4 minute read

MAGNO MELLO| UMA CENA DE METRÔ

UMA CENA DE METRÔ

MAGNO MELLO | Rio de Janeiro, RJ.

Advertisement

36

Lá estava eu naquele dia num vagão de metrô em São Paulo. O trecho era curto, apenas quatro estações, da Trianon-Masp até Sumaré. Vinha de uma exposição do expressionismo alemão no Masp e ia a uma sessão de psicanálise, tudo delícia embora tudo tão denso –lembrei-me de doce de leite em pasta guardado no congelador. Já comeu? Prove! Então, era esta a minha situação psíquica: eu, muito à vontade em meu próprio corpo, relaxado, mas com olhos atentos, que é o que acontece quando se sai de uma boa exposição. Cheguei ao metrô, entrei no vagão que devia ter uns vinte e cinco passageiros, encontrei um lugar para me sentar e sentindo-me da cabeça aos pés em estado quase meditativo passei a observar sem qualquer pudor a troca inconsciente de informações não verbais entre as pessoas. Se a ideia lhe parece esquisita, explico melhor. Quando pessoas se juntam em determinado espaço, seja por qual for o motivo, cria-se uma evolução complexa, divertida e quase imperceptível entre elas, o que talvez não seja nenhuma novidade. A novidade, porém, fica por conta desse sempre inédito balé de causa e efeito. E foi o que vi naquele momento, deliciando-me com minha curiosidade invasiva, mas tomando cuidado para me manter o mais neutro possível na situação, a fim de não romper o fluxo, do qual eu também fazia parte, claro. Pois bem, havia uma garota muito bonita e, como era de se esperar, a maioria dos homens a observava de vez em quando, inclusive eu, quase sem querer. Mas entre os homens havia dois que a olhavam com maior insistência: um, mais jovem, lá pelos dezenove anos de idade, e o outro, por volta dos quarenta. E parecia que, psiquicamente, disputavam-na. O mais jovem a olhava de cima a baixo, enquanto o mais velho observava o mais jovem e logo depois também se voltava para a moça, forçando um pouco seus olhos em direção aos dela, certamente na esperança de que ela retribuísse a

37

sedução. Tudo em movimentos rápidos e sutis. Já poderia configurar assédio moral? A despeito do crescente policiamento do politicamente correto, a questão às vezes não é tão simples. No entanto, uma senhora já fazia ligeiro ar de desaprovação em direção ao mais velho. Um rapaz ao lado percebia a expressão da senhorinha e parecia rir por dentro, o que levou outro a se ajeitar no assento e tossir levemente. Quando esse tossiu, quatro passageiros espalhados pelo vagão também tossiram, quase ao mesmo tempo. E como estamos falando de simultaneidade, outros dois passaram a mão pela cabeça no exato instante em que um senhor esfregou as mãos nas próprias pernas, como se estivesse enxugando o suor de suas palmas. O balé continuava em efeito cascata. Uma mulher beirando os trinta anos, um pouco acima do peso, a cinco metros da cena, passava rapidamente a vista sobre nossa garota bonita, com um ar de... não sei bem o que. Um senhor coçou o nariz e imediatamente uma jovem de óculos vermelhos repetiu o gesto, e, da mesma forma, uma menina de uns quinze anos, enquanto tossidas secas se espalhavam pelo ambiente. O rapaz mais novo pareceu perder o interesse pela conquista, já demonstrando ele também certo ar de desaprovação em relação ao mais velho, que ainda tentava arrancar à força um olhar de reciprocidade da moça bonita. Agora, acredito que sim: já se configurava assédio moral. Nesse momento as pessoas se mexiam mais do que nunca, ajeitavam-se no assento, passavam a mão em seus corpos e tossiam mais e mais vezes, dando todos os sinais de estarem incomodadas com a situação. Já se iam duas estações. Até que o mais velho se preparou para saltar na estação Clínicas, uma antes do meu ponto final. Quando o homem finalmente deixou o vagão e a porta se fechou, deu-se um acelerado entreolhar geral e muitos se voltaram para a moça que fora assediada, lançando-lhe pequenos olhares e

38

mínimas expressões faciais de comiseração. O mais novo, porém, exagerou um pouco em sua demonstração de solidariedade, arriscando um último olhar mais demorado, como se o fato de o outro ter feito o que fez desse ao rapaz um caráter de boa pessoa ou, no mínimo, de melhor opção. Logo, porém, ele percebeu seu gesto duvidoso. E, mais ainda, que ela não iria olhar de volta, de jeito nenhum. No final, pareceu-me que o assediante mais velho deu aos outros homens presentes o mesmo tipo de indulgência dada ao mais novo: pelo menos daquele jeito eles não eram. Será que não? Claro que sobre esses últimos detalhes são apenas elucubrações o que faço. Mas quanto à existência do fluxo de ações e reações quase imperceptíveis entre pessoas, num universo de imprevisibilidades, não há o que discutir. Penso agora num conceito de Isaac Linger: “o que todos os artistas têm em comum é uma curiosidade incomum sobre o caráter e o comportamento humanos (...) que é um modo especial de ver o mundo”. Mas, há como não ser especial o olhar de uma pessoa com sua história única, sua configuração única de informações, conhecimentos, imagens, sensações, sinapses e tudo mais que permeia o indivíduo? Pois, sendo artista ou não, este mundo é mesmo muito interessante, só não vê quem não quer ou anda muito ocupado com coisas menos importantes que viver.

MAGNO MELLO é compositor, escritor, educador e livre pesquisador, com mais de 110 músicas gravadas por diferentes artistas. Em 2010 recebeu o Prêmio Interações Estéticas, MinC/Funarte, pelo estudo de Poética Musical. Em abril de 2016 publicou o primeiro romance, "Trustália - uma quase distopia", pela Chiado. Venceu o concurso nacional Maratona Literária, da Editora Oito e Meio. Publicou o livro "Velhos Poemas Escritos Agora", em dezembro de 2016, no Rio de Janeiro.

This article is from: