessária, mas também imprudente. Embora ele nunca viajasse, nem mesmo dormisse fora de casa, os porteiros conheciam sua rotina e poderiam entrar quando ele não estivesse, pegar uma cerveja aqui, um gole do uísque ali, um bombom de licor acolá... Talvez aí estivesse a explicação porque seu Porto Quevedo acabara tão depressa dessa vez. Filhos da puta! Aproximou-se da mesa e viu o que estava escrito no envelope: “A/C Almirante Alberto Braga”. Paralisou.

Sentiu

como

se

mergulhasse

num

oceano

em

tempestade. Um suor gelado e opressivo se formou em segundos, escorrendo em gotículas por seu corpo, o coração palpitando como rufos de tambor. Era a letra, a inconfundível letra de Henrique. Hesitou por longos minutos. Caminhou com dificuldade até a cozinha, as pernas ameaçando ruir como colunas seculares, e encheu

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o copo de Jack Daniels. Agora, o vinho do porto simplesmente não daria conta. Virou metade da dose, rasgou o envelope e começou a ler a carta, mas parou quando o copo de uísque se espatifou no assoalho. Encarou o vazio, neurônios pipocando por terrenos baldios da memória, até o som da marchinha resgatá-lo das profundezas. Andou feito um zumbi até a cômoda da sala, tirou o trinta e oito da gaveta e saiu à varanda. O bloco estava parado bem em frente ao seu prédio, oculto sob a copa das árvores. Ó jardineira porque estás tão triste Mas o que foi que te aconteceu Foi a camélia que caiu do galho Deu dois suspiros e depois morreu Engatilhou e disparou um tiro em cada direção, conscientemente, numa insanidade ordenada. Voltou para dentro, alheio aos gritos de desespero, e sentou-se na cadeira com o revólver no colo. O olhar, perdido no porta-retratos, buscou viajar no tempo: ele, de farda branca e quepe da Marinha, Marieta num vestido austero de dona de casa, Antônio com oito anos e o pequeno Henrique, com quatro, camisa do Botafogo, shorts e meião, o único que não olhava para a câmera, encarando de cenho franzido algo que apenas ele enxergava. Mais atrás, atracada na base naval de Aratu, via-se a Fragata Niterói, que Alberto estava prestes a comandar pela baía de Todos-os-Santos. O porteiro e a polícia irromperiam porta adentro pouco depois, levando o velho almirante Braga para uma viagem sem volta. No carnaval seguinte, o bloco da Rua do Catete levou dois mil foliões às ruas. Ninguém se lembrava do velho militar aposentado que morava no prédio da esquina, sujeito rabugento que vira e mexe arrumava briga com vizinhos e comerciantes. Nem ao menos se lembravam da história que dera cabo de sua vivência por ali e que na época inundara os jornais e tabloides sensacionalistas: o almirante

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descarregara um revólver da varanda, matando dois jovens fantasiados de Raul Seixas e Bob Marley, que acompanhavam o cortejo. Condenado a dez anos de prisão, foi negado o regime semiaberto, apesar das limitações da idade. A pena, contudo, foi encurtada pelo próprio almirante, habituado a comandar seu destino como se fossem navios de guerra, graças a uma navalha surrupiada para dentro do presídio pelo filho de um colega de farda. Um corte limpo na garganta e pronto, o fim da marcha do velho almirante Braga. Ah sim, o surto na varanda supostamente ocorrera após a descoberta do suicídio de seu filho esquizofrênico. Mas disso também ninguém se lembrava, uma vez que a Terra já completava uma volta em torno do Sol e os deuses da “embriaguez, galhofa e semvergonhice” nos traziam um novo carnaval.

BRUNO FLORES é autor do romance "Rumah" (Editora Multifoco, 2015), uma aventura épica sobre um povo neolítico das ilhas do Pacífico Sul. Tem duas resenhas críticas publicadas em livro de homenagem ao centenário de Jorge Amado, lançado na Bienal do Livro de São Paulo em 2012, além de contos, críticas de cinema e literatura em revistas digitais e blogs. Reside no Rio de Janeiro (RJ), é jornalista e pós-graduado em Gestão e Produção Cultural. | BRUNOFLORES85@GMAIL.COM

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CHÁ DE BOLDO ANDERSON S. FREIXO | Salvador, BA.

Um chá de boldo, com cidreira pro boldo descer melhor. Ainda não sei quando estarei apto a comer, por isso fumo. Pois é. Ontem eu bebi demais. De tudo que me falta sinto uma fome violenta. Tirando os amores e umas letras que sei de cor, não tenho nada. Sonho até às oito, depois trabalho. Depois das cinco eu tropeço nas calçadas. Tento deslizar pelo chão áspero da vida, me dividindo, me fragmentando, pra escorrer melhor pelo ralo. Já elaborei uma equação que engloba o universo todo. Só me falta saber matemática. E não há quem me ensine, não há quem me salve. Pra cada oração que fazem pra Deus, Deus responde "foda-se". São todos problemas pequenos demais. O ser humano se desenvolveu para realizar uma tarefa específica: esticar problemas. O problema é um objeto de culto, já é quase uma religião. Eu estava sentado no vaso, mijando pelo cu e vomitando ao mesmo tempo e você vem me dizer que está sofrendo. Eu tomei chá de boldo, não fui resmungar. E eu nem sei mais de nada. Estudei muito pra isso. Deixe que eles dominem o mundo, que eles mudem o mundo, que eles salvem as focas. Eu vou é bater punheta enquanto o salário não cai na conta. Eu nem sei mais de nada. Esqueci muito pra isso. Se eles roubam cores da cidade pra tornar minha alma entorpecida, a ferro e fogo eu rasgo a minha pele, e com o sangue eu torno a cidade colorida. Pra isso eu não dependo de ninguém. Tirando os amores, umas letras que sei de cor, uns trocados no bolso e os cigarros, eu não tenho nada. E só preciso disso. Disso e dessa vaga impressão de que vai ficar tudo bem. Pra seguir vivendo.

ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente em Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por diversas revistas, como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente publica seus textos no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página no Facebook, chamada Zona do Freixo. | ANDERSON.FREIXO@GMAIL.COM

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DELÍRIO BOMQUEIROZ | Uruguaiana, RS.

O carvalho do meu terno envelheceu o vinho do meu cenho. No fundo do meu rio luzem dois olhinhos coxos e tristes e monótonos e da cor dos infinitos… As madrugadas não deixam de desabotoar pretumes no coração encarniçado do sol, e só o silêncio, que em tudo se parece com o tempo, consegue manter em suspenso suas meias suicidas. Na pálpebra do sexo a axila do compasso, a asa do moderno, o cheiro do futuro. Eternizar-se é brincar na superfície da luz; proliferar-se é ser som sem final. O delírio é uma flor que se arrancou da terra e se arremessou aos ares num suspiro. Avelãs são passarinhos que não sentem frio e que irão voar a vida inteira feito ovelhas que assoviam. Pelas sombras, homens obram claridades; o fracasso é uma ilusão de seres de metal que desistiram de ser inquebrantáveis. Uma clave sem dó, um chachimbo sem fornilho, um dom sem nada. As máscaras são interjeições represadas na alma e os limites são conhecimentos penosos a desaprender. As pedras são donas do tédio e da paciência, senhoras de toda meditação. Contudo, as pedras também voam, quando feitas de pedaços do céu.

BOMQUEIROZ é de Uruguaiana (RS, Brasil) e nasceu embaixo de uma bergamoteira. | BOMQUEIROZ@GMAIL.COM

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EXPURGO MILTON RESENDE | Ervália, MG.

hoje eu mordi um chumaço de papel higiênico limpo para estancar (ou tentar conter) o sangramento da língua dilacerada: como um cadáver antecipado que devora o seu próprio sudário.

MILTON REZENDE possui nove livros publicados e alguns pássaros. | MILTON.REZENDE@YAHOO.COM.BR

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O RIO GLAUBER COSTA FERNANDES | Ubatã, BA. O rio corria rápido em viagem até ao mar. Ia por dentro de si mesmo, afoito. Embora, vez ou outra, cansasse e diminuísse o ritmo, adormecendo, em roncos longínquos. Num desses cochilos, um pássaro cor de cinza se aproximou. Aonde vai o rio? Vou para o mar. Dizia, com voz de sede. Mas o que vai fazer no mar, o rio? Vou correr para o mar. E por que não ficas aqui com a nossa flora tão densa e apetitosa? Eu corro para o mar. E saiu da letargia, seguindo seu percurso de rio, sem se despedir do passarinho, apenas olhando de relance para trás, prestes a cair sob a forma de cachoeira. Essas quedas davam-lhe prazer, descia com a sua cara risonha, esquecido de tudo, no vento. E lá embaixo suspirava. Boiava, olhando para o céu, esparramado, feliz. Até entrar, sugado, por um beco estreito, de costas. Um susto! Depois, como sempre, virava-se e seguia seu rumo. Dava duas tosses e seguia sério para frente, constante, até voltar a acelerar. Logo sentiu cócegas por dentro. Eram uns peixes cor de azul a acompanhá-lo. Para onde vais com tanta pressa, senhor rio? Vou para o mar. E o que há no mar que lhe faz ter tanta pressa? É para onde vou, para o mar. E seguia firme, deixando os peixinhos sem fôlego para trás. E por que não ficas, senhor rio? O que há no mar? Vou desaguar. E corria, ouvindo apenas o borbulhar das vozes dos peixes já distantes, nadando, insuficientes. Na linha reta, a sua cabeça esvaziou, aberta, de testa para o céu, até que encontrou muitas curvas. Muitas e muitas, de deixá-lo

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tonto, ficando todo de rosto rente às margens. Então, o chão com sua voz rouca e lenta lhe perguntou. Por que não paras um pouquinho a descansar. Vou para o mar, vou para o mar. Dizia tonto, pelas curvas, sem saber se falava com a margem direita ou com a esquerda. Vou para o mar, vou para o mar. Eu não conheço esse lugar, o mar. O que há no mar? Vou desaguar, vou desaguar. Dizia, confuso, o rio. E por que a pressa, se tudo o que tens é água e vais desaguar? Conseguindo sair do labirinto de chão, alargou-se. Mas havia uma pedra no meio da lagoa que encontrou. Por que desvias de mim? A pedra perguntou, solitária. Mas em silêncio, pesado, pela conversa com o chão, o rio apenas lacrimejou no lago aberto, deixando para trás a pedra e o lago, prosseguindo lento para o mar. Desacelerou, pensativo. Distraiu-se. Abstraiu-se. Até que veio o vento por cima e disse ríspido. Por que está tão devagar, o rio? Vá para o mar, vá para o mar. E o rio, desconsolado, se pôs a continuar. Passou por muitas plantas, avistou um campo de flores, que ficou a contemplar, pois sabia que se olhasse para frente já daria para ver, gigante, aquele mar. O oceano a lhe esperar. Seu coração de rio acelerou. Fechou os olhos e esperou. Só ouvia o barulho imperativo das águas salgadas e agitadas do mar. Mas em meio a tanto barulho, brotava ao fundo outra voz, maior, que surgia de dentro do burburinho surdo. Abriu os olhos e era uma árvore grande e serena. Por que veio até aqui, o rio? Disse, tímido, a gaguejar: vim para o mar, vim desaguar. E por que estás tão triste? É o fim do meu caminho. Vou desaguar, vou para o mar, vou desaparecer, vou me matar. Eu também tenho medo, disse a árvore milenar. Tenho medo de cair na terra e desintegrar. E o que podemos fazer?! Indagou o rio, apreensivo. Não há nada a se fazer, amigo rio. Chegou a hora de se desfazer. Mas por quê? Por quê? Perguntou o rio a se afogar. A árvore segurou-o com um pedaço de raiz e sussurrou. Não tenha medo. Tu não estás inteiro aqui. Olhe para trás. E o rio olhou todo

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o caminho por onde percorreu. Ainda estava lá. E abriu a boca a se engolir. Depois cuspiu e tossiu. O que é isso? É você. Tudo é você. Assim como esses frutos no chão também sou eu. Eles caem de mim e a vida vai continuar, de mim, sem mim, que logo vou desmoronar. É assim a vida, tem a morte. E morte é também vida a continuar. Vês lá atrás, o que deixou? O passarinho, os peixinhos, o chão e toda a relva ainda perdidos, mas a te amar. Tu estás bem aqui e consegues vêlos e senti-los lá. Ainda depois que te desfizeres em mar, sem mais poder vê-los, ou ainda lembrá-los, mesmo assim estarão lá, na tua atmosfera de mar, distantes, esquecidos, de alguma forma estarão lá, porque estarão aqui, sabendo o caminho que tu percorres eternamente rumo ao mar, todos os dias. E se banharão nas chuvas, imaginando quais gotas nelas são pedaços de ti, ainda que nenhuma seja tua... À beira de ti, hão de te sonhar. Mas como saberei se será assim mesmo, se vou desaguar? Feche os teus olhos, amigo rio, que daqui te olharei chegar ao mar. Até o dia em que cairei e serei chão, novamente perdido, como também estarás perdido dentro do mar. Mas achado e perdido, é tudo a vida, meu velho amigo. Adeus. Vá para o mar. Já não posso te segurar. E o rio seguiu desconsolado, diante dele o mar, de braços abertos a lhe esperar. Sentiu-se só. E foi-se, enfim. Sendo fortemente abraçado pelo mar, a se desfazer, a se embaralhar, mergulhado e debatido, a se afogar no mar...

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou o conto “Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte do primeiro volume impresso. Escreve no blog glauber-manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage do Facebook chamada Manuscritos. | GLAUBER.COSTA@HOTMAIL.COM

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O VELOTROL MARCO AURÉLIO DE SOUZA | Ponta Grossa, PR.

Quando me perco nos terrenos Baldios Da saudade Ainda escuto aqueles gritos De lá vou eu Ou os ecos oníricos Do estalo das tampinhas Que as gasosas de framboesa Cantavam alto na garagem lá de casa. Na esquizofrenia momentânea Da memória Estou sempre descendo por ladeiras Desesperadas Em meu velotrol azul e preto Inalcançável.

MARCO AURÉLIO DE SOUZA é natural de Rio Negro,PR, graduado em História e mestre em Linguagem, Identidade e Subjetividade pela UEPG. Publicou os romances O Intruso (Dracaena, 2013) e Conexões Perigosas (Kazuá, 2014). Participa da antologia poética 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015). Em 2016, publica E os desgarrados retornam para ti, sua estreia no campo da poesia. Escreve no blog escritaforadesi.tumblr.com. Vive em Ponta Grossa/PR. | AURELIO.AS25@YAHOO.COM.BR

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OS CENTAUROS TAMBÉM AMAM DEMETRIOS GALVÃO | Teresina, PI.

o coração é uma semente inventada. herberto helder

natural é existir sem roupa, palavra, cultura, bandeira... há quem diga que os centauros também amam e que são doces os demônios das flores encarnadas. há quem diga que o amor transborda o peito cria renda, bordado, tecido-muscular-elástico. há quem diga que o amor amansa a morte e os rinocerontes de cobre envelhecido. há quem diga que o amor é bicho vadio domesticado e que os amantes inventam esconderijos sublunares. há quem diga

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que o amor bagunça fronteiras e que os líquidos confundem as estações do ano. natural é o amor construindo corpo.

DEMETRIOS GALVÃO, habitante da cidade de Teresina é poeta, professor e historiador, com mestrado em História do Brasil (UFPI). Publicou os livros de poemas Insólito (2011) e Bifurcações (2014). Participou do coletivo poético Academia Onírica e foi um dos editores do blog Poesia Tarja Preta (2010-2012) e da AO-Revista (2011-2012). Tem poemas publicados nas antologias Massanova Literatura (2007) e Poematologia – os melhores novos poetas do Brasil (2012). Atualmente é um dos editores da revista Acrobata. | DEMETRIOS.GALVAO@YAHOO.COM.BR

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A CHEGADA DAS NUVENS PEDRO BELO CLARA | Lisboa, Portugal Um mundo de folhas: este império decadente. Cada superfície um espelho – o rosto da noite imensa. Sem a lua de outrora ou as estrelas tão fiéis a quem no caminho havia perdido o norte. De tão brancas as folhas enegrecem. Antes do abismo houve uma manhã. Um crisântemo brilhava. Em teus olhos? No mistério do peito? Que sei dos fragmentos planando em espesso lodo? Como quis falar-te do assombro em que deixam as faces os botões da rosa, do cálido aroma que paira quando o vento passa suando memórias de areias e sal, da ave azul e do seu canto na distância diluindo-se com as serenas fúrias de quem quer dissolver o próprio corpo, do marulhar antiquíssimo audível somente quando todos os sons se depuram quando todos os ecos emudecem, das estevas baloiçando à luz da tarde despida sobre rios de lisa placidez, das adelfas que no néctar de suas flores vertem a fórmula de uma aguda forma de vida. Sabia porém quando cada palavra me sufocava, sabia que excretar a inutilidade era mácula sobre os olhos sobre a boca dos sentidos, eles que bebiam e logo o cálice desviavam certos do veneno imbuído na torrente do ser cantante. Era tarde demais. Urdia-se por si tumultuoso e devastador o poema fatidicamente torpe. Não adiantaria o esforço. Os sexos sempre no silêncio estremeceram súbitos de vida. Tudo o que a mão intentasse seria um gesto tão fútil quanto o poema paralelo àquele – esse sim – que sublimemente inspirava o esgar de quem não nasce ainda mas para sua vaidade o deseja. Não. De tanta majestade escoava-se o ruído da ideia o rumor da palavra. Assim era. O soprar das estações deposita na soleira um punhado de cinzas. PEDRO BELO CLARA é autor das obras “A Jornada da Loucura” (2010), “Nova Era” (2011), “Palavras de Luz” (2012), “O velho sábio das montanhas” (2013) e Cristal (2015). Além de prelector de sessões literárias, é actualmente colaborador e colunista de publicações literárias. Outros trabalhos seus poderão ser encontrados no seu blogue pessoal, “Recortes do Real” (crónicas diversas). |PBELOCLARA@HOTMAIL.COM

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A PALAVRA NUNCA KRISHNAMURTI GÓES | Salvador, BA. Ali está um simples homem sentado no interior de um templo. Escolhera um assento na longa fileira de bancos, na altura do nicho que abriga a imagem de São Pedro. Com as mãos postas, parece recitar uma oração. A cabeça baixa, mexe os lábios rezando firme, com fé. Entretanto, com o fluir do tempo, os lábios tornam o murmurar morno, depois frio e finalmente quase inexistente. A cabeça, por instantes, lhe pende no abandono de uma sonolência sorrateira, até que uma estranha oscilação de ideias o desperta. Ele suspira forte enchendo o peito e esforça-se para voltar-lhe a letra da prece: “Seja feita a vossa vontade...” Mas, como uma turbina que gira em torno de um eixo, certa classe de ideias lhe turva o cérebro. Ideias turbinosas! “Qual teria sido, afinal, o sentido exato daquelas palavras do safado do Palhares? Depois de me ter forçado a dispensar o Amadeu dos serviços que ele me prestava com a limpeza e o cultivo da horta, vem agora com essas ideias de possíveis reformas. De ampliações, de modernizações, de gestões administrativas! Isto é uma loucura. Isto é surreal. Como é que pode? E o Amadeu como é que vai ficar? Para onde terá ido? Como é que um homem sem um braço vai se sustentar? E pensar que ele veio dar aqui pelas mãos da comissão pastoral dos sem-terras, quando houve a reintegração de posse daquela fazenda invadida... E depois que o país inteiro assistiu pela televisão, ao vivo e em cores, àqueles gritos, correrias, desmaios, prisões e à cena brutal dele caído no chão, com o braço metralhado, e a mulher, coitada, ao lado, com as mãos à cabeça a gritar desesperada, a chorar”.

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As mãos do homem agora estão inquietas, as pupilas brilhantes, um desassossego de corpo. “Assim na terra como nos céus. O pão nosso de cada dia... Onde o Amadeu vai conseguir o pão? Palhares com aquele argumento de que a diocese tenciona vender parte das terras da igreja e que, com esse dinheiro, talvez construa uma nova igreja... O problema está justamente aí. Talvez. O que me aflige é essa sugestão de que eu vá temporariamente para o retiro espiritual. É para o seu bem, ele disse. Para o meu próprio bem... Para o meu próprio bem... Para o meu próprio bem uma porra! Não gostei. O que eu vou lá fazer em retiro espiritual nenhum? Minha casa é esta. É aqui. Sempre foi. Há sessenta anos que sou o padre dessa paróquia. Meu Deus! Eu preciso me concentrar na prece. Não posso ficar entregue agora a essas cogitações. Dai-nos hoje, Senhor... Mas eu... Não é possível!” Uma expressão de angústia se reflete nos olhos aumentados. “Tanto que eu me doei... Hoje eu estou assim inquieto. Uma coisa aqui por dentro, depois da conversa com o monsenhor Palhares, está mexendo comigo, como se estivesse me dando um aviso. E eu não tenho sossego, esse assunto fica indo e vindo na minha cabeça”. Tornou a se imobilizar, aéreo, pensativo. “E dizer que o Palhares foi meu contemporâneo de seminário... Eu nunca confiei nele mesmo, nunca fui com aquela cara de bajulador. Em muito menos tempo do que era de se esperar, foi indo, de clérigo a padre, e agora, bispo! Não leva em conta tantos anos que nos conhecemos. Esqueceu-se de que quando eu aqui cheguei isto era uma grande capoeira. Esqueceu-se de que ajudei a construir esta igreja com minhas próprias mãos. É verdade. Eu era um jovem idealista e neste lugar, naquela ocasião, me sentia tal qual um São Pedro a ouvir as palavras do Mestre em Mateus, Cap. 16, vers. 18: ‘também eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta rocha construireis a minha congregação, e os portões do Hades não a vencerão...’ Para agora, no fim da minha

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vida, vir o pontapé que manda pelos ares tanto tempo? Tudo esquecido assim?” Após novo suspiro, inclinou um pouco a cabeça grisalha. “Engraçada a memória da gente. Há umas coisas de que eu me recordo como se estivesse vendo agora, outras não... Do que ficou para trás, ainda hoje vejo nitidamente o tempo de quando entrei para o seminário. Vejo o irmão Elpídio com aquele vozeirão a nos advertir sobre o dedo vingador de Deus com aquelas concepções doidas de caldeirões, espetos e garfos do inferno. Tudo para incitar-nos a ocupar com o pudor e

recato. E pensar que, anos depois, ele mesmo foi

abafadamente afastado da igreja

por pura e simples prática de

pederastia”. Uma chispa de riso aflorou nos lábios do velho padre. “Oh Pai, que pensamentos! Perdão Senhor... E perdoa, Pai, as nossas ofensas...”. Mãos

entrelaçadas

no

ventre.

Os

polegares

tocando-se

nervosamente até que os olhos se desviam para as pedras do piso. “Assim como nós perdoamos aos nossos devedores. O que será essa trilha aqui? Meu Deus, serão cupins? Não. São formigas. Esses insetos indiferentes, eternamente presentes em tudo, a andar nesta fila, neste vaivém ordeiro. Só queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui. Ih! Parece que uma delas se perdeu da marcha, se desorientou e vem para o lado de cá. Será que ela me alcança os pés? Hum! Dou-lhe um pisão. Não, não ela, que tão desorientada, deve estar levando as patinhas à cabeça, como uma pessoa enlouquecida. Como a mulher do Amadeu na televisão. Não, as formigas só aprenderam a doce candura da subsistência. Nunca experimentaram o ódio de que sempre foi feito o perdoai uns aos outros das religiões humanas... Hum... E não nos deixeis cair em novas tentações, Senhor... Nunca conheceram o que é um bispo”.

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Recolheu os pés calçados nas velhas alpercatas de couro e cruzou-os embaixo do banco. “É certo que o Palhares não falou explicitamente em vender a igrejinha. Mas hoje quando tudo está sendo vendido... Tudo! E aquele padre espanhol com o olhar de inquisidor

que estava junto com o

Palhares? Santo Deus!”. As veias do pescoço mostravam-se salientes, as rugas do rosto vincadas. “Mas livrai-nos de todos os males... E tudo acontecendo para o meu juízo ferver... São os sem-terra que vivem a me bater nas portas. São os sem-teto, são os sem-emprego. É a pastoral carcerária dos excluídos de tudo. São os maconheiros e os traficantes a se matarem uns aos outros. Essa sucessão de tragédias sem parar, sem nexo, sem sentido. Essa associação livre da violência no império do está acontecendo. Queira Deus que eu tenha nervos para suportar essa loucura... Onde foi mesmo que eu estava? Sim. Mas livra-nos de todos os males, Senhor. E o Palhares. Ah, Palhares...”. Trouxe o corpo para a borda do banco e ergueu a vista. “O Senhor tem que me acudir para que essa tal venda não se concretize. Como é que pode? Onde já se viu padre sem igreja, sem teto, sem terra? O Vaticano. O papa não está vendo isso não é? Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco. Ô! Não era essa reza não, É o Pai Nosso. O que vai ser de mim?” Levantou-se. Com um frêmito de mãos parecia chamar Deus à Razão. “Já não basta, Pai, o brutal afastamento dos fiéis? Nem os antigos têm vindo mais. Senhor... Eu sozinho... Sem ter quem auxilie nas missas, nos trabalhos que exigem assistência, e ainda por cima ter que limpar tudo e cuidar da horta”. Tornou a sentar-se inquieto.

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“Só eu sei aqui dentro como está o meu coração. Tantos anos a serviço da igreja. Da igreja, não! Em primeiro lugar, como servo do Senhor, cumprindo, honrando na castidade o compromisso que assumi. Aqui, agora, sozinho, sem ter quem me dê a mão na hora da minha morte. Prestes a virar mais um velho abandonado na Santa Casa, a ser cuidado pelas irmãs de caridade. As irmãs... Eu que nunca me casei. E Marina. Onde será que anda a Marina? Aquela perdição. Será que ainda vive? Ou não? Ah! Minha vontade mesmo é chorar...” Faz esforço para interromper as lágrimas que lhe crescem nos olhos e, certamente – a julgar pelo olhar suplicante que lançou - divisa no altar principal a imagem do Cristo de marfim, com os braços pregados na cruz de jacarandá, entortada e refratada pelas lágrimas. “O que me vale é que o Senhor meu Deus sempre me ensinou o caminho da paciência. Se não fosse isso, não sei o que seria de mim. Paciência e resignação”. Deu ao rosto uma expressão mais aberta, conformada; ou melhor, uma expressão obediente. “Acatar os desígnios da providência... É triste não ter com quem falar, não poder ser ouvido neste mundo desconexo e brutal. Que ironia, tanta tecnologia e a humanidade feito um formigueiro desbaratado... O mundo mudou muito... Mudou demais... Meu Deus, que horror...” Levantou-se, fez o sinal da cruz, espreguiçou os braços e soltou um longo suspiro de resignação depressiva. Nesse instante, rompendo o silêncio sem fala possível, um casal de pombos levantou voo da torre do sino rumo ao inatingível céu azul. KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS é escritor e pesquisador. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo, Gato de Telhado, Um Novo Século, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 coletâneas e antologias, além de textos publicados em revistas literárias estrangeiras. Seu último livro, O Touro do rebanho (Chiado), obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. | GOESKA15@GMAIL.COM

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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