Revista subversa vol 5 n5 outubro2016

Page 1

SUBVERSA Vol. 5 | n.º 05|outubro de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração RAYSA RICCO PAVÃO

EBER S. CHAVES

MARCO AURÉLIO DE SOUZA

FERNANDA FATURETO RAFAEL LINDEN EDSON AMARO LÉO OTTESEN

RENATA PEREIRA NATANAEL OTÁVIO ROGÉRIO LUZ CARLOS FRAZÃO


WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA @CANALSUBVERSA CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

Subversa | literatura luso-brasileira | V. 5 | n.º 05

© originalmente publicado em 01 de outubro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações RAYSA RICCO PAVÃO

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME 5 | NÚMERO 5 CARLOS FRAZÃO | LUCIDEZ | 06 EBER S. CHAVES | A BESTA | 08 EDSON AMARO| RENASCER | 13 FERNANDA FATURETO | CARTOGRAFIA DO SILÊNCIO| 15 LÉO OTTESEN | URBANO | 17 MARCO AURÉLIO DE SOUZA | A TERRA PROMETIDA | 19 NATANEL OTÁVIO|O CASTIGO DE ATLAS| 23 RAFAEL LINDEN | O BATIZADO | 25 RENATA PEREIRA | MULHER DE MARTE | 29 ROGÉRIO LUZ | INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS | 31

SOBRE RAYSA RICCO PAVÃO| 33

3


EDITORIAL “o espelho regista o que atinge tal como atinge. Diz a verdade de forma desumana, como bem sabe todo aquele que – ao espelho – perde toda e qualquer ilusão sobre a própria frescura” (Umberto Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios, 1989, p. 18).

Com pouco mais de dois anos, a Subversa já se olha no espelho e reconhece suas próprias formas. Já diz “essa sou eu: um espaço constituído de uma série de identidades das mais diversas”. Assim como também

pode

falar

das

coisas

com

as

quais

se

identifica,

principalmente aquelas que dependem de outras séries de existências, para existir

também. Pode dizer, por exemplo,

“aquilo é um

monumento” ou, ainda, “aquilo é um conjunto de cores sobre um monumento”. É impressionante como fica mais fácil essa produção de identidade quando estamos perto da literatura. O texto literário, como escreveu Umberto Eco, é uma forma multivariada de espelho. Ler e escrever são atividades que nos colocam diante de inúmeras possibilidades de formato para o objeto refletor: côncavos, convexos, quebrados, sobrepostos, remendados com super cola, multifocais, etc. Assim, deixam ver coisas que arriscam a ordem natural das coisas e a ordem natural da beleza. Em outras palavras, a literatura nos aproxima de nossa autenticidade com uma potência ímpar. Felizmente, tudo o que precisamos para fazer a Subversa é nos dedicar a ler e escrever, numa prazerosa teimosia. Como somos essencialmente texto, essa identidade vai se firmando de uma maneira bastante corpulenta, esperando que ajude também a dar corpo a essas vozes que vêm ao nosso encontro. Dar voz ao corpo textual é conferir sentido único à realidade e, assim, mais prazer à existência, ainda que doa demais. De corpo em corpo, a história vai ficando melhor.

Desejamos a todos uma boa leitura. As editoras.

4


Subversa versĂŁo impressa #2 Encomendas pelo e-mail contato.subversa@gmail.com 5


LUCIDEZ CARLOS FRAZÃO | Porto, Portugal.

O vento dispersa-se como um lastro e desce pela orla das árvores azuis ao crepúsculo. Não muito mais entre a névoa, o silêncio focado nas luzes distantes. Narro um sonho lúcido, aquela margem em que se pode escolher o destino. Um compromisso com a invenção do real. Passear pelas sombras aneladas de um bosque que: não existe. Unidos os lábios às palavras ou os dedos aos dedos, nenhum espaço para inscrever o corpo sob a leveza de um vazio. Tudo flui. Talvez se dilua o tempo na aproximação à morte consciente, o que gostaríamos de saber para descrever aos olhos. As folhas aspergem o hálito da noite e o ar marítimo regressa à avenida num torpor insone. As janelas estão

6


fechadas e os objectos não se distinguem nos filtros da neblina. Tudo parece quase deserto. O lugar do próprio sonho aonde se vai, correndo pelas escadas da casa para inventar a última frase possível. E.E. O significado das escadas num sonho - pensei. O areal que foi um pouco a nossa história apaixonada, talvez as horas vividas no café de espelhos, aqueles dias num hotel do mundo quando se parte em viagem por um assédio ou por nada. Mesmo as locuções de um alfabeto que: não existe. O desejo. A mutilação inconsciente dos vitrais, os grandes lagos e e o teu corpo nesse brilho disperso pelas películas da luz. E.E. Isso. O que levamos da vigília com as veias à flor da pele. Até ao sonho lúcido para descrever aos olhos.

CARLOS FRAZÃO, portuense, mestre em filosofia, exerce a profissão docente. Publicou três livros de poesia e tem participado em colectâneas e revistas de literatura. Em preparação um livro de contos e um ensaio de textos filosóficos. CF.CARLOSF@GMAIL.

7


A BESTA EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

Horripilante! Há uma criatura devorando cada pedaço de beleza e todos eles a nutrem. Uma máscara sem face escondendo o semblante que insulta a formosura. Pobre diabo escrava de instintos sanguinários rastejando-se sob o véu da noite. De todos os predadores

8


deste mundo, essa criatura é a de pior reputação. Não foi por vontade própria que conheci a sua incrível habilidade assassina seguida por uma igualmente impressionante capacidade de consumir carne. Olhos vermelhos flamejando na escuridão e a insanidade está começando a despertar seu desejo por sangue. Entre as sombras, camuflada pela escuridão e pelo silêncio, observa a sua vítima, planejando sua morte. A ingênua vítima caminha meditativa pensando estar debaixo de alguma proteção divina. E vem o bote. Vê-se o movimento de ataque. Um único golpe. O ventre da vítima sente um toque frio e cortante. Pedaços de carnes dilacerados pelas enormes garras são arremessados no ar, mas nenhum será desperdiçado; uma vez que há algo ainda mais aterrorizante do que aquelas garras – as várias linhas de dentes serrilhados e afiados fechando-se na mordida. Imagine a criatura subindo com as garras e dentes serrilhados até estar no topo, enquanto aguarda a sua vítima ir enfraquecendo pelas feridas para, então, comê-la a sangue frio. Qualquer um que se deparar com essa criatura terá uma experiência angustiante; mas, apesar disso, a melhor alternativa é ficar parado e resistir ao impulso de correr. Uma vítima correndo representa uma ameaça menor do que aquela que está pronta para lutar por sua vida. *** Na noite em que minhas memorias perfeitas caíram como o orvalho, e meus olhos não esconderam suas lágrimas, desapareci na escuridão, escondido dos olhos de Deus, em busca do coração atrofiado pelo tempo. Havia uma mão assassina nessa escuridão tentando me alcançar, e eu não conseguia escapar dela. Quando começou essa carnificina eu não sei – talvez a criatura venha caçando pela Terra desde a própria origem da vida; ou o nosso planeta um dia foi um Jardim do Éden, onde ela vivia em meio a outras espécies e com elas tinha uma convivência pacífica.

9


- Ó tolo, por que julgas o que não conhece? Não sabes que nem sempre fui esta pobre criatura que agora te espreita na calada da noite? Ah, quão infeliz visão me aflige! Vejo na escuridão a criatura bestial cujos dentes serrilhados banham-se no sangue de impiedosos, homicidas e inocentes – e sou testemunha de que a violência enfeitiça o mais puro; eu vi quando lhe disseram: “Vai! E coma bastante carne”. Uma pessoa até pode causar a própria morte antes da hora planejada de morrer, mas acredito fielmente que ninguém nasce se não tem de nascer e isso me fez perguntar a mim mesmo: teria ela atentado contra própria vida ainda na fase uterina? Sua vontade de não existir nessa vida era suficiente para ela pensar que não tinha de nascer? Havia melancolia como se ela houvesse nascido por sua própria imprudência ou insuficiência e agora estivesse pagando um preço condizente com algo que não era para ser. Sua vida soou como sinônimo de castigo. - Criatura, você está viva. Se não era para ter nascido, nasceu! Já que nasceu, cumpra seu destino de vida e não seu destino de morte; seu destino de viver e não o de morrer. Existem questões que não nos cabe pelo absurdo e insólito que se mostram. - Mas nenhuma pessoa ao agir livremente poderá eximir-se da responsabilidade de seu comportamento. - Mas, ao que parece, você não dispõe de liberdade de escolha. - Ou eu venço a vontade e o dever através da inibição dos impulsos, ou vencem os impulsos através da anulação da minha consciência. - Há quem acredite em flagelo libertador, no chicote, no sofrimento, na punição, no castigo. A escolha é sua. - Humano tolo, eu não sou merecedora do perdão divino. A minha sede por sangue é inesgotável, e os meus métodos são cruéis. Todas minhas vítimas sofreram uma morte horrível. Eu cravo meus dentes serrilhados no pescoço fazendo o sangue jorrar. Espero cessarem as

10


batidas do coração; sob o peito ensanguentado, o pano é enrolado imediatamente no local dilacerado e o seu conteúdo repassado para dentro de um saco plástico etiquetado, constituindo uma unidade amostral. Não posso negar que nesse momento eu queria apenas ser um espírito puro – tu sabes disso, e quanto mais sabe mais me condena. Sei que agora estás farto de mim. Estás realmente desistindo de mim. Tu finalmente tiveste o suficiente, mas ninguém parece se importar. Ninguém desconfia que atrás deste rosto haja uma memória corroída, aprisionada sob uma máscara. - Criatura que se esconde nas sombras, o luto é o protótipo das depressões, que me levam ao isolamento social e a alterações dos ritmos circadianos. Mas se você vem ao meu encontro esta noite, certamente, partirá deste mundo. - Maldito humano! Quero que saibas que sou uma cicatriz na tua alma. Sou uma fissura e tudo está feito, não há volta. - Vem pobre criatura, e eu te receberei em minha casa e quebrarei e depois restaurarei tuas asas. Enfiarei minha lâmina afiada em tua pele enquanto te abraço. O sangue irá jorrar em minhas mãos e as minha lâmina trará a mim um pedaço da tua carne. E tu não mais existirás. Não há sonhos na sepultura. - Eu já estou bem perto de ti, tolo, a um passe do ataque fatal, mas há algo de errado em mim hoje; algo que me impede de fazer o que manda a minha natureza de criatura bestial. - Morda minha pele e células, mas você não pode comer meu mais profundo interior. - Você sabe o que lágrimas fazem? Dê-me o seu interior. Dê-me esse seu falso coração. Longos gritos vêm das dores da morte. As garras cortantes estão brilhando claramente. A respiração obscena continua quebrando o silêncio da noite. Gotas vermelhas sobre meus lábios gananciosos caem no chão congelado. O instinto que sofreu intensivamente, agora é

11


tingido pelo sangue fresco. A criatura está gritando e eu não consigo parar de gritar. Eu a abençoei e bebi o seu sangue cuspindo para fora a miséria que havia em mim. Ela bateu suas garras para sentir alguma coisa, queria saber qual é a sensação de tocar e sentir algo de mim. Eu vi a criatura cair dentro da cova que ela mesma cavou, e de onde não mais sairá. Ó Criatura, você selou sua morte quando tomou o que já foi meu. Não tente me parar de vingar este mundo. Fuja agora com a angustia para debaixo da terra, tentando se esconder do que rasteja e desliza e dilacera. Criatura, se tu já viste meu sorriso, saberás o quanto me desfaleço por dentro. Descanse em paz. Mesmo morta, me enches de temor e pena. Você me disse que eu não poderia passar para debaixo da terra sem cumprir alguma coisa. Eras extremamente agitada pelo peso da própria culpa maligna que ninguém podia descobrir, e agora estás inerte e serena. Que tua alma encontre o teu Criador. Eu agora estou coletando suas vítimas, e elas estão ficando mais fortes. Escondo dentro de mim a besta sombria como a noite, com seu coração frio e morto por um desejo de pecado. Se eu a deixar sair, o mundo entrará em prantos.

EBER CHAVES (Itaquara, 1979) reside em Vitória da Conquista/BA. Poeta e blogueiro, é frequentador assíduo de grupos de estudos em psicanálise e filosofia. Tem grande interesse em poesia, literatura fantástica, história e cosmologia. Amante da natureza. Fã de heavy metal. E apreciador de cervejas especiais e feijoada. EBER.CHAVES79@GMAIL.COM | Blog: http://eberchaves.blogspot.com.br/

12


RENASCER EDSON AMARO| Sรฃo Gonรงalo, RJ.

13


“Jesus respondeu: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus.” (João 3: 5; tradução de João Ferreira de Almeida). Dos olhos puritanos é guardada Por montanhas, e matas e azul mar A paisagem tranquila da Enseada Olho de Boi, em Búzios. Vem sonhar! Eis homens de mãos dadas sem segredos, Eis mulheres despindo seus receios, Eis idosos lembrando seus brinquedos, Sem padrões que nos cuspam nomes feios. Por horas esquecidos da cidade, De grifes, protocolos e doutrinas, Cada qual contemplar o Éden há-de Na alegria de nudezes cristalinas. Haverá para alguém melhor batismo Que se achar numa praia de nudismo?

EDSON AMARO traduziu o romance “Valperga”, de Mary Shelley, publicado pela editora Buriti. | PLANTEARVORES@GMAIL.COM

14


A CARTOGRAFIA DO SILÊNCIO FERNANDA FATURETO | Uberaba, MG.

Deixaria a porta entreaberta para lhe dizer palavras doces não fosse a prerrogativa do silêncio a descumprir o trato: eu me calo diante de sua face impassível. A indiferença com que me vê avançar congela sua feição. Como se não houvesse amanhã, repetimos o que será feito hoje – dois corpos tentando ultrapassar as leis da física no mesmo espaço gasto.

15


A pele sente a ausência em cartas marcadas, feito bicho, na espera de que o gelo se quebre e o ciclo se interrompa. Abre como fenda o território de urgências de cada toque; mas não podemos falar abertamente sobre isso. Seria reconhecer toda a falta, admitir que falhamos ao querer mais. Ainda estamos à procura do que nos falta, mesmo sabendo que cada espera é vingança. Cada encontro é o que nos resta frente ao abismo das palavras. Provamos do que nunca falaremos. Na dança íntima que travamos, deixamos escapar em segredo o verbete do que nos prende à distância. Dizer que nos importamos enquanto arde por dentro o que chamamos de paz nunca alcançada. Trilhamos uma história gasta recontada por outros desejos. Iniciamos o ciclo da procura e do esquecimento enquanto brincamos que será apenas hoje e nunca mais na cartografia fina do silêncio de nossos corpos.

FERNANDA FATURETO (1982) é autora do livro Intimidade Inconfessável (Editora Patuá, 2014). Possui poemas em revistas literárias como 7faces; Germina; Mallarmargens; RelevO; Diversos Afins; R.Nott Magazine. Participa da antologia poética 29 de Abril: o verso da violência (Editora Patuá, 2015) e integra com uma short history a antologia Subversa #2 (Editora Patuá, 2016).

16


URBANO LÉO OTTESEN | Rio Grande, RS.

A cada dia mais nos tornamos a fumaça dos nossos carros. Os laços rompidos entre a realidade material do combustível e a etérea dança da energia. E cada vez mais nos tornamos os passos que deixamos na calçada. Sempre indo. Raramente ficando. E quando ficamos, ficamos nada, é só um momento. Quando ficamos é porque esquecemos de ir. Um deslize, um esquecimento, um agora-é-pra-ondemesmo-? e então lembramos. E vamos. Fumaça de cigarro também é a gente. E ainda mais a tosse dos velhos. O pigarro. A distância não-notada entre o prazer e a dor. Somos

17


cada vez mais somas de distâncias e fome de contatos. Voltimeia duas solidões se esbarram e param, atônitas, depois voltam a andar. Esse encontro costuma durar de dois a cinco. Se segundos, meses, anos... aí é você que decide. Muita gente pode achar triste - e com razão - toda essa melancolia e esses vazios. Eu não. E com razão. A sabedoria maior que consegui descobrindo que as coisas são efêmeras me dá certa tranquilidade. Eu não insisto. Sei com absoluta certeza de alguém-quesabe que o momento passa, as coisas vão, nada fica, ninguém fica. Pois se ficasse, ora, de que valeriam? Nós não notamos que o filho da gente cresceu até que alguém repare "como ele tá grande!". Porque é o filho da gente. Tá sempre ali. Imutável. Infinito. Inquieto. Nós tampouco notaríamos a importância dos acontecimentos se eles durassem. Pois estariam ali por muito tempo. Portanto, eu abraço a casualidade e os (des)encontros. Abraço até a falta de algo duradouro. Mas abraço essa falta de algo que fique com saudade, não com dor. Nunca dor. Porque aceito que o melhor mesmo é ser rapidinho. Nós somos a rapidez das coisas que não permanecem. E nós permanecemos. Imutáveis. Infinitos. Inquietos. Insatisfeitos. Eternamente insatisfeitos.

LÉO OTTESEN tem 24 anos, é escritor, poeta e compositor gaúcho. Frequentou a faculdade de Letras – português/francês da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e, atualmente, desenvolve projetos como produtor e agitador cultural. Publicou o livro de poesia “mas enfim” pela ed. Clube de Autores no ano de 2015. Também ministra oficinas de escrita criativa na sua cidade. https://www.facebook.com/leo.ottesen

18


A TERRA PROMETIDA MARCO AURÉLIO DE SOUZA | Ponta Grossa, PR.

Nem sempre a tua pronúncia desengonçada Cheia de gaguejos e consoantes fora de lugar Fez coadunar com os meus erros de caligrafia calejada Pelas ameaças cotidianas da língua E o terrorismo velado dos bancos escolares. Contra o abismo das gerações E dos estrangeirismos e migrações da época

19


Havia entre nós, entretanto O discreto milagre Da comunicação. Embrulhando em histórias as panelas de ferro Pesadas de repolho e polenta Teu tronco baixo e largo agremiava orações E no teu encalço se reuniam Mil matilhas A farejar as ratazanas Decepadas Do porão velho e mal iluminado Onde se escondem os segredos das crianças Assustadas, de braços dados com as patas úmidas Dos cães que uivam à espera Da sua hora: O cabo liso da enxada Revela a morte Nos corações fragilizados Da infância O sacrifício do amor Coagulado. Enquanto Carol Woitila me acena Do lado de dentro dos quadros e retratos Da tua fé Nas paredes da casa que cresce Feito um organismo vivo Sua dicção centenária E balbuciante Contorna todos os erros Da vida

20


Proliferando ortografias ofegantes que se corrigem Por filhos e netos Para além da cozinha em horizontes de pinheirais que verdejam Em festa E inaudíveis gargalhadas. Repousa no baú tornado banco teus membros frágeis Carcomidos pela idade E assiste ao desfilar das frivolidades Das novas já tão velhas e vazias gerações Cheias de uma coragem dispersa No mundo contingente e tomado por inteiro Pelas garras Da tolice. O eco perfumado De um catalisador dos traços Que se reparte em rugas pelo espaço ao redor Espraia nas sombras murmurantes Do teu sótão empoeirado Colônias de minúsculos insetos E lagartos Em fotografias vivas de linhagens maternas Exaustas, porém nunca Exauridas. Tão logo a solidão se amansar pela morada Teu rosto capturado pelas máquinas Delirantes Descansará ao lado de antigas memórias esquecidas Como a relíquia de uma terra prometida Recém-fundada

21


Na existência pura e plena Da Eternidade Enfim reencontrada.

MARCO AURÉLIO DE SOUZA é natural de Rio Negro/PR. Autor dos romances O Intruso (2013) e Conexões Perigosas (2014). Participa das antologias poéticas 29 de abril (2015) e Patuscada (2016). Travessia, seu primeiro livro de poemas, tem lançamento previsto, pela editora Kotter, para 2016.

22


O CASTIGO DE ATLAS NATANAEL OTÁVIO| Bastos, SP.

Quando derrotaram os titãs, os deuses condenaram Atlas a suportar o peso do mundo por toda a eternidade. Contudo, se quisessem os deuses ter castigado o titã mais severa e dolorosamente... Teriam eles feito brotar

23


no coração de Atlas o amor; teriam os deuses, de fato, dado a ele esse amor, um ser que o completasse, que dele dependesse a sua felicidade. Enfim, ainda com o intuito de castigá-lo, Teriam os deuses arrancado abruptamente do titã esse amor, sem que o perdedor desejasse ou imaginasse tal fim. Teria agora o titã não mais que suportar o peso do mundo, mas, sim, o peso de amar e não ter perto de si o ser amado.

NATANAEL OTÁVIO (Bastos, SP, 1980) é autor do livro Reconstruções (2016). Publicou os contos O tesouro de John Símile (2013); As cavernas dos suricatos (2014); e Pedaços do Mundo Rasgado - Alanis D. e o Esmerilhão (2016) em ebook na Amazon. Participou das antologias O Corvo: um livro colaborativo (Editora Empíreo, 2015); Natal do Castelo Literário – Crônicas e Poesias (Editora PenDragon, 2015); Prêmio Nacional de Artes da Estância Turística de Tupã (4° Festi-val de Literatura, 2014); VI e VII CLIPP (Concurso Literário de Presidente Prudente, 2012 e 2013); Anno Domini: Ma-nuscritos Medievais – Volume 2 (Andross Editora, 2011).

24


O BATIZADO RAFAEL LINDEN | Rio de Janeiro, RJ.

"Aquela sua tia chata vem?" pergunta Elias. Mas Fiorella está ocupada e a questão fica no ar até que o pequeno Vitor se encontre devidamente vestido de marinheiro. Em prantos, é claro. A calça curta por cima da fralda incomoda o pobrezinho, que nunca usou roupa de verdade. Uma camiseta com golas listradas de azul marinho complementa a tortura. A mãe olha enternecida para a criança e reprime a culpa pelo desconforto do garoto, imaginando a fieira de guarda che bel bambino, parece um homenzinho, tesoro della nonna, “dêcha” titia pegar e outras banalidades carregadas do sotaque napolitano de sua família ou do chiado carioca dos parentes do Elias.

25


O marido aguarda pacientemente a resposta até ouvir "claro que vem, ela não perde uma festa". Suspira "a velha é um porre, para ela nada serve, a comida é uma droga, minha família é cafona, fulaninha usa saia muito curta, sicraninho tem mania de bermuda, que saco!". Ela retruca "pois é, agora imagina se eu não convido minha tia para o batizado. Mas não há de ser o pior da festa...". Rumam para a igreja. Até aí tudo certo, todos conhecem o Padre Felício, colecionam os santinhos, lêem os livros, ouvem os discos pois, ora essa, se aquele outro pode gravar por que não o Felício? A cerimônia corre bem, o infante se esgoela a ponto de arrancar do Zio Giacomo sua frase predileta ma che la salute ha quel bambino! Cumprimentos, beijinhos, tapinhas nas costas e saem para o lanche no Museu Metropolitano. "A cozinha de lá é ótima, tem um bolo de laranja do outro mundo" explica Elias, enquanto Zia Concetta, aquela, resmunga porca miseria, per me serve solo un buon spaghetti. Os pais de Fiorella apenas sorriem, seguros de que Vitinho será para sempre um bom cristão. Para o pai e a mãe do Elias, gente humilde do subúrbio, está tudo ótimo. Têm lá suas preferências, gostam de comemorar casamentos e batizados com uma bela picanha preparada pelo outro filho, mais velho, comandante de um batalhão de falsos gaúchos no braseiro da melhor churrascaria da cidade. Mas o que lhes interessa mesmo é estar perto do Vitor, o primeiro varão depois das duas preciosas netinhas, filhas do churrasqueiro. O diabo é aquela gente esquisita falando língua de novela e reclamando de tudo: “esse pessoal trata o Elias como se fosse o periquito da princesinha”. O Museu Metropolitano é uma beleza. Entrada franca, estacionamento gratuito, exposições de pintura, escultura, fotografia, mais uns badulaques cultuados por rapazes de roupas esgarçadas e barbas tortas e moças deselegantes com cabelos multicoloridos. Mas o jardim é o melhor da propriedade, que um banqueiro já falecido doou para o Estado. A área verde foi projetada por um grande paisagista. Em torno de um laguinho habitado por carpas e presidido por uma garça solitária, há um belo mural do mesmo autor do jardim. O ar é puro, refrescante. A placidez do lugar só é perturbada por bandos de estudantes que chegam em passeios organizados por escolas da região. Mas nada se

26


compara ao fuzuê armado pela fauna que lá se aboleta para comemorar o batizado do Vitinho. Pois além de pais, tios e avós, o museu recebe mais uns trinta ou quarenta primos, sobrinhos, cunhados e agregados binacionais, cada um mais cada um do que os outros. Os que não foram à cerimônia chegam para o lanche e, depois de saudar os próprios familiares, seguem o ritual de cumprimentos, beijinhos e tapinhas nas costas de desconhecidos. O dia está lindo e há muita gente no museu. Alguns almoçam no salão refrigerado do restaurante; lá fora um grupo de jovens escritores conversa e lê seus novos contos, namorados se comem com os olhos nos bancos do jardim. Um casal tenta fotografar a filha pequena entre as árvores: um dos cônjuges aponta a câmera enquanto o outro grita, se descabela, faz polichinelos na vã tentativa de atrair um sorriso da criança entediada. Todos tentam sem sucesso ignorar a festa, que ocupa as cadeiras externas protegidas por barracas de praia fixadas no centro das mesas. Há pouco mais de um mês, quando Elias atentou para o tamanho da enrascada, tudo já estava reservado e pago. Por azar, o batizado coincide com a final do torneio internacional de voleibol entre Brasil e Itália e com o FlaFlu decisivo do campeonato carioca. O primeiro jogo começa junto com o rega-bofe no Museu. O segundo, como se sabe, arma os espíritos com pelo menos uma semana de antecedência. Daí sucede que, cumprindo a profecia de Fiorella, a chatice de Concetta não é o pior da festa. Os convidados mais afoitos procuram e não acham aparelhos de televisão. Telefones celulares são acionados para acompanhar pela Internet a final do vôlei. Euforia e desespero se alternam nas mesas das duas nações, entre as quais faíscam olhares inimigáveis. A partida duríssima é decidida no tiebreaker e o fosso se alarga entre as famílias do inocente Vitinho que, diplomaticamente, esgoelou-se com absoluta neutralidade durante o jogo inteiro, provocando incontáveis ma che la salute ha quel bambino! A paz só reina na mesa em que estão Elias, Fiorella, Vitor e os avós do menino, Seu Arnaldo e Dona Aparecida, o Comendador Lorenzo e Signora Annunciata. Esses últimos elogiam o lugar, o bom gosto e até a comida ainda que, a conselho de Concetta, evitem as massas. Subitamente, um primo do comendador grita è il momento! e tira da mochila uma rabeca. Giacomo, as bochechas vermelhas de tanto vinho, solta

27


o brado de guerra ô Carabitchêvi, prendi la criniera del violino che cantiamo! A seguir, encarna o finado tenor Enrico Caruso com amigdalite e agride meia dúzia de árias com afinação pra lá de troncha. Depois do espasmo lírico a comitiva se acalma até o início do Fla-Flu. Seu Arnaldo criou Elias e o irmão estritamente rubro-negros, mas o resto da família se divide entre os times rivais. Imagine-se a algazarra, as provocações, a linguagem e, na metade do segundo tempo, a pancadaria que começou com a marcação de um pênalti suspeito e acabou com a festa. Cumprimentos, beijinhos e tapinhas nas costas distribuídos a toda velocidade, mães desesperadas para arrancar dali filhos a ponto de se engalfinhar de novo com primos, cunhados e agregados. De saldo sete copos, onze pratos, três cadeiras e dois narizes quebrados. Enquanto isso os italianos se esbaldam na tarantella, acompanhada por um acordeão saído sabe-se lá de onde, e Zia Concetta esbraveja ma la quiche era aglio e io sono allergica all'aglio! Visitantes do museu, adultos, crianças, namorados e ripongas esquecem seus afazeres e observam a cena boquiabertos. Indagam uns aos outros se é uma performance ou o ensaio de uma chanchada. Os escritores tomam notas e debatem se a cena é dantesca ou felliniana. Tudo isso para o Vitinho, dezoito anos depois, raspar a cabeça e virar Hare Krishna.

RAFAEL LINDEN (1951)é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de mais de 150 publicações entre artigos, capítulos e livros científicos e de divulgação de Ciência. Publica regularmente crônicas e contos no blog “Um cientista no telhado” |http://www.umcientistanotelhado.blogspot.com.br | UMCINOTE@GMAIL.COM

28


MULHER DE MARTE RENATA PEREIRA | São Paulo, SP.

Quem diz que as mulheres são de Vênus e os homens são de Marte não te conhece, mulher.

29


O batom vermelho, mero detalhe, revela a vigília de seu planeta regente sobre o que a gente chama de vida. Aquela chama de vida que desperta na juventude cronológica e que ela, mulher de Marte, carrega nos braços e nos olhos. Mesmo nas tardes quentes de verão, a mulher de Marte proclama a companhia de uma xícara de chá. Só se for de hibisco, todos sabem. Eu, mulher de Vênus, um dia encontrei a mulher de Marte, e ela me contou em tom confessional que, para além do útero, é preciso ter punho.

RENATA PEREIRA tem 25 anos, reside na cidade de São Paulo e é formada em Letras pela PUC-SP. Atualmente, estudante de Filosofia pela USJT. Mantém um blog com seus poemas sobre a vida em carne viva e é libriana convicta. | RCRISTINAPEREIRA@GMAIL.COM

30


INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS

31


ROGÉRIO LUZ | Rio de Janeiro, RJ.

Realizar sonhos, realizar sonhos que expressão mais congelada, usada em entrevistas na televisão: sonhos que se realizam não são, claro, sonhos são cálculos espertos de vencedores anônimos são projetos lançados à vida dejetos de mineradoras esgotadas flores crestadas ao vento de tempestades do sol olhos que nunca viram a noite

32


onde se revolvem, medonhos os verdadeiros, verdadeiros sonhos.

ROGÉRIO LUZ, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicou artigos e livros na área de comunicação e arte, além de seis coletâneas de poemas. A mais recente – Os Nomes. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014 – obteve, em 2013, o Prêmio Minas de Literatura (categoria poesia). | ROGERLUZ36@YAHOO.COM.BR

33


sobre RAYSA RICCO PAVÃO

SITE PESSOAL | RAYSARP@GMAIL.COM | INSTAGRAM | FACEBOOK

A partir da influência que recebeu da avó - a artista plástica Léa Rico, Raysa Ricco Pavão começou a estudar artes plásticas aos 17 anos. Hoje, com 27, se dedica à faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em Taubaté, SP. Em uma breve conversa, Raysa levanta uma questão importante, que é a dificuldade de conciliar o que chamou de “lado artístico” com o estuo acadêmico. Tem em seus planos a inserção em novos desafios, como o de integrar ilustração e projetos de interiores, por exemplo.

34


Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

35


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.