7 minute read
Entrevista: Júlio de Almeida E SEU ROMANCE “Vaicomdeus, SARL”
Entrevista: Júlio de Almeida [comandante Juju] e seu romance “Vaicomdeus, SARL”
Júlio de Almeida, mais conhecido como Comandante Juju, participou ativamente na luta pela descolonização de Angola. É co-signatário das FAPLA e mais tarde, entre 1975 e 1976 exercendo a função de Comissário político se ocupa do Departamento de Orientação Ideológica, onde era responsável pelos comunicados diários sobre a situação político-militar do país.
Advertisement
Entre os anos de 1984 e 2014, foi professor de Engenharia na Universidade Agostinho Neto. "Vaicomdeus, SARL" é o seu primeiro romance publicado recentemente em Portugal. Combinando uma curta e intensa história de amor com algum humor, perpassam na obra quarenta anos da História de Angola.
A Subversa teve o prazer de entrevistar o autor que conta um pouco mais sobre alguns detalhes da obra.
43
SUB | Durante o lançamento, o senhor comentou que alguns episódios tinham sido "vividos de verdade". Como é reviver esses episódios através da literatura?
JÚLIO | A literatura permite-nos reeditar algumas das experiências e vivências que fomos tendo ao longo da vida. Na tarefa de pormos por escrito episódios outrora vividos, somos levados a um esforço de compreensão do que aconteceu e, se disso formos capazes, fazer com que o leitor comungue desses episódios. Não se trata só de escrever o que se passou ou como aconteceu. É preciso que a forma de o fazer seja “aceite” por quem lê. Isto quer dizer que a escolha dos episódios não é aleatória, mas sim que prossegue determinado objectivo. Para quem escreve só será gratificante recordar factos e situações passados, “vividos de verdade”, se os objectivos que se pretendeu alcançar puderem ser obtidos através do interesse e envolvimento do leitor.
SUB | Pepetela, no prefácio que fez à obra, diz: " Uma característica importante deste livro parece ser o falar de coisas sérias, dramáticas mesmo, mas sem perder nunca a qualidade estratégica número um para a sobrevivência do angolano, a capacidade de rir das próprias desgraças ". Essa capacidade é fulcralpara o senhor na literatura?
JÚLIO | Eu entendo a literatura de ficção como resultado da interacção de dois vectores: reflexão e divertimento. Como muito bem refere Pepetela, rir das próprias desgraças tem a vantagem de, sem escamotear o denunciar de erros e dificuldades em que se está envolvido, apresentá-los com a confiança de que serão ultrapassados. E o humor é isso mesmo: é rir, apesar disso.
SUB | O senhor também comentou durante o lançamento que não queria escrever um livro de História, masde histórias que podem não ser reais, mas são verdadeiras. Pode explicar?
44
JÚLIO | Fazer História é tentar narrar os acontecimentos, juntando tantos factos e suas justificações de modo a que o que se narra se pareça o mais possível com o que realmente aconteceu. Contar estórias, por outro lado, é criar situações de vida que respeitam o contexto histórico em que se desenvolvem, isto é que sejam verdadeiras mesmo que não tenham sido reais. Assim como uma caricatura não é uma fotografia ou uma anedota não é uma tese de mestrado, estas “formas de arte” permitem criar situações e/ou personagens que, ressaltados alguns traços fundamentais (verdadeiros) apresentam maior força do que as suas “formas reais”.
SUB | O livro foi publicado em Angola em 2001 e agora, passados 16 anos em Portugal, que a distância temporal tem alguma influência na recepção e entendimento da obra?
JÚLIO | Quanto ao entendimento da obra acho que o facto de ter sido editada há já 15 anos pela primeira vez, isto não traz consigo nenhum elemento negativo: os aspectos históricos são o que eram e a ficção e o romance que apresenta são perenes e o contexto em que evoluem as personagens ainda hoje são actuais. Por outro lado, as apresentações, críticas e observações que a obra tem merecido indicam para uma boa recepção da mesma. O futuro dirá melhor.
SUB | O livro mostra a decepção dos protagonistas Eugênio e Cecília, que estiveram presentes na luta pela independência, com os rumos do país. Essa decepção pode ser resumida com a frase presente no livro: "Não foi nada disso que nós combinamos" ?
JÚLIO | Sim. Essa frase resume bem o facto de muitas das expectativas carregadas durante os tempos da luta de libertação não só não terem sido alcançadas apesar dos esforços dispendidos (isto é, desconseguimos de as realizar) mas vai mais além, acusando um dos interlocutores de estar a fazer o que “não foi combinado”.
SUB | Cecília cria uma Holding de agências funerárias, tendo ao início adquirido parte de uma empresa estatal. Desde quando a morte se tornou um negócio lucrativo em Angola?
JÚLIO | Depois de Caim ter morto Abel, o que fizeram Adão, Eva e o próprio Caim ao corpo defunto do infeliz Abel? A Bíblia não se pronuncia sobre isso. Diferentes sociedades humanas deram e dão
45
tratamento diferenciado aos seus “mortos”. Não foi a Morte que se tornou um negócio. O culto das actividades funerárias é tão antigo quanto a própria humanidade e tem sobrevivido a todos os sistemas de sociedade havidos e certamente a haver. O facto de uma Unidade Económica Estatal se ter visto transformar numa SARL mantendo o seu objecto de trabalho (agência funerária) é simbólico para a mudança dos tempos, para a passagem da economia centralizada para a economia de mercado. Em qualquer delas é imprescindível tratar dos mortos.
SUB | Cecília e Eugênio são de duas gerações diferentes e, mesmo estando perto um do outro, nunca se encontraram durante o período de luta pela libertação. Após passados tantos anos, encontram-se e vivem um amor curto e intenso. Poderia ser de outra forma?
JÚLIO | Poderia. Bastaria que eu o tivesse querido assim! Mas então não haveria romance, não haveria este livro sequer. Talvez um outro. Tal como atrás a Morte, o Amor é outro tema permanente das sociedades humanas. E acontece no espaço e no tempo finitos que a cada um dos seres humanos é dado viver. E não nos acontece, fora desses limites. O acaso impediu que tivesse havido uma mais longa caminhada comum dos dois personagens do romance. E o acaso permitiu que ainda assim se encontrassem por um breve momento em que se entregaram totalmente um ao outro. Valorizei não a duração do amor, mas sim a sua intensidade. “Il n´y a pas d´amours heureux”. Portanto, não poderia ser de outra forma.
SUB | Cecília e Sissy, dois nomes para a mesma mulher. Quem é Cecília e quem é Sissy?
JÍLIO | Cecília é a jovem que, tal como Eugénio, também viveu e sonhou naquela etapa da história nacional que é descrita no primeiro andamento do livro: “Os Vivos”. Também sente que gostaria de ter dado continuidade a esse projecto e de, nessa fase, ter encontrado Eugénio. É isso que a torna inicialmente curiosa e depois se transforma no breve e intenso romance que entre ambos se estabelece. E é por Cecília que Eugénio se enamora. Sissy é a mulher da real-politik, a que se adapta ao novo rumo do país, isto é, está disposta a fazer concessões à ética que a nova ordem exige e que vive em permanente conflito com a sua personalidade original e que, finalmente, se propõe afastar-se e regressar às origens, abraçando um moderado optimismo e alguma esperança que integra o último andamento do livro: “Renascidos”.
46
SUB | Encontramos durante a leitura alguns nomes de pessoas que viveram a História de Angola, principalmente na luta pela libertação do país. É uma forma de homenageá-los?
JÚLIO | Sim. É fundamentalmente isso. E é também uma forma de afirmar que só sonhando, só com a utopia, nos conseguimos aproximar, da forma que nos for possível, da concretização desses sonhos.
SUB | Qual mensagem pode ser enviada por quem viveu o "outro tempo" de Angola para os que são jovens do país nascidos no século XXI?
JÚLIO | Uma mensagem de esperança e um voto de confiança de que as novas gerações, ou melhor, de que uma minoria inteligente e dedicada, pertencente às novas gerações, terá a oportunidade e a responsabilidade de manter vivos e tentar realizar alguns dos valores universais que durante algum tempo nos guiaram e nos transformaram em actores das grandes mudanças havidas na vida nacional no decurso da segunda metade do século XX.