Revista subversa vol 5 n4 setembro2016

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SUBVERSA Vol. 5 | n.º 04|setembro de 2016 |ISSN 2359-5817

Ilustração HELENA BARBAGELATA

ESTER CHAVES | ADRIANA VIEIRA LUIZA CORREIA | GABRIEL DE ATAIDE LIMA MARCIA MESQUITA | BIANCA CAMARGO CARLA CABATTI |HENRIQUE MARSON YURI PIRES | JOSÉ VIEIRA


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 5 | n.º 04

© originalmente publicado em 15 de setembro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações Helena Barbagelata

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME 5 | NÚMERO 4 ADRIANA VIEIRA | BOLOS DE LARANJA E CHOCOLATE | 06 BIANCA CAMARGO | MINHA MAIOR PROCURA | 10 CARLA CABATTI| RETORNO | 15 ESTER CHAVES | ALEPH | 17 GABRIEL DE ATAIDE LIMA | VISÃO FICTÍCIA DE IWO JIMA | 21 HENRIQUE MARSON | VINDICAÇÃO | 24 JOSÉ VIEIRA|A CARTA DO ADEUS| 29 LUIZA CORREIA | ÉBRIO | 32 MARCIA MESQUITA | TERNO AZUL DE RISCA DE GIZ | 34 YURI PIRES | A CASA | 38

SOBRE HELENA BARBAGELATA| 41

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EDITORIAL

Volume cinco, número quatro, dois mil e dezesseis. Com esses numerozinhos, vamos compondo um acervo. Mais do que entrar para a conta, eles vêm nos ensinando, sobretudo, a respeito do trabalho do escritor e do motivo pelo qual se escreve. Do trabalho paradoxal entre escrever e esconder. Expressar, tendo que, ao mesmo tempo, conter algo dentro de si que garanta o controle sobre as palavras e sobre as imagens do mundo. A literatura, com toda a disciplina que exige, prepara também para a entrega ao descontrole, ao emaranhado das ideias e das memórias. Na maestria de Drummond, a poesia pergunta: “trouxeste a chave?”, mas jamais se nega a entregar qualquer outro tipo de entrada. As chaves podem nem ser chaves, na verdade. Podem ser um decifrar interminável de códigos, uma desconexão, podem ser até um arrombamento na porta. Não menos interessantes são as aventuras que se passam aqui pela Subversa. Até a construção de cada número, muitos entraves e percalços se desenrolam entre nós e a leitura do texto, entre o autor e a publicação, entre o autor e editor, entre a revista e o público. E mesmo unindo todas essas vozes numa só produção, o número sai, o trabalho anda em frente, a palavra adianta-se. É impossível parar. Neste número, esse “combate produtor” chega em forma de procura, retorno, despedida, visões fictícias e prazeres diversos. O prazer da leitura é o prazer mais diverso que há, afinal de contas. Desejamos uma boa leitura a todos. As editoras.

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Subversa versĂŁo impressa #2 Encomendas pelo e-mail contato.subversa@gmail.com 5


BOLOS DE LARANJA E CHOCOLATE ADRIANA VIEIRA | Rio de Janeiro, RJ.

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Sexta feira 13 para ela é um dia comum e se for em agosto, conhecido como o mês do infortúnio, bem melhor. Ela traja negro, tem em riste um coque rigorosamente bem feito. Aparece cedo, bem antes do sol nascer. Mexe no porão, procura a cola e termina de recompor o vaso anteriormente quebrado. Chamada de vó do caco, remexe nos guardados, redescobre fotografias pretéritas. Em poucas fotos usando outra cor que não seja o negro. Em uma delas está segurando nos braços uma menina de bochechas rosadas. Sobe as escadas e entra na cozinha. Os utensílios gastos remontam da época em que casou. A batedeira ainda funciona. Bate dois bolos. Desce a íngreme ladeira em direção a prefeitura. O fiel gato preto a acompanha e por toda esquina as pessoas se esquivam. Preferem os cachorros, ao que parece. Com estranheza, eles atravessam a rua em meio aos carros e nenhum carro passa por cima do seu corpo magro e elegante. Nas mãos carrega dois bolos, um para a mulher do prefeito, o outro para o delegado. Antes mesmo de entrar na porta principal do palácio da cidade, um senhor de barba por fazer a reconhece, e com a voz embargada diz algo inaudível. Ela sorri, e o abraça enquanto os bolos, um de laranja e o outro de chocolate parecem flutuar na altura das suas mãos. O senhor se surpreende e logo depois se imobiliza feito estátua, com os pés plantados. Ela esboça um meio sorriso. Dá um piscada de olhos e prossegue em sua missão. Na esquina da ladeira íngreme com o Palácio, as flores estão acanhadas, bem diferente de ontem quando pareciam sorrir de tão vivas. Os tons acinzentados lembram uma cidade bombardeada. Ela se lembra do dia em que pegou a pupila em seus braços e a criou como sua filha. Naquele dia a salvou da fúria de sua mãe em crise puerperal. Os olhos verdes acompanhando o ritmo das flores do canteiro da praça.

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Eles chegam no prédio anexo da prefeitura, o porteiro não a vê, mas encara o gato e o enxota. Ele se eriça e mia forte deixando o porteiro com medo e arrependido. A velha sobe o elevador sem ser vista ao mesmo tempo em que o gato lambe suas canelas engelhadas. Abre-se a porta no terceiro andar. Ela dá dois passos e bate no único apartamento. Sem olhar pelo olho mágico, a empregada bem vestida, com os sapatos combinando com o traje branco e vermelho, usa touca, e cheira a lavanda. Ela abre a porta e não encontra ninguém. Cismada, percorre o largo e comprido corredor, enquanto a velha põe o bolo em cima da mesa de mármore, com um bilhete endereçado à dona da casa. Ela sai. A empregada retorna. O gato, disfarçado de tapete, quieto, segura a porta do elevador com o focinho. Descem e escutam o grito da empregada ecoando na portaria. O porteiro se refugia em seu mezanino e desconfia de algo relacionado ao gato. Enquanto caminham pelas ruas de paralelepípedos, algumas pessoas a reconhecem e antes mesmo de se dirigirem a ela, paralisam-se como o primeiro que a reconheceu. O guarda de trânsito permanece apitando - seus olhos parecem sorrir por tê-la visto. Vó do caco cruza a praça em direção à delegacia. Ela precisa levar o bolo de chocolate para o delegado Antônio. Quando chega, o encontra remexendo em seu bigode comprido e desabafando com Dutra, algo como, meu amigo, que falta me faz a velhinha da ladeira dos martírios. Lembra dela? Sempre afável e que coração! Dava pena, né? Ela cuidando daquela menina com aquela idade. E ainda sobrava tempo para fazer bolo. E que bolo! Nesse momento ela sorri de rabo de olho, enquanto coloca cuidadosamente em cima do birô de Antônio o bolo de chocolate. Assim como a mulher do prefeito, o delegado é importante para ela. Um por que perdoou sua pupila, e a livrou da cadeia, rasgando o relato

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do guarda que teve sua bicicleta furtada. A outra, por ter feito encomendas de seus bolos por anos e anos, religiosamente quatro vezes por semana, para que pudesse alimentar sua família. Sem ser vista, ela sai da delegacia acompanhada do gato preto. Em seus passos há uma gratidão imensa, mesmo ciente que a pupila está presa por ter feito outras estripulias, estas não perdoadas por ninguém. Mas aquele delegado era especial, e tinha mais um atributo, gostava do mesmo time que ela, um que exibia em sua bandeira o mesmo tom do céu daquele agosto encardido. E com os passos rápidos ela cruza a rua e sobe a ladeira rumo ao número 89. Ao bater o portão, os amigos voltam a se movimentar. A mulher do prefeito prova do néctar das laranjas e lacrimeja com saudades. Enquanto o Antônio resolve visitar sua pupila, que se encontrava presa por ter matado o homem que a estuprou. E naquela sexta-feira 13 do mês de agosto, o gato negro permanecia no casarão lambendo o vaso de porcelana refeito na madrugada daquele dia. Vó do caco, antes de partir rumo as nuvens, lembrou-se de visitar sua filha no presídio. Quando chega na cela vê o rosto de sua menina adormecido, lembra-se daquela sexta-feira 13, em que a segurou nos braços e a ninou depois da mãe surrá-la até quase mata-la. Agora ela está naquele estrado duro e frio, de barriga para cima esbanjando uma vantajosa barriga do filho do guarda que a estuprou. As mãos miúdas e frias de Vó do Caco acariciam o ventre jovem de sua menina e bem antes da troca da guarda, ela parte rumo ao horizonte. ADRIANA VIEIRA é pós-graduada em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo. Mantém a coluna “Ki literatura” é essa na Revista Obviuos. Autora do livro de poemas Carpintaria dos Sonhos, com prefácio de Ivo Barroso, atualmente escreve contos. Em 2016 publicará em antologia organizada pelo crítico literário José Castelo e lançará no Salão Internacional do Livro de Turim-2016 o conto Folha Milenar no livro Madre Terra, da editora Acima Mandala.| DRICAVIEIRA1968@HOTMAIL.COM

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MINHA MAIOR PROCURA BIANCA CAMARGO | São Paulo, SP.

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- Seu Maurício, chegou uma carta para o senhor. - Para mim? - É. Na verdade, é uma carta devolvida pelo correio. Eu não sei por que o correio faz isso. Por que devolver uma carta que seu destinatário não quer e que seu remetente sabe de cor? No envelope, estava escrito que a pessoa não foi encontrada no endereço após três tentativas. Claro, ele havia se mudado. Não aguentava mais saber que eu sabia onde ele morava. O problema é que o correio só gastou gasolina. Eu sabia todo o conteúdo daquela carta. Não precisava devolver-me. Aquilo me acompanhava o dia todo. Aquela tinta que escreveu o texto era a mesma que manchava a minha consciência. Cada curva de cada letra seguia o movimento ondular do meu espírito. O “A” tornou-se companheiro fiel. Era ele que trazia minhas principais amigas: a Angústia e sua prima, a Agonia. Angústia pelo arrependimento do que fiz, e Agonia por saber que não poderia evitar as consequências. Nem tudo que se vê é o que aparenta ser. Se ele chegasse só um pouco mais perto, ele veria que não fiz para prejudicá-lo. Embora, mesmo enquanto escrevia a carta, soubesse que ele não a leria. A escrita tentou fazer-me esquecer, gastando a tinta dos meus erros. Não sei se eles são muitos ou se sua tinta é muito escura, mas ainda sinto minha consciência manchada. Sei que um narrador em primeira pessoa é suspeito. Quem lê só saberá minha versão. Mesmo sendo ela muito dolorosa para mim, não vou usar um narrador onisciente, que saiba meus sentimentos, para defender minha inocência e convencer o leitor de que sou a vítima. Não posso fazer isso. A culpa é minha, e um narrador desse tipo não poderia apagá-la. Aliás, que leitor que esse texto terá? Ele não é um conto a ser publicado. É uma tentativa de contar a mim mesmo toda a história de novo. Com isso, talvez, eu consiga senti-lo comigo mais uma vez.

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Nós morávamos juntos há um ano. Ele veio ao Rio de Janeiro para trabalhar na mesma empresa em que eu trabalho. Nós somos arquitetos. Ele sempre gostou de estudar. Estava fazendo pósgraduação. Eu preferi parar só na faculdade mesmo. O sonho dele é ser representante da empresa na Inglaterra. Há uma filial lá. Ele estava fazendo de tudo para conseguir a transferência. Eu sempre fui contrário a essa ideia. Quando me contava sobre seus planos, procurava mostrálo a parte ruim disso tudo (Imagina: morar sozinho em um outro país, cultura diferente, língua diferente!). Ele dizia que fazia parte de seu amadurecimento. Pensando agora, acho que o que mais me incomodava era o fato de eu nunca estar em seus planos. Ele, o Antônio, era dedicado ao trabalho. Seus projetos eram sempre os melhores da equipe. Não demorou para ser o queridinho do chefe. Em seis meses, ele já participava do “grupo de elite” do escritório. Eu, em três anos, só fui promovido uma vez, e não foi lá dos melhores aumentos salariais. Nunca fui convidado para nenhuma festa do nosso gerente. Ele, ao contrário. Era ele quem as animava. O convite para a Inglaterra não esperou muito. Bexigas, placas com mensagens de parabéns e refrigerantes. A equipe toda comemorou, apesar da tristeza que o gerente demonstrou em perder o “palhaço oficial”. Tudo isso fez parte da reunião que tornou pública a proposta. Antônio estava radiante. Eu, ofuscado. Os preparativos para sua “grande aventura”, como ele dizia, estavam

sendo

feitos.

O

último

passo

consistia

na

vinda

do

representante inglês até o nosso escritório para assinarem o contrato. A data havia sido marcada: dezessete de novembro. Ele havia passado em todos os testes, só faltava aquela assinatura. No dia dezesseis de novembro, ele estava muito contente. Falou que queria despedir-se da nossa praia carioca. Perguntou se eu queria ir junto. Respondi que não. Deveria ter aceitado. Talvez, essa atitude mudaria tudo. Eu não teria virado o monstro que me tornei.

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Não sei como foi seu passeio. Por conhecê-lo tão bem, acho que ele aproveitou todas as ondas, tomou água de coco e fez carinho nos cachorros de rua. Ele sempre fazia isso, mesmo eu falando que não iria morar com alguém com sarna. Ele ria. Eu deveria ter ido junto. Eu não fui. Só fiquei sabendo, pelo telefone, que seu passeio não havia sido tão bom como eu imaginava. Um policial ligou para mim e disse que o Antônio estava no hospital. Ele não me falou mais nada. Nem precisava. Sua voz entregava que o estado de Antônio era grave. Fui. Vi Antônio de um jeito que nunca desejaria ver. Ele havia sido atropelado. Repleto de machucados e inconsciente. Fiquei ao seu lado até ele acordar. Isso já era de madrugada. Ainda muito fraco, ele perguntou que dia que era. O dia dezessete já havia começado. Ele pediu que eu fosse ao nosso apartamento e pegasse a pasta dele. Era urgente. Não sabia o que ele queria fazer. Apenas obedeci e trouxe-a. Em meio a muitos papéis, ele pegou um com todo cuidado e pediu uma caneta. Eu não tinha nenhuma, tive que pedir uma emprestada na recepção do hospital. Mesmo cansado e debilitado, ele assinou e fez um pedido para mim. Só então entendi. Aquele papel era o contrato para a vaga na Inglaterra, e ele estava me pedindo para que eu o levasse para o representante inglês. Deu todas as instruções como eu deveria proceder, falar sobre seu acidente e garantir que tudo ficaria bem com ele e que assumiria o posto na data marcada. Fez uma carta de próprio punho repetindo tudo o que me falara, só que agora para o inglês. Ele confiou em mim. E eu fiz aquilo. Eu não ia conseguir fazer o que ele pediu. Mesmo assim, sabendo do meu fracasso de antemão, eu fui. Vi o inglês. Pensei sobre todas aquelas instruções. Não segui nenhuma. Triste por decepcionar a empresa e envergonhado, ele havia me mandado para dizer que, além de não mais querer ir para outro país, ele pedia demissão. O grupo olhou-me assustado, inclusive aquele gerente paparicador. Fui firme e falei que estava ali a pedido de Antônio. Eles tentaram ligar para ele.

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Ele não atendeu. Claro, estava no hospital e sem seu celular. Fui mais categórico e disse com ar de superioridade: “Não acreditaram em mim? Ele não quer mais contato algum com essa instituição!” Lendo tudo isso agora, questiono-me como fui capaz de fazer tudo isso. Voltando para o hospital, vi Antônio dormindo em seu leito. Fiquei feliz, afinal não precisaria falar nada. Engano o meu. Quando me aproximava, ele ouviu meus passos e perguntou com aquele sorriso que eu adorava: “Deu certo?” Não sei o que havia acontecido comigo. Falei sem titubear: “Eles não querem mais você, Antônio. Acharam alguém melhor.” Ele chorou muito, e eu o consolei. Sua recuperação foi difícil. Após um mês e meio, ele foi liberado e voltou para casa. Tratei-o com todo o amor que tinha e fiz de tudo para ele não descobrir. Um dia, porém, ele acordou mais cedo. Fiquei sabendo o que aconteceu somente quando ele retornou. A primeira frase que ouvi foi: “Eu odeio você!” Percebi que meu ato não era mais segredo. Ele havia ido à empresa falar que estava melhor e voltaria a trabalhar. Quem sabe, no próximo ano, ele conseguiria a transferência. O gerente paparicador não entendeu o que estava acontecendo e contou tudo o que eu havia dito. Depois daquele dia, nunca mais o vi. Recebi a notícia de que eu perdera o emprego e a dignidade, como eles disseram pelo telefone. Eu amava meu irmão. Fiz aquilo para protegê-lo. Ele não quer mais falar comigo. A última tentativa de contato foi aquela carta. Sem emprego e sem dignidade, eu voltava de uma manhã exaustiva à procura de trabalho quando recebi a carta devolvida. Não havia percebido ainda que minha maior procura era pelo perdão do meu irmão.

BIANCA CAMARGO DE LIMA (1997) é paulistana e estuda Artes Visuais. Com as palavras, ela borda histórias. Com as histórias, ela tenta dar sentido à vida. | BILIMACAMARGO@GMAIL.COM

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RETORNO CARLA CABATTI| Belo Horizonte, MG.

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longas avenidas demorando o blues as vitrines, as vértebras e os versos de uma manhã opaca manhã aruak, kaiowá, katukina há sempre uma língua selvagem para estrear um sentimento marés e mapas soterrados nos nomes do dia vou até dentro desprevenida calcária quando volto cai uma chuvinha fina, delicada como quando se acaba um grande amor

CARLA CABATTI é brasilega. Doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela. Poeteira com todos os átomos, possui moléculas poéticas ligadas à Germina, Mallarmagens, Diversos Afins, Zunái, Alagunas, Contratiempo, etc., à Antologia RelevO 5 anos, ao ESCRIPTONITA: pop-esia, mitologia-remix& super-heróis de gibi, e agrupadas no livro autoral, na cadência do caos | LISPECTORLUZ@GMAIL.COM

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ALEPH ESTER CHAVES | Brasília, DF.

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O menino não tinha pouso nem morada, era desses seres nascidos ao

acaso,

que

alguns

notam

apenas

a

capacidade

de

ser

sobressalente em determinadas situações. O Sr. Manoel Durango, proprietário da banca de jornal Livro-me, o apadrinhara com intuitos exploratórios. Logo cedo, o arremessava às ruas, a cumprir a meta diária: vender as mazelas impressas e voltar para ajudá-lo nos afazeres da loja. As viagens na bicicleta arruinada, que mal saía do lugar, diversificava os tombos e os arranhões. Mas o pequeno não desistia; limpava o pó do corpo, livrava-se da lágrima que teimava em lubrificar as pálpebras, desembaraçava a corrente e reassumia o controle do veículo. Atrás de si, ficavam os olhares zombeteiros e as palavras malditas. — Lá vai o filho-de-não-sei-o-quê! O João Ninguém! Filho de chocadeira! Bastardo! O rapazinho da casa amarela gritava inflando os fartos pulmões e exibia a tímida voz, que ainda ensaiava os primeiros tons na escala dos insultos. Alguns moradores enfiavam as cabeças nas janelas só para ver o pequeno jornaleiro domando o objeto desengonçado que insistia em fugir da calçada. Esperavam o declínio do pequeno combatente, a ruína da criança que mal sabia dizer a idade certa e titubeava quando o

assunto

se

desdobrava

em

questionamentos sobre

a

sua

desconhecida origem. — Qual o seu nome, amor? Indaguei-o na viela, perto do Beco das Estrelas enquanto ele ajeitava a engrenagem da bicicleta. Seguiuse um estrondoso silêncio (...) o menino fincou o olhar no chão como se quisesse enterrar a presença ali, anular-se de si e varrer aquele instante da memória do mundo. Insisti sem perguntar, apenas com o olhar amoroso de quem entende a solidão e compartilha a quietude do silêncio como a marca dos que sofrem. — Aleph. A voz saiu baixa, quase um sussurro indecifrável. Percebi que ele não estava acostumado com presenças outras que não fossem

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para insultá-lo ou desmerecê-lo, mas eu estava ali para lembrá-lo de sua plenitude etérea. — “...vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph de todos os pontos, vi no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo". O olhar da criança sorriu gratidão, solicitou-me proximidade e abrigo. Desembrulhei o melhor dos abraços; longo, aconchegante, afetuoso

e

sincero... desses

que

os

que

compactuam

abismais segredos sabem oferecer. Os cabelos molhados exibiam tons diversos,

amarelos

em

gradação

desciam

pelos

cachos

que

repousaram nos meus ombros na hora do enlace das almas. Aquela criança trazia nos olhos uma gravíssima tristeza, parecia que o choro estava sempre desabotoado e qualquer palavra seria o estopim para o desaguar da escondida mágoa. —

Aleph.

"O

ponto

que

contém

todo

o

universo".

O Aleph (1949), de Jorge Luis Borges — a indecifrável estrutura do Universo — O infinito... O Além-Sem-Fim". O "plurimultisingular" menino escondia no nome a natureza das coisas — o segredo místico de um mundo que não se desvela com olhares secos e dedos em contínuo disparo. Depositei as cédulas nas mãos frias e retirei alguns jornais da garupa da bicicleta. Sem jeito, Aleph tentava devolver as notas que extrapolavam o preço das notícias. — São suas. Compre um livro ou qualquer coisa que goste. O olhar do menino borbulhava faíscas, os tons fosforescentes da alegria visitavam aquela alma elegante e despia-me de todas as mesquinharias mundanas. Como era possível? Aquele ser transcendente que andava de guarda baixa e passos arredios mantinha em si a vertigem do Universo. A insuspeitada forma de mostrar-se ausente, quase nulo, sem dar a conhecer a sua inexplicável Beleza era apenas

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um modo silencioso de existir sem pertencer ao lugar comum — à mesmice dos que se exaltam sem oferecer coisa alguma. Parecia loucura... aquela criança agigantava-se em sua mais remota forma de ser — os traços rabiscados em paisagem humana indicavam o delírio do voo. Somente eu a enxergava assim? "Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada". A protuberância crescente nos flancos — invisível sinal de liberdade dos que marcham para além de si. O rapazinho andorinhava em formato humano, mas não se deixava conhecer pelos vãos comuns, pelas frestas intermitentes do ser. Deixei-o ali, preso em suas vertiginosas asas, com aquele olhar paralisado no tempo, o sorriso incandescente de uma estrela e o céu todo a percorrer.

ESTER CHAVES é escritora brasiliense, graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília e Pós-Graduada em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Atuante na vida cultural da cidade, participou de vários eventos poético-musicais e teve a crônica “Pérolas”, publicada no “Jornal Letra Viva” e o poema “Chuva-lágrima” no Correio Braziliense em 2003. É colunista dos sites CONTI outra, artes e afins e “A Soma de Todos os Afetos”. Atualmente, se dedica à preparação de seu primeiro livro de contos. Cursa o segundo semestre da Pós-graduação em Gestão Cultural pelo Centro Universitário Senac – Santo Amaro. | ESTERCHAVESART@GMAIL.COM

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VISÃO FICTÍCIA DE IWO JIMA GABRIEL DE ATAIDE LIMA | Adamantina, SP.

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Guerras? -É trivial. Morrer? -Não é novidade. Uma ilha sagrada? - Existem aos pares. Vê que o homem se move como um coitado. Para matar é fácil porque quem morre é que está no outro lado. Outro lado? -Coisa de religião. Poesia? -Coisa de maricas. Eu faço versos como quem es pirra. Por que defender uma ilha tão quente tão aberta? Por que a guerra ofende mais aquele que não a vive? Guerras? -É trivial. Morrer?

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-Não é novidade. Uma bomba cai a cada instante para iluminar o céu aberto (imagine se as bombas fossem feitas de estrelas).

GABRIEL DE ATAIDE LIMA (Adamantina, 1996) publicou Fogo e Metal, Quase Barroco Novo e outros poemas que podem ser encontrados em seu blog pessoal (gabrielk-poetamarginal.blogspot.com.br). Escreve também contos e peças teatrais.

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VINDICAÇÃO HENRIQUE MARSON | São Paulo, SP.

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Para Alexandre Squara É só esperar os resultados: com essa frase ecoando na mente, sai do consultório. Há uma grande livraria próxima, que é parte do seu trajeto. Já que está afastada do emprego por dois dias, que encaminham para o final de semana, vai à livraria; afinal são quatro dias em casa, talvez um livro seja boa ideia. Olha as estantes que se erguem, pede sugestão ao livreiro, mas não sabe quando e qual o último livro que teve em mãos. Faz muito tempo. De fato não se recorda. O ambiente da livraria é estranho. Os inúmeros exemplares trazem a sensação de que é impossível escolher. Como saber se o livro é bom? O livreiro tenta ajudar. Sem conseguir, retira-se a pretexto de atender outro cliente. Está defronte à seção de literatura brasileira. Percorre as lombadas enfileiradas. As alturas diferentes, alguns são grossos a ponto de se manterem em pé por si. Outros mais franzinos se põem em vertical devido ao espaço totalmente preenchido do nicho da estante, que abriga os escritores de A até F, segundo o sobrenome do autor. Melhor escolher ao acaso. Dirige-se ao caixa. Digita a senha do cartão de crédito. Não precisa de sacola. Já vai ler no caminho: recebe o livro preto de capa dura, junto com a nota fiscal. É lindo. Talvez não escolheu ao acaso. Espera o ônibus enquanto segura o livro consigo. 394 páginas. Se ler 100 por dia, termina até o retorno ao trabalho. Traçado o plano de leitura, o coletivo chega e ela sobe, saca o bilhete do bolso, gira a catraca – o relógio de rua marca 10 da manhã – os assentos estão vazios, dá para escolher onde sentar. Prefere o banco alto mais ao fundo, do lado da janela; senta. Abre o livro, não há texto de orelha, também não é prefaciado, tampouco introdução: o livro já traz o primeiro capítulo. Gostou. Sem rodeios, direto ao ponto. Aproxima o nariz do livro para sentir o cheiro. Esse hábito não se perdeu. Começa a ler, mas logo surge um mal-estar parecido com uma náusea. Por ora

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para com a leitura. A viagem é rápida, melhor esperar até chegar em casa. Entra, coloca o livro sobre o sofá e vai preparar café. É bom aproveitar os dias de afastamento para ter tempo para si mesma. Volta com a xícara fumegando em uma das mãos, apanha o livro com a esquerda, acomoda-se no sofá, de modo a se recostar na parede. Tenta mais uma vez adentrar o primeiro capítulo. Então a leitura desliza na prosa simples, as imagens aparecem nítidas, os fatos se concatenam e montam um enredo que fisga a atenção. Uma personagem de classe média que passa os dias a trabalhar sem saber o porquê de tudo. Ela se satisfaz com a anestesia dada algumas vezes por ano com bares, viagens e restaurantes. Quase simultaneamente tudo se transforma em fotos que estampam seus perfis nas redes sociais e dão ares de felicidade à vida que, com efeito, nada mais é que muito trabalho, pouco descanso, relações fugazes, trajetos de ônibus imóveis no trânsito, manchetes da imprensa escritas por Nostradamus, a contenda entre o saldo bancário e o aluguel, as contas, os juros, os cartões, as roupas em prejuízo de seu salário e todas as outras peripécias da vida ordinária que muitos possuem; isto consola: não é só ela. Não deve fumar, mas ao terminar o capítulo, se levanta e vai buscar o maço de cigarros. Como jurara que seria o último, comprou do vermelho; atrás da embalagem há uma foto de pulmões degradados pelo carbono. Acende uma das bocas do fogão, se inclina, mas o cigarro a interpela antes que chegue a beijar a chama azulada. A fumaça faz seus olhos se irritarem. Cerra as pálpebras, enquanto dá a tragada inaugural. Procura o cinzeiro. Está dentro de uma gaveta. Senta ao lado dele no sofá, e termina de beber o café fumando. Retoma a leitura – o cigarro queima preso ao cinzeiro de vidro –, o segundo capítulo narra uma mulher que tenta parar de fumar, mas depois de ir ao médico e comprar um livro, não resiste e acende um cigarro em casa enquanto lê e bebe café. O livro tem a capa preta. A

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personagem se dá conta que a história traz uma situação semelhante a sua. Ela coloca o livro de lado e pega o cigarro entre os dedos, que quase já se reduziu a cinzas. Ela se levanta. Busca mais café e opta por mais um cigarro. O maço está no fim, melhor que acabe logo. Senta-se novamente no sofá e abre o livro. Aquelas pontadas de dor voltaram na lateral do abdômen. Lê e fuma. Após uma porção de cinzas cair sobre a página, descansa o cigarro, que queima preso ao cinzeiro de vidro, afasta as cinzas com a mão e volta a ler. A personagem sente as dores abdominais, lembra que esse foi o motivo da visita ao médico, que pediu exames – é só esperar os resultados –, está de licença do emprego. A causa pode ser o cigarro, deve parar de fumar. Por enquanto só diminuiu. Ficando em casa é mais difícil, há os filmes, séries e também comprou o livro de capa preta. Porém quando assiste ou lê, como faz agora, não consegue evitar o cigarro. A fumaça descreve uma curva e paira por alguns momentos antes de se desfazer e impregnar indelevelmente seu odor nas cortinas e no âmago do estofado. Já se acostumou com o cheiro, é imperceptível. A dor aumenta. Ela vai buscar o remédio. Usa o último gole de café para ingerir o comprimido e, ato contínuo, dá um derradeiro trago no cigarro – cafeína e nicotina parecem combinar –, amassa e esfrega o filtro no cinzeiro cuja transparência fica maculada por manchas pretas. Volta a ler, mas uma dor somente suportável pelo hábito não a deixa se concentrar. Ela fecha o livro. A personagem também fecha. As pontadas lancinam a partir de dentro e agridem seu tórax. A dor pode ser impressão do que leu no livro. Ela se põe em pé, tenta inspirar e expirar calmamente, não adianta, senta no sofá, o livro jaz ao lado, próximo ao cinzeiro, e está aberto na página 13, na qual ela havia parado: a personagem, com uma forte dor no peito, para de ler e se levanta, tenta respirar, não melhora, ela senta no sofá, o livro preto está aberto na última página lida, 13: sem ar, ela se põe de pé,

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senta de novo, então lê que a protagonista sente dores e levanta do sofá, respira e se senta e lê a página 13 na qual havia parado: levanta, respira, dói, falta o ar, senta e lê a página 13 na qual a personagem está sufocada. Ela procura o final. A última e penúltima folhas estão em branco. Contudo encontra os momentos finais da obra. A personagem fecha o livro que estava lendo, o telefone toca. É avisada que precisa ir ao consultório até o final da tarde. Os resultados dos exames saíram. Ela vai até lá. Respira com muita dificuldade. Cada passo. Ofegante. Acirra as dores. O elevador não vem. Usa a escada. Degraus sufocam. O maço de cigarros – atrás da embalagem há uma foto de pulmões degradados pelo carbono –. Não tem ar. Entra na sala. O médico. Segura os exames. Ele fala. Sem olhar para ela. Os resultados. Fecha o livro. Toca o telefone. Uma pontada de dor. Parece extrapolar. Suas entranhas para fora.

HENRIQUE MARSON é paulistano. Graduou-se em filosofia no ano de 2010 pela UNIFAI, atualmente é mestrando em filosofia pela Unifesp. Trabalha como professor do Instituto Federal de São Paulo – IFSP. Gosta de escrever e principalmente de ler. | HENRIQUE_MARSON@HOTMAIL.COM

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A CARTA DO ADEUS JOSÉ VIEIRA| Santa Cruz, Madeira, Portugal.

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Adeus! Adeus meu amor. Será que ainda posso chamar de amor? Não posso e nem devo. Já não o és. Há muito que

o deixaste de ser. Não sei precisar o

momento que isso aconteceu. Onde é que começou o princípio do fim? Possivelmente muito antes da nossa relacão ter acabado. Se calhar quando dizias que estavas a tornar-te um mero amigo para mim. Se calhar aí já não eras o meu amor. E eu não via. Ou não queria ver. Enquanto não assumisse que o abismo estava ali tão perto de nós nada iria mudar. Continuaríamos a ser apenas nós dois. E achava que seria suficiente. Que tola! Só nos apercebemos da dor quando a sentimos. Quando chega o momento em que ela se manifesta no corpo e na alma. Até essa pequena fracção não vislumbramos os pequenissímos sinais da sua breve chegada. Parecemos cegos. Não vemos, não olhamos e não reparamos. Os sinais estão sempre lá! Eles estavam bem visíveis. Por isso mesmo deveria ter apercebido do que estava a suceder. A que iríamos rumar. Não vi o abismo que se aproximava. Não o vi! E o fim chegou. Já passaram tantos mas tantos dias. Tantas noites sem dormir. Os pensamentos fluem a uma velocidade estonteante. Como se de uma fórmula matemática se tratasse e tento encontrar o erro. Aquele erro crítico que tornou o impensável bem palpável. Tínhamos tudo para caminhar até à eternidade mas o éfemero abateu-se no nosso mundo. E o tudo ao nada rumou. Nada ficou de nós. Nada sobrou! Perdi-te! Agora que olho em perspectiva sei que nada poderia ter sido feito para alterar o que já de si era inalterável. É verdade que fomos felizes. Foram momentos de pura felicidade aqueles que tivemos. Momentos de amor. Momentos que só eu e tu guardamos. Mas esses momentos não bastaram. Tínhamos tudo para

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que fosse para sempre no entanto isso não é suficiente quando não há vontade. A dedicação que tínhamos um pelo outro, por nós, foi se esfumando. Perdeu-se no tempo. Só por isso deixámos de ter tudo para dar certo. Só por isso caminhámos de mãos dadas para o abismo. Por isso, e apenas por isso, deixamos de entender as fraquezas de cada um. Deixámos de auxiliar-nos nos momentos de maior escuridão. Estavámos juntos mas cada um sentia a solidão. O vazio tomou conta de nós e foi crescendo e crescendo. Já não sinto amor. A tristeza aos poucos desvaneceu. Já não procura respostas. Não sinto mágoa. Tudo tem uma razão de ser. Se a nossa história chegou ao fim é porque não havia outra maneira de ser. No meu coração levo um pouco de ti. Este carinho que sinto não desaparecerá. Ele existe e assim continuará. Podemos ter rumado para o abismo porém até esse instante tudo o que vivemos único. Foi aprendizagem. E é por tudo o que vivemos que posso dizê-lo que continuo a gostar de ti. Tenho-te comigo. Adeus. Adeus meu amor!

JOSÉ VIEIRA é o pseudónimo de Teresa Vieira Lobo. Jovem nascida na década de 80, numa pequena localidade chamada Gaula, terra de amoras, padres e doutores. Em 2014 estreou no mundo da escrita com o livro “Estranhas Coincidências”. | TERESAVIEIRALOBO@SAPO.PT

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ÉBRIO LUIZA CORREIA | Santa Helena, PB.

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Estou sem eternidades Longe dos ciclos e de tua cidade Há tempos que a brisa não me visita E teu riso não me acalma Estou sem eternidades na alma Entreguei minha vida ao vazio E acreditei que a caminhada não seria vã Mas tudo se foi e o breu resplandece Como frio que aquece a sombra dos passos Estou sem eternidades Não fiz valer a vida a mim doada Quero dissolver-te puro Até reencontrar minha casa

LUIZA CORREIA é graduada em Letras pela UFCG, campus de Cajazeiras – PB e Especialista em Estudos Literários pela mesma Universidade. Possui uma pequena reunião de poemas – Espectro do Intermitente – editada pela gráfica Vitoriano no ano de 2014. | LUIZA.SH11@GMAIL.COM

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TERNO AZUL DE RISCA DE GIZ MARCIA MESQUITA | São Paulo, SP.

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Sabe, Marilda, uma vez me disseram que o amor não era como a fome que todo mundo sentia igual. E é verdade, minha medida de amor sempre foi maior do que a sua. Quanto mais amor, maiores as expectativas. Você ficava ansiosa de ser amada e de não saber amar, tinha medo de não aguentar tanta atenção. Sempre achei que o seu abandono fosse questão de tempo. Nunca esqueci do dia em que a vi entrando pela primeira vez em meu escritório de azulejos brancos, cheiro de éter e ferramentas de metal. Você tão viva, florida e colorida iluminava com sol a sala de luz branca. Pela seriedade da situação, não pude conhecer o seu sorriso naquela tarde, mas sabia o quanto a sua boca aberta de dentes brancos, meio tortos, ia aliviar-me de muita coisa, mais do que a pinga no bar daqui da frente. Sabe, Marilda, você era vida em um mundo de mortos. Eu torcia para as pessoas morrerem só para eu lhe ver com mais frequência. Você chegava com o dono da funerária e mesmo de longe eu sentia o calor do seu corpo, o seu cheiro de mel. Eu cheguei a ir em um enterro só para conhecer o seu trabalho, para saber como você transformava a morte em uma coisa bonita de se ver. A menina no caixão parecia que ainda tinha vida em suas veias, que a qualquer momento ia saltar daquela caixa e correr para longe do buraco que estava sendo cavado para ela. Quem me dera esquecer daquela noite em que nos encontramos por acaso e pela primeira vez fora do ambiente de trabalho. As suas amigas começaram a rir quando você sentou em minha mesa e começou a beber da minha bebida. O dia amanheceu com você fazendo usucapião da minha vida.
 Sabe, Marilda, eu queria mesmo era ser da polícia, mas minha boca vivia entupida de silêncio. Precisava de um emprego que pudesse permanecer mudo, inerte, um adulto natimorto. Quando terminei a escola, eu prestei concurso para ser auxiliar de legista porque preferia

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lidar com gente como eu. A primeira vez que entrei naquela sala limpa, iluminada e silenciosa, eu me senti em casa, mais do que naquela que havia vivido por 18 anos, cheia de gente, com cheiro de cebola e bebida. Eu tinha encontrado a minha boia e não iria mais me afogar. Mas daí você apareceu e tirou a minha boia. Fez dos seus vícios os meus. Os seus dramas, só meus. Tirou o silêncio da minha boca para enfiar a sua língua maliciosa dentro dela.

 Até me esqueci de quantas vezes eu bati e apanhei por sua causa. Cicatrizes que marcaram o meu rosto e o meu corpo em troca de eu me provar para você. Cada uma dessas cicatrizes era uma tatuagem com o seu nome. E ainda por cima, você era ciumenta. Achava que eu abusava das mulheres mortas como seu eu fosse um homem sem Deus. Que eu não respeitava nada nessa vida. Sabe, Marilda, o que eu mais respeitava nesse mundo era a sua buceta quente e molhada. Ela era o túnel da minha desgraça. Por que eu ia querer pernas rijas, buceta seca, olhos de vidro se com você era tudo calor e umidade? A sua buceta era um mar para eu me afogar. E eu me afoguei. Você dizia o que a minha boca escondia, ardia com o fogo que eu não tinha, só não amava como eu. Você pedia, pedia, pedia, mas nada devolvia. E quando você terminou de tomar foi embora sem avisar, deixando a cama desarrumada, a louça por lavar. Garrafas vazias sobre a mesa. Esqueceria de tudo isso se você tivesse aceitado dividir o meu silêncio, o amor e a atenção de uma criança e o resto de uma vida que a gente tinha tanto medo de não saber viver. 

 Sabe, Marilda, sem você nada mais me faz feliz. Parto deixando na sua conta a dívida da minha vida. Peço que você lave, com o mesmo respeito que você teve pelos outros mortos, esse corpo sem vigor que lhe acalmou por tantas noites. Faça a minha barba e me penteie com cuidado para que os fios de cabelo não desgrudem da cabeça quando descobrirem

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que não há mais sangue pulsando pelo couro cabeludo. Dê corda no meu relógio de pulso para que ele funcione um pouco mais do que o meu corpo. Para que ele abafe o som do silêncio que aquietou o meu coração e da terra caindo sobre o meu caixão. E não se esqueça de me vestir com o terno azul de risca de giz.

MARCIA MESQUITA mora em São Paulo há 18 anos e é Consultora Educacional de dia e escritora de contos de amor, sexo e dor de cotovelo nas horas vagas. A tia Zilda, quando leu o blog romanxorcismo.blogspot.com.br, disse: - olha, você escreve muito bem, mas, se continuar escrevendo pornografia, ninguém da família vai ler. | MARCIA.DALLARI@GMAIL.COM

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A CASA YURI PIRES | São Paulo, SP.

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A casa é construída tijolo, suor e madeira na subida da ladeira eira de pouca medida há um pé de graviola nascido da terraria roubado à pedra fria onde se desengaiola pássaro de cristais giz, terra e manhã pequenino qual titã em espaços siderais azul de olho e de bico e penas de tanto fogo canto igual um rogo engenho de outro fabrico qual a casa madeira qual a casa graviola qual a casa passarola tudo em forma caseira qual o poema casa de igual arquitetura de infinita fundura inscrita na folha rasa tal é o espanto tanto casa dentro de casa

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infinitamente casa com a sombra do manto que cobre o centro do ser, de seu engenho, não pelo seu cenho, que a casa é o dentro.

YURI PIRES nasceu em 1986, na cidade do Recife (PE), onde cursou História, na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), e viveu até 2011, mudando-se para São Paulo (SP), onde publicou seu primeiro romance, O Homem e o Seu Tempo (Chiado Editora, 2014), seu primeiro livro de contos, Fábrica de heróis (apenas em e-book, 2015), e seu primeiro livro de poemas, Artifício (Editora Intermeios, 2015). | PSILONEPIRES@GMAIL.COM

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HELENA BARBAGELATA Helena Barbagelata, de Lisboa, é uma artista interdisciplinar que trabalha com diversos registros visuais, entre eles a fotografia, a aquarela e outras técnicas mistas. A artista se interessa por projetos colaborativos, pois acredita no potencial de troca da arte e de harmonia da atividade artística. Utiliza recursos variados, desde a tinta a óleo até o carvão e a tinta-da-china, apresentando um trabalho multifacetado de experimentação constante. Aprecia tendências vanguardistas, principalmente as que surgiram na primeira metade do século XX. Além desta colaboração com as ilustrações, Helena publicou o poema “As naus insonhadas”, no número 9 do volume 4 da Subversa.

PORTFÓLIO | FACEBOOK HELENA.ANTUNESBARBAGELATA@GMAIL.COM

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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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