REVISTA LABORATÓRIO ED. 10| AGOSTO 2019
SOBREVIVER NA RUA A VIDA CONTADA POR QUEM JÁ TEVE CONFORTO E HOJE ENFRENTA UMA NOVA REALIDADE Rodrigo Francisco é querido pela vizinhança, conversa com todos e lê a bíblia diariamente
Durante a nossa vida, passamos por muitas pessoas. E nem imaginamos o tanto de histórias que cada uma delas carrega. Talvez possamos culpar a rotina agitada, a falta de tempo ou até mesmo a falta de oportunidade para parar e simplesmente ouvir. Na décima edição da Viral, fomos para as ruas, com os ouvidos bem abertos, para colher histórias de vida de pessoas únicas. Um morador de rua que jura que, apesar de tudo, é muito feliz e vai reconstruir sua vida; ou o garoto bem nascido que quase sucumbiu a uma crise de ansiedade. Em contrapartida, temos também a história de um corretor de finanças que nunca sabe que horas seu dia vai terminar e que mesmo assim vive as delícias da juventude a bordo de seu skate. Apresentamos ainda a incrível trajetória de um jogador de futebol americano que conseguiu superar a dependência química e se tornar um atleta de destaque do Santos Tsunami. Finalizamos as histórias de vida com um personagem que trabalha justamente com o contrário da palavra vida: um auxiliar de necrópsia que, inclusive, guarda em cadernos os nomes, causas e datas das mortes dos mais de 9 mil corpos que autopsiou em 34 anos de carreira no Instituto Médico Legal de Santos. Em cada página, contamos alguma coisa sobre a vida de pessoas que provavelmente você nunca ouviu falar e que estão bem perto de cada um de nós. E é exatamente essa mistura de pessoas que torna nossa região tão única e especial. Cada repórter absorveu o máximo que pode de seus entrevistados, passando para o texto com muita sensibilidade e profissionalismo. Esperamos que cada uma das histórias que contamos adicione algo de positivo no seu dia ou toque você de alguma maneira. Tem relatos para rir, para se deliciar e também para se emocionar.
Boa leitura.
Para conferir mais sobre esta edição, acesse o nosso blog viralunisanta.blogspot.com
REVISTA LABORATORIAL DO 4º ANO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL COM ÊNFASE EM JORNALISMO DA UNIVERSIDADE SANTA CECÍLIA (UNISANTA) - AGOSTO 2019 DIRETOR DA FAAC Prof. Humberto Iafullo Challoub COORDENADOR DE JORNALISMO Prof. Robson Bastos PROFESSORES RESPONSÁVEIS Helder Marques, Nara Assunção e Raquel Alves CAPA Foto por Thaíris Canhete PROJETO GRÁFICO ORIGINAL Diego Kassai, Gabriel Chiconi, Kelvyn Henrique e Nathália Affonso
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CAPA Memórias do Asfalto
Dida, do verbo movimentar
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Nascida para os palcos
A pioneira das PLPS em Santos
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Tudo ao mesmo tempo, tem seu preço
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Quebrando tackles e a dependência
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1, 2, 3, A...Zenha
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O mestre das necrópsias
O cara da Vila
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O investidor autodidata
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Texto: MANUELLY CARDOSO Foto: ALICIA ALVES E JACQUELINE GARCIA
Dida,do verbo
movimentar DE DOMÉSTICA À PROFESSORA UNIVERSITÁRIA. A TRAJETÓRIA DA LÍDER DO MOVIMENTO FEMINISTA NEGRO NA REGIÃO DA BAIXADA SANTISTA.
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ão se sabe a data exata de quando Aldenir Dida Dias começou a sua luta como mulher no movimento negro. Talvez o ponto de partida tenha sido o momento em que deixou de brigar com o cabelo crespo, o nariz achatado e os traços marcantes. Ou, assim que passou a questionar a sociedade, as relações de poder, os acessos e os espaços. Quem sabe quando entrou em grupos, entendeu como funcionavam e o que precisavam para continuar. São tantas as possibilidades. O que se sabe é que aos 15 anos de idade, Dida iniciou seu trabalho de doméstica, e ali, questionou o seu lugar. Não o que a pertencia, mas o único onde lhe davam espaço. “Descobrir que sou uma mulher negra começou quando avaliei qual era o papel colocado para as mulheres negras”, relembra Como filha mais velha, tinha
os outros dez irmãos para ajudar a mãe a cuidar. Passava o tempo da adolescência limpando casa e quarto de jovens da sua idade que tinham escrivaninha, estantes de livros e tempo para estudar e ler. Tudo o que ela imaginava como era ter enquanto o mais perto que chegava disso era para tirar o pó para mantê-los limpos. Mas é grata por isso também. Afinal, no seu último emprego como empregada doméstica, conheceu Gemma Rebello. A “patroa”, com aspas mesmo, porque preferiram aproveitar melhor o tempo sendo amigas do que manter uma relação patroa-empregada, contribuiu para a formação profissional de Dida, e não seria exagero dizer, pessoal também. Na igreja católica que Gemma frequentava, Dida foi apresentada ao padre, que empregou a então doméstica como secretária da instituição. Dida foi a última empregada de Gemma.
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Daí em diante, Aldenir já rompia limites e, mais do que nunca, movimentava estruturas. Prestou vestibular para Serviço Social e foi aprovada. Tempos depois, começou a trabalhar como recepcionista na Prefeitura de Guarujá. Gemma ainda estava lá. Com ela, e mais outros companheiros e companheiras, a militância já se moldava à identidade. “Organizei movimentos contra a carestia, de solidariedade aos trabalhadores e, principalmente, sonhei muito, sonhei e ainda sonho com um outro mundo. Um mundo onde homens e mulheres, brancos e negros, sejam donos não só da sua força de trabalho, mas também do resultado deste trabalho”. A esta altura da vida, Dida se relacionava com o mundo de frente e não mais por debaixo da mesa. No início da década de 80 enfrentou a política partidária de
forma corajosa. Com outras mulheres e homens, fundou o Partido dos Trabalhadores no Guarujá, e foi sua primeira presidente local. Em 82, Gemma foi eleita vereadora de Santos. Tempos depois, a afamada amiga morreu de câncer. Segundo a professora, no atestado de óbito da amiga deveria constar o seguinte. "Causa mortis: não conseguiu transformar este mundo". Para Dida, o sacrifício cravado na lápide de Gemma foi mais um motivo para a resistência. Do corpo e da alma. Dida aumenta no verbo e às vezes é maior que ele próprio. Ela não se cansa de crescer. A estatura de mais ou menos 1 metro e 70 centímetros se agiganta quando ela leciona. Na posição que ocupa, lutar por duas repressões sociais com dívida histórica no Brasil e no mundo, como o racismo e o machismo, é necessá-
“
Sou negra fora do meu lugar; parda, embranquecida nesta sociedade fincada pelo racismo.”
Acreditar é a única forma de enxergar possibilidade de mudança no futuro
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rio ter várias versões de si mesma. Continuar não é fácil, mas é uma de suas poucas certezas do que irá fazer por um bom tempo ainda. Mas pausou por um tempo. Mudou-se para Piracicaba, por conta do emprego de seu marido e como não havia terminado a graduação na cidade que residia decidiu cursar Licenciatura em História. Mas somente dez anos depois. Desta vez, se formou institucionalmente. Logo notou que aprendeu a ser professora, sendo professora. Sem frustração. “Acho que é assim mesmo”, comenta. Neste mesmo município no interior do estado de São Paulo reconheceu-se negra - não era a primeira vez. Ambulantes que batiam em sua porta para vender produtos solicitavam a patroa. "Penso que para estes trabalhadores o lugar de uma mulher negra é mesmo como empregada doméstica e não como a “dona da casa”. Era só mais um enfrentamento. A tal pausa foi quase utópica, pois toda vez que pensava em descansar, prontificava-se a vestir a armadura de novo. A realidade dói mais para pretos e pretas.
bem como, a falta de preparo para lidar com a realidade. E dessa agonia, Dida entendia, só não fugia. O maior problema de todos, se é que dá para classificar, era a falta de sensibilidade para com a vida do povo negro, principalmente a das mulheres. Ainda que feliz pela oportunidade que tinha, percebia que a escola e os profissionais não estavam preparados para falar sobre gênero, classe, raça, religião, orientação sexual. Dida sabia que tudo isso envolve vida, e especificamente no contexto, um aumento na autoestima individual e social. Se trabalhadas as questões, imaginar os resultados daria um gás tão grande de esperança “que causa até medo de começar…”
Eu sigo! Tu segues? Já que de medo não entendia, não só continuou, como começou. Por conta de sua incessante sede pelo aprendizado, apresentou o projeto sobre “Formação de Professores e os Preconceitos” a um programa de pós-graduação e, em 2000 passou pelo processo seletivo e foi aprovada. Naquela situaEu ensino e contribuo ção, lembrou-se do conjunto Continuava professora da vida e de condições e papéis sociais agora da escola. Eventualmente que lhe restara. “Sou negra fora era chamada para lecionar em do meu lugar; parda, embranescolas de periferia, onde sobra- quecida nesta sociedade finvam aulas para novos professo- cada pelo racismo; professora res. Mas gostou. Se reconheceu. que, para suportar a barra de Percebeu quem era e o que com- tratar assuntos tão espinhosos preendia da vida. Viu de frente a como a discriminação racial, realidade de salas superlotadas, precisava de suportes psicolófalta de interesse de alunos e gicos, de alta estima, nem que alunas, ausência de recursos pe- fossem os artificiais, como ir o dagógicos e de conteúdos que mais arrumada possível, como tivessem relação com a vida, secretária executiva de uma desmotivação de professores, empresa multinacional”.
Olhar para a luta que cravou há anos, é motivo de reflexão e orgulho
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Eu movimento, tu movimenta, nós movimentamos Dida está sempre em movimento. Quem a encontra por aí, se não está na aula, está seguindo para algum encontro com meninos e meninas jovens ou não, e isso faz parte de sua rotina para ajudar a construir o mundo. Como mulher negra, está na base de qualquer edificação e justamente por isso não hesita em lutar por quem está ali com ela, e até mesmo os que não acham que precisam disso. Angela Davis, estadunidense-mulher-negra-feminista-ativista diz que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, e é exatamente isso que Dida acredita e passa. Ela acredita! Entendeu que era negra, e por meados dos anos 90, entrou no processo de conseguir fazer com que as outras pessoas percebessem isso e lutassem também. Mas desta vez não só pela mulher, mas pela mulher negra. Não bastasse a escalada até aqui, entendeu que há um feminismo que não traz necessidades de mulheres como ela. “Se o feminismo luta contra o fato da sociedade achar que a mulher é frágil, essa questão não diz respeito às mulheres negras porque elas nunca foram criadas como mulheres
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frágeis”. Ao ver com outros olhos as mulheres presentes nos movimentos, entendeu que as brancas estavam lá, enquanto negras moram longe do local, trabalhavam mais, ou, algumas vezes, estavam cuidando dos filhos destas brancas. “O maior número de empregadas domésticas são mulheres negras, o maior número de trabalho informal é feito por mulheres negras, o maior número de mulheres que moram na extrema periferia são as negras”. O oito de março continua branco. Enegrecimento feminista Não é que as mulheres brancas sejam contra as pautas das mulheres negras, mas é que há outras pautas, tão necessárias e urgentes, que não fazem parte da realidade delas. Enegrecer o feminismo é mais uma luta de Dida. É mais um verbo no seu dicionário. Ainda falta… faltam as feministas, que estão na organização do movimento de mulheres, conseguirem incorporar essas questões que dizem respeito às mulheres negras e indígenas. Mais que isso, também falta as mulheres negras toparem. Não é fácil. “Fácil” é o adjetivo do qual Aldenir nunca procurou o significado. Não faz parte de si, da sua luta e do que escolheu.
Aos 62 anos se mantém sóbria. Sem remédios para dormir, de boa saúde, ávida pelo que acredita, e mantém um baita sorriso iluminado que parece nunca sair do seu rosto. Não é exagero dizer: há quem duvide que Dida chore! “As pessoas acham que a gente é sempre forte. Mas eu tenho que ficar forte. Mesmo não sendo o que a gente quer sempre.” Dida é puro movimento desde que nasceu, porque não faz parte do seu destino ficar parada. E nem pensar em parar. E se continua é porque acredita na juventude, em especial nas mulheres, e nas negras. A mãe Raimunda e a amiga Gemma são suas referências. Para ela e para o mundo, Angela Davis, Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, Clara Nunes, Elza Soares, Nina Simone, entre tantas, que são nomes que estão nos livros, na internet e na mente de muitos civis e também são exemplos. Talvez por fazerem aquilo que muitos queriam ter feito mas tenham lhes faltado coragem, vontade, garra, determinação, foco, esperança e insatisfação. Dida não consegue se conformar e nem ficar quieta. Dida é movimento. Dida é verbo único que ninguém consegue conjugar
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O verbo Dida ĂŠ conjugado ora aprendendendo, ora ensinando
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Texto: Lucas Freire, Rafael Souza e Rodrigo Florentino Foto: Lucas Freire e Rodrigo Florentino Diagramação: Lucas Freire, Rodrigo Florentino
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QUEBRANDO TACKLES E A DEPENDÊNCIA CARLOS RUBENS CRUZ JUNIOR, O REVOLTA, VIROU O JOGO NA VIDA. EX-USUÁRIO DE DROGAS, O ESTIVADOR DO PORTO DE SANTOS, JOGADOR DE FUTEBOL AMERICANO, ESTUDANTE DE DIREITO E MEMBRO DA IGREJA UNIVERSAL ATUALMENTE AJUDA PESSOAS A NÃO PASSAREM PELO O QUE ELE PASSOU
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magine: você se preparando fisica e mentalmente para uma eventual colisão de frente com toda força e velocidade contra um atleta de porte físico essencialmente robusto. É exatamente nessa situação que ficam os adversários do Santos Tsunami, mais especificamente os que enfrentam o “Revolta”. Mas afinal, quem é ele? É um atleta de 1,90m de altura, com aproximadamente 120 kg de massa muscular. Suas mãos e pernas chamam a atenção, dedicadas a atropelar os bloqueadores adversários em campo. Ao retirar o capacete, é nítido um semblante intimidador, sempre com cara de durão. Porém, ele também se destaca pela ótima capacidade de comunicação com os companheiros de time. No entanto, as atribuições anteriores apenas refletem o atleta em campo, porque fora dos gramados, “Revolta” é Carlos Rubens Cruz Júnior, um homem
de 42 anos com uma história de vida marcada pela superação da dependência química e que também serve de inspiração para os que convivem com ele. Conversando com “Revolta”, o que não falta é assunto, seja política, religião, esportes, drogas e etc. E nada de dar pitaco sem fundamento, como acontece em boa parte das rodas de amigos, nos botecos e nas redes sociais. Em conversas com o jogador de linha defensiva do Santos Tsunami, destacam-se algumas histórias pessoais, que envolvem experiências, aprendizado e muitas lições de vida. A rotina dele deixa pouco espaço para tempo livre: de manhã cedo vai para a academia e para as aulas de Direito na Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC), em Santos. À tarde, trabalha como estivador no Porto. Nos fins de semana, joga futebol americano e, quando possível, frequenta os cultos da Igreja Universal.
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“Revolta” segue à risca sua rigorosa lista de exercícios. Ao chegar na academia, no bairro do Campo Grande, prepara os equipamentos e inicia o treino. Apesar de estar sempre focado e dedicado na atividade física, não deixa de cumprimentar amigos e conhecidos que estejam presentes no local. Início nas drogas Quem vê o “Carlão” de hoje não imagina a virada radical que sua vida teve. Os hábitos saudáveis de hoje não faziam parte do seu dia a dia. Antes, convivia com um problema comum na sociedade: a dependência química. A curiosidade levou a sua primeira experiência com drogas, quando usou pela primeira vez por intermédio de um amigo. Tempos depois, mergulhou no uso intensivo, que durou 14 anos consecutivos, até terminar em 2005. O problema chegou a tal ponto, que ele furtava itens da casa dos pais para sustentar o vício. Com isso, os familiares perderam a confiança nele. “Revolta” começou com a maconha, passou pela cocaína e terminou no crack que, segundo ele, foi o motivo de ter passado dois anos como morador de rua. Conheceu sua esposa Lucy quando estava no Exército, e casou-se com ela em 2002. Tinha uma vida “dupla”: em casa, agia normalmente. Fora dela, os problemas eram frequentes, como as ocasiões em que ficou dias consecutivos na rua usando drogas, enquanto sua mulher achava que estava no trabalho. Chegou a sair de casa para morar em partes degradadas de Santos, mas Lucy foi buscá-lo.
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A cocaína fez “Revolta” se descobrir como dependente químico. “Eu pensava 24 horas na droga e imaginava o que faria com o dinheiro que recebia do trabalho”, explica. No caso do álcool, chegou ao ponto de ter tremores no corpo, que só passavam após ingerir uma dose de uísque. “O cara da balada”. Essa era a forma que “Carlão” era visto nas noites. Ele organizava bailes funk e sempre era visto como alguém famoso, bem-sucedido e com muitos seguidores, perfil comum hoje nas redes sociais. A popularidade era tanta que chegou a ter um programa em uma rádio de funk. Porém, quando chegava em casa, a realidade vinha à tona. “Me trancava no banheiro e não conseguia ter coragem nem de me olhar no espelho”, conta. Reviravolta Em 2005, chegou a gastar boa
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Meu filho se consagrou como obreiro na igreja, e quem o ajudou muito nessa parte da vida foi com certeza a esposa dele (Lucy), que a todo momento esteve presente, dando forças e o apoiando. Carlos Rubens Cruz (Pai)
parte de seu dinheiro com drogas, e apenas uma pequena porcentagem dele ia para as despesas de casa. Também passou a gastar altos valores em madrugadas solitárias no bar. A partir daí, a ficha caiu e se viu em um ultimato, que mudaria sua vida por inteiro: ou saia das drogas ou perderia sua esposa, “a única coisa boa que tive nesses últimos anos”. No dia seguinte, Lucy saiu para ir à igreja e Carlos achou que ela tinha ido andar na praia. “Quando ela chegou em casa, dei um abraço forte nela e disse que iria fazer de tudo para que nossa vida mudasse. E já no dia seguinte comecei a frequentar as reuniões da Igreja Universal”, lembra emocionado. Na primeira ida à Igreja, “Carlão” foi ao altar e teve a impressão de que Deus “estava ali de braços abertos”. Prometeu que se Deus mudasse sua vida, nunca mais
iria largar a religião. No fim de 2019 completará 14 anos como integrante da Igreja Universal. E segundo o próprio Carlos, é como está escrito na Bíblia: “Minha vida mudou da água pro vinho.” Hoje em dia, “Revolta” conversa com moradores de rua, para incentivá-los a saírem da situação que se encontram. Ele relembra um caso específico, em que um dos sem-teto o confrontou, dizendo que ele “não sabia o que o desabrigado sofre no dia-a-dia”. Calmamente, sentou-se ao lado do morador de rua e explicou por quê se solidariza com eles e compartilhou os momentos de sofrimento e de superação da sua vida. Atualmente, “Revolta” faz trabalhos sociais em lugares como a Fundação Casa, com pessoas que enfrentam o vício em drogas e também com outras que nunca foram confrontadas com o problema. “Revolta” lembra com carinho de Erica Andrade, sua professora na ESAMC, que disse ter orgulho de ser professora dele. “Foi um momento que guardo como um troféu”. Hoje, “Carlão” é considerado o orgulho da família. Tanto que o pai, Carlos Rubens Cruz, postou uma foto dele no Facebook em seu aniversário e disse para um amigo que está muito feliz de ver como o filho está hoje. Apesar de não sentir mais vontade de usar drogas, “Revolta” acredita que a prevenção é uma receita para a vida. Por isso, não consome mais bebidas alcoólicas, nem mesmo socialmente. “A vida é feita de 15% de vitória e 85% de derrota”. A frase de Ricardo Oliveira, centroavante do Atlético-MG, é destacada
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Em sete anos com o Tsunami, “Revolta” conquistou um título: a Copa Baixada Santista de Futebol Americano
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quando ele e sua esposa se divorciaram, fato que afetou seus dois filhos. Ele reforça que jamais os abandonou, apesar de terem sempre morado com a mãe. Tanto que foi por ele que “Revolta” conseguiu trabalho no Porto de Santos em 1991, quando o filho tinha 14 anos. Durante muito tempo, trabalharam juntos carregando e descarregando os navios. Mesmo após descobrir sobre a dependência química do filho, Carlos Rubens nunca atritou diretamente com ele, pois entendia que seu papel era apoiar e ajudar. Segundo ele, a maior contribuição que deu para que “Revolta” virasse esse capítulo da vida foi o exemplo que deu como pai e trabalhador. Aos 66 anos, nunca usou drogas e sempre trabalhou e batalhou muito para criar os filhos. A superação do atleta não foi algo que apenas atingiu sua vida. Muito pelo contrário. Ele compartilhou de sua batalha com seus colegas de trabalho, ajudando-os a também darem a volta por cima. O pai relembra o momento em que “Carlão” se juntou aos trabalhadores da estiva para ajudar os companheiros que viviam o drama da por “Revolta”, que ressalta que dependência, incentivando e as pessoas não devem deixar a convidando-os para a igreja. derrota as dominarem, porque “Revolta” não foi o único que ela é importante para que refli- teve problemas com dependêntam sobre o que erraram e pen- cia química na família. Seu prisem no que podem melhorar. mo, João Ricardo, também usava cocaína e recebeu apoio de “CarFamília lão” para se livrar do vício. O pai de “Carlão” enche o peiJoão falava que Revolta era to para compartilhar o orgulho seu ídolo, entretanto, não conseque sente do filho. Ele entende guiu vencer a batalha e cometeu que houve momentos difíceis suicídio em 2016. Hoje, ao lempara a família, principalmente brar do primo, “Carlão” diz carre-
“Carlão” conheceu Lucy quando estava no Exército. Neste ano, completam 17 anos de casamento
gar uma cruz por ele ter perdido essa batalha, e que esse caso é o motivo pelo qual se dedica a lutar e apoiar outras pessoas que passam pelo problema. O dia 10 de dezembro de 2005 é um ponto importante da vida de “Revolta”, pois foi a última vez que ele usou drogas. Em todos os anos, nessa data, ele registra mais um ano “limpo”.
voar de avião pela primeira vez. Durante o voo, refletiu o quanto sua vida havia melhorado. “No check-in, um dos integrantes viu que eu estava com os olhos cheios de lágrima e veio falar comigo. E eu disse: rapaz, só eu sei o que passei. A minha vida mudou completamente”. “Revolta” tem um título pelo Santos Tsunami, o único da equipe em toda a sua história: Futebol americano o da Copa Baixada Santista de “Revolta” joga na linha defensi- Futebol Americano, um torneio va e no time de especialistas do quadrangular organizado pelo Santos Tsunami, equipe de fute- próprio time alvinegro. Na final, bol americano oficial do Santos o time santista venceu o CorinFutebol Clube. Renato Fonseca, thians Steamrollers por 12 a 6, técnico do time, conheceu “Car- em dezembro de 2018. lão” numa peneira em 2012. Durante os treinos e jogos, a Igreja Universal participação de “Revolta” é bas- A entrada para a Igreja Univertante intensa. Ele gesticula, vibra sal é uma passagem que ele a cada lance, presta atenção em gosta de contar em detalhes. cada orientação do técnico e dos Foi ali no templo suntuoso da companheiros de equipe e tam- Avenida Ana Costa em Santos, bém ajuda no que for preciso. afinal, que sua história com as “Carlão” lembra com carinho drogas chegava ao fim. Ricardo de um jogo em especial, con- Diniz, obreiro da igreja, conhetra o Canoas Bulls, do Rio Gran- ceu “Revolta” logo que ele chede do Sul, pelo extinto Torneio gou à Universal, em 2005, e conTouchdown, em 2012. Voltou sidera sua história de vida como para casa com o sabor doce da sendo inspiradora, com o poder vitória por 41 a 7. Além do triun- de Deus agindo pela fé. fo, experimentou a emoção de Quando “Carlão” chegou na
Igreja, Ricardo lembra que ele estava desorientado, era usuário de drogas e tinha problemas no casamento. Atualmente, para ele, “Revolta” é um ícone no esporte, vencedor em sua atividade profissional, exemplo de marido, pai e avô, e que logo será advogado e engajado em questões políticas. Em um dia, o obreiro deu carona para “Carlão” após uma reunião. No meio do caminho, parou em uma padaria para comprar itens para o café da tarde e perguntou ao amigo se ele gostaria de algo. “Revolta” olhou para a esposa e disse que não queria nada, mas Ricardo percebeu que, na verdade, ele gostaria de aceitar a ajuda porque não havia comida em sua casa. O amigo tratou de adiantar o lanche da família. Atualmente, Ricardo diz que “Carlão” ajuda muitas pessoas e é responsável pela formação dos jovens da Igreja. “Me orgulho de ser amigo dele”
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Após a entrevista e o ensaio fotográfico, “Carlão” se transferiu para o Corinthians Steamrollers e agora joga na linha ofensiva.
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Texto: THAÍRIS CANHETE E KAIO NUNES Foto: THAÍRIS CANHETE
MEMÓRIAS DO A VIDA NA RUA POR QUEM (SOBRE)VIVE NELA
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uantas histórias a vida na rua guarda? Quem são as pessoas que passam despercebidas, quase invisíveis no caos do dia a dia? A sociedade cobra o ritmo, a rotina, o bom emprego, a casa confortável, graduação, carro na garagem, mas quem são as pessoas que levam somente a memória que nem o tempo e a solidão são capazes de apagar? Rodrigo de Azevedo Francisco. Tem nome, idade, família e lembranças que em cinco minutos de conversa transportam a gente para outra realidade. A entrevista é feita embaixo de uma árvore que nos protege da chuva que arrisca cair. Duas
cadeiras de plástico, eu, ele, caneta e papel na mão. Toda a conversa é acompanhada pelo barulho dos carros e interrompida algumas vezes por pessoas que param com curiosidade para entender o que faz uma menina sentada, fazendo anotações, ao lado de um morador de rua. Alguns cumprimentam, aliás, Rodrigo é querido e conhecido no bairro: - Tem companhia hoje, Rodrigo? Que beleza! - É... Hoje eu estou dando uma entrevista sobre a minha vida, devolve com orgulho. - Que ótimo! Parabéns, responde uma mulher de meia idade que parece conhecer em detalhes a história que estava
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prestes a ser compartilhada. Rodrigo nasceu em 1978, no Morro da Nova Cintra, lugar que continua sendo seu ‘lar’ e ponto de encontro para a entrevista, hoje, com 41 anos de idade. Filho do português Eduardo Francisco e da baiana Eunice Azevedo Francisco, Rodrigo comenta que, na época, existia muito preconceito por causa da pele negra de sua mãe. A infância foi em meio à natureza, com a bola nos pés nas partidas de futebol em volta da lagoa da Saudade, e o trabalho com o pai e o irmão no alambique da família, que ocupava um quarteirão inteiro e que hoje é terreno de um prédio em cons-
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Cheguei e ele estava morto. Ele era muito legal. Nóis se amava”. Rodrigo Francisco
trução e algumas casas. Era ali que seu pai, contador da Alfândega trabalhava nas horas livres. “Meu pai? Foi um grande homem.” – recorda Rodrigo com um olhar que parece levá-lo para longe. “E irmãos. Você tem?” – pergunto sem nenhuma pretensão de que essa resposta fosse capaz de explicar muito sobre a vida que o Rodrigo leva hoje. “Sim. Tenho dois irmãos. Na verdade, hoje só um, mas não falo com ele, a gente nunca se deu bem. Meu irmão mais novo faleceu”. Nesse momento, o tom de voz dele muda. O silêncio, por alguns minutos mostra que
Nome: Um dos passatempos mais queridos de Francisco é ler o jornal para se atualizar e manter o hábito da leitura diária
essa lembrança traz à tona um sentimento muito forte. “Nóis se amava. Ele se matou. Por causa de mulher. Eu nem lembro direito, fiquei meio chapado depois do que aconteceu, meio louco. Nóis morava junto. Cheguei e ele estava morto. Ele era muito legal. Nóis se dava bem. Tudo dava certo. Briga de irmão mesmo. Ele nunca me abandonava. Era coisa simples. Os momentos marcam. Nóis comia junto. Via televisão. Falava sobre mulher. Jogava bola”, as frases saem assim, uma a uma, como se ele estivesse buscando no fundo da memória os anos de convivência com o irmão. Rodrigo chegou em casa,
no alambique da família, onde morava somente com o irmão e ele já estava morto. Não havia mais o que ser feito. Mas a dor não parava por aí. Por já ter envolvimento com as drogas, foi acusado pela família de ser responsável pela morte do seu melhor amigo. No mesmo dia, foi interrogado na delegacia sob a acusação de assassinato. Acabou sendo liberado, felizmente, já no começo do inquérito. Pulo o assunto. Damos uma pausa. Falar sobre o irmão parece a melhor lembrança guardada em sua memória, mas ao mesmo tempo deixa um clima de melancolia no ar. Passamos para as drogas,
Rodrigo de Azevedo Francisco Idade: 40 anos Rotina: Ler jornal, varrer a rua e a calçada, fazer serviços na casa dos vizinhos, como pintar muro, cortar plantas, etc Passa-tempo: Ler a bíblia em seu mocó, nome que deu para a casa Comida preferida: Arroz, feijão e azeite por cima
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Sei que posso ser uma pessoa melhor e que Deus, meu irmão e meus pais olham por mim”. Rodrigo Francisco
outro tema incômodo. O envolvimento com elas também foi responsável por muito do que o Rodrigo perdeu pelo caminho. Apesar de ter estudado em colégios muito bons, com uma educação rígida, formação profissional pelo Centro de Aprendizagem e Mobilização Profissional e Social (CAMPS), instituição responsável por inserir os jovens no mercado de trabalho, Rodrigo caiu na armadilha que até hoje é isca para jovens de qualquer classe social. Na primeira vez que experimentou cocaína, ele abandonou um futuro que poderia ser seu presente até hoje. Perdeu um teste no Santos Futebol Clube porque não acordou e, a partir daí, a frustração fez parte de seu caminho nas drogas. “Eu estou bem melhor hoje. Sei que eu posso parar. Que posso vencer, ser uma pessoa melhor. Eu sei que Deus, meu irmão e meus pais olham por mim”.
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Ele tira da carteira o pedaço de um versículo da Bíblia e conta que é seu livro preferido. Fala da relação com Deus e da certeza de sua existência. Diz que ama ler e que se eu tiver alguma Bíblia pequena, ele ficaria feliz em ganhar. É no seu “mocó”, barraca adaptada, dentro da mata, que Rodrigo encontra paz e felicidade. Ele insiste em dizer que é feliz, apesar de tudo. Diz que prefere estar sozinho. Pegou ódio das pessoas e fica triste por suas tias e primos não acreditarem que ele é capaz de superar as dificuldades. Esse sempre é o motivo que o faz voltar para o “inferno” que é o uso de drogas. A história da sua vida é tão cheia de altos e baixos que até esqueço de perguntar o principal: “Como você passou a morar na rua”? Rodrigo conta com calma as escolhas que lhe trouxeram até ali. Após a morte de seus pais e de seu irmão e seu vício com as drogas, sua família vendeu todas as terras da família e lhe deu uma pequena parte do dinheiro. Ele comprou uma casa e se casou. Durante uma briga com sua esposa, ouviu a acusação de que ele teria matado seu irmão. Perdeu o controle e bateu nela. Foi expulso da casa pela polícia e nunca mais voltou. Passou a viver na rua. Só que a rua não é capaz de apagar seus sonhos, ainda bem. Rodrigo mantém eles intactos e tem o brilho no olhar de quem acredita que é possível realizar. Quer encontrar uma pessoa especial, estar rodeado de amigos e reconstruir tudo de novo, voltar a ser um “grande homem”, como ele mesmo prevê
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NASCIDA PARA OS PALCOS
Karla Lacerda é uma das referências no teatro da Baixada Santista. Dedicou a vida aos espetáculos e foi pioneira nos festivais de cenas pelo Brasil
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Texto: JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO E MATHEUS GERLACH Foto: JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO Diagramação: MATHEUS GERLACH
APAIXONADA PELO TEATRO, KARLA SEMPRE SE MOSTROU INOVADORA NA ARTE, SUA PAIXÃO. ELA TROUXE AO PÚBLICO O PRIMEIRO FESTIVAL DE CENAS TEATRAIS DO BRASIL, COM A CRIAÇÃO DO FESCETE.
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aiçara como todo bom santista, Karla Neves Lacerda Neto não é reconhecida por ser apenas uma figura importante do teatro local, mas sim pelo seu jeito carismático e afetuoso que cosuma conquistar todos a sua volta. Segunda dos três filhos de Fábio Fernandes Lacerda e Sheila Neves Lacerda, Karla nasceu em 10 de março de 1977 na cidade de Santos e diz que não pretende perder sua identidade litorânea; “Nasci e me criei nessa cidade maravilhosa. Deus nos deu um pedacinho do céu para viver e eu não vou abdicar dessa beleza.” Seu jeito carinhoso e seu sorriso cativante evidenciam ainda mais sua personalidade, uma mulher carinhosa e sonhadora. Desde mais nova Karla já tinha seu objetivo de vida traçado: seu foco era ser atriz. Essa ambição pela arte molda a vida de Karla. Suas ações, seus estudos e seus rumos profissionais são modelos a partir do objetivo em estrelar.
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AMIZADES: O PRINCIPAL ALICERCE DE SUA VIDA Nenhum tema é tão determinante na trajetória de Karla como as amizades das quais ela se cercou ao longo de sua vida. Ao começar pela escolha de ser atriz, esse sentimento surge a partir de um encanto e uma amizade. Enquanto estudou no Santa Cecília, conheceu a professora, atriz e diretora, Iracema Paula Ribeiro. Com um método diferente de ensinar, Iracema proporcionou um encanto quase que imediato e a conexão entre as duas, inevitável. Não à toa tornaram-se melhores amigas. Ao falar de sua mentora a emoção toma conta do ambiente. Em uma tarde ensolarada, em uma cafeteria no bairro do Gonzaga, em Santos, Karla não esconde a satisfação de falar de sua grande amiga. “Sem dúvida nenhuma ela me inspirou nas minhas escolhas. Ela me inspirou na vida, no modo de cultivar uma amizade. Enfim, uma musa inspiradora!” A amizade também foi importante na construção da família de Karla. Como? De uma amizade surgiu seu casamento! Por intermédio de Iracema, Karla teve a oportunidade de conhecer Pedro Sergio Nonato, seu atual marido. Certo dia, durante o curso de Artes Cênicas no Centro Universitário Lusíada – Unilus, a atriz questionou sua amiga Iracema sobre aquele que viria a ser seu futuro marido “Teu amigo não é aquele cara de terno ali, né?”, conta Karla.
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A partir daí a amizade só cresceu e acabou virando romance. “Vocês ainda vão casar! Essa era a frase que eu mais ouvia quando falava do Pedro. No começo sempre o via como amigo e nada mais, mas com o passar do tempo vi que era o cara certo”, deixando claro sua personalidade afetuosa, Karla conta emocionada sobre seu marido.
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Nasci e me criei nessa cidade maravilhosa. Deus nos deu um pedacinho do céu para viver”
A pesar de ‘brava’ durantes os espetáculos, Karla sempre teve fama de ‘mãezona’
Com seis anos de casamento, o casal teve seu primeiro filho. Ter outro filho estava nos planos do casal, porém circunstâncias da vida os levaram a “pegar alguns filhos emprestados”, os seus alunos. Karla teve bastante liberdade e incentivo dos pais a todo momento, coisa que busca passar para sua filha biológica, seus filhos “de coração”, alunos e colegas de trabalho. Espiritualizada, é curiosa em relação à todas as religiões e apresenta o pensamento de que “Deus é amor”, sem querer doutrinar ninguém. A frase “Ela é muito intensa” pode parecer repetitiva, mas não há melhor descrição. Tratando-se de Karla Lacerda, essa sempre foi e com certeza continuará sendo a frase mais dita. E com os amigos, não podia ser diferente. Além da intensidade já conhecida de Karla, mantém uma relação fraterna com seus vínculos de amizade, - intensa, novamente - todos os amigos se referem a ela como confidente e parceira, como se fosse da família mesmo. E Marco França, um amigo oriundo do Tescom há quase 20 anos, vai além. “Briga, chora, ri e ama. Ama muito. Por isso, a primeira impressão que eu tive dela é que ela era uma leoa”. Seu companheirismo é outra característica marcante, que também é enfatizada pelo amigo, classificando-a como uma pessoa que se pode contar a qualquer momento.
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TEATRO E KARLA: CAMINHOS ENTRELAÇADOS E PREDESTINADOS Karla foi professora em Artes Plásticas, Pedagogia e Cinema na Unimonte, em Teatro na Unilus, além de professora, coordenadora e atualmente diretora pedagógica do Anglo Santos. No evento, os alunos da universidade participam de todas as etapas de planejamento, criação e desenvolvimento do espetáculo, trabalhando com pessoas em situação de vulnerabilidade social. Em 2016, Karla passou a fazer parte da coordenação e orientação dos alunos. Ideia de Pedro, o Fescete – Festival de Cenas Teatrais, tinha como objetivo reaver um espaço para os alunos criarem algo sem a direção deles, apenas com a orientação. Por ser um projeto de experimentação, a apresentação deveria ter apenas 15 minutos – para não precisar pagar direitos autorais. Ideia de Pedro, de acordo com o sonho de Iracema de haver um espaço para os alunos criarem algo sem a direção deles, apenas com a orientação. Atualmente, o evento dura 15 dias, busca homenagear artistas da região e engloba áreas além do teatro: dança, música e poesia também estão presentes. Por ser um projeto de experimentação, a apresentação deveria ter apenas 15 minutos – para não precisar pagar direitos autorais. O ambiente teatral deve ser vivido de modo intenso e visce-
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ral, isso acarreta algumas relações levadas a flor da pele, por isso Karla admite desavenças com o ex-presidente do Teatro Amador de Santos, Toninho Dantas. Com uma personalidade difícil, adora confrontar novos pensamentos. Com Toninho, as diferenças extrapolavam os limites cênicos. Envolveu movimentos políticos contra Karla, para não a deixar assumir a presidência do Teatro Amador. Na ocasião, ao criar uma chapa contra Toninho, Karla fez questão de ambientar-se com vários membros de vários teatros, tudo isso em prol de conseguir confrontar Toninho. Assim como Karla, nascem outros predestinados a seguir o caminho do teatro. Denise Braga, fotógrafa de 40 anos, iniciou sua trajetória no teatro ainda criança. Desde pequena criava apresentações teatrais, seus primeiros “espetáculos” eram apresentados para os pais de amigos ou em festas familiares. Com o tempo, Karla e Denise se encontraram nos palcos. “Conheci a Karla através do teatro, participamos de apresentações juntas, festivais.” Denise, que é professora na escola de teatro que Karla atua como diretora, completou dizendo que Karla sabe separar muito bem a parte pessoal da profissional. “Ela é muito extrovertida, comunicativa, sorri pra todo mundo. Em dia de apresentação, ela se fecha no mundinho dela, só fala o necessário, dá para ver o personagem tomando conta dela, é absurda a diferença.” Esses ‘dois lados’ de Karla são vistos com olhar positivo, tanto pelos familiares quanto
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Conhecendo a Karla como pessoa, você acaba se espelhando nela, então no palco, o que ela fizer ou disser para eu fazer, eu vou seguir de olhos fechados”.
Ricardo Dias
pelos funcionários da escola. Ricardo Dias, de 24 anos, estudou teatro durante 8 anos, se formou, e agora dá aulas na escola, e ao mesmo tempo cursa uma extensão, uma espécie de ‘pós-graduação’ do Tescom. Para ele que conhece Karla desde pequeno, o lado ‘mãezona’ faz com que as pessoas despertem uma paixão por ela, o que faz com que em seus momentos de diretora, as pessoas compreendam mais o que ela está falando, comprem mais a ideia dela. “Não tem como não seguir os passos dela, conhecendo a Karla como pessoa, você acaba se espelhando nela, então no palco, o que ela fizer ou disser para eu fazer, eu vou seguir de olhos fechados”. É assim, fria e calorosa, daquela que briga e aconchega, que Karla viveu e cresceu, tanto no teatro quanto na vida pessoal, que por onde passa marca a vida das pessoas. Com amizades fortes e verdadeiras
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Texto: ALLAN MORAES, JACQUELINE GARCIA E NATALIA CUQUI Foto: ACERVO PESSOAL
A PIONEIRA DAS PLPS EM SANTOS COORDENADORA DAS PROMOTORAS LEGAIS POPULARES, EUGÊNIA LISBOA TROUXE O PROJETO DE SÃO PAULO PARA AS CIDADES DA BAIXADA SANTISTA
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ubindo as escadas que dão acesso à casa de Eugênia Lisboa pode-se ver fotos com o marido em algum lugar da Europa. Na sala, uma mochila que aparenta ter quase um metro de altura igual à que costumamos ver com mochileiros, repousa sobre o sofá. Colantes de lugares como Fernando de Noronha cobrem o vidro da janela que dá para uma varandinha. O lugar aconchegante e o claro interesse por viagens dão a letra do estilo de vida dela e do marido, ambos aposentados. A aposentadoria veio há dois anos. Antes disso, e até hoje, a força de trabalho de Eugênia se concentra em uma causa urgente: os direitos das mulheres. Em seus últimos anos de trabalho implementou o projeto Promotoras Legais Populares no Guarujá. O projeto teve boa adesão na cidade e hoje espalha conhecimento de direitos para mulheres em Ber-
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tioga, Guarujá, Praia Grande, Peruíbe, Santos e São Vicente. Só na Baixada Santista já são mais de 200 PLPs formadas. PLPs descem a serra Em 2008, Maria Antonieta de Brito foi eleita a primeira prefeita da cidade de Guarujá. Ela já conhecia o trabalho de Eugênia do período em que ambas trabalharam como assessoras da ex-deputada federal Mariângela Duarte, e a convidou para ocupar o cargo de Assessora de Políticas Públicas para Mulheres. Difundindo políticas públicas nos mais diferentes bairros da cidade de Guarujá, Eugênia teve a ideia de trazer o projeto de PLPs que já conhecia na capital para a cidade, para formar multiplicadoras de informações para as mulheres carentes deste tipo de amparo. A ideia não poderia ter dado mais certo: foram mais de 124 mulheres formadas PLPs em 2 anos no Guarujá. “Tivemos mulheres brancas,
negras, idosas, pós-graduadas, analfabetas... De todas as idades e classes sociais.“, comenta. O curso era oferecido pela Prefeitura, e deu tão certo que Eugênia disse ter recebido elogios até mesmo de vereadores da oposição. Mas o êxito maior, com certeza, era ver todo aquele trabalho dar seus frutos de liberdade e conhecimento para as alunas. Um serviço como o oferecido pelas PLPs tem potencialidade para salvar vidas. “Se eu tivesse mudado a vida de uma mulher com o meu trabalho, eu já estaria feliz”. E de fato, mudou. Ela se emociona ao contar a história de uma mulher que a conheceu em uma de suas palestras em um bairro carente da cidade. “Eu percebi no olhar que ela sofria violência doméstica”. Dias depois do encontro, ela entrou em contato com Eugênia e pediu para fazer parte do curso porque sofria violência doméstica. A mulher se sepa-
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Me aposentei para virar feminista. EugĂŞnia Lisboa
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“Essa menina é boa! Pode chamar ela pra trabalhar” foi como a deputada federal Mariângela Duarte fez o convite à Eugênia para o cargo de assessora
rou. Anos depois, foi agredida pelo ex-marido, que foi à sua casa sob o pretexto de buscar o filho, mas com a intenção de agredi-la. “Quando aconteceu ela sabia exatamente o que fazer, sabia todos os seus direitos.” Esta mesma mulher é hoje uma das coordenadoras do curso de PLPs no Guarujá. “Depois que a gente se forma PLP, nunca mais somos as mesmas”.
forma que ela mesma intitulou como o “Tinder” da época, a plataforma online “Amigo Virtual” no site da UOL. Ela aos 40 anos e ele aos 45. Não é de grande espanto que o encontro não tenha acontecido da forma mais convencional – afinal, esta não é exatamente uma palavra que a descreva bem. Eugênia e Evandro sempre fizeram viagens curtas, mas depois que se viram livres do trabaGrandes paixões lho, passaram alçar voos mais alA vida de militância exige suas tos. Desde então já conheceram folgas. “Eu e meu marido gos- Itália, Portugal, França e Espatamos muito de viajar...”, explica nha, além de Uruguai, Argentina com certa modéstia. Com cer- e Chile, que ela conta já terem teza, um gosto em comum que voltado diversas vezes. O gosaproximou o casal lá no ano to por natureza já levou o casal 2000. Como se conheceram? Da quarto vezes ao “Fim do mundo”,
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como é conhecida parte da região da Patagônia, na Argentina. Assim como canta Elza Soares, Eugênia é praticamente “a mulher do fim do mundo”. “Eu voltaria dez vezes lá se pudesse... tem muitas coisas para conhecer!”, conta, apaixonada pelas geleiras e golfinhos que viu nas últimas visitas ao sul argentino. Dos lugares que ainda tem vontade de conhecer, citou o Peru com uma curiosidade: o país é um dos berços da educação popular sobre direitos voltado para mulheres, trabalho que delineou o formato criado pela União de Mulheres de São Paulo, em 1994, que se tornou o curso Promotoras Legais Populares. Mas a parceria com Evandro
O QUE SÃO AS PLPS? não se limita às viagens, é claro. Ela o encontrou cinco anos depois de se separar de um relacionamento abusivo e entrar para a Rede Nacional Feminista. “Ele já me conheceu nessa condição de mulher feminista... ‘[Ele diz] Até que enfim achei uma mulher que concorda em dividir as contas comigo’”, ela diz. Em casa os dois cozinham e as demais tarefas são igualmente divididas. Quando Eugênia se separou, em 1995, a legislação que permite o divórcio era ainda jovem – tinha menos de 20 anos. Sua geração de mulheres é a que começa a romper com relacionamentos nocivos e controladores, diferente de gerações anteriores que aguentavam de tudo para manter a família unida por pressão social. Até hoje há resquícios desse julgamento da mulher que decide se separar, porém os costumes estão se adaptando lentamente às demandas mais básicas pelas quais mulheres como Eugênia tanto lutam para garantir. As PLPs são uma grande ferramenta que auxiliam nessa revolução de voz e vez das mulheres. Na cidade de Santos, a primeira turma formou 17 mulheres. Neste ano foram mais de 200 inscrições, e duas turmas têm seus calendários lotados de atividades até dezembro. “A gente vai colocando assunto, colocando assunto, e quando vê, já estamos no final do ano”. Munidas de informação, as repetidoras de cidadania se multiplicam ano após ano na nossa região
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Um projeto de cidadania sob uma perspectiva da construção da igualdade de direitos entre as diversidade étnico-racial, sexual e classe social
PROMOTORAS PROMOTORAS LEGAIS LEGAIS POPULARES POPULARES Usada em diferentes países, a nomenclatura “Promotoras Legais Populares” corresponde ao projeto de formação de mulheres que trabalham para o fortalecimento dos direitos da população e para o combate à discriminação e à opressão.
A A ATUAÇÃO ATUAÇÃO DAS PLPS É PAUTADA PAUTADA POR IDEAIS Justiça, democracia, dignidade e defesa dos direitos humanos das mulheres e do acesso à justiça e ampliação da cidadania, as PLPS lutam pela equidade de gênero e por uma sociedade onde as mulheres sejam reconhecidas e respeitadas no que se refere ao seu valor humano, social, político e econômico.
ABORDAGEM ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO DIREITO São introduzidas também, matérias de outras áreas de conhecimento, como saúde, assédio moral e sexual, direitos sexuais e reprodutivos, violência contra a mulher, literatura e entre outros.
O O PROJETO PROJETO NA NA PRÁTICA PRÁTICA Possui diversas frentes de atuação: acompanhamento de casos e trabalho prático das PLPs, promoção de seminários e debates, fortalecimento de campanhas
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contra a impunidade, visitas e estágios em ONGs e serviços públicos.
Texto: ANA CAROLINE FREITAS, CAÍQUE STIVA, FELIPE REY Fotos: CAÍQUE STIVA E ARQUIVOS PESSOAIS Diagramação: FELIPE REY
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O CARA DA VILA O HINO DO SANTOS DIZ QUE TORCER PARA O CLUBE É “UM ORGULHO QUE NEM TODOS PODEM TER”. AOS 61 ANOS, ALEMÃO COMPROVA O QUE É RETRATADO NA LETRA
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terça-feira costuma ser mais tranquila para quem acompanha e vive futebol. Com jogos aos finais de semana e às quartas-feiras, os demais dias servem para os mais fanáticos esquecerem um pouco seu time de coração e viverem suas vidas de pessoas normais, por assim dizer. Mas, na prática, não funciona assim com todo mundo. Por volta das 11h da manhã de uma terça-feira ensolarada, Alberto Francisco de Oliveira Jr., de 61 anos, recebe a reportagem da Viral com a camisa do Santos, copo americano de cerveja na mão e já avisa: "pode me chamar de Alemão do Santos". Alemão é uma figura pública nos arredores da Vila Belmiro. Dono de um bar chamado “Confraria do Alemão”, em frente ao estádio do Santos Futebol Clube, o torcedor é conhecido pelas muitas tatuagens do escudo do time pelo corpo, inclusive na testa. Trajado com seu "manto", Alemão entra no bar, que passa por algumas reformas, pega duas cadeiras e começa a falar sobre sua trajetória como torcedor do Santos.
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A paixão de Alemão pelo Alvinegro da Vila o levou a tatuar ao longo tempo, o símbolo em diversas partes do corpo, inclusive a inusitada, na testa
Quem olha para Alemão hoje pensa que o amor pelo Santos vem da infância, mas não é bem assim. Nascido no bairro do Macuco, em 1958, dois anos depois que Pelé surgiu no Peixe, o torcedor fanático foi uma criança desapegada de futebol. Na época em que Alemão ainda era garoto, o Macuco era uma comunidade carente e sem muitos atrativos para crianças. Por isso, os jovens iam até a Ponta da Praia para brincar de pique-esconde, pega-pega, entre outras atividades. "Quando pequeno, eu não torcia para ninguém. Nasci na favela, então nem gostava tanto de futebol. Só conheci a Vila Belmiro com 20 anos. Não conhecia nada de futebol. Gostava de brincar no Rebouças, mas era só isso. Quando vim até a Vila. Vi aquela bagunça danada e deci-
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di que nunca mais sairia daqui", conta. O incentivo para assistir o primeiro jogo na Vila Belmiro veio dos pais de Alemão, certo? Indiretamente, sim. Fanáticos por futebol, os pais dele torciam e acompanhavam todas as partidas do... Corinthians, maior rival do Santos. Como cresceu em uma época em que o Santos era um dos times mais vitoriosos do Brasil, principalmente entre os anos 1960 e 1970, Alemão viu seus pais sofrerem a cada derrota do Corinthians para o Santos e decidiu conhecer melhor o Peixe. Foi aí que, em 1974, Alemão pegou o ônibus e foi até a Vila Belmiro pela primeira vez. Com tantos jogos na bagagem, o torcedor não se lembra exatamente qual foi sua primeira partida no estádio, mas conta como foi sua primeira experi-
ência no Urbano Caldeira. “Assim que avistei o estádio, já vi um mar de gente nos arredores. Aquilo me arrepiou na hora, nunca tinha visto algo parecido. Vi bandeirões, gente tomando cerveja, fogos... Aquele clima gostoso de jogo. Me apaixonei na hora e me senti em casa. Desde então, nunca deixei de ver um jogo no estádio e comecei a torcer para o Santos. Me tornei esse torcedor famoso que todo mundo fala (risos)”, diz. Apesar de futebol ser coisa séria na casa de Alemão, sua mãe não se importou com a escolha pelo Santos. Já o pai não teve a mesma reação e, futebolisticamente falando, viveu em "pé de guerra" com o filho. Mas tudo, claro, sempre com espírito esportivo. Em uma entrevista ao Jornal
“
A ssim que avistei o estádio, já vi um mar de gente nos arredores. Aquilo me arrepiou na hora Alemão
Nacional, da Rede Globo, no final da década de 1990, Alemão ainda deu um jeito de tirar sarro de seu pai. Em poucos segundos no ar, o santista disse: 'De tanto ver meu pai sofrendo na torcida pelo Corinthians, decidi torcer para o Santos porque era mais fácil'. A brincadeira com o pai em rede nacional consolidou ainda mais a imagem de Alemão como torcedor símbolo do Santos. No entanto, a fama de Alemão entre os torcedores santistas vem de sua participação ativa em torcidas organizadas. Ainda jovem, entrou para a Sangue Santista – atual Sangue Jovem – onde se tornou presidente da agremiação, de 1977 até 1984. Acostumado com fogos, bandeiras e sinalizadores nos estádios, Alemão é crítico às
novas imposições que as torcidas do estado de São Paulo têm sofrido pelo Ministério Público nos últimos anos. O estado de São Paulo é o único que não permite o consumo de bebidas alcoólicas dentro de estádio, além de proibir bandeirões, sinalizadores e torcedores visitantes em jogos de alta rivalidade. As recentes proibições foram tão desanimadoras para Alemão que ele, inclusive, passou a frequentar menos o estádio e deu mais foco ao seu bar. "Eu estou lá dentro (do estádio) toda hora. Entro nem que seja para ver qual o uniforme que o time está vestindo no dia, mas não vejo o jogo inteiro. Depois que proibiram a cerveja, a gente fica bebendo aqui. Os melhores torcedores estão aqui fora hoje em dia. Quem fica aqui
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Torcida Sangue Santista lotava arquibancadas na década de 1980.
fora torce mesmo. Lá dentro tem muita "modinha", muito pessoal de internet, que não sabe nem o nome dos jogadores". Para Alemão, os atos de violência e vandalismo de torcidas organizadas é um assunto comum. Acostumado com os confrontos entre uniformizadas, ele fala sobre o assunto com a maior naturalidade, como se fosse algo corriqueiro na vida de qualquer um. Alemão, inclusive, conta que viveu períodos quando os torce-
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dores do Santos precisavam brigar com rivais dentro do estádio simplesmente para conseguir um lugar para assistir ao jogo. “Sou da época que a torcida do Santos não tinha lugar no estádio. A gente tinha que dividir o espaço na arquibancada na porrada. Então, todo lugar que a gente ia, a gente tinha que bater em todo mundo. Graças a Deus era uma época forte da torcida, quando a gente levava de dez a 15 ônibus, então a gente conseguia nosso lugar”, fala
com um sorriso no rosto. O panorama para os santistas só mudou nos anos 1980, quando a Federação Paulista de Futebol passou a reservar espaços para torcedores do Peixe nos estádios da capital. O Bar Foi em 1984, quando deixou a presidência da Sangue Santista, que Alemão ganhou a oportunidade de gerir um bar dentro da Vila Belmiro e passou a viver, literalmente, dentro do Santos.
“
Os melhores torcedores estão aqui fora (do estádio). Quem fica aqui fora torce mesmo. Lá dentro tem muita “modinha”, muito pessoal de internet Alemão
A aventura de trabalhar dentro do estádio do Santos durou cerca de dez anos. Em 1994, um bar bem em frente à Vila Belmiro foi abandonado e Alemão decidiu fazer um investimento certeiro. Antigamente, o ponto não era lucrativo por conta dos confrontos entre torcedores. Contudo, quando Alemão assumiu o comando do estabelecimento, as brigas pararam por conta de sua reputação. Isso aconteceu porque, como havia sido presidente da Sangue Santista, Alemão passou a ser respeitado por todas as torcidas organizadas do Santos: Sangue Santista, que se tornou Sangue Jovem em 1988, Torcida Jovem e Força Jovem. Por isso, Alemão tem até hoje a torcida “em sua mão”. Não só os frequentadores mais assíduos de estádio admiram Alemão, mas torcedores do Santos em
todo o Brasil o idolatram. "Minha relação é muito boa e muito grande. Vou a todas as embaixadas santistas (sedes de torcidas organizadas em outras cidades). A torcida do Santos gosta de mim, sou convidado toda hora para ir até as embaixadas para apresentar ou inaugurar alguma coisa. Toda hora estou no meio das torcidas". Relação política Se na arquibancada Alemão é respeitado, dentro da política do Santos, o emblemático torcedor também tem sua moral. Apesar de atritos com a atual gestão do clube, presidida por José Carlos Peres, ele conta que sempre contribuiu nos bastidores. As principais ajudas dadas por Alemão eram propostas e ideias dadas ao Conselho Deliberativo do clube, tudo em prol de melhorar o Santos. "Com a atual gestão não tenho uma grande relação. Estou meio invocado com ela, mas com todas as diretorias anteriores eu tive boa relação e ajudei bastante nos bastidores. Já fui diretor de várias coisas aqui no Santos, estou sempre tentando colaborar". Tatuagem na testa Foi por conta dessa moral nos bastidores do Santos que Alemão tomou a decisão de marcar a testa e entrar para a história do clube com sua mais famosa tatuagem. Por ter bom relacionamento com diretores no passado, Alemão conheceu o técnico Vanderlei Luxemburgo, que teve
quatro passagens pelo Santos e atualmente comanda o Vasco, do Rio de Janeiro. Em 2006, quando Luxemburgo treinava o Santos pela terceira vez na carreira, Alemão apostou que tatuaria o escudo do Peixe em algum lugar inédito caso a equipe conquistasse o Campeonato Paulista daquele ano. Luxemburgo, então, levou o Santos ao título e, como promessa é dívida, Alemão tatuou o emblema santista na testa, em um estúdio de um conhecido torcedor, no bairro do Gonzaga. "Quando eu fiz a primeira tatuagem, no braço direito, eu lancei uma moda. Aí, o pessoal começou a fazer nas costas, no pé, na cabeça. Então, quando o Luxemburgo ganhou a aposta, comecei a procurar um lugar onde ninguém tinha feito ainda. Descobri que um torcedor do Vasco tinha uma tatuagem no rosto, mas era na bochecha. Então, sobrou a testa para mim. Não doeu nada". Santos, sempre Santos A maior curiosidade relacionada à vida de Alemão é: o que o comerciante faz nas horas vagas? A realidade é que nem o próprio torcedor sabe dizer o que é sua vida sem o Santos. “Minha vida é só Santos. Eu respiro Santos. Não gosto nem de música, todo mundo reclama comigo por isso. Para mim, é Santos de manhã, de tarde e de noite. Quando o Santos não joga de final de semana, eu não sei o que fazer”, finaliza
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O INVESTIDOR AUTODIDATA Texto: JULIANA CORREIA E RAFAEL ALMEIDA Foto: AMANDA TEDESCO E ROBERTO MONTEIRO
“Após algum tempo, decidi que não podia mais tratar meu dinheiro de qualquer forma e também quis aprender como funcionava tudo”. José Paulo Barros
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uem vê o rapaz de tênis de skatista, meia na canela, bermuda larga e camisa preta, tomando cerveja artesanal e abusando das gírias na conversa com os amigos, mal imagina que se trata de um sócio da filial Bank Rio – empresa que presta assessoria econômica - em Santos. O escritório fica na Avenida Conselheiro Nébias, em um dos edifícios comerciais mais valorizados da região. O hall de entrada do Helbor Offices Vila Rica impressiona. O pé direito passando de 10 metros chega a intimidar os visitantes. Adentrando o prédio, o espaço amplo da recepção ofere-
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ce lounge de espera e uma enorme tela de led para situar as pessoas sobre o que há em cada andar. Com mais de seis elevadores que levam o mais variado tipo de público a diversos blocos do prédio, fica fácil se perder sem orientação. O homem de blazer azul marinho segue em passos firmes pelo longo corredor de chão branco e parede creme que leva até o escritório da Bank Rio. Ele tira um molho de chaves do bolso e abre a porta. O traje do seu dia a dia é limpo e sóbrio, o sapato com tom de carvalho parece combinar perfeitamente com a calça e blazer, contrastando com o branco da camisa social.
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José Paulo Barros, 24 anos de idade, vivencia um sonho que há cinco anos era impensável. No último semestre da faculdade de engenharia pela FEI (Instituto Federal de Engenharia), a pressão familiar pelo diploma não foi suficiente para segurar o desejo e a ambição de se tornar um grande educador e investidor financeiro. Jogou tudo para cima e mudou o curso de sua vida. Vida essa que esgotava suas forças no tempo em que estudava para um curso do qual não gostava e, consequentemente, para a profissão que não queria. Bastou dar alguns conselhos sobre investimento para os amigos, para que tudo começasse a fazer sentido. “Eu sempre fui muito altruísta e não via na engenharia uma maneira de ajudar tantas pessoas. Não tanto quanto consigo através da educação financeira”. Do rústico ao arrojado Ainda criança, Zé - como gosta de ser chamado fora do escritório - nunca parou para pensar qual seria a profissão dos seus sonhos. “Não me ligava muito nisso, apenas gostava de praticar esportes, andar de skate e de me divertir com os amigos”, conta ele, relembrando a infância entre goles de uma cerveja com coloração escura, cheiro forte e de amargor característico no bar Everbrew - um lugar totalmente diferente do habitat de trabalho. Logo na entrada, em vez do tom branco e frio comum do escritório, as cadeiras de praia compõem o cenário arrojado do novo point dos amantes da cervejaria artesanal. Com o logotipo
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de uma caveira e muros pretos com traços de pichações coloridas, a conversa foi se desenrolando assim como a música ao vivo do bar. Apreciador de rock brasileiro e internacional, sua playlist sempre conta com bandas como Capital Inicial, Detonautas, CPM 22, The Strokes, Metallica e Nirvana. Mas engana-se quem acha que para por aí. “Sou muito eclético, gosto dos mais variados tipos de músicas: samba, heavy metal, o rock, pop e também músicas clássicas” A ligação do jovem com a música não definiu apenas o seu gosto musical, mas também o estilo de se vestir e, claro, o skate. O Chorão, ex-vocalista da banda Charlie Brown Jr, foi um dos grandes responsáveis pelo estilo de vida como skatista e batalhador, que inspirou Zé e tantas outras pessoas. “Crescer na cidade de Santos e não ouvir a banda Charlie Brown é quase impossível, e por se tratar de uma banda da cidade, acho que me identifiquei com mais facilidade, tanto que nem lembro quando comecei a escutar as músicas, apenas de crescer ouvindo.” Antes do escritório, seu principal meio de transporte era o skate, mas com a correria atual, fica difícil para o assessor conciliar o terno com as manobras. “Levar mochila com outra muda de roupa fica complicado.” No auge da sua juventude e solteiro, Zé não recusa um bom programa, seja em casas noturnas, bares, karaokê ou na casa de algum amigo. No entanto, o jovem também não descarta o seu lado romântico e caseiro. “Ser
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Queria poder ir pro escritório sempre de skate e voltar para casa assim José Paulo
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solteiro é bom, porém, sou do tipo que troca fácil uma noitada por um dia de Netflix, pipoca e bom vinho”. O Começo Assim como um bom investimento que começa em baixa e lentamente sobe para a alta, seu destino foi mudando na medida em que descobria a emoção do sobe-e-desce do mercado financeiro. “Comecei a investir meu dinheiro em pequenas ações, fui ganhando e perdendo também”, ri Barros ao repensar a própria trajetória. Logo, o gosto pelo mercado financeiro foi crescendo e o lado amador foi perdendo espaço para o profissional. “Após algum tempo, decidi que não podia mais tratar meu dinheiro de qualquer forma e também quis aprender como funcionava tudo”. O verbo aprender para ele, é mais uma questão de foco e determinação do que livros e professores. Sempre foi assim. Autodidata, toda vez que ele coloca um objetivo na cabeça, apenas a força de vontade é o suficiente para se dedicar e entender tudo que um curso pode ensinar. Foi dessa forma que conseguiu o certificado para fazer assessoria no ramo de investimentos e se tornar sócio da Bank Rio. “Assim que eu consegui o certificado de investidor, o Rafael Paes me convidou para
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Estilo meia na canela e skate na mão, José em seu momento de descontração
entrar como sócio na filial da empresa.” Ser José não é para qualquer Zé. Além da cafeína para despertar, o seu dia não começa sem o banho gelado às 5 horas da manhã e uma hora de exercícios aeróbicos. “Já me acostumei com o chuveiro ligado no verão. Além de fazer bem para o corpo é algo que me faz acordar instantaneamente”, ri. Após o rápido café da manhã, à base de pão com mantei-
ga e café, o assessor financeiro se arruma e pega o Uber em direção ao escritório. Às 9 horas da manhã, seu dia não tem horário fixo para terminar. O ambiente de sua área de trabalho, de pouco mais de 40 metros quadrados, piso de porcelanato branco, paredes e cortinas brancas, dão um tom sério e típico de escritório, composto por três mesas de madeira, ocupadas por dez cadeiras pretas cada, onde ficam os demais as-
Em contraponto, quando veste o seu paletó vira um grande investidor
sessores, contratados por José. Com a calmaria da manhã, Zé consegue se dedicar um pouco ao lado pessoal dentro do mercado de ações, e usar seu lado de Trader (profissional responsável por negociar ativos financeiros). “Como o mercado abre às 9 horas, e os clientes e demais assessores chegam por volta das 10h, tenho cerca de uma hora e meia para fazer minhas operações e consequentemente, avaliar o
mercado para os clientes”, diz. O escritório de Santos conta com oito profissionais especializados em cada área da empresa e todos passam pela vista grossa de José e do seu sócio Rafael Paes. “Eu escolho os melhores profissionais para agregar a equipe. Acredito que todos podem aprender com os pontos fortes do outro, por isso, aposto em um time diversificado”, explica. Após o almoço, o assessor
passa a maior parte do tempo conversando com clientes, seja por e-mails, telefonemas e trocas de mensagens pelo celular, até reuniões presenciais. “Tenho os mais variados tipos de clientes. Há os que que preferem conversas pelo celular ou e-mail, e aqueles que preferem o olho no olho”. “Às 18 horas, finalmente ir para casa e descansar, certo? Não para o assessor. Enquanto todos vão embora para sua casa, ele está a pelo menos duas horas de ir embora. Sozinho e no silêncio, ele vai fazendo relatórios para clientes, organizando seu cronograma para o próximo dia e revendo alguns documentos. “Dificilmente saio às seis da tarde, sempre tem algo para fazer, um relatório para terminar ou uma reunião via Skype”. Quando tudo acaba e a porta do escritório se fecha, toda postura e etiqueta de José viram do avesso, dando a vez para o jovem que gosta de drinques, baladas e curtição. E assim como o sol se põe para que a lua apareça, José Barros leva a vida dupla de assessor e amigo das noitadas. No entanto, por mais que os seus períodos se contrastem tanto quanto o dia e a noite, a sua essência continua a mesma: ajudar os outros e ser feliz
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TUDO AO MESMO
TEMPO TEM SEU PREÇO TUDO AO MESMO TEMPO AGORA, OS JOVENS VIVEM CADA VEZ MAIS A ACELERAÇÃO DOS CICLOS DA VIDA. APROVEITAR A MELHOR FASE E BATALHAR PELO FUTURO EXIGE CUIDADOS TEXTO: BRUNA GONZALEZ E ANDREA NERIS FOTO: BRUNA GONZALEZ DIAGRAMAÇÃO: BRUNA GONZALEZ , ANDREA NERIS E MICHELLA COSTA
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eonardo só queria curtir o domingo, afinal, é dia de relaxar e espairecer depois de trabalhar duro. Ter tanta responsabilidade era, no mínimo, estressante. Ao caminho de um restaurante com um amigo, ele quase perdeu a concentração no volante quando sentiu uma pressão muito forte na cabeça e o corpo começar a formigar. Sorte que deu para encostar o carro, pois o lado esquerdo do rosto já estava paralisado, as mãos ficaram rígidas e travadas. Tudo rápido e de repente. ‘Pai, acho que estou tendo um derrame, me encontra no
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hospital’, foi o que conseguiu dizer ao celular, em meio à crise que se instalava: “Fui perdendo os movimentos do braço e um pouco os da perna, não conseguia andar muito. Fiquei todo atrofiado, sem reação, não conseguia falar”. Leonardo deu entrada no Pronto atendimento da Unimed de Santos. Os pais já estavam lá e ficaram muito assustados com seu estado geral: pálido, enfraquecido, com o olhar distante e sentado em uma cadeira de rodas. O pai gritou para atenderem o filho, também acreditando ser um derrame, mas assim que a médica o viu,
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sem poder fazer qualquer movimento, logo diagnosticou. ‘Fica calmo, você está tendo uma crise de ansiedade’ Fase dos vinte e um Leonardo Rodrigues vive no século XXI e tem 21 anos de idade. Na teoria dos setênios, que é um dos pilares da Antroposofia, os ciclos da vida são divididos de sete em sete anos, a cada ciclo aprendemos habilidades e assimilamos tudo para o início de um novo ciclo. Isso significa que ele está passando pela fase de estabilizar a sua individualidade, de mostrar o seu “EU”, e, enfim, se posicionar socialmente. É a fase de tomar as rédeas da vida, já livre do peso de instituições, como a escola e a família. É praticamente uma emancipação, um rito de passagem, que causa um pico de ansiedade. No início dos tempos, a vida era dura. Vulnerável, o homem das cavernas estava sempre suscetível aos ataques de predadores, à fome, ao risco iminente de ser morto por outros humanos, a ter que provar sua força e coragem o tempo todo. Em meio a tantos perigos, a ansiedade foi, e continua a ser, grande aliado, pois ela vem como resposta a uma ameaça, o que nos motiva a agir em nossa própria defesa e nos permitiu chegar até os dias de hoje. De aliada a ansiedade se transformou em um mal do homem moderno, em transtorno, que acomete principalmente os jovens.
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Todas as pessoas que vêm ao Crowd e elogiam nosso trabalho aumentam minha autoestima
Leonardo Rodrigues Jovem empreendedor
Como um malabarista, Leonardo tentava equilibrar os “pratinhos” para se dividir entre dois mundos bem diferentes. À noite e nos fins de semana, pilotava, ao lado do primo, Rubens Mascherpa, a hamburgueria Crowd Burguer, no bairro Ponta da Praia, de onde quase nunca saía antes da meia noite. De dia, pulava da cama cedo para trabalhar ao lado do pai, no centro da cidade, com corretagem de café. Entre um trabalho e outro, corria para o supermercado, em busca de itens frescos para manter a pequena cozinha da lanchonete abastecida. A rotina cansativa, porém, era resultado de uma vontade que Leonardo teve durante uma aula na faculdade de Administração. A ideia inicial era montar um food truck, porém ainda não tinha certeza do produto, talvez comida japonesa. O primo Rubens, que também tinha um sonho antigo de trabalhar com comida, convidou Leonardo para a empreitada: no lugar de sushis, seriam hambúrgueres feitos artesanalmente por eles, e vendidos em uma Kombi. Obstáculos O principal objetivo dessa fase, na teoria dos setênios, é a de pertencimento no mundo. Por isso, a socieda-
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de tem total influência durante essa etapa da vida. A colocação profissional, o descobrimento de talentos e o autodidatismo, tornam-se metas a se alcançar. Segundo a lógica da teoria, Leonardo está indo muito bem. Principalmente se considerarmos que o mundo do empreendedorismo tem seus altos e baixos, e para alguém que está na fase de provação, essa oscilação pode gerar frustação e muita ansiedade. Em novembro de 2018 foi a inauguração do mais novo negócio próprio, a Crowd Burguer. Ficava localizado em um estacionamento a céu aberto, que cobrava um taxa de aluguel. O início foi pura correria. A falta de experiência em gerenciamento cobrou caro: “Às vezes tinha que sair correndo para ir ao mercado porque estava acabando algum ingrediente, ou quando achávamos que algo já estava pronto, mas não estava e os clientes chegando... a gente foi aprendendo com os tombos”. O clima também não colaborou, as chuvas eram sinônimo de prejuízo por ser um local aberto. Muitas vezes, em meio a vários acontecimentos, ele se via trabalhando em quase todas as funções da lanchonete: da preparação à chapa, do atendimento ao caixa, o que tornava tudo ainda mais frenético. No plano pessoal, teve que abdicar de algumas coisas como as saídas para baladas,
os encontros com os amigos, o surf e o que os pais mais temiam: Leonardo teve que trancar a faculdade: “Não tinha horário para continuar”. Ansiedade De acordo com Dr. Pavel Silva de Oliveira, médico especializado em psiquiatria, o transtorno de ansiedade é confundido com cansaço, falta de férias, fadiga extrema e baixa concentração. Sintomas que Leo, provavelmente, teve durante sua antiga jornada de trabalho, mas não deu atenção “Infelizmente os casos que chegam ao ambulatório são os mais avançados, como, tremores, dores no braço, formigamento, dor no pescoço, paralisia parcial e até mesmo sintomas de convulsão”, diz o psiquiatra. Segundo dados da OMS, o Brasil é o centro mundial do problema, 9,3% da população tem transtorno de ansiedade (triplo da média internacional, de 3,5%), no mundo são 264 milhões de pessoas que sofrem do problema.
que vêm ao Crowd e elogiam o trabalho, elevam minha autoestima e me fazem acreditar que eu estou no caminho certo, então vou continuar”. Leonardo não permitiu que a ansiedade o amedrontasse, sempre foi determinado. Quando tem algo em mente, põe em prática e foi o que fez em relação aos outros problemas. Ao invés de fechar o negócio, mudou sua localização, trocando a Kombi, por uma loja, eliminando o problema das chuvas e adicionando entrega delivery. Em relação à rotina, passou a intercalar os dias de trabalho priorizando a saúde, algo que sempre foi uma preocupação dos pais, principalmente do pai, Rubens Rodrigues, que vivencia parte de sua rotina. “Eles sempre me apoiaram, me ajudaram a construir o Crowd Burguer, mesmo preocupados com a sobrecarga que eu teria”.
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Casos avançados de ansiedade geram formigamento no corpo e até paralisia”.
Dr.Pavel de Oliveira Psiquiatra
Futuro Leonardo, um jovem empreendedor, que já sentiu os altos e baixos da teoria dos setênios não pretende parar. Não imagiConsequências na ter uma idéia e não se dediDepois da crise, ele ainda sentiu car para concretiza-la alguns sintomas, como pressão na cabeça e suor nas mãos. Voltou ao hospital uma vez com medo de ter outra crise, mas os sintomas não evoluíram. Pensou em desistir da hamburgueria: “Acho que foi o que mais pensei, mas todas as pessoas
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TEXTO: MARINA ESTEVÃO FOTO: PABLO MELLO E ARQUIVO PESSOAL DIAGRAMAÇÃO: ANA GABRIELA SALU, MARINA ESTEVÃO, VICTÓRIA MECHENAS
Em mais de 30 anos de carreira, Almir Mestre fez quase 10 mil necrópsias
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O MESTRE
DAS NECRÓPSIAS ALMIR MESTRE É AUXILIAR DE NECRÓPSIA NO INSTITUTO MÉDICO LEGAL DE SANTOS. COM ESSA PROFISSÃO, SERÁ QUE ELE TEM MEDO DA MORTE?
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uando pensa em morte, o que vem à sua cabeça? Para alguns, o fim; para outros, a espera de algo melhor “do outro lado”. Seja qual for a crença, para Almir Mestre, 59 anos, é simplesmente o seu trabalho. Auxiliar de necrópsia há 34 anos, o Instituto Médico Legal de Santos, no Saboó, é seu escritório. O prédio, localizado na Avenida Martins Fontes, de fora parece comum. Por dentro, se assemelha a um cenário de série policial. Um odor pútrido exala da sala onde dois corpos, dispostos cada um numa mesa, aguardam o procedimento que vai revelar a causa da morte, normalmente acidentes, homicídios e suicídios. O ar é frio. Não se sabe se por causa da grande geladeira da sala ao lado, pelo sopro do pequeno ventilador no canto da sala, ou pelo arrepio que corre a espinha. A sensação é a de adentrar num frigorífico. O aroma mórbido se mistura ao cheiro de fortes produtos de limpeza, coisa que parece não incomodar mais o auxiliar de necrópsia. “O cheiro é forte, né? Mas você se acostuma”. O horário de atendimento do local já encerrou, mas como a morte não tem hora, um cadáver acaba de chegar, so-
mando-se três agora. Ao me aproximar do cadáver, o choque é instantâneo. Nunca tinha visto um corpo sem vida em 21 anos. Vi três de uma só vez. Um deles é de uma idosa, não arrisco adivinhar a idade. Tem apenas um pequeno pano tapando seu sexo. O da outra ponta estava coberto para não aparecer nas fotos. Mestre e outro funcionário viraram o corpo de um homem aparentemente de meia idade. O repórter fotográfico chegou a sentir tontura depois de alguns minutos no recinto, o que é compreensível. Não são todos que têm estômago para o ofício. Horrorizada não é a palavra que eu usaria para descrever meu estado de espírito. Porém, confesso que a primeira coisa que pensei foi “como seria se fizessem uma necrópsia em mim?”. Não pelo fato de morrer, mas ser cortada e examinada. Logo tratei de pensar em outra coisa. Mestre é um homem de altura mediana, pele negra, cabelos brancos em volta da cabeça. Seu uniforme é a máscara, luvas e avental. Um dos aventais, inclusive, até ensanguentado. “Não posso mexer [no corpo] com dó. Aí, acaba sujando”. O que mais chama a atenção é o distintivo brilhando em seu peito e uma arma na cintura. A função
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Olha, meu negócio é abrir corpo, não quero ficar cuidando de bandido” Almir Mestre
de auxiliar de necrópsia é uma das 13 carreiras da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Ele trabalha por escala, cerca de três dias na semana. Depois de 34 anos na profissão, Mestre mantém empolgação na fala e uma certa cintilância no olhar. Ele relembra como chegou na área da saúde - ou quase isso. Depois de ser dispensado do exército, aos 18, sentiu-se como alguns jovens: sem ter certeza de qual profissão seguir. Por indicação de um amigo, resolveu fazer um curso no Senac de atendente de enfermagem. Para ele, essa foi uma das decisões mais acertadas da vida. Almir conta que nunca tinha cogitado trabalhar nesse ramo. “Eu não gostava de sangue, não gostava dessas coisas”. Logo no início da formação, se deparou com a morte. No segundo dia de estágio na Casa de Saúde de Santos ficou responsável por cuidar de um idoso internado. Enquanto realizava os procedimentos médicos, o homem, de repente, faleceu de causa natural. Almir se assustou e ficou repetindo para as enfermeiras que “não tinha feito nada de errado”. Hoje, conta a história aos risos. Depois de formado, ele trabalhou por
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cerca de três anos no Hospital dos Estivadores. O primeiro contato de Mestre com a profissão de auxiliar de necrópsia foi após tentar uma vaga em pronto-socorro no Guarujá. Como não havia disponibilidade no setor que queria, foi encaminhado ao IML. Fazia questão de chegar cedo todos os dias para observar e aprender. No começo, confessa que sentiu medo, mas com o tempo e o volume de trabalho o procedimento foi ganhando ares de rotina. Em um determinado dia, o médico pediu que ele abrisse um corpo e como estava com medo, deu desculpas dizendo que não sabia, porém não teve jeito e Almir resolveu pôr logo a “mão na massa”. “Eu não queria ficar sozinho na sala de jeito nenhum. Pedi para o médico ficar comigo”, conta. Um dos motivos que o fazia sentir mais medo era porque o local (uma sala grande e toda azul) era muito quieto e não se ouvia barulhos externos. “A mesa era de aço inox e as ferramentas de alumínio, quando você bate uma coisa na outra faz um barulho e um eco que me assustavam.” Após essa primeira experiência no IML, Almir pegou gosto pela profissão. Ele trabalhou em outras cidades, tanto como contratado pelas prefeituras quanto como concursado na Polícia Civil. Aliás, depois de ser aprovado no concurso da Polícia, foi enviado para Itanhaém e queriam que ele trabalhasse em outra função. “Eu disse para o delegado: ‘olha, meu negócio é abrir corpo, não quero ficar
cuidando de bandido’”. Outra coisa inusitada sobre sua carreira é que ele não “esquece” nenhuma vítima. Desde 1985, todas as necrópsias realizadas estão anotadas nas páginas de cadernos. Ele tem cerca de dez cadernos - do tipo que qualquer um compra na papelaria por não mais que 5 reais - com o nome, a causa da morte e a data em que a vítima deu o último suspiro. Ao todo, são mais de 9 mil nomes. Depois de mais de três décadas abrindo corpos humanos, tem uma coisa que ainda o cho-
Facas, tesoura e alicate são alguns dos instrumentos de trabalho de Mestre
ca: fazer a necrópsia de corpos de crianças.
ta que Almir é um pai dedicado, com pequenos gestos que significam muito. “Ele fazia um pão com Família queijo derretido que não tinha Almir Mestre é pai de dois filhos, comparação!”. Quanto aos valores Aline Mestre Cardenal e Almir que Almir passou adiante, o que Mestre Junior, frutos do seu pri- ela destaca é a honestidade. meiro casamento. Seu único neto Sobre o trabalho do pai, Aline carrega o mesmo nome dos dois. diz que tinha quatro anos quando Aline lembra que ele trabalhava foi ao IML de Praia Grande pela muito, mas conseguia compensar primeira vez e entendeu, de fato, essa ausência nas folgas. “Quan- o que o pai fazia. “Por algum modo era folga, ele me buscava na tivo, meu pai teve que me levar escola. Nunca disse isso para ele, para o trabalho. Eu fiquei do lado mas esses dias foram os melhores de fora, onde tinha um aquário da minha infância”. Também con- em uma sala da administração.
Não via nada, mas sabia o que era mais ou menos. Tive a certeza quando vi uma moça entrando, provavelmente na sala de necrópsia, para reconhecer o corpo do irmão e saiu chorando muito. Entendi o que era a morte e o que acontecia lá dentro. Ficava triste em ver as famílias”, lembra. A “estranheza” também era motivo de orgulho na escola. Quando era dia de falar sobre as profissões dos pais, Aline ficava “toda cheia”, afinal, a de Almir era a mais diferente dentre elas. A esposa de Almir, Angélica Ferreira dos Santos, auxiliar de enfermagem, conta que conheceu Almir no IML, quando ela trabalhava no local como auxiliar de limpeza. A convivência, segundo ela, é boa e as brigas são raras. “Quando brigamos é por causa de terceiros, nunca por nossa causa”. Ela também o caracteriza como “muito teimoso”, mas que suas melhores qualidades são a bondade e disposição para ajudar quem precisa. “Ele é uma pessoa boa. Boa de se conviver, boa de lidar e sempre bom com a família, com os amigos. Quando alguém conhece o Almir logo se torna amigo porque gosta do jeito dele”. Como defeito, ela destaca um “pensamento antigo” para certos assuntos. Mestre cita, por exemplo, que era comum os pais “darem umas palmadas” na sua época de criança. Sua mãe o fazia, e isso não mudou a forma que ele a enxergava. A morte da matriarca, Maria Antônia Lima Mestre, foi um grande impacto para ele e a família. Um dia, a mãe, a irmã e a sobrinha de Almir estavam pintando os cabelos. A sobrinha olhou para a
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avó, parada de olhos fechados, e comentou: “olha, a vó dormiu”. Ao chegar mais perto, notaram que sua respiração havia parado. Foi levada ao hospital, mas não resistiu. Ver a mulher que o criou nessa posição foi totalmente diferente do que faz em sua rotina. Marli Mestre, uma de suas duas irmãs, chega a se emocionar falando sobre o assunto. Ela diz que a mãe era tudo para eles e que até hoje todos sentem muita falta dela. Sobre o relacionamento do irmão com a mãe, conta que os dois eram muito carinhosos um com o outro. “Ele sentava no colo da minha mãe mesmo depois de grande. Fazia todas as vontades dela. Ela foi uma mãezona pra gente”, relembra. Os três eram muito unidos e faziam tudo juntos. “A gente fazia festa aqui em casa, colocava som no meio da rua e dançava. O Almir inventava as danças e a gente acompanhava”. O relacionamento dos três irmãos atualmente é ótimo. O irmão sempre faz visitas às irmãs, sendo muito prestativo. “Ele está aqui sempre que pode. Sempre que o trabalho dele deixa”. O melhor programa para os irmãos é fazer um churrasco e tomar uma cerveja, ficar conversando e aproveitar a companhia um do outro. Sobre seu trabalho, ela revela que “quando ele era criança, desmaiava ao chegar no cemitério, começava a passar mal. E por ironia do destino, olha a profissão dele!” Mesmo estranhando no começo, hoje todos entendem que é sua (inusitada) paixão.
ção é comprovada pelo amigo de trabalho Patrick Luiz Nunes. “O Almir é amigo de todo mundo, confiável, divertido e um exemplo de profissional.” Diz que admira a postura do colega mesmo estando tantos anos no IML e tendo um trabalho difícil. Conta também que sempre pode contar com ele, Amizades mesmo quando está de folga ou Nas redes sociais, Almir usa um de férias. “Para mim ele foi uma slogan: ‘Não basta ser bom, tem pessoa escolhida por Deus para que ser Mestre”. Essa breve descri- exercer essa função, muitas pes-
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A esposa e os amigos definem Almir como uma pessoa bem humorada e companheira
soas não se adaptam com esse tipo de trabalho, mas ele lida super bem”, explica. Patrick teve uma recepção um tanto “diferente” ao ingressar no ofício. “Lembro do meu primeiro plantão noturno, Almir pregou uma peça em mim, já que era novato. Estava no quarto de descanso, o IML estava vazio, era aproximadamente meia noite e não sabia que o Almir tinha a chave de lá. Ele entrou, desligou a chave geral de energia, e me deixou
no escuro. Logo começou a fazer barulhos estranhos, como bater porta, arrastar coisas, e para meu azar a chave de energia fica no necrotério. Sai do quarto e com o celular fui me guiando, desci as escadas e o Almir me deu um baita de um susto”. O atendente de necrotério vê essa brincadeira como uma boa maneira de mostrar o ânimo do Almir com o trabalho e com aqueles que lá trabalham. Futuro Se engana quem pensa que sua relação com “o outro lado” acaba com o expediente. Almir é auxiliar de enfermagem no asilo Lar São Francisco de Assis, na Praia Grande. Mas gosta de se denominar “cuidador”. Com a memória falha, os idosos o chamam de “Osmir”, “Chico”, “Paulo”, “Samir” e por aí vai. Seja qual for o nome, Almir é muito querido por eles. Essa relação começou quando ele trabalhava no extinto Instituto Médico Legal da Praia Grande. Desde então, os visi-
ta nas segundas e terças-feiras, com plantão de 24h por semana. Para os idosos, não é o suficiente. “Eles falam ‘poxa, você devia vir aqui todos os dias’”. Os próximos passos de Mestre têm a ver com a área, mas de uma forma muito diferente. Ele fez alguns cursos de Tanatopraxia, uma técnica de conservação dos corpos para a cerimônia fúnebre. A técnica de Tanatopraxia consiste em injetar um líquido à base de formol, álcool, glicerina e outros componentes, substituindo o sangue. Sem este preparo, o defunto fica com uma cor arroxeada ou pálida, devido ao gás carbônico restante na corrente sanguínea. Psicologicamente, isso é de grande valor à família, para guardar na memória a última imagem do ente querido. A prática impede que os tecidos mortos espalhem contaminação em quem entra em contato ou com o solo, além de não deixar odores. Mestre foi o pioneiro a fazer
este tipo de serviço na Baixada Santista. Trabalhava na empresa Osan, porém, depois que o dono morreu, a esposa dele dispensou esse tipo de serviço. Conta que, caso surgisse a oportunidade, passaria esse conhecimento para outros. Mesmo com toda essa bagagem, Mestre não gosta da ideia de se aposentar. “Não consigo ficar parado. Ele conta que pretende se aposentar mais ou menos quando completar 10 mil, ou daqui a uns dois ou três anos. Seria como um recorde pessoal. Depois de toda sua bagagem, ele ainda teme “o outro lado”? De acordo com ele, a morte não assusta. Ele se diz evangélico, então não acredita em espíritos e afins. Sequer tem medo da solidão. Quando questionado se ele teria problema em ficar em um asilo daqui uns bons anos, como o que trabalha, ele nega. Talvez tenha concluído que na passagem desta vida rumo ao desconhecido, todos estejamos nus, frios e sozinhos
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A rotina de Mestre se divide entre trabalhar de auxiliar de enfermagem num asilo e fazer necrópsias no IML de Santos
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1, 2, 3, A... ZENHA O PRODUTOR SANTISTA AFICCIONADO POR FILMES, SÉRIES E CAFÉ
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Texto: GUILHERME GASPAR, LEONARDO MAIOLINO E VINÍCIUS BORGES Foto: GUILHERME GASPAR E LEONARDO MAIOLINO
A
ndré Luiz de Albuquerque Azenha engana à primeira vista. Não tem aquele quê de prepotência tão comum a homens de negócio e intelectuais que se vestem de terno e andam com pastas debaixo do braço. Bem ao contrário desse estereótipo, ele tem estatura média, barba rala e um sorriso quase sempre estampado no rosto. Sua imagem pode causar alguma confusão à primeira vista, mas sua importância cultural na região da Baixada Santista é gigante. É ele o organizador do Santos Film Fest, evento anual que ocorre desde 2016 e visa impulsionar a produção audiovisual. Azenha mantém no ar o seu Culturalmente Santista, um site dedicado à agenda cultural da cidade. O nome é emprestado de uma outra iniciativa do produtor: uma série de conversas com as principais lideranças culturais da região para compor um espaço de memória e de reflexão sobre a música, a arte e a literatura locais. Mas sua relação com a cultura começou muito antes. Formado em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo em 2001, Azenha já trabalhou em farmácia de manipulação, empresa de clipping de notícias e em sites de São Paulo e Rio de Janeiro. Deve ter sido um dos jornalistas pioneiros em levar o rock santista para outras cidades, o que aconteceu na época em que trabalhava para as revistas Rock Press, do Rio de Janeiro, e Dynamite, de São Paulo. Foi aí que ele se aproximou do cenário artístico e viu sua relação com a música aumentar, enquanto acumulava convites e credenciais para diversos shows. Teve a oportunidade de participar da cobertura de grandes bandas, como Aerosmith, que se apresentou no Morumbi, e Rolling Stones, em Copacabana.
Até que certo dia seu foco de interesse mudou. Sim, ele amava a música, mas já tinha criado tamanha simpatia pelo cinema, que estava mesmo disposto a engatar um relacionamento sério com a sétima arte, entrando neste mundo mágico. Na época em que trabalhava como assessor de imprensa em São Paulo, notou que seu apetite era maior pelos filmes e séries. “Cheguei a fazer algumas matérias sobre cultura para vários veículos. Por pouco mais de um ano, pude trabalhar ao lado de Rubens Ewald Filho, um dos críticos de cinema mais conhecidos do Brasil, como seu assistente”, explica, já com uma postura naturalmente agitada. As mãos praticamente acompanham as palavras que saem de sua boca, o que se mostra um hábito persistente já minutos de conversa. A experiência no meio cultural deu origem ao Cinezen, que surgiu em 2009 e, na época, era apenas um blog pessoal, onde o jornalista publicava resenhas de filmes. Dez anos após sua criação, o site abriu para ele um mundo de possibilidades. André criou contato com nomes fortes da cultura regional. Fez diversas entrevistas, que deram origem ao Culturamente. “Hoje, parte delas servem de memória, pois alguns entrevistados já morreram”. Ativista cultural dos mais agitados, Azenha também mexeu com as letras. Trabalhou com literatura, na Tarrafa Litetária; com música, no Santos Jazz Festival; com artes visuais, com exposições dos críticos Waldemar Lopes e Rafael Ponzio. Assim, ele é um jornalista multicultural. Hoje, sua vida mostra ser agitada tanto quanto sua postura. Trabalha em casa, mas participa de reuniões e eventos. Por isso, é fácil identificá-lo, ou pelo menos ter a sensação daquele rosto ser familiar.
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Azenha por Denise A produtora cultural Denise Covas, que há sete anos organiza o Santos Jazz Festival, já teve a oportunidade de trabalhar com Azenha. O primeiro contato entre eles foi numa entrevista concedida por ele para a coluna que Denise mantém no jornal Boqnews há mais 12 anos. Mais tarde, quando Denise iria realizar o primeiro Santos Jazz Festival, em 2012, chamou Azenha para assessor de imprensa do Festival. E foi assim também em outras edições do evento, com um trabalho bem satisfatório, segundo ela. O contato entre eles foi sempre mais profissional: “Ele é um profissional moderno. É super esforçado, prestando assessoria pra diversos meios. O mais legal é que ele não é só um assessor de imprensa, também se envolve com tudo, criando eventos, como o Santos Film Fest, por exemplo. É um batalhador e tem uma visão macro das coisas. E tudo isso vai agregando bastante pra cena cultural da cidade”.
“Acredito que trabalhar com cultura é tomar porrada todo dia. Mas não pretendo sair desse meio” explica, citando uma fala de Sylvester Stallone em Rocky Balboa, longa de 2006. “Não importa o quanto você bate, mas sim o quanto aguenta apanhar”. E da mesma forma que o personagem de Stallone golpeia seus inimigos nas produções cinematográficas, Azenha fecha a mão direita e bate na palma da mão esqueda.
Docas do Estado de São Paulo. “Dele, tenho lembranças dos passeios de ônibus e dos livros de bolso, que nos anos 80 eram tradicionais nas bancas. Os de sua preferência eram com temática policial e velho-oeste”. A cultura herdada dos pais levou André às histórias em quadrinhos de super-heróis. Foi no conjunto BNH, no bairro da Aparecida, que ele cresceu, acompanhando cinema como podia. Sua relação com o cinema sempre foi de fã. Toda vez Influências na infância que um filme era exibido pelos canais abertos, a Ao relembrar da infância, logo vem à sua mente família tinha aquilo como um evento. “Muito difea imagem dos pais. A mãe, Regina Azenha, é po- rente do que temos hoje, pois naquela época não etisa. “Lembro de ter seis anos e acompanhá-la existia canal a cabo”. no lançamento de seu livro, que lhe rendeu um Essa paixão Azenha carrega até hoje, seja na Robalo de Ouro por ter sido a obra independen- sala de sua casa, localizada em um bairro tradiciote mais vendida na bienal do Sesc de 1986”. O nal de Santos, o Gonzaga, ou em seu próprio corpai, Manuel Azenha, trabalhou na Companhia po, através de camisetas com a estampa do Bat-
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Entre filmes, livros e figuras colecionáveis, Azenha mergulha no mundo nerd diariamente
André por Paula Paula Azenha, uma grande companheira de suas aventuras culturais, divide com André os filmes e séries. Conheceram-se em um barzinho, onde conversaram madrugada adentro. Depois, ele levou o pai dela, santista fanático, para conhecer a Vila Belmiro. Quando perceberam, já estavam totalmente envolvidos e apaixonados. Até hoje um dos passatempos preferidos é tomar um bom café. “Posso afirmar que já frequentamos juntos mais de 200 cafeterias”. “Uma pessoa alegre, carinhosa e divertida”, é assim que ela descreve seu marido. Conta que ele faz tudo com paixão e dedicação. Às vezes sua intensidade o deixa elétrico e ansioso, mas, convenhamos, são características dos tempos atuais. Afinal de contas, o amor torna a vida mais leve.
man ou do Super-Homem, seus heróis preferidos. Ainda jovem, criou laços com a música e com as palavras. “Na escola em que estudei, tinha aulas que estimulavam a criatividade. No Ensino Fundamental, iniciado no Universitas, a classe toda teve que fazer um livro de poesias”.
dré acredita que um de seus dons está justamente na escrita. Por isso, tem textos que marcaram sua vida guardados na casa da mãe, que também fica em Santos. Ainda na época de faculdade, era comum encontrar o jovem Azenha em bibliotecas e corredores da faculdade, lendo cadernos do Jornal A Tribuna, da Decisão na juventude Folha de S. Paulo e do Estadão. Já no colegial, Azenha se destacou pelo potenAzenha destaca quatro palavras que definem cial criativo. “Sempre gostei de escrever poesia, como trabalhar no meio: experiência, pesquisa, estupensava em letras de música, me saía bem nos do e trabalho. “Cultura é um segmento profissional, trabalhos de educação artística, assim como nas é trabalho, é ofício. O evento até pode ser de acesso redações, que sempre tirava dez”. Na Escola Téc- gratuito à população, mas o artista vive daquilo”. Por nica Aristóteles Ferreira fez um ano em Técnico isso, reconhece que trabalhar com cultura depenem Edificações. “Tinha facilidade com desenhos de sim de dinheiro. “Produtor cultural é um trabae pensava em ser arquiteto”. lhador e tem que ter muito conhecimento, saber Porém, percebeu que não era tão próximo do como funciona o meio, saber fazer o diálogo enassunto e resolveu entrar para o jornalismo. An- tre público e artista”
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