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HELDER S. ROCHA | PRESENÇA DE C.L

PRESENÇA DE C.L.

HELDER S. ROCHA| Vitória da Conquista, BA. / Curitiba, PR.

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De súbito fui arrebatado pelo desejo de ir ver o que não é, o que não tem forma, nem nome, nem existência. Pelo menos até ser visto, nomeado, compreendido. O rompante do instante foi tal que tudo ao redor perdera sua nitidez palpável, colorida e significante. Não foi uma barata que me fez largar a farda do útil e vestir a nudez das coisas inúteis. Fora apenas um estalo provocado por um trisco da cabeça de um fósforo sendo aceso. Um despertar para o dormido da vida. A necessidade de sentir fome mesmo estando saciado.

- Mas isso é da Clarice! Ela havia decretado quando mal tinha acabado de ler o meu fragmento e eu prontamente concordei: - É sim. É da Clarice mesmo! Dias depois ela me procura nas escadas da faculdade para contar ofegante que tinha revisitado todos os textos ficcionais, crônicas, entrevistas da Clarice, mas que não havia nada, na mesma sequência, com a mesma combinação de palavras e expressões, iguais às que tinha encontrado no meu texto. Depois disso me perguntou: - Mas como? Não pode ser. Você me garantiu rapidamente e sem titubear que era tudo da Clarice. Eu entendia aquela aflição, pois senti a mesma coisa quando corri para o computador e comecei a rabiscar palavras e expressões que me imploravam para ganharem o lado de fora do meu ser, logo ao término da leitura que fiz de A paixão segundo G.H.. E respondi, buscando fazê-la compreender: - Não menti para você, pois é tudo da Clarice. Nada do que está ali agora era meu antes de escrever, nem mesmo naquele milionésimo de tempo que antecedeu ao ponto final que estabeleceu em definitivo o fim do texto, ou apenas a interrupção dele, ou da vida. Fora tudo

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dela e acho que ainda é. Não sei como é isso, mas apenas dei continuidade.

Naquele instante, de breve suspensão das impossibilidades mágicas da arte e da reflexão sobre a vida, ela não poderia mesmo compreender a minha explicação sobre coisas tão inexplicáveis. E, por isso, continuou buscando estabelecer pontes lógicas. - Mas, então, você quer me dizer que seus dedos e sua mente funcionaram como as de um médium que apenas psicografou o que o espírito da Clarice lhe ditou? - Não, não senti espírito algum me ditando algo, mas senti a sua presença tão forte como se estivesse ao meu lado e concordando com o que escrevia. É apenas um desdobramento daquela sensação que possui qualquer leitor sensível de sua obra, que sente que aquele texto que ela escreveu diz nada e tudo sobre ela, mas, também, sobre o personagem e narrador dela, e, ao mesmo tempo, diz pouco e muito sobre o leitor dela, sobre o íntimo de qualquer um no mundo que permita pensar sobre si naquele instante. Não sei como. Sei apenas que aquela síntese, não sintética, do ser particular e universal em forma de palavras e de seu encadeamento numa frase, num parágrafo, no livro todo e em toda a sua obra, representou para mim mais uma extensão do tempo que não vivo quando leio ficção, quer dizer, daquele tempo externo do cotidiano que abdico quando estou mergulhado nas páginas. Um tempo que dá continuidade, mas que não continua coisa alguma, que não é contínuo. Bem, por isso digo que o que te mostrei é dela, mas fui eu quem escrevi. É justamente nesse absurdo que está a resposta para a pergunta que me fez.

HELDER S. ROCHA nasceu em São Paulo, se considera um conquistense (Vitória da Conquista-BA) e vive em Curitiba. Pesquisa Literatura. Exercita a escrita de ensaios e textos ficcionais. Publica alguma coisa no site ‘Recanto das Letras’. E se prepara para lançar seu livro de contos. |

HELDERSANTOSROCHA@GMAIL.COM

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