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LEANDRO RAGAZZI | PLEONEXIA
PLEONEXIA
LEANDRO RAGAZZI| Londrina, PR.
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Tenho comigo um pensamento embezerrado sobre a vida do cristão Cauila, um essezim zé ninguém que sempre me pareceu um pouco macambúzio. Sujeito jururu de fazer doer a dó da gente. De família cristã praticante, praticantemente Cauila sempre praticou ir à igreja, mas a igreja não estava praticamente nele. Mesmo não percebido na congregação, Cauila, a seu modo, era fiel ao domingo pela manhã, mas Cauila não era fiel ao dízimo, sempre achou incongruente aquela prática com seus princípios sovinísticos. − Num pago a cachaça de ninguém, muito menos a do Pastor. − Rezingava o forreta Cauila, mesmo tendo ouvido que seu pastor não bebia. Cauila era casado, e esse amor tem assunto. Dava uma estória de foieto, um cordel bem do biruta. A Beócia, sua esposa, macabra de fina, era mulher tinhosa, tinha cabelo sarará, sua pele era cor de machucado seco, esturricada, feito omelete queimado. Seus olhos, como ferida aberta, com remela gangrenada, na boca não se viam dentes, era o sorriso do medo em gengiva inflamada. Beócia era feia como um sangue na unha, mas Cauila, bonito como rato molhado, enxergava Beócia como uma fêmea no cio. Quando queria bolir, Cauila lavava as mãos. Banhar? Apenas quando não suportava mais a sua fetidez. Então chamava Beócia de “minha fraternura exposta”. No momento de copular o néctar em sua consorte, famigerava aos uivos. − Sou o execrável, comigo ninguém pode. − E com sua vara de Maria preta na mão aprecêiava de machucar Beócia. Ela por apego apanhava desgostosa. Aprendeu com sua mãe que mulher sofre calada por amor. Assim que terminava o agito, crescia uma reiva de arrependimento dentro do peito de Cauila, e gritava nomeando Beócia de semiputrefata mulher. Tão injusto Cauila, Beócia dava tudo de tudo pra ele, tanto prazerava como apanhava.
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Ela de estranheza não morria, de arrependimento também nem, então de acostumamento sobrevivia aos dias noturnos.
Vivendo e sobrevivendo, Cauila acreditava que a vida era uma rebordosa de desinfelicidade. Dos males que lhe acometiam, o que mais fazia sofrer era a cefaleia. Vinha e desvinha no compasso do constante, do tinindo da cabeça, recurvada de dor dentro da cachimônia.
Mas nem em tempo de dor Cauila gastava sua chelpa com remédio.
Corria para a plantação de Bordo no quintal de sua habitação. Bordo é ruim como suco de chorume, aquele líquido preto igual refrigerante. Toda vez que tomava fazia careta pelo sabor, não por gastar sua chelpa. Dizia Cauila – Bordo é bom pra tudo, até pra curar chulé. Mas Cauila escondia um arcano, um mistério de cum-quibus, um segredo. Cauila nunca deixou sua consorte descobrir onde ficava a peleja do trabalho. Ele sempre foi um sujeito cenhoso, distante de todo mundo. Nhô Gasturano era seu compadre e sempre tentava uma aproximação amigável. E foi apenas para Gasturano que Cauila contou o seu mistério segredado, por confiar demais. Cauila era muito rico, mas nunca Beócia, que era feia de dar susto em cão, soube. Ele juntou tanto coco, tanto dinheiro em sua porquinha, que ela já estava para explodir, quando teve uma brilhante ideia e decidiu confiar na terra. Procurou o seu compadre Nhô Gasturano e pediu-lhe ajuda. Juntos foram enterrar o tesouro num lugar bem escondido.
Na verdade Cauila não dominava, mas era dominado pelo dinheiro. Isso cega todo homem que põe mais importância nos fúteis do que em Deus.
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Aquele Zé Ninguém mantinha uma soma escondida na terra, numa cova, e o único prazer que animava o sorumbático Cauila era pensar noite e dia... e dia e noite... no seu tesouro enterrado... dentro da porquinha... há dez cavucadas debaixo do solo. Passado algum tempo seu compadre Nhô Gasturano, precisando muito de um empréstimo para quitar uma divida de jogatina, decidiu pedir um arame emprestado a Cauila. − O compadre não vai me desabrigar. − Pensou Nhô Gasturano, crendo na bondade de Cauila. Cauila percebeu a intenção de Nhô Gasturano, antes mesmo de ele chegar até sua porta. Nhô Gasturano tava com cara de curumim travesso, moleque malcriado. Então Cauila se fingiu de doente no instante que podia, se escondeu debaixo da cama, deixou de sair de casa até por uma semana inteira. E Gasturano precisando de dinheiro. E Cauila nunca aparecia para ajudar. Mas como Deus é paciência, o contrário é o diabo, Gasturano esperava confiante. E Beócia sabia o que estava acontecendo? Ainda dizem que o Brasileiro é solidário. Bem que diz as Escrituras. “Quem mostra sua avareza provoca um vazio em torno de si, e será apontado com o dedo cuja avareza não tem limite”. É dando que se recebe, assim é que se deve ser! Passado mais algum tempo, aquele Zé Ninguém foi ver a sua porquinha gorda enterrada na cova. Nada encontrou a não ser o buraco. Aquilo sempre foi inimaginânime. Apavorado, soergueu os olhos e começou a emitir zurros, a rebusnar, a reazzurar. Ergueu as mãos ao céu, arrebatou os velos da
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cabeça, lamentou-se desesperadamente, e no pino de desespero chegou a se mijar de reiva, enquanto rexingava. − Ladrões, ladrões. Fui engabelado. Já estavam de olho no meu cobre. Dinheiro conseguido a duras fomes. Dinheirozinho-zinho-zinho que juntei com os maiores sacrifícios. Ah! Minha porquinha querida, o que serei eu sem você? Um outro, seu conhecido que passaolhava pelo local, ao ver aquele pobre homem aos berros se aproximou e interrogou. − Ééééé... O que acontece de advir com o Senhor? E Cauila contou tudo, tim tim por tim tim. Proseava que desconfiava de Nhô Gasturano, coisa que é muito natural. Cauila estava com calo no coração de tanta reiva. Tinha o coração peludo. Imaginou contando para sua consorte, a empeçonhada arrancaria sua gengiva quando soubesse. O Outro disse para Cauila. − Então para que queria seu bronze, só para guardá-lo? Ora meu caro, ponha uma pedra aí que ela terá para você o mesmo valor. Só o uso faz a posse. O outro não disse de improviso, tinha lido aquele texto num livro. E eu que sou o Outro, que encontrou um Zé Ninguém chamado Cauila, esposo de Beócia, que resmungava sobre Nhô Gasturano pensei imaginado. − Que vantagem levam aqueles que acumulam grandes somas e não as usam?
Então disse anunciado. − Cauila, esta noite pedirão a tua alma, o que tens preparado? Cauila olhou descabelado para mim, se aparvalhou todo. Continuei. − Aqueles que ajuntam para si tesouros e não são ricos para com Deus são como árvores sem fruto, precisam ser arrancados do solo. Aquele Zé Ninguém perdeu o comedimento junto às pernas de saracura e caiu soniferado com uma dor cefálica mais forte que o
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arrependimento, sentiu o abraço da besta, o odor da burrice, e ouviu a gargalhada da morte. − Esconjuro! Naquele momento, desvalido no chão, Cauila era o tropeção, era a unha encravada, era o escuro no buraco. Cauila era ninguém. Deu tudo por tudo. E Beócia, sua esposa, feia como o piolho estalado na unha, mas acreditada, se amofinou com o quente cadáver, feito abraço de jararaca-verde, perdendo a hidratação, chorando lágrimas de peçonha pela vida inteira. Dizem que quando venta muito se pode ouvir os lamentos de Beócia.
Princípio: O que agir com avareza perturba a sua casa, mas o que odeia presentes viverá. (Provérbios 15:27)
LEANDRO RAGAZZI é professor de literatura no ensino médio, bacharelado em letras pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), pós graduado em arte e educação pelo ESAP (Instituto de estudos avançados de pós-graduação), e está fazendo uma complementação teológica na UNIFIL (Centro Universitário Filadélfia). Durante 10 anos trabalhou como dramaturgo, ator e diretor de teatro, tendo em seu currículo mais de 50 espetáculos profissionais.