Valeu Agosto 2015

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editorial “A varanda era o lugar onde a casa mais vivia, onde a casa era mais mundo. Nesse universo de contraste entre raças, línguas e culturas, a varanda era onde a casa e a rua conversavam, onde os vizinhos se tornavam família e os outros se tornavam menos estranhos. A varanda era assim uma espécie de facebook sem internet. Com a vantagem de os rostos e as vozes serem reais. Nesse tempo, as pessoas ainda tinham corpo. E a casa tinha raiz na terra onde sujávamos as mãos e limpávamos a alma.”

as individuais que foram, são e devem continuar a ser, as casas dos colonos fundadores do Vale do Itajaí. Casas que foram lares, com história e com estórias para contar, ao contrário das impessoais muralhas de cimento sem jardim, onde nos habituámos a apenas pernoitar, diariamente, por uns pares de horas.

A defesa da integridade cultural da região passa, obrigatoriamente, pela recuperação e preservação do seu patrimônio arquitetônico. Reabilitar as casas dos colonos fundadores das cidades do Vale é essencial para garantir Excerto de “Quando me fiz escritor?” Mia Couto in a manutenção da identidade histórica das gerações vindouras e para devolver à paisagem o seu diferencial Granta Portugal nº4 mais importante, condição única ao desenvolvimento Do que mais me recordo era de que a casa tinha alma. do turismo regional. Cheiros, sons, movimento e uma permanente desarrumação inerente às casas com vida. Livros largados despre- Na maioria dos países europeus foram instituídos proocupadamente sobre sofás, com os cantos das folhas gramas de recuperação do patrimônio histórico ardobrados, marcando o término da última leitura; cartas quitetônico como forma de preservar uma memória abertas (será que ainda alguém recebe cartas que não que não pode nem deve ser esquecida, sob pena de apasejam de bancos?), esquecidas sobre as cômodas; jor- gar a identidade das próprias nações. Porém, percebennais dobrados sobre a mesa, manchados aqui e ali por do que não basta recuperar sem entregar vida aos esgotículas de café escuro; casacos atirados para cima das paços, foram definidos incentivos sociais para permitir cadeiras de canto; mesas redondas cobertas de moldu- que jovens viessem habitar essas casas históricas, enras de prata com retratos de rostos familiares amarelecidos tregando-lhes novas estórias, entregando-lhes alma, enpelo tempo; xícaras abandonadas em velhos contadores tregando-lhes vida, garantia essencial para a sua eternização. de pau santo; um suavíssimo perfume de alfazema pe- Saibamos copiar o que é bom. los corredores; um roupão perdido há muito por trás da porta do banheiro; o ranger da janela da sala de jantar e Numa época de imediatismo, de pessoas sem corpo, de uma interminável azáfama na cozinha. Lá fora, o cheiro amizades medidas pelos “gostos” colocados nos posts a terra remexida, misturado com o aroma intenso das das redes sociais, de partilhas de imagens, sem parflores e das frutas amadurecidas. Crianças largadas às tilhas de vida e de emoções, é fundamental resgatar a suas brincadeiras, fazendo bolos de areia, subindo às memória de um tempo em que as coisas não eram asárvores, rolando alegremente na grama ainda úmida do sim. Em que as casas tinham alma, as pessoas tinham orvalho noturno, acompanhando, encantadas, carreiros corpo, as emoções tinham rosto e a vida fazia mais sende formigas ou surpreendendo-se, aqui e ali, com o can- tido. Essa é a proposta da 4ª Edição da Valeu. Sem saudosisto dos pardais. Do que mais me recordo era de que a casa tinha alma. mos, nem falsos moralismo, apenas com a consciência De que a casa era o meu mundo. O meu país. A minha de que preservar o passado é a única forma de encarar, Pátria. Foi essa memória de infância enraizada no meu com coerência, um futuro melhor. subconsciente, que me fez transformar as muitas casas em que vivi desde a meninice, em novos lares, em novos por João Moreira países, em novas pátrias, enriquecidas com pedacinhos de cada uma das pátrias que fui deixando para trás. É de casas que falamos nesta edição da Valeu. Das casas que fizeram a história desta pequena Pátria ao sul, integrada na gigantesca Pátria brasileira. Das casas que, mais do que memórias , devem ser a imagem viva e vivida das origens ancestrais de uma tradição cultural própria e que merece ser preservada. Por isso decidimos resgatar a história e as imagens das pequenas pátri-

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colaboradores Beatrice Castelani Formada em fotografia pelo SENAC-SP, amante da arte em geral e da natureza, faz ensaios para todos os públicos, focando no natural e no simples. Beto Barreto Dono da loja Espanha Club de Timbó. É colunista social do Jornal Café Impresso. Além da Valeu colabora para as revistas Studiobox de Portugal e Angola. Bruna Formolo Roncalio Estudante de arquitetura e urbanismo, adora corujas buraqueiras, ama observar paisagens e desenhar. Tem a música como companheira de todas as horas. Carlos Henrique Roncálio Carlos Henrique Roncálio tem 45 anos de profissão. É âncora do Repórter Cultura, edições matinais da Rádio Cultura de Timbó há 24 anos. Clara Weiss Roncalio Clara é repórter principal e editora da VALEU. Ativista na defesa dos direitos dos animais e do meio ambiente. Daniela Buzzi É catarinense, nascida em 1984, crescida em Timbó. É graduada em Administração pela Universidade Regional de Blumenau e pós-graduada em Fotografia e Imagem em Movimento na Universidade Positivo, em Curitiba. Daniel Fabricio Koepsel Professor de História na rede pública e privada de ensino em Santa Catarina. É graduado em história pela Universidade Regional de Blumenau e autor do Representações da cidade: discussões sobre a história de Timbó. Esdras Floriani Holderbaum Nascido em uma família de artistas, trabalha como produtor musical e remexer, através do projeto Soundyouwish. Gabriel Weiss Roncalio Ambientalista e agricultor orgânico. Membro da PROORG - Associação de Produtores Orgânicos de Timbó. Heitor Castel’Branco Trabalha como Técnico Superior de Turismo e, durante o verão, exerce funções de Guia de Mergulho na empresa Norberto Diver. Colabora em diversos trabalhos na érea do Turismo e com a revista StudioBox Viseu. João Albuquerque João Albuquerque Carreiras é arquiteto paisagista licenciado pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, em Portugal. Viajante compulsivo é autor de inúmeros artigos de viagens. VALEU // 4ª EDIÇÃO AGOSTO. 2015 DIREÇÃO // Carlos

Henrique Roncálio . Bruno Esteves EDIÇÃO // João Moreira . Clara Weiss Roncalio COORDENAÇÃO // Susana Andrade . João Moreira

João Moreira Editor e Repórter principal da Revista Valeu.

Leo Victor Koprowski Formado em Direito pela FURB, Leo é advogado e consumidor compulsivo de música nova. Lopo Castilho É licenciado em História, e desde longa data tem participado em diversas iniciativas de promoção de vinhos, bem como de defesa de produtos de Denominação de Origem Controlada. É o fundador e responsável pelo projecto Museu do Saca-Rolhas. Luiz Garcia 44 anos, é jornalista e cronista. Graduado em Comunicação Social com habilitaçao em jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí, trabalha como editor em publicações corporativas e institucionais. Mantém o blog de crônicas luizgarcia.blogspot.com Nane Pereira Jornalista, graduada pelo Instituto Blumenauense de Ensino Superior (IBES/Sociesc). Atua como assessora de imprensa, como repórter e colunista de cultura. Ney Silva Proprietário e fotografo da Die Siel Estudio. Formado em fotografia pela OMICRON escola de fotografia Curitiba. Thérbio Felipe Professor Sobre Rodas, conferencista, Turismólogo, Gastrônomo e Administrador Hoteleiro, escritor, experiente cicloturista. Thyara Antonielle Demarchi 27 anos, Pedagoga e Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB), Professora na Escola Barão do Rio Branco em Blumenau. E-mail: thyara.antonielle@gmail.com Tiago Minusculi Tiago é formado em etiqueta a mesa e comportamento no meio gastronômico. Maitre, sommelier registrado na Itália com certificado internacional reconhecido, atribuído pela AIS Associazione Italiana Sommeliers. Viviane Roussenq Jornalista, raro exemplar da era analógica se desdobrando para entender e viver em tempos digitais. Começou sua profissão como repórter de geral no JSC em 1982, tendo atuado em diversos órgãos de comunicação. Aos 23 anos escreveu seu primeiro e único livro de poemas, “Batom”.

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Ney Silva


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Padre Carlão Os tradicionais, mar de branco do Réveillon e mar de todas as cores do Carnaval, passaram a ser pequenos perante o oceano de gente que desembocou na Avenida Atlântica para comungar da mensagem de amor do Papa do Sorriso. As praias e o célebre calçadão da zona sul transformaram-se, por momentos, num gigantesco dormitório ao ar livre de jovens crentes que, resistentes à chuva e a um inusitado vento frio de Julho, encheram de uma transbordante alegria o coração da Cidade Maravilhosa. Como se, de repente, no espaço habitualmente ocupado pelos excluídos, cumprissem o desafio de despojamento proposto por Francisco, lançando um gigantesco grito de alerta, capaz de chegar sonora e efectivamente às coberturas da Vieira Souto e aos condomínios da Barra. Deambulando por Copacabana, podiam ver-se jovens dividindo haveres, padres confessando noite dentro, freiras rezando, músicos tocando samba, sem abrigo partilhando o seu espaço… Pelas ruas do Leme e de Copacabana, viveu-se uma experiência única de comunhão em Cristo que envolveu num abraço fraterno gringos e cariocas, pretos e brancos, cristãos e evangélicos, ricos e pobres. As tradicionais tribos do Rio fundiram-se numa só: a tribo da dádiva e da partilha. Por isso, quando Francisco chegou, sorriso aberto e afetuoso, depois de já ter emocionado índios, afro-brasileiros e até crianças, foi com naturalidade que tocou os corações dos três milhões de jovens peregrinos reunidos junto ao mar, para ouvirem a sua mensagem. “Os jovens nas ruas querem ser actores de mudança. Por favor, não deixem que sejam os outros os actores da mudança. Não fiquem à margem da vida, não foi à margem que Jesus permaneceu. Ele comprometeu-se. Comprometam-se tal como fez Jesus!” “O vosso jovem coração quer construir um mundo melhor. Sigo as notícias do mundo e vejo tantos jovens que saem à rua para exprimir o seu desejo de uma civilização mais justa e fraterna. Peço-vos que sejam os construtores do futuro.” Ao contrário do que muitos querem fazer crer, Francisco não veio para revolucionar a Igreja, mas antes para nos recordar que a Igreja somos todos nós, com igual importância e responsabilidade perante o próximo, nosso irmão. E que só quando conseguirmos ajudar todos os nossos semelhantes a conquistarem a dignidade devida a todo o ser humano, teremos cumprido o desafio de Cristo. Esta foi a mensagem revolucionária que o primeiro Papa latino-americano veio deixar aos jovens de todo o mundo reunidos nas praias do Rio de Janeiro. João Moreira 6


Recupero este texto, escrito aquando da visita de Sua Santidade o Papa Francisco ao Brasil, por reconhecer nele a enorme esperança que cruza a alma de Padre Carlão, nascido Carlos Humberto Carneiro de Camargo, em Peabiru, no norte do Paraná, há 60 anos. A esperança na serena revolução que o primeiro Papa sul-americano iniciou mal assumiu a cadeira de Pedro e que vai de encontro aos motivos que levaram este paranaense a, com vinte anos de idade, entregar a sua vida a Cristo e à Sua mensagem de amor. O polêmico padre católico que, desde 2004, orienta as almas da Paróquia de Santa Teresinha, em Timbó, sorriso aberto e abraço intenso, como que transmitindo confiança ao primeiro contato, recebeu-nos no seu gabinete junto à residência paroquial, onde se habituou a confortar diariamente dezenas de timboenses, que o procuram em busca de auxílio. - Há muita gente necessitada em Timbó! – Dispara. – Necessitada de tudo. De apoio espiritual, de conselho, de esperança e também de apoio material. Há pobres em Timbó e quem disser o contrário, mente. Todos os anos, distribuímos milhares de cestas básicas que evitam o pior a centenas e centenas de famílias. Essa é a nossa função de católicos. Ajudar. Estar próximos. Estar presentes!

- Quem nasceu na Alemanha, levante a mão. Ninguém levantou. - Quem nasceu na Itália, levante a mão. Também ninguém. - Então vocês não digam que são alemães ou italianos. Vocês são brasileiros. Tão brasileiros quanto eu.

Carlão fala com a determinação de quem conhece a realidade dos seus paroquianos. Afinal de contas, passaram já onze anos desde que se aventurou em terras de colonização alemã, obrigado a dividir protagonismo com o pastor luterano local e, agora, com uma panóplia infindável de igrejas evangélicas que surgem como cogumelos, ao ritmo da angústia e do desespero dos seus fiéis, a quem cativam com o falso sonho do paraíso na terra, em troca de uns quantos reais que garantam a salvação.

Carlão é assim, frontal, direto, sem papas na língua e sem medo de levantar polêmicas. Nessa celebração arriscou como faz sempre, guiado por uma intuição que lhe vem do coração e ganhou. Conquistou os seus paroquianos, que ao longo destes 11 anos de dedicação tem sabido manter e aumentar, mesmo num período de absoluta relativização da sociedade no Brasil e no Mundo, entregando uma nova dinâmica à Igreja Católica em Timbó.

Carlão não embarca em utopias. Tem os pés bem assentes no chão que pisa. Sempre foi assim. - Não escolhi ser padre em bebê. Tinha vinte anos quando ingressei no seminário. Sabia o que queria. Sou padre por vocação. Encantei-me com a mensagem extraordinária das missões. Sou acima de tudo missionário. Missionário da Congregação do Verbo Divino que você deve conhecer. Existe em Portugal, em Fátima – aceno com a cabeça, confirmando.

Padre Carlão – É no início não foi fácil. – Retoma com o olhar perdido por sobre as nossas cabeças, como que recuando no tempo e recordando os primeiros momentos, como pastor deste rebanho de almas tão diferente do que estava habituado. – Eu era mais jovem, meio rebelde, bem, rebelde não, autêntico! E isso assustou um pouco as pessoas. Imagina o padre chegar com luzes no cabelo, porque nessa época eu tinha o cabelo pintalgado de branco. Isso assustou o povo. Aí eu falei para D. Angélico, que era Bispo de Blumenau, eu sou brasileiro, eu sou padre do povo para o povo. Eu vou onde o povo está. Eu gosto de sair, eu gosto de ir num baile dançar, de sair numa lanchonete com amigos, de tomar um chopinho... e ele respondeu agarrando os meus cabelos – Parabéns, você é o primeiro padre que encontro em 25 anos de bispado que me diz ao que vem e que é autêntico. – Isso me tranquilizou e me deu forças para ir em frente.

Revista Valeu – Como veio parar em Timbó? Padre Carlão – Fazendo parte dessa Congregação Missionária, que está espalhada por todo o país, em São Paulo, em Belo Horizonte, na Amazônia, em Santarém no Pará e aqui no sul do Brasil, com sede em Curitiba, na qual estou integrado, fui colocado em Timbó, onde a Congregação já existe há cinquenta anos. Revista Valeu – Foi um choque para si a chegada a esta terra de costumes e tradições tão diferentes do resto do país? Padre Carlão – No início não foi fácil. Você sabe que nos primeiros tempos o forasteiro é sempre olhado de soslaio – risos – as pessoas são um bocadinho arredias e eu sou bem brasileiro – gargalhada! – O primeiro padre brasileiro da cidade! – afirma com um sorriso onde se antevê um laivo de orgulho. - O fundador da comunidade católica foi o padre Martinho Stein. Depois vieram outros, mas sempre de ascendência alemã ou polaca, de repente vem um brasileiro, paranaense e meio moreno, imagina o choque!!! É, na verdade, o início não foi fácil, até que um dia, durante uma Missa, eu decidi fazer um teste e pedi:

Padre Carlão – Eu penso assim, João, nós temos de sair para junto das pessoas. Hoje o Papa Francisco veio fazer esse apelo para que nós, padres, saímos de casa, da Sacristia de encontro aos fiéis. A mentalidade do povo ainda é de que o padre deve estar fechado na Sacristia. Eu penso o contrário. O padre tem obrigação de ir ao encontro e de acolher a todos. Há tanta gente marginalizada, que a própria Igreja marginaliza, porque você não é casado, porque você é divorciado, porque você é gay, porque você é de outra religião e que precisa de acolhimento... eu analiso caso por caso. Cada caso é um caso. Só percebendo, 7


procurando conhecer as realidades de cada um, podemos auxiliar e orientar as pessoas. Sem julgar nem marginalizar. Esta é uma das imagens de marca de Carlos Humberto Carneiro de Camargo, que se fez padre no auge do aparecimento dos movimentos de apostolado social apostados no combate à exclusão e à dignificação da pessoa humana. Por diversas vezes, no decorrer da conversa, pressentimos em Carlão a influência dos teólogos da libertação e, em particular, do empenho social de D. Helder Câmara enquanto Bispo de Recife. O padre de Timbó não se detém em estereótipos, nem receia manifestar a sua discordância com o conservadorismo da hierarquia. Acredita numa Igreja inclusiva e de proximidade, de braços abertos a todos os que estejam dispostos a acreditar, como ele, na mensagem redentora do amor de Cristo. Mas, regressando aos seus primeiros tempos na cidade, procuramos saber como fluiu a relação com a majoritária Igreja Luterana. Padre Carlão – No passado houve muita divergência. Hoje não! Hoje a gente é muito amiga. Nós trabalhamos ecumenicamente numa boa. Você sabia que Timbó foi a primeira cidade onde se realizou um culto ecumênico no Brasil? É verdade, através do Pastor Nelson e do Padre Martinho, os dois de ascendência alemã, que viraram amigos. Nessa altura, jovens católicos e luteranos começaram a namorar, os pais não aceitavam e o pastor Nelson e o Padre Martinho intermediavam com as famílias, conversavam com os pais e explicavam que não fazia sentido que proibissem os filhos de namorar só por causa da religião, o importante era amarem-se. Isso foi revolucionário para a época! O próprio Pastor Nelson, quando chegou aqui, também sofreu muito, porque a Igreja Luterana era muito fechada. Não aceitavam um pastor moderno. Ele conta que quando chegou não teve nem fiéis para ajudar a descarregar o caminhão de mudança, ficaram olhando de longe. Também não foi fácil para os pastores luteranos. Com o tempo, ele foi quebrando essa distância, esse paradigma e, juntamente com o padre Martinho, foram desenvolvendo esse trabalho ecumênico que resultou maravilhosamente. Para todos os eventos na Igreja Católica, o Pastor Nelson era convidado e o contrário também acontecia. Para o lançamento da pedra fundamental da Igreja nova, aqui, o Pastor Nelson estava presente. Isso foi pioneiro e permitiu que hoje, em conjunto, façamos um trabalho muito bonito. Existe um ecumenismo perfeito, com momentos de oração conjuntos, celebrações na Igreja Luterana e aqui, na nossa, até na benção de uma loja, ou empresa, verá sempre o pastor e o padre. – Risos.

uma Igreja cheia de leis, cheia de pode/não pode. O que é que Jesus falou? “Eu não quero sacrifícios, eu quero misericórdia.” O mandamento novo foi o do Amor e os homens criaram uma série de leis e de estruturas que em vez de juntar separam. Qual é o nosso papel de Igreja hoje em dia? – Pergunta retoricamente. – Juntar as pessoas, acolher as pessoas, amar a pessoa como ela é. Não importa se é separada, divorciada, se é gay, se é lésbica, se é prostituta, seja lá o que for... somos filhos de Deus! A questão da opção sexual é tua, da tua cabeça, da tua consciência, mas eu acredito que a misericórdia de Deus, o amor de Deus, é maior do que isso, do que esses julgamentos, esses rótulos. Nosso papel qual é? – Repete enfaticamente. – Acolher as pessoas como elas são. Avançamos para outro tema polêmico, a que padre Carlão, como é seu apanágio, não foge. Revista Valeu – Como interpreta a proliferação das igrejas evangélicas no Brasil e no mundo? Padre Carlão – Acho que se ficou a dever a uma Igreja descomprometida. O que é que isso significa? Ah, eu sou católico. Então você era católico, você podia tudo. Não é por aí o caminho. Eu falo sempre que a Igreja Católica não ensina ninguém a ser vagabundo, não ensina ninguém a ser vigarista, a beber, a se prostituir, né? O povo ficou muito à mercê. Cometiam-se todos os erros e ficava tudo perdoado. Não é assim. Não é um supermercado. Por exemplo, aparecia gente dizendo: Ah, eu quero batizar o meu filho. Sim, mas você é cristão? Você acredita? O batismo é o sacramento da inserção no seio da Igreja. Você quer participar? Também não pode valer tudo. O casamento, por exemplo, se bem que hoje mais ninguém quer casar, o casamento está em crise.

Padre Carlão – Muito mudou, graças a Deus! A Igreja tem de caminhar. A Igreja tem de avançar. – Invectiva, retomando o tema da renovação no seio do catolicismo. – Com esse Papa que chegou agora, mais ainda. Pena que já tenha certa idade, poderia ser bem mais novo para durar mais, né? Porque a mentalidade dele é de renovação, é de abertura. Está mexendo muito na cúria, revolucionando. É latino. Não é mais europeu. Onde é que você imaginava que ia sair um Papa da América do Sul, com essa vigor, esse dinamismo que o Papa Francisco tem? Quebrando todos os paradigmas, todos os protocolos? Se você vir, Francisco para o Vaticano é uma afronta, ele que não quis nem morar na residência oficial e preferiu morar junto com os outros cardeais. Esses dias eu estava vendo uma imagem dele comendo com os funcionários do Vaticano, acho que Igreja é isso aí. A Igreja de Jesus é essa Igreja, João. Não é

– Por que essa crise? Interrompemos. Padre Carlão – Essa crise deve-se ao mundo em que vivemos hoje. – Enfatiza aumentando ligeiramente o tom de voz. – O mundo escancarou né João? O mundo evoluiu muito rápido, transformou-se. Existe, hoje, muita falta de amor. As pessoas brincam de se amar. Não se amam mais. Dá impressão que o ser humano virou um objeto descartável. E onde fica a tua digni8


questionadas. Muitas vezes eu ouvi: lugar do padre é na sacristia, o que é que ele tem de estar se metendo nesse problema social? Mas tem! Tem de intervir socialmente, politicamente. Eu trabalhava no Mato Grosso do Sul, aonde tinha uns coronéis que estavam lá há trezentos anos mandando no povo, dominando o povo à custa do gatilho e eu tive de entrar na briga pelo povo. Quantas vezes me avisaram: cuida que o fulano mandou dizer que vai te matar e eu respondia, pode matar, mas mata de costas, porque de frente não vai me matar. Você não pode ter medo, nem o rabo preso com ninguém. Eu sou missionário e ser missionário é ter a coragem de anunciar, mas também ter a coragem de denunciar o que não está certo doa a quem doer. Eu não sou funcionário de ninguém. Sou funcionário do Reino. Eu trabalho por uma causa, que é o Reino de Deus e a sua Justiça, essa é a minha proposta. Eu não estou aqui para trabalhar para um prefeito, eu não vim aqui para trabalhar para um deputado, eu não vim aqui para puxar o saco de ninguém. Não são eles que pagam meu salário, são os que menos contribuem. Eu vim aqui para evangelizar. Quando cheguei aqui em Timbó eu disse: não vim aqui para dar água com açúcar para vocês e nem chá. Eu vim para trabalhar. Não foi fácil, João. Quando cheguei – retorna à sua vinda para a Pérola do Vale – encontrei uma comunidade muito organizada, mas estagnada, parada no tempo. A Igreja tem de ser uma expressão. Revista Valeu – Hoje a Igreja de Timbó tem a sua expressão? Padre Carlão – A minha não. A da comunidade. A gente caminha junto, porque a minha preocupação é pastoral. Temos de investir no ser humano. Precisamos formar líderes cristãos. Eu penso que para isso é necessário uma boa catequese. Uma catequese que evangelize dentro da proposta de Jesus: uma comunidade solidária, uma comunidade de irmãos, onde não haja discriminação, onde haja aceitação. Eu sempre digo, eu estou de passagem, vocês ficam. A Igreja é vossa, a Igreja são vocês. Cuidem dela, cuidem-se.

dade, o teu brio, a tua vida? No passado você era obrigado a casar, ou casava para fugir de casa. Eu lembro que quando era criança morava em frente do Fórum, era uma comarca muito grande e todas as segundas-feiras tinha quatro cinco pais com a polícia, para casar as filhas na marra. Como é que você vai casar na marra? – Pergunta com uma ligeira nota de tristeza na voz. - Como, se você nem conhece a pessoa, ficou com a pessoa só uma noite? Isso era horrível e não aconteceu assim há tanto tempo. Mas a evolução foi muito galopante. Escancarou. Foi do oito para o oitenta. É preciso amor. É preciso entrega.

Revista Valeu – Há pouco tempo inaugurou uma obra nova de transformação física da Igreja. Também é importante que a estrutura exista para acolher?

Revista Valeu – A que se ficou a dever essa evolução galopante? Padre Carlão – À globalização. Com 17 anos, nem televisão tinha. Ouvíamos rádio. Hoje todo o mundo acessa a notícias do mundo inteiro. Tudo está à distância de um clique. Isso muda tudo.

Padre Carlão – Claro. Você tem de ter espaço. Como é que você vai evangelizar se você não tem o espaço? Hoje seria utopia você falar que vai evangelizar debaixo da árvore. Tem de ter condições. O salão tem de ser refrigerado, confortável, senão as pessoas não querem. Hoje temos um salão para duzentas pessoas, com som, ar, tudo isso. Feito com o dinheiro do povo. Foram eles que se uniram para fazer essas melhorias. O rico, o pobre, o remediado. Eu pergunto sempre. Por exemplo, perguntei: vocês querem refrigerar o salão? Sim, responderam. Querem mesmo? Sim. Então avisei: sabe quem vai pagar? Vocês! – Risos. – E assim foi. Mas, eu corro atrás. Vou procurar os empresários e só saio com o cheque. Todos têm sido solidários. Também temos investido na formação dos nossos líderes. Hoje não podemos evangelizar dizendo besteirinha. Temos de ter uma formação séria. Temos de voltar a levar as pessoas à espiritualidade. Hoje parece que é moda ser ateu, ou melhor, ser à toa. Eu também fui universitário, também estudei ciências e psicologia e filosofia e sei que nada disso é incompatível com a minha fé. Chegam mães e avós para falar comigo, preocupadas porque os filhos e netos perdem a fé induzidos pelos professores.

Revista Valeu – A Igreja Católica tem sabido aproveitar esses instrumentos que a globalização trouxe? Padre Carlão – Depende dos padres e dos bispos. Hoje todos têm acesso a toda essa informação, mas a nova geração de padres é muito engomadinha, muito elitizada e isso é perigoso. Eu fui formado dentro da teologia da libertação. Revista Valeu – A América Latina precisava dessa teologia da libertação? Era muita pobreza para pouco aconchego que a hierarquia entregava ao seu rebanho? – Provocamos. Padre Carlão – Era muita opressão, se você for analisar a história da América Latina. O povo vivia debaixo do pé do soldado. E foi muito importante o empenho de muitos bons bispos que a Igreja Brasileira teve na época, que assumiram o seu papel, enfrentaram os políticos e os militares e tiveram coragem de lutar, de ir ver os seus presos. Foi uma fase em que a Igreja assumiu a sua função profética, missionária. A igreja do Brasil foi uma igreja que avançou questionando as estruturas e progrediu. Mas, sempre foi assim, desde o tempo de Jesus. Jesus questionava as estruturas e só levava pau, porque as estruturas não querem ser 9


Eu respondo sempre que esses professores são uns idiotas que não têm o direito de questionar a fé de ninguém, mas hoje virou moderno ser à toa. Vivemos no atoísmo. O trem está descambando entre a juventude. Temos obrigação de ajudar. Falar ao coração dos jovens, entender as suas preocupações. Cobrar menos essa coisa do pecado. O que é o pecado? No fundo, o pecado é tudo o que atenta contra a vida. Revista Valeu – Então, o aborto é um pecado. Padre Carlão – Você está tirando uma vida, não está? Está matando. Então não há dúvidas. Não imagina a quantidade de mulheres e de casais que me procuram com uma angústia, uma dor imensa de ter feito um aborto. É algo que fica para a vida. Causa traumas terríveis. São enumeras as histórias de mulheres que vivem uma eterna perturbação por causa disso. Não se conseguem encontrar, não se conseguem perdoar. Procuram-me sempre com a mesma questão: como seria esse filho que eu não tive? É horrível, nunca se perdoam. É um tema muito doloroso. A entrevista caminha rapidamente para o fim. Padre Carlão tem a agenda cheia, mas em nenhum momento denotou preocupação com o tempo decorrido. Entrega-se com entusiasmo a uma boa conversa, talvez habituado a longas e pacientes trocas de argumentos e conselhos com os seus paroquianos. Consciente da importância da expressividade corporal, para quem tem obrigação de subir ao púlpito semanalmente, fala gesticulando e entregando a cada frase a ênfase acertada. Deixamos para o final o tema polémico do celibato dos padres.

Qual é o nosso papel de Igreja hoje em dia? Juntar as pessoas, acolher as pessoas, amar a pessoa como ela é. Não importa se é separada, divorciada, se é gay, se é lésbica, se é prostituta, seja lá o que for... somos filhos de Deus!

Padre Carlão – Essa é uma questão delicada. Eu acho que, com o tempo, essa questão será reavaliada no interior da Igreja. Acredito que chegará um momento em que caberá ao padre escolher se quer ser casado ou celibatário. Eu tenho muitos amigos padres que casaram e que podiam continuar atuando dentro da Igreja, porque tinham vocação para isso. Mas, para isso vai ser necessário mudar as mentalidades. Ainda vai levar bastante tempo. Os padres eram casados no passado. Pedro era casado. O celibato é coisa da Igreja, no início não era assim. Mas, para isso, também é necessário dar estabilidade aos padres. Não consigo imaginar um padre casado que dá assistência a 30 comunidades e anda saltando de um lado para o outro. Essa disponibilidade radical do sacerdócio, de certa forma, convive mal com o casamento. Mas, não é fácil viver em celibato. É preciso muita maturidade, muita consciência daquilo que se quer, da opção tomada. Os padres não são assexuados, não são eunucos, têm tesão, têm desejo, têm coração. Somos homens João. por João Moreira

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VER, SENTIR E SER

Notório pedaço da história do país e da América do Sul. Destino cobiçado para o currículo da grande maioria dos cicloturistas brasileiros e estrangeiros. Sabores inimitáveis; cenários que inspiram segurança e tranquilidade; paisagens naturais e culturais que impressionam. Inspiração para músicos, poetas e outros artistas.

Todo esta atenção com a hospitalidade pode ser encerrada em dois dos bons exemplos por lá encontrados com facilidade: Pouso da Chica, aconchegante e confortável pousada onde se degusta um café da manhã regional impecável e o Espaço B, no Beco da Tecla, um feliz patchwork de livraria, café, restaurante, onde os pratos servidos provam que quem os preparou sabe muito do riscado. Sentir os aromas e os sabores das manifestações culturais durante a estada em Diamantina atiça a vontade por saber o que virá depois.

Se tudo isto ainda não for o suficiente, ouse descobrir muito mais ao pedalar ‘devagar’ por esta porção incrível da Estrada Real.

Portanto, partir é um verbo que não se deveria permitir conjugar quando a referência é a quase tricentenária cidade, que além de ser tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), também é reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Uma das primeiras sensações que se tem ao iniciar o percurso, em Diamantina, é que tudo o que há para ser visto é demais, não cabe nos olhos, porque para qualquer lado que se dirija o olhar há algo que nos captura, seja pela perplexidade diante do belo, pela simplicidade das gentes ou pela velocidade da vida que insiste em ser menor do que a de nosso mal costume. Há de se calibrar o olhar enquanto se pedala pelas ruas de pedra da cidade do ex-Presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, inclinadas e vestidas de toda cor misturada ao branco da roupagem dos casarios carregados de tempo, porém, impecavelmente revitalizados e cuidados pela sua comunidade. Seja à luz do dia ou durante as madrugadas tranquilas facilmente se percebe o zelo e o esmero com a limpeza, pelo menos do que nos foi possível notar. Lapidada pela sua gente, Diamantina se revela rica, sobretudo, em detalhes. Para vê-los, faz-se necessário perder-se rua após rua de um casco histórico recoberto de atrações, boa mesa e segurança.

Tudo parecia dizer: ‘Veja as calçadas, as eiras, beiras e tribeiras, meu senhor. Veja as telhas nada simétricas feitas ‘nas coxas’ dos escravos; veja as torres das igrejas e o Café Baiuca na Praça Correa Rabelo. Repare nas janelas ornadas com flores ou com ‘namoradeiras’, simpáticas estátuas femininas feitas em madeira colocadas ao borde das aberturas de guilhotina, não para seduzi-los, mas para encantá-los’. Ao buscar sair da cidade, invariavelmente o cicloturista será saudado por várias pessoas, quase que como um agradecimento por incluir no roteiro de viagem algumas horas percorrendo seu lugar, sua jóia, sua casa. Esta maneira de ser não abandona o cicloturista em nenhum momento sequer, até encontrar o caminho de terra que leva em direção a São Gonçalo do Rio das Pedras, Milho Verde, Três Barras e Serro. 12


trever o moleque de calças curtas e boca suja de manga sabina por traz daquele semblante de 83 anos, cuja cútis mais lembrava os caminhos tortuosos de terra e mato pelos quais passamos. Com uma foice sobre os ombros, o pequeno homem feliz, indo ao trabalho na roça, era feito de uma boniteza que emociona, com olhos de jabuticaba que se fizeram mais brilhantes enquanto conversávamos, como se fôssemos nós, o momento mais belo do dia. Depois da prosa ligeira e de coçar a cabeça meio que sem entender o que essa gente viera, de tão longe e de bicicleta, fazer no seu “cantinho de mundo”, seu Sebastião dita aquela frase que, até agora, repercute em nossas cabeças: “vai com Deus e obrigado por visitar a minha cidade”. Ser Estrada Real, nas formas mais singelas, pode revelar uma grandeza incomensurável. Sebastião que sumiu entre a poeira das bicicletas morro abaixo... Sebastião, um sonho de ‘sertão’... de ser tão Estrada Real. Não se furte a chance de perceber Santo Antônio do Norte e Córregos, povoados de quase uma rua só, que já foram visitados por figuras importantes da história como o naturalista francês Auguste de Saint – Hilaire, em 1817. Siga, sem afrouxar a pedalada em direção a Conceição do Mato Dentro, Morro do Pilar e Itambé do Mato Dentro, emolduradas pela Serra do Cipó. Nesta última, Itambé, uma hospedagem de extremo conforto e hospitalidade espera o cicloviajante. Depois de muito pedalar, não deixe de conhecer a Pousada Lava-pés, onde o João Dornelas recebe a todos com esmero, oferecendo uma noite repositora de energias e uma gastronomia de excelente padrão.

Caminho dos Diamantes Minas Gerais - Brasil Mal o grupo se acostuma com o som da rodas sobre o chão árido, o caminho permite um encontro inusitado. Tivemos a graça de parar alguns minutos para conversar com o casal Nemo Romero e Jimena, jovens argentinos, artistas de rua, empurrando duas bicicletas simples carregadas com toda a sorte de tralhas e, pasmem, um monociclo e um bambolê!!!! Nada surpreenderia mais a um grupo de cicloturistas usando bicicletas caras e super equipadas do que cruzar com dois outros cicloviajantes em tais condições. Aliás, penso que os sorrisos do casal ao encontrar-nos foram ainda mais surpreendentes. O nome Itapanhoacanga (pedra cabeça-de-negro, na língua nativa Tupi), confesso, foi por mim soletrado e treinado durante as longas horas de pedal como um mantra, porém, possivelmente repercutiu em um dos mais belos cenários de toda a viagem. Este distrito de Alvorada de Minas é um pequeno fragmento de caminho composto de passagens sobre rios e estradas estreitas, as quais faziam crer que, logo após, seria possível vislumbrar muito mais além. E a promessa foi cumprida. Antes mesmo de poder chegar ao final da subida, impossível não deter-se diante da figura imponente do Seu Sebastião, com menos de 1,60m de altura, camisa azul surrada e bonezinho branco posto na cabeça, caminhando com dificuldade, mas com fé. A saudação hospitaleira carregada de doce simpatia deixava en13

Mais à frente, em Cocais, distrito de Barão de Cocais, podese ter acesso ao Caminho do Sabarabuçu, pequeno trecho da Estrada Real que leva em direção a Ouro Preto, passando por Caetés, Sabará, cercanias do Parque Estadual da Serra do Rola Moça, Honório Bicalho e Acuruí. Porém, a localidade reserva um lugar ainda mais especial para o cicloturista. Além das igrejas de Nossa Senhora do Rosário e da Capela Nossa Senhora de Sant’Ana, ambas do século XVIII, o sítio arqueológico da Pedra Pintada reúne centenas de pinturas rupestres de mais de 8 mil anos, além de uma vista monumental.


Entre Barão de Cocais e Santa Bárbara, o convite a visitar o Santuário e Parque Natural do Caraça não pode deixar de ser atendido. E os motivos são vários e inimitáveis. Ali, junto à Serra do Espinhaço, ergueu-se um colégio e um mosteiro, em 1774. Presidentes da República, como Afonso Pena e Arthur Bernardes, tiveram lá seus estudos. A igreja Nossa Senhora Mãe dos Homens, de 1883, é um convite ao silêncio interior. A hospedagem é simples, porém confortável e extremamente caprichosa. As refeições, com hora marcada, permitem recobrar os ânimos e deixar os sentidos mais aguçados para o que está por vir, ao cair da noite. No meio do breu da madrugada, em um dos acessos ao santuário, é possível ter um encontro que mexe com as sensações dos visitantes. No silêncio da nossa espera, lobos-guarás se aproximam precavidamente em busca da refeição noturna entregue pelos religiosos internos, todas as noites. Não há como não deixar-se hipnotizar por aquela presença tão especial, altiva, elegante e cheia de si, ainda que em processo de extinção. Após uma noite de sono renovador, no caminho Santa Bárbara-Catas Altas, mais uma razão para buscar compreender a importância da Estrada Real, não apenas para as Minas Gerais, mas para todo o sertão brasileiro. O bicame de pedra pelo qual cruzamos se constitui em uma obra de engenharia em forma de aqueduto que, em 1792, servia ao garimpo, de onde provém o nome ‘catas’. Hoje, restam nada mais do que cento e poucos metros de tal construção, possível de visitação. Dali em diante são poucos quilômetros até Ouro Preto, onde o repouso e o conforto esperam o cicloturista excelência da Pousada Sinhá Olímpia. Se há o entendimento que o cicloturista é um consumidor que replica seu repertório de experiências variadas, tem gosto bem formado, é exigente em termos de conforto, segurança e diversidade, e se há claramente o interesse em atrair o segmento cicloturístico para o Caminho dos Diamantes, há que se realizar um forte investimento em mídia qualificada, a fim de consolidar este público.

fotos by: Wladimir Togumi

Os saberes e sabores do Caminho dos Diamantes esperam pelos cicloturistas de todos os cantos do Brasil e do mundo. Ver, sentir e ser Estrada Real...Diamantes postos ao caminho para serem colhidos.

Instituto Estrada Real www.institutoestradareal.com.br

por Therbio Felipe M. Cezar

Livraria e Espaço B Beco da Tecla, nº 31 Diamantina - (38)3531-6005 Pousada Pouso da Chica www.pousodachica.com.br Diamantina – (38) 3531-6190 Pousada Sinhá Olímpia Ouro Preto: www.sinhaolimpia.com.br (31) 3551- 6369 Santuário do Caraça www.santuariodocaraca.com. br(31) 3837 – 2698

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Despertando a consciência

Todavia, os porcos não são tratados com mais dignidade, apesar de sua inteligência (não que eu acredite que o nível de inteligência serve para medir o nível de sofrimento). Assim como as aves, desde o nascimento passam por uma jornada não menos difícil, com os dias contados para virarem bacon, salsicha, bisteca, lombinho ou, então, no caso das porcas, serem escravizadas num constante processo de indução à gestação.

Breves tópicos sobre a exploração animal. “Como zeladores do planeta, é nossa responsabilidade lidar com todas as espécies com carinho, amor e compaixão. As crueldades que os animais sofrem pelas mãos dos homens estão além de nossa compreensão. Por favor, ajudem a parar com esta loucura.” Richard Gere

GESTAÇÃO As porcas fazem seu próprio ninho para esperar o nascimento de seus filhotes. Com o focinho, vão empurrando a palha, e o que mais servir como cama, até montar um leito confortável e quentinho. Quando criadas em ambientes úmidos, feitos de cimento, muitas vezes têm seu focinho esfolado, pois seguem o instinto materno, que lhes é negado e coberto com um manto de concreto e grades, que acabarão por limitar toda a sua existência. Dentro da linha de produção, uma porca é vista como fonte de riqueza, e é explorada da melhor forma possível (economicamente falando, claro!). A engenheira agrônoma Ilka Upnmoor afirma que, quando o intervalo desmame-cio é mais curto, as fêmeas apresentam um desempenho melhor em termos de taxa de parição e número de leitões nascidos vivos. Por isso, as gestações são induzidas uma após a outra. As porcas inseminadas são conduzidas para uma jaula estreita e escura, ficando presas com correntes curtas. Quando nascem os filhotes, são obrigadas a ficar em uma só posição, de maneira que suas tetas estejam expostas aos leitões. Após 6 partos, as matrizes, como as fêmeas são chamadas, já são consideradas velhas e impróprias para a reprodução, então, são encaminhadas para o abate.

PORCOS Vivemos num mundo onde amamos nossos cães, nossos gatos e nos revoltamos quando alguém comete um ato de violência ou negligência contra eles. Nos sentimos verdadeiros ativistas demonstrando nossa revolta no Facebook, ou compartilhando fotos de animais de cães que precisam de um lar. E, então, vamos com nossa consciência limpa aos mercados e compramos bacon. INTELIGÊNCIA SUÍNA O porco é considerado um dos animais mais inteligentes que existem. Nas palavras do naturalista Lyall Watson: “A lama dos chiqueiros esconderia um animal dotado de inteligência notável - comparável à dos golfinhos, elefantes e grandes primatas. Anos-luz à frente de cabras, vacas e ovelhas. Um degrau acima dos cachorros”. A naturalista e escritora Sy Montgomery escreveu um livro sobre Christopher, um porco adotado por sua família, criado como se fosse um cachorro. Neste livro, relatou a experiência feita pela Dra. Temple Grandin, intelectual e autista que conhecida por projetas equipamentos visando à humanização nos abatedouros. A Dra. Grandin colocou coleiras eletrônicas nos porcos, e estas coleiras abriam e fechavam um portão logo em seguida à entrada dos animais. Dentro desse ambiente fechado, o porco tinha que colocar sua cabeça perto de um recipiente, onde um scanner fazia a leitura da identificação e a comida era liberada. Os porcos entenderam como funcionava esse sistema e, quando encontravam a coleira no chão, pegavam-na com a boca e usavam-na para entrar, do mesmo modo que fazemos para entrar em terminais de ônibus, por exemplo.

CORTE DOS DENTES E CAUDECTOMIA Os porquinhos, após 8 a 10 horas de vida, têm seus dentes cortados com um alicate, que também é utilizado para o corte da cauda, na maioria das vezes sem anestesia.

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de choque elétrico acelera tanto os batimentos cardíacos dos suínos que pode levá-los à morte.

Desde os seus primeiros dias de vida, o porco é submetido a procedimentos doloridos e traumáticos, que poderiam (e deveriam) ser evitados se as condições em que são criados, esses espaços de concreto pequenos e lotados, fossem diferentes. Pois, o que leva o porco a cometer a caudofagia (quando comem a cauda de outro porco), é justamente o estresse. Estudos já confirmaram que o animal criado em um espaço aberto não desenvolve esse tipo de comportamento.

Logo após o choque, são pendurados com correntes pelas patas traseiras e degolados com uma faca. Sobre a hora do abate o promotor de justiça e defensor do direito dos animais, Laerte Fernando Levai, relata: “A partir de 5 meses de idade, os porcos têm seu destino sacramentado: uma faca trespassa-lhes o pescoço, fazendo com que eles – esvaídos em sangue – gritem em desespero até que lhes sobrevenha a morte, isso quando não são empurrados, ainda agonizantes, para os caldeirões de água fervente.”

Além dessas duas práticas, o porco macho também é submetido à castração, muitas vezes, sem anestesia. Imobiliza-se o animal, que é deixado com as patas para cima, desinfeta-se a bolsa escrotal, que é cortada com um corte longitudinal para o testículo ser exteriorizado. Depois, rompe-se o cordão espermático e o vaso sanguíneo que irriga de sangue o testículo. CRECHE Após ser feito o desmame, são encaminhados para a creche, onde são colocados com outros porcos e ocorre a passagem para a alimentação sólida. TERMINAÇÃO Depois da creche, quando atingem, aproximadamente, 25 quilos e 2 meses de vida, o porco passa por um período chamado terminação, que antecede o abate. É o período de engorda. Atingido o peso ideal, com cerca de 5 meses de vida, o porco segue para o abate. TRANSPORTE No caminho para o frigorífico, o transporte estressante faz com que os suínos manifestem enjoo e vômitos. Teve um dia em que eu estava descendo a Serra do Rio do Rastro, era um dia quente/infernal, e na nossa frente haviam dois caminhões lotados de porcos. Foi um pesadelo ter que descer toda a serra, o trânsito totalmente parado, atrás desses caminhões e ter que ficar olhando para esses animais, que estavam morrendo de calor e não conseguiam nem se mexer.

Depois dessa sofrida jornada, os porcos chegam ao abatedouro. ABATE Quando chegam do transporte, são conduzidos pelos currais. O método de insensibilização utilizado é o elétrico que causa, na maioria das vezes, apenas paralisa, sendo que os porcos permanecem conscientes. De acordo com a Dra. Temple Grandin “A amperagem insuficiente pode fazer que o animal fique paralisado sem perder a sensibilidade.” Às vezes, a repetição do uso 17


A história de Esther Pesquisando na internet, eu li sobre a história de Esther, uma porca que foi comprada por um casal canadense que pensou ter comprado um mini-porco, mas que cresceu tanto e tem mais de 200 quilos. Ela é tratada como um cachorro, até entra na casa. E tem personalidade! “Queremos ajudar a mostrar que ela entende tudo o que dizemos para ela. Ela sabe o que está acontecendo, e ela sente as mesmas emoções que nós. Ela não é um produto, ou um pedaço de carne de porco. “ – afirma o casal que, depois que Esther entrou em suas vidas, virou vegano.

DIAS, Edna Cardozo. SOS Animal. Ed. Liga de ~Prevenção da Crueldade Contra Animal. Belo Horizonte. 1983. LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. São Paulo: Mantiqueira, 2004. MONTGOMERY, SY. Meu Querido Christopher: a extraordinária história de um porco de estimação. Trad. Elvira Serápicos. Rio de Janeiro. Ed. Prestígio, 2007). UPNMOOR, Ilka. Produção de suínos: da concepção ao desmame. Guaíba. 2000. Ed. Agrocpecuária. http://www.vegetarianismo.com. br/sitio/index2.php?option=com_ content&do_pdf=1&id=541 (SUPER INTERESSANTE http:// www.soama.org.br/crueldade_ abatedouros.shtml) http://www.acrismat.com.br/novo_ site/arquivos/27012012124348manual_brasileiro.pdf http://odireitoavida.blogspot.com. br/2014/08/esther-wonder-pig. html

A Esther tirou sorte grande, ela é uma em milhares, bilhares, não sei. Quantos porcos já foram e continuam sendo sacrificados? Eles têm uma vida que, na verdade, nem podemos chamar de vida. São tratados e vistos como produtos. Acontece que estes produtos possuem almas, ficam tristes, alegres, sentem dor, se desesperam no caminho pro abate.... e gritam! Você já deve ter ouvido um porco berrar quando está sendo morto... Por Clara Weiss Roncalio

https://oholocaustoanimal.wordpress.com/2014/02/13/porcos-estao-entre-os-animais-mais-inteligentes-do-mundo/ http://ocaosambiental.blogspot. com.br/2007_10_14_archive.html http : / / w w w. pi g pro g re ss . ne t / Growing-Finishing/Envir o n m e n t / 2 0 1 3 / 1 / Ta i l - b i t ing-and-tail-docking-Biology-welfare-economics-1162311W/ http://blogdasuinocultura.blogspot.com.br/2011/09/esse-relatorio-foi-elaborado-por-mim.html http://fotografia.folha.uol.com. br/galerias/32654-esther-a-porca-que-cresceu-demais

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Amigo verde A Floresta Nativa

saciável não é apenas de alimento para o corpo, é fome de bem estar, talvez até necessidade de conforto espiritual e de coisas que o dinheiro não compra. Mas, quando cedemos aos encantos da natureza, percebemos a grandeza existente nas formigas, nas cigarras, nos pequenos anfíbios e na folha que acabou de se soltar da ponta do galho de uma árvore qualquer, indo ao chão devolver os nutrientes que emprestara da terra. O Vale do Itajaí é reconhecido, por ter municípios na lista de melhores índices de desenvolvimento humano do país, o que para muitos é mérito da região por ser um importante polo industrial. Aí na TV e nos jornais aparecem os prefeitos e deputados e outros políticos se gabando com isto, claro, muitos destes políticos precisam da ajuda financeira dos empresários para suas campanhas e estes precisam dos políticos para governar em prol de seus interesses. Ironicamente, é uma troca justa. Por outro lado, o IDH não avalia quesitos como tratamento de esgoto, proteção de florestas, qualidade da água dos rios, riachos e córregos. A qualidade de vida não deve ser vista apenas como poder de compra, a verdadeira qualidade de vida é quando as pessoas não têm tanta necessidade de ir aos postos de saúde, farmácias e hospitais. Ao invés disto, poderiam buscar seu remédio na floresta, com ou sem acompanhamento médico, pois o conhecimento popular sobre plantas bioativas não deve ser ignorado e nem esquecido.

A floresta natural ou nativa é a maior expressão de evolução natural do local onde ela está situada. A floresta nativa é o berço esplêndido de vários seres, fungos, musgos, liquens, insetos, mamíferos, répteis, moluscos e muito mais. A floresta é calma, é sábia e misteriosa. Num dia ensolarado ela é uma, quando chove, outra e, à noite, irreconhecível. Aqui no Vale do Itajaí, nossas florestas fazem parte de um ecossistema conhecido por Mata Atlântica, que, apesar de sua enorme importância, ainda está ameaçado pelas más decisões de nós humanos. Pode parecer até um exagero falar assim vendo nossos morros com mais verde do que há 40 anos, mas não se iludam, pois a ambição humana está substituindo aos poucos a mata nativa por exóticas, principalmente, por florestas comerciais de eucalipto e pinus. É isso mesmo! Estamos no século XXI queimando lenha. Se o avanço tecnológico impressiona por um lado, por outro apenas mudou de forma, citando, por exemplo, as caldeiras, que seguem o mesmo princípio do início da revolução industrial.

A expansão imobiliária e industrial na região também contribui negativamente para a diminuição de áreas de floresta. Alguns remanescentes de mata nativa que enfeitavam as cidades estão desaparecendo e sendo substituídos por concreto. Nem as APPs são respeitadas. Os setores ambientais aprenderam a dar a desculpa de que são áreas consolidadas e quando há corte de vegetação nativa basta fazer a “compensação” que está prevista em lei. A lei, neste caso, pode ser uma grande farsa! É claro que a compensação ambiental não leva em conta o número de pássaros e outros seres que buscam nas árvores moradia e fonte de alimento, nem os tatus e cotias que fazem tocas na terra e, muito menos, o tempo que a floresta levou para se desenvolver. E o calor que faz no verão? Essas mini florestas criam um microclima responsável pela amenização da temperatura. Infelizmente, uma assinatura num papel pode colocar em risco muitas vidas. Neste caso, é uma irresponsabilidade daqueles que trabalham nos setores de meio ambiente, em escritórios isolados do mundo natural, emitir licenças ambientais sem levar em consideração estes fatores. As florestas estão a mercê da compaixão destas pessoas e de seus superiores, mas eles trabalham para o povo e se um dia a população quiser a preservação das florestas mais do que o crescimento urbano, eles terão que obedecer. Então, a vida fluirá, mesmo nas cidades. As pessoas não terão apenas qualidade de vida, elas terão vida. por Gabriel Weiss Roncalio

Mas, voltando à floresta. Ah, a floresta..., o riacho de águas cristalinas, o canto das aves que não ouvimos na cidade, o cheiro da terra fresca e o silêncio, tudo se transforma em paz. Foi na infância que comecei a amar a Natureza, quando tudo era simples. Não havia medo nem interesse, só admiração. Mas nunca é tarde para aprender a amar. Até mesmo alguém ganancioso, que se dispuser a caminhar sozinho, desarmado, descalços nas trilhas da mata, abraçar uma árvore e beber água do riacho com as mãos, deve ver a vida natural com outros olhos. Posso estar enganado, mas é o que penso. Visitar a floresta é desligar-se de toda essa hipnose coletiva, que nos faz consumir aquilo que a cidade oferece mesmo que não haja recompensa alguma, ou quase nenhuma. Quando contemplamos a mata, perdemos a fome, porque essa nossa fome in19


A Recriação da Natureza Entrevista com Ribeiro Telles

Qual é a sua primeira memória de um jardim? Arq. Ribeiro Telles (RT)- A Av. da Liberdade, onde nasci.

No início deste ano foi galardoado com o “Nobel” da arquitetuEnquanto jardim? ra paisagista, o Prémio IFLA Sir George Jellicoe, que é atribuíEnquanto avenida… A avenida é um jardim. do a arquitetos cuja “obra e contribuições ao longo da vida tenham tido um impacto incomparável e duradoiro no bem-estar da E que importância tinha para si? sociedade e do ambiente e na promoção da profissão”. Era um sítio onde se passeava, onde se brincava. De certo modo um sítio aprazível com árvores. Nascido em Lisboa, a 25 de maio de 1922, Gonçalo Pereira Ribeiro Telles licenciou-se em Engenharia Agrónoma e formou-se em Arquitetura Paisagista, no Instituto Superior de Agronomia, onde iniciou a vida profissional como assistente e discípulo de Francisco Caldeira Cabral, pioneiro da disciplina em Portugal, no século XX. Durante toda a vida, foi um defensor do equilíbrio entre o urbano e o rural, o natural e o construído, insistindo na importância da preservação dos jardins públicos como espaços de vivência das cidades. Especialista em questões do ordenamento do território iniciou ainda jovem, a sua intervenção pública no seio de movimentos católicos e monárquicos, tendo sido fundador, após o 25 de Abril de 1974, do Partido Popular Monárquico. Como Ministro do Ambiente e Qualidade de Vida, durante os governos da Aliança Democrática, criou as áreas protegias da Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica Nacional, bem como, os Planos Diretores Municipais, instrumentos políticos fundamentais para a preservação das áreas verdes.

A Valeu recupera, nesta edição, uma entrevista realizada por Leonardo de Melo Gonçalves, para o site Portal do Jardim (www.portaldojardim.com) a Gonçalo Ribeiro Telles, que é, ao mesmo tempo, um grito de alerta para o abandono dos espaços rurais e uma lição de ordenamento das cidades e da urgente necessidade de entrar o equilíbrio entre espaços verdes e espaços construídos.

Sempre gostou do jardim num contexto urbano, correcto? O jardim é qualquer coisa que é independente do contexto urbano e é independente de outro contexto qualquer. O Arquitecto costuma dizer que «tudo é um jardim»… Tudo caminha para tal. A humanização da terra, do território, caminha evidentemente para uma paisagem bela, para uma paisagem equilibrada, portanto é um macrojardim. O que não quer dizer que um macrojardim não contenha depois microjardins, na acepção mais perfeita do termo, que é um microcosmos, uma paisagem ideal. Quando é que decidiu ser Arquitecto Paisagista? Encontros. Até como era uma matéria que não estava lançada no país, fui caminhando no sentido da agronomia, primeiro – e paralelamente tinha condições para arquitectura, portanto tinha dois caminhos a seguir. Segui o da agronomia, mas na agronomia encontrei os primeiros passos da arquitectura paisagista, num curso livre de arquitectura paisagista e foi assim, uma obra do acaso. Estabelece alguma ligação entre a sua vivência na infância da Avenidade da Liberdade e a sua escolha em enveredar pela sua área profissional? Não, não. [risos] Acho que não vale a pena tentar encontrar ligações dessa ordem. Não estabelece essa ligação entre a infância… RT - Não. Eu demarquei a Avenida da Liberdade por que dela também fazem parte os quintais que existiam. Portanto, tanto bricávamos na Avenida da Liberdade como brincávamos nos quintais.

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Que resultado é que pensa que terá este desaparecimento progressivo dos quintais na vida das famílias? Há um regresso negativo. Como sabe, os quintais estão todos a ser transformados em garagens, em pavimentos impermeáveis e estão a desaparecer. Aí há um aspecto muito negativo para a cidade, para a cidade como habitat, como conforto e até como beleza. É trágico o que está a acontecer – a destruição sistemática do que era o verde integrado na própria cidade.

Um forma de conduzir os jovens… Não é para conduzir, é para fazer viver as aldeias, em que os jovens são fundamentais. A possibilidade de fazer viver as aldeias, não é com o turismo – que vem a seguir, é recuperando a agricultura de base local e de base regional. É essa de facto a que hoje está a ser muito necessária para o país e não a de competição a nível internacional. A recuperação da agricultura para espaço, para protecção. A agricultura não são fábricas, para apertar parafusos… A agricultura é um mundo que trabalha, que tem actividade no solo, solo esse que é um elemento da crosta terrestre de transição da parte geológica para a atmosfera, fundamental para toda a vida humana, e para toda a vida. Por isto é que houve a necessidade de criar reservas de protecção ao solo, que foram tão mal entendidas pelos técnicos, pelos municípios, pensando que eram obstáculos ao desenvolvimento quando eram de facto a garantia do desenvolvimento.

Acha que a vivência dos jardins pode trazer felicidade? Tudo contribui. O que interessa é saber escolher e saber viver. Como é que vê a tendência dos municípios continuadamente cederem ao lobby do betão, ou da celulose? É uma falsa ideia de progresso, que de certo modo se criou da ideia de que o progresso era o volume construído. O choque da Revolução Industrial levou a que isso parecesse ser o progresso, quando isto é claro que não é progresso, é até retrocesso. Portanto estamos nessa época de transformações.

É optimista quanto ao futuro, naquilo que diz respeito aos jardins e o modo como são vividos? Esses microcosmos… Nós partimos de uma natureza primordial, que é chamada de primeira natureza e o Homem transformou essa primeira natureza numa natureza mais bela, biologicamente mais activa, mais biodiversificada até, com a criação das orlas e portanto o problema é recriar esse sistema, porque senão não há vida. Portanto, quando se ouve estas campanhas constantes em nome do desenvolvimento até da liberdade das pessoas poderem fazer o que quiserem em qualquer lado… até técnicos juristas e economistas caíram nessa «arara» e arranjaram estes «trinta e um» tremendos que são os fogos florestais, a expansão urbana indiscriminada, que agora se vêem aflitos para resolver. [A solução] é a recriação, é novamente a intervenção para situações de modernidade de uma paisagem global que inclui os sistemas naturais, florestais e cultura e os sistemas de abrigo artificiais onde estão as construções.

Pensa que será um problema de falta de formação cívica por parte dos decisores? Acha que se trata de pressões externas? É as duas coisas juntas. Muitos estão convencidos que o futuro resulta de um artificialidade total da vida, de superficialidade e de uma maneira de viver que vem da facilidade dos fluxos energéticos para a vida humana, que está a acabar. Portanto temos que não andar para trás, temos é que recriar as condições da vida. Acha que esse é o caminho para inverter a situação… É recriar, não de ir para trás. Enfim, uma recriação é sempre uma criação que tem um sentido determinado e umas bases determinadas. Evidentemente que portanto é um reencontro com a Natureza, mas no sentido humanizado da Natureza, em que se inclui também, mas não só, os problemas da protecção do espaço, da produção do espaço. Nós vivemos de facto num sistema ecológico forte, que vive também de transformar esses espaços de protecção em espaços de recreio.

Por Leonardo de Melo Gonçalves Este texto foi mantido no original, seguindo as regras da ortografia utilizada em Portugal antes da introdução do acordo ortográfico.

Há hoje uma moda emergente, especialmente em França, de criar jardins verticais. Como vê esta opção arquitectónica? É mais um aspecto decorativo, que não resolve o assunto. É o mesmo que pegar numa fachada e revesti-la de azulejos, onde antes nada existia. Há um elemento fundamental a recriar nesta paisagem global do futuro, porque nós caminhamos para uma paisagem onde os dois sistemas, o natural e o artificial do abrigo, se vão conjugar e harmonizar. Nos diferentes espaços, em que muitas vezes é o contínuo o elemento construído e o residual é, digamos, o elemento verde, tem que haver uma interligação entre essas situações e as situações em que se dá o contrário, em que o elemento contínuo é o sistema natural e o elemento descontínuo é construído. É aí que está o grande jogo do planeamento moderno.

Há hoje nitidamente um decréscimo no contacto entre jovens e a Natureza, as zonas rurais. Numa conferência recente, o Arq. Ribeiro Telles sugeriu que deveria haver subsídios para os jovens voltarem ao campo e às aldeias. Acha que é uma proposta viável? Subsídios não, mas sim capitalizar os jovens – que é diferente do subsídio.

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Não é para conduzir, é para fazer viver as aldeias, em que os jovens são fundamentais. A possibilidade de fazer viver as aldeias, não é com o turismo – que vem a seguir, é recuperando a agricultura de base local e de base regional.


CASA ANTIGA E O ARROZ

Italia Nostra

Residência da família Debarba – 1929

Foi numa estadia de exatas quatro estações, aos 23 anos, entre os anos de 2007 e 2008, com uma família italiana na cidade de Conegliano Veneto, la città del prosecco, no nordeste da Itália, que pude viver a real importância da cultura italiana, dos costumes, da língua, da história e da arquitetura daquele país tão fascinante.

então não dava valor e que lá, passou a fazer parte da minha vida. Acabei criando um vínculo enorme e, quando estava terminando meu curso de pós-graduação em Fotografia, decidi dedicar-me ao tema, fotografando o que nos restou da história da imigração italiana no Médio Vale do Itajaí, através da arquitetura, nosso grande patrimônio.

Em busca da cidadania, por conta da descendência de Giovanni Buzzi, um dos primeiros imigrantes italianos que chegaram a nossa região, percebi o quão importante era tudo aquilo que eu estava vivendo no velho mundo. As pessoas com as quais convivia me enchiam de perguntas, se interessavam pela história da minha família e sobre a imigração italiana no Brasil e eu aproveitava para passar horas imaginando tudo o que tinha se passado até então, e principalmente, o quanto o amor por um país tão conhecido e ao mesmo tempo tão desconhecido se cultivava através de gerações.

Confesso que corri muito atrás de materiais que pudessem ajudar no embasamento teórico do trabalho e, por sorte, algumas pessoas abençoadas apareceram para me ajudar. Mas foi na prática, quando saí às ruas nas cidades de Rio dos Cedros, Rodeio e Ascurra para fotografar, que consegui visualizar a real necessidade e urgência de se registrar o pouco que restou das nossas construções antigas. Uma rica história que precisa ser conhecida para que possa ser valorizada e preservada pelas gerações que seguem. E quando falamos de imigração, falamos de um momento difícil da história de um indivíduo, ou de uma família, ou de comunidades inteiras. Falar de imigração é falar de conflitos, de guerras, de uma nova vida em um lugar totalmente novo, em uma nova região, em um novo país, ou até mesmo em um novo continente. É falar de viagens sem fim em condições muitas vezes precárias, de chegadas felizes e cansativas, de angústia, de sofrimento, mas também de muita esperança. Contar a história de uma imigração é contar a história de luta por um novo recomeço, por uma nova vida, por um novo futuro. E não seria diferente com os nossos imigrantes italianos que começaram a chegar a nossa região por volta de 1875. Saindo para fotografar percebi que é cada vez mais raro encontrar as edificações no estilo antigo. Aos poucos, pela falta de conscientização da importância deste patrimônio histórico, elas acabaram sendo demolidas e substituídas por estilos mais modernos.

Um pouco da história que recontei por diversas vezes do outro lado do Atlântico: Giovanni, meu trisavô, chegou ao Brasil no final do século XIX com alguns filhos, e teve outros, já em terras tupiniquins, um deles, era Alberto, meu bisavô. Alberto, entre tantos filhos, teve Otorrino, meu avô que, entre nove bambini teve meu pai, Lirio Alberto, que teve minha irmã Karla e eu. E de toda essa árvore genealógica que ultrapassou dois séculos, se mantiveram alguns costumes, algumas tradições culinárias (tendo que improvisar com o que se conseguia no Brasil), e principalmente, o dialeto regional (mesmo que misturado com outros dialetos regionais da Itália e com o próprio português). E assim como tantos outros milhares de descendentes italianos que vivem este país maravilhoso em suas raízes e seu sangue, pouquíssimos deles tiveram a oportunidade de conhecer a Itália. No caso da minha família, apenas meus pais, minha irmã e eu. Os outros todos viveram até o fim parlando italiano, cantando canzoni italiani, e imaginando como seria aquele país tão amado lá no outro lado do oceano.

Decidi traçar a mesma rota da imigração para a captação das imagens, iniciando na cidade de Rio dos Cedros onde as primeiras edificações foram construídas. O processo seguiu pela cidade de Rodeio e depois em Ascurra. E neste roteiro foi possível perceber como muitos descendentes não conhecem a história dos seus antepassados, apesar de viverem muito próximos dela. E a falta de interesse é vista no fato de em apenas uma das visitas os moradores se interessaram em ver o resultado do trabalho final impresso.

Para mim, voltar ao Brasil foi uma explosão de sentimentos. Eu falava com aquele sotaque carregado que nos é tão conhecido, falava quase gritando, gesticulava sem parar. E tudo o que eu mais queria era encontrar tudo aquilo a que eu até 22


Residência do imigrante Francesco Perini - Rio dos Cedros Residência de Giovanni Buzzi - 1886

Residência do imigrante Andrea Zatelli - Rio dos Cedro

Residência do imigrante Andrea Zatelli - Rio dos Cedros

Nas três cidades visitadas, é comum que as casas estejam rodeadas por casas mais novas e mais modernas, dos familiares descendentes dos imigrantes. Em alguns casos, a casa é ainda habitada, em outros, permanece apenas para guardar materiais e objetos, como um depósito. Em Rio dos Cedros, as construções mais antigas encontradas em Pomeranos, das famílias Perini e Zatelli, estão em bom estado e ainda são utilizadas pelos descendentes dos imigrantes. Elas sofreram algumas reformas de pequenas proporções para consertar estragos causados pela utilização e pelo tempo. Ambas são bastante pequenas, o que nos sugere que foram as primeiras construções de alvenaria feitas na região. Naquela época, com pouco dinheiro, as famílias ainda não tinham condições de construir casas grandes. Outra observação interessante é a forma dos tijolos, que não seguem um padrão de tamanho pois eram feitos sem muita estrutura, à mão, no próprio local da construção. Não existe um trabalho de restauração que pontue na preservação com exatidão dos traços arquitetônicos iniciais. As reformas, muitas vezes acabam substituindo tijolos, telhas, madeiras de lei, também cimentando e pintando paredes, e construindo novas peças agregadas, o que acaba descaracterizando bastante a arquitetura inicial.

Residência da família Tomelin - Rodeio

Já na cidade de Rodeio, as construções antigas são bem mais preservadas do que nas outras duas cidades visitadas. Isso não significa que todas elas estejam em bom estado, mas significa que parecem fazer parte da vida das famílias e da própria comunidade, principalmente no centro da cidade onde muitas ainda resistem e servem como habitação ou comércio. A construção mais antiga encontrada em Rodeio, a da família Fronza, datada em 1903, é também a mais conservada em sua originalidade. É uma preciosidade hoje habitada por um dos netos do imigrante, que conserva a casa como quando seu nono a construiu. Nela são guardados objetos originais da família, jogos de cama e de louça, móveis, entre outras verdadeiras relíquias. Na cidade de Ascurra, um dos pontos que mais chamam a atenção é o tamanho das casas. Todas elas são consideravelmente maiores e até mais antigas do que as encontradas em Rodeio e Rio dos Cedros. A cidade foi, diferentemente das outras duas que receberam imigrantes trentinos, colonizada por imigrantes de origem Veneta, também do norte da Itália. Esses imigrantes

pareciam ter um pouco mais de condições financeiras, pois logo que chegaram construíam suas belas casas de tijolos, e não apenas com a madeira encontrada no terreno, como era comum quando os imigrantes chegavam, que depois acabam sendo substituídas por casas melhores. A principal e mais antiga casa que se tem informação, datada de 1886, e tombada há alguns anos como patrimônio histórico, é de um dos primeiros imigrantes que chegaram à Ascurra, Giovanni Buzzi. O casarão encontra-se em péssimas condições, porém, não pode ser restaurado pelos descendentes por ter sido tombado. Há anos espera-se que as verbas sejam liberadas para que a casa possa ter o seu merecido restauro, mas, devido à burocracia e à política, pouco pode ser feito a não ser esperar.

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Outra casa que tem uma história bastante antiga e que é preservada de forma impressionante e até emocionante, é a casa da família Rinco. Hoje ela está cercada por centenas de metros de parreirais que dão um charme todo especial, fazendo com que os visitantes realmente se sintam no passado. No seu interior, muitas ferramentas se conservam e, até pouco tempo atrás, uma espécie de forno à lenha muito grande, bastante encontrado até alguns anos atrás nas casas dos colonos italianos no interior da Itália, ainda existia. Restou a interessante marca na parede. A escada móvel que levava ao andar superior já não existe mais. Porém, o relato de que a escada móvel existiu e como era o seu funcionamento remetem à informação de que muitas famílias que tinham casas de dois pavimentos à noite abrigavam seus animais (cavalos, gado, porcos, galinhas) na parte inferior para que fossem protegidos do frio e chuva, e também dos animais selvagens que habitavam a região.

Residência da família Debarba – 1929

Residência da família Rinco

Em todas as cidades visitadas, os descendentes dos imigrantes italianos sabem que existe uma rica história, mas, como ela é pouco estudada, acaba perdendo sua importância para eles, e isso pode ser percebido de geração para geração. Investir em pesquisa, na busca de informações, fazer visitas a essas casas e a esses descendentes de imigrantes pode, cada vez mais, despertar a curiosidade da comunidade e através do conhecimento existir um maior respeito e conscientização por parte de todos.

Residência de Giovanni Buzzi - 1886

Que a gente possa escrever mais, registrar mais, através de fotografias e outros tipos de documentários as histórias que ainda podem ser contadas pelos descendentes mais antigos. Precisamos despertar o interesse nas nossas crianças e nas nossas comunidades e aproveitar que muitos descendentes ainda estão vivos para conversar, descobrir, para compreender, para ter orgulho e não perder no tempo essa história que nos é tão preciosa!!!

Residência família Merini – 1929

“A cultura de um povo tem, na sua arquitetura, as raízes de uma identidade. Em cada tijolo, em todo punhado de barro e cimento, nas tábuas corridas e em toda viga há muitas demãos de história. Construir é escolher um lugar para ser. É ter suor e força recompensados pelo orgulho da obra realizada, é semear presente para colher futuro. A arquitetura de um povo é o seu mais precioso patrimônio.” Edson Busch Machado ex- diretor Geral da Fundação Catarinense de Cultura

Residência família Merini – 1929

Fotos e Textos por Daniela Buzzi

Residência família Merini – 1929

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CASA ENXAIMEL, feita com muito esmero na Rua dos Bobos, número zero.

“Era uma casa... Muito engraçada...Não tinha teto, não tinha nada ...”

nítida política imigratória e tomavam medidas específicas para com os imigrantes que adentravam o país, tais como: separação das levas imigratórias advindas de regiões culturais específicas, impossibilitando a formação de colônias especificamente germânicas, além disso, exigia o uso do idioma vernáculo, ou seja, nos Estados Unidos os imigrantes deveriam imediatamente adotar a língua inglesa.

É com a composição do brilhante compositor Toquinho que inicio esse artigo para falar um pouco sobre os patrimônios históricos da cidade de Timbó. A discussão e a problemática são bastante antigas, mas ganham novo folego depois que a prefeitura de Timbó decide incluir em uma de suas praças a construção de uma Casa Enxaimel, bem no centro da cidade. A ideia de se colocar um exemplar destes no centro de Timbó é pedagogicamente aceitável, e louvável, mas é um contrassenso para uma cidade que não quer implementar uma política pública de proteção aos patrimônios históricos, e que, em grande medida não respeita esses bens como parte da memória coletiva da cidade. Mas por que essas edificações são tão importantes?

O Brasil por sua vez, permitia aos imigrantes professar sua religião, embora a religião católica fosse a religião do estado. Além disso, o imigrante alemão e italiano pôde manter parte de seus costumes e ainda falar o idioma de sua terra natal. Diante desse contexto, o Sul do Brasil passou a ser um destino bastante visado pelos imigrantes alemães que desejavam garantir sua liberdade cultural e religiosa. Assim poderiam reproduzir elementos de sua terra natal sem a intervenção governamental, esse episódio ocasionou o isolamento das colônias alemãs e italianas no Sul do Brasil criando características tão peculiares na língua, nos hábitos e costumes, e na forma do morar e viver que abordaremos aqui.

CONTEXTO HISTÓRICO: a imigração europeia Em meados do século XIX o Sul do Brasil foi alvo da imigração alemã e italiana, a vinda desses imigrantes também foi facilitada por vontade do Império Brasileiro na figura de D. Pedro II que defendia uma política de branqueamento no país já que o Brasil era um país de maioria negra em virtude da escravidão vigente até o ano 1888.

Os imigrantes ao chegarem a Colônia Blumenau eram encaminhados para a Casa de Recepção, também conhecida como Barracão dos Imigrantes. No barracão dos imigrantes os recém-chegados obtinham as primeiras informações sobre a terra que iria ser adquirida, e lhes servia de moradia até que escolhessem e comprassem seu lote. O tempo de permanência no Barracão variava em torno de três a seis meses, período necessário para a negociação e compra do lote. Para grande maioria dos imigrantes o próximo passo depois da chegada ao novo lote era o processo de desmatamento, queimada, preparação do terreno para o plantio.

A questão racial estava em pauta, e no Brasil, prevaleceu a questão do branqueamento progressivo por meio da miscigenação e seus ideólogos pressupunham que a raça branca enquanto detentora da superioridade, tornaria a sociedade mais “clara”, ocasionando o estrangulamento das raças inferiores. Portanto, entre os letrados, a imigração era concebida como um processo de incorporação de elementos étnicos superiores, de origem europeia que visavam estimular o branqueamento do país.

A emergência desse trabalho é registrada pelo imigrante Karl Kleine que em suas andanças pela Colônia Blumenau registrou a presença de um casal de imigrantes com um filho, estabelecidos recentemente e em fase de derrubada da mata. Nesse relato o imigrante relatava que as tarefas eram divididas entre os membros da família: o homem derrubava as matas e as árvores;

A política de branqueamento no Brasil não cumpriu com o esperado, isso porque, o Império Brasileiro não possuía um plano imigratório evidente, diferente dos estados da América do Norte, sobretudo, dos Estados Unidos, que apresentava uma 26


a mulher a vegetação rasteira e em alguns casos a preparação das refeições era responsabilidade do filho. Tão emergencial quanto o preparo da terra era a construção da moradia provisória. O imigrante alemão radicado na cidade de Timbó em suas memórias reforçava a importância de se construir a primeira moradia. Butzke lembra que, após chegar ao lote, começou a edificar o rancho de palmitos e morou ali por três anos. A casa erguida modestamente com folhas de palmeiras para cobrir o teto tornou-se muito utilizada como moradia nos primeiros tempos da Colônia Blumenau, transformando-se em um novo componente da paisagem no Vale do Itajaí. O viajante Robert Ave-Lallemant conheceu as províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo e descreveu a construção das casas na região do Vale do Itajaí, afirmando que para dar firmeza à casa, plantavam-se nos quatro cantos do terreno quatro troncos de araçá, lisos de natureza, ligando-os em cima e embaixo com troncos de açaí. A mesma palmeira, tronco comprimido contra tronco, devia encher os intervalos com barro e formar as paredes. O teto era composto de folhas de palmeira e o chão era de terra batida. Como os pregos eram escassos, tudo era amarrado com cipós, muito abundantes nas florestas de Blumenau. Inicialmente, não havia móveis e poucos imigrantes puderam trazê-los. Aqueles que conseguiram em geral se desfizeram, pois havia falta de utilidade para os mesmos, que eram frequentemente trocados por troncos de arvores e caixotes para servirem de cadeira e mesa.

na habilidade manual dos carpinteiros que na época seguiam determinados procedimentos para armar a estrutura como, por exemplo, marcar as peças com algarismos romanos para auxiliar na sequencia da montagem. Essas edificações são facilmente reconhecidas pela utilização de tijolos à vista, cuja utilização também passou a atuar com efeito decorativo. Em alguns exemplares das casas enxaimel tornaram-se comuns a confecção de desenhos geométricos nas paredes lateais e frontais, por conta da diferença de tonalidade que os tijolos adquiriam com a sua queima.

Entretanto, a presença desse tipo de exemplar de moradia não resistiu ao tempo. Restam apenas relatos produzidos por viajantes, ou pela memória dos imigrantes que viveram no século XIX, que nos dão as impressões dessas antigas moradias. Mas, um outro tipo de edificação também compôs a moradia dos imigrantes e foi muito difundida aqui no Vale do Itajaí. Para essa construção era utilizada uma técnica que ficou conhecida como o Enxaimel ou Fachwerk, considerada mais que um estilo, uma técnica construtiva na qual a madeira assume a função estrutural, sendo a alvenaria de tijolos empregada apenas para o fechamento dos vãos.

Em outros casos, a técnica enxaimel não utilizava tijolos para preenchimento dos vãos entre o madeiramento. A opção era o uso da taipa, composta por uma pasta ou argamassa, que misturava barro ou argila com capim e pêlos de animais, oferecendo a liga necessária para a composição da moradia denominada Casa de Taipa. Esse sistema utilizava um material básico sem nenhum beneficiamento anterior, mas utilizava materiais variados de acordo com a região, portanto, além de pêlos de animais, poderia incluir ainda cal, cascalho, areia, fibras vegetais e até estrume animal para dar maior plasticidade e resistência. A parede era revestida com pelo menos três demãos de argamassa para compor as paredes.

Esse tipo de construção ainda é muito difundida na cidade de Timbó, sendo encontrada em maior número nas regiões rurais. Esse tipo de edificação arquitetônica, muito comum na Europa (Ingleses, holandeses, alemães, franceses e belgas), foi introduzido no Sul do Brasil por imigrantes alemães. Era amplamente utilizada na colônia Blumenau e abrigou moradias, comércio, escolas e igrejas. Seu processo de edificação se estabelecia por uma estrutura em peças de madeira conectadas entre si e colocadas na horizontal, vertical e inclinadas para garantir a sustentação e a estrutura da casa, sendo que os vãos, por sua vez, eram preenchidos com tijolos à vista, efetivando as paredes da casa.

As linhas arquitetônicas dessas edificações propiciaram um novo padrão às residências da Colônia Blumenau. E ao analisar a construção dessas casas, desde os primeiros exemplares mais rústicos até o uso de enxaimel percebeu-se que o imigrante precisou adaptar e improvisar durante os primeiros tempos de seu estabelecimento, contando, em grande medida, com o que a natureza lhe oferecia.

Portanto, a estrutura enxaimel é um sistema de madeira autônomo, de origem muito antiga que se desenvolveu na idade média. A madeira bruta é serrada em peças estruturais, providas de encaixe, sem a utilização de pregos de metal. A montagem das peças forma um sistema que gera um travamento a partir das peças diagonais para dar estabilidade à estrutura.

E foi em meio à natureza exuberante de Timbó que essas edificações foram edificando suas raízes na paisagem local, compondo um novo cenário, bem como, uma memória coletiva do morar e viver dos imigrantes. Entretanto, passados cem anos, essas raízes têm sido arrancadas de nossa cidade, quase como quem realiza uma lavagem cerebral, que ignora a existência desses bens como se não houvesse passado. O resultado disso

Forma-se assim um esqueleto de madeira que deve ser preenchido com materiais de vedação, podendo ser tijolos, ou então, o barro ou argila. Sendo assim, a excelência do trabalho reside 27


alização. A criação de um fundo municipal de cultura que já deveria ter sido implementado segundo vontade do ministério da cultura, ainda está no papel não permitindo que proprietários acessem recursos públicos para restaurar casas. E isso não acontece meramente pela falta de recursos, isso ocorre pela falta de vontade política. Como agravante desse processo, é a ausência de um programa de educação patrimonial que crie cidadãos críticos de sua história. Críticos da importância do crescimento sustentável e econômico das cidades e o respeito à memória da cidade. Como exemplo do descompasso, vemos nascer no centro de Timbó, financiado pela administração municipal uma casa enxaimel com cifras que ultrapassam os 100.00,00 reais. Nasce uma casa fora de um contexto, quase que trazida por um disco voador em meio a um complexo urbano, enquanto, outros bens como a Pharmacia Central e a Thapyoka que são bens protegidos pelo estado são descaracterizados por seus interesses comerciais e que Timbó não fiscaliza sob a desculpa de que não tem uma lei. Um contrassenso ainda maior é uma casa enxaimel de 100.000,00 reais enquanto proprietários humildes lutam para não ver um caibro caindo em suas cabeças. Essas cifras ajudariam pelo menos 5 proprietários em um ano. Em 10 anos 50 proprietários, e aí teríamos ajudado quase todos os bens mais importantes da cidade.

é a falta de uma política publica que defenda esses bens, que os potencialize para o turismo e que crie uma ideia de pertencimento a um passado histórico. Sendo assim, todos os dias casas caem por todas as partes da cidade, e assim, caímos em um passado sem memória. A FALTA DE UMA POLÍTICA PÚBLICA: descaso com a memória Nosso texto começa com a composição de toquinho que faz referência a uma casa muito engraçada que não tem teto não tem nada, me fez lembrar a triste realidade dessas casas antigas, bem como, dos proprietários que já não sabem como fazer para manter um bem histórico. Dia após dia, vemos cada vez menos exemplares desses bens na cidade, isso porque a máquina burocrática estatal, associada à falta de leis, leva a sociedade em geral a construir uma memória negativa sobre essas casas. E assim, a especulação imobiliária vai tomando espaço com seus prédios modernos, quase sem vida.

Mas a administração municipal há 20 anos, pouco fez pela memória da cidade no que tange a seus patrimônios históricos. Mas nesses últimos anos piorou, porque nem se quer respeita as leis federais de Tombamento. A atual administração asfaltou ruas que não poderiam ter sido asfaltadas, isso porque possuíam patrimônio histórico. Um exemplo é a Casa do Professor e Escola Urbana no inicio da Rua Pomeranos. Esses bens são protegidos pelo governo federal, que hoje move uma multa contra a administração devido ao asfaltamento indevido. Portanto, não protegemos e ainda gastamos dinheiro público por não cumprir uma lei federal.

Atualmente esses bens são de interesse coletivo para a conservação da memória da cidade. E estão representadas, não só pela técnica construtiva, mas também, pela paisagem, pela natureza, pelas fotos de outrora e pelas manifestações artísticas que dela se fizeram. Tão logo, preservar é CUIDAR. Preservar é manter, valorizar, conversar, reparar, proteger, os bens de valor histórico para a comunidade e para os indivíduos vindouros. Essas casas compõe um conjunto de bens memoriais que foram produzidos pelo humano, e que atestam a identidade e a ideia de pertencimento em um lugar, ou seja, um lar.

Estamos em um descompasso, em breve, uma casa muito engraçada não passará de uma foto em sépia em um livro ou em uma gaveta qualquer. Isso se restar a foto, porque as casas enxaimel não terão teto, não terão nada. E cantaremos: eram feitas com muito esmero, na Rua dos Bobos, número zero. Daniel Fabricio Koepsel Historiador

Portanto, a manutenção da memória é um trabalho coletivo da sociedade e que corresponde a uma relação de poder que faz escolhas sobre o que deve ou não ser lembrado. Sem uma política pública não será possível manter esses bens. E quando nos referimos a uma política pública, não estamos falando apenas de uma lei. Falamos de divulgação, de convencimento, de educação, de sentimento de pertença. Mas, para tudo isso é preciso começar por uma lei. Atualmente, não existe uma lei municipal que proteja essas edificações. Nem mesmo uma lei que incentive o proprietário a manter esse bem. Em verdade, há anos, o executivo tem feito vistas grossas para uma lei de proteção, bem como, para a criação de um fundo de manutenção dos bens com aporte financeiro para auxiliar os proprietários. Na década de 1980 sob a batuta do ex-prefeito Ingo Frederico Germer sancionou-se uma lei de proteção, inovadora para sua época, mas que atualmente é inoperante devido a sua desatu28


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Casa do Professor Quem passa na Rua Pomeranos, em timbó, com certeza já deve ter notado as casas enxaiméis que ali existem. A Casa do Professor faz parte de um conjunto histórico, com uma construção ao lado, a antiga Escola. Foi construída pelo Professor alemão Neuhaus.

administração vinham a Timbó, se apresentando ao novo Prefeito e demonstrando interesse, só que sempre com as mãos vazias. É facil fazer ingerências no que é dos outros, o dificil é trazer soluções. Não pode demolir, se cair ou pegar fogo tem que reconstruir. É dificil de lídar. Mas, mesmo assim, minha irmã esta se preparando para fazer uma reforma, em breve, com recursos próprios, pois a casa está bem avariada.” Liguei e marquei uma visita à casa da Dona Eclides, na Rua Joinville. Fui super bem recebida, com cheirinho de grama cortada de brinde!

Em 1956, aproximadamente, foi adquirida por Viatore e Aurélia Nardelli, que compraram de um casal alemão de sobrenome Bertsch, segundo Gilmar Nardelli, filho dos adquirentes. Atualmente, a Escola pertence à Prefeitura Municipal de Timbó e a Casa do Professor é propriedade da Dona Eclides Nardelli, irmã de Gilmar.

“Meu pai comprou a casa de um casal alemão que morava em Blumenau. Eles chegaram a morar na casa, mas depois resolveram alugar.”

Este conjunto histórico foi tombado em todos os níveis: municipal, estadual e federal. Apesar da importância de legislar em defesa do patrimônio histórico, formalizando a necessidade da sua preservação, os órgãos públicos responsáveis não têm dado qualquer respaldo aos legítimos proprietários. ”Você é o dono de direito e não de fato. O IPHAN (órgão federal) não tem verbas para restaurar, exigem que seja restaurada, mas não arcam com nada e nada fazem para isso. É fácil querer intervir no alheio. Com tamanha ingerência, por decreto, passar a ditar regras. ” – desabafa Gilmar.

Assim que compraram, foram para lá morar, seus pais com os 8 filhos. “Em cima, tinha 3 quartos e o quarto dos meus pais embaixo. O banheiro era fora. Depois meu pai fez o banheiro e a lavação dentro de casa.” – Lembra Dona Eclides. Na época em que o Prefeito de Timbó era Mário Luís Schuster, seu pai, Viatore Nardelli, trabalhava no setor de obras. Entre outros serviços, colocava paralelepípedo. “Se sobrava um tijolo, ele colocava na bicicleta e devolvia na Prefeitura” – conta lembrando com carinho a honestidade do pai.

E continua: “ A única coisa com que ajudaram, foi quando estive em Florianópolis, na época o diretor era o Arquiteto (IPHAN) Dalmor Vieira, hoje Secretário de Planejamento de Florianópolis. Perguntei se ajudavam com alguma coisa e ele me disse: posso te dar algumas madeiras, que o meio ambiente apreendeu e você paga o frete até Timbó. De fato, mandou sete caibros em madeira de lei, que foram usados na reforma que fizemos, mas o frete custou quase o valor da madeira (...) A cada nova

A pretensão da Dona Eclides era vender a casa. Algumas imobiliárias queriam comprá-la, mas o tombamento impossibilita a construção de prédios, o que fez com que perdessem logo o interesse. Para nossa sorte! Mas o fardo de ser proprietário de uma casa tombada é mui30


to cruel. Você tem obrigações que, muitas vezes, não consegue cumprir e nenhum incentivo por parte das adminitrações públicas.

falou: “Minha professora de patrimônio disse: toda casa tem salvação, mas, a partir do momento em que nasce vegetação nela, aí o negócio começou a ficar feio! É muita umidade entre os tijolos, está criando vida!”

A Dona Eclides continua: “Eu conversei com o Prefeito na época, o Oscar Schneider, mas, como era o último ano do mandato, ele disse que se ganhasse a eleição compraria a casa. Estava todo entusiasmado.” “Depois, falei com o Laércio que disse que iria comprar. Aí passaram os primeiros 4 anos, fui lá mais duas vezes, mas ele disse que não tinha dinheiro. Eu até fiz por uma bagatela, ia vender por 180 mil!” Ela conta quanto dinheiro, aproximadamente, teve que investir nessa casa. E não é pouca coisa mesmo!! Também já escreveu para o Ministro da Cultura, em Brasília, há alguns anos, solicitando ajuda, mas recebeu uma carta afirmando que isso não seria possível. “Eu perguntei pra ele, e se a casa pegar fogo? Pois na época os bêbados iam dormir lá. Ele respondeu que eu teria que refazê-la.” “Agora vou ter que reformar. Meu sobrinho de Ascurra vai trazer os pedreiros, que vão fazer por um preço mais barato. Estamos esperando o tempo melhorar e vamos começar a reforma pelo telhado, para depois reformar o resto da casa. Quando vai ficar pronta? Nem me pergunta. Eu não tenho isso...” – fazendo um gesto com os dedos indicando a falta de recursos financeiros.

Neste momento, eu estava entrando na varanda pra tirar umas fotos e a Bárbara me alertou: “- Cuida porque eu não tenho a mínima ideia do que está solto aqui! Pisa na linha dos pregos, porque têm as vigas embaixo.”

“Vou fazer a reforma porque o IPHAN está me apertando. Querem me cobrar uma multa de 60 mil. Eles disseram que se eu não fizer vou pra cadeia. Eu nunca devi em nenhum lugar! Sempre pago minhas contas com antecedência.” – fala com ar de preocupação misturado com uma revolta por estar numa situação que está fora de seu controle. “Eu tenho vontade de ver a casa arrumada, porque se ela tiver bem arrumada esta casa é bonita. Mas não vai pensar que sai um cruzeiro nem dois. O forro tem que fazer todo novo, têm muitas daquelas vigas que tenho que trocar. E aquilo lá é caríssimo! Eu não sei como é que eu vou me virar. Pro telhado eu acho que vai dar, mas e depois o resto? Eu não sei! Tenho que substituir todas as janelas, porque estão todas podres. Não tá fácil! Tem uma parte do assoalho que também tenho que trocar. São tábuas largas. Eu quero ver como vou fazer. Eu tô preocupada! Vou procurar nessas casas antigas, pra ver se eu acho essas tábuas. Tem que ter dinheiro. Como vou fazer? Eu vou me arriscar. Agora, dizer que vou terminar? Não sei. Eu gostaria de vê-la pronta. Têm vários detalhes que não vão ser fáceis de fazer. “ Um desabafo que há anos guarda para si e vem sendo a causa de uma angústia permenente.

Eu vou finalizar este artigo ressaltando algo que a Bárbara falou. Quando olhamos pra essas casas antigas, elas nos remetem a algumas lembranças da nossa infância, a recordações, e nos trazem um sentimento familiar. O que um prédio quadrado faz? Qual o sentimento que nos transmite? Nenhum! E, assim, vamos perdendo nossa identidade cultural e nossa história vai sendo, literalmente, derrubada. Ficam as lembranças, as fotos e as imagens na internet. O que acaba nos desconectando até com as próximas gerações que não vão ter familiaridade nenhuma com essas antigas construções, onde encontramos a beleza em cada detalhe.

Esses dias, eu fui visitar esta casa com a arquiteta Bárbara Luísa Poffo de Azevedo. A Bárbara é defensora da preservação destas construções e me falou sobre a situação física em que a casa se encontra. Ela frisou a importância em se editar uma legislação municipal para regrar sobre a o Patrimônio Histórico. Defende que entidades como ACIMVI, CDL, Rotary, ao invés de contruir sedes novas, deveriam adquirir uma destas casas, restaurá-las, para, então, nelas fazerem sua sede e, ao mesmo tempo, ajudar a preservar essa nossa identidade cultural. Rodeando a casa, observando o estado em que se encontra, ela

Na medida em que estas casas vão sendo derrubadas, a cidade vai deixando de ser noso lar. E isso não é progresso! Progredir significa mudar para melhor. Certamente, não é o que vem acontecendo! Perdendo sua identidade, a cidade vai perdendo sua alma. De que vale uma cidade sem alma? Fotos e Texto por Clara Weiss Roncalio 31


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Vinho do Porto, um elo entre Portugal e o Mundo Caro leitor, quem nunca ouviu falar em vinho do Porto? E em Douro? Ou em vinhos do Douro? Bom, se em relação à primeira pergunta, estamos convictos de que a sua resposta será positiva, quando às duas restantes, já não sabemos será o caso de todos os nossos leitores. Seja como for vamos ao início desta maravilhosa História.

para evitar essa ocorrência. Todavia, os meios de que disponham na época, não eram os mais adequados para preservar grandes quantidades de vinho, por longo tempo. Eram viagens normalmente muito demoradas, em que embarcações e tripulações tinham que se sujeitar a grandes e frequentemente bruscas, mudanças de clima, alterações de pressões atmosféricas, tempestades, etc.

No ano em que nasce oficialmente o Vinho do Porto - 1756 Portugal e o Brasil, faziam ambos parte de um mesmo e vasto Reino, que se estendia desde a velha Europa até aos confins da Oceânia… E, a terra Brasileira, essa promissora Terra de Vera Cruz, continuava a expandir-se, crescendo sempre!

Sujeito a todas essas contingências, era frequente o vinho avinagrar. Então o que fazer? Terão sido tentadas diversas opções, mas aquela que provou ser mais eficiente, foi a adição aos vinhos tranquilos, ou seja, aquilo que normalmente se designa por Vinho de Mesa, ou simplesmente Vinho, de uns quantos litros de aguardente. Através deste processo consegue-se estabilizar um vinho, impedindo que ele venha a sofrer novas alterações microbiológicas, entre elas, que se torne vinagre. Estava assim descoberto o processo de produção do Vinho do Porto!

Com efeito, nesse longínquo ano, o Brasil estava em plena expansão, consequência não só do incansável labor dos seus colonos e capitães, mas também, no plano diplomático, da grande prioridade que lhe dava o monarca, El Rei Dom José I. Quanto às terras do actual Estado de Santa Catarina, desde 1748 até esse mesmo ano de 1756, estavam a ser desbravadas por novos colonos portugueses, vindos das ilhas dos Açores, que se estabeleceram inicialmente na área costeira, desta belíssima região.

Mas afinal, o que é o Vinho do Porto? Como acabou de ser dito, trata-se de um vinho natural, fortificado, ou seja, ao qual é adicionada aguardente na faze inicial da sua produção.

Já mencionamos aqui, no artigo que escrevemos no primeiro número da Revista Valeu, o quanto a imigração Açoriana, contribuiu para o nascimento da viticultura no Brasil; Importa agora mencionar como o facto de Portugal se ter lançado, no despontar do século XV, na empresa dos Descobrimentos, poderá também ter contribuído para o nascimento deste néctar excepcional, que é o vinho Porto.

Este processo de fabrico, derivado de condições peculiares da região duriense, assenta em antigas tradições. Assim a paragem da fermentação do mosto – o sumo espremido das uvas – é efectuada com a adição de aguardente vínica, especialmente seleccionada para esse efeito. Seguem-se, para a obtenção deste vinho licoroso tão especial, a lotação – “casamento” entre diversos lotes de vinho, considerados compatíveis entre si –, bem como a selecção do tipo de maturação e de estágio mais adequado.

Com efeito, as longas e demoradas viagens efectuadas por esses navegadores, provocavam frequentemente o azedar dos vinhos… Por isso, marinheiros e descobridores, que não gostavam de se privar desta preciosa bebida, tiveram que encontrar processos

O vinho do Porto, detentor de uma incomparável e persistente riqueza aromática, gustativa e elevado teor alcoólico – situado entre os 19 e os 22% vol. – pode dar origem a uma vasta gama 33


de estilos e tipos de Porto, que tanto podem ser brancos como tintos. Em termos de doçura, esses diferentes tipos podem ir do doce, meio-seco, até ao extra seco. Os Vinhos do Porto podem ser ainda divididos em duas grandes categorias principais, consoante o tipo de envelhecimento a que são sujeitos, normalmente designados por Estilo Ruby, ou estilo Tawny. No primeiro grupo incluem-se os vinhos do Porto em que se procura manter todo o vigor do seu aroma frutado e pujança juvenil. São vinhos que também se caracterizam pela intensidade da sua cor. Neste tipo de vinhos, por ordem crescente de importância, inserem-se as categorias Ruby, Reserva, Late Bottled Vintage (LBV) e Vintage, antigamente conhecido pela designação “Novidade”. No segundo grupo incluem-se os Vinhos do Porto obtidos por lotação de vinhos com diferentes graus de maturação e antiguidade, todos eles sabiamente envelhecidos em cascos ou tonéis de madeira. Mais do que exuberância e vigor, o que se pretende é a obtenção de vinhos de uma complexa elegância. As categorias existentes são, por ordem de importância, as seguintes: Tawny, Tawny Reserva e Tawny com Indicação de Idade (10 anos, 20 anos, 30 anos e 40 anos). Neste grupo incluem-se ainda os Colheita, que se assemelham ao Tawny com Indicação de Idade, mas neste caso todo ele tem o mesmo tempo de envelhecimento, correspondendo exclusivamente à colheita do ano indicado no rótulo. Todos os Vinhos do Porto são laborados exclusivamente a partir de uvas de castas seleccionadas, provenientes unicamente da Região Demarcada do Douro; delimitada de forma sistemática, e oficial, é a Região Demarcada mais antiga do Mundo! A escolha e delimitação da área do Alto Douro vinhateiro foi criteriosamente estudada. Para além disso também assentou no reconhecimento e constatação de que os vinhos que produzia eram dotados de qualidades extraordinárias: marcados por um “terroir” verdadeiramente único, que os torna excepcionais, especialmente aptos para serem fortificados, e que já anteriormente eram amplamente cobiçados por comerciantes e mercadores. Território cortado por um serpenteante Rio, o Douro, e abrigado de ventos, pelo vale profundo, onde este e os seus afluentes correm até ao mar. A história dos vinhedos do Alto Douro – onde é produzido o

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Vinho do Porto- é muito antiga e não faltam descobertas arqueológicas e referências documentais, a comprovar a persistência do cultivo de vinhas na região, ao longo de quase dois milénios! Tal prática deu origem a uma paisagem única, construída nas encostas escarpadas e xistosas do vale do Douro. Paisagem vitícola singular, classificada como Património da Humanidade, pela UNESCO; Terras onde a imponência geográfica e o descomunal trabalho do Homem se misturam, numa região dotada de um clima e solos únicos, que originam vinhos excepcionais. Embora o nascimento oficial desta região vitivinícola se tenha verificado no reinado de Dom José I, uma das etapas fulcrais desta história, remonta ao reinado do Fundador de Portugal. Foi El Rei Dom Afonso Henriques quem em meados do século XII, fez vir para o seu Reino, e para a região Duriense, os monges de Cister. Incansáveis obreiros, excepcionais conhecedores das ciências agrárias, os Cistercienses desenvolveram, difundiram, e ajudaram ao crescimento e implementação da ciência vitivinícola, ao longo de todo o vale do Rio Douro. Com o passar dos séculos, os vinhos do Bispado de Lamego, verdadeira capital religiosa do Alto Douro, tornaram-se especialmente apreciados e começaram a ser cobiçados por mercadores nacionais e estrangeiros. Chegados ao Século XVIII, para evitar fraudes, adulterações e oscilações de preços só favoráveis a especuladores, o Governo de Dom José I, decide-se, como já vimos, a criar oficialmente a região demarcada do Douro, dando assim nascimento oficial ao Vinho do Porto. A designação pelo qual este néctar excepcional ficou conhecido, deve-se ao facto de as caves onde era armazenado o vinho destinado a ser exportado, não só para as vastas províncias ultramarinas portuguesas, mas também para diversos mercados Europeus, se localizarem em frente à cidade do Porto, mais concretamente em Vila Nova de Gaia. Ainda hoje é aí que se localizam as mais importantes empresas de Vinho do Porto, que são dignas de demorada visita, por parte de qualquer viajante que demande estas paragens. Estas empresas, entre as quais se contam as mais antigas companhias portuguesas dedicadas à comercialização e venda de vinhos, sempre se pautaram por grande dinamismo. Assim vão estar entre as primeiras a aproveitar o potencial de novas “invenções” do século XIX, como foi o caso da publicidade, do marketing e do design. E, quando o vinho começou a ser amplamente vendido em garrafas, passaram também dar particular importância à criação de vistosos rótulos, que hoje em dia fazem as delícias de todos aqueles que os contemplam; Rótulos esses que constituem um interessante repositório soci-


ológico-económico das épocas e dos públicos a que se dirigiam. Muitos deles foram concebidos especificamente para os Países a que se destinavam, existindo mesmo belíssimos rótulos criados apenas para o mercado brasileiro, que já foi grande consumidor de Vinhos do Porto. Também o formato e aspecto de garrafas foi objecto da sua atenção, criando tipos distintos da restante produção vitivinícola mundial. Para além disso, tal como sucedeu na região de Champagne, rapidamente perceberam que o saca-rolhas, objecto vínico por excelência, podia ser um fantástico meio promocional para as suas empresas. E assim os futuros visitantes do Museu do Saca-rolhas (que esperamos venha a abrir as suas portas ao público num futuro próximo), poderão também contemplar exemplares com o nome e logotipo de algumas das empresas mais famosas deste sector. Para além deles, rótulos e garrafas, atestarão também toda esta maravilhosa história. Tudo isto bem perto de algumas das mais belas e famosas quintas onde se produzem vinhos do Douro e do Porto! Paisagens de uma beleza incomparável, merecedora de atenta visita por parte de selectos viajantes. Hoje, nesta região, para além do Vinho do Porto, dá-se também grande importância à produção de magníficos vinhos de Mesa, os Vinhos do Douro, que enófilos do mundo inteiro apreciam e inúmeros concursos internacionais vem consagrando.

Mas essa e outras histórias ficarão para próximos artigos… por Lopo de Castilho

Este texto foi mantido no original, seguindo as regras da ortografia utilizada em Portugal antes da introdução do acordo ortográfico.

Fica ainda com muito para contar, sobre o Douro e os seus preciosos néctares, e até sobre um modelo de “saca-rolhas” único, só utilizado para abrir antigas garrafas de vinho do Porto! 35


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Il cibo e Il vino A guerra foi decretada. É certo que a maioria de nós baseia nossa seleção da bebida naquilo que planejamos comer. Primeiro olhamos o congelador e a geladeira de casa ou cardápio no restaurante e, então, lembramos das regrinhas básicas para uma boa harmonização. Quando se fala em harmonizar, o sentido da palavra é de fácil entendimento à grande maioria. Se entendido esta, já podemos passar ao próximo passo. Vamos falar de como fazer isso. Sempre devemos ter em mente o peso, a textura e o sabor. Se for o caso de querer servir um tinto poderoso junto com um prato delicado, acrescente acompanhamento mais substancioso, de gosto e aromas. Isso nos remete à textura. Bolhas também fazem parte da textura de um vinho, daí a excelência do Asti e do Moscatel, espumantes diante de pratos muito condimentados ou dos pudins e das pesadas sobremesas natalinas, que igualmente combinam com maduros produtos de Champagne e Sauternes. Vinhos muito carregados ou acarvalhados são um perigo, mesmo sendo os queridinhos do mercado, sua desnecessária rigidez e caráter pastoso brigam com a comida, ao contrário de produtos mais “inferiores”.

*Carnes grelhadas / brancos / aromáticos. *Condimentada / brancos / tintos ricos. * Peixe grelhado / brancos leve / tintos densos. Uma harmonização que a maioria deixa de fazer é com a sobremesa. Tivemos vinho para entrada, para o primeiro prato, para o prato principal e quando chega a hora sobremesa, passam direto para o café. A regra é básica. O vinho deve ser tão doce quanto a sobremesa ou até mais, se não parecerá fraco. Chocolate combina muito bem com vinhos do sul da França, seus sabores são ricos e profundos. Vale a pena curtir mais essa parte tão doce do jantar. Como faz parte da minha profissão, vivo testando novos sabores e texturas. Novos jeitos de preparar os alimentos e, é claro, o que nós mais precisamos é de cobaias. Vale usar parentes, amigos e até vizinhos. Pessoas que gostam de comer e experimentar novos sabores. Assim, cresce o seu conhecimento e de seus amigos, agregados de bons vinhos e ótimos pratos, ou não... Para que tudo saia certo, antes de começar a preparar os alimentos, devemos saber quais são suas propriedades e saber se elas pelo menos chegam perto de se igualar à bebida escolhida. Precisamos prestar muita atenção na gordura do prato e ter certeza se ele é realmente doce ou salgado. Por exemplo: chocolate é doce, mas vários tipos de queijos são salgados e têm tendência a serem doces. Isso pode ser um grande problema na hora de montar sua tábua de frios. Cuidado com frutas e embutidos, eles podem se tornar um grande inimigo. Não é porque ficou colorido e bonito que vai ficar gostoso e harmonioso juntar tudo isso. “Sometimes less is more”. E, para finalizar, quero que você se lembre disso:

Devemos sempre ter em mente que tipo de pessoas iremos colocar em volta da mesa para então escolher a bebida e a comida. Assim, evitamos de colocar pouco cuidado ou acabar dando pérolas aos porcos (com o perdão do trocadilho). “Encontrar a combinação de vinho e comida que funcione de maneira perfeita é um dos grandes prazeres da vida”. Quero de uma forma simples passar algumas regras que acho funcionar muito bem, baseadas em minha experiência como sommelier. Vamos começar com o que vale a pena experimentar:

Quando se fala em harmonização, não existem certo ou errado, apenas opiniões e sugestões.

*Queijos cremosos e macios / brancos leves. *Massa e pizza / tintos suaves e maduros. *Caça / tintos densos e ricos. *Carnes frias e embutidos / tintos suaves. *Defumados / brancos e refrescantes. *Aves / tintos maduros. *Queijos duros / brancos encorpados. Agora um pouco do que não vai cair bem: *Peixe carnudo / brancos leves / tintos densos. *Cozidos e caçarolas / brancos leves / tintos frutados.

E, se você gosta de receber amigos em sua casa, acenda velas, coloque uma roupa bonita, coloque para tocar aquele cd que você tanto gosta, monte uma mesa alegre e convidativa. Use tudo para deixar a noite em perfeita harmonia. Afinal de contas, a harmonização é feita de pequenos detalhes e regada de grandes elogios.

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por Tiago Minusculi


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San Michele Chegamos a Rodeio num solarengo início de tarde de julho, para conversar com Silnei Furlani, um dos sócios fundadores da Vinícola San Michele. Localizada no topo de um pequeno morro com vista sobre a cidade mais trentina do Vale do Itajaí, a San Michele é hoje um dos locais turísticos da cidade e uma referência em matéria vitivinícola na região. Para atestá-lo, estão os mais recentes prêmios conseguidos em algumas provas cegas com o seu Espumante Brut Chardonnay (Método Champenoise) e com o Barone, um Nebbiolo de 2013, para as revistas Bon Vivant e Vinho Magazine, respetivamente. A história da vinícola começa a desenhar-se por volta de 1975, aquando da visita de uma comissão de dignitários italianos da região de Trento, no norte de Itália, a fim de participar nas comemorações do centenário da imigração italiana em Rodeio e que resultou no estabelecimento de intercâmbios entre a província italiana e a cidade brasileira, promovidos pelo Círculo Trentino, que se formou na sequência dessa visita. A aproximação resultou frutuosa e em 1987 é lançada a primeira bolsa de estudos para estudantes de Rodeio que queiram ir estudar para Itália. Silnei, que nessa época estudava agropecuária em Blumenau e trabalhava na Furb, não hesitou em candidatar-se. - Era um sonho antigo. A minha mãe disse que eu era louco por abandonar o bom emprego que tinha, mas eu nem pensei duas vezes, candidatei-me, mas fui descartado, porque era apenas para filhos de agricultores e o meu pai não era. Meu, chorei a noite inteira!

la) também foi para lá e nos formamos em enologia em 1990. Conscientes da necessidade de apoios para desenvolverem uma infraestrutura em Rodeio onde pudessem aplicar os conhecimentos adquiridos começaram a encetar contatos com políticos e empresários trentinos, que pudessem auxiliar a concretização do projeto no Brasil. Já regressados, aumentaram a pressão junto das autoridades italianas da Província de Trento e conseguiram aprovação para desenvolver dois projetos autônomos e privados: um em Rodeio e outro em Nova Trento. Os esforços tinham resultado!

Nessa primeira leva de jovens brasileiros seguiram dois dos futuros sete fundadores da vinícola: Sérgio Pegoretti, que era colega de agropecuária na Furb e Kiko Scoz, além do saudoso Dário Eccel, produtor dos melhores queijos da região, entretanto falecido. A bolsa era para o renomado Instituto Agrário de San Michele all’Adige, em Trento, um dos mais conceituados de Itália.

- Criamos então a empresa, falamos com o Prefeito que nos apoiou com máquinas e um pedreiro e começamos a construção. Mas, os custos eram elevados, então eu e o Marcelo decidimos regressar a Itália, onde o nosso trabalho era mais bem remunerado e de lá ajudávamos o Gláucio, o Sérgio e o Kiko que ficaram. Ainda em 1991, o Professor Maule, que era professor no Instituto San Michele veio para cá, auxiliar-nos na compra do maquinário necessário e no final desse ano compramos as primeiras uvas, com a ajuda de Adolfo Alberto Lona que era diretor da Martini Rossi. Na época não existiam uvas catarinenses, então o projeto começou com uvas gaúchas que vinificamos pela primeira vez em 22 de janeiro de 1992. Um Riesling, que era um vinho muito apreciado na altura. Foi um sucesso. Vendemos muito bem. Entusiasmamo-nos e em 1993, cometemos um erro. A vontade de vender era grande e fizemos uma venda que nos abalou seriamente, porque não recebemos. Perdemos 100 000 dólares.

- Por um lado, acabou por ser bom não ir logo de início. Estava no último ano do curso e se tivesse ido não tinha acabado, como aconteceu com o Sérgio. Assim, acabei agropecuária na Furb. – Afirma com um sorriso de orgulho. - Entretanto, mais um grupo de jovens tinha sido selecionado para um novo intercâmbio. Nem tentei porque sabia que era apenas para filhos de agricultores. Mas, fiquei sabendo que afinal iam também alguns que não eram e Deus acabou por me ajudar e à última hora, um deles não conseguiu ir e a Dona Iracema, Presidente do Círculo Trentino, por indicação da mãe do Sérgio sugeriu que me convidasse. Ela foi falar com a minha mãe que não queria dizer-me, mas sabendo que não a perdoaria nunca se descobrisse, contou-me e nem hesitei. Larguei tudo. Trabalho, namorada e em uma semana organizei tudo e fui! E como foi a adaptação? – Questionamos. - Foi fantástico! Às vezes parecia um sonho que tinha nascido no Brasil. Como era possível ir para um local tão distante e sentir-me tão em casa? Não sei se foi da paixão, da vontade que tinha de ir, mas a verdade é que era como se estivesse aqui, em Rodeio. Entretanto, o Marcelo Sardagna (outro dos sócios fundadores e o único que se mantém com Silnei à frente da viníco-

O abalo foi grande. Tão grande que o grupo dos sete fundadores se dividiu e três optaram por sair do projeto, embora com as melhores relações. Mais tarde acabaram por sair Sérgio e Gláucio, restando Marcelo e Silnei, os dois atuais sócios da vinícola. 40


- Foram tempos difíceis, mas fomos conseguindo tocar. Com a saída do Sérgio, que era responsável pela venda externa, começamos a focar-nos nas festas italianas que começavam a aparecer por toda a região e na venda direta. Foi assim que sobrevivemos até 2003, ano em que decidimos fazer um curso de qualidade total durante o qual percebemos que para crescer tínhamos de abrir mercado e apostar numa estrutura de vendas externas.

ca, antevejo neste trajeto, as agruras de um árduo trabalho e duma dedicação absoluta. A partir de 2006, Sérgio regressou à vinícola como responsável pela área comercial, que, hoje, conta com mais 3 colaboradores e contribuiu para a dinamização dos produtos San Michele, que são vendidos em todo o Estado, mas também em Curitiba, Belo Horizonte, Goiás. Uma mudança de hábitos do consumidor brasileiro, a subida do dólar e o esforço dos produtores nacionais no sentido de agregar valor ao vinho produzido e garantindo um nível de qualidade que não para de surpreender, permitem a Silnei encarar o futuro com tranquilidade e um sorriso nos lábios.

Durante esse período, Silnei e Marcelo mantiveram a produção de Riesling a que juntaram um Cabernet Sauvignon do qual fizeram um reserva em 1999, que venderam em 2000, ano em que vinificaram, seguindo o método champenoise, aquele que viria a ser o primeiro espumante produzido em Santa Catarina. Em 2004 aumentaram significativamente a oferta de produtos vínicos ao lançarem no mercado o Rosso, o Bianco e os espumantes Brut e Moscatel.

Mas não se pense que os dois sócios da San Michele estão satisfeitos com o sucesso da sua empresa. Pelo contrário, empresários atentos, percebem a necessidade de uma permanente aposta na qualidade do produto e da imagem que a vinícola passa para os seus clientes. Por isso, aprontam-se para apostar em novos projetos, nomeadamente numa reforma do espaço físico da empresa, preparando-a para um turismo crescente que procura vivenciar no local o máximo de experiências em torno do mundo do vinho.

- Foi um período bom. – Recorda Silnei. – Aprimoramos muito. Em 2007 produzimos o Tridentum, um Teroldego, a principal uva trentina, depois o Maso Alto, uma espécie de vinho da Toscana, já com uvas da serra catarinense. Aliás, em 2007 vinificamos o primeiro Cabernet com uvas catarinenses. – Orgulho estampado no rosto. – Recentemente lançamos um nebbiolo, a principal uva italiana, utilizada para fazer o Barolo italiano, a que chamamos Barone. Contada assim, parece fácil esta caminhada vínica dos dois jovens sonhadores de Rodeio mas, conhecedor das dificuldades inerentes à viticultura, sobretudo numa região sem qualquer tradição víni-

Ao longo dos anos, a ligação a Trento e ao Instituto San Michele manteve-se inalterada, em particular com o Professor Maule, que virou amigo e uma espécie de consultor pessoal de Marcelo e Silnei. - Qualquer dúvida, ligamos e sabemos que podemos contar com ele. Isso dá uma tranquilidade muito grande, sobretudo quando sabemos que ele é uma das maiores autoridades mundiais em viticultura. Foi com o apoio dele e das autoridades italianas que, em conjunto com o Epagri e a Universidade Federal, desenvolvemos um projeto, orientado pelo Marcelo, de teste de mais de 30 variedades de uvas na serra catarinense, nomeadamente em Urubici e Bom Retiro, onde temos produtores parceiros desde 2007, com um óptimo resultado. Dessas 30 uvas, foram escolhidas 6 cuja avaliação foi muito positiva, em particular a Rebo, que é um cruzamento de Teroldego com Merlot desenvolvido em 1932 por um investigador do Instituto Agrário San Michele. Silnei e Marcelo têm razões para estarem felizes. A sua vinícola San Michele tem conseguido afirmar-se no, cada vez mais difícil, meio dos vinhos. Os seus novos produtos são cada vez mais procurados e o trabalho de base, desenvolvido com os seus parceiros da serra catarinense, auguram safras cada vez melhores. Esse optimismo está espelhado no rosto de Silnei quando nos despedimos, sob um céu azul pintalgado, aqui e acolá, por farrapos de nuvens brancas. por João Moreira

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O mar se tornou a nossa estrada... e essa viagem a nossa vida!

A maioria das pessoas quando pensa em tirar umas férias, imagina uma semana ou duas, num destino bem distante e, geralmente, em um lugar tropical. Dias quentes e ensolarados, praias, drinks refrescantes, cenários paradisíacos, céu e mar azul. Num dia, uma praia deserta, areia branquíssima e muita vida submarina para ser admirada através dos mergulhos. Trilhas e caminhadas por ilhas inteiras que por algum tempo passam a ser só suas. No outro, uma praia badalada com muita música, bares e pessoas de todos os lugares do mundo. Novas amizades. No fim do dia, do alto de um morro, da areia da praia ou ainda envolto por águas calmas e cristalinas, assistir ao espetáculo que o sol consegue produzir ao se por, mudando as cores e compondo todo o cenário como um verdadeiro artista.

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Esse é o nosso mundo. Esse é o mundo ao qual pertencemos. Ou seria, o mundo que pertence a nós. O mundo que conquistamos. Não importa. O descrito não é um cenário qualquer. É o quintal da nossa casa. É o estilo de vida que escolhemos para ser o nosso. Sonhamos com ele por anos e anos. E fomos capazes de tornar o nosso sonho realidade. Não é um período sabático. Pessoalmente, não temos a intenção de estabelecer um prazo para essa aventura. Percebemos que, se tivessemos tudo que possuíamos e o necessário para viver dentro da nossa própria casa, além da capacidade de carregar tudo isso conosco, não sentiríamos vontade de acelerar o passo e voltar para o conforto do nosso lar. Poderia ser um motorhome. Mas somos do mar. Então, transformamos um barco a vela na nossa casa flutuante e itinerante. E o mar se tornou a nossa estrada e essa viagem, a nossa vida. É muito fácil encontrar barcos por aí. Novos ou usados. Entretanto, o barco ideal para viver esse tipo de aventura, tem que ser aquele que, assim que você colocar os seus olhos e os seus pés nele, você sinta que deve ser seu. Tem que ser bonito, confortável e espaçoso. Dentro e fora. Mas, sobretudo, tem que ser seguro. Afinal, você espera viajar milhares de milhas com ele, nas mais diversas condições de mar e nada de errado pode acontecer. Especialmente porque as coisas erradas nesse caso, sempre acontecem no meio do nada. O barco que escolhemos é de fabricação francesa, um catamarã Lagoon 380s2. Um dos modelos mais construídos de toda a história. Optamos pelo catamarã por ser bem mais confortável que um monocasco, seja em navegação seja na ancoragem. O seu pequeno calado nos permite navegar com segurança em lugares mais rasos e o fato de ser construído com vários compartimentos estanques, o torna praticamente inafundável. O espaço interno e externo e o aproveitamento de cada cantinho é impressinante. Tudo vira armário ou gaveta. A área de convívio é espetacular: temos quatro cabines, dois banheiros, a sala com a cozinha, a varanda de popa ou cockpit e o trampolim, nosso lugar preferido ao por do sol. Além disso, os céus mais estrelados, o maior quintal e a maior piscina de borda infinita do mundo. Acima de tudo, a nossa viagem tem nos levado para muitos lugares maravilhosos. Lugares remotos que, quando habitados, o são por pessoas singulares, honestas, simples, despretenciosas e com os pés no chão, movidas pelo seu amor pelo mar, pela natureza e pelo próximo. Verdadeiros paraísos na terra. E vai continuar assim até que encontremos algo que nos encante tanto, tanto, que nos impeça de o deixar. Nosso barco também pode ser seu! Tem muitos lugares lindos para serem visitados. E, na nossa opinião, a maioria deles são lugares dos quais nunca ouvimos falar e que não fazem parte das listas dos melhores do mundo. As ilhas Virgens Britânicas e a cadeia das Exumas nas Bahamas, ambos arquipélagos do Mar do Caribe, são dois exemplos típicos do que acabamos de falar. As Ilhas Virgens Britânicas são um destino paradisíaco que, o fato de ser ainda bastante desconhecido o torna exclusivo. Um arquipélago formado por mais de sessenta ilhas, na sua maioria desabitada, com histórias de piratas, destilarias de rum, mergulhos sem igual em cavernas, rochas e naufrágios, surf, kitesurf, stand up paddle, praias de areia branquíssima e águas de um azul

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Apesar das paisagens de cinema, não tem agito. É o caso do Thunderball Grotto, a gruta que fez parte do filme do 007 com o mesmo nome e, Warderick Wells, um parque marinho onde você acaba sendo parte do caleidoscópio unicamente em tons de azul que o rodeia. Vida marinha? Super abundante. Arraias, golfinhos, peixes das mais variadas cores e tamanhos, muitos corais coloridos, cavalos marinhos e até tubarões. Você pode velejar conosco a bordo do Cascalho. Escolha seu destino e entre em contato: viveravela@gmail.com Quem somos nós! Luiz Fernando, nasceu em Santos, São Paulo, formado em Análise de Sistemas e empresário na área de Recursos Humanos. Mauriane, nasceu em São José do Cedro, Santa Catarina, formada em Odontologia, trabalhava no seu próprio consultório. Aproveitando uma oportunidade que a vida nos deu, decidimos largar tudo e girar o mundo a bordo de um veleiro. As vésperas de completar três anos de vida no mar, já somamos em nosso curriculum, mais de dezoito mil milhas náuticas navegadas. Navegamos no Mar Mediterrâneo, de Roma até Gibraltar, de onde partimos para a travessia do Oceano Atlântico no sentido norte-sul e leste-oeste, para chegar em Fernando de Noronha, solo brasileiro. Depois descemos toda a costa brasileira, até chegar em Santa Catarina, onde jogamos âncora na baía de Armação do Itapocoroy, mais precisamente numa praia sem areia, só com pedrinhas: a Praia do Cascalho. Lugar onde nasceu a nossa estória juntos e o sonho de viver a vela também. Não por acaso, Cascalho foi o nome que escolhemos para batizar o nosso barco. Subir a costa brasileira novamente, começou em seguida. De lá, chegamos ao Caribe onde já passamos duas temporadas, navegando de uma ilha para a outra. Atualmente estamos nos Estados Unidos, navegando pela Intra Costal Waterway. Nós temos tão pouco tempo nessa coisa incrível chamada “vida”. Depende de nós tirar o melhor dela. Esperamos vê-lo em algum lugar da nossa estrada e da nossa história. indescritível. Muito agito também, se assim o desejar. Muitos beach bares, marinas e resorts que abrem seus bares e restaurantes para o público. Dentre suas jóias, estão as The Baths, um labirinto de grutas de grutas formado por um amontoado impressionante de pedras gigantes, com a água do mar escorrendo entre elas, dando origem a maravilhosas piscinas naturais. E o que dizer de Sandy Cay, uma ilhota de areia branca, banhada pelo mais turquesa dos mares, tão grande quanto quinze minutos de caminhada para rodeá-la (tudo depende da sua pressa!), com alguns coqueiros e que pode ser toda sua, pelo menos por algumas horas.

por Luiz e Mauriane

Já a cadeia das Exumas, é um destino ainda mais exclusivo. Um arquipélago com mais de trezentas ilhotas, que faz parte das Bahamas, localizado em cima de um banco de areia tão grande, possível de ser visto do espaço. Essa condição deu nome à região: Bahamas significa baixios. A navegação em águas tão rasas é um espetáculo a parte. A diversidade de azuis é incontável e, somado aos inúmeros bancos de areia, formam um cenário natural inigualável. É um destino para amantes da natureza. 45


Os Açores e o Turismo Náutico

Chega o Verão na Europa e a atividade turística aumenta, esta é uma verdade de La Palisse. Com isto, aparecem os destinos de turismo de massas, destinos lotados de gentes e onde cada um luta por um pedaço de areia onde estender a sua toalha, os serviços ficam completamente saturados, a construção é desmedida, existe falta de preocupações ambientais, aparece o aumento de criminalidade e das desigualdades sociais. São destinos adulterados e visando o lucro rápido. Contudo, ainda há locais, onde o turismo é olhado de uma maneira sustentável e, apesar de ser uma das atividades importantes para o crescimento dessas regiões, elas oferecem uma parte das razões pela qual se viaja: calma, relax, descanso, aliados à sustentabilidade, à segurança e à qualidade. Essas regiões são autênticos pedaços de paraíso que valem a pena serem visitadas.

com a possibilidade de realizar todo o tipo de atividades náuticas, em lazer ou em competição. São várias as atividades possíveis de serem praticadas. O Turismo de Portugal divide ainda o mercado deste Produto Turístico em dois: Náutica de recreio, experiências relacionadas com a realização de desportos náuticos ou de charter náutico, como forma de lazer e entretenimento. Inclui uma grande variedade de desportos: vela, windsurf, surf, mergulho, remo, charter de cruzeiro, etc. Representa cerca de 85% do total das viagens náuticas; e Náutica desportiva, experiências baseadas em viagens realizadas com o objetivo de participar em competições náutico-desportivas. É um mercado muito específico, com as suas próprias regras de funcionamento, e que representa 15% deste sector. Também para o Turismo de Portugal (2006), a procura primária de viagens internacionais de Turismo Náutico, aquela para a qual esse é o principal motivo da viagem, totaliza aproximadamente 3 milhões de viagens de uma ou mais noites de duração na Europa. Este volume representa, aproximadamente, 1,15% do total das viagens de lazer realizadas pelos europeus. Entre as atividades náuticas mais consumidas, destacam-se a vela e o mergulho que, juntas, contam com mais de 1 milhão de praticantes com licença federativa na Europa (sem contar com os praticantes ocasionais destes desportos).

No turismo existem vários tipos de produtos que diferem de região para região. Se o Turismo de Sol e Mar é um dos produtos com mais procura e ai vamos bater novamente nos destinos massificados, existem outros tipos de produtos turísticos que, bem explorados, podem oferecer exatamente o contrário desse turismo massificado. Um segmento desta Industria com largo crescimento, tem sido o Turismo Náutico. Em Portugal, na Europa e no Oceano Atlântico, os Açores têm-se afirmado, cada vez mais, como um destino de excelência, um destino da moda e onde o Turismo Náutico é uma aposta de referência. Aqui, é possível encontrar um destino sustentável, seguro, genuíno, de qualidade e onde existe muito para fazer, muito para ver, muito para viver.

Já para o Ministério do Turismo do Brasil (2010), o Turismo Náutico diferencia-se dos outros segmentos na medida em que o seu principal elemento caracterizador é um equipamento náutico: a embarcação, que se constitui no próprio atrativo motivador da viagem, ao mesmo tempo em que é utilizada como meio de transporte turístico. A navegação, quando considerada como uma prática turística, caracteriza o segmento denominado Turismo Náutico. Podem-se considerar dois tipos principais, o Turismo Náutico de Cruzeiro, prestação de serviços conjugados com transporte, hospedagem, alimentação, entretenimento, visita a locais turísticos e serviços afins, quando realizados por embarcações de turismo, e o de Recreio e Desporto, realizado em barcos de pequeno e médio porte, que podem ser de propriedade do turista ou alugados.

O Turismo Náutico é uma grande referência nas ilhas do arquipélago Açoriano e é sobre este tipo de Turismo que espero cativar a atenção dos leitores da Valeu e despertar o interesse e a curiosidade em, quem sabe um dia, se decidirem a viajar, conhecer e usufruir de tudo o que os Açores têm para oferecer, e que é muito mais que somente as atividades náuticas. Não faria sentido escrever sobre este produto turístico sem explicar o seu significado, e para isso é preciso fazer uma pequena comparação entre o que se entende como Turismo Náutico em Portugal e o que se entende pelo mesmo produto no Brasil.

No Brasil, atividades como o mergulho, o Whale Watching, natação com golfinhos e todas as demais atividades tidas como fazendo parte do Turismo Náutico em Portugal, fazem parte do Turismo de Aventura para o Ministério do Turismo.

Segundo o Turismo de Portugal (2006), Turismo Náutico consiste em desfrutar de uma viagem ativa em contacto com a água, 46


No meu ponto de vista, a visão Brasileira é mais acertada. O mercado dos Cruzeiros ocupada cada vez mais um papel importante na deslocação de turistas a nível Mundial e dever ser tratado como um Produto Turístico único. Outro motivo pela qual defendo a visão do Brasil, nesta matéria, prende-se com o facto de em Portugal haver alguma dificuldade em separar alguns tipos de atividades. Por exemplo, o rafting ou o canyoning, desportos que se praticam em contacto com a água, fazem parte do Turismo de Aventura, contudo o remo, a vela ou a canoagem já fazem parte do Turismo Náutico.

mo próprio, sendo proibida a sua comercialização. As empresas de referência nesta área oferecem vários tipos de embarcações e pessoal altamente qualificado, com uma larga experiência internacional. No que à observação de cetáceos diz respeito e segundo a empresa Norberto Diver, a época de maior atividade vai de Abril a Setembro. Embora seja possível observar baleias e golfinhos durante todo o ano, de Outubro a Março, o número de saídas é reduzido devido à pouca procura e às condições climatéricas geralmente adversas. Das 23 espécies (há outras fontes que afirmam haver mais) de cetáceos registadas para os Açores, as mais frequentemente observadas são: o cachalote, a baleia sardinheira, a baleia comum, a baleia azul, a baleia piloto, os golfinhos moleiros, os golfinhos roazes, os golfinhos comuns, os golfinhos pintados e os golfinhos riscados.

Pedindo as minhas mais sinceras desculpas, vou utilizar neste artigo a definição usada em Portugal, única e exclusivamente pelo simples facto de que os Açores são uma Região Autônoma Portuguesa. Deixando agora de parte as explicações técnicas sobre este tipo de Turismo, mas que se espera terem sido suficientemente esclarecedoras, é altura de escrever sobre o que o que as Ilhas Açorianas têm para oferecer a quem as visita. O Turismo Náutico é sem dúvida a grande referência do Arquipélago e que é, cada vez mais, uma referência mundial neste tipo de produto turístico. São várias as atividades que o turista pode encontrar. Claro que, no topo da cadeia, estão a observação de cetáceos e o mergulho com escafandro, contudo os Açores também são uma referência

Na observação de cetáceos, o trabalho é ajudado com os Vigias tradicionais, técnica de localização das baleias usada na época da Caça à Baleia, para melhor se detetar os animais. Com Vigias nas ilhas Faial e Pico, o avistamento de baleias é praticamente garantido, sendo raros os dias em que não se avistam os grandes cetáceos. Cada saída de mar tem uma duração de 3 a 4 horas e normalmente fazem-se duas por dia, uma às 08h30 e outra às 15h00, podendo ser alterada a hora por conveniência do grupo.

na pesca desportiva e, principalmente, no “Big-game”, a pesca do espadim azul e espadim branco, assim como o dourado e o rabilo, entre outras espécies de tunídeos. Segundo o site oficial do Turismo dos Açores (www.visitazores.com), entre as ilhas do triângulo – Faial, Pico e São Jorge – o desafio está sempre em aberto, embora as restantes ilhas também sejam ponto de partida para pescarias em quantidade e qualidade. Em terra, encontram-se diversos operadores especializados na pesca grossa de alto mar. Quem preferir assegurar o leme da aventura, pode alugar equipamento e embarcação e sair em busca dos cobiçados troféus. Os Açores são considerados um dos melhores locais do mundo para a prática deste tipo de pesca. São mesmo o único lugar no mundo onde há uma boa possibilidade de se encontrar estes grandes peixes. A pesca é feita de acordo com regulamentos internacionais, onde o animal pescado é novamente libertado no mar com técnicas de pesca de captura e libertação que são a melhor maneira de libertar rapidamente um peixe com o mínimo de stress. Somente no casso de possibilidade de recorde mundial é permitido trazer o peixe para bordo, isto no que se refere ao caso dos espadins. Os outros tipos de peixe podem ser desembarcados, mas somente para estudos científicos ou para consu-

Podem embarcar pessoas de todas as idades, e há condições para satisfazer clientes com limitações de mobilidade que não necessitem acompanhamento. Antes da saída “briefing” é feito por biólogos marinhos qualificados, sobre a forma como a atividade se desenvolverá, sobre as várias espécies de Baleias e Golfinhos, para que zona se vai e o que se espera observar nessa saída, depois de consultados os vigias que já esquadrinham o mar há várias horas. Poder nadar com golfinhos, vê-los e ouvi-los no seu ambiente natural, é uma experiência inesquecível. Ao observar os bailados e ao escutar as suas “conversas”, apercebemo-nos, verdadeiramente, da beleza e inteligência destes animais. Esta atividade tem, contudo, as suas condicionantes. Para se nadar com golfinhos tem de se ter condições ótimas de mar, tem também que se esperar que os vigias os localizem e, mais importante, tem que se esperar que estes animais sociais deixem aproximar as embarcações. Apesar de tudo, são animais selvagens no seu habitat natural.

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Para o Turismo de Portugal, os Açores são um arquipélago de nove ilhas de natureza em estado puro e um dos maiores santuários de baleias do mundo. Entre espécies residentes e migratórias, comuns ou raras, avistam-se mais de 24 tipos diferentes de cetáceos nas suas águas. Para além das comunidades residentes como os golfinhos comuns e roazes, com quem é possível nadar, há baleias que utilizam os Açores como rota de migração. Os golfinhos pintados, cachalotes, baleias sardinheiras e de barbas são mais frequentes no Verão. A baleia azul, o maior animal à face da terra, com cerca de 30 metros e até 150 toneladas, pode ser avistada com facilidade nos finais do Inverno. Uma coisa é garantida: seja qual for a estação do ano, há sempre descobertas a fazer.

ca de mergulho durante quase todo o ano, contudo a melhor altura é entre Maio e Outubro. Existem dezenas de spots, adequados a diferentes tipos de mergulho. Zonas costeiras e baixas onde se contemplam magníficas grutas e arcadas submarinas. Restos de barcos naufragados, agora refúgio de lírios, meros e garoupas que saúdam os visitantes. Aguas oceânicas profundas, habitat de grupos de jamantas que planam na vertigem azul. Mergulhar com tubarões azuis (os Açores são o único spot de mergulho com tubarões na Europa) e, com alguma sorte, com tubarões martelos. Raras e misteriosas fumarolas subaquáticas. Desde uma frágil e minúscula anémona até ao maior animal do planeta, o tubarão-baleia. Poderá nadar no meio de cardumes de sardinhas, de cardumes de carapaus, de cardumes de xaréus, de cardumes de barracudas, ou de enormes massas de salemas. Observar várias espécies de moreias, de nudibrânquios, de raias, observar as sempre presentes vejas e peixes-porco. Os Açores têm sido considerados por vários órgãos de comunicação social internacional, como um dos poucos locais paradisíacos do Oceano Atlântico e são, sem dúvida, um dos melhores lugares para a prática do mergulho.

Com S. Jorge e Pico, o Faial forma o chamado Triângulo, que tem hoje na cidade da Horta um dos principais e mais dinâmicos centros de observação e estudo de cetáceos do arquipélago. Vários dos operadores de observação de cetáceos presentes na Horta, como é o exemplo da empresa Norberto Diver, têm como guias, cientistas e técnicos ligados à Universidade dos Açores, instituição que ali tem os seus principais centros de estudos e investigação, conduzindo com outras universidades internacionais vários programas de estudo das populações, migrações e rotas dos grandes animais marinhos.

A temperatura da água oscila entre os 17º/18º no inverno e os 23º/24º no verão, mas posso afirmar por experiência própria que, por vezes se atingem temperaturas de 26º. No que respeita à visibilidade, mergulhar nos Açores é uma agradável surpresa: são distâncias a perder de vista, de tal forma, que há dificuldade em calcular a distância real. É normal visibilidades na casa dos 30 metros junto à costa, sendo largamente superadas nos mergulhos no azul, onde se atingem visibilidades superiores a 60 metros. Para os mais entendidos nesta matéria e sabendo que poderá parecer mentira, eu arriscaria afirmar que já mergulhei com visibilidades de uns inacreditáveis 80 metros … mas como diria São Tomé: “Ver para crer!”.

O Pico é a ilha onde a tradição baleeira nos Açores se encontra mais enraizada. Podemos conhecer a história nos vários museus e centros etnográficos onde se perpetuam as artes tradicionais desta atividade, principalmente nas ilhas do Pico e do Faial, que servem de interessante e cativante guarida. Outra hipótese é visitar as vigias da baleia espalhadas em pontos estratégicos das várias ilhas com panorâmicas surpreendentes. Para os profissionais da fotografia e filme há grandes animais que têm proporcionado imagens de grande impacto. A recolha de imagens subaquáticas de Cachalotes e Baleias necessita de autorização prévia, exclusiva para profissionais, emitida pelo Governo Regional dos Açores. Caso alguém pretenda, existem empresas que podem ajudar os interessados a formalizar o pedido.

Nos Açores encontram-se 3 spots de mergulho que são considerados dos melhores em todo o Atlântico, o banco João de Castro, o banco Dollabarat e o banco Princesa Alice. Este último tem sido referido por vários mergulhadores experientes como um dos melhores spots de mergulho do Mundo. Para quem não tem experiência no mergulho com escafandro, existe ainda a possibilidade de fazer um batismo de mergulho ou snorkeling Para realizar esta atividade não é necessário tanta

Segundo a empresa Norberto Diver, os Açores oferecem um conjunto de excelentes condições naturais que permitem a práti48


experiência e técnica no mergulho, pois é realizada apenas com máscara e tubo, e dá a oportunidade de, através de um mergulho à superfície, poder observar toda a diversidade e beleza dos fundos marinhos dos Açores.

que guardo para a Vida. Conhecer os Açores é uma experiência fantástica que recomendo a todos! As ilhas são um lugar de rara beleza e mundialmente reconhecidas. São um destino da moda mas longe do turismo massificado. Seja ou não um adepto do Turismo Náutico venha conhecer o arquipélago e não se esqueça da sua máquina fotográfica para registar momentos únicos.

Outra atividade náutica de algum impacto nos Açores é a vela. Os apreciadores desta modalidade, além de usufruírem de panoramas únicos, encontram nos Açores boas condições meteorológicas para a sua prática. Existem várias empresas especializadas neste serviço, com modernos veleiros que o turista poderá alugar por umas horas ou por alguns dias, usufruindo, assim, de uma perspetiva diferente de viver os Açores. Para a Sail Azores, navegar pelas Ilhas dos Açores é uma experiência de vida. Cada baía recôndita, cada porto protegido, contam uma história. Velejar nesta variedade de paisagens e espectaculares cenários vulcânicos é um sinónimo inigualável de liberdade e prazer. A janela aconselhada de navegação nos Açores vai desde o final de Março até Outubro.

Por Heitor Castel’Branco Foram importantes na elaboração deste artigo a participação e a cedência de fotografias por parte da Norberto Diver (www. norbertodiver.pt) e da Oceaneye (www.oceaneye.pt), assim como do meu especial amigo Marco Medeiros (Foca). A Norberto Diver, propriedade de Norberto Serpa e criada em 1996, é uma empresa pioneira a exercer atividades turísticas ligadas ao mar na Ilha do Faial, Açores. Oferece um vasto leque de serviços que incluem: a observação de baleias, a observação e natação com golfinhos, o mergulho com escafandro autónomo e passeios de barco.

Mas o role de atividades náuticas ainda não está esgotado. O Turismo dos Açores indica uma variedade de atividades que o turista poderá encontrar no arquipélago. Em atividades de praia, poderá sentir a adrenalina dos mais variados desportos náuticos, nomeadamente, o Ski-aquático, boias rebocáveis, bananas-boats, gaivotas, wake-board e surf-board, e viver momentos de diversão, únicas e inesquecíveis. Estas atividades são praticadas em baías abrigadas. Sendo o Oceano Atlântico um local de eleição para recreio e lazer, fruição com a natureza e prática de desportos náuticos, é possível fazer passeios em caiaque de mar, realizar agradáveis passeios de mota de água pela linha de costa, o que permite observar diversificadas formações geológicas, baías amplas bem como variados ilhéus de origem vulcânica. A partir de todas as ilhas do Grupo Central dos Açores, aproveitando a proximidade entre as ilhas do Faial, Pico e São Jorge, entre as ilha das Flores e do Corvo ou entre as ilhas da Terceira e da Graciosa, é possível realizar passeios turísticos de barco, de contemplação da Orla Marítima e de Ilhéus. Uma atividade recente e que proporciona a todos uma visão do mundo subaquático são os passeios costeiros em barcos com fundo de vidro panorâmico. A Oceaneye é uma empresa pioneira nos Açores, mais especificamente na ilha do Faial, e que permite o acesso generalizado ao mundo subaquático, dando a conhecer os valores naturais e marinhos do mar dos Açores. As ilhas Açorianas também oferecem spots bastante favoráveis à prática do surf e do bodyboard, levando a uma procura considerável por parte dos surfistas que as visitam e se encantam pela beleza e temperatura únicas da água do mar. Além disso, o surf começa a ser estudado como um desporto de dinamização do arquipélago, aproveitando as costas norte das ilhas, mais expostas aos ventos atlânticos e mais favoráveis à prática destes desportos.

Este texto foi mantido no original, seguindo as regras da ortografia utilizada em Portugal antes da introdução do acordo ortográfico.

Ter o privilégio de ser um colaborador, durante o período do Verão, numa das mais antigas e conhecidas empresas marítimo-turísticas dos Açores, a Norberto Diver, tem-me proporcionado momentos de rara alegria e beleza. Na observação de cetáceos há momentos que só acontecem uma vez na vida, no mergulho, a minha área de trabalho na empresa, realizei experiências, aprendizagens, sensações e contactos humanos 49


2011-2012 O meu nome é Susana Borges, 36 anos, ativista de direitos humanos e em busca desse mistério de sermos capazes de “amar incondicionalmente” e da afirmação dos direitos de todos através da não-violência e da luta pacífica. Principais referências, desde sempre, encontradas em: Gandhi, Martin Luther King, Madre Teresa de Calcutá, Nelson Mandela, Aung San Suu Kyi ou Dalai Lama. Em causa estão, invariavelmente, a liberdade e a igualdade de todos no Mundo! Se fosse Florbela Espanca, diria: “Eu sou a que no mundo anda perdida, eu sou a que na vida não tem norte, sou irmã do sonho…”. A minha proposta é levar-vos nesse sonho, nesse mundo idílico em que acredito. Vou levar-vos nas minhas viagens, enquanto me quiserem acompanhar. Faço missões humanitárias e viagens que vão muito além da tónica turística. Não esperem de mim dicas de viagem e muito menos de hotéis de luxo ou de spots turísticos! Esse não é o meu propósito, nem o da crónica que vos vou escrever, enquanto nos fizer sentido. Alguém anónimo terá dito que: “Travel is the only thing you buy that makes you richer”. Não podia estar mais de acordo! As minhas viagens têm muito de exploratório, de descoberta, bem ao estilo National Geographic, a que assistia em miúda, fascinada com o que existe neste Mundo que nos acolhe! Cresci a admirar todos os seres e, mais tarde, aprendi a respeitar e aceitar todos os humanos! A ordem pode parecer estranha, mas todos sabemos que, muitas vezes, é mais fácil admirar um lagarto do que amar um humano! E esse é o grande desafio da descoberta do mundo e dos humanos que o habitam. São viagens físicas, sim, mas que me vêm despertar outras viagens, as interiores, em busca do sentido da vida, da reflexão sobre as desigualdades, sobre a incompreensão e separações entre humanos. O que vos proponho é a descoberta de lugares, pessoas, culturas, religiões, cores, cheiros e sabores, cada um com a sua magia e a sua verdade, sem que se anulem ou se sobreponham. No final, acabamos por descobrir que, algures no mundo, habitam humanos como nós, em busca dessa coisa que é a felicidade! Muitas vezes, apenas um conceito ou construção social em torno de coisas que nada têm a ver com a felicidade de que todos precisamos! Por agora, transporto-vos até África, mais concretamente, até ao São Tomé e Príncipe de 2011, a minha primeira missão e o meu primeiro amor! Este texto foi escrito em 2012, ainda em “ressaca” da paixão que São Tomé me deixou, após 1 ano de vida naquele país. Foi escrito para uma outra revista e talvez hoje escrevesse de outra forma, destacasse outros aspetos, mas pareceu-me uma boa maneira de “dar à luz” esta viagem de crónicas, que vamos fazer juntos, deixando-vos com a inocência das palavras, típica do primeiro amor, embora sobre uma jornada que, mal sabia, estava apenas a começar! Mas como todas as caminhadas se fazem com o primeiro passo e como o primeiro passo nasce da vontade, da garra que há dentro de nós…venham daí conhecer as Ilhas mágicas do “Léve-Léve” e despertar para outras realidades de “Humanos Como Nós… Algures no Mundo!”

CRÓNICA DE VIAGENS “Algures No Mundo…Humanos Como Nós!”

São Tomé - A magia da linha do equador Onde nos perdemos no e do tempo… Fotos e Texto pos Susana Borges São Tomé… Bastou-me chegar ao aeroporto, surpreendentemente designado de “Internacional”, para perceber o quanto aquela terra e aquelas “gentes” me iriam encantar pela sua genuinidade e carisma… Desço as escadas do avião e sinto-me “abraçada” por uma humidade que se entranha em mim, que me envolve desde o primeiro momento, que “primeiro se estranha, mas depois se entranha”. Quem não gosta, não vai gostar nunca, mas quem chega disponível para explorar e dar-se com abertura e simplicidade, ficará apaixonado e rendido para sempre. Venho para ficar um ano, com o intuito de trabalhar para o desenvolvimento local em algumas das comunidades mais isoladas e pobres da Ilha de São Tomé. Apesar de quase 48 horas sem descanso, o espírito de descoberta e o encanto por África não me deixam dormir. Caminho sem direção, falo com todos, porque todos falam comigo. O meu nome é “branca, branca… dá doce”, por vezes, “branca, vou casar com você”. Também sou “mulata”, “dona”, “dama” ou “tia” para os mais pequenos. Rendo-me à alegria das ruas, à música por todo lado, aos velhos táxis amarelos que buzinam como loucos, à mistura de cheiros que nos baralha, entre os bons e os maus, paradoxalmente, gosto da confusão, da desarrumação, da sujidade, do desenrasca do santomense em cada canto; do peixe fresco coberto de moscas, lado a lado com os panos africanos, dos motoqueiros que passam e param para ganhar uma corrida, das “brancas e brancos” que, como eu, deambulam pela cidade, cobertos de suor, a arrastarem-se em passo lento, já perdidos no tempo, onde o tempo deixou já de ter o mesmo significado e, sobretudo, onde deixa de exercer tanta pressão sobre nós. Terra quente, húmida, de tonalidades de verde que desconhecia existirem, terra fértil, de recantos virgens. Terra de cheiros, sabores, de musicalidade, de potencialidades inexploradas. Tudo germina e cresce em São Tomé, com a água das chuvas, o calor e as terras virgens. Terra do safú, da jaca, do mangustão, da fruta-pão que se encontra em cada jardim, no mato, na beira da estrada, dos caroceiros nas praias paradisíacas, repletas de coqueiros, onde as crianças sobem munidas do machim, brinquedo e instrumento de 50


sobrevivência que manuseiam desde tenra idade com mestria, para derrubar e rachar os cocos, a jaca, os cachos de banana, o cacau. Da terra e do mar, emerge o alimento diário das famílias. A fome é uma realidade que não se compreende, nem se pode aceitar por aqui.

“Medeia”, para se vingarem dos homens abandonam os filhos um bocadinho à sua sorte e reúnem-se para beber vinho da palma e esquecer a revolta face aos maridos que desaparecem durante semanas ou meses para irem ter com as outras mulheres/ famílias ou com as “boquitas” (espécie de amantes); as crianças veem-se obrigadas, desde muito cedo, a lutar pela sobrevivência e, quando chegam à adolescência, reproduzem o padrão que aprenderam. O homem tem direito a várias mulheres e a procriar com todas, a mulher revolta-se e bebe e assim sucessivamente. São Tomé tem ainda um grande passo a dar no que respeita à igualdade de género.

Percebo, desde o primeiro momento, que as crianças são a grande riqueza e o potencial deste pequeno país. Estão por todo o lado, brincam, dançam, lambuzam-se a chupar caroços de caja manga, metem-se com os “brancos”, pedem coisas, seja o que for, porque os brancos habituaram-nas a pedir, especialmente doces, correm atrás de nós e, sobretudo, sorriem e riem abertamente, semeiam alegria no coração de todos que por ali passam. Fazem-nos perceber que, afinal, é possível ser feliz com tão pouco, apesar das roupas rotas, dos chinelos gastos ou dos pés descalços. Têm tanto para nos ensinar, fazem-nos sentir que a vida é tão simples no “léve-léve” santomense. A cooperação para o desenvolvimento não é um conceito ou uma prática unidireccional e sempre que levamos a ajuda a outros povos e culturas, recebemos e trazemos muitos ensinamentos dessa experiência. São Tomé apresenta-se-me como um misto de culturas, de referências e de identidades, que se revelam pelo Tchiloli (folclore tradicional santomense, com um toque teatral), pelas danças tribais, o bulawé e tantos outros encantos terminados em “ê”.

Terra dos “banhos de rio”, da beleza paisagística que ofusca e deslumbra, da sensualidade das danças com corpos suados e colados, dos cheiros a verde, mar, frutas e flores, da “dawa” fresca, do búzio do mato e do mar, do peixe com fruta, banana ou mandioca, da cacharamba e do calulu. São Tomé encerra, em si, encantos e mistérios paradoxais. Uma terra onde não se compreende que exista ainda tanta fome e desnutrição, onde a corrupção, transversal a grande parte dos países do continente africano, oferece resistência face à mudança e ao desenvolvimento socioeconómico que seria de esperar, num país que recebe tanta ajuda externa e em que cerca de 93% do orçamento de Estado é assegurado pela ajuda externa. São Tomé parece ter parado no tempo. Encontramos ainda as roças da época colonial, com as casas senhoriais e as sanzalas ocupadas pelas comunidades, tudo destruído, mas surpreendentemente belo. O tempo não parece ter passado por ali, tem uma dimensão e um valor que nós, ocidentais, industrializados, desconhecemos. Dizem-nos o tempo todo “branca, léve-léve…” e o mais surpreendente é que, passado algum tempo, que não conseguimos quantificar, prever ou controlar, apercebemo-nos que fomos “encantados” pela magia da latitude zero. A vida deixa de ser o passado que nos prendia ou o futuro que nos angustiava, o tempo é agora, por hoje “desenrasco” o que comer, por hoje sou feliz a dançar um “bulawé” entre amigos, tudo se resolve, tudo se desenrasca, este é o maior ensinamento de São Tomé. Xaué, anté mungu ê! * * Adeus, até amanhã! (Prepara a mochila para a próxima viagem…)

Terra dos já denominados “capitães de areia”, crianças que crescem com o apoio umas das outras, com rituais muito peculiares de sobrevivência e de afirmação. Meninos que se juntam para arriscar a sua sorte no mato, enfrentando todos os perigos que aí se escondem (caso da cobra preta), para assegurar o alimento diário que lhes garante a sobrevivência. O alimento das crianças é sazonal. Quando há jaca, praticamente, só comem a jaca que roubam das árvores; na época da manga, aumentam as parasitoses intestinais, porque não tiram a casca, nem lavam; na época de chupar o cacau, assaltam as plantações das roças. Não são meninos da rua, porque têm casa, família, mas são meninos da vida, que sabem o que é lutar pela vida desde que começam a dar os primeiros passos. A mortalidade infantil em São Tomé atinge, sobretudo, crianças em idade pré-escolar (0-5 anos), porque dependem ainda dos cuidados maternos. O problema é uma espécie de círculo vicioso: os homens são poligâmicos e orgulham-se de ter filhos com várias mulheres, mesmo que não tenham condições de contribuir para o sustento dos filhos; as mulheres, à imagem de

Este texto foi mantido no original, seguindo as regras da ortografia utilizada em Portugal antes da introdução do acordo ortográfico.

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Perdidos Postais

IV

Caro amigo Pouco mais de uma hora de voo é o que demora a mudar de mundo. Às vezes esquecemos que na proximidade pode estar um grande contraste e passei anos a esquecer de Marrocos nas minhas listas de viagens a fazer. Foi um erro. Ou talvez não, se acreditarmos no destino e em que este foi o tempo certo. Ao chegar a Marrakech sinto de imediato uma estranha afinidade com os cheiros, as cores, o bulício. O português é atlântico, mas também tem raízes, e grandes, no Mediterrâneo. Talvez a minha costela alentejana puxe a isso. O certo é que me encontro na diferença exótica, que me sinto bem a deambular perdido no labirinto quase infinito da Medina, entre as paredes vermelhas que caracterizam a cidade, por detrás dos quais adivinhamos riads de outros tempos resguardados dos olhos curiosos.

Se a Medina se transforma em algo familiar, já a praça Djemaa el-Fna é definitivamente exótica, estranha e fascinante. Um espaço enorme em que ao pôr-do-sol parecem acorrer todas as culturas e sub-culturas marroquinas, cruzando-se encantadores de serpentes e grupos de teatro berbere. Onde se podem beber fantásticos sumos de laranja rosa ou comer as mais estranhas iguarias. A praça não é familiar, mas é fascinante e recorda que estamos num país estranho e com uma cultura que muito dificilmente compreenderemos.

Os primeiros momentos são confusos, até perceber como nos livrarmos dos insistentes vendedores, mas é incrível que à segunda ou terceira passagem já nos reconhecem como se fizéssemos parte do cenário. Um plateau criado para um filme de Agatha Christie onde Poirot avançaria afastando os vendedores com a bengala numa mão, enquanto na outra agitava o leque para afastar o calor, ainda mais inclemente debaixo dos seus complexos fatos.

Abraço, João

A pouco mais de uma hora de Lisboa podemos experimentar esta cidade intrigante e imaginar por instantes que voámos para o outro lado do mundo. Devias experimentar.

Marrakech, Marrocos 14-X-11 Fotos e Texto por João Albuquerque Carreiras Este texto foi mantido no original, seguindo as regras da ortografia utilizada em Portugal antes da introdução do acordo ortográfico.

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Paris, fugindo mais a si próprio do que à agitação política e social que varre o país, numa peregrinação por Martel e depois por Rocamadour, que resulta num magnífico trecho literário descrevendo a sua visita à capela de Notre-Dame durante uma leitura de Péguy, em que, como Huysmans, quase se converte. E é no final desse capítulo que pressentimos o caminho que Houellebecq destina a François: “Na manhã seguinte (...) voltei à Capela de Notre-Dame, agora deserta. A Virgem esperava na sombra, calma e intocada. Possuía a soberania, possuía a força, mas aos poucos senti que perdia o contato, que ela se afastava no espaço e nos séculos, enquanto eu me encolhia em meu banco, encarquilhado, recolhido. Meia hora depois me levantei, definitivamente desertado pelo Espírito, reduzido ao meu corpo estragado, perecível e tornei a descer tristemente os degraus em direção ao estacionamento.” Com François, é a própria França que abdica das suas raízes históricas.

Leituras Um choque de realidade. O lançamento de “Submissão” pela Editora Alfaguara é um dos acontecimentos editoriais do ano, no Brasil. Prêmio Gancourt em 2010 e um dos mais importantes escritores contemporâneos de língua francesa, Michel Houellebecq, consegue, com o seu mais recente livro, recolocar no centro da literatura romanceada o debate de ideias e, acima de tudo, a urgência de um olhar crítico para os caminhos trilhados pela civilização ocidental. “Submissão” é um murro no estômago! Lê-se de uma assentada, embora com a necessidade permanente do recurso a um bom dicionário de filosofia e de história da ciência política, para que se assimilem na totalidade os devaneios de François, personagem principal do livro, professor de literatura na Sorbonne e especialista em Joris-Karl Huysmans, o naturalista convertido, no fim da vida, a um catolicismo místico.

Numa Europa atônita com a vitória do líder islâmico na segunda volta das presidenciais, com o apoio de socialistas, liberais e até conservadores, após uma negociação que leva à aceitação dos partidos tradicionais da exigência imposta pela Fraternidade Muçulmana da islamização das escolas e universidades públicas, pré-anunciada a François por um membro dos serviços secretos, marido de uma colega de cátedra, o especialista em Huysmans regressa a Paris para encontrar uma cidade mudada. As habituais minissaias e shorts deixam de ser vistas, dando lugar a calças, burcas e véus islâmicos; a poligamia passou a ser aceite; as mulheres deixam de trabalhar; na Sorbonne, apenas são aceitos professores convertidos ao Islamismo. A apatia da sociedade francesa, assustada com a possibilidade de uma vitória dos nacionalistas de direita, levou à instauração dum regime confessional islâmico. O que se segue, nos diversos encontros de François com o novo Reitor da Sorbonne, é uma extraordinária análise ao caminho de uma Europa envergonhada das suas tradições e condicionada por um pensamento politicamente correto, incapaz de vislumbrar a estratégia desenhada pelo fundamentalismo islâmico, mesmo se travestido de moderado. Numa quase macabra coincidência, “Submissão” tinha o seu lançamento agendado para o dia 7 de janeiro, o mesmo em que ocorreu o atentado que chacinou a redação do semanário satírico “Charlie Hebdo”, levado a cabo por dois radicais islâmicos, o que lhe entregou um cariz quase premonitório.

Como afirma Emmanuel Carrère no “Le Monde”, em trecho reproduzido na contra capa da edição brasileira, “se há qualquer um hoje em dia, não só na literatura francesa como na mundial, que reflita sobre a enorme mutação em curso que todos nós sentimos e não sabemos como analisar, esse escritor é Houellebecq.” De fato, “Submissão” atira-nos necessariamente para uma reflexão profunda sobre as transformações sociais, políticas e culturais que atingem a Europa no início deste novo século. Do relativismo crescente ao niilismo absoluto de que François é exemplo perfeito, passando pelo exagero de uma cultura política que, em nome do laicismo estatal, acabou por querer apagar da história europeia as suas mais fundas e importantes raízes, as da tradição judaico-cristã. Partindo de uma mescla perfeita entre ficção e realidade, Houellebecq transporta-nos para uma França em vésperas de eleições presidenciais, no futuro próximo de 2022. Marine Le Pen, candidata da Front National é a favorita, seguida de Mohammed Ben Abbas, o jovem e carismático líder da Fraternidade Muçulmana. Os tradicionais, Partido Socialista Francês e União pela Democracia Francesa, são pulverizados nas sondagens. Os franceses deixaram de se rever na amálgama ideológica em que se transformaram PSF e UDF. Um pouco por toda a França ocorrem atentados bombistas, ora efetuados por radicais islâmicos, ora por nacionalistas de extrema direita, ocultados à população por uma imprensa prenhe de preconceitos ideológicos e marcadamente favorável ao charme sedutor de Abbas, a quem apela de islamista moderado, entregando-lhe a aceitabilidade de que necessita para se eleger.

Apesar de acusado de islamófobo pela imprensa esquerdista francesa, a mesma que, no seu livro, acusa de demissão da sua obrigação de investigar e informar, Houellebecq levanta questões fundamentais para a compreensão da evolução política da Europa, a que nenhum de nós deve ficar alheio. “Submissão” Autor: Michel Houellebecq Editora: Alfaguara

É neste cenário de caos que o romance se desenrola através dos olhos de François, um professor universitário de meia idade, cujo momento alto da carreira acadêmica foi a publicação da sua tese sobre Huysmans. François é um cético. Cético em relação ao amor, às relações humanas, à sua vida universitária, ao estado social e até ao humanismo cristão. É neste niilismo interior que a história de François se confunde com a do seu ídolo literário. Como ele, também J. K. Huysmans foi, cem anos antes, um desregrado e cético intelectual, até à sua conversão ao catolicismo, quando publica a trilogia “La-bas”, “En Route” e “La Cáthedrale”. Talvez por isso, François parta de

por João Moreira

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Solange Gloria Lenzi Packer é natural de Rio dos Cedros. Morou até seus quatro anos de idade em Rio Ada. Seus pais, Walmor e Gertrudes Lenzi, ambos professores, vieram para Timbó para tentar melhorar de vida. Enquanto seu pai continuou exercendo a profissão, sua mãe decidiu ser servente e trabalhar somente meio período, para poder ter mais tempo e se dedicar à família. Afinal, eram oito filhos! Se o dom para a pintura é genético, Solange o herdou da mãe: “Éramos de uma família humilde, sem muitos recursos. Se minha mãe fosse de uma família mais rica, ela teria sido uma grande artista. Ela desenhava muito bem. Ela pintava em tecidos... Antes de casar, trabalhava na Porcelana Schmidt e fazia os desenhinhos que dão origem aos adesivos que colocam nas louças. Ela era que fazia. Uma vez ela pintou um pássaro bicando uma goiaba num tecido, colou numa madeirinha e fez um quadrinho daquilo. Achava aquilo lindo!” Solange conta que gostava de desenhar desde criança. Desenhava flores e pintava. Mais tarde, em sua adolescência, começou a pintar com lápis de cor.

Do princípio ao Principado

Solange Gloria Lenzi Packer

Se tivesse tido a chance de escolher uma faculdade, certamente teria feito artes plásticas. Mas a vida vai acontecendo e acabamos trilhando outros caminhos. Nossos sonhos de infância, de adolescência, muitas vezes, têm de ser deixados de lado... No caso da Solange, o dom que ela carrega consigo desde criança, ficou ‘em estado de dormência’. “Conheci meu primeiro marido e casei com vinte anos, aos vinte e dois já tinha meu primeiro filho, o Ismael, logo depois nasceu o Matheus. Eu trabalhava na Caixa, cuidava dos filhos e, nessa época, não desenhava mais.” Em 2004, o pai de seu filho mais novo, Enzo, e seu companheiro na época, Luiz Carlos Orsi, a incentivou a retomar a pintura. Lhe presenteou no dia das mães com duas telas, pinceis e uma caixinha com tintas. “Agora te vira! Vai procurar alguém pra te ensinar e começa a pintar!” – Foi o que ele disse. “Eu não sabia como mexia com tinta, como fazia com aquelas bisnaguinhas. Então fui fazer aula com a Dona Cornélia. Era uma hora por semana. Eu ia correndo pra casa dela, não podia pintar, só tinha que absorver o que ela dizia pra fazer em casa. Ela dizia ‘Meu Deus, coitada, ela não tem tempo, tá sempre com pressa, sempre correndo’. ” Solange gostava muito de fazer aula com a Dona Cornélia, não só pelas lições de arte, mas adorava conversar e ouvir as histórias de sua vida, de sua família e das pinturas. “Nesta época, o Enzo era pequeno e queria atenção e ficar mexendo nas tintas. Então, eu tinha que fazê-lo dormir para depois pintar. Eu começava a pintar às 11 horas da noite. ”

Quadros que pintou durante o período que fez aula com a Dona Cornélia Augusta Floriani

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Desde lá, Solange não parou mais. O que se vê pela quantidade de obras que ela tem penduradas nas paredes de sua casa e de tantas outras que acabei conhecendo através de um álbum de fotografias. Muitas já foram vendidas ou dadas de presente para amigos.

Neste workshop, foi com a sua amiga, também artista, Teresa Zimmermann. “Depois do curso, tudo que me vinha na mente era pintura. Eu falava pra Teresa: ‘não consigo dormir, só fico imaginando aquelas cores, como tenho que misturá-las...’ Voltando da viagem também, eu dizia para ela: ‘meu deus não consigo pensar em outra coisa! ’ Eu via uma fumacinha saindo da olaria e dizia: ‘ali tô vendo o branco de titânio, sombra queimada...’ Olhei outra fumacinha e já enxergava um azul. Eu só via cores! Ficava imaginando quais cores eu teria que usar para conseguir pintar aquilo! ”

Após as aulas de pintura, resolveu comprar revistas que ensinavam como pintar em tela. E foi assim que conseguiu ter um acervo para fazer sua primeira exposição, na Caixa Econômica, lugar onde trabalhava na época. Foi então convidada pelo pelo Zonadir Patrício para participar de uma exposição no SAMAE.

No curso citado, os alunos puderam usar somente as cores primárias e um pouquinho de branco. “Foi maravilhoso, porque, a partir destas cores, tu crias todas as outras!” – Disse entusiasmada. Solange também fez aula com Rosinha Imthurm, na Musicarte, e foi com quem aprendeu a fazer retratos. Mostrou um que foi encomendado por um casal de noivos, que usou o desenho para que os convidados do casamento assinassem para recordação. Eu perguntei se ela tinha dificuldade em retratar alguma parte específica do rosto, mas disse que não. E, de fato, isso nós podemos notar pelos seus retratos.

Posteriormente, realizou uma com Sérgio Negrão, intitulada “Janelas”. Ali, teve sua primeira obra vendida em exposição. Solange considera-se uma retratista. Ela precisa ver e observar para ter uma referência e poder pintar. No último fim de semana, foi para Curitiba e pôde fazer isso no workshop realizado com o artista Alexandre Reider, único artista brasileiro a ter o trabalho publicado na Revista American Artists.

Além de fazer retratos e pintar com óleo, ela gosta muito de pintar com aquarela. E já tem planos de fazer outros cursos para aprimorar esta técnica.

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“Menção honrosa em Londres” Para alguns de seus trabalhos, usou, ao invés de pincel, uma espátula. “Eu gosto da espátula, ela me dá mais leveza. Mas ainda quero aprender a soltar mais minha mão. Quero estudar bastante, praticar muito e aprender”.

Podemos ver nos olhos dessa nossa artista a felicidade em poder pintar e partilhar isso com o mundo! A escolha do desenho que irá pintar, a mistura das cores, a obra pronta na tela, a colocação da moldura, o destino que será dado para este trabalho... todas estas fases são pensadas e feitas com muito cuidado e carinho por ela.

Solange mostrou a foto de um de seus quadros. Uma joaninha. Este quadro foi exposto no Museu do Imigrante e chamou atenção das crianças que iam visitar o Museu com a escola. Foi, então, convidada para visitar um jardim de infância em que eles tiveram que reproduzir esse quadro com a joaninha. “As paredes estavam cheias de réplicas da minha joaninha!” Conta que foi desafiada a pintar algo na hora. Disse que esperava pintar uma fruta, enfim, algo mais simples. Mas as crianças estavam decididas, queriam que pintasse uma ilha! E, para ela, isso foi um desafio, pois nunca havia pintado algo desse tipo. Mas, no fim, deu tudo certo! Ela pintou a ilha e as crianças ficaram satisfeitas!

A arte é valorizada por poucas pessoas. E nem todos têm acesso a ela. Na opinião da Solange, uma obra de arte é feita para ser vista. Por isso, disse que negocia seus quadros de qualquer forma. “Vendi para muitos colegas, já troquei pinturas em troca de trabalho.

A Reuter comprou um quadro seu, feito a partir de uma foto que sua sobrinha bateu no Central Park. Ele foi colocado no Residencial Central Park, em Timbó, onde a decoração do hall foi toda baseada nesta obra. Duas de suas obras já cruzaram o oceano. Com o seu quadro “A Bailarina” participou da X Mostra Brasileira em Dubai, realizada no ano passado. E, em abril deste ano, participou de uma exposição em Londres, com sua obra “O Filho”. Esta obra lhe rendeu uma Menção Honrosa.

Veio um senhor pintar minha casa e ele ficava olhando um quadro que eu havia feito de uma índia. Ele ficava admirando esse quadro e disse que gostaria muito de poder comprá-lo. Sugeri uma troca, a pintura pela pintura! Se alguém diz que não pode comprar porque é muito caro, eu faço qualquer negócio, parcelo em várias vezes. Afinal, a arte não é para ficar guardada. ” É verdade! Teria sentido algo tão belo ficar guardado? Eu acredito que a beleza, quanto mais apreciada, vai adquirindo um certo poder. E, esse poder, criado por essa consciência coletiva, se materializa e ganha vida própria. Isso é arte! “Todos nós, sem exceção, passamos a vida à procura do segredo da vida. Pois bem: o segredo da vida reside na arte. ” Oscar Wilde Fotos e Texto por Clara Weiss Roncalio 56


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Uma vida de Luz Die Siel: Beatrice Castelani

Die Siel: Beatrice Castelani

Die Siel: Beatrice Castelani

Há no olhar de Dagmar Guenther uma serena bondade que nos ilumina o coração ao primeiro contato. Como se as velas a que dedica a sua vida a iluminassem interiormente irradiando uma espécie de luz melancólica que se vai consumindo lentamente em pequenas lágrimas. Pelo menos, assim o imagino.

e estava disposto a receber-me. Parti nesta mesma noite para a capital paulista. Ia cheia de expectativa. Imaginava uma grande fábrica, com cem funcionários, toda equipada. Quando cheguei, era um quartinho com cinco máquinas lá dentro. A verdade é que era uma baita fábrica. Eu pensei: isso eu também posso!

A Dag, como é mais conhecida, ama velas desde criança e depois de muitas idas de vindas da vida, passou a dedicar-se exclusivamente a elas, criando um pequeno enorme mundo de sonho, talhado em parafina. As suas velas são obras de arte. “Daquelas que até dá pena acender”, como lhe dizem tantos dos curiosos visitantes que procuram a sua casa em Pomerode, bem na frente da Casa do Imigrante.

Em toda a conversa, impressiona, acima de tudo, a determinação de Dagmar. A certeza do que pretendia para a sua vida e a noção exata do dom que reconhecia no seu íntimo foram sempre os fatores impulsionadores da sua perseverança. – “Eu vou fazer, eu vou fazer, eu vou fazer...” - Nessa fábrica, comprei a primeira máquina. Servia apenas para fazer velas tradicionais, que não era o que pretendia, mas tinha de começar de alguma forma. Isto em 1984. Depois acabei vendendo a máquina. Comecei a fazer uma a uma, inspirando-me nas velas que vira nas revistas de infância e em outras que imaginava. E fui fazendo, fazendo, até hoje, em que tudo está do jeito que eu queria. Pelo caminho, estudei muito, fiz muita pesquisa, visitei uma fábrica na Alemanha mais vocacionada para velas religiosas, mas onde aprendi as técnicas das velas decorativas e desde aí percebi que o meu caminho teria de ser totalmente artesanal.

- Que pena! As minhas velas são feitas para ganhar vida com a luz que dão, não para servirem de adereço num canto de sala. É a luz que irradiam quando as acendemos que as transformam em objetos verdadeiramente belos. - Sabe, isto é um Dom Divino, porque desde criança sempre gostei de velas decorativas. Via-as em revistas alemãs que tinha lá por casa. Os meus pais tinham um açougue e o sebo era vendido para Joinville para uma fábrica de velas e eu pensando, um dia vou fazer! Um dia vou fazer! – Dag vai relaxando ao ritmo da história da sua vida, derretendo o gelo inicial com o calor da luz da sua paixão.

É este cariz absolutamente genuíno que faz da Guenther Velas uma empresa especial. Cada peça é pensada, desenhada, moldada e decorada por Dag e pelo marido, que, entretanto, se apaixonou com ela pelo mundo mágico da parafina trabalhada. - Para mim, tudo vira vela! – Afirma com um sorriso aberto e contagiante. – Tudo é fonte de inspiração para novos moldes e novas decorações. Mas, o importante é o acabamento. Aí é que nós damos vida às peças. É no acabamento que colocamos a nossa inspiração.

- Aí esta vontade foi ganhando consistência. Tinha um irmão que trabalhava em São Paulo, na Volskwagen e queria regressar e eu sugeri que nos dedicássemos às velas. Ele tinha um monte de fórmulas que deixou dentro do carro e foi ao mercado. Quando regressou, tinham roubado o carro, as fórmulas, tudo! Ele desanimou e acabou ficando na Volkswagen. Eu continuei determinada: eu vou fazer, eu vou fazer... – Risos.

Revista Valeu – Quantas pessoas trabalham consigo? Dagmar Guenther – É a família. Eu, o meu marido e a enteada. Ele se apaixonou por esta arte e tem muita imaginação. Nós nos

- Um dia, o meu irmão me ligou para dizer que o pai de um colega do meu sobrinho tinha uma fábrica de velas em São Paulo 58


realizamos no amor que colocamos no nosso trabalho. A loja/casa de Dag é já uma referência turística da região. É aqui, em Pomerode Fundos, numa das mais belas estradas da região, em meio a um mar de verde rasgado pelo asfalto e decorado em ambos os lados por casas em estilo enxaimel e pequenos sítios cuidadosamente cultivados, que a Guenther Velas vende a maior parte da sua produção artesanal. Consciente da necessidade de se adaptar às exigências da modernidade, também tem um site de venda online e página no Facebook, mas Dag gosta mesmo é de receber os turistas que chegam diariamente recomendados por amigos ou pelos roteiros turísticos da região. Com um ligeiro sorriso de embaraço, Dag afirma: - Tem gente que chega e diz que diversos familiares e amigos aconselharam a visita a sua casa alertando que não visitar a Guenther Velas é não conhecer Pomerode. – Orgulho estampado no rosto sereno.

Die Siel: Ney Silva

Revista Valeu - Sendo a sua empresa uma das mais reconhecidas da cidade, tem sentido apoio dos diversos organismos públicos, no sentido de auxiliar na divulgação do seu trabalho? Dagmar Guenther – Fazemos parte dos roteiros turísticos da cidade e somos convidados para diversos eventos culturais. Para estarmos presentes. Por exemplo, no Festival Gastronômico. Estamos juntamente com a Feira do Artesanato. Pagando, claro!!!! Mas, a gente já se contenta com isso. – Afirma resignada. – A AVIP, da qual fazemos parte, tem feito um ótimo trabalho de divulgação turística e de dinamização da cidade. Melhorou muito. Sabe, se você quer resultados tem de tomar frente. Foi o que se fez aqui. Os empresários ligados ao turismo se uniram e tomaram frente. Decidiram meter mãos à obra e dinamizar o turismo e o artesanato, locais. E com ótimos resultados. Revista Valeu – Quantas velas faz por ano? Dagmar Guenther – Não faço ideia. – Risos – A gente faz, faz, faz, mas não sei quantas. Todo o dia a gente faz velas. E novidades todo o ano. Tem de ter. Sabe uma coisa, muitas pessoas compram velas para decorar. Não as acendem. Não usam. É cultural, eu acho. Revista Valeu – O ato de acender uma vela tem uma implicação na vida das pessoas? Dagmar Guenther – Sim! Sim! Revista Valeu – Qual é essa implicação? Dagmar Guenther – Dá uma paz tão grande. Uma tranquilidade tão grande. – Longa pausa reflexiva, como que imaginando esse momento tão especial de dar vida ao seu trabalho. – Por exemplo, eu acendo uma vela para tomar o meu café e nossa, flui tanta coisa boa na gente que nem sei explicar. É um ritual tão bom, tão bonito...

Die Siel: Beatrice Castelani

A conversa decorre numa sala interior do espaço comercial que Dag reserva para a venda do seu trabalho artesanal. Os temas natalícios dominam o espaço. Um pouco por todo o lado, velas de diversas dimensões e formatos, reportam-nos para a infância e para natais em família. Há neste recanto interior da loja, uma aura familiar, intimista, acolhedora. Anjos de parafina olham-nos de soslaio, dependurados numa árvore decorada com velas em formato de estrelas e pinhas. O verde e rubro predominam, por entre apontamentos de dourado e prata. Apetece sentarmo-nos à mesa, acender as velas, tomar um vinho e ouvir Sinatra cantando “Let it snow”.

Um grupo de cicloturistas acaba de estacionar as suas bikes em frente à loja e olha a vitrine. Dag apronta-se para regressar à sua paixão de mostrar aos outros a sua arte. Despedimo-nos na soleira da porta sob um ofuscante sol de inverno que inunda o Vale. - Obrigado, Dag! E que as velas continuem a iluminar o seu caminho.

Dag lê-nos o pensamento e anuncia para o fim do ano a abertura de uma nova sala dedicada em permanência ao Natal e à Páscoa, as épocas do ano em que as vendas disparam e a dedicação de meses e meses acaba por ser compensada financeiramente.

por João Moreira

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As Ciências da Terra na Idade Média (parte 3)

AO TEMPO dos nossos reis Sancho II e Afonso III e do rei de Castela e Leão, Afonso X (1221-1284), o Sábio ou o Astrólogo, a corte deste monarca foi uma autêntica academia científica no espaço mediterrâneo, tendo marcado um período excepcional no culto da sabedoria, conhecido por Renascença do século XIII. Judeus, árabes e cristãos conviveram nesta corte em absoluta harmonia e respeito pela cultura e pela ciência. Este, que também foi o imperador eleito do Sacro Império Romano - Germânico (mas que não exerceu esse cargo), realizou a primeirareforma ortográfica do castelhano, língua que adoptou oficialmente, em substituição do latim. A histórica escola detradutores de Toledo, reunindo cristãos, judeus e muçulmanos, traduziu grande parte dos textos da antiguidade clássica, obras que foram consideradas as principais responsáveis pelo renascimento científico de toda a Europamedieval.

sua qualidade de alquimista. Após concluir os seus estudos em Pádua e em Paris, Alberto optou pela vida religiosa, ingressando na Ordem de São Domingos, em 1223, tendo chegado à dignidade de Bispo deRegensburgo (Ratisbona). Do outro lado do Canal, considerado o mais admirável cientista da Idade Média, Roger Bacon (1214-1294), filósofo e alquimista inglês, foi pioneiro na estruturação do método experimental, como forma de validação do conhecimento científico. O seu papel nas ciências da Terra decorre da sua visão sobre a ciência em geral. O seu nome ficou ainda ligado à matemática (trabalhou na correcção do Calendário Juliano) e, principalmente, à óptica. Estudou em Oxford, tendo sido professor nesta Universidade, bem como na de Paris. Frade franciscano, viveu um período onde o influxo de obras escritas dos filósofos gregos, vindas através das já citadas traduções, revolucionava a vida intelectual do ocidente europeu. Bastante influenciado por estes textos, foi um dos principais europeus do seu tempo a ensinar a filosofia de Aristóteles. Colocando ênfase considerável sobre os procedimentos empíricos, lutou contra as chamadas ideias inatas. Face a esta sua acção inovadora, ficou na história com o título de Doctor Mirabilis (Doutor Admirável, em latim). Propondo novas metodologias de investigação científica, colocou em causa os métodos de ensino praticados por franciscanos e dominicanos, o que o tornou impopular perante as autoridades eclesiásticas. Consciente de que a escolástica fora concebida como uma via para conciliar a razão com a fé, não deixou de salientar as virtudes desta disciplina medieval, mas apontou-lhe os vícios, em especial os que misturavam os dogmas da Igreja com a filosofia, defendendo a separação entre a teologia e o saber científico, numa atitude coincidente com a dos comentadores árabes de Aristóteles, entre os quais, Averróis. Esta atitude de Bacon germinou mesmo no seio da Igreja e teve aí seguidores que defendiam a separação da filosofia da teologia, afirmando que esta não é uma ciência, uma vez que as suas deduções não assentam em dados concretos, observáveis e experimentáveis, mas em premissas sustentadas e, tantas vezes, impostas pela fé.

Visto como o mais ilustre professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, o dominicano alemãoAlbrecht von Bollstädt (1206-1280), ficou conhecido entre nós por Alberto, o Grande, ou Alberto Magno e, também, por Maître Aubert, ou simplesmente Maubert, o Doctor Universalis, como era citado. Tendo dedicado muito do seu tempo em domínios da alquimia e estudado a filosofia de Aristóteles e a dos filósofos árabes, produziu uma das mais importantes sínteses da cultura medieval e defendeu a coexistência pacífica da ciência e da religião, tendo sido particularmente eficaz na aplicação das ideias aristotélicas no pensamento cristão. Mas não se limitou a repetir a obra do grande filósofo. Procurou recriá-la com a sua própria experiência e as suas observações. No propósito de subordinar o aristotelismo à fé cristã, o Papa Gregório IX incumbiu Alberto dessa tarefa. Em resultado do seu trabalho, a física e a metafísica, a lógica, a ética, a psicologia e a política do estagirita[1] passaram a fazer parte da escolástica. Lembrado como o maior filósofo e teólogo europeu da Idade Média, foi também figura de grande prestígio no mundo da ciência do seu tempo, em domínios mais tarde incluídos na química e na mineralogia que realizou na 62


Na medida desta nova atitude perante o conhecimento científico, as ideias sobre a origem, a história e a natureza da Terra começam a apontar o caminho que as afastou das crenças ancestrais e as conduziu às preocupações, em primeiro lugar, dos naturalistas e, mais tarde, dos geólogos. Deve-se a Bacon a criação e divulgação do conceito de “leis da natureza”, facto importante num período em que, como se disse, estavam ocorrendo modificações no pensamento filosófico, em geral, e na filosofia natural, em particular.

Alvo de uma campanha encorajada por Roma e concretizada por partidários do franciscano e escolástico inglês,William Ockham (1285-1347), a obra escrita de Buridan foi proibida pela Igreja Católica e colocada no famigeradoIndex Librorum Prohibitorum, promulgado pelo Papa Paulo IV, em 1559, com uma versão revista e autorizada peloConcílio de Trento, em 1563. ________________________________________ [1] - Designação que era dada a Aristóteles pelo facto de ser natural à antiga cidade de Estagira (hoje Stavro), na Macedónia.

Restrições censórias e perseguições movidas pela Ordem Franciscana que, em 1272, proibiu a divulgação dos seus livros, afectaram uma parte importante da sua criatividade intelectual. Esta sua dissidência face à hierarquia e a sua actividade nas práticas alquímicas (entre outras, descobriu a combinação perfeita da pólvora) levaram-no à prisão por mais de uma década.

por A. M. Galopim de Carvalho

Fim

Contemporâneo de Bacon, o dominicano italiano Tomás de Aquino (1225-1274), distinto aluno de Alberto Magno e autor da influente obra Summa Theologica, ficou na história da filosofia e da teologia com o título de DoctorCommunis ou Doctor Angelicus. Considerado um dos principais expoentes da escolástica, foi o criador do Tomismo, a doutrina adoptada oficialmente pela Igreja Católica, que, sem deixar de valorizar o pensamento de Platão e o misticismo de Santo Agostinho, visou, sobretudo e uma vez mais, integrar o filosofia aristotélica nos textos bíblicos, criando uma outra, inspirada na fé, numa espécie de teologia científica. Não irmanado com qualquer ordem religiosa, ao invés da grande maioria dos intelectuais da Idade Média ligados quer aos franciscanos, como Bacon, quer aos dominicanos, como Tomás de Aquino, o francês Jean Buridan (c.1300-1360), reitor da Universidade de Paris, foi um clérigo e filósofo liberto das amarras impostas pela religião o que lhe permitiu o avanço em domínios da ciência que marcaram a sua obra. Como professor na mesma Universidade ao longo de uma vida, ensinou e escreveu sobre Lógica, Metafísica, Ética e Filosofia Natural numa metodologia e numa prática entendidas como seculares, isto é, distintas da teologia. Considerado o filósofo francês mais influente, no século XIV e nos dois ou três que se lhe seguiram, desenvolveu o conceito físico de impulso, dando, assim, o primeiro passo no sentido do moderno conceito de inércia, inexistente no pensamento deAristóteles.

Fotografia Jerónimo Heitor Coelho

A.M. Galopim de Carvalho

Com interesse na história do pensamento geológico, Buridan reformulou uma ideia vinda da Antiguidade, ao escrever: “Onde hoje se encontra o mar foi outrora terra e, inversamente, onde a terra firme está no presente, esteve o mar e aí voltará”. Uma outra afirmação sua, que demonstra ter compreendido a globalidade do ciclo de erosão, diz: “A erosão torna mais leves os continentes que, aplanados, tendem a erguer-se, e torna mais pesados os oceanos, pela deposição de sedimentos, que tendem a afundar-se”, o que, não obstante algum desconhecimento próprio da época, revela ter ele tido a percepção da isóstase.

A.M. Galopim de Carvalho, nasceu em Évora, em 1931. É professor catedrático jubilado pela Universidade de Lisboa, tendo assinado no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências desde 1961. É autor de 21 livros, entre científicos, pedagógicos, de divulgação científica e de ficção e memórias. Assinou mais de 200 trabalhos em revistas científicas. Como cidadão interventor, em defesa da Geologia e do património geológico, publicou mais de 150 artigos de opinião. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural, entre 1993 e 2003, tempo em que pôs de pé várias exposições e interveio em mais de 200 palestras, pelo país e no estrangeiro.

Buridan falava, ainda, de ciclos na história da Terra com 120 milhões de anos, uma ousadia face às ideias tradicionais impostas pelas Escrituras Sagradas, o que mostra que tinha a percepção da imensidão do tempo geológico. Noutro plano, dizia ele que os movimentos dos céus estão submetidos às mesmas leis dos movimentos dos corpos na Terra. Para ele havia uma única mecânica que regia todos os corpos, desde a esfera do Sol ao pião que se põe a rodopiar.

Este texto foi mantido no original, seguindo as regras da ortografia utilizada em Portugal antes da introdução do acordo ortográfico.

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Cinema Todos nós, por um motivo ou outro, temos um filme que nos marcou para sempre e que podemos definir como “O Filme da Nossa Vida”. Talvez não seja o melhor filme que vimos, nem sequer se enquadre naquilo que ousamos definir como “bom cinema”, mas por qualquer razão, é o filme de que nos recordamos com mais frequência e aquele que nos vem à cabeça quando, desafiados, nos pedem para falar sobre cinema.

“O filme das nossas vidas” pretende ser isso mesmo. Um desafio à capacidade de passarmos para o papel a magia que olhamos na tela e que nos marcou para sempre. Um estímulo à forma como interpretamos aquilo que vimos. Um olhar pessoal sobre o olhar, já por si pessoal, do realizador. A Revista Valeu lança um desafio aos seus leitores e colaboradores, para que nos enviem, para publicação, o seu olhar sobre o filme que mais os marcou, o filme a que se arriscariam a chamar o filme da sua vida.

Os filmes das Nossas vidas

Paradise Now Começo a escrever este artigo em uma terça-feira, dia oficial da semana que reservo para assistir a alguns dos filmes que estão na minha lista “must see”. Essa regra não é absoluta, mas vejam bem: segundas e quartas são reservadas ao futebol, quinta é a nova sexta, e sexta... bem, é sexta! Quanto ao final de semana, este não comporta regras ou rotina pré-definida, motivo pelo qual ele muitas vezes acaba dividindo a agenda cinematográfica recente de minha vida com as terças-feiras. O filme de hoje era italiano: Almas Negras, uma espécie de tragédia grega que conta a história de três irmãos envolvidos direta ou indiretamente com a máfia calabresa, a “Ndrangheta”. Ótimo filme. Desde já fica a dica ao colega leitor. Entretanto, devo adiantar que este não é o filme objeto deste artigo. Mas ele, assim como boa parte dos filmes a que assisti nos últimos anos, possui ligação direta com a película protagonista deste artigo: o palestino “Paradise Now”, que aborda a guerra entre Palestina e Israel. O ano era 2007, eu já havia compartilhado com o mundo 17 anos e, por algum motivo, ou mais provavelmente pela falta de um, acabei ficando em casa naquela sexta-feira à noite, quando, passeando pelos canais da televisão, acabei esbarrando em um filme transmitido pela TV Cultura. O filme era diferente da grande maioria a que eu costumava assistir, mesmo assim conseguiu conquistar minha atenção rapidamente. Não apenas o idioma, as cidades e a cultura abordados que eram diferentes; eu logo percebi que estava diante de um estilo e conceito diferentes de filme. E isso é curioso, pois de uma maneira geral, o ser humano é criado para não dar atenção e chances ao que julga ser diferente.

Suha segue até uma oficina mecânica onde trabalham os protagonistas do filme, os amigos de infância Said e Khaled. Em poucos minutos de filme vemos Khaled discutir com um cliente da oficina (e consequentemente com seu patrão), enquanto Said e Suha desenvolvem uma atração mútua. Finalizando a sequencia, Said e Khaled tomam chá e conversam de forma descontraída em um morro com a cidade ao fundo.

O filme inicia com Suha, francesa de origem palestina, chegando à cidade de Nablus, fronteira com Israel. Bloqueios militares, prédios destruídos e olhares desconfiados logo deixam claro que, naquela região, a fronteira parece se materializar para além de uma mera delimitação geográfica.

Desentendimentos, romance e amizade; nada diferente do nosso viver ocidental. Entretanto, durante o retorno do trabalho para sua casa, Said, que carrega uma certa tristeza no olhar durante todo o filme, é abordado por um conhecido chamado Jamal, e logo somos levados a conhecer melhor a vida e os dilemas daquelas pessoas. 64


cinema

Título: Paradise Now Diretor: Hany Abu-Assad País: França e Palestina Ano: 2005

O secular conflito Palestina x Israel de repente se torna plano de fundo perante o conflito interno dos protagonistas. E não se engane “Paradise Now” não busca legitimar a causa palestina ou as motivações de um homem-bomba. Apenas as expõe.

Durante a conversa, Jamal informa que uma operação em resposta ao assassinato de um palestino havia sido programada para o dia seguinte, e que Said e Khaled foram escolhidos para a missão. Said aceita a convocação, afinal, ele quer que seja feita a vontade de Allah. Apesar de se dizer feliz com a convocação, Said não transparece essa felicidade. Poderia seu Deus saber mais sobre essa tímida felicidade?

Hoje, eu entendo porque aqueles obstáculos de ordem etnocêntrica e pragmática em relação ao filme foram facilmente superados: o filme toca de forma belíssima e profunda em um tema que a mídia e os políticos insistem em polarizar como sendo bem e mal, preto e branco, mas que a arte nos ensina (ou relembra) ser algo devastadoramente humano.

A partir desse momento, acompanhamos a preparação dos protagonistas para a operação, e não sabemos mais, dentro dessa experiência única que o cinema cria o que sentir em relação a Said e Khaled. Gerar essa inquietação no espectador é certamente o grande objetivo (e trunfo) do diretor Hany Abu-Assad.

Os noticiários mostram terroristas, a arte nos apresenta Saids e Khaleds.

No decorrer do filme, é discutido o valor do ato suicida para ambos os jovens, no qual visões vão sendo confrontadas, para então serem justificadas ou alteradas. E nesse ponto, Suha, que descobrimos ser filha de um famoso mártir palestino, assume um papel importante ao representar um fator novo na vida de Said e Khaled.

Assim como o amigo João escreveu no primeiro artigo desta série, “Paradise Now” não é o melhor filme que eu já vi. Mas ele marca um momento importante na minha relação com o cinema. Ele representa uma ruptura etnocêntrica não só em relação ao tema abordado no filme, mas de toda minha relação com a sétima arte.

“Só escolhemos a amargura quando a alternativa é ainda mais amarga”, diz Khaled, enquanto do outro lado, Suha afirma preferir ter um pai vivo a um pai-herói morto.

Por Leo Victor Koprowski

Honra, amor, convicções religiosas e familiares. 65


Qual a trilha sonora da sua vida? Parte 2 – Primo Piato Agora, pontualmente 1:30 da madrugada do dia 29 de julho. Segunda parte. Não imaginei se quer que a primeira estaria lá, mas de forma feliz planejei a segunda parte. É um processo de introspecção e extrospecção regado a bons goles de café moído e coado na hora, durante um dia frio de inverno, em uma sala olhando através da grande janela as imagens no infinito, reproduzindo fagulhas do pensamento. Bem... esta é uma linda imagem, mas, muito pelo contrário e em um gigantesco NÃO, eu solicito que o tempo pare, ou que quanticamente o tempo se altere, pois, estando em 29 de julho 1:32 da madrugada, estou 9 dias atrasado para a entrega. Sim, foi mais ou menos isto que a cordialidade do nosso editor português, o João, me falou quando entrei no bistrô nesta noite, através das entrelinhas da mensagem subliminar. Não disse um longo e amistoso Olá, mas sim apenas Cadê meu texto? Mal sabe ele que me deu um grande presente, pois também de forma cordial me apresenta que tenho pouco tempo para entregar. Mas convenhamos, leitor, tempo é algo que fazemos e 1 segundo pode ser uma eternidade, basta a forma como percebemos! Então, se tenho no mínimo 60 segundos, tenho quase a eternidade para concluir! Como diz o outro, que deve ser um senhor muito sábio, antes tarde do que mais tarde! Volto momentos depois para casa. Faço um bom café moído e coado na hora (já notastes que sou apreciador desta bebida) com o óbvio pretexto de que o seu aroma invada todos os cantos do apartamento. Entro no estúdio e me posiciono focado em frente ao monitor do computador, sendo esta a única luz no ambiente, coloco as mãos no teclado para escrever, paro e reflito: Qual a trilha sonora da sua vida... qual a trilha sonoro... qual a... qual... bem... o leitor se recorda do acordo que fizemos ao final do texto anterior? Vou lhe ajudar a recordar: Confortavelmente, arrume-se na cadeira, banco ou onde quer que esteja e leia de mente aberta e de forma despretensiosa os próximos capítulos desta história. Apenas permita-se, perceba-te e olhe ao seu redor. Feche os olhos por um instante e escute. Ela está com você neste exato momento, quando lê atentamente cada palavra deste texto. Perceba os sons que chegam aos seus ouvidos. Exatamente 1:37 da madrugada estou pensando nisto. Fecho os meus olhos, fico confortavelmente sentado e escuto. Por vezes faço isto e toda vez o mesmo lugar é reconhecível, mas diferente. Isto é mágico, pois pelo automático que o cérebro nos coloca a trabalhar nas horas que estamos acordados, não nos damos conta dos sons que estão ao nosso redor. Reconhecemos o ambiente, mas algo faz dele sempre um pouco diferente. O som da rua vazia, o som do apartamento em silencio, sim, já parou para notar quão ensurdecedor é o silêncio? Tratarei deste assunto em outro momento, mas neste, o som da noite escura, o som da queda d´água ao fundo, o som do computador ligado, o som do ar na respiração, o som do coração batendo. Esta é a minha trilha sonora deste exato momento nesta madrugada. Estamos diariamente envoltos em trilhas sonoras magníficas. Vá até uma cozinha, feche os olhos e perceba o tilintar dos talheres, o cortar e cozer dos alimentos, as pessoas passando.

Sinfonia n. 9 em Re menor, Ludwig Van Beethoven, 1824

Entrance, Philips Glass, Minimalismo Clássico, 1993

Concerto para Piano n. 1 em Mi menor Op. 11 (Movimento 2), Chopin, 1830

Art of Motion, Andee Mckee, Fingerstyle Progressivo, 2005

Whiplash, Don Ellis, Jazz, 1973 The Wall, Pink Floyd, Rock, 1979 Gabriel´s Oboe, Ennio Morricone, Trilha Sonora, 1986 Always With Me, Always With You, Joey Satriani, Rock Instrumental, 1987

Greenhouse, Rob McConnell & The Boss Brass With Phil Woods, Jazz, 2010 Please Hang Up, Mark Guilliana, Electronica Experimental, 2013

Esteja no carro com destino para lugar algum e perceba o som da roda conversando com o chão, as chaves pulando no console, o abafado do som da rua, o som da mão em massagem no volante. Esteja em um jardim e perceba o som do andar na grama, do vento no rosto, dos pássaros nos galhos ou em voos tranquilos ao céu. Quer trilha sonora melhor para uma mãe que o som do choro de vida de um bebê em seus primeiros segundos no mundo exterior? Sim, para cada um de nós existe um som que nos remete para lembranças, que nos foca no presente e que nos projeta para o futuro. Isto tudo é fora, no ambiente externo, para aquilo que está além de você. Mas, e dentro de nós? Bem... Me coloco a imaginar como não era o mundo interno de Ludwig van Beethoven que, mesmo surdo, criava obras grandiosas em sua mente e as transportava através das mãos para a partitura. A Nona Sinfonia, foi um exemplo, criada pouco antes da sua morte e declarada patrimônio mundial. Dentro de cada um de nós também há uma trilha sonora. Todos magníficos compositores. Uma sinfonia de notas que constrói a música da nossa vida interior. Faça um exercício simples e pense na palavra TELEFONE. Perceba o som do seu pensamento. Sim, podes não perceber, mas você fala em pensamento, você grita, canta, indaga, reclama, deseja... tudo em voz alta sem que ninguém saiba ou consiga ouvir. Desta forma, criamos aos poucos as trilhas sonoras de cada momento em nossas vidas, que são como o primo piato para percepção que nos chama ao momento presente. Convido você então para deliciar conosco este primo piato..., mas e agora, 2:45 da madrugada, como tudo isto termina? Bem... comecei este texto com uma letra e termino com um. por Esdras Floriani Holderbaum Sugestão Musical: (Nome da Música, compositor, estilo e ano 66 de criação)


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Estilo Atitude

MODA

AMORETTO Relojoaria & Acess贸rios Bolsas & Cal莽ados

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Editorial de Moda Beto Barreto A marca Knoten Jeans é o carro chefe deste editorial de moda. É o lançamento da coleção Primavera/Verão.

ficha técnica: Direção Geral: Beto Barreto Produção de Moda: Amanda Bona Luef Modelo Aline NE Models - www.nemodels.com.br Modelos Gustavo, Humberto, Édina e Lucas Agência Nova Estrela www.agencianovaestrela.com.br Acessórios Tábata Sabel e Magga Bee Acessórios Calçados: Dikruger Planeta Flores Make e Hair Clínica de Estética & Spa Belle Corp - Thiago Abreu Bittencourt Fotos: Chlôe Fotografia Criativa Micheli Vizenci e Eduardo Godri

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fotografia Carlos Alberto Lobe

Escritos insensatos Para esta menina, como uma flor.

“Mas queria que você entendesse os meus poços escuros, os meus becos — que me fazem mergulhar em silêncios às vezes longos.” (Caio Fernando Abreu)

Caetano. Do primeiro orgasmo diante do furo. De outros inevitáveis orgasmos diante de boas e bombásticas matérias. Nostálgica, folheei meus velhos textos como quem toca relíquias. Reli meus preferidos numa insana fuga para fora do silêncio, onde tudo é barulho e vida, incoerente e até perversa, mas ali, exatamente ali, eu pulsava. Eis que o imponderável, ah, o imponderável muda rapidamente o curso de nossas vidas. Carlos Henrique, amigo do “bom combate” que tantas vezes comemorou comigo o velho e bom Jornalismo, me faz um convite. Voltar a escrever. Naquela tarde chuvosa um encontro foi marcado às pressas em uma confeitaria ao lado da minha casa. Carlos chegou acompanhado do “portuga” João, de quem até aquele momento eu só conhecia a pena talentosa. Ambos, naquela tarde de julho, foram tão delicados ao falar sobre meu trabalho. Estava tentada a retomar a lida que era tecer a fina trama da vida em linhas.

Faz quase um ano que mergulhei em um silêncio profundo e úmido, onde eu, dia após dia, aninhava minha dor e minha saudade. Foi assim de repente que decidi ver a vida sem você. Mas antes teria que perder-me de mim, ser outra coisa, diluir-me, apagar-me, até que não restasse nada mais, nenhuma pista, rastro, atalho, que me reconduzisse ao nosso velho caminho. Fui ao mais fundo dos meus poços, como diria Caio Fernando, para perder a identidade. Desacostumar do ritmo emocional que eu usei por 24 anos para teclar-te em letras, às vezes numa batida vigorosa, outras, com mais cuidado e tempo para longas pausas antes de iniciar uma nova frase. Tentei te abandonar, Jornalismo. Ir pra rua e ver tudo com outros olhos expressamente proibidos de traduzir a vida em linhas. Ignorar tudo o que antes renderia excelentes histórias para compartilhar com gente. Ignorar gente: criança, jovem, adulta, elegante, exótica, enferma, irreverente, irrelevante, pobre, igual, milhões de. Ignorar-me.

Ainda meio que perdida entre estes dois mundos - o do meu silêncio e aquele onde o barulho de vida quase me ensurdece, aceitei a empreitada. Estou novamente flertando com o Jornalismo, com a certeza de que ele fatalmente me seduzirá. Voltei a pulsar, empolgada com a valiosa troca de ideias com gente bacana, ousada, que não se conformou até colocar em prática um projeto tão puro e pródigo em divulgar o que é bom, o que é rico em cultura no inóspito cenário de trágicas notícias diárias.

Usei de tudo: Regressão de memória, livros de autoajuda, musculação, artesanato, reza braba, rivotril. E ainda assim, em madrugadas insones, te sentia caminhando em uma zona remota dentro dessa coisa que era eu. Passeando como gato em muros íntimos até encontrar um lugar onde passava horas/dias/meses a me encarar.

Obrigada, Carlos Henrique, João e toda troupe da Revista, que sopraram ventos de possibilidades para este reencontro. Valeu! por Viviane Roussenq

Lembrei do começo. Da moça com cabelo desgrenhado que fazia matérias de comportamento, da primeira entrevista com 76


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Ao mesmo tempo em que estão rindo, cutucando, eles discutem muito. Há um espírito crítico saudável entre o grupo. “Todo dia há algum tipo de discussão”, comenta Natele. Ela diz que gosta da conversa olho no olho (e todos caem na risada). “Eu e o Jão, por exemplo, a gente se olha no olho e conversa, é isso é aquilo, e ponto. Estamos, às vezes, tão afinados que nem discutimos, nós nos olhamos e pronto. Porque com o tempo aprendemos a conversar pelo olhar”, reflete Natele.

Entre sinos e pensamento coletivo O sino dos ventos, pendurado no portão, anuncia a chegada de alguém. Na morada, no fim da rua Desembargador Pedro Silva, no bairro Victor Konder, em Blumenau, as ervas aromáticas, as árvores de frutas e flores ao redor da casa prenunciam que ali há um lar. Os penduricalhos artísticos, dispostos no jardim, revelam que a família que ali habita é criativa. Na chegada, mesa farta. Cuca de banana, salada de tomate, ovo mexido, tapioca, pão, café fresco e amor. A alegria com que os moradores da casa conversam e ao mesmo tempo “tiram onda” um do outro desperta interesse. Na mesa: Ana Acácia Schwarz Schuler, 25 anos, atriz; Fernanda Raupp, 25 anos, atriz e cantora; Natele Petersen, 22 anos, artesã; Jão Nogueira, 21 anos, dançarino e ator e Sidney Dietrich, 25 anos, ator. Com exceção de Fernanda, que nasceu em Sombrio (SC), os demais moradores da casa são de Blumenau e todos eles atuam como produtores culturais. Os cinco integrantes moram juntos há alguns anos. Segundo Fernanda, a ideia de morar em coletivo surgiu com a necessidade de se ter um espaço para os ensaios da Trupe Perambula (grupo de teatro e de ações culturais da qual os cinco fazem parte) e que conforme foi passando o tempo houve a necessidade de se ter um lugar maior. “Aqui é o espaço da Trupe Perambula, as pessoas vão e as pessoas vêm. Recebemos artistas de outros locais do País e de fora também. Outras pessoas moraram conosco. Mas esse grupo de pessoas agora, no caso, nós cinco, moramos juntos nesta casa há três anos”, afirma a atriz. Morar em coletivo, segundo os integrantes da casa, é pensar em coletivo, é aprender a dividir, a compartilhar. “Ao mesmo tempo em que às vezes é difícil morar junto, eu fico pensando que não trocaria essa experiência por nada. Por exemplo, quando estou doente todo mundo me ajuda. Um se oferece para fazer o chá, outro a comida e outro o carinho. Por mais que eu tenha isso na casa dos meus pais, não é a mesma coisa. Ah! A gente teve uma ideia, todo mundo vai se ajudar e amanhã essa ideia vai estar pronta. Ah, vamos fazer um café da manhã no jardim e acordar todos para tomarmos café juntos e contemplar o sol da manhã. Há uma felicidade escondida, ou melhor, descoberta, nessas pequenas situações do cotidiano”, diz Ana Acácia.

“A gente resolve muito rápido as brigas, porque a gente conversa, dialoga. Não existe meia briga, a gente vai até o fim, porque sabe que isso é necessário para o bom relacionamento de todos”, enfatiza Sidney. Cada integrante do coletivo morava com os pais, mas passavam tanto tempo juntos que resolveram morar na mesma casa, no mesmo espaço. O imóvel é alugado e todas as mudanças físicas do local são sempre bem conversadas com a senhora Ruht Ertle, dona da casa. Com o tempo o ambiente foi se remodelando de acordo com a personalidade de cada um. Cada quarto, cada canto, possui a identidade individual dos moradores, mas, quando observado de longe, percebese que os gostos, os estilos se fundem e confundem, como se fossem um só. O gato Malabares, amigo de estimação do coletivo, observa toda a movimentação e recebe afagos generosos enquanto eles conversam, entram e saem da morada. “A relação com os nossos pais é muito boa. As mães de todos vêm aqui. Elas ajudam muito a gente. Em cada evento todas pegam junto. O pai do Sidney, por exemplo, o senhor Edmundo, é quem conserta tudo aqui em casa. É o nosso anjo”, diz Jão. O coletivo resolveu em uma das reuniões elaborar festas alternativas, sarais, cinema em casa, e angariar fundos para ajudar nas despesas da casa e da Trupe também. “Nós pensamos que é importante tomar o café da manhã juntos, que é importante construirmos algo juntos. Se autogerir. A nossa casa, nossa relação, e os nossos eventos, são tudo em função do coletivo, mas sabemos que para o coletivo funcionar eu como pessoa, cada um de nós precisa estar bem também”, divaga Fernanda. O gosto musical, literário ou de alimento não interfere na relação, ao contrário, agrega conhecimento e novas experiências. “O que é muito forte no coletivo é esse sentimento de se doar e de aprender a receber. Há sempre uma evolução”, completa Ana Acácia.

Uma vez por semana o grupo faz reunião de produção (da Trupe Perambula) e de quinze em quinze dias reuniões sobre a manutenção da casa (lista de limpeza, quem ficará responsável pelo quê), ou simplesmente para colocar a conversa em dia. Os perfis de cada um se complementam, conforme Fernanda, um é bom para uma determinada situação e o outro resolve com maior facilidade outra. “A gente acordou que o coletivo está em primeiro lugar. Sinto que todos querem se tornar pessoas melhores, é algo sobre evoluir como pessoa, como grupo, e todos estão na mesma sintonia em relação a isso”, acrescenta.

Com os eventos, com os afazeres de cada um e com o pensamento coletivo eles gostariam de ampliar o espaço de trabalho. Gostariam de morar juntos para toda a vida. Sentem-se completos e divertidos, pois sabem que criaram um alicerce e têm a plena noção de que estão em evolução, em mutação. Que escolheram um modo de vida diferente. Que estão aprendendo a se autogerir. Que se precisar podem partir a qualquer hora, mas que no momento a vontade é de ficar e de construir algo juntos. Comprar um terreno, uma casa, uma caixa preta para ensaios, poder trabalhar somente com a arte, poder tomar café da manhã todo dia juntos e vibrar com sino do portão quando ele anuncia a chegada de novas pessoas e de boas energias.

Os cinco artistas se dividem na lista de tarefas, mas nada é absoluto. “Quando a gente vê que um de nós está muito atarefado a gente substitui ele nas tarefas domésticas”, diz Ana Acácia. “A nossa relação é de quase uma família de sangue, a gente pode se xingar, porque às vezes está todo mundo na loucura, por conta do trabalho, mas logo se perdoa ou dá um jeito de se abraçar, fazer rir, porque no fundo a gente se respeita muito. Existe amor, sabe”, complementa o dançarino Jão.

fotos: Luís Carlos Kriewall Filho Cartola: Viver Por Nane Pereira

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A versão lateral da história Conheça a vida de Victória e descubra: você pode estar escrevendo a história sem saber

faculdade tinha problemas e a gente queria conversar com ele, mas ele não nos dava atenção”, lembrou. Victória procurou a amiga Maria da Graça Assis e foi logo tratando do plano: “Vamos tirar esse homem daí. Vamos fazer uma chapa”. O diretor soube da intenção da aluna amotinada e reagiu. “Quando soube que eu era candidata, ele disse que eu não precisava ir mais pra faculdade. Alegou que não tinha realizado uns exames para reabilitar minha matrícula. Mas eu já estava há mais de um mês na faculdade”.

A história não é feita apenas por pessoas cujos nomes reluzem nos livros. Em todo feito, há incontáveis personagens invisíveis, numa participação na maioria das vezes nem cogitada. Em Forrest Gump, Winston Groom brincou com essa verdade. As próximas linhas contam como Victória foi uma dessas pessoas que, mesmo sem querer, interferiu colateralmente na trama da história que impactou a expansão e consolidação da maior universidade catarinense. Não perca tempo: o evento não aparece nos livros que contam o enredo da instituição. Fazem parte apenas das lembranças dessa senhora octogenária que preserva muito da energia de seus 18. O cabelo caqui e a tatuagem no braço já dão alguma ideia ao leitor.

O que não esperava o diretor – residente em Joinville e por isso menos presente na faculdade do que devia – era que Victória tinha contatos. “Passei a mão no telefone. Meu primo era o Ernani Bayer, futuro reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Naquele mesmo momento ele estava com o presidente do Conselho Estadual de Educação, Professor Clóvis de Souto Goulart”. A rede de aliados da aluna-diretora era maior do que poderia prever Sessim. Quando foi ao encontro agendado pelo primo com o presidente do Conselho e o próprio diretor, ela descobriu que a maior autoridade do ensino superior era nada menos do que seu parceiro de dança nos anos de escola em Florianópolis. “A pedido dele, retirei minha candidatura. Mas em seguida, conseguimos tirar o homem da direção. E botamos o Dr. Villela”. Ela se refere ao médico Edison Villela, então apenas professor instituição, que acabaria sendo designado diretor da Faculdade, posteriormente alçado a reitor, cargo que ocupou até 2002. Foi durante sua gestão que a instituição conquistou, em 1989, o status de universidade, expandindo-se depois rapidamente pelo Litoral Centro-Norte do Estado e se firmando como maior universidade comunitária de Santa Catarina, com mais de 30 mil alunos. Moral da história: sem a rebeldia de Victória, o que seria de Villela e da universidade que se agigantou sob sua gestão?

Era 1971, a instituição itajaiense que é hoje a Universidade do Vale do Itajaí já existia havia sete anos e Victória Tarsila da Índia Büchelle Fernandes Schauffert voltara a estudar no curso de história. Havia trancado a matrícula durante cinco anos, período em que o marido Osny recuperou-se de dois infartos e uma grave queimadura com maçarico. À época, já era senhora feita, mãe de um casal, diretora de escola no bairro Fazenda. Antes mesmo, em 1964, quando professores e profissionais liberais assanharam-se com a ideia de criar uma instituição de ensino superior na cidade, lá estava Victória participando das reuniões que culminariam na constituição da Sociedade Itajaiense de Ensino Superior, embrião da futura universidade. De volta ao curso, a então aluna entrou em rota de choque com o diretor do que já se chamava Faculdade de Filosofia. “O diretor era o Antônio Sessim. Era um homem mal-encarado. A 80


O episódio não presta só para defender a tese de como qualquer pessoa pode ser mais decisiva do que imagina no desdobrar do tempo. O caso retrata a personalidade diferenciada dessa senhora que aprendeu a viver à frente de seu tempo. Se servir de prova, ela foi pioneira no uso do biquíni em praias itajaienses. Era 1963. A sogra ficou horrorizada, mas o traje era presente do próprio marido, que, embora “dentista por necessidade”, preferia ser artista e, por isso, seu gosto destoava do conservadorismo da Itajaí daqueles anos. Não hesitou em trazer a novidade de São Paulo, uma versão mais comportada da peça popularizada por Brigitte Bardot.

Por isso, depois que casou com Osny, os impulsos de autonomia ficaram subordinados às convenções do casamento. Quando participou das discussões para a fundação do ensino superior em Itajaí, em reuniões informais na casa de lideranças, como a do advogado José Medeiros de Oliveira, diretor do Ginásio Nereu Ramos, chegou a se animar com a perspectiva de ingressar no curso de direito. Mas Osny foi logo tratando de desencorajá-la. “Direito é curso de homem”, decretou. Victória, que crescera à sombra de perdas e do sentimento de rejeição, engoliu a vontade e obedeceu. “Não era uma pessoa anulada. Eu era cordata. Mas eu era feliz. Nunca briguei. Gostava muito dele e concordava”.

Mas, antes mesmo disso, aos 16, quando sequer tinha encerrado o curso de normalista (o equivalente ao ensino médio profissionalizante), a ousadia da moça tijuquense já soaria incomum quando comparada à das jovens de hoje. No dia em que a mãe, também professora, pediu licença médica para recuperar-se de doença, a filha candidatou-se à vaga no Grupo Escolar Dias Velho, na capital. Num tempo em que a ocupação desses cargos era uma prerrogativa de políticos, lá foi Victória atrás de uma indicação. “Eu era muito amiga das filhas do Celso Ramos, irmão do ex-governador Nereu Ramos (presidente do Brasil por dois meses), a Maria Helena e a Vilma. Fui lá e pedi o cartão”. Antes de atender a intercessão das filhas, o também ex-governador e herdeiro de um dos clãs mais influentes da política nacional sabatinou a jovem postulante ao cargo. O sobrenome a denunciou. Ela era parente de Tico Fernandes, não alinhado à UDN. O protesto das filhas não adiantou. Victória saiu da casa dos Ramos sem o cartão. Mas não se conformou. Botou na cabeça que conversaria com o governador. “Todo mundo dizia que ele gostava de moça bonita. Não me achava nem bonita, mas eu era moça”, lembrou, risonha. “Você é doida”, repetia a mãe.

A convivência acadêmica, porém, teve efeitos colaterais. Separou-se em 1984. “Não vou dizer que minha separação começou ali (na universidade), mas abriu uma frente de pensamento de que eu podia, sozinha, fazer alguma coisa. Podia ter minha independência intelectual, porque financeira eu já tinha. Passei a ser a Victória que sou hoje”. Um ano depois, vingou-se. Foi fazer direito. Graduou-se em 1989, aos 59 anos. E depois quis mais: completou o curso de magistratura, mas descobriu que não tinha perfil para o ofício. Foi professora na Univali e assessora de reitores até aposentar-se, há dez anos. Ao completar 80 anos, mais um gesto de inconformidade com o tempo. Junto com as netas, tatuou o braço: o símbolo do infinito - um oito deitado. Quem a vê hoje caminhar pelo calçadão da Avenida Atlântica, em Balneário Camboriú, pode achar que é uma homenagem à oitava década de vida. Talvez também. Mas, para Victória, é o emblema de que a vida se faz no hoje. Não casou mais, porém não abdicou do amor. Namora há 31 anos, uma relação da qual tira boa parte da motivação para viver seus 85 anos com entusiasmo juvenil. “Não choro o passado nem visualizo o futuro”. Das coisas que fez na vida, não espera ser citada pelo episódio que abriu caminho para a gestão de Villela. Guarda apenas uma expectativa fundamental. “Quero ser lembrada pela minha alegria, pela minha educação no trato com as pessoas. Espero ter dados bons exemplos disso”. Como aos oito anos, Victória deseja ainda ser querida por todos.

Victória soube que uma amiga da tia era secretária de José Boabaid, que assumiu o governo do Estado entre 1948 e 1950, após afastamento de Aderbal Ramos da Silva por problemas de saúde. Dona Mariazinha, solícita, providenciou uma audiência no dia seguinte, coisa impensável na agenda de chefes do Executivo nos dias de hoje. “Ele era um homem peludo, assustador”, conta. O governador ouviu o pedido e a queixa sobre a recusa de Celso Ramos. Depois chamou o diretor do Departamento de Educação, certificou-se da vaga e sentenciou: “A vaga é da aluna Victória”. O diretor, Epídio Barbosa, chegou a retrucar que ela não teria habilitação, mas o governador lembrou o requisito supremo: a indicação era dele. A benesse do governador não ficaria ali. Na formatura como normalista, para a surpresa de suas colegas, Dr. Boabaid foi paraninfo da turma. Pagou viagem com hotel para todas em Curitiba.

por Luiz Garcia

Tanta desenvoltura talvez seja herança de uma vida de ausências na primeira infância. Com a morte do pai nos anos 30, a mãe viúva se viu obrigada a morar com a irmã, que já tinha seus quatro filhos. A pequena Victória, com apenas oitos anos, virou aluna de internatos. Primeiro em Tijucas, depois Blumenau e Florianópolis. “Eu ficava interna porque seria ponto de discórdia na casa de minha tia. Hoje entendo, mas na época me revoltava”. Logo, o sonho de Victória à medida que crescia era realizar o que a vida lhe privara até então: ter sua casa, casar e constituir uma família. “Não lembro se me sentia rejeitada, mas me lembro que trabalhava para agradar as pessoas. Eu era sempre a preferida, porque eu me esforçava em ser querida”, recorda.

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O Hospital Oase, em breve, serรก um orgulho para o povo timboense

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Onde já estivemos:

Onde estamos:

Hospital de Penha Hospital de São Francisco do Sul UPA 24 São Francisco do Sul Hospital de Gaspar Hospital Beatriz Ramos de Indaial

Hospital Oase de Timbó Com atendimento estendido a Dr. Pedrinho, Benedito Novo. Rodeio, Rio dos Cedros.

Policlínica de Timbó com especialidades: Ortopedia, cirurgia geral, anestesiologia, otorrino e ginecologia. UPA de Bombinhas (clínica geral de pronto socorro, laboratório, exames e especialidades) Schroeder (consultas de especialidades, cirurgias e exames) Joinvillle (clínica geral de pronto socorro, exames, consultas de especialidades e cirurgias em ortopedia) Canoinhas (clinica geral de pronto socorro e laboratório) Três Barras (clinica geral de pronto socorro e laboratório) Papanduva (clinica geral de pronto socorro e laboratório) Bela Vista do Toldo (clínica geral de pronto socorro e laboratório) Araquari (clínica geral de pronto socorro, exames de especialidades e cirurgias) Barra Velha (clínica geral de pronto socorro e laboratório) Indaial SAIS – atendimento estendido entre 18 e 22 horas (clínica geral) Indaial – Hospital Beatriz Ramos (clínica geral de Pronto Socorro)

Estamos diretamente e indiretamente em mais de 60 Municípios Catarinenses. Temos um corpo clínico com mais de 400 médicos entre clínica geral e especialistas.

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Formação de professores finlandeses Tudo começou com o sonho em ingressar no Mestrado em Educação da Universidade Regional de Blumenau. Discussões prévias em grupos de pesquisa do Mestrado possibilitaram conhecer um pouco os diferentes contextos educacionais ao redor do mundo. Esses momentos trouxeram inúmeras perguntas a respeito da educação do nosso país e de outros.

No contexto da educação finlandesa, as reformas educacionais permeadas pela autonomia na tomada de decisões, bem como nas transformações das estruturas institucionais, administrativas e políticas, abrangeu mudanças significativas em todo o sistema de ensino do País. Estas transformações incluíram mudanças significativas nas estruturas da formação de professores; que passou de um sistema centralizado para um sistema descentralizado; aumentando o poder dos agentes educativos locais; e o estabelecimento de um sistema de ensino que capacita integralmente escolas e professores.

Foi perceptível o quanto existem avanços neste campo, principalmente a respeito da realidade finlandesa. A Finlândia é um país nórdico, situado ao norte da Europa e que faz fronteira com a Suécia, a Noruega e a Rússia. Considerado um país superdesenvolvido economicamente em que se atinge um dos melhores níveis de renda e de qualidade de vida no mundo. Para alcançar esse patamar econômico e o reconhecimento de seu sistema educacional, a Finlândia passou por inúmeras reformas no sistema político, permeadas por guerras de conquistas de territórios.

A partir das avaliações trienais de desempenho dos alunos em países convidados e membros do OCDE, o PISA tem enfatizado as áreas de Matemática, Literatura e Ciências, onde, verifica-se, ano após ano, o bom desempenho dos estudantes finlandeses, bem como de outros países participantes. Foi a partir dos resultados obtidos pela Finlândia nos anos de 2000, 2003, 2006, 2009, que nos questionamos como se dá o processo de formação inicial de professores no referido país. Em 2000, o foco foi em Literatura; 2003 em Matemática; 2006 em Ciências e 2009, novamente, em Literatura. No ano de 2003, quando a avaliação contemplou como foco a Matemática, os alunos finlandeses pontuaram 544 e assim assumiram o primeiro lugar a nível mundial. Além disso, os resultados dos anos anteriores e posteriores também foram satisfatórios em todas as temáticas das avaliações. Em 2012, a pontuação da Finlândia caiu um pouco, com uma média em torno de 518,8. Este último resultado não abalou os pesquisadores e a mídia, interessados em saber sobre a formação de seus professores. Foi a partir desse ranking que a mídia ao redor do mundo passou a olhar atentamente à Finlândia, a fim de compreender como ocorrem os processos de ensino e aprendizagem dos estudantes e, principalmente, como acontece a formação desses professores.

Em 1970, com a criação de um sistema de ensino obrigatório de nove anos, as reformas educacionais começaram a acontecer, bem como o replanejamento do currículo a nível nacional. Viu-se que era preciso igualar esse sistema, democratizar e oferecer um sistema de ensino gratuito a todos os finlandeses. A formação de professores nesta época era realizada em colégios profissionais ou Seminários, com uma duração de até três anos. No ano de 1971, a formação de professores passou a nível universitário, e somente em 1979 evoluiu para mestrado, com uma exceção aos professores de jardim de infância. Portanto, nos dias de hoje, a formação de professores na Finlândia é composta por três anos, com ênfase nos conteúdos pedagógicos e mais dois anos referentes ao mestrado, totalizando, portanto, cinco anos para a conclusão da formação inicial do professor. Depois de finalizar o curso, os professores, em sua maioria, continuam em contato com a universidade, envolvidos em projetos e pesquisas, auxiliando os que estão em fase de formação. A formação de professores na Finlândia está alinhada ao Espaço Europeu do Ensino Superior que tem sido desenvolvida pelo Tratado de Bolonha.

Isso chamou a atenção, trouxe novas indagações e um anseio maior em pesquisar sobre a formação de professores finlandeses. Diante da trajetória acadêmica e profissional e, considerando discussões prévias feitas no grupo de pesquisa “Formação e 84


Atuação Docente” do Programa de Pós Graduação em Educação da FURB, do mapeamento das pesquisas recentes sobre a temática, foi delimitada a questão com a qual se construiu a problemática da pesquisa de dissertação: “Quais os princípios que norteiam a formação inicial de professores na Finlândia, especialmente nas Universidades de Helsinque e Jyväskylä?”. O objetivo geral da pesquisa foi “compreender os princípios que norteiam a formação inicial de professores na Finlândia especialmente nas referidas Universidades”. A pesquisa intitulada “Princípios que norteiam a formação inicial de professores nas Universidades de Helsinque e Jyväskylä - Finlândia” esteve vinculada à linha de pesquisa “Processos de Ensinar e Aprender” e foi orientada pela Profª Dra Rita Buzzi Rausch. Esta pesquisa de abordagem qualitativa foi delineada como um estudo de caso em que selecionamos duas universidades participantes: as universidades de Helsinque e Jyväskylä. Nestas universidades foi possível coletar muitos dados para análise, em que selecionamos como sujeitos participantes, oito docentes formadores de professores para Educação Primária (quatro de cada universidade). Com estes professores foram feitas entrevistas individuais e observação das disciplinas que lecionavam naquele período em cursos de formação de professores. Além disso, analisamos ao longo da dissertação documentos nacionais finlandeses e documentos das duas universidades investi-

gadas. As categorias de análise foram definidas à posteriori, ou seja, depois das transcrições e análises prévias. Foram definidos cinco princípios que norteiam a formação inicial de professores das duas universidades: a pesquisa, a autonomia, a relação teoria e prática, a reflexão e a cooperação. Os resultados da análise evidenciaram a presença destes princípios nas perspectivas educacionais e ações dos docentes e discentes, presentes nos dizeres dos professores, nas observações das aulas e nos documentos que orientam a proposta de formação de professores no País. Foi constatado que a formação de professores na Finlândia possui características fundamentais para a profissão docente, como: a base na pesquisa e na investigação delineada de maneira reflexiva; a tomada de decisões de maneira autônoma, tendo por base valores de responsabilidade social; a relação teoria e prática que foi enfatizada em todos os momentos da formação de professores e delineada como um princípio essencial para o desenvolvimento profissional e pessoal dos professores. Na pesquisa foi evidenciado, também, o quanto a autonomia é entrelaçada pela cooperação entre os diferentes sujeitos envolvidos em todos os processos da educação, aspectos estes construídos com base na cultura e história do País e que são considerados essenciais e resultantes da atual valorização dos professores finlandeses.

Pensamos que as reformas do sistema educacional na Finlândia foram de certa forma, um impulso à mudança, abrangendo todos os níveis da educação, com o objetivo de melhor atingir e apoiar os objetivos da educação no País. Tudo isto incluiu a melhoria das taxas/verbas destinadas à educação, uma rápida transferência e introdução ao mundo do trabalho, administração aprimorada, a melhoria da qualidade de ensino e pesquisa, a internacionalização e a mudança dos perfis das instituições de ensino superior. Ao pensar e refletir sobre a formação de professores na Finlândia é preciso reiterar que, durante toda a formação, é estimulado o contato com escolas e diferentes instituições. Vistos como profissionais multifacetados, os professores, ao longo de sua formação, desenvolvem importantes sentidos sobre sua identidade profissional, tornando-se agentes de mudança, com base em valores sociais e culturais, dimensões éticas e de responsabilidade. A cooperação foi evidenciada na relação entre os professores formadores, entre estudantes e entre os municípios, universidades e escolas de Educação Básica. Destacamos, portanto, que os resultados nos auxiliaram na compreensão de diversas possibilidades implícitas destes princípios na formação inicial de professores finlandeses. Estas inferências possibilitaram-nos refletir sobre o processo de formação inicial e, principalmente,

sobre as discussões atuais em torno da formação de professores em diferentes contextos. Vale ressaltar que a pesquisa não teve o intuito de comparar os processos de formação de professores no Brasil e na Finlândia, mas possibilitou reflexões sobre possíveis avanços no contexto brasileiro. Entendemos, portanto, que as discussões da pesquisa possam auxiliar professores formadores, licenciandos e professores que atuam na Educação Básica no Brasil, com o intuito de perceber diferentes perspectivas atreladas a estes princípios, para que resinifiquem transformem e construam novos conhecimentos para suas próprias práticas. Discutir estes princípios da formação inicial de professores sobre um País que dispensa provas nacionais; valoriza o professor em todos os aspectos; proporciona uma formação de qualidade com um currículo baseado em fenômenos; que tem a pesquisa reconhecida como um principal princípio e eixo norteador da formação de professores; que a autonomia permeia todos os contextos educacionais, delineada pelas aprendizagens cooperativas; com uma formação que desenvolve estudos aprofundados sobre os diversos processos dos estágios, como o feedback, os planejamentos, a reflexão sobre a prática e que leva em consideração as relações sociais, nos permite, conforme citou Lönnrot, no poema épico finlandês Kalevala, encontrar ‘portas’ com ‘cem fechaduras’. 85

texto e fotos por Thyara Antonielle Demarchi


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Dr. Ivan Danker, com seus dois filhos que seguiram a profissão de Cirurgião Dentista, Andreas e Richard, realizando um trabalho no sistema CEREC. Esta moderna tecnologia 3D CAD CAM permite a construção de restaurações cerâmicas altamente estéticas em uma única visita, sem a necessidade de moldagens desconfortáveis. A Danker Odontologia oferece serviços odontológicos nas mais variadas especialidades como ortodontia, implantes dentais, periodontia, endodontia, próteses, restaurações e prevenção. Endereço: Rua Eng. Emílio Odebrecht, n. 08 Bairro das Nações, Indaial, SC Contatos: 47 3333 87 0095 / 47 3394 9481


Há um debate neste país sobre a idade. Fala-se em responsabilizar os mais jovens por seus delitos. Fala-se também na aposentadoria tardia e invocam fórmulas (85-95) para impedir que homens e mulheres na plenitude de sua vida possam tornar-se dependentes da previdência.

Iustração Bruna Formolo Roncalio

Mais vivos que nunca!

me sinto bem saudável, sonhador e tenho projetos no campo profissional, pessoal e amoroso. Por que não? Quero muito evoluir como ser humano, quero mais é praticar solidariedade e abrir portas para os menos favorecidos ou pouco informados. Quero compreender ao máximo o que Jesus Cristo estabeleceu como parâmetro para os homens se respeitarem. Quero cuidar do meio ambiente e lutar contra as várias formas de discriminação. Não quero julgar, quero mais é viver em paz. Na paz.

Enquanto considero absurdo tratar da redução da idade penal, - não enxergo uma solução, pelo contrário, o caos carcerário desse país será ampliado - por outra, até porque acabo de chegar aos 62 anos, me interessa esse debate sobre o tempo de trabalho e o limite de cada um.

Muitos homens e mulheres que chegaram aos 60, outros que já passaram dos 70, têm um vigor impressionante. Dão aulas de otimismo e sua energia parece não ter fim. Pois estes cidadãos exigem mais respeito. Nós queremos é que haja a inserção dessa geração na força produtiva deste país. Nós queremos que os mais jovens não se incomodem com nossa presença, pois podemos integrar suas tribos, falar e entender suas gírias e seus dialetos e já integramos o time que navega nas mais diferentes plataformas das redes sociais. Estamos antenados, de cabeça boa e querendo mais. E, nessa parceria com colegas de trabalho mais jovens, podemos partilhar tanta coisa lhes oferecendo a experiência, a palavra amiga, às vezes, um conselho de pai.

Alguns funcionários do governo desfrutam de benesses e em alguns casos (policiais) deixam a atividade laboral na plenitude da saúde, indo para a reserva aos 40 e pouco, aos 50 e pouco, por outro lado, nós, os normais, enfrentamos o desafio de manter-nos na ativa pelo tempo que for possível. Eu estou nesta fase e nem penso parar. E muitos pensam assim. E até surgiu a tal da desaposentadoria ou desaposentação, palavras novas no dicionário e na vida de aposentados que, ao invés de coçar o saco, estão arregaçando as mangas querendo voltar ao mercado de trabalho.

Diante disso, abram alas, saiam da frente, a gente está a fim. Ainda não sonhamos todos os nossos sonhos e nem sabemos (alguém sabe?) dos nossos limites, até onde vamos ou podemos ir? O certo é que iremos e estamos indo mais longe, muito mais.

Se tiver saúde, como agora, não aceito e nem aceitarei as “regalias” que os de 60 anos desfrutam. Me nego terminantemente a furar filas. Apanho minha senha e espero. Me nego a estacionar em locais privativos e desfrutar enfim de um direito adquirido. Destes privilégios todos, me utilizo apenas da vacina contra gripe. E não sou contrário aos que se utilizam dessas “regalias”, por certo, eles fizeram por merecer, têm o direito. Mas eu não quero isso pra mim. E por quê? Porque não me sinto velho, incapaz, dependente. Ao contrário,

por Carlos Henrique Roncálio

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