Revista subversa vol 4 nº8 maio2016

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SUBVERSA Vol. 4 | n.º 08 | maio de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração | MUTES

VANDER VIEIRA | YURI CLARO DAVID COUTINHO | SABRINA DALBELO GLAUBER COSTA | EDSON AMARO AULUS MANDAGARÁ MARTINS | SAT AM MAURÍCIO GOLDANI LIMA | MIGUEL LEAL


WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA @CANALSUBVERSA CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 08

© originalmente publicado em 02 de maio de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações MUTES| BLOG | mutespintor@gmail.com

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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SUBVERSA AULUS MANDAGARÁ MARTINS | [O SUICÍDIO DOS AMANTES]|6 DAVID COUTINHO | ARRANHA-CÉU | 8 EDSON AMARO | MADAME SATÃ | 10 GLAUBER COSTA | O MONSTRO FAMINTO | 12 MAURICIO GOLDANI LIMA | UMA BARATA POR DIA | 15 MIGUEL LEAL | O EXAME | 20 SAT AM | TRANSCEDÊNCIA | 25 SABRINA DALBELO | FIM DE MIM| 27 VANDER VIEIRA | DESCAMINHO | 29 YURI CLARO | ABRAÇO | 32

SOBRE MUTES: "São danças de uma mão que desenha de forma despreocupada" | 34

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EDITORIAL A literatura é uma defesa contra as ofensas da vida. Cesare Pavese, “Il Mestiere di Vivere” Um procura algo que lhe favoreça as ideias, outro procura algo que as destrua. Georges Braque

Gostar de literatura não é uma decisão simples. Implica se entregar à possibilidade de se perder em várias direções. Implica habituar-se à ideia de ter quebra-cabeças na mente, que volta e meia podem entrar em conflito, questionar a maneira com que os olhos veem o mundo, as pessoas, a arte e a si próprio. Gostar de literatura também não é uma decisão temporária. Uma vez atravessada a linha (ou, como disse Drummond, uma vez “trazida a chave”), este eterno remontar de peças estará sempre lá, esperando por novos códigos de montagem, porque gostar de literatura também é descobrir continuamente novas formas de se comunicar e de ser comunicado das coisas. Gostar de literatura é, sobretudo, criar um código próprio de entender e expressar a relação com a realidade, encontrar uma forma autêntica de viver. Este número está fragmentado, tanto pela série de textos que falam de corpos despedaçados, fragmentos de sonhos e esperanças cortadas, como as imagens do artista plástico português Mutes. Reconhecido pelo trabalho de desconstrução e decomposição dos elementos da obra, o artista dialoga com a comunicação do inconsciente, fragmentária das impressões e emoções que dão sentido ao existir. Tão perplexas como a arte que aqui se apresenta, nós, editoras, perguntamos: Quantos cacos poderão juntar essas páginas? Desejamos a todos uma boa leitura. As editoras

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Em breve, Subversa vers達o impressa #2

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“O rapaz que oferecia couves à rapariga que tocava viola”, tela de Mutes

[O SUICIDIO DOS AMANTES] AULUS MANDAGARÁ MARTINS | Pelotas, RS.

o suicídio dos amantes cada vez que, na cama entrelaçados numa estranha morte mergulham num mar de espasmos

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depois, nada mais além de dois corpos devolvidos à vida na praia branca dos lençóis

AULUS MANDAGARÁ MARTINS é professor de literatura na Universidade Federal de Pelotas. Blog: https://aulusmandagaramartins.wordpress.com | AULUS.MM@GMAIL.COM

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“O burguês no 25 DES`Abril de 2015”, tela de Mutes

ARRANHA-CÉU DAVID COUTINHO | Rio de Janeiro, RJ. Observava através das janelas o movimento da vida do lado de fora. A gravata apertava seu pescoço, sua fé afrouxava a imaginação. Sentia que mesmo numa cadeira giratória, se fechasse os olhos, poderia girar pelo mundo. O sol já se preparava para dormir, uma vista maravilhosa, senão fossem os prédios em volta. De terno amarrotado, só queria descalçar os pés e se jogar na cama macia. Por hora, continuava observando toda profusão de pensamentos dentro de si. Ali pôde notar coisas grandiosas, de maneira que não seria possível

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mensurar. Descobriu um verdadeiro mundo por trás dos seus próprios olhos. Nunca tinha se visto tão de perto, era assustadora a precisão dos traços. Sentiu vontade de respirar o mormaço da chuva quente que antes limpou as janelas. Prensado pelo paletó que não lhe dava descanso, somente inquietação, seu corpo se consumia enquanto tirava as roupas e saltava em pares os degraus para cobertura; era mais rápido subir, estava nas alturas, num arranha céu. Decidiu que arranhar o céu não seria apenas uma regalia dos prédios de concreto. Todo limite e falha por trás das janelas irrompiam naquele lugar. Correu sem a preocupação que lhe seguia tombar, e da beira saltou para imensidão azul: sem gravata, paletó ou janelas. Vislumbrou o sol enquanto pairava no ar. Finalmente arranhou o céu, com suas unhas bem cortadas e polidas. Em tanto tempo de existência, pensou consigo, aquele imenso azul jamais recebeu melhor carinho.

DAVID BARRETO COUTINHO é professor e pesquisador por ofício, escritor por prazer. É formado em História e possui mestrado em História Política, tendo assim alguns artigos publicados em revistas especializadas nesse meio. Atualmente, dedica-se a pesquisas na área de Ciência da Informação e a divulgação de seus textos literários. | BARRETOCOUTINHO2@GMAIL.COM

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“(DES) Cubismo Contornismo n.º 29”, Tela de Mutes

MADAME SATÃ EDSON AMARO| São Gonçalo, RJ.

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Para o bloco carnavalesco “Planta na Mente” Vi Madame Satã no carnaval Dançando sem camisa. Que deleite O umbigo apetitoso, cor de azeite De dendê esse corpo escultural! Lábios rubros, bigode fino, qual Folião que seus beijos não aceite? Qual cavalo em que um santo bem se ajeite Girava e se torcia em espiral. Sambou da Lapa à Praça Tiradentes, A pele encharcando de suor, A saia abanando as coxas quentes... As cinzas dessa Quarta já desfeitas Das lembranças me restas a melhor, Travesti que meu bloco bem deleitas... (11/2/2015)

EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública estadual do Rio de Janeiro. Publicou pela editora Buriti sua tradução do romance “Valperga”, de Mary Shelley | PLANTEARVORES2@GMAIL.COM

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“Já cheiram mal há muito”, tela de Mutes

O MONSTRO FAMINTO GLAUBER COSTA | Ubatã, BA. Naquele tempo, ouvia-se muito falar sobre um monstro que perambulava nos arredores do vilarejo. Os aldeões, todas as noites, faziam uma fogueira na parte central da vila, como uma promessa aos deuses, em troca de proteção. Porém, seja pela consciência dos sábios,

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seja pela natureza de toda imaginação sobrenatural, todos tinham em mente que, a misericórdia dos deuses é pouca e, por isso, um dia aquele monstro iria invadir tudo e destruir a todos, indubitavelmente. Apesar disso, o dia a dia na vila era controlado. Tarefas eram bem divididas e disciplinadamente cumpridas. Homens e mulheres juntavamse nas colheitas, na caça e nas atividades domésticas. E no final das tardes, todos levavam metade de toda a produção, pública ou particular, para ser oferecida aos deuses, na fogueira. A vida ali era uma tentativa coletivamente sóbria de adiar a morte. No entanto, dentro dos lares, tinha certa tensão. À noite, em algumas cabanas, havia sempre alguma discussão na divisão da comida, que sobrava sempre pouca, do trabalho coletivo. Em outras, via-se demonstrações melancólicas de sacrifícios e de generosidade em prol dos mais jovens. Mas ainda assim, a fome se fazia sempre presente. De umas noites para cá, uma das cabanas estava mais tumultuada do que as outras. Isso porque havia nascido um choroso bebê. E a sua chegada dava naquela gente um misto de alegria e apreensão, visível pelas sombras que a grande fogueira fazia daquelas pessoas à noite. Em uma dessas noites habituais, uma daquelas sombras se destacou do aglomerado que se fazia na casa da nova criança. Era a mãe. Chorosa e aflita, ela saíra de perto das bocas cheias de ameaças em sua casa. E caminhara em direção à fogueira, que já ardia a todo vapor. Deitou o menino raquítico no chão e sentou-se, tristonha. Foi quando viu uma movimentação por trás da fogueira. Alguns aldeões estavam jogando madeira no fogo. Porém, aguçando a visão, a mulher conseguiu ver sob a luz trêmula do fogo, outros carregando os recursos destinados às oferendas para longe da fogueira. Desesperou-se. Correu, berrando, a denunciar o desvio de recursos, a fim de solucionar a fome

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do filho, que acabara deixando ali no chão, no impulso de ter, enfim, encontrado a impossível saída. Sem nem mesmo pensar que isso implicaria no questionamento ao sistema de crença de toda a sua terra. Os gritos da mulher alarmaram o povoado. Todos saíram com armas na mão, e alguns até gritaram, jurando terem visto o monstro invadindo a vila. Toda a confusão despertada suprimia a voz da mulher, que se confundia com a amálgama de gente para todo lado. Até que um tiro unificou a visão de todo mundo. Era na direção da mata. Outro tiro, no mesmo lugar, despertou um urro grotesco. Muitos, então se ajoelharam, suplicando aos deuses piedade. Fez assim também a mulher, apavorada e sentindo-se absolutamente culpada pelo despertar do carrasco de todos. Quem não ajoelhou fugiu para sempre ou foi na direção do berro monstruoso. Alguns desses últimos, exaltados, apontavam, aflitos, marcas de garras enormes nas árvores e acabaram ajoelhando-se também. Apenas um homem e uma mulher sobraram de pé, anunciando terem visto a cara do demônio, e gelaram paralisados de pavor. Todos, então, escutaram os berros da fera, cada vez mais altos e agoniantes, em seu anúncio definitivo do fim daquele povoado. Até que cessou. Fez-se um silêncio medonho. Após alguns minutos de angústia resignada, aos poucos, as pessoas começaram a se levantar, perscrutando se havia ainda vida neles próprios e no lugar, quando viram o monstro caído, todo ensanguentado e despedaçado no chão, e por cima dele a criança recém-nascida, devorando-o, com ferocidade faminta, pedaço a pedaço, a saciar a sua fome.

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou o conto “Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte do primeiro volume impresso. Escreve no blog glauber-manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage do Facebook chamada Manuscritos. | GLAUBER.COSTA@HOTMAIL.COM

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“Manifestações Subversivas”, tela de Mutes

UMA BARATA POR DIA MAURICIO GOLDANI LIMA | Cachoeirinha, RS.

Um leão por dia não é um desafio realista Primeiro porque nunca vi um leão Segundo: todas as pessoas que conheço e que viram um leão o viram em uma jaula de zoológico doente e mal alimentado (ninguém tem grana pra um safari na África) Então, mesmo que fosse um desafio realista matá-lo não seria difícil Nos safaris envelhecem e morrem sem nossa ajuda então pra que interferir?

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Aqui, para matá-los a negligência e indiferença nossa de cada dia basta Com baratas o caso é diferente a negligência as atrai surgem quando menos se espera quando estamos distraídos cuidando de nossas vidas São rápidas, ariscas voam, fogem, se escondem, voltam Claro, baratas não inspiram tanto medo quanto leões - embora alguns possam discordar – e matá-las não é um grande ato de coragem - idem – mas sim são as pequenas coisas que podem levar um homem gradativamente à insanidade como matar baratas todos os dias ou manter a casa limpa para que elas não venham

Enquanto escrevia uma barata surgiu pelo lado do colchão tomei um susto e derrubei o copo de vidro que segurava estilhaçou-se no chão A dificuldade depois

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foi matar o ágil inseto sem cortar meus pés descalços nos cacos de vidro

Outro dia quando fui ao banheiro vi que havia esquecido um copo sujo na pia - onde lavo a louça por falta de uma pia no quarto/sala/cozinha – nele jazia uma barata morta afogada Despejei a água no vaso e puxei a descarga Ela não afundou Naquela semana a casa ficou fedendo e desconfiei que havia sido por causa da barata embora possa estar errado Ela só afundou depois que a enrolei em papel higiênico

Teve também a vez que eu estava sentado no vaso cagando só de cueca e meias quando uma barata surgiu serpenteando por entre meus pés Não entendi se ela queria fugir me atacar ou se só estava confusa, perdida Fiquei na dúvida sacolejando meus pés para lá e para cá numa espécie de samba que se faz cagando e sentado ora desviando

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ora tentando acertá-la até que ela fugiu pelo vão da porta Matei-a apenas após no corredor que dá para a rua mas pode muito bem ter sido uma outra barata qualquer

Numa outra ocasião estava cozinhando e uma barata caiu dentro da panela de arroz A dificuldade além de tirá-la de lá e tentar matá-la foi decidir se jogava o arroz todo fora ou se tentava cuidadosamente selecionar os grãos de arroz intocados pelo sujo animal

Sim são as pequenas batalhas As batalhas sujas que não são contadas As baratas sujas que surgem nos sujos cantos por entre os vãos das paredes

Hoje eu dormia quando na escuridão você surgiu rastejando com suas minúsculas patinhas sobre meu rosto Acordei de sobressalto e ainda meio desacordado

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joguei meu chinelo tentando acertar Errei Você fugiu acho que tão assustada quanto eu e se escondeu em alguma fenda da parede do meu quarto vazio

MAURICIO GOLDANI LIMA esqueceu o lirismo no chão do quarto. Baratas levaram para o ninho no esgosto. Para alguns escrever é uma espécie de parto. Para ele é uma espécie de aborto. | MAURICIOGOLDANILIMA@GMAIL.COM

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“Coluna Central de um (des) governo corrupto”, tela de Mutes

O EXAME MIGUEL LEAL| Loulé, Portugal

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Obrigado Maurix! António L. tremia as pernas enquanto esperava diante do gabinete do juiz dos serviços de vigilância do cidadão. As algemas, que sufocavam qualquer movimento seu, chocalhavam com a mesma frequência dos seus tremores. Este nervoso miúdinho que costumava invadir qualquer prisioneiro devia ser algo a que o guarda que o vigiava já se habituara, tanto que bateu com o bastão na palma da mão e apontou-o para L.. - Não te iludas. - disse ele. O prisioneiro levantou a cabeça, cruzando o olhar com o do vigilante. - O que há para iludir-me? - perguntou L.. - A tua memória. - disse o guarda, e depois perguntou: - Nunca leste o livro do senhor juiz? - Não sabia que tinha escrito um livro. - respondeu L. - É mais um manual de direito, mas escreveu. Nunca o li, pelo que te vou contar apenas o que me disseram. - informou o guarda. - Está no livro do senhor juiz escrito assim: "Aparece-me um homem a quem, por ordem superior, fora indulgenciado. Contudo, é sabido que a indulgência não significa libertação. O prisioneiro tem que ser interrogado por um juiz da vigilância do cidadão, onde o primeiro, por intermédio da consulta do diário que descreve cada acontecimento da sua vida, deve encontrar e estar ciente do episódio primeiro que o levou a cometer o crime." L. interrompeu o guarda prisional: - Quem é que escreve esse diário? - São os serviços de vigilância do cidadão. A cada pessoa está atribuída um vigilante que regista tudo o que faz num diário. Por exemplo, o seu tem o título de "Diário do Cidadão António L.". - disse o guarda. Depois, prossegue a contar a história do manual do juiz. - O senhor juiz continua lá escrevendo assim: "Portanto, tenho o homem

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sentado do outro lado da secretária, à minha frente, procurando no seu diário o tal episódio. Folheia aquelas páginas dactilografadas, algumas delas amareladas, e, a certa altura, aponta para um parágrafo e procura-me o olhar em busca de confirmação. Abano a cabeça e explico-lhe que é possível que não tenha sido esse episódio a desencadear o crime. "Mas foi aqui que disparei a pistola", diz ele. Peço então que procure o episódio anterior, aquele que causou o disparo da pistola. Folheia o livro durante mais alguns minutos, e aponta para uma frase. Sei qual é o episódio, e pergunto-lhe, "Tem a certeza?". "Foi aqui que me apaixonei por ela", diz ele. Insisto, "Mas, tem a certeza?". Ele responde-me, "Certeza, certeza, não tenho...". "Sem a sua certeza nada posso fazer", digo-lhe. Acendo um cigarro e fico observando o homem enquanto folheia o seu diário por mais uma hora. Está calor e as gotas de suor escorregam-lhe pela testa até empaparem as sobrancelhas. Pouco falta para que estas também pinguem suor para o papel. «Eis que me aponta para outro episódio, mas antes que eu lhe pergunte se tem a certeza, refere outro episódio anterior ao que acabara de referir, e depois outro ainda mais anterior, e por aí adiante até atingir uma conclusão. "Por isso, está a dizer-me que matou-a porque nasceu, ou, reformulando, que foi o episódio do seu nascimento que provocou a morte da mulher?, pergunto. "Foi isso mesmo que disse", responde o prisioneiro. "Está certo disso?". "Sem dúvida.". "Portanto, só para que não restem dúvidas, se você não tivesse nascido a mulher não teria morrido. Confirma?". "Confirmo". "Pois bem, pode ir embora. Logo saberá a minha decisão", digo-lhe enquanto apertamos as mãos. Nota-se o alívio do homem através de um expiro seu. «O guarda entra dentro do gabinete para o levar, por fim. Então, fecho o seu diário e volto a guardá-lo na estante. Se o prisioneiro afirma que o motivo do crime, e, por consequência, da prisão, foi ter nascido, então

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não posso assinar a sua liberdade. Riscar o seu nascimento do diário seria apagar todo o registo enquanto cidadão, e como se o matasse. Ora, nenhum cidadão deve permanecer no anonimato." António L. continuava a olhar o guarda, e perguntou-lhe: - Mas não é a função do senhor juiz eliminar do diário o episódio da nossa vida que favoreceu o crime, e, como tal, libertar-nos? O guarda soltou uma gargalhada, e disse: - Pareces-me um tipo às direitas, e é por isso que te conto isto. Não estás a perceber. O problema é que o senhor juiz influenciou a decisão do prisioneiro. Repara que o prisioneiro não se consegue decidir porque aquilo que lê no diário não coincide com as memórias que guarda. - Diz que o diário está errado? - Não. Nós é que podemos falsear as nossas próprias memórias com o decorrer do tempo. - Então é por isso que o homem não tem a certeza de nenhum dos seus episódios, a não ser ter nascido? - Exacto. - diz o guarda. - Não está sequer certo de que se de facto matou a amante. - Ou seja, nem sabe por que está preso. - concluiu L. - Ora, era aí onde queria tu chegasses. Se a culpa é de ter nascido, logo não tem consciência do verdadeiro motivo para estar preso. Ora, libertar um homem que não sabe por que razão cometeu um homicídio é tão grave quanto perigoso. No momento em que António L. e o guarda prisional terminam o diálogo, a maçaneta gira e a porta abre-se. Sai um outro prisioneiro acompanhado de outro guarda que o leva corredor afora. - Seguinte! - grita o diretor dos serviços de vigilância do cidadão, escondido no fundo do escuro do gabinete, sentado atrás da secretária.

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O guarda prisional ajuda L. a levantar, pisca-lhe o olho, e entram no gabinente. Entretanto, a porta fecha-se para entregar a mais um prisioneiro o exame de acesso à liberdade.

MIGUEL VIEGAS LEAL tem 20 anos, é de Loulé, Algarve, mas actualmente estuda na Universidade da Beira Interior, Covilhã. Começou a escrever aos 14 anos, logo que compreendeu que através da escrita podia acessar mundos que de outra forma seriam impossíveis de visitar. Tem contos publicados em vários sítios na internet, além de livros infantis em fase de edição nos EUA, em português e inglês. Obteve uma menção honrosa no II Concurso Literário Francisco Guerreiro, na vertente de prosa, com o conto "a menina que queria desafinar". Espera aprender a escrever cada vez melhor e que possa fazê-lo por muitos anos vindouros. | MIGUEL.VIEGAS.LEAL@GMAIL.COM

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“(DES) Cubismo Contornismo n.º 26”, Tela de Mutes

TRANSCENDÊNCIA SAT AM | Curitiba, PR. Nessa carcaça vazia os vermes fizeram morada, Naquilo que um dia foi um alguém. Essas gotas frias de colossal magnitude se chocam contra o solo, E o estrondo que se ouve é ensurdecedor, Assim como um dia minha voz no escuro, Chocou-se contra o vácuo produzido pelo limbo do esquecimento.

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Ninguém me notou, andando entre sombras perdidas de um cosmos vazio. A matéria negra exalada de minha boca criou novas mortas estrelas, E o caos que pôde ser visto em cores translucidas; verde, amarelo, A fosforescência assombrosa que leva ao delírio do “o que existe lá?”. E agora esse exuberante timbre que rasga meus tímpanos. Você não sabe sobre os horrores que me visitam em sonhos de loucura, Não imagina as abominações que me foram apresentadas, Sequer pode imaginar aquilo que da escuridão ronda meus dias, E me leva a esquecer... Onde aquele pássaro fora pousar? Ele ainda vive, ou apenas continua vagando entre planetas antigos? Circundando-os em velocidade sônica, Deixando para trás seu rastro de penas vermelhas caídas sobre constelações.

SAT AM é estudante de Letras-Japonês da Universidade Federal do Paraná. Desde que se entende por gente, escreve poesia/músicas como válvula de escape. Seus textos sempre estão carregados dos seus pensamentos: Ódio, raiva, terror, luxúria, são temáticas recorrentes nos meus trabalhos. | ANDREY_SAT@HOTMAIL.COM

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“Pelo meu relógio são horas de pintar”, tela de Mutes

FIM DE MIM SABRINA DALBELO | Bento Gonçalves, RS. Num berçário de crianças mortas Almas reféns repousam em luto Aturdidas atrás das portas

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Desfiguradas dançam em vultos

Má sorte, ódio, decisões tortas Não se sabe ao certo qual o tributo O grande vazio que a vida comporta Embarreirada no absoluto

Brinquedos coloridos intocados Lembram a festa que não será Anunciam ausência de convidados

Beijos frios, abraços não trocados Cobram uma vida que só passará Do ventre seco de frutos desejados

SABRINA NUNES DALBELO é gaúcha, graduada em Direito, servidora pública do Ministério Público Federal e escritora de tudo um pouco. Participa de vários grupos literários e mantém as páginas do Facebook “Se Tem Nome Existe”, onde publica contos, poesias e algumas poucas crônicas; e “Pensamento Sem Moldura”, com aforismos e pensamentos. Já participou de algumas antologias poéticas pelas Editoras: Poesias Escolhidas (Belo Horizonte), Grupo Pastelaria Studios (Lisboa – Portugal) e LiteraCidade (Macapá), mas ainda não publicou seu livro solo. Utiliza-se das dualidades e dos paradoxos para contar as coisas da vida. Escreve sobre tudo um pouco, e a qualquer momento, e tem como característica não revisar seu texto, que comumente é postado online, na hora em que é criado. | SABRINADALBELO@HOTMAIL.COM

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“Não à pedofilia”, tela de Mutes

DESCAMINHO VANDER VIEIRA | Vitória, ES.

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A Luiz Antônio do Nascimento

São indigestas estas veredas: pedras e facas cegas, doses de pouco amor. Se bifurcam pra lá e pra cá e acolá não se bifurcam: pedras e facas cegas, meias palavras, conversa fiada. Meias palavras, densas ausências e pesadas fraturas – passos e mais passos, os mesmos rumores e estilhaços: pedras e facas cegas, farpas na carne do dedo. Sai ferido o sangue, o coração sai em pedaços, os membros inferiores, pâncreas e fígado, todo um corpo maltrapilho, quase sucumbindo: pedras e facas cegas, todo um corpo maltrapilho. Sem riso pelas águas jogadas escada a baixo, as águas que não são de rio ou de mar,

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as águas que já foram minhas águas e não mais retornarão: em meio aos escombros do corpo e da casa, pregos, cães dilacerados, em meio aos escombros do corpo e da casa. Eu não colherei os frutos maduros dos teus lábios tampouco sentirei o teu pulmão novamente colado ao meu: por que diabos esperar a primavera quando já não há mais dia?

VANDER VIEIRA é poeta, mineiro do interior e tem 26 anos.É filho do Luiz e da Eunice e tio da Maitê. Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, vive em Vitória/ES desde 2009. Publicou há poucos meses seu primeiro livro, "Descaminho", pela editora Multifoco (http://editoramultifoco.com.br/loja/product/descaminho/) e também já foi publicado pelas revistas Subversa, Samizdat, Diversos Afins e Mallarmargens. | VANDERVIEIRA22@GMAIL.COM

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“O homem que praticava descompressão manual na tela”, tela de Mutes

ABRAÇO YURI CLARO | Santo Antônio da Platina, PR.

Não permitem as forças que possuo nos meus braços te abraçar até que se despedace em tantos vocês numa profusão de sangue e vísceras pelo chão,

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meu amor. mas, se num arroubo desses que pode por vezes acontecer a fragilidade da nossa humanidade me acometesse desumana, tal força então apertaria cada pedaço como se dele fosse nascer uma nova você à moda das caravelas que vivem em recônditos abissais no profundo do mar Cuidaria então de cada fragmento para que não apodrecessem deixaria no gelo, leria-te histórias e nos pedaços do seu crânio, pentearia os tufos irregulares cacheados despontando dormiria entre fragmentos entalhados dos teus ossos, em fraturas expostas e beijaria teus coágulos, de dias, manchando as paredes da nossa sala. Então, quando me cansasse e haveria de cansar abraçaria de volta todos os pedaços num amontoado com força, sobrenatural até ser você de novo.

YURI CLARO é estudante das letras na Universidade Estadual do Norte de Algum Lugar, passa a maioria do seu tempo a sentar-se em diferentes lugares e sofrer por esse mundo de hoje. Sua idade não importa, mas se importasse, teria 19. | YURICLARO@GMAIL.COM

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Sobre MUTES: "São danças de uma mão que desenha de forma despreocupada" BLOG | PORTFOLIO | mutespintor@gmail.com MUTES (França, Margny Les Compiegne, 1976) passou a viver em Portugal em 1986. Frequentou a escola até ao 12º ano, onde depois decidiu dedicar-se ao rock and roll. Pintor autodidata, iniciou a sua carreira nas artes em 2000. Fez algumas incursões pelo mundo da música e do teatro, foi baixista da Banda Primitive Noise, e DadaBeat, entre 1995 e 2005. Trabalhou no coletivo de teatro experimental A Traça. Expõe com regularidade desde 2004 em Portugal e no Estrangeiro, em exposições individuais ou coletivas. Está representado em diversas coleções nacionais e estrangeiras nos 5 continentes. É amante do Cubismo, trabalha a corrente pictórica (DES) Cubismo Contornismo e as suas inúmeras

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figuras mutantes e imaginárias numa explosão de cores e danças de estranhos movimentos. Organiza e projecta várias exposições, foi fundador e curador dos colectivos de pintura, M4K1, Um Coletivo no Individual, H.e.x.a e M.O.C.A. Frequentou alguns ateliês onde aprendeu técnicas do contornismo, acabando por fundir com a sua forma de fazer Cubismo. Mutes pinta o estado de espírito, aquilo que o rodeia, por vezes o momento, a crítica social ou religiosa, tudo aquilo que lhe serve como força interior para projectar na tela.

“As influências na minha fase inicial foram sem dúvidas a escola do grande Jackson Pollock. Com o passar dos anos desenvolvi o meu próprio traço e a minha forma de pintar. Na minha colecção designada (Des) Cubismo Contornismo, busco a desestruturação da obra em todos os seus elementos. Decompondo a obra através de figuras mutantes imaginárias, registo os elementos em planos sucessivos numa visão total da figura, contornando-a nas suas dimensões, sob estranhas e variadas formas com o predomínio de linhas curvas e rectas, numa estruturação das figuras e dos objectos desajustados. São danças de uma mão que desenha de forma despreocupada, usando o (DES) Cubismo como forma de se afirmar”.

Mutes

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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