Valeu Julho 2016

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editorial Numa época em que cada vez mais se fala de mobilidade, decidimos dedicar esta edição da Valeu a um meio de transporte que os visionários empresários da região se esforçaram por trazer para Santa Catarina em finais do Séc. XIX e que os interesses políticos a que já nos habituámos, puseram fim em meados do século passado: o trem. Cada vez mais usado como meio de transporte rápido de passageiros e mercadorias, com custos reduzidos e grande comodidade, o trem foi sofrendo processos de modernização em toda a Europa e na maioria dos países asiáticos e hoje é um dos principais fatores de mobilidade dos países mais desenvolvidos do mundo. Por isso decidimos convidar o premiado fotógrafo Hugo Macedo para nos fazer uma fotografia de capa que ilustrasse esta aposta na modernidade, mantendo alguma ligação com a região, daí a opção por fotografar a rede de metro de Berlim, capital da Alemanha, país que, por motivos óbvios, foi o grande impulsionador da estrada de ferro de Santa Catarina.

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No Brasil, fez-se o caminho inverso. A partir dos anos 20, apostou-se numa rede rodoviária que pela dimensão continental do país dificilmente poderia ser mantida e modernizada e hoje, é um dos principais gargalos econômicos do país e do nosso Estado. Imagem como tudo seria diferente se tivéssemos apostado na ferrovia!!!!

Para perceber a importância que a estrada de ferro teve na região, a Clara Weiss Roncalio foi conversar com Luiz Carlos Henkels um dos maiores conhecedores do país na matéria e um empenhado defensor do resgate da memória da Estrada de Ferro de Santa Catarina e da sua preservação, numa excelente entrevista que pode ler a partir da página 4. O Luiz foi também o impulsionador da criação do Museu Ferroviário de Indaial, que fomos visitar através dos olhos da Carolina e do Thiago Sperb e do registo digital do sempre prestável André Giovanella e que vale a pena conferir na página 12. Ainda sobre mobilidade e, no registo que lhe é habitual, o nosso Professor Sobre Rodas, o Thérbio Felipe Cézar, vem falar da semovência humana, afinal, como o próprio diz na página 16, “mover-se é o que nos mantém vivos”. Como promessa é pra cumprir, a Clara foi visitar Dona Elisabeth Page, na rubrica “As Casas da Minha Cidade”, que nos acompanha numa emocionante visita guiada pela residência de sua família: a Casa Schumann, ali, na Pomeranos (página 18). O nosso historiador de serviço, o Daniel Koepsel debruça-se a partir da página 28 sobre a historiografia de Timbó e as diversas representações da cidade, isto é, sobre os livros que foram sendo editados sobre a história da Pérola do Vale e de como, muitas vezes, o que é escrito, mesmo que nem sempre exato historicamente, acaba por fazer a História.


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A Thyara Antonielle Demarchi foi checar o fantástico espaço que a sua amiga Sheron abriu bem no centro de Timbó, na Av. Getúlio Vargas. É Office Lalomo e pela visita guiada da Thyara dá vontade de correr pra descobrir. (Página 32). Sabia que em Rio dos Cedros, mãe e filha se dedicam a fazer massas artesanais embaladas pelo sino da Igreja da Imaculada Conceição? “Eu me sinto num mosteiro.” diz Soraia, uma das artesãs da Pastifício Pastutinni, numa deliciosa entrevista à Clara, que não vai querer perder, na página 38, é mesmo para comer, rezar e amar! Com esse friozinho de inverno dá vontade de comer uma sopa e tomar um vinho, por isso eu, aproveitando esta estadia em Portugal, fui visitar um dos mais premiados “terroir” do Dão, a mais antiga região demarcada de vinhos de mesa do país, a Quinta de Lemos e conversei com o enólogo Hugo Chaves sobre a tradição das vinhas e do vinho em Portugal. Leia e vai ver que muitas das suas dúvidas sobre o tipo de uvas, as suas caraterísticas e os cuidados que é preciso ter para a sua produção, vão ficar esclarecidas (página 44). Logo a seguir, o Lopo de Castilho, escreve sobre uma das melhores marcas do mundo de saca-rolhas, a espanhola Koala. O Esdras em pleno voo para Londres escreve sobre cicloturismo e dá uma sugestão de trilha para um passeio de bike, enquanto o Leo Victor Koprowski, agora também ele músico com banda nova dando cartas pela região, escreve sobre a voz de uma geração: Car Seat Headrest e convidou o seu amigo Rubens Schmidt Junior para nos falar do Filme da Sua Vida: o ET de Steven Spielberg. (Tudo isto a partir da página 55). A psicóloga Grazielle Pensard aconselha o livro “Marilú, quien eres tu?”, antes da poetisa Claudia Vetter nos inspirar com a sua poesia, na página 62. O João Albuquerque Carreiras escreve-nos mais um Postal Perdido, desta vez, de Hydra, na Grécia e a nossa viajante de eleição, a Margot , sempre na companhia dos seu Gerson, transporta-nos para o coração da Amazônia, numa emotiva viagem pelo interior do Brasil. Aproveitando a escolha de capa, pedimos ao Hugo Macedo para nos revelar, em imagens, o seu olhar sobre Berlim. Um olhar pouco habitual, sobre o lado B de uma cidade que ainda vive, paredes meias, com o muro que dividiu o país, separou famílias e marcou o século XX europeu. O Beto Barreto, nosso editor de moda, convida-nos pra balada, com a colaboração da Happy, da Onda Federal e da Knoten. Um editorial de arrasar!

Eu entrevistei, em Lisboa, o Nuno Barra, que é Diretor de Marketing do Grupo Vista Alegre Atlantis, a propósito da Fábrica de Faianças Bordallo Pinheiro, um dos maiores criadores artísticos portugueses e percursor do cartum humorístico no Brasil onde viveu durante 4 anos no final do século XIX. A Bordallo lançou uma coleção de peças assinadas por 20 criadores brasileiros para assinalar essa ligação umbilical de Raphael Bordallo ao Brasil. Encontra a matéria na página 84. Depois é o Luiz Garcia, que do litoral nos conta a história de um amigo seu que decidiu virar índio: Karai Djekupé, um guarani branco, que descobriu na espiritualidade indígena o caminho para a vida. Eu termino mais esta edição com uma experiência pessoal que nos obriga a meditar sobre as pessoas que diariamente fazem a diferença na vida dos outros. Fica aqui um resumo do que pode encontrar na 8ª edição da Valeu. Agora sugiro que a saboreie devagar, durante as longas noites do inverno catarinense ou nas manhãs frias e solarengas de fim de semana. A Valeu é assim, para folhear vagarosamente durante os três meses que dura cada edição. Até à próxima! Por João Moreira


COLABORADORES Lopo de Castilho

Beto Barreto

É licenciado em História, e desde longa data tem participado em diversas iniciativas de promoção de vinhos, bem como de defesa de produtos de Denominação de Origem Controlada. É o fundador e responsável pelo projecto Museu do Saca-Rolhas.

Dono da loja Happy Timbó. É colunista social do Jornal Café Impresso. Além da Valeu colabora para as revistas Studiobox de Portugal e Angola.

Carolina Sperb é jornalista, assessora de imprensa e social media. Apaixonada pela comunicação, conversadeira de nascença, escolheu a profissão por acreditar que todo mundo tem uma boa história pra contar – e ela quer ouvir.

Luiz Garcia

Jornalista e cronista. Graduado em Comunicação Social com habilitaçao em jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí. Editor em publicações corporativas e institucionais.

Clara Weiss Roncalio

Margot Friedmann Zetzsche

Clara é repórter principal e editora da VALEU. Ativista na defesa dos direitos dos animais e do meio ambiente.

Enfermeira na Secretaria Municipal de Saúde de Timbó, Professora de Saúde Coletiva na FURB. Fotógrafa e escritora amadora.

Mey Fuchter

Cláudia Iara Vetter É artista e poeta, autora da obra “O Retrato da Nudez Eólica’’, com publicação em duas edições (CBJE/ 2009 e Liquidificador Produtos Culturais/ 2011).

É natural de Indaial e mora há cinco anos em Munique, Alemanha. Trabalha como blogueira e escritora, colaborando com várias publicações, tanto na Alemanha quanto no Brasil, e nas horas vagas devora livros e luta boxe.”

Daniel Fabricio Koepsel

Rubens Junior

Timboense desde o Cantinho Feliz até o Erwin Prade, publicitário formado mas nunca atuante e proprietário de empresa que se recusa a escrever que é empresário porque empresário acorda cedo.

Professor de História na rede pública e privada de ensino em Santa Catarina. É graduado em história pela Universidade Regional de Blumenau e autor do Representações da cidade: discussões sobre a história de Timbó.

Thérbio Felipe

Professor Sobre Rodas, conferencista, Turismólogo, Gastrônomo e Administrador Hoteleiro, escritor, experiente cicloturista.

Esdras Floriani Holderbaum

Nascido em uma família de artistas, trabalha como produtor musical e remexer, através do projeto Soundyouwish.

Thiago Campi Sperb

É turismólogo, pós graduado em Patrimônio Cultural e Museografia,responsável pelo Departamento de Patrimônio Histórico da Fundação Indaialense de Cultura Prefeito Victor Petters e pela Gestão do Museu Municipal Ferroviário Silvestre Ernesto da Silva. Amante de história, música e dos animais.

Grazielle Monica Gueths Pansard

É psicóloga e cultiva medos infantis só para exercitar a coragem. Contato: grazimg.monica@gmail. com Celular: (47) 8404-5242 - Blog: grazimonica. blogspot.com.br

Thyara Antonielle Demarchi

João Albuquerque Carreiras

Pedagoga e Mestre em Educação. Viciada em suculentas e cactos. Felícia de corpo e alma. Amante de discos, livros e árvores.

João Albuquerque Carreiras é arquiteto paisagista licenciado pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, em Portugal. Viajante compulsivo é autor de inúmeros artigos de viagens.

João Moreira Editor e Repórter principal da Revista Valeu.

VALEU // 8ª EDIÇÃO

julho. 2016 DIREÇÃO // Bruno Esteves EDIÇÃO // João

Moreira . Clara Weiss Roncalio Andrade . João Moreira DESIGN GRÁFICO e redação // Studiobox.pt Fotos Capa e Editorial // hugo macedo IMPRESSÃO // Tipotil Indústria Gráfica COORDENAÇÃO // Susana

Leo Victor Koprowski

Formado em Direito pela FURB, Leo é advogado e consumidor compulsivo de música nova.

TIRAGEM // 1000 CONTATOS // 47

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UNIDADES

8822-0029 geral@revistavaleu.com.br


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Preservando a memória do trem Entrevista com Luiz Carlos Henkels

Foi uma honra entrevistar um dos maiores conhecedores da história da Estrada de Ferro de Santa Catarina, Luiz Carlos Henkels, residente em Indaial, na mesma casa onde foi criado e onde via passar a Maria Fumaça. Impulsionado pelo sentimento de não querer deixar morrer a memória da ferrovia, não fosse sua determinação e de outras pouquíssimas pessoas, diante de um processo tão lento e burocrático, hoje não teríamos a Maria Fumaça em Apiúna e nem o Museu Ferroviário de Indaial, além de fotos, peças , documentos, que teriam se perdido no tempo.

VALEU: De onde veio esse interesse por ferrovias e locomotivas? Luiz: No mundo existem entusiastas por tudo, a estrada de ferro também foi uma questão que a mim me motivou muito. A estação era aqui em frente de casa. Naquele tempo não existiam os prazeres da vida que têm hoje em dia. Você vai pro shopping, vai pras baladas... o que nos divertia era o movimento da estrada e do trem. Isso acaba apaixonando a gente, não só a mim como a muitas outras pessoas. Desde os meus 4 ou 5 anos eu me vejo acompanhando o trem.

VALEU: E a iniciativa de lutar pela preservação da memória das ferrovias? Luiz: Quando a ferrovia fechou, em 1971, lamentavelmente depois de 17 anos, em 88, começamos um movimento sério, já mais esclarecido, pra resgatar toda essa história. Mas o culpado de tudo foi um francês que morava em São Paulo, ele era classificador de algodão e veio pro Brasil pra fazer isso. E viu

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que no Brasil a memória do trem estava se perdendo. Nós vivíamos na década de 70 o boom das rodovias, era a modernidade absoluta, e os trens foram sendo empurrados para o canto e, com isso, a desativação de locomotivas e vagões. E o tal do francês não se conformava, por isso, fundou uma associação voltada à preservação e resgate da memória do trem no Brasil. Eu estudava na FURB e, num belo dia, em 1980, vi um anúncio num jornal de um cidadão que fazia viagens de maria fumaça em São Paulo e me interessei. Na mesma época, lembro que passava uma propaganda da Nescau em que caía uma árvore na linha e vinha uma piazada que tentava tirar a árvore e não conseguia, então chegava um cara num carro e oferecia Nescau pra eles, que ganhavam força e tiravam a árvore. E aparecia a maria fumaça. As mesmas pessoas responsáveis pelos passeios de maria fumaça em São Paulo, já tinham uma locomotiva em funcionamento em Campinas, onde tinha sido feita essa filmagem. Como na época nem todos tinham telefone, muito menos internet, eu escrevi uma carta pra lá e perguntei se poderia me associar. Fui o quinto sócio da associação aqui de Santa Catarina. Em 1981, 82, que foi quando eu me associei, até a gente conseguir fazer um movimento mais forte aqui, levou tempo. Um dia fui ver o trem em funcionamento em Campinas. Fui lá e gostei. Eles já tinham colocado em operação 24 km de ferrovia restaurada. Restaurada é modo de dizer, funcionava meia boca, porque envolve muito dinheiro no que diz respeito à restauração de ferrovias. E você depende exclusivamente das pessoas que gostam. Tinha um cidadão em Rio Negrinho, o Ralf, que fazia passeios de trens. O Clube da Maria Fumaça, como era chamado. Quando tinha alguma comemoração na cidade, ou quando dava na ideia deles, eles fretavam um trem de Curitiba. As passagens eram vendidas para poder pagar a vinda da composição e as despesas com combustível, o resto era lucro. Era um preço irrisório, porque a rede ferroviária era uma empresa estatal e muito disso era subvencionado, eram os trens de carga que pagavam esse trenzinho. Um Presidente da rede ferroviária federal do Rio de Janeiro, na verdade ele era de Curitiba, o cara era meio doido, foi conhecer o projeto da ABPF e gostou tanto que resolveu resgatar as máquinas e peças da própria rede ferroviária que estavam desativadas em Tubarão e distribuiu para uma sede da rede que existia em Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e em Minas Gerais. As duas locomotivas que ficavam em Curitiba atendiam esses pedidos das prefeituras aqui de Santa Catarina e do Paraná, e Porto Alegre atendia das cidades de lá. Quando esse esquema todo foi desativado, aquelas locomotivas que estavam em Porto Alegre viraram hoje o que é o trem lá de

Carlos Barbosa e Bento Gonçalves, operado não por nós, mas por uma empresa turística. E do Rio de Janeiro e de Minas passou tudo para a ABPF de Campinas. Os de Curitiba foram desativados completamente, nós resgatamos esse trem e colocamos em Rio Negrinho.

Foi esse trem de Rio Negrinho que levou Luiz e os outros interessados a fundarem a Regional de Santa Catarina da ABPF, com sede lá. Luiz: Foi Rio Negrinho que conseguiu pra nós todo o acervo que temos hoje em Apiúna. A locomotiva de Apiúna foi uma das primeiras das doze que o francês conseguiu resgatar em comodato com o Governo Federal, em 1980. Ela ficou muitos anos em Campinas estacionada, então, quando fundamos a regional aqui, o Ralf decidiu ceder pra nós, pois ela é muito pequena pra serra deles, que é maior que a nossa. A gente fazia pequenas ações e uma delas foi a tentativa de conseguir resgatar os pedaços do nosso trem aqui, o museu de Indaial inclusive. Na verdade, o pontapé deveria ser dado pela Prefeitura, porque o prédio era público. Foi uma peregrinação constante aos prefeitos e secretários, porque a estação passou a ser rodoviária, eles aterraram onde estavam os desvios e os trilhos todos, onde hoje é as Lojas Hardt, isso foi tudo aterrado, os trilhos foram soterrados. Depois de construírem a rodoviária nova em Indaial, o prédio acabou indo pra Fundação Cultural a pedido do Vitor Peters, na época. Nós gostamos da ideia, porque tinha uma função pública e cultural. Depois virou prédio para o CEJA. Então, era pra virar a sede dos bombeiros e aí nós bronqueamos, porque eles descaracterizariam o prédio. E o prédio foi se salvando assim. E, quando o PT assumiu a Prefeitura, ali tinha um secretário culturalmente muito pra frente, o Giovanella. Ele me procurou e disse: vamos fazer um museu? Começou com uma salinha só, isso em 2005. Depois o Rogério Theiss resolveu comprar mais algumas peças do acervo de um cidadão e nós entramos com outras peças que conseguimos resgatar por aí. A coisa deu certo e hoje quase todo prédio é do Museu. Pequenos progressos foram feitos, inclusive, a Fundação reformou o prédio há pouco tempo. Conseguimos a duras penas fazer com que a entrada ficasse do lado certo, como era antigamente, e não pela rampa da estação, mas ainda não é como eu quero, porque tem que ser só hall de entrada mesmo, pra dar a sensação de estar entrando numa estação de trem. Queremos também colocar um vagão de trem na rampa, mas todas essas negociação são complicadas. Podemos conseguir através da estação de Rio Negrinho ou pelo DNIT. E isso é muito burocrático.

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acervo de Júlio Cesar Schneider – Rio do Sul Rampa da primeira estação de Indaial no ano de 1927, onde podemos ver, entre outros produtos, o recebimento de importante carga de caixas com “ gazolina standardt “.

Um pouco de história Foram empresários de Blumenau que, diante do desenvolvimento da região, mobilizaram-se e fizeram um acordo com a poderosa empresa alemã, a Companhia Hanseática, que negociava terras daqui com futuros imigrantes da Alemanha. Luiz: A primeira ideia partiu de 1887, quando aqui só se andava de carroça. A coisa estava se agigantando, se desenvolvendo e pessoas como Shadrick, o principal mentor, já conheciam o sistema ferroviário, pois eram pessoas que viajavam de vez em quando para a Europa, por motivos comerciais. O próprio Dr. Blumenau também já conhecia as ferrovias. Alguém disse: precisamos de uma estrada de ferro no Vale do Itajaí, porque os colonos que se espalharam aí, por exemplo, em Ibirama, a cidade que ainda estava em colonização. Um dos grandes empresários da época que teve bastante influência nas negociações com a Alemanha foi Christian Peters Feddersen, que tinha algumas empresas e vendia, entre outras coisas, laticínios e banha, exportados em barricas para a Europa. O pessoal criava porcos e a banha viajava em barricas e assim ela era exportada. O rio de Blumenau até Itajaí era navegável, aqui pra cima não era. O negócio era feito de carroça mesmo. Quando tudo dava certo, a viagem levava um dia. Aí surgiu a ideia, mas e dinheiro pra isso? Até que um dia os empresários conversaram com a Companhia Colonizadora Hanseática que era uma empresa poderosíssima, que comprava terras aqui, eram chunchos comerciais com o governo da época, até com a monarquia. Essas terras eram comercializadas na Alemanha, e os imigrantes vinham pra cá. Tinham dois lugares onde comercializavam terras aqui no vale norte do Rio Itajaí e em Corupá (por isso, antigamente, Corupá se chamava de Hansa Humboldt e Ibirama de Hansa-Hammonia, em Ibirama um rio tinha o nome de um de seus diretores!!!).

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Começaram a envolver bancos e companhias de navegação: entre elas a Hamburg Süd, eram empresas podres de ricas que tinham interesse nis-

acervo de Isa Meyer – Blumenau Em 1927 a estação de Hansa, na confluência do rio Itajaí com seu braço norte, era o importante ponto terminal da EFSC, na atualidade encontramos ali o trevo rodoviário da BR470 para Ibirama.

so, pois faziam as viagens transatlânticas entre Europa e Brasil e, evidentemente, com meios de comunicação melhores, haveria mais possibilidades deles conseguirem carga aqui no porto de Itajaí, que ainda era um portinho, com o acesso muito difícil. No fim, os bancos alemães se uniram e deram cinco mil contos de réis para a construção do primeiro trecho que ia de Blumenau até Hansa, mas não Hammonia, ali onde é o trevo de Ibirama, na BR 470. Tem uma ponte lá que estava por muitos anos em reforma, ali era o ponto final. Ele não subia a serra como hoje subimos com nosso trem, esse era o ramal pra Rio do Sul e já é outra história. O primeiro trem ligou Blumenau, fazia todas as estações aqui…

Valeu: Quantas estações existiam neste trajeto? Luiz: Era Blumenau, Itoupava Seca, Salto Weissbach, Passo Manso, Encano, em Indaial, que era uma das mais movimentadas, Warnow, Ascurra, Apiúna.

VALEU: Quais os produtos dos colonos que eram transportados? Basicamente eram levados produtos de colonos, a produção maior que se tinha era de arroz, de Ascurra, outros destaques eram: aguardente, fumo e de madeira cerrada, desmatada pelos colonos. A ferrovia comprava pra fazer dormentes, mas muita coisa era exportada, para construções e caixarias. O Luiz fez questão de pegar alguns documentos que continham a listagem e quantidade dos produtos que eram exportados.


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acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva – Blumenau Em 1929, o pátio da estação de Blumenau, onde podemos vislumbrar a belíssima estação em construção enxaimel, atualmente local do paço municipal de Blumenau.

acervo do Arquivo Histórico de Ibirama A estação de Hansa em 1929. As cicatrizes ao longo da serra ao fundo da foto são provenientes da abertura do leito ferroviário para Rio do Sul.

acervo do Arquivo Histórico Theobaldo Costa Jamundá – Indaial. Aspecto externo da primeira estação de Indaial por volta de 1938. Em 1940 novo prédio, atualmente o Museu Ferroviário Municipal Silvestre Ernesto da Silva ocupou este espaço, sendo o antigo prédio demolido.


VALEU: Como funcionavam os horários? Luiz: O trem de passageiros saía às 5 da manhã de Rio do Sul, passava em Indaial mais ou menos às 8:30. Às 9:15, jogava aquele pessoal todo no centro de Blumenau, acerca de 200 a 300 pessoas... O trem seguia para Itajaí. À tarde, às 15:45, passava em Blumenau de novo e levava o pessoal de volta com a compra feita. O trem andava mais ou menos a 40 Km por hora. Luiz: Chegavam na estação, largavam os cavalos nos pastos, deixavam as carroças e iam pra Blumenau ou Rio do Sul, voltavam depois, ou na outra semana. Era todo um complexo que alguém cuidava, é inimaginável hoje em dia, essa questão toda. Minha própria sogra que morava em Timbó, no São Roque, contava que quando iam fazer uma compra grande, a cada dois meses, iam de carroça até Indaial, deixavam os cavalos no pasto de alguém e iam pra Blumenau,

VALEU: De onde vinham as antigas locomotivas? O primeiro trem foi prussiano, era alemão. Todo equipamento: as pontas, os trilhos, as três primeiras locomotivas eram alemães, e os vagões também. Eles vinham em peças, semi montados. Eram levados de barco de Itajaí até Blumenau e descarregados na Itoupava Seca e montados.

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acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva – Blumenau Em 1912, a moderna locomotiva Nº 1, produto da Borsig Locomotiv Werke de Berlim - Alemanha . A EFSC tinha dois modelos deste tipo e também a locomotiva Orestein & Koppel a “Macuca “ de Blumenau que na época era a Nº 3.

Com a primeira guerra mundial, a companhia alemã perdeu a concessão de exploração. A ferrovia foi encampada pelo Governo Brasileiro, o diretor da ferrovia foi deposto, a maioria dos ferroviários alemães foram embora e seus lugares ocupados por trabalhadores de origem brasileira. Foi um período muito chato, muitos pediram a conta, porque eram alemães que não trabalhavam com brasileiros. Na época, com medo de represálias, o Governo Federal colocou aqui um major do exército para cuidar da ferrovia, chamado Oscar Barcelos. Ele ficou de 1918 até 1920. Foi o período da encampação, no qual a ferrovia era administrada por uma comissão militar. Após 1920, assumiu a ferrovia um engenheiro carioca, Dr. Joaquim José de Souza Breves. Aí começou a americanização das estradas de ferro, com a aquisição de locomotivas e muito material dos EUA, também alguns tipos de vagões. Esse carioca foi quem construiu a ferrovia de subida para Rio do Sul.

acervo de Luiz Carlos Henkels Em 1910, Rudolfo Sprengel era agente da estação de Encano, atual município de Indaial. A farda era de cor “ cáqui” e o quepe era vermelho. Possuía a logomarca EFSC e acima da mesma uma roda alada significando rapidez e leveza.


Em 1920 até 29 foi construído esse trajeto até Rio do Sul, aqui em cima. Então, Ibirama se desenvolveu em função do trem, Rio do Sul e Lontras que eram vilas também. Os poucos moradores ao longo da serra se beneficiaram disso. Indaial se desenvolveu muito por conta do trem. A ferrovia motivou a construção da Ponte dos Arcos, em 1926, porque quem morava em Timbó, por exemplo, com enchente tinha que ir até na ponte do Salto para atravessar. O pessoal de Timbó pegava o trem em Indaial, de Rodeio também, apesar de terem a opção de pegar o trem em Ascurra, mas dependia muito das condições da estradinha. Com tempo de enchente, eles precisam pegar em Indaial, porque a balsa que ia de Rodeio até Ascurra não dava condições.

VALEU: Aconteciam acidentes, na época?

Luiz: Mas, o que mais acontecia era batida de caminhão com trem. A ferrovia cruzava com estrada. Naquele tempo era assim, em Blumenau tinha cancela, com um funcionário que fechava o portão pra estrada, mas no Encano, não tinha nada disso. E era um dos principais problema que existia.

muitos

Luiz: Acontecia de cair barranco na linha quando chovia muito forte, que ficava interditada. Algumas vezes o trem descarrilhava também. A bebedeira era uma coisa bastante comum nos ferroviários. Um dos maiores acidentes ferroviários aconteceu em Passo Manso por causa da bebedeira. Num domingo à tarde, onde morreu uma criança.

acervo de Harold Frech – Blumenau Em 1962, a composição de passageiros tracionada pela locomotiva 336, segue seu rumo em busca da então “ longíngua Trombudo Central “. Nesta foto passando a perigosa e movimentada passagem de nível na localidade de Ilse, divisa Indaial / Ascurra.

VALEU: O que faz com que um trem descarrilhe? Luiz: Quando anda muito ligeiro e faz a curva muito rapidamente... O trem é intuição também, tem que saber com qual velocidade você pode andar.

acervo de familiares de Jürgen Otto Berner - Blumenau A pequena composição que ligava a localidade de Subida a Ibirama, visto aqui em 1961 já as portas da desativação que aconteceu em 1965.

acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva Blumenau Tombamento de um trem passageiro em outubro de 1958 na localidade de Passo Manso – Blumenau.

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A vez das rodovias... Em 1909, a ferrovia desbancou as carroças. Em 1970, foi a vez das carroças modernizadas e motorizadas, os caminhões, desbancarem as ferrovias. Isso faz parte da história. Nosso drama, de quem gosta de trem, é que em 1970 esqueceram de deixar aqui o museu das estradas de ferro. Blumenau deveria ter um museu. Com todo material obsoleto que tinha em 1970, toda a ferrovia era obsoleta, pois aqui, de 1955 em diante, nada mais se investiu. Em 1954 foi inaugurado o trecho de Blumenau até Itajaí, já muito tarde. As ferrovias já tinham muita concorrência com os caminhões na época, apesar de ainda não serem asfaltadas. Em 70, as locomotivas eram a vapor, mas em Jaraguá se andava com locomotiva a diesel, os vagões eram todos de madeira, em outras ferrovias já se andava com vagões de aço. Isso foi levado tudo para Curitiba para ser meramente sucateado. Por causa da ganância das pessoas, que sempre pensam em fazer dinheiro.

O trem de Apiúna

VALEU: Qual a principal pretensão da Associação? Luiz: Resgatar a memória do trem. Mas isso vai da busca por pecinhas, como pregos, até locomotivas e vagões.

VALEU: Vocês têm como objetivo reimplantar ferrovias em mais lugares de Santa Catarina? Luiz: Aqui nós já temos em Rio Negrinho, Piratuba e Apiúna. No momento, até por falta de pessoas, não há possibilidade de ampliar. Já é muito pra nós. Até mesmo o prolongamento é complicado. Todo mundo quer esse prolongamento, mas nós temos um caminhão cheio de problemas para resolver ainda na linha que a Hidrelétrica implantou pra nós. Tu sabes que a linha atual reimplantada 2,5 km foi paga pela Salto Pilão em função do pagamento de compensações, né?! Mas eles fizeram uma linha ali que começa e termina, sem desvios, não tinha terreno de embarque,

foto e acervo de Jaqueline dos Santos Grossl O atual “ Trem Histórico Cultural da EFSC “ pretende como “ museu dinâmico “ relembrar a memoria viva da EFSC ao longo de 2,5 kms restaurados.

foto e acervo de Jaqueline dos Santos Grossl O “Trem Histórico Cultural da EFSC atrai centenas de visitantes a cada mês nos dias em que está aberto ao público.

O Trem Histórico Cultural da EFSC encontra-se na localidade de Subida e é operado por alguns voluntários da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária – ABPF. Nosso trem histórico cultural preserva o túnel, a ponte de arco, uma passagem superior também em arco, e toda uma complexidade, um looping que se faz aqui para acessar. Nosso objetivo é chegar com o trem onde dê pra mostrar o encontro dos rios, faltam ainda 5 km. Mas isso só daqui uns 5 anos também.

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nós tivemos que comprar este terreno e custou 60 mil reais, trinta mil foi pago pela Prefeitura de Apiúna, o terreno custou 90 mil. O terreno é da Prefeitura, mas nós temos um contrato de 30 anos, renováveis por mais 30. Agora temos que conseguir os desvios, porque o trem desce de ré, com a locomotiva na frente. O certo é desengatar a locomotiva, passar pelo lado do trem, engatar na cauda do trem e puxar de volta.


VALEU: Com trilhos no lado?

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Luiz: Sim. O entroncamento dos trilhos é que é o segredo. Porque são peças especiais que tem que ter. A gente tá conseguindo peças que sobraram de ferrovias ativas, que trocam por peças mais modernas. E as peças obsoletas que sobram a gente pega. São peças muito antigas. Os trilhos que estamos usando são trilhos do começo do ano passado. Luiz também faz parte da Associação dos amigos do Arquivo de Indaial, que teve a iniciativa de fazer uma revistinha muito legal, com informações históricas da cidade. Pois é, o Luiz é um apaixonado por ferrovias, trens, pela história dos lugares e com certeza está fazendo muita diferença para muitos. A memória disso tudo ficará preservada e várias pessoas, até mesmo futuras gerações, poderão ter a oportunidade de conhecer tanta coisa que fez parte do passado, da vida de seus antecedentes e que influenciaram diretamente nas nossas vidas, no nosso presente.

foto e acervo de Luiz Carlos Henkels Novos vapores jogados ao vento lembram os tempos áureos de um outro tempo dos transportes do vale do Itajaí.

Em breve, Luiz lançará um livro sobre a Estrada de Ferro de Santa Catarina. Foi uma pesquisa minuciosa, em jornais e documentos da época, que terá aproximadamente 600 páginas. Para o livro, conta também com a ajuda de um amigo, que fez o tratamento das fotografias e está indo atrás de fundos para editá-lo. Nós já estamos no aguardo!! Valeu, Luiz! por Clara Weiss Roncalio


A história da Estrada de Ferro de Santa Catarina passa por Indaial Quem passa pelo centro da cidade de Indaial nota uma construção diferente, que divide duas vias. Uma arquitetura característica Art Decô, com telhado cerâmico embutido em platibanda e uma construção térrea. Ali funcionava a antiga Estação Ferroviária de Indaial, inaugurada em 1909. Em 1940 o edifício original foi demolido para a construção de um novo. A nova Estação manteve seu funcionamento até 1971, quando foi oficialmente desativada, devido à supressão do tráfego na ferrovia.

Hoje, o prédio abriga o Museu Municipal Ferroviário Silvestre Ernesto da Silva e tem como objetivo preservar e transmitir a história da Estrada de Ferro de Santa Catarina, bem como sensibilizar a comunidade sobre a importância que a estrada teve para o desenvolvimento do município e de todo Vale do Itajaí. A Estação foi um marco na história de Indaial e hoje o Museu mantém viva esta história. Inaugurado em 20 de março de 2006, através do Decreto 244/05 de 01 de junho de 2005, o Museu recebe este nome em homenagem ao último Agente Ferroviário da Estação Central de Indaial, o Sr. Silvestre Ernesto da Silva. O prédio conta com duas salas de exposições

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com vários objetos como trilhos, dormentes, bancos de vagões de passageiros, entre outros, além de documentos pessoais e profissionais de antigos ferroviários que trabalharam na Estrada de Ferro de Santa Catarina. O Museu ainda conta com sala de vídeo e profissionais capacitados para o atendimento ao público, que acompanham a visita e contam histórias e curiosidades sobre o local. Visitar o Museu Municipal Ferroviário é entrar na história da cidade e entender o ponto de partida para todo o seu desenvolvimento. É possível também se sentir parte dela, já que os objetos e estruturas mantêm as características da antiga Estação. Em 2015, o local passou por algumas melhorias para trazer mais conforto e qualidade no atendimento ao público. Desde a sua reinauguração no passado, o Museu recebe mensalmente cerca de 40 pessoas de toda a região. Segundo Luiz Carlos Henkels, membro da ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária), “Indaial era a primeira estação importante do primeiro trecho ferroviário inaugurado em 1909, então, o prédio da Estação Ferroviária deve ser preservado, para conhecimento das futuras gerações, uma vez que tem, em seu interior, a vocação final a que faz jus: a de ser Museu Ferroviário, em memória àquelas pessoas que dela exaustivamente se utilizaram e às pessoas que, como ferroviários, aqui cumpriram sua missão e fizeram história, desenvolvendo e trazendo o progresso à região. Que sejam desta forma, a Estação e o Museu, objetos de veneração e admiração para a atual e para futuras gerações, inspiração de amor à nossa terra e aos nossos antepassados”. O Museu Municipal Ferroviário Silvestre Ernesto da Silva fica aberto para visitação de terça a sexta-feira, das 8h às 13h. Nos Sábados Mais (segundo sábado do mês) das 9h às 12h. O agendamento de visitações em grupo deve ser feito através do telefone 3394-0708 ou pelo e-mail museu@indaial.sc.gov.br. O prédio fica localizado na Rua Marechal Deodoro da Fonseca, 277 – centro, Indaial. por Carolina Sperb e Thiago Campi Sperb Fotos por Andrá Giovanella


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Semovência Humana: um conceito, uma prática.

Acessando o que postula Piaget no campo da motricidade humana, além do grande contributo de Manuel Sérgio, percebe-se que carecemos de um aprofundamento sobre o tema e tanto quanto sobre o que acarreta a escolha por mover-se tendo plena consciência disto. Vamos esclarecer. por Therbio Felipe M. Cezar

Todo o fazer humano é ação. Sem ser romântico, o pulsar da vida é, sem dúvida, ação. Estas frases incitam à breve reflexão que se segue, sobre uma notável e paradigmal natureza que nós, humanos, possuímos por essência, ainda que não tenhamos pleno entendimento disto.

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É necessário mover-se para manter-se vivo. De tão óbvia que pareça tal afirmação, por vezes fazemos por esquecer-nos do quanto a vida está impregnada de ação. Agir é o que coloca a marcha da vida adiante. A inação rareia possibilidades, reduz perspectivas e acelera, apenas, a obsolescência. Ideias e pessoas sem ação se tornam obsoletas.

Por semovente entendemos aquilo que é cinético, que se move ou pode ser movido. Porém, que outra “coisa” se move conscientemente senão os seres humanos? Repito, conscientemente. Os demais seres vivos o fazem por instinto, hábito ou necessidade, o que difere enormemente tal ato do que se estende sobre o emprego da consciência ou da razão. Para evitar qualquer gênero de confrontação com os respeitáveis bacharéis em Direito, tratei de somar a adjetivação ‘humana’ ao termo Semovência, que mais do que tratar de uma qualidade, trata de uma condição. Reforço, a terminologia ‘semovente’, inclusive, é usada no Código Civil como: “Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.” Porém, sabendo que o termo ‘Semovência Humana’ poderia causar, a princípio, estranheza, esclareço que passei a associar cargas epistemológicas irrigadas por diferentes fontes com uma


leitura transdisciplinar, requerida para buscar absorver algo tão corpóreo quanto simbólico. E ao mesmo tempo, é claro, tão simples. Ao falar em Semovência Humana prefiro não entrar em choque ou negar aquilo que já se desenvolve sobre o conceito de ‘Mobilidade Humana’ que, mais do que um caso de semântica, coloca as pessoas como o início e fim do ‘para quem’ fazemos o que fazemos. A Mobilidade Humana compreende amplos aspectos geográficos, demográficos e territoriais, sobre globalização e movimentos migratórios em escala internacional, além de uma abordagem profunda sobre exilados, refugiados e desigualdade social. Então, não confundamos Mobilidade Humana, Mobilidade Urbana e Semovência Humana. Quando se detém à ênfase nas cidades, os estudos sobre a Mobilidade Humana cumprem com o imenso desafio paradigmal de sair “da relativamente abstrata mobilidade urbana para a necessária e real mobilidade humana”, como sugere o José Roberto Bernasconi – Presidente do SINAENCO – Sindicato da Arquitetura e Engenharia. (http://www.mobilize.org.br/noticias/6088/ mobilidade-humana-e-conceitochave-para-melhorar-as-nossas-cidades.html) A Semovência Humana, por sua vez, é um campo de estudo amplo que transpassa ou transcende inúmeras áreas do conhecimento ou ciências, e delas resgata sua melhor observação sobre o que carrega e acarreta o fato de nos movermos conscientemente.

mo por não termos respostas completas, chamamos de vida. Vamos precisar dedicar um pouco mais de tempo e esforços, então, para revisar o óbvio. Mover-se é o que nos mantém vivos, voluntária ou involuntariamente. Desde o primeiro minuto de vida há ação, há movimento. Mais que tudo, para que a vida aconteça ou se mantenha é necessário que haja ação, ininterrupta e incessantemente. Alimentar-se, por exemplo, é um movimento que sustenta a vida, porém, o fazemos com consciência, com sentido, não apenas enquanto necessidade fisiológica. Permaneço, por hora, na ontologia da ação, do mover-se. Incluindo todas as motivações para mover-se, o ser humano precisa estar ativo, em pensamento e/ ou gestos, filosófica e/ou fisicamente. A inércia extingue a vida ou a leva a um estado dormente. Para ser com os outros no mundo faz-se necessário que se vá até eles, que se promova o encontro, que se diminuam as distâncias, enfim. E antes que me rebatam, tão simplesmente afirmo que filosofar é mover as ideias, é agir sobre o elementar e o abstrato, é, lembrando Heráclito, ir em direção ao devir. O que é permanente neste mundo é a mudança, a transformação, e ambas são agir, em essência. Não é à toa que o ciclismo urbano tem ganho imenso espaço no campo das discussões e elaborações pró-vida nas cidades. Não é à toa que o estilo de vida sobre bicicletas é pleno de movimento. Que feliz escolha, não é mesmo?! Mova-se. Mova-se. Mova-se.

No fundamento de minha reflexão, apresento meus pares: Piaget, Manuel Sérgio, Merleau-Ponty e Sartre, Le Boulch e Parlebas, Zamberlan, Varela, Maturana, Xesús Jares, Capra, entre muitos e muitos outros, nos últimos 25 anos de docência. Mover-se é uma manifestação que um corpo sofre, consciente ou não, porém, neste caso, aprofundamos nossos olhares em direção a um determinado ser, o humano. Enquanto ação consciente, portanto humana, faz-se necessário admitir e compreender que o que faz do homem um ser social é que ele se move para transcender suas realidades, em busca ou fuga, em direção ou em repulsa, a favor ou contra, mas o que é fato é que ele se move cônscio de sua ação. Ao se mover, se comunica. Mais uma vez, a consciência sobre a ação está presente. Lembro-me de ter sido alertado por um colega que eu estava a debruçar-me sobre o óbvio. Então, fiz questão de responder-lhe que, com olhos voltados para o extraordinário, descartando o que lhe parecera óbvio, a humanidade se esqueceu das coisas mais concretas e palpáveis, as que sustentam esta cadeia de inter-relações complexas enquanto fundamento, que nós, em reducionis-

Fontes: Sérgio, M. (2006). “Motricidade Humana – qual o futuro?” En: Revista digital de Motricidad y Desarrollo Humano consentido”. Número 7. Departamento de Educación Física. Universidad del Cauca. Popayán: www.consentido.unicauca.edu.co. Sérgio, M. (1999). Um corte epistemológico: da educação física à motricidade Humana. Lisboa: Instituto Piaget.

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As Casas da Minha Cidade Casa Schumann Dei muita sorte em ter escolhido a casa número 2324 na Rua Pomeranos para fazer uma matéria para a coluna As Casas da Minha Cidade da Valeu. Fui recebida de uma forma muito especial pela Dona Elisabeth Pagel, nascida Schumann. Logo no início, ela já se mostrou disposta a contar a história da casa onde mora desde que nasceu, e também a história da sua família. E foi tão querida...

A vinda da Família Schumann para o Brasil Seus bisavós, Samuel e Augusta Schumann, vieram da Alemanha, provavelmente em 1874. “ (...) Em 1874, chegaram os primeiros imigrantes para esse Vale: eram alemães provenientes da Pomerânia e da Saxônia. Esses foram os primeiros que enfrentaram a mata virgem com seus machados e abriram as primeiras clareiras. Todos eles eram jovens, fortes, saudáveis e alegres. As primeiras famílias que chegaram foram as de: K. Hordina, Fr. Schweder, K. Teske, Al. Schweder, W. Kurth – esses vieram da Pomerânia – J. Hollstein, Chr. Schutze e S. Schumann – de Magdeburg na Saxônia (...)” D. Elisabeth: Foi uma viagem exaustiva de barco à vela, que contou com o falecimento de uma criança, um dos filhos da família Muller, que viajava junto e não resistiu e seus pais tiveram que jogar o corpo em alto-mar. Minha mãe falava que minha bisavó contava que eles iam três dias pra trás pra depois ir pra frente. Mostrando a construção que tem ao lado da sua casa, conta que foi a primeira casa que sua bisavó morou. Essa construção quase não dá para notar olhando pela frente da casa. As plantas que cresceram acabam escondendo da nossa vista, mas, por trás de todo esse verde, tem uma história... que vamos ter o privilégio de conhecer um pouquinho.

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D. Elisabeth: Minha bisavó se sentava na porta, ela tinha sempre um vestido mais comprido e, quando eu chorava porque minha mãe ia pra roça, ela sentava e me balançava no vestido. E não tinha chupeta, então ela pegava um torrão de açúcar marrom (mascavo), colocava num paninho e botava na minha boca pra eu chupar.

Fotos da casa da Bisavó. “Aqui eu tinha seis aninhos. Cara de braba, né?!”

Seus avós, Dorotea e Frederico.


Seus pais, Gertrudes e Alwino.

D. Elisabeth: Todos da minha família eram colonos, meu bisavô, avô, meu pai era colono, eu era colona. Eu era filha única, meu pai não teve outro filho. Eu trabalhava com o cavalo que nem um homem. Arava o terreno, puxava sucurujuva, que eles usavam pra fazer postes. Uma vez, eu e o meu primo puxamos do mato 450 postes. Nós engatávamos umas quatro árvores por viagem.

A casa A casa principal, além de chamar a atenção de quem passa pela rua, pela sua beleza arquitetônica, chama também pelo fato de ter o jardim aberto, sem cercas ou muros.

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D. Elisabeth e seu marido Kunibert Pagel.


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O jardim é um clássico dessas casas antigas de descendentes de alemão. Não faltam os pés de jaboticaba, de carambola e essa florzinha vermelha clássica (quando era criança lembro de chupar o “mel” dessas flores que tinha no quintal da minha vó).


Esta casa foi construída pelo seu avô, Frederico Schumann, com as madeiras e tijolos do antigo Salão Moser, que ficava localizado próximo à Oficina Schumann, também na Rua Pomeranos. As madeiras são todas numeradas com algarismos romanos.

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D. Elisabeth: Meu avô, Frederico Schumann, escreveu seu nome e a data do início da construção.

A casa ficou pronta em 1925 (detalhe que os seus moradores fizeram questão de deixar registrado em seus tijolos).

Sua estrutura é toda feita com pedras. D. Elisabeth: Não sei de onde eles arrumavam tanta pedra. Onde que passa uma parede, é só pedra embaixo.

VALEU: Quem mora nessa casa? D. Elisabeth: Eu, a minha nora e a minha neta mais pequena... - nesse momento a dona Elizabeth se emocionou muito falando sobre seu filho, Fridolin, que faleceu há 3 anos. “Esse relógio antigo veio da Alemanha com minha bisavó, ele parou três dias depois que meu filho morreu.”


A parte interna da casa é cheia de detalhes, com portas, trincos, todos originais.

D. Elisabeth: E não tem um cupim nessas portas! Os armários que têm na casa da Dona Elisabeth são ainda da época de sua avó.

As duas construções foram tombadas e a situação em que se encontram é bastante precária. Na verdade, os moradores da casa estão em situação de perigo.

Seu avô, Frederico Schumann, colocava café no sótão para secar. D. Elisabeth: Nem dá mais pra subir no sótão. As tábuas já estão quebrando. Os telhados estão praticamente caindo. Eu queria desmanchar a casa que foi da minha bisavó, porque já quebrou um pau em cima e têm tábuas boas que a gente queria usar. Mas não posso mexer.

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As edificações fazem parte do projeto Roteiros Nacionais de Imigração, que é uma parceria entre a Fundação Catarinense de Cultura e o Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional e que envolve também os ministérios de Cultura, de Turismo, de Desenvolvimento Agrário, a Santur, Epagri, Sebrae/SC e 16 prefeituras municipais.

Essa “tecla” já está gasta, mas, novamente, a problemática do tombamento dessas construções, que é necessário para a preservação da nossa história, acaba se tornando um fardo que o dono do bem tombado tem que carregar. E, no caso da casa Schumann, implica colocar a vida das pessoas que moram nesse lugar em risco. Em Timbó, já existe um movimento para a criação de uma associação para cuidar da preservação do patrimônio histórico. Vamos ver se, com isso, conseguimos mobilizar, não só as esferas governamentais, como a iniciativa privada, para que esses lugares e essas histórias continuem entre nós. Obrigada, Dona Elisabeth! Foi um prazer conhecer a história da sua família e também dessa casa linda que fica na Rua Pomeranos. Referência: WEINGÄRTNER, Nelso. A História da Comunidade Evangélica de Timbó. Editora Otto Kuhr, 2008.

Texto e fotos: Clara Weiss Roncalio. Se você conhece a história, ou tem interesse em conhecer de alguma casa antiga em específico, manda um e-mail pra nós: geral@revistavaleu.com.br

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Timbó história e historiografia: representações da cidade. [...] a cidade faz parte das coisas de natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade [...] (ARISTÓTELES, sd. p.9) A frase de Aristóteles é motivadora em tempos de tantas transformações boas e más acerca da política, outrossim, sempre que o assunto é política parece ela estar num plano metafísico, distante do cotidiano, contudo, é aqui na cidade que a política se estabelece. A frase de Aristóteles se por um lado é um alerta, por outro, soa como um lamento, uma vez que não há escolha ao homem senão viver em sociedade. Evidente que quando nos referimos à sociedade, a cidade não é a menor célula de interação social, poderíamos ainda fracionar a cidade em bairros, em ruas, em famílias e, por fim, no indivíduo que é o elemento primordial da sociedade. Mas, me parece que a cidade com seu “modus operandi” é uma boa categoria de análise válida para traçar um espelho comportamental dos cidadãos em grupo. Portanto, muitas vezes falar da cidade é um olhar homogeneizado da sociedade como um véu que cobre o rosto da donzela ocultando a verdadeira face da verdade. Mas quando se fala da identidade da cidade, não se trata de desvelar algo, mas sim, colocar o véu sobre a face do monstro, porque a verdade é um fel amargo demais para os cidadãos que desejam uma identidade. Para desvelar (tirar véu) desse olhar homogeneizado da cidade, ou mesmo para explicar como formou-se um olhar homogeneizado da sociedade, existe a historiografia. Mas qual é o papel da historiografia na elaboração de uma verdade mais doce, ou amarga, no entendimento da cidade? Como a historiografia pode contribuir para explicar a construção revolucionária ou passiva dos cidadãos que compõe a trama social da cidade e de sua identidade velada ou desvelada?

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Para responder a esses questionamentos primeiramente vamos ao conceito de historiografia. A palavra historiografia é o registro escrito da história, o poderíamos afirmar tranquilamente que é a escrita da história. Podemos dizer que é a arte de escrever e registrar os eventos do passado. Entretanto, o termo historiografia também é utilizado para definir os estudos críticos feitos sobre aquilo que foi escrito sobre a História. É dentro dessa última perspectiva que desejo fazer uma breve análise de como algumas obras de história de Timbó formaliza-

ram um tipo homogêneo de cidade a partir da escrita. Por outro lado o artigo também oferece horizonte aos historiadores ou amantes da história, um caminho para estudo, pesquisa e leitura de fontes história e obras da história de Timbó. Portanto, a análise deste artigo não propõe-se a questionar a verdade histórica, nem mesmo qualificar ou desqualificar nenhum tipo de trabalho de história da cidade, apenas pretende apresentar de maneira muito sintética as diversas abordagens históricas, ou seja, a maneira como cada texto histórico representou a cidade, e por conseguinte, formalizou um tipo ideal de história, haja visto, que não há produção histórica neutra, a escrita da história e a interpretação do passado são como uma lâmina e não há como escrever sem ferir alguém.

A cidade de Timbó e sua historiografia Estabelecidos alguns dos conceitos e considerando-se a impossibilidade de esgotar o tema e tomando por base a dinamicidade e as dimensões do conceito “cidade”, é possível perceber que historicamente ela é inventada e reinventada pelo processo de construção de uma tradição escrita. Sendo a escrita um dos elementos fomentadores de uma memória coletiva, passo a analisar a influencia de alguns escritos, obras, e olhares de escritores e intelectuais que formalizaram conceitos, imagens e memórias para a cidade de Timbó. Portanto, esta análise pretende contribuir para a faceta da produção historiográfica de Timbó, ou seja, contextualizar um olhar particular da cidade no que tange a escrita da história. Nesse caso, a imagem da cidade é corporificada através do texto que é também uma verdade estabelecida, uma relação de poder porque armazena aquilo que foi selecionado. Assim a escrita da história da cidade, é um querer dizer que totaliza toda a complexidade da mesma, em um jogo de lembrar e esquecer. Logo, é preciso considerar que o texto que corporifica essa ideia de cidade, ou de “verdade” da cidade não depende mais da atenção de um destinatário que se assimila com uma grandiosa mensagem identificatória. “Será o resultado de um trabalho – histórico, critico, econômico.” (CERTEAU, 1994.p. 228). É de relativa importância compreender a impossibilidade de constatar todas as nuances das produções historiográficas, assim como, a impossibilidade da historiografia já produzida em ter contato com todas as mazelas da cidade. Porque, como nos lembra o Historiador Marc Bloch, o profissional da história esta “[...] na situação do investigador que se esforça para reconstruir um crime ao qual não assistiu.” (BLOCH, 2001, p.69) A primeira composição historiográfica sobre a cidade de Timbó remonta ao ano de 1919, ano da festividade de 50 anos de fundação da localidade. Neste período Timbó era apenas uma localidade do município de Blumenau, não se configurava enquanto cidade institucionalizada, mas já possuía uma pequena infraestrutura, (comércio, esco-


la, igreja) que lhe garantia certa autonomia. Essa própria autonomia lhe conferia um sentimento de comunidade que é muito expresso na formalização de uma festa de 50 anos da fundação da localidade. A festa do cinquentenário (1919) assume uma função comemorativa de celebração de uma identidade particular para a povoação Timbó, e não pautou-se apenas no lazer e na diversão. Toda a comemoração ficou marcada pela “[...] ‘rememoração’ de um passado glorioso, formalizada a partir de um cerimonial festivo que se utilizou da memória para criar uma tradição e documentar o evento” (FERREIRA; KOEPSEL, 2008,p.329). A formalização da identidade e de um passado glorioso é documentada no Jornal de língua Alemã Der Urwaldsbote, no qual existe uma preocupação não só em registrar a programação da festa, mas também em contar a história do inicio da localidade, estabelecer marco de fundação da localidade, data e fundador, sob um discurso de exaltação de uma suposta germanidade progressiva e próspera. O excerto abaixo dá uma demonstração da função do texto na festividade: “Também, aqui, através da labuta e persistência alemã foi obtida da mata uma colonização bela e o que em meio século foi conquistado pode ser considerado um exemplo.” (DER URWALDSBOTE, 10/10/1919). O texto jornalístico não é assinado e também não faz menção a fonte, mas foi a primeira vez que ocorre uma formalização organizada de “fatos história” sobre a povoação Timbó. Importante ressaltar que a formalização desse passado histórico glorioso no ano de 1919 cristalizou uma memória histórica acerca da cidade que foi amplamente revista, com algumas inovações, mas que, continuou a propagar a ideia da cidade que nasce, ou melhor, que é fundada em 1869. Essa memória histórica cristalizada é novamente revisitada no ano 1969 na festa do centenário de fundação da cidade de Timbó, ou seja, 50 anos depois da antiga edição do Jornal Der Urwaldsbote. No ano de 1969, sob os auspícios comemorativos da Festa do Centenário de Fundação da Cidade de Timbó, duas novas obras revisitam a memória histórica da cidade com algumas inovações. A primeira denomina-se “Centenário de Timbó: A Pérola do Vale: 1869 – 12 de outubro de 1969”, organizada e escrita pelo professor Gelindo Sebastião Buzzi, que também contou com a colaboração de diversos autores. A outra obra, escrita no mesmo ano, é a “Crônica da Comunidade Evangélica” escrita pelo Pastor luterano Nelso Weingartner. Ambos os trabalhos foram desenvolvidos por historiadores diletantes, não possuem um caráter acadêmico, entretanto, não menos importante como nos lembra o historiador Márcio Voigt: Os trabalhos realizados até a atualidade sobre Timbó, [...] não são de caráter acadêmico, mas nem por isso menos importantes. Aliás, este parece ser um aspecto de reflexão mais profunda. Os trabalhos de natureza acadêmica dentre outras coisas, possuem ou pelo menos deveriam, o mérito da organização, do cuidado com as com as fontes, da redação clara e objetiva, da análise com base em construções teóricas melhor elaboradas, enfim, a produção do conhecimento, em teses, deveria ser mais

aprofundada, detalhada. No entanto, muitas dessas qualidades, às vezes, acabam superadas pela vivência que um escritor não especializado, mas nem por isso menos balizado, tem acerca da realidade a ser analisada e que por vezes transmite mais direta e eficazmente.

O Livro do Centenário de Timbó foi escrito em consonância com os ideais da comemoração de 100 anos da cidade de Timbó, ou seja, tinha “o propósito de legitimação do progresso econômico e da prosperidade de Timbó (...) com a reincorporação de símbolos estabelecidos no cinquentenário e a construção de uma nova simbologia.” (FERREIRA; KOEPSEL, 2008.p.334). O livro organizado por Gelindo S. Buzzi revisitou a historiografia do cinquentenário cristalizando ainda mais a figura do fundador e da fundação da cidade. Dentro desse contexto o livro faz uma compilação de documentos antigos da Colônia Blumenau, cujo recorte espacial abrangia o atual município de Timbó. Essa organização passa a publicizar listas de imigrantes, biografia do fundador Friedrich Donner, o contato dos imigrantes alemães e italianos com os indígenas, e também noticias diversas do final do século XIX e inicio do XX como a construção de pontes e outras questões de infraestrutura. A obra que também tem objetivo a comemoração da festa que pretende ressaltar a ideia de progresso econômico da cidade passa a ressaltar a importância das indústrias e comércios da cidade, vinculado às belezas naturais da cidade criando o slogan “Timbó a Pérola do Vale”. O incremento simbólico de “Timbó como a Pérola do Vale” era legitimado pelo discurso: Timbó, pérola brilhante, recanto sorridente, acolhedor; tua colonização cem anos distante, hoje, do verde vale, és linda flor. Flor que desabrochou sob as ardências do sol; pérola encrustada no verde panorama, emoldurado pelo perfil audaz das montanhas. (...) Aqui, às margens destes rios, neste belo vale, construiu-se uma civilização impar, modelo para o Brasil. Sendo que até os dias atuais a utilização do termo de Pérola do Vale é ainda um símbolo muito usado nas comemorações da cidade, logo, além de legitimar a ideia de progresso cujo auge é 1969 quando finalmente a

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concha (vales) abre-se e se apresenta a pérola (cidade). Outra produção historiográfica é a “Crônica da Comunidade Evangélica”, publicação idealizada pelo Pastor Nelso Weingartner, concebida com característica bastante memorialista e preservacionista tem como objetivo de “registrar a obra de nossos antepassados, que abandonaram sua terra natal [...]” (1999, p.3), conforme afirma o autor. Além disso, a obra é escrita em idioma bilíngue alemão e português. Desta forma, destinava-se não apenas ao público em geral, mas também para membros da comunidade local que tinham dificuldades no idioma português. Da mesma forma, cumpria com seu papel comemorativo, perpetuando o uso da língua alemã que foi muito importante no passado em uma igreja de origem germânica. A obra que é organizada de maneira cronológica compila documentos históricos, memórias orais geralmente sem citação de fontes, e uma grande infinidade de trechos de antigas atas. Portanto, a obra segue a lógica da crônica

consideradas importantes. Consequentemente cumpriam com seu objetivo de “coletar para bem guardar. Guardar para bem servir”, enquanto “verdade” histórica. Na década de 1980, outra iniciativa de registro memorial foi iniciada pela prefeitura de Timbó, entretanto, muito efêmera em sua duração. A edição era nominada como “Timbó em Cadernos”, tratava-se de uma publicação escrita por diversos autores que tinham a função de escrever sobre fatos, ou mesmo, relatar e traduzir documentos históricos antigos. A edição tinha como direção o Prefeito Ingo Germer, os textos faziam forte referencia a temáticas da imigração alemã. Os textos produzidos não seguiam padrões de discussão histórica, logo, eram basicamente memoriais. O primeiro trabalho de caráter mais cientifico, foi produzido na década de 1990 pelo historiador Marcio Voigt, que realizou uma dissertação de mestrado sobre a cidade de Timbó intitulada “Imigração e Cultura Alemã no Vale do Itajaí: educação, religião e sociedades na história de Timbó (SC) 1869-1939”. Voigt realizou um levantamento sobre a historiografia local, confrontou alguns documentos históricos, mas não analisou muitas fontes primárias. Mas, foi precursor em um trabalho histórico mais sistemático que abriu portas para uma historiografia mais critica acerca de elementos ou fatos históricos já solidificados como verdade. Voigt afirma: “A abordagem da história timboense, portanto, procurou verificar de que forma uma pequena comunidade manteve viva grande parte de sua herança institucional de sua origem sua cultura no contexto nacional” (VOIGT, 1996.p,133) Depois desse período, no ano 2000, duas obras ampliaram a historiografia timboense: uma delas é a obra do autor Daniel Curtipassi “Timbó a Pérola do Vale”. A obra realiza um relato histórico memorial repetindo a antiga historiografia. Entretanto, faz uma importante contribuição fotográfica, ao intercalar fotos históricas e recentes. Além disso, possui três idiomas: português, alemão e italiano, atendendo assim a ideia da origem europeia que compunha o início da imigração do Vale do Itajaí.

Capa da Edição Timbó em cadernos dirigida pela Prefeitura de Timbó durante a gestão do Prefeito Ingo Frederico Germer. que “originalmente” limitava-se a uma compilação de fatos históricos “verídicos” apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo.

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Portanto, a obra de Weingartner ocupa posição de destaque na cristalização de uma memória histórica da comunidade evangélica luterana, assim como o livro do “Centenário de Timbó”, tão logo, realizam um registro histórico reunindo documentos/texto e compilações

Em 2008 a mais recente obra publicada foi “Representações da cidade: discussões sobre a história de Timbó”. Essa obra pretendeu rever determinados fatos históricos cristalizados, utilizando como base a pesquisa histórica de maneira mais sistemática e crítica. A obra é escrita por dois historiadores: Cristina Ferreira e Daniel Fabricio Koepsel. Utilizando uma ampla investigação e fontes históricas primárias, bem como, uma ampla revisão bibliográfica da história local, a obra se propôs a discussão acrítica de temas tido como fechados na historiografia local como: fundação e fundador da cidade, discussões políticas como a municipalização da cidade, bem como, instituições sociais e culturais da cidade. Vale ressaltar que a obra foi financiada por meio institucional através da Fundação Cultura de Timbó, logo, é


uma publicação que tinha como objetivo, segundo Ivone Gumz coordenadora do projeto, “atender uma necessidade premente na cidade, pois a pesquisa histórica empreendida resultou em várias coleções documentais que recebem ampla visibilidade”. Já na visão dos historiadores e autores da obra uma das principais facetas foi que a “história do município esta diretamente relacionada aos sujeitos que o compõe e transformam a sociedade e cultura locais. Por conta disso, a perspectiva não é privilegiar o papel dos indivíduos ou grandes personagens (...)” FERREIRA, KOEPSEL, 2008.p.11).

Conclusões: O artigo aqui denominado como história e historiografia apenas apontou algumas obras que se propuseram uma escrita da história da cidade de Timbó. Portanto, serve apenas para dar um pequeno olhar sobre as obras já escritas e pode servir para pesquisa mais profunda de historiografia ou de revisão bibliográfica. O que mais fica evidente é que cada uma das obras foi dirigida ou pensada em tempo de comemoração o que torna a escrita do passado uma exaltação gloriosa, contribuindo para um discurso heroico e glorificado da cidade. Portanto, cada uma dessas obras deve ser analisada dentro de seu contexto histórico, sempre considerando quais eram os interlocutores que a produziram, porque não existe escrita de história neutra, ela é sempre uma escolha que visa esquecer muito mais do que lembrar.

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“As obras citadas nesse artigo podem ser consultadas gratuitamente no Arquivo Público Professor Gelindo Sebastião Buzzi na cidade de Timbó, é um departamento ligado a Fundação Cultural de Timbó responsável pela guarda e manutenção de documentos históricos e da memória da cidade.”

Daniel Fabricio Koepsel - Historiador

Referencia Bibliográfica ARISTÓTELES. A Política. 15.e.d. São Paulo: Martin Claret, [s.d.]. Col. Mestres Pensadores. BARROS, José D’Assunção. Cidade e história. Petrópolis: Vozes, 2007. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o oficio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Martin Claret, 2002. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 12.e.d. Petrópolis: Vozes, 1994. FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial, 2002. FERREIRA, Cristina; KOEPSEL, Daniel Fabricio. Representações da Cidade: discussões sobre a história de Timbó. Blumenau: Edifurb; Timbó: Fundação Cultural, 2008. RAMINELLI, Ronald. Historia Urbana. In: CARDOSO, Ciro Flamarion.; VAINFAS, Ronald. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. 21.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997. VOIGT, Marcio. Imigração e Cultura Alemã no Vale do Itajaí: educação, religião e sociedades na história de Timbó (SC). 1869-1939. Dissertação – UFSC, Florianópolis. 1996. WEINGÄRTNER, Nelso. Crônica da Comunidade Evangélica de Timbó. Blumenau: Gráfica 43. [1969].


OFFICE LALOMO A Sheron, eu já conheço de outros carnavais e, assim como suas amigas e clientes, sempre a via como uma guria que se vestia bem pra caramba! Acompanhando seu trabalho pelo Facebook e Instagram e, sempre babando pelas peças lindas que ela posta, deu um click: a Lalomo é a cara da Valeu! Conversamos, marcamos uma data e lá fui eu de bike até o Office dela. O dia estava lindo, ensolarado e frio! Cheguei no Office que fica na Avenida Getúlio Vargas, nº 61, sala 11, no Edifício Herweg (‘bem fácil de achar’ – como disse a própria Sheron enquanto marcávamos a entrevista), subi as escadas, bati na porta e fui recebida com um sorrisão.

Simplesmente me encantei pelo Office. Deu pra ver que tudo aquilo foi escolhido a dedo e que era a cara dela!

“Todos que entram aqui falam: ‘Sheron, isso aqui é a tua cara!’ Eu não queria nada convencional... é uma mistura de tudo que eu gosto! Tudo isso eu que escolhi com o maior carinho!”

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Ela contou tudo, desde o início quando começou a fazer arquitetura (quase um ano) e viu que aquilo não era pra ela.

“Eu gostava muito de criação, mas, não era o que eu estava querendo. Vi algumas amigas minhas, bem próximas, fazendo publicidade na mesma época. E elas falavam muito empolgadas que gostavam do curso. Foi então que passei alguns dias observando e me apaixonei! Mudei de curso. Comecei publicidade no outro ano. Comecei a fazer e amei!!! Me encontrei!” Ela mesma admite que não gosta de falar em público, mas que é bem extrovertida, que se dá bem com todo mundo. “Mas enfim, com a vida você vai aprendendo isso.” Disse que se apaixonou por publicidade, se formou em 2013 e aí pensou: “o que que eu vou fazer agora? Eu queria uma coisa diferente! Só que o quê?” Foi então, como a Sheron contou, que, em um almoço em família, todos falaram: “Sheron, você tem que ter uma marca... você tem que fazer alguma coisa com roupa... E o pessoal sempre falava: ‘meu, Sheron, tu se veste massa!’ Então eu pensei: vou usar isso ao meu favor! Se todo mundo me fala isso, é porque alguma coisa tem!” “Uma prima minha, a Luciane, falou: ‘Sheron, vamos pra São Paulo! Vamos se jogar!’ – “Guria, eu não conheço nada lá!” – ‘Eu também não, mas vamos, vamos pegar aqueles ônibus de compra e vamos!’. Então fomos... levei um dinheirinho e comprei algumas peças. Quando voltei, falei para minhas amigas: “venham aqui em casa que eu quero mostrar umas coisas pra vocês”.


“Trouxe o que eu gostava, do meu gosto e estilo. Pensei: as pessoas gostam do que eu visto, então talvez elas vão gostar dessas também! E é claro que sempre que vou pra São Paulo, não penso só nas coisas que eu usaria, penso no gosto das minhas clientes. Aí eu trouxe, mostrei e vendi tudo! Pensei: opa! Bom, daí fui de novo, e comecei a vender. Aí eu pensei, como eu vou fazer para chamar o público? Bati umas fotos e coloquei no meu perfil pessoal do Instagram. Montei uns looks e todo mundo estava gostando.” A coisa estava dando tão certo que atender as clientes em suas casas estava ficando inviável. Sentiu a necessidade de criar um espaço físico para atender suas clientes de maneira mais confortável, que não atrapalhasse e misturasse sua rotina e vida pessoal com o trabalho. “E tendo um espaço para receber as pessoas é outra coisa, né?! Estava meio desmotivada, pensando o que eu iria fazer, o que eu poderia fazer de ‘novo’. Porque lojas de roupas boas aqui em Timbó e região têm bastante! E fiquei pensando no que poderia fazer, e saquei que o atendimento era um diferencial! Então eu tinha a malinha e levava nas casas das meninas. Ia pra Blumenau, carregava aquelas malas de roupas pesadas na caruda. Mas pensando assim: vamos que vai dar certo! Acredito nisso!” Sobre o nome Lalomo, ela conta que “é todo pensado... O La é de Lais, de Sheron Lais. E o Lomo, é de lojinha móvel... como eu não tinha nome antes, eu apelidei de lojinha móvel e aí na criação, juntamente com o publicitário que fez a marca, pensamos nessa junção: La de Lais e Lomo de lojinha móvel. É toda uma pegada, uma identidade visual da Lalomo, uma câmera fotográfica, que veio de lomography (lomografia), que é um estilo que câmera fotográfica e fotografia. E que tem tudo a ver com a moda. Se não tem fotografia não tem moda, né?” Pensando em melhorar seu negócio, a Sheron decidiu fazer o Empretec. “E lá eu vi o quanto eu precisava ter metas, sabe? Porque estava um negócio assim: eu tinha meu negócio ali, mas eu sabia que não estava fazendo certo, que eu deveria ter metas e etc... eu pensava: tá, eu sei, mas como que eu vou criar um negócio e inovar, fazer tudo certo, administrar. Fiz o curso do Empretec e eu vi o que eu precisava mudar, o que eu precisava fazer e melhorar. Esse curso mudou bastante minha vida. Querendo ou não, são nas pequenas coisas que a gente vai mudando. Coloquei uma meta na minha cabeça que esse ano (no caso 2015) eu conseguiria montar meu escritório, meu Office, que é apelidado de Office Lalomo.”

Com a ajuda de seu pai, que é administrador, a Sheron planejou tudo bem certinho para criar o Office Lalomo. Que, cá entre nós, é a coisa mais linda!! Ela explicou que o Office funciona um pouquinho diferente do que era antes. Agora ela atende com hora marcada no Office ou leva até a casa de suas clientes (no momento somente em Timbó). A pessoa envia uma mensagem pelo What’s (47 9102-9291), no Facebook (@lojaLalomo) e pede aquilo que deseja. Independentemente de horário marcado, a Sheron está todas as manhãs no Office (9h às 12h), período em que faz fotos, postagens, a parte administrativa, e à tarde trabalha somente com agendamentos. Tem dias que atende até às 21h, conforme a necessidade das clientes. Aos sábados de manhã ela também atende com horário marcado. Mas, um sábado por mês (das 9h às 12h30 – dependendo do fluxo de clientes), é aberto ao público, o que ela sempre divulga com antecedência na sua página do Facebook e do Instagram (@lojaLalomo).

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“A Lalomo é um atendimento personalizado, individualizado, um atendimento vip, pra cada pessoa. e está dando super certo! Para mim, moda sempre foi me vestir de um jeito que eu me sinta confortável e bem. Nada da pessoa usar algo que não se sinta bem. A Lalomo surgiu por isso, por pessoas que querem coisas diferentes, mas que também querem se sentir bem. É esse o conceito da Loja. E ser um atendimento personalizado é o principal. As pessoas vêm aqui, nós batemos um papo, eu dou dicas. Uma loja personalizada que ajuda a pessoa a escolher o que ela quiser e gosta de usar, pra se sentir confortável, bem consigo mesma. Sempre prezei por isso.” Antes de começar a trabalhar com a Lalomo, a Sheron sempre era procurada e requisitada por suas amigas para ajudá-las a montar looks. “Isso aqui não é um trabalho pra mim, é algo que eu amo mesmo!” Quando ela chega de São Paulo é “(...) uma loucura! E a internet é essencial em todo esse processo. Porque, por exemplo, a cliente está no trabalho, espia o Instagram da Lalomo e, se gostou de alguma peça, já envia um Whats reservando. É prático, simples e rápido.”

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Quem curte se vestir de um jeito diferente sabe que a busca online é um grande aliado. Quem nunca pirou no Pinterest? Então, a Sheron é das nossas: “Eu vivo na internet, sigo muitos blogs de moda. Para arquitetura, por exemplo, sigo o Pinterest. Minha inspiração é na internet, moda, design, listras com flores... Tu joga no Google e ali você acha tudo. Essas inspirações em blogs, Pinterest são importantes!” (risos) Além de peças de São Paulo, a Lalomo também já teve marcas daqui da região. A Sheron é toda caprichosa e cuidadosa no seu atendimento, que vai desde suas idas para São Paulo, já pensando em cada uma das suas clientes fixas. Além disso, ela deixa aberto para suas clientes pedirem o que querer, ou o que gostariam que ela trouxesse de suas viagens à terra da garoa. “Eu já vou anotando e, como eu conheço elas, eu já sei: isso é a cara daquela minha cliente, essa é da outra...” O público alvo da Lalomo é de 18 a 35. Mas é claro que não é tão específico assim, tem de tudo e, como disse a Sheron: “nada impede que senhoras venham comprar, por exemplo. Hoje em dia, a mulher é moderna! Aqui tem de tudo um pouco, para agradar a todos!” Atualmente, a Sheron participa do Núcleo de Jovens Empreendedores da ACIMVI, que como tem como finalidade fortalecer o desenvolvimento de novas parcerias e do poder empresarial e desenvolver ações com o intuito de trazer resultados a todos os integrantes. Ela foi convidada pelo seu namorado e conta que: “o núcleo é um local onde os jovens se reúnem para debater assuntos de todo tipo, mas mais voltado para o empreendedorismo, buscando um networking. Temos reuniões mensais e debatemos o que faremos durante o mês. Nos encontramos pra fazer ha-


ppy hours, palestras (sobre controladoria, administração), ou seja, sempre buscando coisas para aprender a desenvolver essa parte da administração. O mais legal do núcleo é esse networking, para conhecer pessoas, interagir, trocar ideias, inspirações, fazer negócios, essa conscientização, pra ‘expor’ tua empresa, uma forma de divulgar mesmo... Somos em 24 pessoas, mais ou menos. Têm vários nucleados e cada um com sua empresa, e tu podes criar e desenvolver negócios, criar coisas novas. Eu sou responsável pela rede social do núcleo. Depois dessa minha participação no núcleo, percebi que a Lalomo começou a ser mais visualizada, as pessoas começaram a entender melhor o meu trabalho. Foi uma forma de explicar para as pessoas como a Lalomo funciona.” Apesar do receio que teve em entrar no mundo da moda, a Sheron mostra uma força de vontade muito grande e, principalmente, amor pelo o que faz!

“Quando a pessoa acredita no que ela quer, ela tem que ir atrás, tem que ir até o fim! Vai, trabalha até as 10, 11 da noite. Quando você tem seu próprio negócio, você precisa trabalhar, tem que fazer acontecer, acreditar nisso, vestir a camisa e dar teu sangue pelo o que tu gosta. Nada vem de graça, você precisa batalhar!” E conta toda animada que esse ano alcançou uma de suas metas: “A Lalomo alcançou 3 mil curtidas na página e isso foi uma conquista pra mim, era uma meta pra esse ano. E deu antes do esperado! E consegui! Bem legal, demais!” Sobre os projetos futuros da Lalomo, a Sheron contou em meio de risadas, contentamento, ansiedade e muito mistério, algumas coisas bem legais. Mas, é segredo e não posso divulgar aqui (risos). “Pretendo não falar (risos), mas muita coisa legal vem por aí. Tenho planejamentos

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Contato Office Lalomo: Facebook: @lojaLalomo Instagram: @lojaLalomo Whats: (47 9102-9291)

futuros, de venda online, por exemplo. Minha ideia inicial sempre foi e-commerce (comércio eletrônico). Mas como eu vi que em Timbó essa coisa do atendimento personalizado deu e continua dando muito certo, primeiramente penso em criar raízes aqui, para futuramente expandir meus negócios. E, e-commerce é uma coisa complexa, é preciso planejamento prévio, muito estudo... fazer tudo com muito cuidado... e também vender pela internet é uma coisa que ia casar bem com a Lalomo, combina muito... então pro futuro é algo que estou pensando com carinho em fazer acontecer.” No final da entrevista, a Sheron aconselhou que quem deseja ser empreendedor e ter seu próprio negócio deve se jogar, mas de forma consciente. “Se tu acredita no que tu faz e ama isso... É clichê, eu sei, faça aquilo que você gosta. O dinheiro é consequência. Sempre digo isso, é necessário, to aqui pra isso, sim, mas penso: não adianta nada ser milionário e não gostar do que faz. E, o principal, nunca passar por cima de ninguém, ser humilde!” E foi assim, em um ambiente super cool, com música boa tocando, um cheirinho de roupa nova no ar, o sol entrando pela janela, um cappuccino feito por ela, que conheci melhor o mundo Office Lalomo. Gostou? Agende um horário com a Sheron para conhecer o espaço e enlouquecer com as peças lindas que ela escolhe com tanto carinho e dedicação! Sucesso, Sheron! Texto e fotos por Thyara Antonielle Demarchi

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Para comer, rezar e amar... Pastifício Pastutinni Porque a vida é massa! A Pasta (do latim tardio pasta, derivado do grego pàste = farinha misturada com água) é o produto que se obtém amassando farinha de cereais com água ou outro líquido e sal. Ela pode ser fresca, seca, com ovos ou recheada. Foi esse mundo que transforma farinha, água e ovos em massa que mãe e filha escolheram como profissão. Ou melhor, devoção!

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as pessoas certas no nosso caminho. Desde quando cheguei, fiz amigos especiais. Pessoas que até hoje são nossos grandes amigos. O lugar da tristeza foi tomado pelo conformismo e gratidão, aliados à fé e otimismo de Soraia, e isso podemos perceber nos seus olhos, que brilham e transmitem isso enquanto ela fala. Todas essas adversidades acabaram dando mais força e o elo entre mãe e filha consolidou–se ainda mais. Dia de inverno ensolarado. O galo na torre da capela se destaca na imensidão do azul do céu. É em um salinha na impotente Paróquia Imaculada Conceição, na cidade de Rio dos Cedros, que está localizada a Pastifício Pastutinni. Assim que abri a porta da pequena fábrica, fui logo chamada pela Soraia para ver da janela os passarinhos comendo os restos de comida que foram jogados pela filha Brenda. Soraia: Eles ficam chamando. E, se ela não trata, eles vêm até a porta. Em frente às mesmas janelas, algumas massas secavam ao sol.

VALEU: E a ideia de fazer massas para vender? Como surgiu? Brenda: Eu já fiz de tudo um pouco. Já fui pra área da saúde, fui bancária, designer de interior. Cheguei a fazer outras faculdades também. Mas a origem falou mais alto. Na verdade, eu já estava nesse caminho desde pequena, porque nos fins de semana sempre fazíamos massas nas reuniões de família no sítio. Aquele macarrão esticado na mesa, bem comprido... meu avô, minha mãe, todo mundo ajudava a fazer. Nós fazíamos talharim, spaghetti... E, então, uma coisa chamou outra e, de uma necessidade, porque a crise começou a apertar, surgiu a ideia de fazer disso um negócio. Na época, eu já estava cursando gastronomia. A tradição de fazer massas foi trazida da Itália pelos avós de Soraia, (família Marchioro e Maragno) e também pelos avós de seu marido (Garutti), que vieram de Gênova e se instalaram no Rio Grande do Sul, nas cidades Bento Gonçalves e Caxias, e vem sido passada de geração em geração. Soraia: Eu fazia massa de fim de semana e a Brenda já de pequenininha ficava junto observando e ajudando.

O sobrenome é italiano, mas o sotaque de Soraia logo denuncia as origens gaúchas. Soraia: Nasci no Rio Grande do Sul, mas depois mudei para Atibaia-SP, onde tive meus filhos e, então, viemos para Timbó.

VALEU: Como vocês vieram parar em Timbó? Soraia: Meu marido faleceu em um acidente e eu vim com meus filhos pequenos, um bebê de seis meses e a Brenda com treze anos, pra cá, primeiro morei em Indaial e, em 2005, fomos para Timbó. Vim porque minha prima, que foi praticamente criada comigo, a Clarice Piller, já estava aqui. Ela trabalhou durante dez anos no SENAI de Timbó. E não foi fácil, sabe... Foi uma batalha bem grande, mas Deus foi tão bom que colocou

Soraia: Eu sempre com uma massa na mesa, sempre presenteando os vizinhos, minha casa foi sempre muito frequentada pelos amigos e todos diziam: “ai, que massa gostosa!!!! Você não faria uma pra mim?” E foi aí que surgiu a ideia. A Brenda resgatou toda essa tradição e disse: “Mãe, vamos fazer isso! Esse é o caminho, é o que eu gosto de fazer e eu vejo que você também gosta.” Acho que ela via o amor com que eu fazia as coisas... Brenda: Eu também sempre fui apaixonada pela Itália!! Inclusive, pretendo ir esse ano fazer um curso. Soraia: Estou segurando o máximo que posso a nossa sócia, parceira e amiga, pra estarmos bem estruturadas quando ela for.

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VALEU: Por que Rio dos Cedros? Soraia: Porque acho que fomos trazidas pra cá. Sabe quando tudo é favorável? É inacreditável... a gente tem uma ligação com Rio dos Cedros, pelo fato de ser uma cidade acolhedora, pequena, italiana. Nos fins de semana, vamos lá pra cima, passear, temos muitos amigos. E eu também perdi minha mãe aqui. Criamos um vínculo até maior com o Padre José, com a igreja, com o pessoal do hospital. Foi numa dessas vindas aqui na Paróquia, num momento de dor, que compartilhamos com o Padre José o que estávamos passando. Como eu fiquei cuidando da minha mãe nesse período em que ela estava doente, a Brenda ficava em casa cuidando do irmão, e teve que parar de trabalhar. Quando a coisa se aquietou, a gente pensou: “E agora? Bom, vamos continuar que a vida segue.” Comentamos com o Padre José o que estávamos pretendendo e ele disse que estava disposto a nos ajudar. Mostramos nosso trabalho e ele ficou encantado! E nos abraçou de uma forma especial! Então, viemos pra cá. E fomos muito bem recebidas pela comunidade. Uns ajudando com contabilidade, outros com contatos... foi um processo bem família. A Doralice, Diretora de Turismo daqui, se preocupa muito em manter a tradição italiana, e tem dado muita força. Já recebemos propostas pra ir pra Blumenau, Joinville e Rodeio, mas nós queremos ficar aqui. “Pronto! Agora você vai se esquentar...” – disse a Soraia quando me serviu uma xícara de chá. “Eu ia fazer um chimarrão, mas usei o mate pra fazer uma massa.” Esse chá foi remédio pro frio e também pra minha tosse.

VALEU: Qual o diferencial da Pastifício Pastutinni?

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Brenda: Toda a matéria prima vem da Itália: o grano duro, que é o principal, é um trigo diferente, chamado triticum durum, que é remoído

até três vezes, e é usado para as massas mais secas. A farinha branca, usada para as massas recheadas e mais moles, é conhecida na Itália como doppio zero ou zero zero, que tem alto teor de glúten. Além disso, nossas massas são feitas sem corantes e conservantes. Por isso, têm uma durabilidade menor. Duram, aproximadamente, 120 dias. A massa passa por todo um ritual indispensável e sagrado. A seca, por exemplo, passa por um processo de secagem de 72 horas, para evitar emboloramentos, fica no varal, com ventilador, e depois é colocada em formas para finalizar a secagem (como aquelas que estavam perto da janela ao sol). Depois vai para a embalagem. Soraia: A embalagem é feita com material reciclado, porque nós também nos preocupamos com o meio ambiente.


Visite o site: www.pastutinni.com.br

“As crianças adoram nosso gnocchi colorido! Quando elas vêm junto com os pais, ficam encantadas com o modo que a massa é feita. Elas dizem: “Quanto ovo!!!”

Brenda: Trabalhamos com nosso próprio extrato vegetal, temos a massa de cenoura, beterraba e espinafre. Esse extrato é feito todo artesanalmente, tem que secar, moer, até ele virar um pó pra ser introduzido na massa. E aí nós listramos as nossas massas. Fica tudo muito colorido e divertido. Nada como comer com os olhos primeiramente, né?! Sentir o cheiro... Nós queremos trabalhar com todos os sentidos das pessoas, olfato, tato, visão, paladar...

Entre os produtos, estão as massas integrais, os talharins coloridos, de cenoura, beterraba, espinafre, erva-mate e de vinho, o tortéi da Serra Gaúcha, recheado com abóbora, o spaghetti, o agnoline, os ravióles recheados, o Sorrentino, recheado com queijo de búfala e manjericão, o Romanito, um gnocchi gigante recheado com 10 gramas de mussarela, feito com somente 18 % de trigo, por isso, desmancha na boca. A massa de chocolate recheada com cereja e cream cheese (idealizada pela Brenda, que já está estudando fazer uma massa de chocolate branco).

Soraia: As crianças adoram nosso gnocchi colorido! Quando elas vêm junto com os pais, ficam encantadas com o modo que a massa é feita. Elas dizem: “Quanto ovo!!!” Às vezes, estou colhendo temperos na horta e vejo elas correndo pelo pátio da igreja. É muito especial!

As massas são congeladas e, quando colocadas na água fervente, não grudam e ficam prontas em 10 minutos. Brenda: Usamos queijo maturado, é parmesão mesmo! Nossos ovos também são todos selecionados. Além de tudo isso, tem que conversar com a massa, cantar com a massa, tem que fazer com amor.

Soraia: Sempre trabalhamos meditando, ouvindo uma boa música, tomando um chimarrão, e essa energia que passamos pra comida. E acho que é isso que as pessoas sentem. Ao menos, é o retorno que temos tido. Brenda: A massa traz de volta valores que estão perdidos. A reunião em família, o desfrute de uma refeição...

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No meio da nossa conversa, o sino bateu. O badalar do sino da Paróquia Imaculada Conceição é lindo e singelo! Lembra um sino tibetano. E traz uma paz... Soraia: Eu me sinto num mosteiro! Eu venho trabalhar e esse sino... essa paz que eu sinto aqui pra trabalhar... essa energia... aqui é maravilhoso! Além dos ingredientes serem de altíssima qualidade e selecionados com muito cuidado, o grande diferencial da Pastifício Pastutinni é essa energia e amor com que os produtos são feitos. E, quem come, com certeza, sente!! É um alimento para a alma! Atualmente, podemos comprar as massas da Pastifício Pastutinni direto na fábrica, mas as massas secas também são encontradas na San Michele, em Rodeio e podem ser encomendadas através da tele-entrega. Rio dos Cedros e região certamente ganharam um presente com a vinda da Pastifício Pastutinni. E podem ganhar ainda mais, pois, entre as pretensões de Soraia e Brenda, está a de abrir um ponto de venda e servir alguns dos seus produtos. Amém! Que assim seja! Já pensou uma cantina que serve a autêntica pasta italiana aqui do ladinho? Buona fortuna para a Pastifício Pastutinni! É o que a VALEU deseja!

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Fotos e texto por Clara Weiss Roncalio Referência: https://sites.google.com/ site/paixaogastronomica/home/mundo-das-massas


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“O pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá-lo e servi-lo aos amigos” Aquilino Ribeiro Hugo Chaves, o engenheiro alimentar especializado em enologia a quem Celso de Lemos incumbiu a tarefa de fazer vinho do Dão nas terras de família, acrescentadas de uns tantos hectares adquiridos para o efeito, tem o ar atarefado dos homens da lavoura a quem o negócio prospera. Numa sala enorme, virada à vinha, sentado a uma secretária coberta por papéis com anotações à mão e por revistas de enologia, recebe-nos indo directo ao assunto:

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Conversa Ă volta do vinho


da vinha. As vossas vinhas não têm a distância habitualmente usada na região, pois não? - Então o que querem saber?

- Comecemos pelo trajecto académico e profissional que acabou por te trazer aqui, à Quinta de Lemos. - Eu estou aqui desde 1997. Já lá vão 18 anos. Tinha acabado de fazer um Bacharelato em Engenharia Alimentar em Viseu e fui convidado para vir para aqui, porque tinha umas relações familiares com o Celso que é o proprietário. A ideia inicial não era fazer algo destas dimensões. Era criar um espaço onde ele pudesse vir descansar com a família e trazer alguns amigos e clientes e onde se produzisse um bom vinho do Dão. O Celso tem um amor desmedido a esta terra. A Viseu. Para terem uma ideia, um dia estávamos juntos numa feira de vinhos em Dusseldorf e ele esteve duas horas a ouvir o relato do Académico de Viseu. – Hugo com um sorriso rasgado. - Já trabalhando aqui, fui estudar enologia para Trás-os-Montes. O meu percurso académico foi este, sempre acompanhado pelo trabalho, que aqui na Quinta de Lemos, começou como disse, há 18 anos, adquirindo as propriedades, plantando as vinhas, orientando a construção da adega.

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- Uma questão que te queríamos colocar porque ficámos surpreendidos ao chegarmos aqui, relaciona-se com o compasso

- Engraçado que tenham reparado. De facto, não têm o mesmo compasso e eu passo a explicar porquê. No período que mediou entre 1997, quando o projecto começa e 2000, quando iniciamos a plantação das vinhas, deram-me a possibilidade de fazer diversos estágios, na Califórnia, em Bordéus, na Borgonha, para perceber melhor este mundo dos vinhos. Por outro lado, à medida que fomos ganhando dimensão de área, o projecto começou a ganhar outros contornos. A ideia inicial, de fazer um vinho para receber amigos e clientes deu lugar a outra, bem mais ambiciosa de criar um dos melhores vinhos do mundo, usando as nossas variedades e a nossa gente. Por isso, os estágios que realizei e as visitas que fiz a vinícolas do mundo inteiro tinham um único objectivo, perceber como havíamos de plantar a vinha com a finalidade de atingir o objectivo de fazer um dos melhores vinhos do mundo. Acabámos por decidir que a melhor forma de plantio era a praticada em Saint Emillion e foi a que adoptámos. A condução de 1 metro e meio por um metro, 6000 plantas de densidade. Tecnicamente, fiquei convencido que, para esta dimensão, este era o melhor método para a plantação da vinha em termos vitícolas e continuo convencido disso. Para mim é o melhor sistema de condução e a melhor densidade.

- E porquê? Explica-nos um pouco os motivos dessa opção. - Porque a nossa região é muito semelhante em termos climáticos à de Bordéus, no caso a Saint Emillion, com uma única diferença que é o tipo de solo. En-


quanto lá é argilo-calcário, nós aqui temos um solo de areia granítica, o que imprime um resultado completamente distinto aos vinhos. Qual é o nosso maior problema aqui no Dão e isso é conhecido do produtor e do consumidor? É a constância. Podemos fazer o melhor vinho do mundo, mas só o conseguimos de 1 vez sobre 10. Não temos regularidade na qualidade da produção. Não é na quantidade é, sobretudo, na qualidade. Na regularidade da qualidade é que temos um problema grande, daí a desconfiança do consumidor e a não afirmação da região. Hugo fala de forma pausada, lenta, como que para nos dar tempo para digerirmos as informações que vai transmitindo e para que possamos acompanhar a explanação técnica que entende necessária. - O que é que nos levou a introduzir este novo sistema, que é único em Portugal, à excepção de umas quantas outras vinhas que foram plantadas por mim ou sob a minha supervisão? Foi o facto de com este tipo de plantio, com o dobro das plantas, produzirmos a mesma quantidade de uma plantação convencional. Isto é, o rendimento unitário de cada planta é aproximadamente metade do de uma planta numa plantação convencional.

- Isso tem a ver com o compasso escolhido ou também tem a ver com a poda que é feita posteriormente? - É óbvio que depois tudo isso tem de ser ajustado, porque acabamos por ter um microclima diferente uma vez que temos uma área folhear muito superior ao normal, logo uma evapotranspiração muito maior, ora isso implica uma mentalidade diferente em relação à manutenção da vinha. Mas, voltando atrás, o que nos levou a fazer este tipo de compasso foi o facto de que produzimos menos por planta e por isso, quando temos um determinado número de folhas, que são as fábricas que produzem os foto assimilados que são canalizados para as uvas e que as amadurecem, se tivermos um número x de folhas e os nutrientes forem canalizados para 4 uvas, elas vão amadurecer muito mais rapidamente do que se o mesmo número x de folhas tiver de alimentar 8 uvas, logo vou ter uma maturação mais precoce, o que implica uma vindima muito mais cedo, o que nos permite ultrapassar o grande problema da região que acabei por não explicar antes e que é o equinócio de 21 de Setembro que vem sempre acompanhado de chuva. Explicadas as motivações por detrás da opção técnica que tomou para o plantio da vinha, Hugo retoma o ritmo normal da conversa, substituindo a fala pausada e quase professoral por um tom coloquial e até acelerado em alguns momentos, como que querendo chegar rapidamente ao cerne da questão, o vinho que produz.

- Em condições naturais, da forma como se trabalha a viticultura na região e como sabem, no Dão as vindimas ocorrem no final de Setembro princípio de Outubro, estamos nós em plena época de chuvas. Se tudo correr bem não chove, dizem, mas nós não nos podemos permitir ao “se tudo correr bem”, por isso temos de vindimar antes de 21 de Setembro e para vindimar antes dessa data temos de antecipar a maturação e para antecipar a maturação temos de produzir menos, daí termos de aumentar o número de plantas por metro quadrado, para que não se perca tanto rendimento.

- Essa opção reflectiu-se na enxertia? Isto é, levaram em consideração as variedades que habitualmente produzem mais e as que produzem menos? Sabemos que o Jaen, por exemplo, produz muito mais do que o Touriga Nacional. - Não, porque nós aqui fazemos a nossa monda, não esperamos que o São Pedro a faça. – Hugo com um sorriso malicioso no rosto. – Cada variedade na Quinta de Lemos produz 4 toneladas de uvas por hectare. Se na Touriga temos de deitar abaixo 3 toneladas de uvas que são o excedente, se calhar no Jaen temos deitar 5, porque produz muito mais, na Tinta Roriz outras 5, no Alfrocheiro Preto, só 3 ou 4. Nós fazemos essa monda. Mas, com tudo isto que expliquei, acabámos por produzir um vinho do Dão, com as castas do Dão, com as pessoas do Dão, mas com uma personalidade diferente e características bem distintas, porque temos uvas maduras mais cedo, acabamos por vindimar em Agosto. Se eu dissesse isso há uns tempos, diziam que eu era maluco.

- Se bem que, lembro-me de nas vinhas antigas se vindimar em Agosto. - Ora aí tens. É que as vinhas velhas eram plantadas com este compasso. Até mais estreito. Eram tratadas manualmente e por isso duravam o dobro dos anos. Logo, por causa da idade, frutificavam cada vez menos, o que faz com que se diga hoje que (não só, mas também) das vinhas velhas é que se fazem os grandes vinhos. Voltando à Quinta de Lemos, acabámos por criar um estilo de vinho completamente diferente, porque sendo pioneiros no tipo de plantação, produzimos um vinho com um estilo próprio. Embora sejamos um vinho do Dão, somo-lo de forma bem diversa. O que ganhámos? Ganhámos uma regularidade na qualidade dos vinhos anual, por causa da vindima em Agosto, porque evitamos a chuva da vindima que é o factor que mais deprecia a qualidade do vinho. E

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um vinho com uma identidade.

- E qual é essa identidade? Como definirias os vinhos da Quinta de Lemos? - São vinhos muito ricos, com muita estrutura. São vinhos que colocamos no mercado 5 anos após a colheita porque fazemos a sua estabilização natural e como são tão ricos, tão ricos, precisam de mais tempo para estabilizar. Não fazemos estabilizações físicas nem químicas, por isso precisam de mais tempo. Depois são vinhos com uma longevidade enorme. Temos vinhos com 10 anos que parecem que foram engarrafados ontem.

- E que vinhos é que estás a fazer actualmente? - Temos 25 hectares de vinha, dos quais, 60% de Touriga Nacional, 20% de Tinta Roriz, 10% de Jaen e 10% de Alfrocheiro e temos um pouco de Encruzado, casta branca. A Touriga Nacional é uma das melhores castas que existem no mundo, que ladeia perfeitamente com um Merlot ou um Cabernet Sauvignon, ou um Syrah. É uma casta quase completa, que faz um varietal de excelência e que, em vinhos de lote, dá logo outra dimensão ao vinho. A Tinta Roriz é uma casta que em Portugal é mal-amada por uns e adorada por outros, porque é uma casta que tem uns taninos que ou são muito secos, ou muito herbáceos ou muito vegetais. É uma casta que precisa de calor. É o Tempranillo espanhol, só que Espanha tem um calor

enorme, muito maior e mais seco que Portugal e o solo é diferente. Por exemplo, aqui chovem cerca de 1200 a 1400mm de média anual e em Espanha 300, 400, mas lá as plantas nunca entram em stress hídrico e aqui entram, por ser um solo arenoso granítico, que não tem capacidade de retenção de água. Nós, para a produzirmos, porque acho que é uma casta espectacular e que faz um vinho fantástico, embora tenha aquela característica seca, mas de que eu gosto e que dá um esqueleto aos vinhos de lote muito interessante, só produzimos as tais 750 gramas, fazemos cinco uvas, mas só aproveitamos os dois elos superiores do cacho. Um cacho de Tinta Roriz tem um quilo de peso, em média, nós produzimos 750 gramas, menos do que o peso médio de um cacho, mas cortamos o corpo todo do cacho, só usamos os dois elos superiores junto ao pedúnculo. Reparem bem a quantidade de mão-de-obra que esta casta exige! Mas, produzimos um Tinta Roriz que é de chorar devagarinho. – Risos.

-Fazem varietal de Tinta Roriz? - Sim, fazemos mono-varietais de tudo. A partir de 2008, a nossa gama passou a ser 4 varietais e 2 ou 3 blends. Queremos levar ao mundo inteiro o sabor específico de cada variedade. Se aqui estivesse o proprietário diria que os blends são uma perda de tempo. Para ele só deveríamos estar a fazer varietais.

- Mas os vinhos do Dão são, por definição, vinhos de lote. - Por isso temos os blends. Os que nos dão mais trabalho são os varietais porque exigem que as uvas saiam perfeitas da vinha e cheguem perfeitas ao lagar. E quando falo em varietal, aqui, significa 100%

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de uma casta, porque, como devem saber, pode ser feito um varietal com 85%, 15%. Mas, voltando aos vinhos e às variedades, depois da Touriga e da Tinta Roriz, temos o Jaen que aqui fazemos com 3 cachos, o que exige muita monda, porque é uma casta que produz em abundância. Facilmente se chega a uma produção de 20 toneladas, nós só aproveitamos 4, o que quer dizer que deitamos abaixo cerca de 75% da produção. O pessoal aqui diz que eu sou doido, mas tem de ser assim, por isso é que o nosso Jaen é tão concentrado, com tanta matéria fenólica, com tanto corante. Finalmente o Alfrocheiro Preto, que foi uma casta que eu mal plantei disse que não conseguiria fazer nada dela. Difícil. Talvez por isso existam apenas 2 ou 3 produtores a fazer varietal de Alfrocheiro.

- Mas quando fazem é muito bom! – Risos - Disseste e bem. Quando o fazem! Porque acontece fazerem bem em 2005, mas depois só sair igualmente bem em 2009. Ora, como expliquei, isso para nós não dá. Tem de existir constância, regularidade. Como é que torneámos a questão? O Alfrocheiro tem um cacho muito denso, uma espécie de Pinot Noir, com um peso médio na casa dos 120 gramas. E tem um número de bagos tão grande para o tamanho de ráquis, que há uma percentagem de bagos, quando eles começam a aumentar o volume por altura do pintor – Hugo referindo-se ao período do ciclo de vida da uva, cerca de 40 a 50 dias após a fertilização do fruto, em que ela muda de cor, marcando o início da maturação – que não conseguem ficar expostos ao sol. Ficam tapados pelos que vingaram, ainda verdes e sem a maturação necessária. Em anos excepcionais para o Alfrocheiro, quando chove na floração, provo-

cando um aborto natural das flores a que chamamos desavinho e um período que antecede a vindima, seco e quente, fazemos um vinho maravilhoso. Agora quando é que estas condições se reúnem? – Hugo fazendo um silêncio de suspense no final da pergunta retórica. – Quase nunca. Então, já doido com o Alfrocheiro e prestes a mandar cortar a vinha, comecei a reflectir como é que conseguiria provocar o desavinho, o aborto das flores. À mão era impensável. Uma monda química era possível, mas nós não usamos venenos. Como é que eu ia conseguir aquilo? – Hugo aumentando o suspense. – Despontando a vinha no meio da floração. Se fizermos um corte na planta, nos ápices vegetativos, é como se estivéssemos a amputar a planta. Fisiologicamente o que é que vai acontecer, naquele período muito preciso da floração, todos os nutrientes são canalizados para a produção do fruto, por isso se diz que a vinha não cresce nesse período, a seiva é canalizada para a floração, para que se transformem as flores em bagos, ao amputarmos os ápices vegetativos, estamos a provocar uma competição entre sarar uma ferida que foi aberta e a transformação da flor em fruto. Conseguimos com isto um super resultado. Temos os cachos muito mais abertos, não temos problemas com podridões, porque numa situação normal, num cacho denso, os bagos internos que dão um caracter rústico aos vinhos, normalmente apodrecem. Se os abrirmos, estão todos podres. Ora, encontrámos esta solução que é fácil e simples, porque no fundo, em vez de fazermos a desponta no final da floração para dar às plantas uma melhor exposição ao Sol, fazemo-la no início da floração e temos este resultado. Isto, normalmente, é considerado um problema fisiológico, em termos


vitícolas, o desavinho é um problema fisiológico, mas no caso do Alfrocheiro é um benefício. Passámos a ter um vinho que é o nosso vinho mais vendável.

- Quanto aos vinhos de lote? - Fazemos três. Um que é uma espécie de topo de gama, com um perfil mais internacional, estagiado 100% em madeira nova, com uma escolha meticulosa das nossas uvas mais ricas e do qual já produzimos cerca de 10 000 garrafas, o que é muito: é o Dona Georgina. Depois produzimos outro que é o típico vinho do Dão, apesar de com um estilo muito próprio, 30% de madeira nova de estágio e usando as 4 variedades: é o Dona Santana. Fazemos ainda, dependendo dos anos, o Dona Louise, que é um vinho mais fresco, mais gastronómico, um vinho de sommelier, que é um blend que só não leva Alfrocheiro. Finalmente temos um vinho branco 100% Encruzado.

- Embora esteja mais ou menos subentendido no que disseste, gostava só de esclarecer um pormenor. A mão-de-obra é toda da região? - Sim, sim. Toda daqui.

- Deve ter sido engraçado explicar que tinhas de desavinhar o Alfrocheiro ou de deitar ao chão 75% da produção de Jaen. - Nem queiram saber. Mal cheguei começaram-me logo a chamar de maluco. Isso foi engraçado, mas hoje respeitam-me. Os resultados estão aí.

- Como é que vês este despontar dos vinhos do Dão, com os novos vinhos de quinta a afirmarem-se um pouco por todo o lado, na maioria dos casos desenvolvidos por enólogos da tua geração?

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- É moda. Há 50 anos só existia o vinho do Dão, eramos os maiores. Depois apareceram os vinhos do Alentejo e do Douro que rapidamente nos ultrapassaram. Eram vinhos muito diferentes dos que se faziam por aqui, muito mais encorpados, mais doces e sobretudo, muito mais chatos. Isso é fácil de comprovar. Ainda há dias disse isto, vais jantar e colocas um vinho do Douro e outro do Dão na mesa e vais ver qual é a garrafa que se bebe. Duas pessoas, senão bebem-se os dois porque há falta de vinho. – Risos. – O que se bebe é o mais gastronómico, que é o Dão. É uma característica do solo, que faz com que os vinhos do Dão sejam vinhos mais frescos, com uma estrutu-

ra tânica que pede mais comida. Enquanto um vinho do Douro pode ser um vinho social, que se bebe tranquilamente pela doçura e porque os taninos também são doces, o vinho do Dão é um vinho que pede comida e por isso, à mesa, bate qualquer outro. Um Douro ou um Alentejo, com a comida perde-se, torna-se cansativo e acabas por não conseguir bebê-lo.

- Isso nunca me aconteceu, não conseguir acabar de beber o vinho. – Gargalhada geral. - O grande problema para o Dão é que acaba por ser avaliado e classificado num registo que não é o seu registo de consumo. As provas não são realizadas à mesa, durante uma refeição, são feitas “às secas” e isso reflecte-se nas escolhas, os vinhos do Dão levam sempre pancada, porque te afectam muito mais as papilas. Só que 99% do vinho é consumido à refeição e não é aí que se avalia. Hoje, felizmente começa-se a dar alguma importância a isso com os Chefs de Cuisine e as suas harmonizações e aí os Dão começam a vir ao de cima. Claro que o trabalho dos enólogos melhorou muito o que era feito, mas não retirou as características essenciais da região.


- Hugo, o que é que um curioso de vinhos no Brasil vai encontrar nos vinhos portugueses que não encontra num vinho do Novo Mundo? - A tradição. Vai encontrar a tradição. Vai encontrar um vinho feito em lagar, de forma artesanal, isso é impensável na Argentina, no Chile ou na Califórnia. Nós produzimos desta forma há centenas de anos. Isso é único. Só existe em Portugal, em França e em Itália. Na Quinta de Lemos somos umas crianças neste meio do vinho, mas há famílias a fazer vinho há mais de trezentos anos. É muito tempo. Isso tem um peso. O peso da tradição. Não há como experimentar de mente aberta e quem o fizer, não tenho dúvidas que sentirá em cada copo o trabalho artesanal que está por trás daquela garrafa e o carinho e a dedicação que gerações e gerações dedicaram às plantas que dão o fruto que permite essa experiência. Hugo é emotivo. Fala gesticulando para dar enfase às palavras que quer realçar e vive intensamente a sua paixão pelas vinhas que plantou. O Dão é o seu reduto, que defende intransigentemente.

Brindemos a isso! Texto por João Moreira Fotos por Studiobox

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Koala da Galiza para o Mundo por Lopo de Castilho geral@museudosacarolhas.com www.museudosacarolhas.com www.facebook.com/museu.dosacarolhas Se o nosso amigo leitor pensa que vamos falar desse simpático animal Australiano que dá pelo nome de Coala, desengane-se; Vamos falar-vos sim de uma empresa vinda do continente Europeu, mais concretamente do Reino de Espanha! Talvez para o leitor ou leitora menos Enófila e dada às coisas dos Vinhos, esta marca não seja muito familiar, mas julgamos que, para os demais leitores “habitués” das coisas do Vinho, este nome possa ser mais familiar. Com efeito, este fabricante Galego é uma das mais importantes referências do momento, no que diz respeito a acessórios báquicos e congéneres. No que diz respeito ao Museu do Saca-Rolhas, este é para nós um nome crucial, não só por se tratar de um dos nossos mais recentes parceiros, mas também por ser um fabricante de Saca-rolhas de excelência. A gama deste fabricante é razoavelmente vasta; O seu modelo mais conhecido é muito provavelmente o Koala Retro , ou não fosse ele um dos modelos promocionais – isto é, com gravações de nomes e marcas de vinhos, regiões demarcadas, etc. – mais difundidos por exemplo, no mercado Português. Trata-se de um modelo que temos utilizado muitas vezes e que nunca nos decepcionou! Originalidade, fiabilidade e com um preço atractivo, são certamente alguns dos motivos que tem contribuído para o seu sucesso internacional. Mas o nosso preferido do momento, é incontestavelmente o modelo Koala High Tech. ( Ver o nosso Video https://www.youtube.com/watch?v=WJG-bqQEudo )

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Trata-se de um saca-rolhas de bolso simultaneamente sóbrio e sofisticado, e acima de tudo extremamente prático e eficiente: Resumindo Design de qualidade.

Extremamente ergonómico, este modelo não só cabe bem em qual quer bolso, como se adapta bem a qual quer mão que goste de abrir uma boa garrafa de vinho. Quanto á espiral, do tipo “rabo de porco é devidamente revestida a Teflon, de modo a perfurar sem dificuldade qualquer tipo de rolha de cortiça. Para que possa estar melhor adequado às diferenças de gosto do seu futuro utilizador, este Saca-rolhas está disponível numa vasta gama de cores, que incluem até uma versão cromada e outra dourada. O Koala High Tech para além de estar munido de uma lâmina de corte de cápsulas, também tem integrado um “saca-caricas”, para permitir abrir uma “jolas”(*), num final de tarde mais quente… (*Esta é uma expressão que muitas vezes utilizamos por aqui em Portugal para, entre amigos, nos referirmos a uma cerveja) Resumindo, um saca-rolhas que dá prazer não só contemplar, mas também utilizar. E para quem pensa que a concepção de um bom saca-rolhas não tem muito que se lhe diga, gostaríamos ainda de mencionar que este saca-rolhas foi o resultado do trabalho de uma excelente equipa de Designers. Com efeito ele é o fruto da colaboração entre a Koala e o Estudi Ribaudí, uma equipa composta por Jordi Ribaudí Trepat, Maite Pérez, Marc Durán Farré e David Morera Valdelomar; sem dúvida alguma, uma equipa Catalã de grande qualidade. Para o seu sucesso actual a Koala, empresa capitaneada pelo empresário Francisco Barbera Traspuesto, tem apostado não só na inovação, mas também na excelência do Design. Assim, quase todos os acessórios que comercializa (nos quais se incluem também os Saca-rolhas), não só foram o resultado de um trabalho de concepção e Design bastante cuidado, mas também estão protegidos por patentes internacionais. Nem as embalagens, como por exemplo as do referido modelo High Tech, escapam a esta estratégia de excelência, fruto do Design da V.O. Studio, de Vigo. Por todos estes motivos, julgamos que este é mais um parceiro de excelência, a integrar o projecto Museu do Saca-rolhas ao qual desde já dizemos, bem-vindos! O pessoal da Koala já nos convidou para visitar-mos a sua fábrica, e assim nos desvendarem um pouco mais da sua História bem como o “segredo” da qualidade dos seus produtos; dentro em breve esperamos poder concretizar essa visita, a qual certamente dará lugar a poder contar um pouco mais sobre a História deste fabricante, bem como deste instrumento báquico da nossa predilecção. Mas por hoje ficamos por aqui, dizendo uma vez mais, Viva o Vinho, Viva a cortiça, viva o Saca-Rolhas!


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Trilha sonora da sua vida Parte 6 - A trilha do ciclismo Desta vez o ambiente onde escrevo é diferente... não com meia luz, com música ao fundo e o delicioso aroma do café, mas sim, dentro do avião, muito longe de casa, durante uma viagem. A trilha sonora é diferente... o som das turbinas, do ar condicionado, das pessoas murmurando ao redor. Está é a trilha que diz claramente, “você não está mais no local de origem e está a caminho de algo desconhecido”. Sempre que viajamos, por mais que já tenhamos visitado algum local, a viagem é algo desconhecido... carro, avião, bicicleta... sim... viajar de bicicleta, ou o simples fato de andar de bicicleta! Está é uma das formas mais interessantes e agradáveis que já tive oportunidade de viajar. Depende diretamente do seu esforço e sempre é desconhecido o destino após a próxima curva. Viajar de bicicleta transmite uma liberdade momentânea difícil de explicar, mas fácil de entender, e claro, não poderia perder a oportunidade de criar uma ambiência sonora para cada momento. Por alguns anos, agora parado devido falta de vergonha na cara rsrs, fui um cicloturista ativo e dedicado. Era um momento importante de reflexão, pois pedalar faz você pensar muito... principalmente quando você se depara com uma montanha a sua frente! Além de exercício para o corpo, um incrível exercício para o Eu, sempre acom-

panhado do fone de ouvido com músicas escolhidas especialmente para cada viagem. Existem formas diferentes de, como dizemos, pedal, porém quero focar no cicloturismo, uma importante forma de viajar, em que a nossa região é referência nacional e que possui milhares de adeptos ao redor do mundo. O ciclo turismo é uma modalidade de ciclismo que consiste em você efetivamente viajar, utilizando como meio de transporte a bicicleta, sem ajuda para carregar sua bagagem e percorrendo o caminho na sua velocidade. Minhas viagens, além de físicas, sempre foram também emocionais, pois eu sempre tive como pano de fundo um playlist para cada importante momento. Ao ouvir música enquanto percorremos os caminhos, as paisagens ficam automaticamente preenchidas por uma trilha, exatamente como em um filme. Imagine você descendo um morro margeado de árvores muito verdes e ao fundo montanhas... imagine esta imagem crua, silenciosa, apenas com o som da natureza, que por si é incrível... agora imagine está mesma paisagem e bem baixinho em conjunto você está ouvindo qualquer música do duo irlandês Secret Garden. Simplesmente sem palavras! O objetivo do texto desta edição não é explicar ou falar, mas sim convidar você para que na próxima vez, faça uma lista musical específica para o momento... quero da mesma forma, compartilhar a trilha, que fez parte de praticamente 90% das minhas “caminhadas” de bicicleta, e convidar o leitor para buscar sentir parte daquilo que eu tentava criar ao juntar imagens incríveis com obras musicais e com isto criar um momento ímpar. Bom proveito e tenha um bom pedal. Por Esdras Floriani Holderbaum

Lista musical: - The old tree – Roundo mountain - Art of a common kind – Dominique Fraissard - The Stable song – Gregory Alan Isakov - July – Amy petty - Distant street lights – Codes in The clouds - Humanity – Ry Moran - Find me – Amy Petty - Motherland – Natalie Merchant - My father’s father – The Civil Wars - Teardrop – José González

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O Car Seat Head rest é a voz de uma geração

“In the morning I’m a corpse Draft my emails to the corporation `you’re saving my life every day, god bless you`” Esse trecho da letra da primeira música que ouvi do Car Seat Headrest demonstra o motivo pelo Will Toledo, 23 anos, ter conquistado minha atenção rapidamente: a urgência do fim da adolescência e início da vida adulta é nítida em suas letras. O tom confessional melancólico logo me lembrou do Rivers Cuomo em sua melhor fase: Blue Album e Pinkerton. A música era do álbum Teens of Style, que na realidade é uma compilação de canções feitas de maneira “caseira” pelo Toledo (seu estúdio oficial era no banco traseiro do carro de seus pais) dentro o período de 2010 e 2014; que já rendeu boas críticas e solidificou a parceria com a gravadora Matador Records. Teens of Denial é o resultado de um Toledo mais confiante e com os benefícios de se ter uma gravadora trabalhando ao seu lado (leia-se: uma banda suporte a disposição e um efetivo trabalho de produção das canções), sem que a inocência e o feeling lo-fi que caracteriza suas composições fossem perdidos nessa transição.

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As músicas continuam tendo como principal influência o rock alternativo do início dos anos 90 de bandas como Guided By Voices e Pavement. Entretanto, o tom confessional das letras e o toque específico do Toledo na estrutura das músicas (temos como exemplo, cinco canções com duração maior que seis minutos) geram uma obra tão intensa e versátil quanto trabalhos produzidos na década de 1990 e começo dos anos 2000. E faço questão de mencionar também os anos 2000 década marcada (com o efetivo advento da internet) pela explosão do indie rock, materializado principalmente no fenômeno The Strokes -; pois assim preparo esse texto para seu ponto principal: com o lançamento do Teens of Denial, o Car Seat Headrest tem tudo para ser lembrado como a banda dessa geração. Uma geração que cresceu com todas as facilidades de acesso a informação dos tempos modernos, mas cujos jovens padecem de crises de ansiedade ou depressão cada vez mais cedo. Assim como minha adolescência foi fortemente marcada pelo The Strokes, ou a de meus amigos um pouco mais velhos foi marcada pelo Weezer ou Nirvana, o jovem que entrar em contato com o Will Toledo e seu Car Seat Headrest não deverá sair ileso. por Leo Victor Koprowski Artista:

Car Seat Headrest Álbum: Teens of Denial Gravadora: Matador Records


Todos nós, por um motivo ou outro, temos um filme que nos marcou para sempre e que podemos definir como “O Filme da Nossa Vida”. Talvez não seja o melhor filme que vimos, nem sequer se enquadre naquilo que ousamos definir como “bom cinema”, mas por qualquer razão, é o filme de que nos recordamos com mais frequência e aquele que nos vem à cabeça quando, desafiados, nos pedem para falar sobre cinema.

Resenha não crítica de E.T - o Extraterrestre

“O filme das nossas vidas” pretende ser isso mesmo. Um desafio à capacidade de passarmos para o papel a magia que olhamos na tela e que nos marcou para sempre. Um estímulo à forma como interpretamos aquilo que vimos. Um olhar pessoal sobre o olhar, já por si pessoal, do realizador.

Sempre contei por aí que a primeira vez que vi meu pai chorar foi quando Senna morreu. Escrevendo esse pequeno texto, me dei conta que contei errado por aí. A primeira vez que vi ET - o Extraterrestre, eu estava a alguns dias de completar 4 anos. Nas lembranças dos doces tempos de infância às vezes perdemos a perspectiva do tempo, ainda bem que as lições não se vão.

A Revista Valeu lança um desafio aos seus leitores e colaboradores, para que nos enviem, para publicação, o seu olhar sobre o filme que mais os marcou, o filme a que se arriscariam a chamar o filme da sua vida.

O filme da minha vida por Rubens Schmidt Junior

De acordo com o Google, ET passou na tela quente na madrugada de 30/12 para 31/12 de 1990 e é então uma das lembranças mais remotas que tenho. Cinema sempre foi uma coisa importante pra mim, lembro com carinho especial da primeira vez que fui a uma sala de cinema, gostaria de poder dizer que era uma criança da pesada e vi Pulp Fiction, mas a verdade é que foi Lua de Cristal numa matinê do saudoso Cine de Timbó com suas poltronas de madeira. Abdiquei de um algodão doce em frente ao chafariz da praça pra ver Xuxa e Sergio Mallandro em uma história de amor, ainda impulsionado pelo desejo de assistir qualquer coisa que me fizesse experienciar algo próximo ao que senti com ET.

O filme de Steven Spielberg de 1982 foi nomeado a nove Óscares, levando os prêmios de me-

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lhor trilha sonora, melhores efeitos especiais, melhores efeitos sonoros e melhor som; chegou a ser a maior bilheteria dos cinemas por onze anos, derrubado por Jurassic Park, outro trabalho de Spielberg. O longa, conta a história de

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amizade entre o garoto Elliott - brilhantemente interpretado por Henry Thomas - e um simpático extraterrestre encontrado pelo menino no jardim de casa. ET quer voltar pra casa e Elliott é um menino doce disposto a ajudar, filho do meio de uma mãe recém-divorciada - Dee Wallace. A caçula é interpretada por Drew Barrimore bem criancinha, e o irmão mais velho por Robert MacNaughton. Numa época de escassos recursos tecnológicos, Spielberg usa sua genial simplicidade característica, a obra artística geralmente atinge seu melhor resultado quando é fruto das sutilezas e não das extravagâncias, e com a câmera na altura dos olhos dos atores mirins, quase sempre em travelling - recurso de narrativa visual que faz a câmera se tornar uma personagem, viajando pelas cenas e não estática - transporta o espectador ao universo infantil, fazendo-o enxergar o mundo como criança. A partir da ideia de contar a história de um extraterrestre amigável e não um ser horripilante a ser enfrentado, o filme ainda aborda de forma tênue uma questão muito relevante. De muitas maneiras a função da arte é contestar o status quo e ajudar a estabelecer novas realidades, à época do lançamento do filme os EUA viviam um boom de separações, ao escolher como personagens centrais uma mãe recém-divorciada e chefe de família que além de trabalhar cria três filhos, Spielberg trata o tema, tabu, com a naturalidade necessária. Sem fugir do problema ao expor o sofrimento das crianças com a separação dos pais, explícita na cena em que Elliot conta para a mãe sobre o ET e reclama triste que seu pai acreditaria nele, mas sem focar o filme neste drama. É como se, através da mágica história entre um garoto e um extraterrestre, Spielberg - como genial diretor que sempre foi - dissesse que a separação é ruim, é difícil criar crianças sozinho, mas no final das contas é possível, a vida segue, seus filhos não estão sozinhos, eles e você viverão tantos outros dramas e histórias mágicas. Afinal, é uma vila inteira que cria uma criança e não somente um par de adultos errantes. E.T é acima de tudo um filme sobre amizade e é triste constatar como raramente fazemos conexões tão maravilhosas com novos amigos após a adolescência e a entrega a eles vai ficando de lado com o passar do tempo. Ao rever o filme para escrever aqui tive uma daquelas reflexões que nos tomam de assalto de vez em quando e nos dão a mais pura sensação de ter descober-

to o segredo da vida. Eis aqui, ela não é nada se não for bem compartilhada. A arte competente tem este poder, ET era uma coisa pra mim quando criança e mesmo despertando sensações parecidas 25 anos depois de tê-lo assistido pela primeira vez, ainda há espaço pra novas epifanias e constatações.

É um filmaço, grandioso, mágico, lindo e emocionante, talvez por isso eu lembre com tantos detalhes daquele 31/12/90 numa das raras vezes que pude ficar acordado até mais tarde pra assistir TV. Houve todo um preparativo para aquela noite, minha mãe botou o caçula pra dormir, conferiu o banho dos outros dois pequenos autorizados a madrugar e nos instigou sobre o filme que iríamos ver em breve. Tenho a mais vívida lembrança daqueles momentos. Mãe, pai, irmã e eu sentados no sofá de imitação de couro cinza azulado com a telefunken a cores e controle remoto em nossa frente. Foi na clássica cena em que o menino Elliott chora porque seu melhor amigo parece prestes a morrer que devo ter tirado os olhos da tela pela primeira vez, olhei pro lado com um pouco de uma vergonha infantil da lágrima que escorria, em 1990 homens de qualquer idade não deveriam chorar - que bobagem - e vi os olhos emocionados da mãe, da irmã e do pai pela primeira vez. Mais uma lição aprendida. Se você não se emocionou com ET, marque uma dessas opções: a) Também não choro cortando cebolas, sofro da síndrome de Sjögren; b) Trocaram meu coração por uma bomba da Schneider ainda na maternidade; c) Moro numa caverna e nunca vi o filme ou d) Sou eleitor de Jair Bolsonaro

Existe coisa mais bonita que a amizade e o amor e a consequente aceitação das diferenças do outro que aprendemos com eles? Sejamos amigos.


Marilú, quién eres tú?

Diante da ciência da nossa insignificância (isso de inventar ciências é a marca maior da espécie homo sapiens), criei um jeito para me sentir importante: não sou eu quem encontra os livros, são eles que me encontram e os que ainda não me descobriram aguardam ansiosos por este momento! O encontro com Marilú, o Livro, aconteceu em Santiago, a inesquecível capital chilena e rende uma boa e longa história! Mas como não gosto de me estender em demasia, assim posso dar lugar também às histórias alheias (todos precisamos aprender a nos economizar um pouco), vou me limitar a apenas mencionar tal encontro, sem contá-lo de fato. Noves fora agora estamos aqui, desfrutando da nossa presença. Marilú, o livro e eu. Leio devagar porque é uma leitura difícil. Tem uns desenhos para facilitar a compreensão. Ele exige toda minha atenção e não quer metades de mim. Peguei um bloco com uma página toda em branco para tomar notas – eles sempre incitam novas histórias, é preciso dar continuidade. Marilú fala sobre a invisibilidade das pessoas da modernidade líquida do velho Bauman e também da cegueira diagnosticada por Saramago. E agora, José? Para onde estamos indo? Ela pergunta ao leitor. “Não se trata mais de um ensaio”, alerta que é preciso enxergar. Cegados pela clareza, pelos excessos, caminhamos às cegas, na escuridão. Qual a direção? Ela tem dúvidas. Ainda podemos ver alguém? Insiste.

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Livros ensinam, por isso são também como mestres e amigos. Já nossos aprendizados são como pequenos bruxos do bem, com muitos poderes e que trazem sorte boa, além de proteção. Proteção e cuidados todos nós precisamos porque nessa aventura que é o aprendizado de si, vulgo autodescoberta, sabe-se lá o que podemos encontrar. Entre divagações, subjetivas, objetivas, uma coisa é certa: Diversidade e simplicidade, assim como nos ensina o livro da pequena Marilú, essa menina sabida. por Grazielle Monica Pansard, Psicóloga *Obra referenciada: “Marilú, quien eres tú?” deTrinidad Castro com ilustrações de Fabiola Solano. Editorial Amanuta, Coleción Sin Límites.


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cláudia vetter Sectio divina (Cláudia Vetter)

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A poesia, assim como alquimia É de pequeno frasco e imensa valia Supra-sumo dos dias Sintetiza anos em instantes sublimes Conduzindo a essência antes da rima Eleva a consciência acima dos prédios Organiza a beleza, polinizando o ar com sua incerteza É miragem? Olhar prestado ao desconhecido? Tanto faz! É luz entre os ombros dos homens, narrando em voz de sonho o encantamento do desconhecido.

Um campanário ao olhar (Cláudia Vetter) O tempo não percorre as estradas pelas mãos humanas construídas Ele se entranha nos poros que o desejo às beiradas lapida Acampa no olhar a ternura que uma constelação não finda E acerta como um milagre - da mesma matéria partida Mal sabe, que numa despedida espalma o amor em premissa Condensando milhas percorridas ao ar Até o instante que nos aproxima.


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A eternidade do ser efêmero (Cláudia Vetter) Um manto de nuvens negras se cobre sobre os dias azuis Embaça aos olhos, mas atenta aos sentidos O desejo de desvendar um motivo Desliza os dedos nos ladrilhos - que resistem empoeirados Persiste, e um tanto de paisagem e outro tanto de rosto se refletem Para veres que não é só no espelho que a fronte se reflete Não quando a alma é límpida.

Celebração Lunar #1 (Cláudia Vetter) A vida fina como água viva Escorre dos dedos e percorre O orquestral som das veias Pulsando uma melodia traduzível à luz Do olhar, ao aceitar a grandeza deslumbrada de um sorriso ao grão de areia O todo é tão cabível, que o instante é um poema.

Poesias publicadas no blog O Retrato da Nudez Eólica http://riot-act.blogspot.com.br/


postais perdidos VIII Junho 2016 João Albuquerque Carreiras Hydra, Grécia 28-VIII-04 Caríssimos, Sei que vos deixarei com inveja por não terem podido vir nesta viagem, mas correndo esse risco não podia deixar de vos enviar este postal. O mar Egeu embalou-nos nos últimos dias com o sopro suave do vento que fez mover a casquinha de noz com vela que se tornou a nossa casa. O sol inclemente e a água morna, as mudanças de bordo, a terra à vista. Como bons marujos portugueses o mar é a nossa casa e o vento nosso amigo. O final só poderia ser então um, o do repouso do guerreiro. Para isso escolhemos esta ilha, onde não há carros e os transportes são feito por burros ou grandes carrinhos de mão. Parece um cenário perfeito para um filme bem mediterrâneo, com casas impecavelmente brancas com trepadeiras de flores rosa, um mar de um azul absurdo, os passarinhos que se ouvem nas oliveiras e um ar cheio de maresia. Nada parece fora do sítio, nem quando a pacífica baía é abordada por ferrys cheios de gente. A vila ganha um novo bulício, mas quando o último ferry parte fica uma tranquilidade noturna regada a vinho branco que nos faz pensar que somos os donos deste éden. E ficamos até ter de decidir em qual dos três ou

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quatro restaurantes vamos jantar e arrastar a paz que Hydra transmite. Ficaria por aqui um ou dois meses, numa pequena casa com alpendre virado à baía escrevendo contos etéreos, felizes e luminosos. Linhas inundadas por esta tranquila languidez a que é impossível escapar. Ou então ficar no nosso hotel, antiga fábrica de esponjas exemplarmente recuperada com uma piscina rodeada por buganvílias onde o tempo parece parar, recusando-se a avançar. Depois da agitação que sempre é navegar, foi bom esquecer o mundo neste reduto de simplicidade e bom gosto, nesta ilha aparentemente escondida onde tudo está no sítio certo, incluindo nós, que por uns dias encontramos o nosso espaço ideal. Beijos e abraços, João


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No coração da Amazônia Brasileira

por Margot Friedmann Zetsche Fotos de Margot Friedmann Zetsche e Gerson Zetsche Chegamos ao Porto Central de Manaus numa bagunça confusa e colorida de vendedores ambulantes, feirantes, pilhas de cargas e cestos de comidas de todas as cores e cheiros. A barcaça, NM Santarém, chamada de gaiola pelos nativos apita furiosamente. A saída é iminente e duas horas antes do horário marcado em nossas passagens. O desespero bate nos viajantes, pois ainda temos um carro para devolver à locadora. Após uma pequena discussão com o capitão que promete nos esperar, conseguimos saber que ainda falta uma carga a embarcar e que está atrasada para a conexão de embarque! Ufa!

O ano está começando e muitos viajantes que vieram passar o Ano Novo e o Natal com parentes e amigos agora retornam para Belém ou cidades ao longo do Rio Amazonas. A imensa gaiola está lotada com dois andares de redes penduradas pelo convés e um castelo de proa no terceiro

andar, onde fica o comando, um refeitório, convés para apreciar a vista e pequenos e acanhados camarotes. Não há lugar para pendurar mais redes e eu fico procurando com minha rede recém-comprada no Mercado Público, onde vou colocar minha cama para os próximos dias – o imediato me avisa que assim que passarmos a capitania dos portos (e a fiscalização), posso me instalar bem ali, em cima da amurada. A senhora sabe nadar? Pergunta ele zombeteiro. Saber eu sei, mas que bichos haverá escondidos nestas águas escuras do Rio Negro? E nem sabia que precisava levar cordas. Mas rapidamente muitos pares de mãos prestativas aparecem em meu socorro com pedaços de corda e barbante e me instalam com muitas amarras. Parece bem seguro- desde que não caia para o lado de fora. Depois de pendurar a minha rede e me instalar com um livro fico a observar ao redor. O barco está apinhado de gentes de todos os jeitos, tamanhos e cores. Uma olhada rápida já faz o cálculo – estamos muito além da lotação permitida – aquela que fica escrita na parede, junto com os coletes salva vidas. Quando o NM Santarém começa a se deslocar, uma brisa agradável passa pela floresta de redes. Aos poucos vamos ganhando velocidade e uma trilha de espuma castanha se forma atrás do navio que vai singrando as águas escuras e profundas do Rio Negro. Ah! Este rio maravilhoso


que carrega em suas águas tintas o húmus da floresta alagadiça. Pudemos estar alguns dias, a jusante, em meio aos igarapés e ilhas de areia branca, nadar e dormir em suas praias ao luar. Fomos brindados com visões quase impossíveis nestes dias solitários na mata: botos cor de rosa, macacos barulhentos, cachoeiras no meio da selva e até uma manicure que veio em uma canoa oferecer seus préstimos. Algumas senhoras ribeirinhas têm unhas decoradas com flores, estrelas e purpurina. A prova de que a vaidade não é privilegio das cidades. E que a manicure já esteve por ali com sua canoinha. Ah, e se a senhora quiser também faço mechas e corto cabelo!

Mas desde Manaus até Belém não haverá nem silencio, nem solidão. Por cinco dias NM Santarém vai descendo o rio lentamente. Teremos todas as nossas refeições a bordo, muito simples, mas saborosas e incluídas no preço da passagem. O barco está cheio de crianças que na primeira hora ficavam a se entreolhar desconfiadas em meio à floresta de redes, mas que agora se enturmaram numa algazarra de gralhas e correm uns atrás dos outros pelo convés, ora engatinhando, ora pulando no meio das redes, malas, cestas e sacolas. Um menino administra uma fila de crianças que se revezam para olhar o arvoredo na barranca do rio a centenas de metros de distancia em um diminuto binóculo de plástico cor de rosa. Divertida, faço as crianças me contarem todos os bichos que estão vendo lá tão longe. Escuto cada resposta! O menino também me conta que veio de Belém antes do Natal – visitar a avó. São 11 dias navegando para eles: seis para subir o Rio e agora na descida do rio mais 5. Há alguns turistas louríssimos que se destacam por contraste. Europeus e australianos cada um com um livro debaixo do braço e procurando retalhos de sol para se bronzearem. Turistas brasileiros são muito poucos. E por falar em livros – parei na página 2 de minha biografia de Foucault.

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Não dá pra ler com tantas histórias passeando em volta de meus ouvidos. Seria um desperdício de oportunidade. O livro poderá me fazer companhia em casa, mais tarde. Há um grupo de professoras que vai desembarcar no meio do caminho – são jovens e lindas, muitas com cara de índias e retornam de um curso de atualização. Me relatam muito contentes a melhora de aprendizagem em suas crianças pelos programas bolsa escola e bolsa família – e me mostram que as crianças não remam mais sozinhas em suas canoas que mais parecem brinquedos. A rede de proteção social controla presença na escola, vacinas, e companhia de adultos para remar por aquele mundão d’água. Faz muito tempo que não temos mais raquitismo por aqui me diz uma delas. O navio é um pinga-pinga que para em quase todas as cidades e aldeias no caminho. Cada vez que atraca em um dos cais flutuantes uma pequena multidão invade o navio com pitus, pamonhas e doces parecidos com mingau e canjica. Tenho vontade de provar tudo que vejo. Uma grande família está sentada fazendo um piquenique com os pitus que compraram. O cheiro é delicioso. Logo uma das crianças atravessa o convés e me traz um guardanapo com uma generosa porção deles. Os outros todos sorriem e me acenam – querem que a viajante prove uma iguaria da terra. E eu quero me impregnar deste

planeta água que ocupa quase a metade do território brasileiro. Quando o barco aciona os motores e apita, uma multidão de barquinhos cheios de crianças (e adultos) vai seguindo nosso curso e fazendo cenas de ataque indígena para impressionar os gringos que estão na amurada. Aos poucos vão ficando para trás e seguem nos acenando. Os adolescentes, mais ousados e fortes laçam habilidosamente as traves da amurada com ganchos e surfam ao nosso lado por quilômetros.

E nas margens, um mundo diferente vai passando. Casas, escolas, igrejas flutuantes ou sobre palafitas. Algumas têm inverossímeis jardins flutuantes. Este rio sobe e desce imprevisivelmente, todo ano e suas águas entram por quilômetros floresta adentro. Melhor flutuar do que ficar no chão. O por do sol é um espetáculo à parte – o navio desliza pela água colorida daquele espelho d’água gigante. Nesta hora, o Comandante manda tocar o sino de proa e revoadas de milhões de andorinhas chegam a escurecer o nosso céu. Quando anoitece um neo – hippie que está a bordo com seus artesanatos saca um violão e enche a noite de música. Também paramos na madrugada – muitos dos passageiros jovens descem e vão farrear nos bares e boates, pois as paradas tem baldeação de carga que pode levar horas. Há uma dose de confusão quando os moçoilos embarcam de volta, alcoolizados e falando alto. Mas os marinheiros atentos estão ali para separar alguma eventual animosidade que teime em chegar a vias de fato.

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Em Santarém o barco troca cargas e passageiros e fica por muitas horas. Assim a parte turística da viagem vai à praia! Alter-do-Chão é puro deslumbramento à luz do amanhecer. Seus verdes e azuis, águas transparentes contracenando com uma areia fininha, cor de tapioca, deixam as praias de mar morrendo de inveja. Os moradores dizem que Alter-do Chão é a praia mais bonita do mundo. A gente concorda com entusiasmo! Voltamos para nosso formigueiro flutuante - nesta noite com o corpo cansado de nadar e de tomar sol, ao invés de dormir viajo na conversa de minhas vizinhas de rede. São duas graciosas e miúdas senhoras de vestidos floridos e lencinhos na cabeça. Uma conta à outra que a filha foi a primeira pessoa na família a cursar a universidade pública que se instalou por aquelas bandas. Enfermeira – vejam só! – minha colega! E a conversa continua mostrando um grande problema: o marido da enfermeira trabalha cedo em um escritório e ela faz plantão à noite. Me diga comadre, como é que eu vou ser avó deste jeito? Adormeço sonhando com a música do funcionário e da dançarina... Esse Chico sabe das coisas! Mais adiante, entraremos nas águas turbulentas do Estreito de Breves, o barco deixa de deslizar e balança deliciosamente... As malas e cestas da classe econômica passeiam pelo convés... À tardinha o barco balançará de novo com as chuvas de verão que desabam do céu num aguaceiro colossal! Cada tarde, à mesma hora, a chuva engole o céu, a mata nas margens, e tudo mais. Quando a gente começa a pensar em Noé e seu Dilúvio o sol aparece e a chuva para como mágica.

Será que este lugar existe mesmo?

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um OLHAr SOBrE BERLIM por

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HUGO MACEDO

“A Casa do Professor” (Haus des Lehrers), é um edifício construído entre 1962 e 1964 enquadrado num dos complexos arquitectónicos mais representativos da arquitectura dos anos 60 da Alemanha Oriental.


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Fotografia tirada na vasta rede de metro da capital alemĂŁ

- Berlim brinda-nos constantemente com as suas influĂŞncias Indie


YAAM - Young Africa Art Market

Paredes meias com o que ainda resta do muro de Berlim, habita o YAAM. Um “beach bar� bem alternativo.

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Street art ĂŠ uma imagem de marca de Berlim, presente em quase todos os elementos urbanos da cidade.


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Rafael Bordalo Pinheiro ... Genuinamente português por constituição e por temperamento, de olhos pretos, nariz grosso, cabelo crespo, tendendo para a obesidade, ele é um sensual, um voluptuoso, um dispersivo, um desordenado. Uma das mais belas virtudes que ele não tem, é a que consiste em vencer os impulsos da natureza. Desgraçadamente, observa-se com frequência que os homens rígidos, que mais exemplarmente triunfam das próprias paixões, não triunfam de mais nada. Ramalho Ortigão, 1891


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Bordallo Pinheiro: Quando o humor ganha forma São quase 10h de uma manhã quente de final de Maio quando chegamos ao Largo de Camões, coração do Chiado, um dos bairros históricos mais turísticos de Lisboa. No chão de calçada portuguesa, alguns pombos vagueiam indiferentes ao corre-corre dos transeuntes e ao olhar deslumbrado dos turistas. Das Ruas das Flores e do Alecrim vão chegando catadupas de estrangeiros, que aos poucos inundam a praça, máquina fotográfica em riste, ansiosos por registar para a eternidade um pouco da história da cidade. As escadarias da Igreja do Loreto são literalmente tomadas de assalto por um grupo de japoneses que procuram o melhor lugar para fotografar a praça, enquanto as esplanadas da Brasileira e da Benard, se vão enchendo de gente. O nosso destino é um dos edifícios emblemáticos do Largo do Chiado, a loja da Vista Alegre Atlantis, reinaugurada no final de 2012 e classificada como Bem Imóvel de Interesse Municipal. A fachada, toda em pedras mármore ornamental, foi mantida inalterada durante o processo de recuperação, bem como o pavimento em mosaico romano. Na montra do lado direito, costas voltadas à Igreja da Encarnação, estão expostas algumas peças da mítica Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, motivo principal da nossa visita. São peças de uma nova coleção, “Os Figurões”, resultantes de uma parceria da fábrica com o cartunista do Jornal Expresso, António, também ele um herdeiro da genialidade satírica de Raphael Bordallo Pinheiro. Entramos na loja para uma conversa com Nuno Barra, Diretor de Marketing e de Design Externo do Grupo Vista Alegre Atlantis, o rosto por detrás da renovação da marca, que nos recebe no piso superior com um ar tranquilo de gestor bem sucedido. Iniciamos a entrevista, enquanto somos guiados numa brevíssima visita à loja, com o aviso de Nuno de que a sua atividade no Grupo Visabeira está mais direcionada para as marcas Vista Alegre e Atlantis e menos para a Bordallo, o que se revelará como perceberemos ao longo da conversa, absolutamente irrelevante. Nuno está por dentro de tudo o que se passa na antiga Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha e isso transpira na forma entusiasmada como fala da mais recente marca do Grupo.

Valeu: O que mais o surpreendeu esteticamente no acervo da Bordallo? Nuno Barra: É preciso que se diga que eu não conhecia bem o Bordallo Pinheiro. Talvez por isso, a coisa que mais me surpreendeu quando cheguei à Bordallo, ou melhor, quando a Bordallo chegou até nós, foi a obra que ele deixou a vários níveis. O seu legado. Ele era superplástico. Surpreendente! Se olharmos os jornais que ele fazia em mil oitocentos e tal, ficamos surpreendidos. As suas caricaturas, as suas charges políticas não deviam ser muito pacíficas para a altura. Se pensarmos que hoje estamos numa fase de maior liberdade de expressão e não temos nada daquilo, pelo menos proporcionalmente, ficamos estupefatos. Por isso, quando nos debruçamos na sua obra, do cartum ao jornalismo e depois na cerâmica ficamos estarrecidos. Na cerâmica então, é uma loucura, porque tem peças que nunca mais acabam. É impressionante como uma pessoa naquele tempo de vida conseguiu produzir tanto. Ainda há tempos em conversa com a Joana Vasconcelos, concordávamos que uma das coisas mais extraordinárias do Bordallo, foi o legado que conseguiu construir em tão pouco tempo. Hoje em dia, para manter aquele nível de produção, é preciso ter uma máquina por trás.

Valeu: Mas o que o surpreendeu mais, especificamente em relação às peças do Bordallo? Nuno: Mais especificamente ao nível da cerâmica, o que mais me impressionou foram as cores, as formas, a variedade. Essa conjugação do humor misturado com a cerâmica, com algum arrojo, com um sentido sempre provocatório é que dá um produto com uma alma própria, diferente do que é habitual encontrarmos na cerâmica. Começámos a fazer feiras internacionais com a Bordallo, Paris e Frankfurt, as maiores feiras do setor e a certa altura optámos por ir com a Bordallo sozinha, separada da Vista Alegre Atlantis e acabou por ser engraçado ver que a Bordallo entra nos principais espaços das feiras ao lado de marcas de design como a Alessi, com 40m² e sempre cheia. Isso acaba por gerar situações curiosas como uma em que estávamos em frente a uma marca conhecida de vidro e eles pergun-


tavam: o que é que vocês fazem para terem o vosso stand sempre cheio? – Nuno rindo. – Isso se deve à diferenciação do produto e à história toda que gira à volta do produto e que é fabulosa. Claro que quem não tem curiosidade de descobrir o que está por trás, acaba por não se interessar pela marca, por isso é tão importante puxarmos a Bordallo para frente, dar-lhe visibilidade. Daí a importância das séries especiais, que acabam por gerar essa curiosidade de descoberta da fábrica através de um artista conhecido. Quando um cliente entra no universo Bordallo, claro que não vai gostar das peças todas, mas dificilmente sai, porque encontra sempre algumas peças que o vão encantar. Uma peça ou outra para colocar na mesa e que darão com certeza um toque diferente. Há tempos, oferecemos um jantar para designers italianos e decidimos fazer uma mesa já com louça da Bordallo e com aqueles copos de vidro com bicos e não imagina o sucesso que foi. Eles ficaram maravilhados. – Que coisa diferente – diziam. – Onde encontraram estas peças? – Percebe? As peças do Bordallo fazem uma mesa completamente diferente. Arrojada, colorida, divertida, mas ao mesmo tempo marcante.

Valeu: Neste momento quais são as áreas de produto da Bordallo? Nuno: A Bordallo tem três áreas de produto: uma utilitária, com terrinas, travessas, pratos.

Valeu: Desculpe interromper, mas quando começou essa área mais utilitária?

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Nuno: Logo na sua fundação. O objetivo social da empresa era lançar no mercado, além de cerâmica ornamental, “objetos da mais fina faiança para

usos ordinários”. No texto da sua constituição dizia mesmo: “louça ordinária para os usos das classes menos abastadas”. Curioso isso! Claro que depois, com o tempo, foram transformando algumas peças decorativas em peças cada vez mais utilitárias e com o aumento do interesse das pessoas, a fábrica foi desenvolvendo peças com essa finalidade, sempre a partir do legado de Bordallo Pinheiro, que é um legado naturalista. Por isso, mesmo as peças utilitárias que se veem hoje em dia e que foram sempre produzidas ao longo dos anos, são sempre baseadas no naturalismo do Bordallo e, como se vê pelo objetivo inscrito na sua fundação, seguindo o espírito que esteve subjacente à própria criação da Fábrica.

Valeu: Retomando o raciocínio, dizia que a Fábrica tem 3 áreas de produto. Nuno: Exatamente. A área do utilitário, do decorativo e as séries especiais, que são séries assinadas por artistas.

Valeu: A vertente decorativa é, talvez, a mais conhecida? Nuno: Sim, com o Zé Povinho, as sardinhas...

Valeu: Essa ideia, relativamente recente, segundo sei, de convidar artistas reconhecidos para criar peças inspiradas no espírito fundador


da Fábrica das Caldas, surge com a nova Administração ligada ao Grupo Visabeira e com uma aposta notória na dinamização da marca. Nuno: De facto, o Grupo comprou a Bordallo em 2009 e a primeira coleção com artistas sai em 2010. Uma coleção exclusivamente com artistas portugueses, a Joana Vasconcelos, o Fernando Brízio, a Bela Silva, a Susanne Themlitz, a Elsa Rebelo, o Henrique Cayatte e a Catarina Pestana e com a qual procuramos celebrar os 125 anos da marca. Depois, em 2013, fez-se o lançamento de uma coleção com o mesmo espírito, convidando 20 artistas brasileiros.

Valeu: Essa opção pelo Brasil surgiu pelo facto do próprio Raphael Bordallo Pinheiro ter vivido no Rio de Janeiro? Nuno: Na altura fazia todo o sentido. O projeto iniciado com os 7 artistas portugueses estava consolidado e sentimos a necessidade de avançar com um novo projeto para um mercado que tivesse ligação com a Bordallo e o Brasil fazia todo o sentido pelo facto do Bordallo ter vivido lá. Então decidimos convidar 20 artistas brasileiros para virem a Portugal e desenvolverem cada um a sua peça. Ainda este ano, vamos arrancar com a próxima coleção especial, com novos artistas, que já não são só brasileiros nem portugueses, vai ser uma coleção bem mais abrangente. Uma série especial que além de pessoas ligadas às artes, terá também profissionais ligados ao design. Está a ser um projeto muito interessante e com peças muito curiosas.

Valeu: Em que estado se encontrava a Fábrica quando foi adquirida, em 2009, pelo Grupo Visabeira? Nuno: Infelizmente, a Fábrica estava prestes a fechar. Os salários estavam em atraso e havia uma movimentação para salvar o importante legado de Bordallo. Este foi o estado em que a encontrámos. Foi necessário desenvolver um plano de recuperação da empresa que ainda não está terminado, mas que está a ser cumprido escrupulosamente e com bons resultados.

Valeu: Essa situação de quase falência em que se encontrava a Fábrica deveu-se, no seu entendimento, a problemas de gestão ou a um desinteresse comercial pelos produtos fabricados, sobretudo nos anos 90, 2000, em que se valorizava o que vinha de fora em detrimento do que era português? Nuno: Normalmente estas coisas acontecem por uma conjugação de diversos fatores. Um deles, obviamente, por uma gestão pouco cuidadosa da empresa que se refletiu, por exemplo, em coisas muito simples como o facto do próprio preço de

venda das peças ser, em alguns casos, inferior ao seu preço de custo, o que significava que, quando uma peça saía da fábrica já se estava a perder dinheiro, o que não era sustentável. Por outro lado, devido a essa conjuntura de menor valorização do produto nacional, que na maioria das vezes era desconhecido ou olhado com alguma desconfiança e desdém, aliado a uma primeira vaga de gerações mais novas que vieram para a cidade e começaram a ter uma vida mais cosmopolita e que, de certa forma, renegavam ou pelo menos não se queriam rever naquilo que eram as referências dos seus avós. À medida que o tempo foi passando, foram percebendo que não era bem assim. “Espera lá. Afinal isto é interessante e muito diferente do que estou habituado a encontrar pelo mundo fora.” Descobriram que tinha valor. – Nuno com um sorriso condescendente no rosto.

Valeu: Uma nova fase que correspondeu a uma tendência mundial de valorizar as raízes. Nuno: Exato. Certo gosto pelo vintage, pelo retro. Ora isto é muito curioso e quase contraditório com o movimento de globalização que se vive a nível comercial, em que assistimos a uma uniformização mundial. Repare que, se por um lado as lojas que encontra em Portugal são muito semelhantes às que encontra em Paris ou Nova Iorque, por outro há uma valorização crescentes das raízes. Os franceses continuam muito agarrados à sua cultura, os espanhóis igualmente e os portugueses, embora começando mais tarde, também começaram a descobrir que temos coisas que devemos valorizar. Hoje é notório que as novas gerações já têm imenso orgulho naquilo que se faz por cá, em grande parte porque são coisas realmente muito bem feitas. Eu costumo dizer muitas vezes, que nós só percebemos o que temos de muito bom, quando vamos para fora. E temos coisas realmente muito boas em diversas áreas e uma delas é a da cerâmica. Temos belíssimas fábricas de cerâmica no país, sejam elas de faiança, sejam de porcelana. Não é por acaso que produzimos para muitas marcas mundiais. A mesma coisa ao nível dos vinhos, das conservas, da gastronomia, do turismo e tantos e tantos outros.

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Valeu: Isso resultou muito da adesão de Portugal à Comunidade Europeia e à nova geração que começou a viajar pela Europa e pelo Mundo. A geração dos ERASMUS... Nuno: Isso mesmo! Acho que ajuda imenso as pessoas irem para fora. Só assim conseguem perceber que afinal existem outras coisas, ou que as ideias pré-concebidas que têm, de que ali é que se ganha bem e tudo é óptimo, não são bem assim. Vão lá tentar viver um mês em Londres um salário que pode ser 3 vezes superior ao salário que têm aqui, não conseguem. Isto para dizer que as pessoas vão aos locais e começam a perceber. O ERASMUS tem outra vertente muito engraçada, porque se juntam 3 ou 4 miúdos de países diferentes e começam a trocar experiências. Naturalmente um deles pergunta: Olha lá, em Portugal o que fazem de diferente? E muitas vezes, a resposta a uma pergunta simples como esta, faz despertar a consciência daquele miúdo português para as suas raízes, para as coisas boas do seu país. Nuno fala gesticulando levemente quando se entusiasma, como que querendo dar expressão física ao que lhe vai na alma. Enquanto Nuno interrompe a conversa por breves instantes, a voz de Amália embala-nos no seu Cansaço.

Valeu: A vossa chegada à Bordallo acabou por beneficiar muito deste resgate das raízes. Nuno: Sim, sim. Acontece muito, em conversa com clientes, eles dizerem: Herdei umas peças da minha avó, da Bordallo, na altura eu não queria aquilo para nada, mas hoje faço questão de mantê-las, de preservá-las. Isto tem muito a ver com o mercado, mas também com o facto de nós, na empresa, termos trabalhado muito a valorização do produto: com a entrada das peças da Bordallo em pontos de venda qualificados, como as lojas da Vista Alegre; com uma seleção mais cuidada de produtos, muitos que não faziam sentido e que descontinuámos e outros que estavam esquecidos, mas que eram importantes e retomámos; com a associação de artistas à Fábrica. Tudo isto acabou por, aos olhos do cliente, atribuir maior valor às peças. Não só um valor objetivo como no caso das séries limitadas de artistas, como um valor mais subjetivo, sentimental, se quiser, de ligação familiar, ou até de percepção do valor artístico de peças ligadas ao legado do próprio Bordallo.

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Valeu: Em que estágio se encontra neste momento a Bordallo e quais são os projetos de futuro? Qual é a estratégia definida para os próximos tempos?

Nuno: A estratégia que estamos a seguir é a que definimos em 2010 e que ainda não está completamente implementada. Ainda tem umas fases para implementar, sendo que as contas já estão equilibradas. Já não estamos a perder dinheiro. Ainda não ganhamos muito, mas estamos no bom caminho. – Nuno sorrindo. – Era um dos dois objetivos destas duas primeiras fases e conseguimos. Trabalhar muito ao nível do desenvolvimento de produto e equilibrar as contas, para que a Fábrica possa ser viável e preparar o passo seguinte, que passa muito pela internacionalização. Ou seja, estando as contas equilibradas, temos de fazer crescer a empresa, aproveitando o potencial que o produto tem por ser um produto diferenciador, que não existe em mais lado nenhum.

Valeu: E essa estratégia de internacionalização vai começar por onde? Nuno: Na verdade, já começámos. Os nossos mercados iniciais foram Espanha, Estados Unidos e o Brasil. No caso do Brasil, o projeto dos Bordallianos foi o motor dessa estratégia.

Valeu: E como está a correr? Nuno: Bem. Dentro das expectativas, embora o mercado brasileiro, pela sua dimensão, tenha implicações logísticas mais complexas e seja muito variado. Nos próximos tempos avançaremos para a abertura de uma loja online, o que alargará a oferta ao país inteiro e por uma política comunicação que passará pela dinamização das redes sociais, ou seja, uma aposta muito grande na Web. Mas, ainda há muito para fazer, sobretudo se pensarmos no enorme potencial do país. Nos Estados Unidos vendíamos muito, mas numa perspectiva de “private label” e não tanto com a marca Bordallo e é isso que estamos a mudar. Deixámos de produzir para terceiros. Outra aposta da Bordallo é a Ásia e não necessariamente a China. O nosso segundo país de exportação, neste momento, é a Coreia do Sul.

Valeu: Curioso. Nuno: Sim. Além disso, existe um mercado muito interessante nessa zona, que engloba a Malásia, Singapura e no qual estamos bastante empenhados em apostar.

Valeu: Quando falou na Ásia disse “não necessariamente a China”. Essa ressalva ficou a dever-se ao facto da China ser um mercado óbvio ou por ser um mercado bastante complexo, inclusivamente pelos riscos conhecidos de cópia dos produtos a custos baixíssimos?


Nuno: Por ser um mercado complexo, por esse e outros motivos. Não é, neste momento, prioritário para a Bordallo.

Valeu: E na Europa? Nuno: França é um mercado importante, para onde vendemos bem, mas com grande potencial de crescimento. A Escandinávia é também uma aposta nossa, bem como a Alemanha. Fora da Europa, o México e a Colômbia. Enfim, na verdade a Bordallo, em termos internacionais, vai beneficiar bastante das sinergias com a Vista Alegre, porque criámos uma equipa comercial comum que atua em cerca de 15 mercados, com um responsável de área que venderá Vista Alegre aos canais da Vista Alegre e Bordallo aos canais da Bordallo. Achamos que isso beneficiará muitíssimo este objetivo de internacionalização da empresa.

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Valeu: Em Portugal, além do reposicionamento

Valeu: Há pouco falava da aposta nas lojas online. Já têm um peso significativo nas vossas vendas?

Nuno: O problema dos planos de comunicação é o orçamento. – Risos. – Para fazer grandes campanhas é preciso muito dinheiro e a Bordallo, pelos problemas que referi, ainda não está nesse patamar. Sendo que, a empresa tem uma linha de comunicação bem arrojada, muito irreverente e cheia de humor, como, por exemplo, a linha dos figurões, lançada agora, numa colaboração com o cartunista António, do “Expresso” e que vai beber muito na génese do próprio trabalho de Raphael Bordallo Pinheiro: provocatória, com conteúdo, inteligente, mas sempre com um sentido humorístico, que espicaça as consciências.

Valeu: Uma das ações previstas para este ano,

Valeu: De certa forma, todos os grandes cartunistas portugueses têm muito de bordalliano. Nuno: O Raphael Bordallo foi o pai da caricatura em Portugal, mas, e isso talvez seja menos conhecido, também foi o pai da caricatura no Brasil, onde criou vários jornais satíricos, muito críticos e polémicos, motivo pelo qual acabou por ter de regressar. Há tempos, estava a ler um livro sobre a caricatura no Brasil e o capítulo maior é exatamente dedicado a Raphael Bordallo Pinheiro. Mas, regressando um bocadinho atrás – Continua Nuno, sempre focado na sua linha de raciocínio, mesmo quando aparentemente se perde em divagações. – Sim, do ponto de vista de comunicação, a Bordallo tem a sua linha própria. Não faz mais por limitações orçamentais e por isso o que faz está muito focado nas redes sociais.

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Valeu: Esse é o caminho do futuro?

da marca, nomeadamente através da sua colocação em pontos de venda selecionados, existe alguma estratégia de marketing visando este mercado das raízes e do retro de que falámos? Pergunto isto, porque assistimos, por exemplo, ao aparecimento de 21 novas sardinhas que vieram fazer companhia à célebre do Bordallo, numa parceria com a EGEAC e a Câmara de Lisboa, lançadas com uma fortíssima campanha de comunicação.

Nuno: Sem dúvida.

Nuno: No caso da Bordallo ainda não, porque a empresa ainda só tem 3 lojas online: Portugal, Espanha, que abrimos há um ano e Europa, com apenas um mês, portanto é tudo ainda muito recente. Já tem vendas, mas ainda não representam um canal com a importância que pretendemos que venha a ter. Mas, não há dúvida de que esse é o caminho.

que encerrará a comemoração do centenário do Museu Grão Vasco, é o de uma grande exposição de peças de Raphael Bordallo Pinheiro e do seu irmão Columbano. Esse será um momento único de divulgação e catalogação do enorme acervo de peças da Fábrica das Caldas, não apenas as que já fazem parte do Museu Bordallo Pinheiro, mas muitas outras que estão espalhadas pelo país, em coleções privadas. Nuno: Nós todos os anos recuperamos algumas peças que estão no Museu. Este ano, vamos lançar uma peça a que chamaremos “a peça do ano” e que será recuperada na sua forma original ou através de uma réplica, isto porque há peças que são muito grandes que não faria sentido recuperar na sua dimensão original.

Valeu: Por falar nisso, a maior peça criada por Bordallo está no Brasil. De facto, “A Jarra Beethoven” criada por Bordallo em 1899, foi oferecida ao então Presidente do


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Afinal, quem foi Raphael Augusto Prostes Bordallo Pinheiro? Brasil, Marechal Deodoro da Fonseca e encontrase exposta no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Nuno: Sim. O maior colecionador de peças do Bordallo era brasileiro. Depois vendeu a coleção ao Berardo, mas era brasileiro. Portanto essa ligação existe desde há muito. Posso até contar uma história engraçada que ocorreu aquando da vinda dos 20 Bordallianos Brasileiros a Portugal. Um deles era de São Paulo, mas os avós eram do Nordeste e ele quando chegou à Fábrica viu as andorinhas e ficou muito surpreendido porque a avó dele tinha a casa cheia de andorinhas do lado de fora e que eram as andorinhas das Caldas. Mais tarde, investigou e percebeu que havia uma relação familiar com a região. Foi um momento bem interessante. No Brasil acontece muito isso, de existirem peças na família e nem sequer se conhecer a origem. Esta descoberta acaba por acontecer mais tarde, numa viagem, e revela-se emocionante.

Valeu: Essa relação quase familiar, ancestral com algumas peças, é um fator facilitador da afirmação da marca no Brasil? Nuno: Com certeza que sim. Não tenho dúvidas que com o tempo, a Bordallo se irá afirmar no mercado brasileiro com enorme sucesso. Neste momento está confinada a São Paulo e Rio. Há muito Brasil para percorrer... Nuno é interrompido por uma conhecida decoradora, cliente habitual, que precisa escolher umas peças para um jantar oficial que decorrerá ainda essa noite em Lisboa. Enquanto decorre a conversa, percorremos a sala do piso superior dedicada a Bordallo. A alegria das cores, marca um contraste com a sobriedade das peças Vista Alegre que compõem o resto da loja. Uma abóbora enorme ladeada por duas travessas verdes realçam o utilitarismo que as peças foram conquistando, sem perderem a função decorativa. A voz de Amália acompanha-nos neste deambular solitário pelo imaginário do desenhador, ceramista, jornalista e homem do teatro, que em 1884 iniciou o movimento de renovação da cerâmica nacional, enquanto Diretor Artístico da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.

Nascido em 21 de Março de 1846, na Rua da Fé, situada na encosta da colina sobranceira à Avenida da Liberdade em direção ao Campo de Santana, filho terceiro de uma família de artistas, Raphael revelou-se, nas palavras de Matilde Tomaz do Couto “um espírito brilhante, ímpar de criatividade, que aplicou a uma contínua intervenção atenta e crítica à vida portuguesa”. Filho do pintor e escultor romântico Manuel Maria Bordallo Pinheiro e de D. Maria Augusta do Ó Carvalho Prostes, Raphael ingressou com 13 anos de idade na Real Academia de Belas Artes, onde frequentou as aulas de desenho até 1871, tendo-se, entretanto, matriculado no Curso Superior de Letras, em 1865. Ainda muito novo, com 14 anos, tem a sua primeira experiência em palco, numa peça que sobe à cena no Teatro Garret e no Teatro Thalia do Palácio do Conde de Farrobo. Esta passagem pelos palcos, que se manterá vida fora, apaixona-o de tal forma que o leva a inscrever-se no Curso de Arte Dramática do Conservatório de Lisboa. Se o interesse despertado por esta panóplia de opções o levou a inscrever-se sucessivamente numa série de cursos, a rigidez das regras académicas e o gosto desmesurado pela boémia lisboeta afastam-no das aulas e da conclusão de qualquer dos cursos. Consciente da necessidade do filho ter uma fonte de rendimento, seu pai consegue que assuma o cargo de amanuense da secretaria da Câmara dos Pares, lugar pouco conforme com o perfil de Raphael, mas que mantém durante 8 anos. Essa experiência paredes meias com a intriga política, acaba por servir-lhe de inspiração para a crítica social e política que acabaria por revelar-se a sua vocação. Em 1866, Bordallo Pinheiro casa com D. Elvira Ferreira de Almeida, num enlace à revelia da família da noiva, do qual resulta o nascimento de Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro. Desses tempos com passagem pela Quinta da Brôa, na Golegã, fica o legado um enorme acervo de apontamentos a desenho e aquarela naturalistas que descrevem os costumes da região. Em 1868, apostado em ganhar a vida como artista plástico, Raphael expõe na Sociedade Promotora de Belas Artes de Lisboa, sobressaindo de entre as suas obras, as aquarelas dedicadas aos tipos característicos da capital e do Ribatejo.


Em 1870, em nova exposição, começa a notarse a sua extraordinária veia de caricaturista e de atento observador da realidade que o rodeia nomeadamente na série “O Homem que ri” e em obras como “O Espirra-canivetes” e “Os Jogadores de Gamão”. Até 1874, Bordallo continua a expor com regularidade na Sociedade, porém, irrequieto, insatisfeito, virtuoso, Raphael decide alargar a sua arte a outras atividades e inicia-se no jornalismo, na ilustração e até na decoração, tendo sido o percursor dos cartazes artísticos. Enquanto ilustrador colaborou com diversos jornais e revistas internacionais: La Ilustration de Madrid, El Mundo Cómico, El Bazar, L’Univers Illustré, e para a célebre revista londrina The Illustrated London News, que o convida a trabalhar em Inglaterra, convite que declina. Em Portugal, ilustra com cerca de 250 desenhos, o livro “Os Theatros de Lisboa” de autoria de Júlio César Machado, antes de se celebrizar como atento e perspicaz caricaturista. A caricatura é a praia de Bordallo e é através dela que o seu génio marcará para sempre as artes portuguesas. Observador preocupado do quotidiano nacional, encontrando em pequenos detalhes a inspiração para o seu desenho mordaz e realista, Raphael Bordallo Pinheiro, com um olhar satírico sobre as intrigas políticas e as sucessivas crises que assolam o país, vai criar verdadeiros símbolos nacionais, entre os quais se destaca o Zé Povinho, esse retrato perfeito e ainda actual de um povo sofredor, mas conformado. Em 1870, inicia-se no humorismo gráfico, e com edições em “O Calcanhares de Aquiles”, “A Berlinda” e “O Binóculo”, lança um álbum de caricaturas em 14 edições, verdadeiro percursor da banda desenhada. Em 1872 edita Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro sobre a Picaresca Viagem do imperador de Rasilb pela Europa, que retrata, em episódios pitorescos, a viagem do Imperador do Brasil pela Europa e o Mapa de Portugal, com mais de 4000 exemplares vendidos. Em 1875, funda com Guilherme de Azevedo e Guerra Junqueiro “A Lanterna Mágica”, jornal de crítica social e política, no âmbito do qual acaba por aparecer a figura do Zé Povinho. É nesse ano que parte para o Brasil a convite do jornal humorístico brasileiro “O Mosquito”.

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Bordallo no Brasil Raphael chega ao Rio de Janeiro no verão de 1875 e por lá viverá durante 4 anos, permanecendo, ainda hoje, como a mais relevante figura da caricatura humorística brasileira. Entre 1875 e 1879, produz abundantemente, de charges políticas a retratos do quotidiano carioca. O Imperador é um dos seus alvos favoritos, assim como o Clero e os poderosos políticos da época. Numa das suas charges mais famosas, intitulada “A Questão Religiosa” e publicada n’ “O Mosquito” em 1876, representa D. Pedro II dando a mão à palmatória ao Papa Pio IX, numa crítica velada à submissão do Império ao poder do Clero. Em 1877, funda o periódico “Psit!” onde surgem personagens que ficarão para sempre no imaginário carioca: o Psit e o Arolae e um ano depois, lança “O Besouro”, onde vê a luz do dia o Fagundes.

No Rio de Janeiro, Bordallo mantém a sua crítica mordaz à situação política e social e o olhar satírico com que retrata os poderosos vai valerlhe polémicas ferozes e inimigos figadais, que terão estado por detrás das duas tentativas de assassinato que sofreu e que acabaram por obrigá-lo a regressar a Portugal. Logo em 1879, ano em que regressa a Lisboa, funda com Guilherme de Azevedo “O António Maria”, um jornal ilustrado que retrata a vivência cultural, política e social do país. Em 1885, juntamente com seu filho Manuel Gustavo, lança “Pontos nos ii”, onde denuncia questões importantes da política da época: “O Monopólio dos Tabacos”, “A Questão Inglesa”, “O Ultimatum Inglês” e “A Revolta de 31 de Janeiro”, motivo pelo qual acaba fechado em 1891, por ordem do Governo Civil de Lisboa. Retoma então o “António Maria”, que durará até 1899. Desencantado com os jogos políticos e com o rumo que o país segue, Raphael vira o seu talento humorístico para o meio cultural lisboeta e, em 1900, funda com o filho, “A Paródia”. Será das capas d’ “A Paródia” que sairão os mais importantes retratos socioeconômicos por ele elaborados e que ainda hoje são recordados e retratados com frequência: “A Política: a Grande Porca”, “A Finança: o Grande Cão”, “A Economia: a Galinha Choca” entre tantos outros. Em 1880 cria com os mais importantes artistas da época, o Grupo do Leão, em referência ao Café Leão D’Ouro onde costumavam reunir-se. Dele fazem parte António Ramalho, Silva Porto, José Malhoa, João Vaz, Henrique Pinto, Cipriano Martins, Moura Girão e seu irmão Columbano Bordallo Pinheiro, que se distanciando do academicismo, foram os responsáveis pela renovação naturalista da arte portuguesa.


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A Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha A Fábrica das Caldas nasceu de um projeto do próprio Raphael, em parceria com o seu amigo Ramalho Ortigão, a sua irmã Maria Augusta e o seu irmão Feliciano. A ideia, que terá surgido por volta de 1884, implicou um sério trabalho de pesquisa dos dois irmãos que viajaram pela Europa, visitando fábricas de cerâmica francesas, inglesas e alemãs, a fim de desenvolver o projeto que resultaria em um complexo fabril implantado em 80 000 metros quadrados de terreno na Vila das Caldas da Rainha, com duas nascentes de água e dois barreiros, matéria primas essenciais ao fabrico de louça artística. No dia 30 de Junho de 1884, foi assinada a escritura constituição da fábrica, sendo atribuída a Raphael, a direção técnico-artística e a seu irmão Feliciano a responsabilidade organizativa. Coube ao próprio Raphael a concepção arquitetônica das instalações da qual resultaram dois pavilhões: um de dois andares, destinado a aulas e a depósito de louças, envolto por um parque arborizado e outro térreo, de grandes dimensões, destinado à produção e equipado com as mais modernas maquinarias da época, entre elas uma máquina elétrica de Fauce de Limoges para depurar a massa. O complexo dispunha ainda de um grande pavilhão destina à venda dos produtos.

Nuno: Gosto muito de trabalhar numa empresa portuguesa. É muito mais enriquecedor porque está aqui tudo: a produção, os centros de decisão. É tudo muito mais rápido. Depois, o produto em si, adoro! – Sorriso aberto. – Adoro design e acredito muito que o design seja um fator de competitividade fundamental para as empresas nacionais. Além disso, há uma componente de trabalho manual que existe, quer na Vista Alegre, quer na Bordallo, que entrega muito carácter às peças e que me encanta. Esta conjugação cria um produto fabuloso, que está ao nível de qualquer produto de luxo no mundo inteiro, com uma enorme vantagem: o nosso produto, embora feito à mão, com as melhores técnicas e melhores materiais, é muito mais barato do que todos os outros. Ainda se pode comprar e isso faz a diferença. No som de fundo da loja do Chiado, Amália é substituída pelo impressionante choro vocal de Billie Holliday interpretando “My Man”. A conversa chega ao fim e Nuno acompanha-nos até ao andar de baixo, onde sobressaem os expositores em talha preta que pertenceram à antiga loja de instrumentos musicais “Custódio Cardoso Pereira”.

Era um projeto inovador e ambicioso onde Raphael viu a oportunidade de passar para a argila a sua frenética criatividade. Muitas das figuras que criara como caricaturista, ganham vida em faiança: o Zé Povinho, a Velha Maria, a Mamuda Ama das Caldas, o Cura e tantos outros. É a própria cerâmica da região que ganha um cunho original: vasos, pratos, jarras, surgem enriquecidas por uma decoração barroca, de uma criatividade inigualável. Mas, Bordallo não se limita à produção de loiça ornamental, por encomenda do Visconde de São João da Pesqueira, cria uma original baixela em prata e desenha painéis de azulejos, floreiras, bustos, jarrões para o Palácio Beau Séjour, em Benfica, entre outros palacetes de Lisboa, sempre inspirado no estilo Manuelino na Arte Nova, muito apreciada na época. Dedica-se ainda à escultura, executando uma Paixão de Cristo com 60 figuras, para as Capelas do Buçaco, em terracota, à escala humana. A convite do governo, é nomeado responsável por parte da construção do Pavilhão Português na Exposição Universal de Paris de 1889, em particular da decoração das salas, onde reúne e realça a qualidade dos produtos nacionais, onde sobressaem as peças de faiança das Caldas, que acabam por lhe valer a medalha de ouro. Volta a ser premiado com a medalha de ouro em Madrid na Exposição Colombiana, para a qual realiza, em conjunto com Ramalho Ortigão, a decoração da secção portuguesa. Raphael Bordallo Pinheiro foi um génio do seu tempo. Artista ímpar, empreendedor visionário, crítico mordaz e demolidor da sociedade portuguesa dos finais do Séc. XIX morreu prematuramente aos 58 anos, deixando como herança, uma das mais prolíferas produções artísticas nacionais.

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Nuno regressa com o mesmo ar sereno com que o encontrámos ao início da manhã, embora com um ligeiro brilho no olhar, o mesmo que lhe notámos mal começámos a falar de Raphael Bordallo Pinheiro. E é exatamente sobre esse brilho no olhar que o questionamos mal retomamos a conversa.

No Largo do Chiado, inundado pela luz do meio dia, o mesmo bulício de sempre. Turistas que saem dos taxis com olhar curioso; uma banda de músicos cabo verdianos que toca uma morna em frente à estátua de Fernando Pessoa; um garçom impecavelmente fardado d’ A Brasileira, que quase derruba a bandeja para evitar uma criança irrequieta; um grupo de jovens gestores de fato e gravata que fumam na entrada de um prédio. Rostos, corpos, figuras. Aquela senhora elegantíssima com um nariz proeminente, o homem bonacheirão sentado despreocupadamente na esplanada. Personagens de um quotidiano a cada dia mais cosmopolita. Acho que o Raphael Bordallo ia gostar. Por João Moreira


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O juruá guarani por Luiz Garcia

A experiência do branco que virou índio e guardião da sabedoria dos índios guarani O chocalho de Karai Djekupé quebra o silêncio e dá o ritmo, enquanto Nhee Gara’i acompanha ao violão alternando dois ou três acordes. De olhos fechados, concentrado, o primeiro puxa o canto guarani. As pulseiras e o colete trazem motivos indígenas. Um colar típico completa os adereços do cantador. Seria uma simples – ainda que curiosa - apresentação musical de uma dupla de indígenas no lançamento do livro “Enhembo´eté – Contos xamânicos e a lição de vida dos Índios Guarani”, não fosse possível reconhecer, na expressão do cantador e autor da obra, o semblante de um juruá, como os guaranis chamam os não indígenas. Antes de ser Karai Djekupé Ywy Djú Mirim, o homem branco era o caucasiano Alexsander Vacaro, um terapeuta naturista, surfista, hoje com 43 anos. Ao mergulhar fundo na alma guarani, ele fez o caminho contrário ao de muitos indígenas herdeiros da sangrenta relação histórica entre os primeiros habitantes do continente e os conquistadores ocidentais. Para sobreviver à ocupação dos europeus, os povos indígenas tiveram de se submeter à tirania estrangeira, abrindo mão do espaço que, outrora, usufruíam sem pedir licença. Num contexto de opressão e extermínio quase silencioso de sua gente - capítulo que não foi inédito na história da humanidade - , não é de estranhar que indígenas optaram, em sua maioria, pelo caminho menos traumático: o de tentar inserir-se na sociedade branca, abdicando de sua herança cultural. Afinal, em termos práticos, é uma cultura vencida, sujeitada à superioridade da civilização branca. Massacrados historicamente, que jovem indígena poderia orgulhar-se de ser minoritário e tratado como exótico na própria terra de seus ancestrais?

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Ainda que tenha havido movimentos de reparação pelo Estado e de valorização étnica, a hegemonia da cultura ocidental – racionalista, tecnológica e exageradamente materialista – segue tratando as tradições indígenas como inferiores e, na melhor das visões, pitorescas, mas sempre

sem valor ou utilidade ao modo de vida contemporâneo. Isso explica, em parte, por que as comunidades indígenas lideram o ranking de suicídios no Brasil. No Mapa da Violência de 2014, a taxa de suicídios na cidade amazonense da São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, foi de 50 casos por 100 mil habitantes, dez vezes maior do que a média brasileira. Entre os que se mataram, 93% eram índios. Oito entre dez se enforcaram. O suicídio por ingestão de timbó, raiz venenosa que causa sufocamento, foi o segundo método mais usado. O caso de Karai Djekupé Ywy Djú Mirim não chama a atenção apenas de brancos. Os próprios índios da aldeia guarani Yynn Moroti Wherá, na localidade de São Miguel, município de Biguaçu, em Santa Catarina, ficaram intrigados com a decisão do juruá de morar na comunidade e se tornar um deles. Mais surpreendente ainda foi ele ter convencido a esposa, Christine Marie Pezin, a fazer o mesmo. Logo ela, uma francesa que, 13 anos atrás, havia se mudado de Paris para São


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Paulo a serviço de uma multinacional. Destacada para trabalhar na filial de Balneário Camboriú, conheceu Alexsander em seu consultório. Coisas que amor explica: deixou a empresa, desfez-se dos sapatos de salto alto, e embarcou, solidária, na aventura de busca interior que havia levado o marido ao primeiro contato com os rituais xamânicos em 2001. Era a cerimônia do Temazcal, também conhecida como “tenda de suor”, que propõe um banho de vapor para a purificação dos corpos físico, mental, emocional e espiritual. O ritual foi realizado nos arredores do bairro de Ingleses, em Florianópolis, em meio à mata fechada. A experiência ritualística incluía a ingestão de “medicinas”, populares entre os povos indígenas, como a Ayahuasca, o peyote, o tabaco, cogumelos e o São Pedro, utilizadas, frisa Karai Djekupé em seu livro, “como agentes de abertura da consciência ou do autoconhecimento”. As duas horas de suador num octógono com outras duzentas pessoas, entre rezas e visões, produziram uma forte impressão no terapeuta, confirmando a afinidade com o universo indígena percebida durante um tratamento alternativo para tratar de dores no ombro, meses antes. O Temazcal, porém, servia apenas como etapa preparatória para um desafio interior maior ainda: a busca da visão. Ainda sob o efeito das medicinas, Alexsander foi “plantado” no interior da mata, sozinho e em jejum de água e comida durante os dois primeiros dias. Ao terceiro, receberia água e frutas. No quarto, seria “colhido”, completando a experiência de renovação.

No início, a sensação de isolamento era completa, lembra o juruá. “Percebi que o silêncio era ilusão. Um sem-fim de cantos de pássaros tomava conta de espaço. De tempos em tempos, ouviase o esturro de um puma, mas ao contrário de medo, o que se sentia era que estava perfeitamente protegido”, escreveu em seu livro. Sem as distrações do mundo externo, o retiro em contato profundo com a natureza foi também um encontro consigo mesmo. Inclusive com os seus próprios demônios. A fome começou a rugir, a ansiedade retorcia-se diante da impassividade inquebrável da natureza, a dúvida punha cismas em seu propósito de estar ali. “Isso é coisa de maluco! Não é preciso esse sofrimento para se evoluir espiritualmente!”, passou a pensar. Quando ameaçou desistir, possuído por pensamentos povoados de desejos, distinguiu diante de si, quase tangível, a figura espectral de uma das anciãs do conselho indígena. “Paciência! Tudo passa!”, ouviu-a dizer. A experiência mística deixou-o em choque. Sentiu que não estava só, afinal. A visão trouxe serenidade aos pensamentos. Alexsander lembra que, sob o impulso de uma energia renovadora, teve um novo encontro interior. Desta vez, com a imagem de um velho índio. “O diálogo que tivemos foi telepático. Índio Velho contou que foi ele o responsável por ter me trazido até aquele lugar, que a partir de agora caminharia comigo em todos os momentos”, narra em seu livro. Até seu batismo como Karai Djekupé, Alexsander vivenciaria outras três experiências de “busca de visão”, em cada uma ampliando o número de dias. Na última, a impressionante marca de 13 dias afastado do convívio humano, entregue inteiramente aos cuidados da floresta.


Embora os guaranis não tenham nenhum código de regras escritas, as experiências de busca espiritual a que Alexsander se expôs lhe deram “credenciais” e o aproximaram das lideranças e das tradições indígenas. Em 2006, seu casamento com Christine, ou agora Kunhatain Djaxuká, já marcava sua identificação com os costumes xamânicos. Depois de uma cerimônia católica, a pedido da família da esposa, seguiu-se, para a surpresa dos convidados, uma celebração indígena para selar o matrimônio. Nos últimos seis anos, o casal intensificou a frequência e o envolvimento com as atividades da comunidade. Nas cerimônias semanais, abertas aos juruás, ambos passaram a participar ativamente, nos cantos e nas rezas. Foi numa delas em que - primeiro Alexsander em 2011 e dois anos depois Christine - o casal foi batizado com nomes indígenas. Por tradição, cabia ao então pajé da aldeia, o centenário Alcino Moreira, a escolha dos nomes. É uma tarefa levada a sério pelo povo guarani, que atribui ao nome um valor que vai além da mera identificação. O nome Karai Djekupé Ywy Djú Mirim significa “Guardião do Espaço Sagrado” e, segundo o curandeiro, traduzia a missão de vida do juruá Alexsander, desde jovem interessado em questões relacionadas à busca espiritual.

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Nas cerimônias indígenas, Karai Djekupé percebeu a conexão dos guaranis com o transcendente e ficou especialmente impressionado com as habilidades do pajé Alcino. Ele realizava sessões de cura que, aparentemente, eram baseadas num princípio de desmaterialização da doença. Há alguns anos, eu mesmo cheguei a acompanhar uma dessas cerimônias, sem poder comprovar, entretanto, a efetividade das curas. A disposição do velho curandeiro, porém, era admirável, nas várias horas em que conduzia os benzimentos. Depois de observar o paciente, sentado à frente do fogo sagrado, o pajé se dirigia até a área do corpo doente. Sob o ritmo de rezos cantados, fazia sucções em contato com a pele do paciente e tossia em seguida, supostamente expelindo energias deletérias. Um grupo de rezadores, dos quais o juruá passou a ter o privilégio de fazer parte, cachimbava tabaco e usava o fumo como forma de sustentação energética. Ao final, o pajé cuspia pequenas pedras escuras sobre a mão e mostrava-as ao paciente. Terminando o tratamento, ele se voltava ao fogo, ainda entoando seus rezos, e pressionando as pedras sobre as próprias mãos, vaporizava-as. Da relação com os guaranis, Karai Djekupé descreve tais cerimônias como a “cereja do bolo”. O dia a dia na aldeia inclui tarefas bem menos espirituais, como enfiar-se na mata fechada atrás de taquaras ou lenha, ou construir a própria casa na aldeia. Ainda assim, experiências com as quais o juruá diz conectar-se com a simplicidade, com as pessoas e com a natureza. Instalados ali desde

novembro de 2013, a experiência diária aprofundou a inserção do casal na comunidade. Christine, ou Kunhatain, sente falta de refeições servidas na mesa, mas se resigna com as alegrias da vida despojada da aldeia, uma realidade completamente oposta a de seus dias em Paris e São Paulo. Karai Djekupé já tem status de liderança na comunidade. Em abril do ano passado, ele e outros três membros da aldeia, entre eles o cacique Hyral Moreira, participaram de um intercâmbio na Itália, na região de Trento, onde atenderam a mais de 500 pessoas em cerimônias de benzimento e cura. Com o lançamento do livro “Enhembo´eté (“Preste Atenção”, numa tradução livre), o guardião juruá dos guarani compartilha sua trajetória de autoconhecimento e encontro com os rituais e o modo de vida indígenas. A obra valoriza a sabedoria milenar dos povos ancestrais da América e propõe a visão dos índios como forma de tratar os grandes dramas da humanidade, desde a mudança climática às doenças da alma. “Enhembo´eté aponta esses problemas contemporâneos e mostra como a atitude guarani diante da vida pode ser uma resposta para os problemas. O livro busca reforçar a ideia de que, num mundo onde se buscam coisas, a única busca verdadeira é a felicidade, que passa pela liberdade consciente de fazer o que é correto, de prestar atenção ao que fazemos”, receita. “É uma visão essencialmente terapêutica, resultado também de 20 anos como terapeuta, munida de uma cultura milenar, que deixa uma mensagem muito clara para tenhamos mais atenção e evoluamos menos pela dor e mais pelo amor”.

Serviço: O livro ““Enhembo´eté – Contos xamânicos e a lição de vida dos Índios Guarani” pode ser adquirido pela internet no site enhemboete. wordpress.com .


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A Cultura Corporal Livre Há algumas semanas, o Porã* falava sem parar numa edição do Pretinho Básico* e terminou seu palratório com a seguinte frase: “Lá onde o sol não bate”. Quase engasguei com a água que havia acabado de por na boca, pensando: “sabe de nada, inocente!”.

com que o tema é abordado e me acostumei com a cultura.

Aqui na Alemanha, o sol bate “lá” sim! Não se assuste, se ao passear por algum parque de Munique, você der de cara (espero que não literalmente) com algum tico balançando.

Aqui, ficar nu é tão normal, que ninguém (daqui) repara. Não importa se você é gordo ou magro, velho ou novo. A nudez é natural, é bela e vista como arte da natureza.

Não apenas topless, mas nude total é liberado em muitas parte da cidade e alemão não se faz derogado: esquentou? Bora se pelar!

O motivo? Não sei. Não me importa também. O que importa, é ver que aqui as pessoas são livres para viverem como se sentem mais confortáveis e não serão julgadas, muito menos machucadas por suas escolhas.

É interessante observar a diferença com que o Brasil e a Alemanha tratam o nudismo. Quando cheguei aqui, esperavam que eu fosse achar normal e até aderir à moda. Afinal, se no Brasil gostamos de ver mulheres belas peladas na Playboy e no Carnaval, qual o problema em vermos pessoas peladas em revistas de lifestyle, nos jornais, em quadros pendurados na parede de casa, nos porta-retratos na vitrine da loja de fotografias, nos clubes, parques, rios, lagos e saunas?

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Aqui, aprendemos a respeitar o espaço do outro. O nome disso é Freikörperkultur, ou Cultura Corporal Livre. Livre de olhares, indiretas e principalmente, livre de abusos. Pelo fim da cultura do estupro,

Sim, aqui até nas saunas, homens e mulheres compartilham o mesmo espaço, totalmente pelados. Mal, se sente quem ousar deixar a sunga ou a toalha enrolada no corpo.

Texto por Mey Fuechter Fotografia por Hugo macedo

Mas eu não apenas não aderi, como estranhei. Com o tempo, porém, fui notando a simplicidade

*Programa de Rádio do RS


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Fazer a diferença Duarte (nome fictício) não deve ter mais de 10 anos. Tem o sorriso contagiante de quem ama a vida que mal começou a trilhar e uns olhos verdes iluminados pela esperança de um dia destes poder brincar de novo, na rua, com outros meninos da sua idade. Saltar ao eixo, jogar futebol ou, simplesmente, deitar-se na relva úmida do jardim em frente a sua casa. Sentada ao seu lado, sua mãe, curvada pelo peso duma angústia que teima em não desaparecer, segura-lhe a mão direita, mais para se confortar a ela própria do que para o confortar a ele, que vai vasculhando com uma curiosidade inquisidora e irrequieta, própria da idade, o espaço à sua volta. Os nossos olhares cruzam-se e, por momentos, pelo breve instante de um sorriso, sinto-me unido aquele guri de olhar intenso e pele macilenta e acinzentada pelas muitas horas de quimioterapia. A porta imaculadamente branca, por cima da qual sobressai uma luz vermelha anunciando a saída, abre-se bruscamente para dar passagem ao Senhor António, 70 anos de idade e quase 30 de dedicação diária ao seu semelhante. Começou a alegrar com piadas a angustiante espera dos doentes do IPO durante as deslocações semanais ao Instituto, em que acompanhava a sua mulher aos tratamentos que se viu obrigada a fazer para combater o câncer que teimava em destruir lhe as células. E nem mesmo quando a sua Maria das Dores desistiu de combater a doença e o deixou sozinho a tocar uma vida que perdera o sentido, abandonou a rotina semanal de ir dar alento aos outros. As piadas que conta, são velhas e repetitivas, mas a alegria contagiante de António e a determinação com que fala com cada um de nós fazem daquele momento uma lufada de ar fresco no ambiente claustrofóbico e doentio daquela sala de espera.

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um sorriso de agradecimento ao ancião que nenhum de nós conhece verdadeiramente, conscientes de que aquele momento, por mais estranho que possa parecer, fez toda a diferença. É isso que António se habituou a fazer diariamente: a diferença na vida dos outros. Nunca lhe ocorreu querer mudar o mundo, nem tão pouco militar em movimentos internacionais de solidariedade. António não sonha com grandes gestos. Quer apenas ajudar a aliviar o sofrimento daqueles doentes, como que numa forma de expurgar ele próprio a dor da solidão a que ficou votado com a morte prematura da sua mulher. E é esse aconchego de humanidade próxima que muda a sua e as nossas vidas. Quantas vezes, inflados pela soberba das nossas convicções desdenhámos de gestos como os de António, por os considerarmos insignificantes e misericordiosos? Quantas vezes ambicionámos grandes transformações mundiais, certos de que só assim conseguiríamos alterar o rumo das coisas, sem olharmos para o nosso bairro, a nossa rua, a nossa casa? Eu sei que é um cliché, mas para mudar o que quer que seja, temos, em primeiro lugar de conseguirmos mudar-nos a nós próprios e passarmos a olhar os que nos são próximos com mais amor e mais humanidade. Naquele dia e em todos os outros em que António aliviou por breves momentos a angústia de cada um de nós, aprendi a importância da humildade dos gestos simples.

António dirige-se a Duarte e começa a contar uma piada longa de animais falantes, que recordo vagamente da meninice e que exige do septuagenário uma sucessão infindável de imitações de sons e grunhidos que fazem Duarte soltar uma genuína e sonora gargalhada. E ouvir aquela criança rir entusiasticamente naquela sala de espera de hospital, embalada pelos disparates de um velho homem curvado pela idade, é todo um tratado de dádiva e humanidade.

Quando o Sol que nos ilumina os dias e a vida se ensombrece, não imaginam como é importante ter alguém que nos faça ver além das nuvens que teimam em querer não desaparecer.

Na sala o ambiente desanuvia. Uns riem com Duarte e outros, como eu, limitam-se a esboçar

Texto por João Moreira Fotografia por Hugo Macedo

Esse foi o ensinamento de António e dos muitos milhares, senão milhões de Antónios que, por esse mundo fora, entregam amor e dignidade à vida dos outros. Eles fazem a diferença todos os dias. E nós, o que fazemos no dia a dia para fazer a diferença?


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