Revista subversa vol 4 nº5 março2016

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SUBVERSA Vol. 4 | n.º 05 | março de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração | THAÍS NOZAKI

ERICK AMANCIO | RAFAEL SIMEÃO LUIZ DA FRANCA | RENATO OLIVEIRA | ANDRÉ GUILHERME PAULO GABARDO | SABRINA DALBELO | EBER S. CHAVES EDSON AMARO | PEDRO BELO CLARA


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 05

© originalmente publicado em 15 de março de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações THAÍS NOZAKI| PORTFÓLIO | FACEBOOK | BEHANCE

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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SUBVERSA ANDRÉ GUILHERME | OMAR | 6 EBER S. CHAVES | À MARGEM | 9 EDSON AMARO | OURIQUE | 11 ERICK AMANCIO | BOTÃO DE FLOR | 14 LUIZ DA FRANCA | CEILÂNDIA À ESQUERDA – 24,8km | 16 PAULO GABARDO | DÍPTICO LITERÁRIO: CONTROLE | 22 PEDRO BELO CLARA | O TARDAR DAS ESTRELAS | 34 RAFAEL SIMEÃO | OSMOSE NÃO AUTORIZADA| 36 RENATO OLIVEIRA | ERVAS DANINHAS | 39 SABRINA DALBELO | O BOM REI NOS ENSINOU TUDO | 43

SOBRE THAÍS NOZAKI: “Silenciei essa paixão por anos” | 46

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EDITORIAL “Eu te dou pão e preferes ouro. Eu te dou ouro mas tua fome legítima é de pão” Clarice Lispector (Jornal do Brasil, 1971)

Em mais um número de Subversa, buscamos unir nestas páginas uma diversidade literária que procura o equilíbrio. Por um lado, o equilíbrio estético que foi feito a partir de um trabalho de análise, seleção, revisão, ilustração e edição. Do outro, o desequilíbrio que a leitura é capaz de provocar, colocando à mostra a dicotomia que a literatura põe em prática: encontrar na forma estética “perfeita” a melhor maneira de instalar o incômodo. Na escrita, não há equilíbrio possível. Não há a definição da localização exata “daquele” ponto. Quando muito, o escritor vivencia por alguns instantes um momento de unificação, quando consegue encontrar a maneira de exprimir algo não comunicável em linguagem comum. Se esse ponto fosse permanente, é fácil concluir: não haveria a próxima obra, o próximo texto. Neste quinto número do nosso Volume 4, as ilustrações de Thaís Nozaki contribuem para que a experiência seja ainda mais confortável e desconfortável, simultaneamente. A artista é de São José dos Campos, trabalha com técnicas variadas e interligadas que vão do grafite à aquarela. Seus trabalhos podem ser adquiridos em forma de sketchbooks com capas autorias. Desejamos uma ótima leitura a todos. As editoras.

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Em breve, Subversa vers達o impressa #2 5


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OMAR ANDRÉ GUILHERME | Santo Antônio da Platina, PR.

Enquanto o Sol dormia alguém vagava Quando o Sol acordou continuou vagando enorme vaga rebentando contra o cais de uma calçada qualquer Ancorado à beira-bar Omar se afoga no seu próprio vômito Homempeixe fora d’água nem peixe nem homem só água ardente Enquanto o sol arde queima a pele

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no asfalto quente nem vê passar toda essa gente que também o ignora Omar ressaqueado acorda e espera a Lua pra poder subir

ANDRÉ GUILHERME está em aprendizado da arte poética há 3 anos. Costuma dizer que é a voz que fala em sua cabeça e toma conta dos seus sentidos. Tem um poema publicado no Concurso Rima Rara de 2013, realizado pela Biblioteca Nacional Brasileira. Atualmente está tentando publicar um livro independente. Cursa o 2° ano de Letras/Inglês na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP. Tem como influências Paulo Leminski, Fernando Pessoa, em especial Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, Arnaldo Antunes, Ferreira Gullar, dentre outros. | ANDRÉGUILHERME.A@GMAIL.COM

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À MARGEM EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

Se não fosse por escravidão não dariam a João o pão que o diabo amassou com falsa jura e a vida seguiria sem perder

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a ternura. Se não for por zombaria não darão a Maria a alegria de uvas viníferas do vinho da amargura e a vida seguirá sem perder a ternura. Mas e quanto a José, que dorme o presente do sonho de Ícaro deitado numa cama de gato posta em cima do telhado? A vida, ainda assim, segue. Aqui, no novo velho mundo para Joãos, Marias e Josés a vida segue – e persegue periférica, desigual entre ruas, becos e vielas à margem, invisível num recanto qualquer de alguma metrópole latino-americana.

EBER S. CHAVES (Itaquara, 1979) atualmente reside em Vitória da Conquista/BA. Graduado em Administração, é blogueiro, apreciador de psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, filmes de ficção e fantasia, rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. | EBER.CHAVES79@GMAIL.COM

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OURIQUE EDSON AMARO| São Gonçalo, RJ.

A Maria Lúcia Wiltshire (que não leu o Gita). “Se, pois, me julgares capaz de te contemplar em teu supremo esplendor, ó Onipotente, mostra-me a tua face e revela-me o teu excelso Eu Cósmico.” (Bhagavad-Gita, Capítulo 11, 4; tradução de Huberto Rohden) “A matutina luz, serena e fria, As estrelas do pólo já apartava, Quando na cruz o Filho de Maria, Amostrando-se a Afonso o animava.” (Camões, Os Lusíadas, III, 45) Sou mais que o Alfa e o Ômega. Estou aquém do A e além do Z. Vagueio entre os verbetes da Britânica. Sou um livro que nunca lestes. Eu sou o Deus que adoras E o ídolo que renegas. Estou em todos os hinos E na fé que desconheces. Sou o pai que castraste E o filho que te apunhala. Sou o irmão que vendeste

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E o discípulo que traiu-te. Sou a noiva que esperas E o carrasco que te aguarda. De teu avô sou o berço, sou teu santo leito adulterino E o esquife de teus netos. E tu? Quem és? Afonso? Arjuna? Moisés? Por que me buscas? Que és para mim? Que tenho para ensinar-te Que sejas capaz de entender?

EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública estadual do Rio de Janeiro. Publicou pela editora Buriti sua tradução do romance "Valperga", de Mary Shelley e no site Amazon, em formato e-book, sua tradução da tragédia "O Rei Saul: Davi em Gilboé" de Vittorio Alfieri. | PLANTEARVORES2@GMAIL.COM

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BOTÃO DE FLOR ERICK AMANCIO | Niterói, RJ.

se até numa terra destruída pela guerra entre escombros e pedras nasce um botão de flor, por que não deveria minha poesia nascer da revolta do ódio e da dor?

ERICK AMANCIO é poeta, artesão e estudante de Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Tem paixão pela arte marginal, seja literária, musical, teatral, performática, visual ou plástica. Frequenta saraus e publica de forma independente o fanzine poético "Certo na Contramão", distribuindo-o como poeta de rua pelo Rio de Janeiro e Niterói. Mantém também um blog e uma página no facebook que fazem parte do mesmo projeto do fanzine (www.facebook.com/certonacontramao | zinecertonacontramao.blogspot.c om.br). Escreve poesia pela necessidade de gritar contra os opressores, de dar vazão à sua revolta, de resistir e de agir politicamente também através da arte, mas às vezes escreve sobre amor, tristeza ou sobre seus pensamentos filosóficos e suas viagens psicológicas. |AMANCIOLITERATURA@GMAIL.COM

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CEILÂNDIA À ESQUERDA – 24,8KM LUIZ DA FRANCA | Rio de Janeiro, RJ.

Certa vez eu tomei um café colombiano, daquele passado num coador bem velho; acho que de uma avó mineira, daquelas bem velhas; acho que de uma família tradicional, daquelas bem velhas; acho que de um Brasil metido a novo, mas que na realidade, habitado por povos menores, e é bem velho, e não se descobriu por completo. Falava que certa vez tomei um café, pois bem, certa vez tomei um café com Clarice Lispector. Estávamos em seu apartamento no Rio de Janeiro, ela, já de mais idade, devorava-me com um olhar doravante sedutor;

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eu, ainda de menos idade, importunava-a com citações, essas, secretas em tempos posteriores. Certa vez, quando tomei o tal café com Clarice Lispector em seu apartamento no Rio de Janeiro, ela, num rompante só, me disse algo estupendo sobre Brasília, ou será que eu li e certa vez delirei?1 Nesse (possível) delírio de prosa, deparei-me com uma instigação, disse ela, A cidade de Brasília fica fora da cidade, ou algo do feiti(ç)o. Certo, digo isso pois algo é certo em minha reflexão retumbante. Ribomba em mim certa bateria em hardcore, certo espaço que tenho certeza, eu vi girafas! e nada delas me fez mais certeza que a incongruência conflitante da Brasília, a dos povos loiros e mortos; e dos morenos e menores, se resolvia na fronteira. Pois, onde mais teria essa fronteira? A sim, tenho certeza, trata-se de Ceilândia!, e vibrei com minha certeza, ainda que ela carregasse no semblante uma certa dúvida. Cá comigo, onde podemos encontrar as girafas? E o que mais são as girafas senão o devir-animal de D.H. Lawrence, como Deleuze certa vez me instigou. O que digo, quando digo que é um Devir-animal? Digo que, como já dizem, o HOMEM é, em sua estabilidade, potente e se impõe a tudo e o animal, uma proliferação capaz de levar o HOMEM à fronteira da civilização. Não costumo proferir obviedades, digo a Clarice, mas essa Brasília que falta cavalos e girafas,

na

realidade

se

trata

de

uma

possibilidade

de

desterritorialização. Ela debocha de mim, sem que eu perceba ela provou

num

retoque

que

aquela

cidade

constantemente

se

desterritorializava e se reterritorializava, mas como? Sendo assim, ela ao chegar, percebia a distância e que, como dito antes no texto 2, aquele lugar fora habitado por HOMEMs(e mulheres) altos, loiros e cegos (a cegueira importa); depois, chegaram uns pequenos e menores (o 1

Certamente o autor delira, nascido em 1989, Luiz da Franca nunca pôde ter tal prosa. A realidade é que leu Brasília ou Brasília: esplendor, ambos textos de Clarice publicados em jornais. Imagino que, no decorrer do texto poderemos solucionar esse mistério, entretanto, certamente não foi uma prosa, mas sim uma leitura. 2

Não era uma prosa?

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menor também importa): naquele espaço houve uma habitação norma, derivativa, falha, onde se construiu um povo modernizado, mas que pouco procriava, a realidade é que eram tão civilizados que se bastavam e num espaço/tempo isso não basta; desse território surgiram os trabalhadores menores, esses que construíram uma outra cidade, uma cidade que devem gabiru, esses, carregados de uma outra língua, que era a mesma língua, tencionaram as relações do que já era pleno e estabelecido; dessa suruba um processo constante de vida e morte tornou aquele espaço que, até então não via HOMEM, um espaço de desterritorialização constante, sendo então, um devir-lobo-guará e nesse dia que a espécie entrou em extinção. Certo, concordo, mas ela continua, Brasília ainda não tem o HOMEM de Brasília, e eu pergunto se esse não seria o habitante anterior, o tal do loiro e alto e cego, mas ela me responde com um seco não!. Trago à tona uma questão, mas ela segue me interrompendo, dois homens beatificados pela solidão me criaram aqui de pé, inquieta, sozinha, a esse vento3, eu sou Brasília e eu aplaudo Brasília e ela sorri sem riso. É certo, então, que aquela Brasília da prosa é um espaço em constante desterritorialização e meu pensamento de que isso só aconteceria em Ceilândia é falho. Desisto 4, pois o que pensei ao iniciar meu relato, esse da prosa com Clarice, em seu apartamento, tomando um café, era de que Brasília sozinha seria norma e só teria fronteira com Ceilândia. E qual a importância de defender esse pensamento? É que o menor moreno na realidade, ainda que aparente doente, é o encantador-curandeiro responsável por tirar do lugar um certo espaço de um HOMEM problemático, esse, que é certo para mim, é Brasília!. Como não pensar na capital, habitada por parlapatões e HOMEMS, que nem sempre são o mesmo, mas muitas vezes o são, poderia ser sozinha um processo de desterritorialização? Clarice, sim, ela me convenceu. Convencer é 3

Confirmo oficialmente, trata-se do texto Brasília.

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Duvido muitíssimo dessa desistência.

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(certamente) infrutífero5 e, portanto, serei breve em minhas palavras redundantes. Brasília como grande obra nunca poderia gerar o processo de desterritorialização, mas sim, ela como espaço de nomadismos irá permitir essa relação apontada por Clarice. Sim, assim sendo, como um espaço sem povo que desesperadamente precisa de um povo para que não se torne um lugar que não o seja para pessoas. Entretanto, Brasília não o é o que já foi ou será. Não que ela vá decorrer do que foi, mas àquela Brasília era construída por nômades, viajantes, pois, (provavelmente) somente quem foge iria para Brasília, do contrário não haveriam de entrar no lugar onde não há como se entrar ou sair. Não há, de maneira alguma, dúvida que ao conceber um espaço ao mesmo tempo incapaz de se concretizar numa cultura, um não-lugar, mas que, ao ser habitado por seres fabricantes de linguagem, Brasília torna, então, a enunciar algo que não é simples, é pungente e pulsante, é o povo que ali construiu e o povo que ali manda6, dessa maneira, é sim possível ver o que Clarice disse. Sim, o é, mas não vou parar, menti! e sei bem disso, não desisti nada e vou seguir em meu pensamento original, acho que forçando um pouco aqui e um muito ali posso tirar um leite dessa pe(d)ra. Sim, é certo que naquela época essa Brasília produzia fronteiras e é tão certo quanto, que noutra época, talvez não. Eu não me meto a falar que a produção de linguagem fora normatizada e os romances enunciados pelos candangos fossem logo territorializados, não à toa são candangos7. Sim, é certo que logo Brasília

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Descaradamente roubado de Walter Benjamin, que, na realidade se utiliza do termo em alemão: überzeugen ist unfruchtbar, que além de conotar a tal tradução, pode significar: super-gerar é infrutífero. 6

O autor se esquece do sábio, aquele devir-coruja-buraqueira, escondido na terra vermelha, fabricando fronteiras nas cátedras da UNB; ou será que ele o coloca nos que mandam? 7

Possivelmente a parte mais inteligente dessa baboseira; aqui ele traz um termo interessante, candangos foram: primeiro, àqueles que migraram para construir Brasília; segundo, é o termo dado aos naturais de Brasília, quando isso se tornou possível; terceiro, é (possivelmente) um termo de origem africana que designa ordinário ou ruim; ultimeiro, é possível que seja um termo do dialeto quimbundo que designe os senhores-de-engenho. Portanto, candango carrega um matiz de significâncias capaz de abranger essa ideia do texto.

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se tornou um espaço territorializado novamente e fora habitado por HOMEMS, dentre tantos outros. O que então acontece para produzir fronteira? O que resolve Brasília? Primeiro, meto-me a resolver algo: esses espaços não criam linguagens e perpetuam noções nocivas, noções poucos instituídas num cenário de egoísmos pulsantes. É estar à direita e ver o mundo a partir dos próprios olhos e não se alocar numa desforra capaz de perceber o mais distante de si como (potencialmente) tão ou mais essencial. Isso, necessariamente, precisa de solução. O café acabou, puxei uma cerveja, uma IPA bem amarga, servi em duas taças, Clarice deu um gole, fechou o rosto, achei que não iria gostar, mas me disse, gostei e eu sorri abrindo um riso. Coloquei para tocar um hardcore fudido, bandas sem nomes que tocam no Ferrock desde 1984 e até hoje, seja lá quando for. O som nervoso a interessou, eu acho8, e fui mostrando calmamente cada louco punk que urrava. Festival Revolução e Rock intitulava um movimento, mas não somente um como uma manada, uma matilha, o espaço para onde os menores morenos se mudaram quando um processo brabo de gentrificação tomou Brasília. Não era mais possível aderir àquela cidade sem perceber que lá a única fronteira capaz de resolver era a sombra suja que ela tentava esconder. Ceilândia, como também, Taguatinga e todas as outras cidades-satélites, eram capazes de formar em Brasília algo que ela mesma não seria. O espaço de Brasília quando habitado por um sertanejo ou roqueiro, certamente seria marcado por uma linguagem correta, mas, quando no devir-lobo-guará seriam capazes de gerar uma fronteira e, assim, produzir linguagens e, assim, ser de novo aquele espaço que foi enquanto Clarice me proseava. Levo a ela o seguinte, sabe a razão das girafas estarem em Ceilândia? e ela continuou me olhando, desafiando-me, certamente. Disse-lhe, em Brasília são todos cachorrinhos e olham com repúdio para a girafa. Clarice logo me interrompe, mas eu gosto de girafas, bom eu também e 8

Será?

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eles?

Pensamos

juntos,

eu

penso,

será

realmente

que

necessariamente Ceilândia é a Brasília fora de Brasília? e de certa forma vou me acomodando com a ideia de que, também, a é, como possivelmente não é, sendo ela sozinha um espaço de HOMEMS e de animais, mulheres e crianças. Vou-me valendo da cerveja, ela vai bebendo intensamente e nem sei se ela bebia ou beberia, mas vai bebendo. Dou-lhe um beijo, ela me deixa e se põe a escrever. Gostaria de ter mais prosas com ela, mas estou intimidado para pedir um instante de sua produção. Coloco-me a ir embora para meu tempo, penso, o movimento da cidade não pode ser justificado, mas os tempos exprimem novas relações. Brasília, sim, faltam girafas, mas e os cavalos? Estou certo que eles têm cavalos, mas até que ponto cavalos podem ser nômades? mesmo quando pangarés domados. Estou certo que em Ceilândia voa o carcará e o gabiru, ambos (novos-)candangos. Seria o carcará produtor de fronteira? Penso que sim, sempre que ouço a Betânia ao menos. Agora me pergunto, onde estão os incendiadores do cerrado?

LUIZ DA FRANCA é Cientista Social formado pela PUC-Rio, sócio fundador da produtora audiovisual independente Zênite Produções, co-fundador da revista literária PORRADA (revistaporrada.com.br). Publica seus escritos pessoais no tumblr 1,3,7-trimetilxantina (137trimetilxantina.tumblr.com), Escreveu o livro de poemas Café Para publicado pela editora Multifoco em 2011, escreveu os curtas Fora da Janela e Cigarros e Vodka, co-dirigiu o curta Cigarros e Vodka, produziu documentário curta de artes marciais Budô. Entretanto, não se sente nada disso. | LIANZADAFRANCA@GMAIL.COM

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DÍPTICO LITERÁRIO: CONTROLE PAULO GABARDO| Brasília, DF. AGÔNICO Acordou em pânico. Não conseguia respirar. De súbito expeliu o ar com força sentindo o rompimento violento da membrana que encobria suas narinas. O nariz sangrava, mas isso tinha menor relevância comparado àquela horrível sensação de sufocamento. Sentiu um estranho alívio, mas havia ainda alguma incoerência naquela experiência. Sua respiração mantinha-se dificultosa. Foi quando percebeu que a pele de sua face revestia também sua boca. É claro! Acordara impossibilitado de respirar, se pudesse abrir sua boca isso não teria acontecido! A língua ainda existia, conseguia tatear o interior das bochechas e sentir seus dentes, mas não havia orifício que lhe permitisse usufruir dessa via respiratória. Porém isso não era tudo. Já havia se passado algum tempo desde que acordara; por que não enxergava nada? Notou então, já quase sem surpresa, que seus olhos também estavam fechados pelo tecido contínuo de seu rosto, estendido sobre cada orifício de sua cabeça, até os ouvidos. Ficou deitado por um longo tempo tentando entender o que acontecera e o que faria. Muito tempo depois, horas, dias, minutos, segundos, não conseguia saber, a fome e a sede começaram a castigá-lo intensamente. Levantou tateando o ambiente de seu apartamento até encontrar a cozinha. Tamanha era sua necessidade de água e alimento, tamanho era seu sofrimento físico pela desidratação e inanição, que num ato de

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desespero buscou uma faca e com torpes movimentos cerrou a superfície de seu rosto no local onde anteriormente fora a sua boca. Comeu e bebeu como se estivesse insensível àquele horrendo ferimento autoincutido, ingerindo sangue quente misturado a restos da comida fria e insossa pega da geladeira. Após sentir-se satisfeito, a dor do corte começou a incomodá-lo. Ela, que estava inerte frente ao sofrimento anteriormente causado pela fome e pela sede, passava a concentrar todas as suas atenções. Era uma dor insuportável agora que estava em evidência. Sentiu que chorava, mas o choro, impedido de escorrer pela sua face, pressionava seus olhos, despertando uma horrível enxaqueca e aumentando sua angústia. Desmaiou. Retornou à consciência, esparramado no chão e com profundas dores musculares. A boca não lhe incomodava mais, o sangue havia coagulado. Sentiu o odor de excrementos e urina. Lembrava-se vagamente de ter sofrido espasmos convulsivos antes de apagar, o que certamente causara aquela degradação. Questionava o que estava acontecendo. Não havia lógica alguma, tudo era inexplicável e irracional. Porque havia se tornado vítima de uma condição tão humilhante; tão sub-humana? Sentiu-se profundamente deprimido. Respirou fundo. Tentou recobrar a calma, não podia chorar, a pressão causada na cabeça era insuportável. Ficou desnorteado. Pensou em suicídio, mas não tinha coragem para seguir em frente. Tentando ignorar essa covardia e restabelecer o domínio de sua situação, pegou novamente a faca com a qual havia aberto sua boca, esticou a pele que cobria seus olhos e com um ímpeto extraordinário cortou um lado de cada vez. A faca caiu de sua mão, a nova dor era ainda pior do que as anteriores. Um misto de sangue e de lágrimas represadas inundava sua visão e transbordava pelo seu rosto.

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Muito tempo passou sem que conseguisse enxergar qualquer coisa, a não ser o fluxo liquefeito que escorria de seus olhos. Era novamente livre para chorar e chorava copiosamente como se pudesse expulsar pelos olhos a última gota da frustração que o acometia, como se isso lhe permitisse atingir o ponto de inflexão, a partir do qual poderia galgar e recuperar sua condição preexistente. Sua visão adaptava-se gradativamente ao ambiente e com isso crescia sua confiança de que a penúria teria fim e de que a desgraça que lhe havia ocorrido seria revertida. Havia alternativas cirúrgicas que lhe devolveriam o contorno humano e a plena funcionalidade. O trauma era superável, havia sofrimentos piores, havia pessoas que nasciam em condição deficiente de tratamento impossível. Aquilo havia sido um puro acidente, sobrenatural talvez, mas não tinha significado. Podia com o tempo tornar-se motivo de riso, podia até ser esquecido. Não prejudicaria sua sanidade, não lhe tornaria obtuso. Porém

a

esperança

completamente,

era

vã.

percebeu

que

Quando já

não

sua estava

visão mais

ajustou-se em

seu

apartamento, mas num ambiente totalmente vazio, preenchido de uma claridade infinita, sem horizontes, sem solidez, sem chão, sem teto. Em desespero, buscou novamente a faca. Dessa vez, a coragem de suicidar-se superava a covardia de enfrentar aquele isolamento, aquela presença desajustada de si mesmo. Todavia, já não havia faca, nem roupa, nem nada. Estava completamente nu, completamente sem recursos, perdido entre a vida e a morte, sem poder qualquer uma das duas, a não ser esperar que uma delas se realizasse espontaneamente.

MAHAVATAR Quando me contaram essa panaceia, duvidei prontamente. Minha dúvida, entretanto, decorreu menos da sobrenaturalidade dos eventos

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e mais do fato de as pessoas envolvidas na experiência fantástica terem decidido retornar ao mundo real. Antes de eu mesmo buscar reproduzir o que me haviam relatado, parecia-me completamente impossível que alguém em sã consciência desistisse da promessa de realização de seus sonhos idílicos. Tinha de fazer minha própria tentativa. Primeiro porque queria testar se tudo não era uma grande piada de mau gosto fruto de algum charlatanismo

barato

baseado

na

exploração

da

fragilidade

emocional das pessoas. Segundo porque, sendo toda aquela fantasia realmente possível, o que me parecia absurdo e improvável, me era imperativo compreender porque ninguém havia suportado sustê-la eternamente ou durante todo o restante da vida. Com essa firme determinação de desmascarar e ridicularizar toda aquela fábula, segui os passos de meus interlocutores e parti rumo à minha própria experimentação. Coordenadas em mãos, iniciei meu caminho. Em um estágio impreciso da minha jornada encontrei o guru, o homem que supostamente dominou a morte, a fome, o envelhecimento e todas as demais condições debilitantes de nossa natureza física. Não foi no pico mais alto das redondezas. Não foi em um ponto de difícil acesso. O local era ermo, sim, o ar rarefeito, mas o esforço físico necessário para se chegar lá não era impeditivo nem mesmo a sedentários como eu. Fazia frio, porém suportável. A caminhada desde o vilarejo mais próximo tinha durado algo em torno de quatro dias. Exigia-se muito pouco para o que se prometia, o que me pareceu muito suspeito. Aliás, o encontro foi tão súbito que fiquei com a impressão de que o guru estava à minha espera, que ele havia me encontrado e não o contrário. Tudo isso aumentou minha desconfiança. Estava tão aficionado pela ideia de que tudo não passava de uma encenação

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bem elaborada que qualquer acontecimento se me aparentava como uma confirmação desse meu raciocínio. De antemão, tomei diversas precauções para evitar ser ludibriado. Sabendo que o ar rarefeito poderia influenciar minha cognição, antes de

perseguir

o

encontro,

preparei-me

antecipadamente

com

treinamentos de altitude. Além disso, decidi não aceitar nenhum alimento ou bebida que o guru me oferecesse, pois uma de minhas hipóteses era de que ele fazia as pessoas ingerirem substâncias entorpecentes e alucinógenas e depois as conduzia hipnoticamente aproveitando o estado letárgico em que lhes tinha inserido. Não obstante, posso hoje confessar com tranquilidade que, mesmo com todos os meus pré-julgamentos a respeito do guru e toda a minha má vontade em acreditá-lo, o primeiro contato que tive com a sua presença me causou uma profunda impressão e uma grande comoção, ainda que tenha suprimido qualquer manifestação desses sentimentos e tenha até me recriminado pelo que considerei estupidez e tolice sentimental. Seguindo o que para mim se tratava de um roteiro ensaiado, o guru ofereceu-me a mesma experiência “única” ofertada indistintamente a todos que lhe visitavam. - Os que aceitam minha oferta desfrutam do poder de vivenciar um mundo

paralelo,

com

estímulos

absolutamente

reais,

criado

inteiramente por seus anseios e desejos, com total controle da vontade de tudo e de todos. É possível ainda para o visitante permanecer nesse mundo paralelo por todo tempo que lhe convier, em eterno gozo de sua soberania. É claro que aceitei, afinal era para isso que eu estava lá. Era preciso seguir adiante para desconstruir toda aquela ficção. Após dizer sim, fiquei ainda mais alerta e concentrado, atento aos movimentos do

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guru, mas na primeira vez que pisquei, meus olhos se abriram em outro mundo. Ao que parecia essa parte da história que me haviam contado era verdadeira. Aquele homem realmente tinha algo extraordinário para oferecer. Algo que seria capaz de suprir todos os meus desejos, que me permitiria finalmente conhecer a felicidade plena; um mundo inteiro submisso à minha vontade. A descrição de meu mundo imaginário, todavia, está longe der ser o mais interessante. Na verdade foi uma experiência preenchida de obviedades, não obstante tenha revelado lados obscuros de minha personalidade. A princípio, desacostumado com o poder recebido, comecei com a imposição de vontades tímidas. À medida que confirmava

minha capacidade

de determinar

a

realidade,

fui

ampliando minha dominação, ficando mais ousado, experimentando as manifestações de meu jugo ilimitado com mais e mais desenvoltura e intensidade. Tive absolutamente tudo, fiz todo e qualquer ato nobre ou vil. Mandei e desmandei nos meus súditos humanos, animais e plantas. Fui o mais forte, o mais belo, o mais rico, o mais corajoso. Todos me queriam e me amavam. Tudo era pacífico, se assim eu quisesse, e quando despertava em mim algum sadismo ou desejo impetuoso por conflito, todas as batalhas eram épicas e eu sempre saía vencedor. Não havia doenças sem

cura,

pelo

menos

não

para

mim,

imune

a

todas

que

eventualmente inventava. Não havia crimes sem punição, nos quais fui assumindo o papel de juiz e carrasco, ainda que tudo que acontecia de errado fosse consciente obra minha. Também não havia iniciativa. Não havia diversidade nem surpresa. Não havia novidade. Todos eram iguais e respondiam igualmente. Tudo era monótono. Três vezes desejei que todos tivessem livre arbítrio, mas não fui capaz de suportar a minha superioridade colocada em dúvida. Três vezes revoguei esse desejo. Depois dessa terceira vez nada mais aconteceu.

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Anos se passaram em completa inércia. Tornei-me semelhante a todos os seres apáticos que aguardavam minha próxima ordem. Não havia respostas autênticas. Nada era verdadeiro. Não era realmente amado, nem

querido,

nem

temido.

Meu

mundo

minguava

e

morria

paulatinamente. Voltei. O retorno também era verdade. Em meu regresso encontrei o guru ao meu lado exatamente na mesma posição em estava quando o tinha visto pela última vez. Indiferente às minhas aflições, o guru estampava um sorriso reconfortante. Após um curto período, ele falou: - Deseja perguntar-me algo? - Quanto tempo se passou? - questionei. - Quanto tempo deseja que tenha se passado? - Acho não tem muita importância, não é mesmo? - Pois bem, nesse caso façamos com que seja um piscar de olhos. Essa frase despertou minha consciência para o ambiente que me rodeava. De fato, recobrando meus sentidos e minha percepção de tempo e espaço, reparei que não poderia ter estado ali na companhia do guru mais do que uma hora, conquanto tenha passado anos no meu mundo imaginário. - Imagino que muitos sábios lhe tenham visitado. - Alguns – respondeu o guru. - Quantos aceitaram sua oferta? - Nenhum. Minha oferta não é tentadora para sábios. Sim!, essa era a única resposta possível. Afinal, a experiência que vivenciei

era

ilusória,

expletiva

para

aqueles

que

despertaram

internamente à verdadeira sabedoria superior. Compreendi que era

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preciso ter algum grau de egoísmo, que era preciso ser autocentrado e destituído de uma concepção de pertencimento ao mundo para se sentir tentado a aceitar aquela oferta, características que estavam presentes em mim, ainda que não as achasse tão cristalinas antes daquela experiência. - Porque voltei? - perguntei ainda sem compreender adequadamente minha frustração. - Porque foi esse seu último desejo. - Mas porque não suportei viver em um lugar no qual eu tinha absolutamente tudo que me convinha? Com uma feição angelical e tranquilizadora, o guru disse: - Nossa expressão individual e nosso ilusório eu não estão dissociados de nossa natureza holística. Somos invariavelmente dotados de empatia. Reconhecermos, de modo consciente ou inconsciente, que os demais seres são nossos semelhantes. A supressão da vontade e da potência criativa desses seres cria um mundo débil e entediante, limitando o ilimitado e impossibilitando manifestações autênticas e surpreendentes, que passam a condicionar-se à visão mesquinha do eu ilusório. Nosso eu superior, por sua vez, reage empaticamente a essa agressão promovida pelo eu ilusório, criando um conflito entre o material e o espiritual. Assim, quanto mais realizamos nossos desejos aparentes, mais sufocamos nossa capacidade de manter o mundo que criamos, pois maior passa a ser a nossa rejeição a esse mundo. Percebemos então que a superioridade de nossa vontade não nos traz verdadeira satisfação. Percebemos que a imposição de nossos desejos materiais e físicos não nos traz contentamento

perene,

apenas

saturação,

tédio

e

tristeza.

A

continuidade desse estado resulta na morte do desejo e do eu, mas nenhum dos que aceitam minha oferta consegue suster a experiência

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até esse ponto. Ao primeiro sinal de anulação do eu ilusório, todos voltam à segurança do estado anterior. Naquele momento comecei a sentir-me constrangido pela minha ignorância. O guru era a expressão física da energia pura. Situava-se no limiar do autoconhecimento espiritual. Era a personificação do ser holístico. Eu não merecia a sua sagrada companhia. Percebendo-me inquieto, o guru sorriu placidamente e continuou: - Os que aceitam minha oferta vivem em constante esforço para preservar o hermetismo de suas personalidades, como se essa fosse a verdadeira dádiva de sua existência. Sentem-se superiores aos demais. Sentem-se entediados em relação ao mundo que conhecem. Sentemse vazios nesse festival de aparências. Acreditam que todo o seu sofrimento é fruto da ausência de controle sobre o que consideram uma realidade caótica e acidental na qual foram obrigados a viver. Consideram-se vítimas fortuitas de uma existência sem sentido. Ofereçolhes então a experimentação de seus desejos egoístas realizados, a sensação de total domínio e determinação do destino, para que percebam que o resultado obtido é o mesmo, a infelicidade é a mesma, o vazio é o mesmo. Vazio. A fala do guru correspondia perfeitamente ao meu sentimento após retornar do mundo imaginário. Apesar da frustração que aquela verdade me causava, a compreensão que o guru tinha da minha angústia criava uma conexão cada vez maior entre nós, causando-me simultaneamente

uma

sensação

de

acolhimento

até

então

desconhecida. - A questão, portanto, não está na mudança do mundo – continuou o guru -, mas na autorrealização, no abandono do eu ilusório, na aceitação de nossa empatia como característica de nossa integridade holística, na aceitação de nossa potência criativa, na aceitação de

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nosso eu superior, plural, indivisível e não dual, não pertencente a nenhuma individualidade. - Mas como poderei fazer isso, eu que sempre estive tão longe dessa sabedoria? - perguntei. - A redenção, de uma forma ou de outra, está disponível a todos. Para obtê-la não é preciso exercer o controle, apenas experimentar a entrega. Todos nós somos divinos, cada um a seu modo e ao mesmo tempo iguais. Todos nós podemos experimentar a sublimação por meio dessa oculta divindade, basta que nos deixemos abertos a ela, nossa verdadeira essência. Dessa forma, nossa experiência material será verdadeiramente abundante e sem esforço, pois será alimentada pela harmonia espiritual. Esse era o verdadeiro conhecimento oferecido pelo guru. Essa era a revelação presenteada a qualquer um que o visitasse. Renasci naquele momento e assim renasceu minha realidade. Meu eu renascido certamente não aceitaria uma nova oferta do guru. Não era preciso testar novamente o controle. O necessário agora era entregar-se. Curiosamente, eu não havia trilhado o caminho do santo, nem do extremo pródigo. Não houvera grande sacrifício, não fora preciso sofrer, não houvera incontáveis penitências. A resposta estava no amor, na entrega e na confiança. Passei ainda todo o restante daquele dia em silêncio contemplativo na companhia do guru. As montanhas que nos cercavam, o horizonte delineado e colorido pelo sol já poente, a vida que nos envolvia, a vibração do mundo que nos sustentava, tudo era infinitamente belo, perfeito e dadivoso. Tudo era abundante, natural e simples, sem artificialidades. Entregue a um estado de sublimação, ri à lembrança já evanescente de meu mundo imaginário. Ri quando o comparei à colossal riqueza de nosso mundo. Como não pude percebê-la antes? Ri

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ao saber que essa riqueza também era minha, criador, criatura, parte, todo. Ri e me senti genuinamente feliz. Assim me sinto até hoje. Ainda antes de me afastar com certa relutância da presença do guru, perguntei: - Qual o seu nome? - Não tenho um nome meu, mas muitos possuem nomes com os quais se referenciam a mim. Há diversos nomes. A escolha é sua.

PAULO GABARDO é brasileiro nascido em Curitiba, Paraná, em 1985. É poeta, cantor e compositor. Desde 2011 reside em Brasília, Distrito Federal. É autor dos livros Dobras no Tempo e Poesias para quem escreve cartas de amor, lançados simultaneamente em 2014 pela editora Chiado, de Portugal. Atualmente, parte de suas composições são apresentadas pela banda Without Cash, da qual é vocalista. Site: paulogabardo.com

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O TARDAR DAS ESTRELAS PEDRO BELO CLARA | Lisboa, Portugal. No horizonte do olhar há um cálice que se esvazia. À sombra dum plátano em crescente nudez, uma branca flor entrega-se à ausência de ser. Quem conta os passos por um vulto despidos rumo ao vazio do dia? Ninguém sabe da morte que vive nas margens do verão. Ou talvez as mãos sejam demasiado inocentes para se abrirem aos espinhos que negam. Serão como as bocas, que sorriem quando os peitos decifram a alegria dos rios?

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A cortina que se descerra lembra a aguda imagem dos corpos. Abandono é o seu nome. Não aquele que tanto cantaram no auge dum desapego de pássaro azul, mas aquele que no ventre traz o esfriar de todo o lume. Olha a romã, diria. Rasgado o fruto na impetuosidade dos ventos, ainda palpita um rubro coração de semente. Quem socorre a agonia dos ramos? Os despojos da vida estregues estão à voracidade das chamas. Crescem como lobos cercando as presas. Os fumos das frágeis formas erguem-se a um céu em queda lenta, tão próximo que algum braço ainda o rasga. Aproxima-se e cerca e oprime, apertando as galerias onde aves já não pairam. Há quem diga que a chaga dói menos quando a pele aceita o incêndio. Seja por melancolia ou evocação de antigas dores, isto se sabe: as estrelas tardam em cintilar.

PEDRO BELO CLARA é autor das obras “A Jornada da Loucura” (2010), “Nova Era” (2011), “Palavras de Luz” (2012), “O velho sábio das montanhas” (2013) e Cristal (2015). Além de prelector de sessões literárias, é actualmente colaborador e colunista de publicações literárias. Outros trabalhos seus poderão ser encontrados no seu blogue pessoal, “Recortes do Real” (crónicas diversas) | https://www.facebook.com/pbeloclara/

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OSMOSE NÃO AUTORIZADA RAFAEL SIMEÃO | Fortaleza, CE. Você fica me agradecendo pela paz que eu te dei, me enche de beijos e dos maiores carinhos, lambe minha orelha, meus dedos, parece um gato carente, não consegue largar minha mão nem enquanto tira um cochilo e eu prefiro ficar lendo, mal consigo passar a página, nós no sofá, diz que antes do nosso relacionamento você era tão ansiosa e obsessiva, inquieta, enquanto agora aprendeu o valor de ser calma e paciente, leve. Disse que não sente mais tanta vontade de matar a

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caixa do supermercado que descaradamente enrola no atendimento, contando as moedas cheia de má vontade, porque simplesmente não gostaria de estar ali numa manhã ensolarada de domingo, ou a idosa que paga no cartão e esquece momentaneamente a senha, quem demora a te responder nos aplicativos de mensagem instantânea também não precisa mais se preocupar com retaliações inflamadas e entupimento da caixa de entrada, sobretudo sua ansiedade diminuiu muito, a preocupação sobre o rumo da sua vida, a dependência dos freelas, aquela incerteza sobre o futuro e sua vocação profissional. E quando meus pais não estiverem mais aqui? Essa é uma pergunta que já não martela tanto na sua cabeça. Você disse que isso foi colaboração minha, que com toda minha paz consegui te contaminar, e aí você já nem passa mais a madrugada em claro quando tem algum compromisso importante no dia seguinte, quando acha que bebeu café demais, quando escuta um barulho esquisito na rua lá embaixo, quando tenta adivinhar se o nível de algum hormônio do seu exame de sangue está fora do recomendado. Você diz que não remói mais as coisas,

aprendeu

comigo

a

deixá-las

simplesmente

serem

e,

positivamente, extrair ensinamentos. Ficou tão desencanada e de bem com a vida, você me conta com um sorriso no rosto, que deixou de navegar quatro horas diárias pelos sites de vagas de emprego e concursos públicos, de programar durante a semana inteira a visita da manicure e se chatear quando ela não estava disponível no horário que você desejava, apesar de não ter compromisso algum que te impedisse de mudar o horário. Aí você diz, brigado meu amor, você me deu a paz de que tanto eu precisava. Só que é o seguinte, eu não te dei porra nenhuma, você roubou isso de mim! Antes de me envolver contigo eu era um sujeito tão tranquilo, praticava minha ioga, meditava e mantinha a alimentação balanceada, atento às calorias e ao glúten, corria quarenta minutos diários, respirava bem fundo quando alguém me contrariava e tinha plena consciência de que eu tinha que ser pro

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mundo o que eu espero que ele me dê, que tá tudo interligado e interdependente, eu fazia minha parte, ouvia mais do que falava, bebia socialmente, escutava um disco inteiro deitado na cama com os olhos entreabertos, atento a cada acorde, eu inclusive conseguia frequentar filas sem me estressar, fone de ouvido no chet baker, lá longe, e às vezes até emprestava meu ouvido pra reclamação de algum pobre coitado, insistente citando a lei estadual de que não se pode demorar mais que vinte minutos na fila do banco, lhe oferecia até um sorriso complacente, estimulava sua ida à justiça, ao tribunal de pequenas causas, aos órgãos competentes pra denunciar essa falta de atenção às necessidades dos idosos, quiçá aos direitos humanos, eu era realmente um bom sujeito, apoiando as causas feministas e oferecendo meu lugar no ônibus pros mais velhos, não me importando com a lerdeza da minha conexão com a internet tampouco com as festas de família,

que

eu

frequentava

contrariado

mas

consciente

da

importância desse elo. Eu, tão sereno, sempre fui incapaz de magoar alguém, de não oferecer um obrigado a cada um que as obrigações do dia a dia nos obriga a conviver, mas foi só você entrar em cena, desse jeito feito um furacão, sanguessuga, asfixiante, sem me permitir uma noite de liberdade com meus amigos ou uma desatenção ao seu brinco novo, que eu destrambelhei, perdi o sossego e a paciência com a vida, e agora não consigo nem parar de sacudir as pernas enquanto tô aqui sentado escrevendo isso.

RAFAEL SIMEÃO, 28, Rio de janeiro. Não quis nos contar muito sobre ele, mas fornece algumas pista quando escreve. | RAFA.SIMEAO@GMAIL.COM

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ERVAS DANINHAS RENATO OLIVEIRA | Belém, PA. “Não se inscrevem iniciais com giz na floresta branca do amor.” Tes amants et ma îtresses _ Robert Desnos

As estrelas chegaram com o silêncio da madrugada. Dispersas sob o véu negro e noturno, conspiram caladas sobre o corpo adormecido no jardim. Ele dorme. Virgílio. O contorno do corpo cintilando azul no reflexo das águas cansadas da piscina. Mergulhei

suavemente

naquele

azul.

Rompi

a

placidez

preguiçosa da água e me aproximei silenciosamente da margem

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oposta. Na boca, o gosto de cloro. Uma sutil ardência nos olhos me fazia piscar incessantemente, afinal, mergulho sempre de olhos abertos. Ele. Não fosse sua respiração pesada seria possível ouvir as batidas do seu coração... Os pés descalços, sujos de terra como raízes expostas de uma árvore arrancada do solo, por um raio, quem sabe, lhe impregnam de uma aparência frágil de coisa vencida, derruída. O sereno nele pousa mansamente deixando seus cabelos úmidos. O que sonha Virgílio? Olhando-o assim, tão de perto, me assaltam repentinamente pensamentos que perturbam... Afastam-me de quem busco ser. Fico naquele meu abandono em mim. Angústia. E se ele acordasse e me visse assim? O que eu diria? Virgílio, foi no mutismo da noite que brotou venenosa e sorrateira, como as ervas daninhas, a intrusão incontrolável do desejo. Assim... poético, como só ele gostava de ser. Se chegasse mais perto, eu poderia sentir a sua barba roçar na minha. O cheiro do vinho que sua boca emana... Talvez ainda estivesse com aquele gosto de álcool, eu só saberia se encostasse, mesmo que de leve, meus lábios nos teus. Ah, Virgílio. Lembro bem da primeira vez que te vi. Eu estava perdido entre a estante dos engajados escritores de trinta e a introspecção lírica dos de quarenta e cinco. Tu que naquele momento era apenas um desconhecido, distraído lendo As Horas Nuas em uma poltrona velha num sebo no centro da cidade. Ah, e como te achei desde o princípio misterioso com aquele ar desapegado de homem triste. Foi ali, naquele momento exato, que eu sem saber como ou porque, te abordei. _ E já descobriu o porquê do título? Por que As Horas Nuas, afinal? Tu sorriu. Então viramos amigos, confesso, o que me confortava apesar das minhas limitações de homem casado. O anel na mão esquerda, uma mulher alegre esperando um filho meu em um apartamento financiado. E eu ali, te rodeando, o que me bastava. Sim, era o suficiente para a minha felicidade, te querer e te amar assim bem perto.

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E no nosso companheirismo: festas, bares e jantares. Foi em um desses jantares improvisados em meu apartamento, enquanto meu curumim, já com quatro anos, dormia no colo da mãe, e tu contavas mais uma breve aventura de eterno solteiro que ela surgiu, Mariana. Tão enérgica e solar a jovem estudante de Belas Artes com borboletas tatuadas nas costas. Confesso, uma garota realmente atraente e que te fez perder aquela tristeza no olhar, quando virou teu mundo. E Mariana te roubou da minha presença. Nada fácil, a princípio, te ver escorregando para longe, te ausentando da minha companhia, no entanto aos poucos eu conseguia, com pesar, admitir que ela fosse a tua felicidade. E, numa noite de setembro, veio o noivado, mesmo hoje em dia que está em desuso noivar. A troca de alianças. Minha esposa animada por te ver “encontrando um rumo”, e todos os nossos amigos te parabenizando naquela noite de champanhe e brindes. Mariana me abraçava apertado agradecendo todo o apoio. Eu quis estar no lugar dela... Ah, Virgílio... O tempo escorre à conta gotas, mas agora é a véspera do teu casamento. Despedida de solteiro. Depois de tanto álcool e de uma puta que saiu de um bolo colorido, que te ver dormir assim, já não me permito mais aquele pudor incomodo de resistir. É o adeus. Aceito te levar de carro para a igreja amanhã e ser teu padrinho. Sento ao teu lado. Sinto com os pés a superfície escorregadia dos azulejos. O cheiro de sereno desta noite que me parece interminável também nos embriagou. Num ato de coragem eu consigo sentir o gosto do vinho barato da tua boca. Te beijar, enfim. Tu te mexes procurando uma melhor posição na terra que suja teu rosto. Nos teus pensamentos ou sonhos, nem imaginas que eu, teu melhor amigo, tem guardado por ti um amor tão grande que te deixa partir. Dá-se o nome de covardia? Não sei o que tu pensarias sobre isso...

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Afasto os pensamentos. Passo a língua em redor da boca, o leve adocicado ainda perdura. Tiro a roupa e mergulho nu na piscina. Submergindo, de olhos abertos, vejo teu contorno na margem. A escuridão nos engole, a mim, sobretudo.

RENATO OLIVEIRA costura com a linha sutil das palavras a tessitura da própria descoberta. No entanto, confessa, há entre as tramas muito mais sonhos e vontades que propriamente verdades. Graduando em Letras pela Universidade Federal do Pará. | RENATODEOLIVEIRA.LP@GMAIL.COM

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O BOM REI NOS ENSINOU TUDO SABRINA DALBELO | Bento Gonçalves, RS.

No meu mundo temos ofícios, responsabilidades e afazeres. Somos um povo pacífico, respeitador e muito justo. Todos somos treinados para cumprir as ordens reais. O Rei é bom e o obedecemos com alegria e esperança. Ele nos ensina tudo!

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Quando realizamos nosso trabalho de forma satisfatória, nosso supremo nos concede o luxo da comida, da moradia, da confraternização e o da própria luz. Moramos em lugares organizados e arejados e nosso Rei nos deu as flores, os ventos, as colheitas e nos ensinou tudo sobre o peso, a composição e a ordem das coisas. Por isso, entendemos os limites e, assim, não ultrapassamos barreiras. Pertencemos

ao

nosso

lugar,

onde

a

possibilidade é proporcional ao merecimento pessoal. Nos unimos uns aos outros, mas confiamos na nossa individualidade, pois dependemos dela para servir ao Rei. Conhecemos todas as palavras; o Bom Rei as nos ensinou. Ele nos mostrou os animais, as coisas, os elementos naturais, os artificiais e os extraordinários; também nos falou sobre sentimentos – sobre todos eles, ele nos disse. Ele é muito bom e não nos esconde nada! Conhecemos e já vimos todas as coisas que existem em nosso mundo. Nosso mundo é sabidamente invejado por outros mundos. O querido Rei nos provou também porque aquela moça que deixou de receber moedas de cobre, comida e nossas visitas merecia ficar isolada e a mercê da própria sorte, já que foi desobediente e não cumpriu as ordens reais como devia.

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Ele nos mostrou, devido a sua real bondade, que qualquer ajuda que déssemos à moça, não autorizada por ele, nada mais seria do que um retrocesso no aprendizado dela. E é certo que precisamos contribuir para o bem comum. Todos nós entendemos e ficamos felizes com a decisão do Bom Rei em relação àquela moça, pois temos conhecimento de todas as palavras que ele usou para nos explicar seus motivos, inquestionáveis, portanto. Aquela moça acabou definhando, já que, de certo, mereceu definhar. Eu entendi como tudo ocorreu, porque conheço o nome de todas as coisas – o Bom Rei nos explicou, uma a uma – só não sei como se chama aquele olhar opaco e distante que vejo nos rostos dos filhos da moça desobediente, depois que ela se foi. Mas não me atrevo a perguntar... Se tivesse nome, nosso Bom Rei nos diria.

SABRINA NUNES DALBELO é gaúcha, graduada em Direito, servidora pública do Ministério Público Federal e escritora de tudo um pouco. Participa de vários grupos literários e mantém as páginas do Facebook "Se Tem Nome Existe", onde publica contos, poesias e algumas poucas crônicas; e "Pensamento Sem Moldura", com aforismos e pensamentos. Já participou de algumas antologias poéticas pelas Editoras: Poesias Escolhidas (Belo Horizonte), Grupo Pastelaria Studios (Lisboa - Portugal) e LiteraCidade (Macapá), mas ainda não publicou seu livro solo. Utiliza-se das dualidades e dos paradoxos para contar as coisas da vida. Escreve sobre tudo um pouco, e a qualquer momento, e tem

como característica não revisar seu texto, que comumente é postado online, na hora em que é criado. | SABRINADALBELO@HOTMAIL.COM

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SOBRE THAÍS NOZAKI: “Silenciei essa paixão por anos” PORTFÓLIO | BEHANCE | FACEBOOK |THAIS_NOZAKI@HOTMAIL.COM Thaís Nozaki é de São José dos Campos, São Paulo. Cresceu cercada de artistas plásticos na família – o pai e o avô. Formou-se em Geografia e trabalhou com desenho técnico, o que despertou aquilo que ela chama de “resgate artístico”, espécie de despertar de um processo criativo que, tendo permanecido latente, surgiu de forma espontânea e intuitiva. É uma peculiaridade do trabalho de Thaís, que hoje utiliza e mistura grafite, aquarela, aguadas de acrílica, nanquim, óleo, carvão, lápis de cor, digital e colagem: “A dramaticidade do tema é que vem me dizer quais técnicas possuem valor e densidade para harmonizar a ilustração. [...] Assim também é com o ritmo do desenho, da pintura. Não possuo uma linha que dê ‘assinatura’ ao meu trabalho, tenho muito receio em fazê-lo, apesar de reconhecer que o espectador sinta essa necessidade”. Apesar da dificuldade que enfrenta no reconhecimento e valorização das artes plásticas, a artista tem planos densos na área: além do estudo formal, almeja contribuir para o desenvolvimento do mercado independente das artes gráficas, além de se expandir na ilustração editorial. Já é possível adquirir sketchbooks com capas autorias produzidos pela Thaís, que em breve serão direcionados, também, para a exportação.

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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