Revista subversa vol 5 n3 setembro2016

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SUBVERSA Vol. 5 | n.º 03|setembro de 2016 |ISSN 2359-5817

ANA CRISTINA TIETZMANN RÂNDYNA DA CUNHA ALEXANDRA LOPES DA CUNHA ELLEN MARIA VASCONCELLOS VAGNER SILVA EBER S. CHAVES ANDRÉ VICTOR MARQUES NATHALIE LOURENÇO CLÁUDIA CAPELA FERREIRA VICTORIA TULER

Ilustração LÍVIA COSTA


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 5 | n.º 03

© originalmente publicado em 01 de setembro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações Lívia Costa

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME 5 | NÚMERO 3 ALEXANDRA LOPES DA CUNHA | JET LAG | 06 ANA CRISTINA TIETZMANN | AMOR POEMA | 11 ANDRÉ VICTOR MARQUES| TOMARAM POSSE DELA | 13 CLÁUDIA CAPELA FERREIRA | O SILVA | 15 EBER S. CHAVES | O NÁUFRAGO | 19 ELLEN MARIA VASCONCELLOS | REALIDADE | 22 NATHALIE LOURENÇO|UM COMPRIMIDO ANTES DE DORMIR|24 RÂNDYNA DA CUNHA | DOCA | 29 VAGNER SILVA | ROSA DE 12 DE JUNHO | 32 VICTORIA TULER | ESPERA | 34

SOBRE LÍVIA COSTA| 37

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EDITORIAL “Poucas são as ocasiões que a nossa época oferece aos teóricos e aos críticos de comentar as grandes obras-primas do nosso tempo” Rudolf Arnheim

Recentemente, em uma apresentação da Subversa em Portugal, fomos questionadas sobre o tempo livre que dispúnhamos para tratar desse projeto que exige tanto investimento laborioso, principalmente sendo mulheres. Ler autores novos, analisar, pensar, responder, editar. Quanto trabalho e para quê? É a pergunta que sempre volta e que nós adoramos responder. É curioso como as questões são colocadas de diferentes maneiras de acordo com o lugar para onde vamos e como essas mesmas questões nos fazem pensar coisas novas, só com uma mudança de cenário. Nessa apresentação, na fofíssima Livraria Flâneur, no Porto, falamos sobre como a nossa única e singela intenção é ler textos e dedicar o nosso tempo de trabalho da melhor maneira possível. Talvez estejamos um pouco fora da linha, fora da curva, fora do círculo, é verdade. Mas nunca fora do texto. Cada texto que é lido aqui é como uma nova forma que encontramos de respirar. E já não poderíamos viver sem respirar hoje em dia (ora, afinal, quem poderia?). Algumas questões se colocam, como, por exemplo, a ausência da fotografia do autor... É um problema, uma mais-valia ou uma simples escolha? É que certos elementos não foram pensados previamente por aqui. Parar para pensar no futuro é necessário, fundamental, primordial, diríamos... Mas não com tanta pressa. O futuro já é a personificação da pressa. Ter pressa para pensar nele dá uma preguiça danada. Muitas coisas já mudaram na Subversa e muitas ainda vão mudar, mas que fique sempre claro que sentimos um profundo prazer em ler textos, simplesmente. E que nosso objetivo, acima de todos os outros, será sempre esse: receber e-mails de pessoas que se dedicam à arte de escrever, que oferecem suas palavras e seu corpo à sociedade, seja lá como for. E que nos endereçam isso, em primeira mão, tornando os nossos dias mais interessantes, mesmo que isso leve algum tempo do nosso singelo dia a dia e que tenhamos coisas de menininha para fazer. Neste número, contamos com a participação da ilustradora paraibana Lívia Costa. Lívia é de João Pessoa e trabalha com ilustração em aquarela e coloração digital. Mias informações sobre ela na página 37. Agradecemos a todos os escritores por nos tratarem tão bem e nos darem cada vez mais força para sempre responder a mesma pergunta com o mesmo gosto. Boa leitura a todos. As editoras.

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Subversa versĂŁo impressa #2 5 Encomendas pelo e-mail contato.subversa@gmail.com


JET LAG ALEXANDRA LOPES DA CUNHA | Porto Alegre, RS.

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Tenho vontade de morrer, pensou e pensou em colocar em palavras, em abrir a boca e deixar que os sons escapassem de si, mas não o fez, seguiu calada, deitada, sem sono. Levantou-se porque não voltaria a dormir. Pensou em escrever: Tenho vontade de morrer, em uma folha de papel. Achou que deveria haver folhas de papel em algum lugar, e também uma esferográfica, mas pareceu-lhe tão ridículo que desistiu. Sentou-se diante da janela da sala, a madrugada deixava a rua com o aspecto de terra arrasada. Uma garoa fina caía, como se fosse inverno. O silêncio dessas horas alucina. Pior que qualquer barulho muito alto, pensou e não conseguiu não pensar na vontade que tinha. Afastou-se da janela, sentiu que seria fácil deixar-se cair, assustou-se. Resolveu fazer um café para ocupar o tempo, o estômago. Aqueceu a água na chaleira elétrica, colocou o café instantâneo em uma xícara e tomou a bebida em pé na cozinha mínima e muito limpa. Rememorou seus compromissos, onde estava, onde estaria amanhã e depois. Observava as unhas pintadas em vermelho de seus pés descalços, a corrente de ouro presa no tornozelo esquerdo, as veias salientes e azuladas no peito do pé. Os pés, seu calcanhar de aquiles, as dores nos artelhos, o peso nas pernas diminuído pelo uso de meias elásticas. Feios, cheios de calosidades. Já haviam lhe dito que exagerava, mas não: eram pés feios, como os de um pavão. Já houve homens que lhe pediram para pisá-los com seus pés e atendera. Outros queriam sugar os dedos de seus pés e não permitira. Preferiu os que pediram que os pisasse com os sapatos de salto enquanto ganiam de dor e prazer. Sentira algo estranho. Não era excitação, mas exaltação, uma sensação embriagadora de poder. Com homens assim, não fazia sexo porque era ela a mais forte. Eles apenas queriam a dor. Ainda que tenha gostado da sensação, saía frustrada,

confusa.

Não

contavam

como

sexo.

Apenas

como

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experiências exóticas, algo como ter sonhos estranhos e despertar entre assustada e divertida. O silêncio a exasperava. Sentia-se presa no tempo indefinido das horas insones. O jet lag, não tem jeito, e pensou no horário, não conseguia saber ao certo que horas eram. Não havia relógios e os mostradores digitais dos eletrodomésticos estavam errados, ou no horário de Moscou. Deixara o relógio no quarto, ao lado da cama. O outro corpo dormia pesado. Recolheu suas coisas, conferiu horário e se convenceu de que tinha tempo. Tomou um banho quente, vestiu-se, guardou o uniforme na mala, cuidando

para

não

amassá-lo.

Secou

os

cabelos,

aplicou

a

maquiagem como sempre fazia. Bebeu um segundo café, sozinha, no salão vazio. Uma refeição rápida para os viajantes da madrugada. Seguiu para o aeroporto na condução

oferecida

pelo

hotel.

Embarcou

na

aeronave

da

companhia. Cumprimentou a tripulação, conversou desatenta sobre assuntos relacionados ao trabalho e ajeitou-se em um dos lugares vagos. Dormiu todo o trajeto, o par de horas que a separavam do seu destino, acordando pouco antes da aterrissagem. Tenho vontade de morrer, pensara ao despertar pela segunda vez naquele dia, enquanto o avião se aproximava da cabeceira da pista e o relevo da cidade ganhava volume e precisão. Lembrou-se do acidente que vitimara tantos em outra aterrissagem. Não achava que morreria nesta, não tinha medo ou pensava não tê-lo. O seu medo era anterior, impreciso e esquivo. Estava nela e crescia. Aflita, pensava em como sobreviveria à vontade de morrer. O avião estava no horário, ela estava no horário. Desceu, levando a sua bagagem de mão, foi até os reservados. Trocou de roupa, vestiu seu uniforme, penteou-se como se fosse trabalhar, amarrou o lenço no pescoço. Pronta, caminhou em direção à saída, apressada para não encontrar ninguém.

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Tomou um táxi. A cidade, ainda sonolenta. Ela não, lépida, com a sensibilidade aguçada: ouvia o barulho das molas do banco do motorista a ranger com o peso deste cada vez que ele se ajeitava, o rodar dos pneus sobre o asfalto ainda úmido do sereno, o noticiário no rádio relatando as notícias: as de ontem e as primeiras do dia, a situação do trânsito nas principais vias de acesso à cidade, a previsão do tempo: probabilidade de chuvas fortes e trovoadas nas próximas horas. O céu anoitecia ao invés de amanhecer. Leu a placa com o nome do motorista e o número de matrícula, associou datas àqueles números: o ano em que cursara a primeira série primária, o assassinato de Martin Luther King, não sabia como sabia esta data, mas estava lá em sua memória, assim como a vontade de morrer a crescer dentro de si. Foi a muito custo que não pediu para descer no meio do nada, daquela via expressa, e seguiu a pé, mesmo que lhe doessem os pés a ponto de ter de tirar os sapatos. Diante do prédio de apartamentos, olhou para cima: as nuvens se avolumavam, tornavam-se pouco a pouco mais densas e soube que era tormenta a chegar. Subiu os andares de elevador e, a cada número a se acender em direção ao seu andar, seu diafragma ondulava: tomava fôlego, como se corresse em direção à uma linha final. Entrou em uma casa imersa em silêncio. Deixou os sapatos junto à entrada, as chaves no aparador e, sem fazer ruídos, penetrou no quarto. Tirou o relógio de pulso e os brincos, deixando-os na cabeceira. Foi até o banheiro e buscou junto ao armário de remédios uma caixa de comprimidos e tomou dois: pequenos, perfeitamente redondos e azuis. Não tomou três, quatro ou cinco, ou toda a caixa, como seria o caso se quisesse mesmo morrer. Talvez não seja nada além de cansaço, disse para si mesma. Engoliu as pílulas com um gole de água da torneira. Um gosto ruim tomou-lhe a boca, então escovou os dentes e a língua.

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Despiu-se e deitou-se na cama, ao lado de outro corpo. Enquanto esperava que os comprimidos fizessem efeito, colocou uma venda ao redor dos olhos e pôs-se a sugar com força o polegar direito.

ALEXANDRA LOPES DA CUNHA tem dois livros publicados: Amor e outros desastres (2013) e Vermelho-Goiaba (2014), vencedor do concurso IEL 60 anos na categoria estreante, além de premiações em concursos nacionais e internacionais. Aluna do doutorado em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. | ALEXCUNHAM@GMAIL.COM

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AMOR POEMA ANA CRISTINA TIETZMANN | Porto Alegre, RS.

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corpo feito palavra aflito repouso à espera de sentido na branca sábana um devaneio ser tocado vibrar aquecido despertar corpos entrelaçados íntima grafia a revelar o dia mas se falta o gesto é pena o amor jaz no poema

ANA CRISTINA TIETZMANN é psiquiatra e psicoterapeuta. Em 2014, venceu o concurso literário da Associação Brasileira de Psiquiatria na categoria poesia. Frequenta o Centro de Estudos Literários da Professora Léa Masina. Vive em Porto Alegre, RS, Brasil.|ACTIETZMANN@GMAIL.COM

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TOMARAM POSSE DELA ANDRÉ VICTOR MARQUES| Rio de Janeiro, RJ. Tuas vontades sempre foram ditas. Tuas verdades sempre foram pré-ditas.

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Teus sonhos.... Ah o que são teus sonhos? Tua função sempre foi essa. Tua noção nunca foi pensada. E teus sonhos sempre... Quem disse que vocês podem sonhar? Teu olhar sempre foi guiado. Tua mente sempre foi restringida. Teus sonhos sempre inexistiram. Tua roupa sempre foi construída. Teu comportamento sempre foi podado. Tua luta sempre foi combatida. Tuas armas sempre foram retiradas. Tua boca sempre foi calada. Teu apontar sempre foi direcionado. Teus sonhos não resistiam. Teus sonhos eram tua culpa. Teus sonhos sempre foram tua punição. Tua punição sempre foi permitida. Tua opinião sempre não ouvida. O teu nunca foi teu. A tua nunca foi tua. O teu sempre foi meu. O teu sempre foi nosso. O teu só não foi teu. Possessivo despossessivo.

ANDRÉ VICTOR MARQUES é estudante de letras – literaturas, carioca, obsessivo por livros. Com o grande sonho necessário de escrever e somente escrever. Externar os sentimentos reprimidos, a angústias isoladoras, as felicidades estranhas. Autor do blog Prazer em dizer, mas sem muito tempo de satisfazer as necessidades de publicação. Escrevo por amor. | DEVICTORS.SM@GMAIL.COM

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O SILVA CLÁUDIA CAPELA FERREIRA | Vila Real, Portugal / Colônia, Alemanha.

O Silva conhece, pelo nome próprio, as últimas cinco gerações de pombos-correio ali nascidas e criadas pela sua mão em concha, preocupação paternal perpétua. Filho de pombais largos e de granito, cobertos por ardósia, o Silva cresceu no ninho alvo dos pombos domésticos, alimentando-lhes o papo e comendo-lhes os borrachos. Aos vinte e quatro anos, passou o verão a reconstruir o ninho, último

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carinho que fazia ao pai, que morria de um mal cujo nome ainda não se conhecia, enquanto a mulher nidificava. E quando a cria nasceu, enrugada e vermelha, foi nela que o Silva depositou os seus sonhos. A filha nasceria meses depois, pequena e descarnada, e ao pai ocorreulhe fazer-lhe o que fizera aos borrachos fracos e aos ovos porosos. O Silva acorda todas as manhãs com aquilo a que chama, na Associação Columbófila, o chamamento dos pombos, ouvindo-lhes as amarguras

ou

as

esperanças.

Deixa-os

voar

livremente,

cedo,

exercitando as asas sobre os seus assobios. Verte a água fresca sobre os bebedouros cristalinos, selecionando da larga prateleira a ração indicada, de acordo com o dia da semana e o mês. Sobre a parede branca, exibe algumas taças e outras tantas medalhas douradas. O Silva sai para o trabalho apenas e somente se tudo estiver de acordo com a sua metódica organização e planificação. Vale-lhe o facto de trabalhar por conta própria como taxista. A meio da manhã regressa e observa de perto o comportamento dos atletas, ali enclausurados, em celas hospitalares, tomando notas num caderno de capa dura que o acompanha no bolso da camisa, ao lado do pente e do maço de notas sujas. A bata é branca, abotoada até ao cimo, com o seu nome debruado sobre o coração. Alguns apontamentos sobre a cor dos excrementos, sobre o desembaraço das patas, o lustro dos olhos, e, ainda, lembretes sobre as massagens com vaselina pura às escamas das patas do Alfredo, 5285971 de 2013 e, sublinhado, soro de leite para a Lalinha, 4567355, de 2011. Torce o nariz quando, na época das crias, alguma se deixa parada sobre as fezes, borrando a penugem mal espalhada pelo corpo, a plumagem ainda atrasada, ou aquelas que piam junto à tigela como cireneus aflitos. O Silva abomina debilidade, os pombos fracos não gozam dessa pretensa dádiva a que chamam vida no seu pombal. E, como quem gere uma empresa, apressa-se a fazer contas e a eliminar as fraquezas e as ameaças, cruzando os pombos em busca da cria perfeita.

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Quando o Silva entra no táxi, invariavelmente estacionado no fundo da rua, devidamente coberto com a proteção verde militar, não vão esses ratos com asas sempre à procura de restos cagar-me o carro, os putos comentam entre dentes lá vai o pombeiro, e riem-se à socapa, mas as estridências são sempre captadas pelo mau humor do Silva, escarrando antes de fechar a porta. Aos domingos vem a família, e o Silva, mesmo que os atletas tenham estado no pódio, exalta-se com a anarquia que ali se monta, parece um circo, os cinco netos a berrar e os pombos sem descanso! O Silva aprecia o sossego beatificado das gaiolas, a delicadeza das penas, e admira, no máximo, a chicotada amorosa das asas dos pombos lançando-se sobre o céu do quintal. O alvoroço causa-lhe enorme transtorno: a mesa cheia, os pratos quase encostados, os inevitáveis relinchares infantis sobre a sopa; o do meio, pastoso e estremunhado, bicando os grãos sem espírito, o mais velho, de pescoço esguio mas olhar abatido, mortiço, as costas arqueadas da outra, o rosto sempre sob as repas que lhe caem sem ordem, o nariz aquilino recurvando sobre o prato, a rinossinusite crónica, recorrente, e a luta fratricida dos do outro, desconcentrados do resto, apenas de unhas em riste. Engolia um gole de vinho que lhe ardia nas goelas e abanava a cabeça com tamanha sorte que lhe coubera! A filha magra como um caniço, sempre com um ai na boca, e o genro calado, a cabeça invariavelmente afirmativa, o bigode que lhe parece seboso, e os óculos de graduação elevada, não vê um boi, quanto mais! O filho, a quem poucas palavras dirige, exibe um olhar cínico no qual não confia, e pergunta-lhe sempre como estão as galinhas?, pelo que o pai evitalhe o olhar e nunca sabe quando ouvirá o estardalhaço da pergunta, a boca emporcalhada do cigarro rindo sobre o efeito do inesperado. As crianças aguardam o momento, o único em que a indisposição e o olhar contrafeito do avô dá lugar ao agravo e, no meio do processo, a face se parece condoer e tomar o aspeto de um sorriso, quando o

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canto dos lábios se arqueia. Da nora, esguia de corpo e de mente, nunca sabe o que lhe cruza o pensamento, mas como se mostra interessada pelos pombos, visitando-os todos os domingos, no silêncio que o seu sorriso de Mona Lisa permite, o Silva concede-lhe um cumprimento educado, embora fugaz. Mas o verdadeiro azedume é com a mulher, Maria de Fátima, cuja largueza de anca fizera nascer uma ninhada implume, de pio fácil e estrutura simiesca combalida, frouxa. Todos os dias lhe deita um olhar sentenciado, pondo defeito no tempero e na forma como passa a camisa, na incerteza face ao tempo, na infelicidade dos ovos mal chocados, esgueirando-se, depois, pela porta da cozinha, em direção ao pombal, cambaleando sobre a perna esquerda, a mais curta, os braços mirrados sobre o peito, às evidências sonegando-se.

CLÁUDIA CAPELA FERREIRA é trasmontana, mas vive em Colónia. Trabalhou como professora e doutorou-se em Estudos Literários com uma tese sobre a poética torguiana. Mantém um blogue cuja narradora escreve textos de caráter diarístico e autoficcional: Penitência de uma Dona de Casa "Matryoshka" foi a sua primeira narrativa publicada (in O Desassossego da Liberdade). | CLAUDIACAPELAFERREIRA@GMAIL.COM

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O Nร UFRAGO EBER S. CHAVES | Vitรณria da Conquista, BA.

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Um Sonhador viaja pela praia. Vejo que está perdido, confuso. Será um náufrago? Oh não! Não nessa praia – ali era possível sentir dor sem estar de fato ferido, sentir frio sem de fato estar na neve, sentir a água sem de fato estar molhado. Melhor seria que as ondas o tivessem engolido; ali não há lugar para esperança. A brisa marinha golpeia o seu rosto... Ouve o uivo que vem dos oceanos: um novo convite à morte em mar aberto – um consolo à solidão daquele Sonhador que caminha sobre a areia deixando marcas que já não são vistas há mais de um milênio. Digo, por experiência própria, que o isolamento, às vezes, é doentio – corrói a carne e os ossos como o ácido fluorídrico derramado por mãos desastradas. Alguém já reparou quantos quadros exibem ilhas desertas? Náufragos

aprisionados

num

círculo

de

solidão;

totalmente

abandonados. É a solidão! Ah, e o tolo diz em seus pensamentos que sempre está cercado de pessoas. Mas multidão é o lugar mais solitário que existe. A solidão daquele Sonhador era real, palpável – bem que isso poderia ser uma lição dada pelos deuses: de que um homem que conhece a si mesmo nunca está só. E mesmo enfraquecido pela escuridão, a solidão e o desespero, ainda pulsava forte em seu coração o desejo de querer ser ouvido; e, finalmente, ele deu o primeiro passo para vencer o tédio – o Sonhador encheu de ar os pulmões e depois soltou o grito aos quatro ventos: - Quando as naus cortaram a aflição do mar sem fim, quebrando noites, ondas azuis e marés infortunas, o desembarcar: de trevas abissais, noite densa foi alívio. Alívio incinerado ao alvorecer: voavam cinzas soltas ao vento para um lugar além da imensidão aonde os olhos alcançam. Alívio que busquei na sombra acolhedora de um coqueiral

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imaculado, vã busca, já estava deslumbrado pelo desejo de olhar o Sol a olho nu – e isso cegou-me. Bem, posso dizer que essas palavras me comoveram. Minha história é parecida com a desta pobre criatura. O quão penoso foi quando atravessei a aflição do revolto mar azul de infortúnios e no meio do caminho avistei esta ilha. Eu também me abriguei sob a sombra acolhedora daquele coqueiral imaculado. Lembro agora de quando atravessei a solidão dessas areias indolentes, saltando dias de areias e sóis cor de ouro e cor de fogo. Naqueles dias de inferno, o sol do meio-dia foi alívio, desafogo. Desafogo afogado em águas rasas: corria inerte a correnteza para um lugar além da imensidão aonde os olhos alcançam. Desafogo que busquei na transparência de cristalino lago, vã busca, já estava descalço caminhando sobre o musgo de pedras afiadas – e isso dilacerou-me. Contudo, quem entenderá a natureza de todas essas coisas? A esse Sonhador (o náufrago) só posso desejar que não tenha a mesma sorte que a minha. Mas o que seria o meu desejo frente a esse mar de probabilidades? Sou apenas um conjunto de forças articuladas de uma determinada forma; aquilo que faço é exatamente aquilo que posso fazer – nem mais, nem menos. Sou apenas uma voz, com minha própria natureza, tendenciosa, tanto para o bem quanto para o mal. E aquele Sonhador andou só – por longos e solitários dias, só; e se o Sol é testemunha, a sós, com mil pensamentos de solidão.

EBER S. CHAVES nasceu em 1979, em Itaquara/BA. Reside em Vitória da Conquista/BA. Poeta e blogueiro, é frequentador assíduo de grupos de estudos em psicanálise e filosofia; e tem grande interesse em poesia, literatura fantástica, história e cosmologia.Amante da natureza. Fã de heavy metal. E apreciador de cervejas especiais e feijoada. EBER.CHAVES79@GMAIL.COM | Blog: http://eber-chaves.blogspot.com.br/

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REALIDADE ELLEN MARIA VASCONCELLOS | São Paulo, SP.

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e eu metida as piras das catástrofes neta de quem sou filha de quem diz não vejo programa sensacionalista na tv nem ouço rádio patrulha mas penso que se morrer na esquina contra o poste do posto de gasolina qualquer dia desses vou deixar minha tese pela metade nenhum filho no mundo graças a deus e no último segundo de sanidade ou consciência que deve ser a mesma coisa minha cabeça vai explodir de alegria ufa! até aqui sobrevivi como virgindade de vagalume.

ELLEN MARIA VASCONCELLOS é autora do livro de poemas bilíngue (português/espanhol) Chacharitas & gambuzinos (Patuá, 2015) e tradutora do livro Ângulo de guinada, do autor estadunidense Ben Lerner (e-galáxia, 2015). É colaboradora da Malha Fina Cartonera, e tem textos próprios e traduções publicados em diversas antologias e revistas impressas e digitais. http://ellenmartins.wix.com/home | ELLEN.MARTINS@HOTMAIL.COM

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UM COMPRIMIDO ANTES DE DORMIR NATHALIE LOURENÇO| São Paulo, SP

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Entra na farmácia a Mulher do Fígado. Detrás do balcão, Elba oferece um bom dia genérico. É terrível com nomes. Heraldo, se estivesse ali, cumprimentaria a Mulher do Fígado pelo nome. Tem cara de Regina, mas não arrisca. É terrível com nomes. Boa mesmo é com as doenças. Reconhece no rosto da Mulher do Fígado o cansaço de quem leva a dor consigo como um amuleto, de pedra polida e pesada. Sabe que ela tem comprado um maior número de remédios a cada visita. Quase nunca leva um sabonete, um batom. O rosto parece esvaziado, balão de festa de aniversário de dias atrás. Sente-se íntima da Mulher do Fígado, são irmãs de miséria, mesmo que sejam misérias tão diferentes. Imagina se a outra sente a tristeza a lhe preencher o espaço entre os órgãos, como areia fina. Elba lê a receita assinada pelo médico da Mulher do Fígado. Apanha a pequena escada de três degraus e alcança o Hepatix, a Flumazenila e o Xantinon. Coloca na sacola de papel pardo com logotipo da farmácia. Ela e Heraldo não gostavam de sacolas transparentes. A doença é coisa que merece privacidade. Conduz a cliente ao caixa vazio de Heraldo. É preciso que ela faça os dois papéis, de farmacêutica e de caixa. Faz a pergunta automática, Débito ou Crédito. Erra três vezes os procedimentos da maquininha do cartão e pede desculpas oferecendo de brinde umas pastilhas Valda. Olha o cartão de relance. A Mulher do Fígado se chama Paula. Estende a sacola e, quando a cliente pega o pacote, sobrepõe sua mão à dela, apertando por uma fração de segundo. Tenta pegar para si alguns grãos da tristeza de Paula, isso é tudo que pode fazer. Volta para trás do balcão. Os olhos secos, penosos de abrir e fechar. Um terror menor perto das noites sem sono. Sobe a pequena escada e pega uma caixa de Dormonid na prateleira. Não precisa procurar onde fica. Sabe de cor onde é. ***

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Na volta do hospital, tem sempre duas escolhas. Não tomar o remédio e esperar pacientemente que o mundo gire até ser dia mais uma vez, o gás silencioso da espera sufocando o quarto. Ou tomar o remédio sabendo dos sonhos que vai ter, sem poder acordar. Elba dá corda todas as noites nos relógios de Cuco. Gosta de ouvir os pássaros saltarem pelas portinholas, um tanto quanto dessincronizados, de hora em hora. Uma distração para as madrugadas. Hoje não. O corpo reclama que quer dormir, então Elba toma um Dormonid para lhe fazer a vontade. Abraça o travesseiro com o cheiro de Heraldo, o cheiro enfraquecido, quem sabe imaginário de Heraldo. Enquanto o corpo amolece, pensa no marido que dorme já há quarenta dias ininterruptos. Que bom se os sonhos fossem vasos que se comunicam, que bom seria se desaguassem os dois no mesmo sonho. Dormindo, novamente a verruga dura, dolorida, imensa na face. Espreme, e vê sair uma ponta preta, viscosa. Continua a apertar, até o fim, mas a substância não para de sair. A ponta vira um tentáculo, engrossa, depois outro, a cabeça de Elba murchando, enrugando até sair de dentro dela uma lula negra e restar apenas metade do rosto, deformado. O animal se gruda em sua perna, com ventosas ardendo como labaredas. Vai morrer hoje outra vez. *** O horário de visitas termina às dez. A enfermeira da noite vai dar o “jantar” a Heraldo. O jantar de Heraldo é uma nova bolsa de soro com nutrientes. Elba também já jantou. O jantar de Elba é um salgado na lanchonete do hospital e um suco de caixinha. Não se lembra do nome da enfermeira. Tem cara de Lucimara. Melhor não arriscar. Observa com desgosto a dificuldade da outra em achar uma veia. Cara de Lucimara fura seu marido pela terceira vez. E se a dor penetrar para dentro do coma? Não consegue mais assistir. Interrompe o movimento,

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segurando o antebraço da outra. Retira com delicadeza a ponta do tubo com a agulha de suas mãos. Muda de lugar o torniquete e espera o pulsar que revela a veia. Coloca a agulha dentro até desaparecer e abre a válvula que faz escorrer o Jantar para o corpo de Heraldo. Cara de Lucimara olha para o chão. As veias de Heraldo são mesmo muito profundas, Elba quer lhe dizer, mas não diz. Quando a enfermeira sai do quarto, Elba fica sozinha com Heraldo. Ou talvez apenas sozinha. Está acostumada com o emaranhado de cateteres que entram e saem do marido. Rodovias que fazem a vida continuar passando por dentro dele sem que seja necessário viver. Tubos que sopram oxigênio pela traqueia. Tubos com água e alimentos. Tubos no pequeno buraquinho do pênis, que levam embora a urina. Assiste à novela na televisão. Já não pensa que ele pode acordar a qualquer segundo. É possível que não acorde nunca. A cada dia que passa isso se torna mais possível. Tenta afastar o pensamento, que lhe cava um buraco por dentro. Ninguém veio sugerir ainda que desligasse os aparelhos. Ninguém veio ainda falar sobre doação de órgãos. Agradece em silêncio por isso. A aflição da espera vai a desgastando como o mar desgasta as pedras. Mas ainda segura nas mãos um último cordão de esperança e se esse cordão alcançar o outro lado, talvez guie Heraldo para cá. São nove e meia. É estranho ver o marido dormindo de barriga pra cima, mesmo agora. Ele sempre dormiu de lado. Faz força, empurra uma perna dele sobre a outra. Vira-o de lado. As portas dos quartos de hospital não tem fechadura. Pega um copo d’ água, busca na bolsa o Dormonid. Vira o pote sobre a mão e caem sobre ela vários comprimidos. Olha por um segundo. Devolve quase todos. Pega o único restante entre dois dedos e toma. Deixa o vidro sobre a mesa de cabeceira, para que entendam que não adianta tentar acordá-la antes de amanhã. Sabe que Cara de Lucimara vai odiá-la quando voltar em meia hora, e também os outros enfermeiros ao longo da madrugada. Está tudo bem. Deita e passa o braço na

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cintura de Heraldo. Sente o cheiro da sua nuca, misturado a sabonete de hospital. Começa a afundar no sono, um pequeno sol se acendendo ali dentro. Que bom seria se essa noite seus sonhos se comunicassem.

NATHALIE LOURENÇO é paulista e paulistana desde 1984. Trabalha como redatora publicitária e já publicou em revistas como Flaubert, VacaTussa, Blecaute, Parênteses, Philos, Raimundo e outras. Participou das coletâneas Nove e Edifício Marquês de Sade. Nunca possuiu um pônei. | NB.LOURENCO@GMAIL.COM

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DOCA RÂNDYNA DA CUNHA | Brasília, DF.

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Ontem Doca disse que não acredito em amor e saindo emburrado, deixou-me sozinha a digerir tais palavras. No primeiro instante achei engraçada aquela pretensão despremeditada. Como poderia alguém saber em que acredito ou não? Provavelmente, muitos sabem o que penso, mas a fé não pode ser manipulada por mim mesma. Acreditar é ter fé. A fé nasce dentro dos corações do mesmo modo que o joio nos campos de trigo, livre e teimosamente. As coisas em que acredito não são escolhidas, simplesmente nascem. Como ele ou qualquer outro pode saber as coisas nas quais eu acredito, sem que eu as professe abertamente? Doca não é desses homens que não falam sobre seus sentimentos, ele fala muito, contudo fala do modo que o agrada e quando discordo, se ofende. Vive despejando seus escombros afetivos sobre mim, sem a menor displicência, apenas por despejar. Se discute no trabalho, lança seus estresses em mim. Se a ex liga para reclamar da pensão, joga suas frustrações sobre mim. Da mesma forma, desemboca esses sentimentos de amor juvenil o tempo todo em cima da minha cabeça. Ainda sozinha e caminhando pela rua vazia, comecei a refletir sobre o que teria ocasionado uma reação tão repentina. Não falei nada demais. O vento frio bagunçava meus cabelos, mas não havia ninguém perto para ver o desarranjo estético nas madeixas rebeldes. Outra vez tentava entender o porquê do comportamento de Doca. Ele é impulsivo, eu sempre soube, mas ações sempre são iniciadas por algum motivo. E aquela frase não saía do meu pensamento. Longos minutos se passaram, até que a frase perdeu toda a graça. De repente, um incômodo me revolveu todo o estômago, passei a caminhar como se uma grande e dura pedra estivesse no sapato. Lembrando do contexto em que a frase foi dita percebi o que acontecera. Ele estava ali, de coração aberto, contando como se sentia sempre que me via caminhando com um ar meio desengonçado de garota tímida, falando e ostentando um sorriso bobo. De olhos fechados, articulando cuidadosamente cada palavra ao descrever minhas unhas longas e coloridas por um esmalte já descascado. Ele gostava de mim, nos mínimos detalhes. E eu ri. Ri das coisas que ele falava. Nesse instante, ele abriu os olhos e bradou: “Você não acredita em amor!”.

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Esta presunção de Doca exasperou-me. Quem pode ir dentro do meu coração e escarafunchar os pedacinhos para saber exatamente em que acredito ou não? Encontrei no meio do caminho uma pedrinha, que segui chutando, enquanto mordia o canto do lábio, pensando no disparate de Doca. Ditadorzinho disfarçado, isso que ele é. Sou obrigada a amar como lhe agrada, como lhe convence, querendo transformar meu coração em parquímetro. É uma barbaridade esperar que alguém mutile os próprios sentimentos assim, chegando a expor as vísceras do coração. Por um riso afável, Doca declarou uma guerra exemplar contra mim e tornou-se meu inimigo íntimo. Se ele soubesse o que aquele riso pretendia, aquele riso nasceu apenas como forma tímida de agradecer, um agradecimento tímido por ele manter um olhar tão apurado sobre meu eu, mas ele estava armado, armado até os dentes, esperando o momento em que se decepcionaria com ela, aguardando ansiosamente pelo momento em que mostraria para ela como ela era igual a todas as outras. É um comunista emocional, colocando grilhões em volta do meu espírito e bradando todas as suas verdades sobre mim, do modo que lhe convém. Doca não sabe, nem saberá, mas ontem eu diria a ele o quanto o amo.

RÂNDYNA DA CUNHA (Brasília, 1983) é graduada em Letras com habilitação em português/inglês e Direito, ambas na Universidade Católica de Brasília. Teve o conto "A gruta" premiado e publicado por intermédio do IX Concurso Literário de Presidente Prudente. Trabalha com literatura intimista e confessional. | RANDYNAPAULA@GMAIL.COM

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ROSA DE 12 DE JUNHO VAGNER SILVA | Lavras, MG. Sim, desisti de nós. Cansei! Chega de naufragar nesse tormentoso mar do desamor! Chega de olhar pro retrato, estampado na parede mofada, e praguejar o presente com saudades do passado! Já estamos em abril e as portas do meu amanhã não podem continuar fechadas.

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Um dia, fomos dois em um. Nossos corpos se entrelaçavam com facilidade

e

compúnhamos

um

enredo

simbiótico.

Olhares

apaixonados. Lábios em sintonia. Mãos atentas que dedilhavam acordes maravilhosos retirados diretamente do coração. Um dia, acreditamos que tudo duraria pra sempre... O diálogo sincero, o abraço protetor, o gozo verdadeiro. A palavra amiga e a intimidade exposta; até o que parecia ser mais singelo: a nossa imagem de casal refletida, todas as manhãs de domingo, no lago do Parque Municipal. Porém, o que estávamos fazendo quando Legião Urbana ou Cassia Eller alertava aos enamorados que o sentido do “pra sempre” era “sempre acabar”? Como, Djavan, aceitaríamos que um dia aqueles anéis de coco comprados na “Rua dos Amores”, seriam, abruptamente, arrancados de nossos dedos quando nos deparássemos com a finitude de nossos sentimentos? O que seria de nós se soubéssemos que, mesmo contando com a benção da Lua, as promessas que fizemos, naquela noite de outono, não resistiriam ao sepultamento do que denominávamos amor? Moço, escuta, eu já não aguentava mais. Confesso que tentei... Sim, juro que tentei não acreditar nos dizeres que rasgaram e sangraram minh’alma. Juro que tentei ressignificar esses dois anos de infelicidade, que se materializava com sua ingratidão, sua indiferença, com seu torturante desprezo. Mas, cansei! E, por isso, desisti de nós, de nossa história. E, por isso, cravei aquela rosa de 12 de junho no peito, de modo a desfazer sua morada no meu coração.

VAGNER DA SILVA BATISTA é graduando do 7º período do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Publicou, em 2015, o poema “Mudo (n)o mundo” no livro “15º Concurso de Poesias”, organizado pela Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC) de Capivari/SP. Interpretou o poema “Corpo negro”, de sua autoria, no 2º Encontro do Orgulho Crespo em Lavras, ocorrido 2015. | VAGNERSB94@GMAIL.COM

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ESPERA VICTORIA TULER | Curitiba, PR.

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Bem-vindo. Senta aqui, nessa cadeira grosseira de plástico. Aguarda um minuto. Espera. A gente vive esperando, afinal. Não custa passar por isso mais um pouquinho. Espera para nascer. Nove meses, às vezes menos. Até estarmos prontos para o mundo, ou quando o espaço fica claustrofóbico e o barulho oco dos nossos chutes se torna insustentável. Espera, espera. Já vai. Você não pode fazer o que quer o tempo todo. Ninguém é feliz todos os dias. É o que eles dizem. Então, a gente assente. E espera. Espera o recreio, a aula de educação física, as férias. Espera a hora do lanche, nossa música no rádio, dia trinta e um de dezembro. Espera. Se conforma tanto a espera, que se confina no aguardo. A vida vira meio isso – uma sucessão de esperas. Fazemos o que odiamos, sempre na ânsia de uma migalha de felicidade, amanhã ou trinta anos depois disso. No correr da rotina, a espera é o prefixo de esperança. Você odeia seu emprego, mas espera. Algo melhor vai aparecer. Abre uma poupança, guarda esse dinheiro. Daqui a pouco você muda. Senta aqui, nessa cadeira grosseira de plástico. Reza. Não aguenta a faculdade, mas espera. Só mais três anos. Se forma, trabalha naquela área que você não suporta, só por um tempo. Depois disso, faz o que você quer. Eu prometo. Todo mundo age dessa forma. Espera a empresa dos seus sonhos te oferecer uma oportunidade. Espera a aposentadoria. Espera para viajar. Espera ela te ligar. Espera para dizer que ama. Espera ele propor o casamento. Senta aqui, nessa cadeira grosseira de plástico. Espera. Espera o fim de semana. Espera até janeiro. Me espera. Espera um sinal. Espera o milagre. Espera até a palavra “espera” ter uma sonoridade estranha, de tão banalizada. Espera. Espera sim.

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Espera o momento certo, se quiser, mas saiba de antemão que o momento certo não espera por ninguém. O tempo é uma ilusão, mas devora carne e ossos. Nunca seremos mais jovens que hoje, quando somos mais velhos que nunca. Espera, espera sim. Após a fila da espera, só há a morte. E, se a gente espera demais, nessa cadeira grosseira de plástico, perde a hora. A grande espera acaba quando se menos espera. A espera é uma grande cadeira grosseira de plástico. Cuide para não dormir sentado nela.

VICTORIA TULER (1995) mora em Curitiba, mas esqueceu o coração em Moçambique, onde morou por um tempo. É redatora, roteirista e escritora de gaveta. Demorou dez anos para mostrar seus textos ao mundo, mas, finalmente, cansou de esperar. | VICTORIATULER@GMAIL.COM

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LÍVIA COSTA Lívia Costa, de João Pessoa (Paraíba), trabalha com ilustrações em aquarela e coloração digital. Conta que a arte visual a acompanha desde a infância e que começou a estudar aos 16 anos. Já trabalhou com mangá e comics e hoje em dia segue artistas que vão contra a lógica do mercado editorial e buscam manter um estilo próprio e verdadeiro. Lívia acha que o Facebook pode ajudar bastante na divulgação de trabalhos autorais. As principais técnicas que utiliza são a aquarela, nanquin, marcadores de desenho, colagens e, ainda, complemento com recursos digitais. Possui uma coluna gráfica no suplemento do Jornal a União, o Correio das Artes e também o Nicotinta, página do facebook que mostra tudo o que acontece entre um caderninho, uma caneta e a liberdade de pensar, espaço que alimenta desde 24 de Março de 2014. Entre seus planos e objetivos, está a ilustração editorial e a publicação de um livro de quadrinhos. SITE PESSOAL | LIVCOSTACOSTA@GMAIL.COM

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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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