3 minute read

LIZZIANE NEGROMONTE AZEVEDO | AO ESPREGUIÇAR DO SOL

AO ESPREGUIÇAR DO SOL

LIZZIANE NEGROMONTE AZEVEDO| Monteiro, PB.

Advertisement

29

Inácio caminhava levando uma enxada nas costas e um saco em

uma das mãos. Era noite. A lua e as estrelas iluminavam-lhe a passagem. Àquela hora não costumava passar gente por ali. Em sítio dorme-se com as galinhas. A cada passo, a chinela arrastando e levantando poeira, ele pensava mais fortemente no desejo que o consumia. Ele não sabia lidar com essas coisas de sentimento. Fora

criado no meio do mato. Falava pouco. Não tinha estudo. Por onde andava ficava pelos cantos, feito bicho acuado. O chapéu sempre baixo, cobrindo-lhe os olhos. Quem o via não o mirava por muito tempo, com medo não só da sua figura obtusa como do facão sempre à cintura. Razão pela qual tinha fama de ser cabra valente. Não podia ser diferente, capataz que se preze anda armado. Apesar da casca dura que o revestia, Inácio era todo amor, desde que conheceu Josefa. Tentou falar com a moça diversas vezes, mas sem sucesso. Faltava-lhe a voz, fugia-lhe o ar. O máximo que conseguia era acenar de cima do cavalo ao passar pela barragem onde ela lavava roupas. Ele ficava furibundo por causa disso. “Frouxo! Tu é um frouxo mesmo, besta!”, xingava-se com raiva. E mais envenenado ficou quando viu, pela manhã, outro conversando com a sua “Zefinha”. O sangue subiu-lhe ligeiro e quente. Pegou no cabo do facão por instinto. “Maldito!”, praguejava em voz baixa, longe do casal. Pronto. Isso foi suficiente para que ele saísse noite adentro com uma enxada nos ombros e um saco nas mãos. Durante o trajeto falava sozinho: “De hoje não passa!”, “Eu cegue se não fizer isso hoje!” Quando avistou a casa de Josefa, silenciosa e calma em seu sono, estremeceu, mas não desistiu. A casa era rodeada por samambaias, suculentas, coroas de frade, espadas de São Jorge e outros tantos de plantas. Era um verdadeiro oásis no meio daquele tempo seco e poeirento. Josefa morava sozinha e adorava aquelas companhias fotossintéticas. “Ela ia ver só!”, pensava, enquanto tirava as chinelas dos pés. A ira fazia-o ser rápido, sem deixar de ser silencioso. Num piscar de olhos abriu doze covinhas, formando um

30

pequeno retângulo, bem em frente à janela do quarto de Josefa. Aos poucos foi concluindo o serviço. No dia seguinte daria um belo susto em todo mundo. “Quero mesmo ver se o desgraçado ainda vai procurar por ela!”, ruminava sua angústia. O suor pingava-lhe da testa, mas estava feliz com o trabalho. Contemplou-o admirado e aliviado. Suas mãos ardiam, arranhadas. O sangue brotou de uma delas ao retirar um espinho encravado. Apesar do cansaço, acreditava que tudo o que fez valeria à pena. Estava feliz e vingado. Juntou tudo o que trouxera e partiu de volta para casa, mas não sem antes deixar um pedaço de madeira no local com um nome garatujado com carvão: Inácio. Não era covarde, assumia a autoria dos seus feitos. Não dava a ninguém o privilégio da dúvida. Antes mesmo de o sol começar a se espreguiçar, Josefa abriu a janela do quarto. Levantava cedo. Varria o terreiro, tomava um café com bolachas, fazia o almoço, arrumava a casa e seguia para a barragem, onde exercia sua profissão: lavadeira. Ela deu um pulo e benzeu-se, quando finalmente abriu as janelas. Um pequeno roseiral vermelho erguia-se diante dela. Correu para o lugar, curiosa. Leu a placa de madeira e sorriu. O sol finalmente nasceu.

LIZZIANE NEGROMONTE AZEVEDO é advogada, ávida por literatura, razão pela qual nunca dispensa a companhia de um bom livro. Vive em Monteiro, interior da Paraíba. Publicou o livro A vírgula e outros pontos (Penalux, 2016), participou da antologia O demônio de cada um (Penalux, 2016), além de já ter publicado em diversos periódicos especializados. |

LIZZIANEAZEVEDO@HOTMAIL.COM

This article is from: