REVISTA LABORATร RIO ED. 11 | DEZEMBRO 2019
O CENTRO QUE AINDA RESPIRA Realidades de um bairro que luta para preservar sua histรณria
SUMÁRIO 4 10
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Empresas investem no bairro, mas não geram lucro como esperado
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MORAR NO CENTRO
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ROLÊ E RESISTÊNCIA
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BAIRRO GANHA VIDA
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PROBLEMAS NA RODOVIÁRIA
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TRANSFORMAÇÃO DAS BANCAS
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SEM RETORNO FINANCEIRO
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Como é a vida das pessoas que escolheram o Centro como lar Burako’s Quase no Centro da Terra é ponto de encontro da juventude alternativa local Novos comércios e eventos culturais fomentam crescimento do Centro Histórico Com quase 50 anos, equipamento precisa de reformas e segurança
Jornais e revistas são substituídos por outros produtos, como capas de celulares
CAFÉ DE QUALIDADE
História, paladar e cotidiano: saiba mais sobre a bebida mais tradicional de Santos
MEMÓRIAS DA PROSTITUIÇÃO
A história das mulheres do Leste Europeu que eram enganadas e obrigadas a se prostituirem
PARA SABER MAIS:
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EDITORIAL
E XPEDIENTE Diretoria da FaAC Prof. Humberto Iafullo Challoub Coordenador de Jornalismo Prof. Robson Bastos Professores Responsáveis Helder Marques, Nara Assunção e Raquel Alves Capa Foto por Jacqueline Garcia Projeto Gráfico Desenvolvido de forma colaborativa pelos alunos da Turma de 2019 Rua Oswaldo Cruz, 266, sala 321 Santos I São Paulo Realização:
Esta edição representa muito mais do que um aprendizado de dez meses que transformou aulas, temas e pautas, em matérias diagramadas. Ela representa quatro anos de dedicação, esforços, lágrimas e sorrisos de alunos com o sonho de contar histórias, mais especificamente se tornarem jornalistas. Por mais que saibamos que nenhuma pauta é inédita, carregamos a missão de olhar tudo com novos olhares, e esse é o lado emocionante da profissão: a pauta pode ser a mesma, mas nenhuma história vai ser contada da mesma forma. Aqui estão 56 páginas que carregam a história de cada estudante ao longo deste curso. Falando em história, a escolha do tema da última Viral do ano é o Centro Histórico de Santos, uma área abandonada, mas motivo de muitas lembranças na mente de quem viveu os tempos de outrora. Atualmente, o ambiente ainda é sinônimo de lar, trabalho, compras e despedidas. O conteúdo, portanto, transita entre os tempos do café e maria fumaça até as novas atrações. Também falamos sobre os problemas encontrados na rodoviária, e os corações que entram em ônibus cheios de esperanças, enquanto outros ficam a acenar e desejar uma boa viagem. Durante a elaboração, conseguimos também notar como o Centro pode ser uma grande fênix, um local abandonado, mas que com incentivos pode recuperar sua força e cor com os novos empreendimentos. Registramos ainda como uma tradicional banca de jornal se modernizou e resgatamos histórias enterradas a sete palmos do chão. Até a próxima edição, com novos contadores de história, Boa leitura!
Bairro apresenta contraste entre novas e velhas edificaçþes
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EXPECTATIVAS FRUSTRADAS PRÉ - SAL FEZ EMPRESAS INVESTIREM ALTO NO BAIRRO, MAS O RETORNO NÃO FOI O ESPERADO TEXTO: CAÍQUE STIVA FOTO: MATHEUS GERLACH E FELIPE REY DIAGRAMAÇÃO: ANA FREITAS E FELIPE REY
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novo e o velho se misturam no Centro de Santos. É assim na maioria das grandes e médias cidades. A diferença, porém, é que na cidade mais importante da Baixada Santista o lapso de tempo entre o velho e o novo pode ter mais de 350 anos. Das edificações históricas aos modernos comércios que a cada dia surgem pelo bairro, quem passa pelas ruas da região tem uma boa variedade de experiências visuais. Nos últimos tempos, o contraste entre as gerações ficou ainda maior. Quatro prédios comerciais foram erguidos em pontos distintos do bairro e deram sinal de que o Centro de Santos não parou no tempo. O primeiro arranha-céu, de 14 andares, construído em uma área de 25 mil m², de ar modernista, todo revestido em vidro e aço, foi projetado para se converter no propulsor do crescimento do Centro. Inaugurado em 2013, o Edifício Petrobras funciona como uma Unidade de Operações de Exploração e Produção da Bacia de Santos. Com o “boom” do pré-sal e todas as especulações que se seguiram à descoberta de petróleo na região, em 2006, a torre era o símbolo de que a paisagem do bairro e até da Baixada Santista seria outra dali para frente.
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Por isso, o Edifício Petrobras foi construído com o que havia de melhor na época. Localizado na Rua Marquês de Herval, o prédio possui quatro elevadores de ponta, ar condicionado central e uma moderna estrutura feita para receber profissionais do Brasil e do exterior. Além disso, a edificação tem classificação AA de estrutura, ou seja, é categorizado como moderno, luxuoso e tecnológico, sendo o melhor prédio do Centro e um dos melhores da região. No entanto, a demora nos desdobramentos do pré-sal e os escândalos de corrupção em que
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a Petrobras se envolveu nos últimos anos frearam o crescimento da região e frustraram os planos da empresa. De acordo com o jornalista e ex-secretário de Finanças da Prefeitura de Santos, Rodolfo Amaral, as empresas que decidiram investir no Centro foram precipitadas. Por isso, é necessário que haja uma revisão de planejamento para fazer com que a situação mude. “Na época do anúncio do pré-sal foram criadas falsas expectativas e algumas empresas embarcaram nessa onda e perderam investimentos. Há de se
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Nossos gestores, com raríssimas exceções, nunca tiveram experiência empresarial Rodolfo Amaral Jornalista
No ‘boom’ do pré-sal, estavam nos planos três novos edifícios da Petrobras
modernos prédios comerciais foram inaugurados no embalo do pré-sal. O primeiro foi o Edifício Wave Offices, localizado na Avenida Presidente Getúlio Dorneles Vargas, próximo ao prédio da estatal brasileira. Construído para abrigar empresas que viriam a Santos atraídas pelo petróleo da cidade, o prédio possui especificações técnicas elevadas, com 280 salas. Contudo, o imóvel também vem enfrentando a mesma dificuldade do edifício da Petrobras. Poucas salas estão ocupadas. A administração do condomínio comercial não divulga quantas companhias exercem atividade no local. O empresário que deseja alugar uma sala comercial de 43m² no Wave Offices precisa desembolsar por fazer um planejamento sério, de volta de R$ 2.500 por mês. médio e longo prazo. Sem isto é impossível reverter o cenário VALORES vigente”, diz. Outro empreendimento inauguInicialmente, foi prevista rado em 2014 é o Tribuna Squaa construção de três torres da re. Construído na rua Amador Petrobras no Centro. Porém, o Bueno, o prédio está anexado panorama encontrado após a à nova sede do Grupo Tribuna, construção da primeira fez com maior empresa de comunicação que a empresa adiasse e, poste- da Baixada Santista. Porém, riormente, cancelasse o projeto apesar de dividir o mesmo terredos outros prédios. no não tem relação direta com A expectativa pelo cresci- a marca e sequer tem acesso inmento também “enganou” terno para as salas da empresa. empresários que decidiram in- Assim, o Tribuna Square funvestir na região. No ano seguin- ciona de forma independente e te à inauguração do Edifício abriga pequenas e médias emPetrobras, mais dois grandes e presas de diversos setores em
seus pavimentos. São 250 salas comerciais, de 60m² e 150m², divididas em 17 andares, com quatro elevadores e ar condicionado central, além da classificação A de estrutura, ou seja, é um pouco menos moderno que o Edifício Petrobras, mas é o suficiente para chamar a atenção de quem passa pelo Centro. De acordo com a administração, das 250 salas, 130 são utilizadas, o que representa 52% de ocupação. A administração do edifício preferiu não revelar nomes de empresas que utilizam as salas, mas informou que a procura teve um aumento de 15% em 2019, e que a movimentação diária no local é intensa. Os valores médios de aluguel de uma sala no Tribuna Square variam entre R$ 2.500, para salas de 60m² e R$ 13.000 para salas de 150m². Já o valor de compra dos espaços vai de R$ 450 mil até R$ 1,5 milhão. Os problemas vão além dos grandes prédios que não conseguem preencher seus andares. Rodolfo Amaral, que é dono da consultoria Data Center Brasil, e ex- secretário de Finanças entre os anos de 1997 e 1998, a região central perdeu público nas últimas décadas por culpa da administração pública, que não tem qualificação para criar um plano de negócios para o município manter a região com alto movimento.
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A Petrobras ganhará um Centro de Operações Integradas e contará com 500 funcionários a mais na Cidade
Proprietários encontram dificuldades na locação ou venda de imóveis no Centro
que menos forneceu informações à reportagem. Seus 249 quartos estão distribuídos em 15 andares, em uma área de 3.893 metros quadrados, mas a assessoria da Accor Hotels, empresa proprietária da marca João Ricardo Lafraia Ibis, informou que não divulga Gerente geral números sobre suas franquias. Extraoficialmente, porém, um funcionário da empresa, que preferiu não se identificar, “O Centro vem sendo esvaafirmou que o movimento no ziado há mais de três décadas. hotel é baixo para o que era As administrações municipais esperado, mas que o fluxo aununca foram capazes de idealimenta em semanas de eventos zar um plano de negócios para portuários. o município porque nossos gestores, com raríssimas exceções, FUTURO nunca tiveram experiência emDe acordo com a Petrobras, a presarial de qualquer espécie. expectativa é de que a região Limitaram-se a administrar o volte a crescer. No início do orçamento municipal de forma ano, a empresa anunciou o indoméstica, sem a mínima vivestimento de US$ 9 bilhões (R$ são de futuro. Os poucos avan33,5 bilhões) na Bacia de Sanços econômicos que tivemos tos, nos próximos cinco anos, em Santos foi por iniciativa de para a construção de duas noum grupo empresarial distinto, vas plataformas de petróleo em para quem a Cidade se curvou áreas pelas quais a cidade será várias vezes com mudanças na responsável. Segundo João Rilegislação”, diz Amaral. cardo Lafraia, gerente geral da Petrobras na Bacia de Santos, HÁ VAGAS do investimento total previsto, O mais recente dos grandes emR$ 25 milhões serão investidos preendimentos do Centro de no edifício da empresa, que gaSantos é o Hotel Ibis, localizanhará um Centro de Operações do na Rua Alexandre Gusmão. Integradas e contará com 500 É também o mais “misterioso”, funcionários a mais na Cidade.
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O crescimento já tem acontecido. Atualmente, 2.245 pessoas trabalham no prédio da empresa, número três vezes maior ao do início das operações do edifício, em 2013, o que pode ser indicativo de uma retomada de crescimento na região. A expectativa é que ainda mais modernidade surja para contrastar com a história do Centro. Rodolfo Amaral ainda acre-
dita que há muito a ser feito para que o Centro volte a ser ocupado. Ele diz que é necessário que se faça um estudo dos imóveis do bairro para que seja possível criar um plano de ocupação. “Ninguém vai ocupar o Centro sem um plano de negócios bem fundamentado. É preciso que se faça um amplo inventário de imóveis e terrenos, identificando proprietá-
rios, características dos imóveis, potencial de uso e preço. Somente a partir desses dados é que se pode definir um plano de ocupação que concilie negócios, serviços, moradias etc.”, finaliza.
mentar a situação dos comerciantes do Centro, mas não obteve uma posição da assessoria. Após uma breve volta pelas ruas do bairro, foram vistas pelo menos 11 placas de “aluga-se” e nove de “vende-se” em pontos comerciais. Além disso, COMÉRCIO muitos espaços que poderiam A reportagem também procu- abrigar novos empreendimenrou o porta-voz do Sindicato tos foram vistos de portas fedos Empregados no Comércio chadas, e mesmo sem anúncios de Santos e Região para co- de comercialização
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Quando o Centro Histórico é o lar
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QUANDO O CENTRO É O LAR CORTIÇOS, IMÓVEIS TOMBADOS, PONTOS TURÍSTICOS E HISTÓRIA EM CADA ESQUINA. COMO É MORAR NO BAIRRO MARCADO PELA VIDA NOTURNA, PROSTITUIÇÃO E ATIVIDADES PORTUÁRIAS?
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TEXTO: ALLAN MORAES, JACKELINE AMORIM, NATALIA CUQUI FOTO: ALLAN MORAES, JAQUELINE GARCIA DIAGRAMAÇÃO: ALLAN MORAES, NATALIA CUQUI
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uase todo ser humano fica impressionado ao se deparar com grandezas. Você já foi a um show lotado e se questionou quantas pessoas estavam naquele local ao mesmo tempo? Ainda que Santos tenha lá seus 430 mil habitantes, as grandezas históricas e pessoais são as que mais a caracterizam. É impossível ver o Centro e não se perguntar como era o transporte via bonde ou como fluía a vida nos cortiços. O Centro abriga um legado histórico inestimável com seus personagens que ali habitam os inúmeros imóveis tombados. Com a orla da praia ocupada inteiramente por prédios, logo após o município ser considerado o mais vertical do país segundo pesquisa realizada no ano passado pelo Ibope Inteligência, é normal esquecer da sorte que têm os que ainda vivem em casas. Segundo dados do último Censo (2010) há 6.743 moradores na área chamada Centro Expandido, que inclui os bairros Vila Nova, Centro, Paquetá e
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O asfalto veio com a Petrobras Gastão Gomes Comerciante
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Valongo. As construções centenárias – muitas em condições de completo abandono – dão indícios de que aquele é um bairro diferente dos outros 56 da cidade. Não é comum perguntarmos “Onde tu mora?” e a resposta ser “no Centro!”, afinal apenas 1,5% da população santista vive por lá. E quem são essas pessoas? INVADIR E LEVANTAR Passeando pela rua Marquês de Herval no Google Maps, chama a atenção o ponto de encontro com a rua Alexandre Gusmão, que hoje abriga um monumental edifício da rede internacional de hotéis Ibis. Alguns metros antes da intersecção, a vista com sentido ao Valongo mostra uma imagem de 2013 da rua: o chão de bloquetes de concreto, o hotel (à direita) com meio andar feito e, ao fundo do lado esquerdo, um imenso prédio tem toda sua estrutura construída, faltando as janelas de vidro que cercam seus quatro lados nos últimos cinco andares. Avançando poucos metros, alguns elementos se transfiguram. O chão é asfaltado. Os últimos cinco andares do prédio à esquerda recebem suas últimas janelas. O hotel, à esquerda, está pronto. A imagem é de 2017. O motivo da transformação no cenário é o prédio à esquerda, o complexo de torres da Petrobras que abriga mais de mil funcionários da sede santista da empresa,
que aqui produz cerca de 40% do petróleo nacional. O imponente imóvel fica na altura do nº 58 da Herval. No número 11 da mesma rua mora um personagem que destoa completamente das imponências de uma das maiores empresas do país, em um imóvel tombado e história completamente distintasdos vizinhos rua acima. “O asfalto veio com a Petrobras”, explica Gastão Gomes, morador da Marquês de Herval há quatro anos, e do bairro há 15. O comerciante é um hippie assumido: escreve e adora poesia, é amante da natureza, e hoje tem um bar todo marcado pela arte independente – o Burakos, que vem crescendo na rota alternativa do Centro. Ele já morou em uma casa pequena na rua São Bento, posteriormente migrando para um espaço maior na mesma rua, onde montou um armazém com as autopeças que revendia. Para ele não houve nenhuma adaptação ao bairro, ou mesmo estranhamento. Gastão nasceu na Bacia do Mercado e morou nos morros da Nova Cintra e São Bento por muitos anos. Criou os filhos ali, na “periferia” da cidade. De certa forma, o Centro como lugar de moradia carrega os estigmas de uma comunidade periférica – o perigo, as drogas, a falta de infraestrutura. Ele conta que já houve casos de furtos no seu comércio. “Aqui tem os dependentes químicos, é
Gastão mora no Centro há 15 anos
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O comerciante sempre recebe artistas e amigos em sua casa
um grande problema. Já roubaram coisa ou outra aqui do bar”. Mas esses problemas e estigmas não parecem preocupar muito o comerciante, que fala sobre as questões com tom de compreensão do espaço que habita, em vez de sentimento de revolta. E essa compreensão abrange também reflexões sobre os interesses emergentes de empresas sobre o bairro. A vivência na periferia geralmente estimula uma perspicácia de sobrevivência que pode ser traduzida como uma certa “malandragem”. É uma sabedoria sensível sobre os interesses por trás de certas atitudes do outro. Há pouco tempo foi descoberta uma ligação clandestina no quadro de luz de sua residência – o que gerou uma multa de 6 mil reais. O “gato” foi feito pelo morador anterior, ele explica. Ao questionar o locador sobre a possibilidade de ele arcar com a dívida, o administrador do imóvel se colocou à disposição para qui-
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tar o valor com uma condição: que Gastão deixasse o imóvel. A “malandragem” do comerciante já apitou: “há interesse em me tirar daqui”. Foi feito um acordo: o locador paga metade da dívida, e Gastão a outra metade. “Os comerciantes da vizinhança veem a gente como um cifrão. Todo dia eles vêm perguntar se a gente vai abrir o bar”, comenta a respeito dos olhos em cima do imóvel que ocupa. A região do Valongo vem sendo mais valorizada pela presença do Museu Pelé e do Arcos do Valongo, além de hospedar hoje megaempresas como a Petrobras. Embora haja interesse dos comerciantes vizinhos, ele pondera que o “perigo” são as empresas grandes. “Eles querem invadir aqui e “levantar!” diz Gastão, sobre o interesse em demolir prédios históricos como a que ele habita para que arranha-céus cravem mais pilhas de andares para engravatados trazerem mais dinheiro para a cidade.
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A gente sempre dá oi com um sorriso Manoel Rocha Porteiro
A figura de Gastão nesse momento se assemelha à de Clara, a resiliente heroína do filme Aquarius, que tanto lutou para manter de pé o histórico e saudosista edifício Aquarius, na praia de Boa Viagem, no Recife. Na trama os engomados veem potencial econômico no local e fazem de tudo para tirar Clara de lá, sendo ela a única moradora restante do edifício. E fazem de tudo mesmo, de ofertas milionárias a ações criminosas. Ali no Valongo, por enquanto não houve nenhuma proposta ou boicote a Gastão. Mas a preocupação que fica é se o patrimônio histórico que o bairro abriga corre algum risco perante o interesse econômico crescente sobre a região.
Segundo dados do Censo de 2010, apenas 1,5% da população mora no Centro
UMA VIDA INTEIRA Manoel Messias da Rocha, que é porteiro de uma contabilidade, mora com a esposa e os dois filhos na casa onde seu pai também morou. O imóvel fica na Vila Isaura, lugar que reúne mais seis casas, todas vizinhas, com canteiro de árvores e onde os passarinhos cantam em dia de sol. Característico do centro de Santos, principalmente no apogeu dos anos 80, as vilas são raridades nos dias de hoje. “Tem
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Grande parte das residências são sobrepostas a comércios
gente ali que eu conheço há mui� to tempo. A gente sempre dá oi com um sorriso. Há pessoas que nunca mudaram de lá, como eu”, diz citando o nome de todos, dos que já foram e ainda estão. Manoel cresceu no lugar e assistiu de perto as mudanças centrais. As novas ruas criadas e asfaltadas, as praças que di� minuíram apenas para as prin� cipais. Tudo é um sinal de que os tempos são outros. Apesar dos olhos brilharem ao falar de onde mora, ele não consegue esconder as decepções, “Não é tudo aquilo viver no centro, há os moradores de rua que aca� bam fazendo bagunça rouban�
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do coisas, as escolas infantis. E sinto que a prefeitura prometeu arrumar coisas no local e aca� bou esquecendo disso. Mas eu me acostumei a morar aqui a minha vida toda. Se depender de mim, eu não saio daqui nun� ca”, completa. No meio do turismo a cada esquina, dos comércios extensos, bem no centro histórico, fica a casa de Ademir Pinto de Araú� jo, de 37 anos. Vindo de São Vicente, ele mora em Santos há seis anos, tem riso fácil e carinho com todos. Ele conta sua baga� gem de vida. Além de trabalhar em uma loja de equipamentos, Ademir é responsável por um
prédio que faz manutenção e onde também aluga quartos para a administradora. “Foi aqui no Centro que eu mudei minha ro� tina: tenho um emprego, não bebo mais, pago minhas contas em dia, tenho uma casa só para mim. Depois de 19 anos, foi aqui também onde revi minha mãe, que é do Piauí”, conta ele, feliz. Ademir elogia os moradores do Centro e explica que todos são prestativos e a comunidade é muito unida. Ele também de� monstra que sente muito o aban� dono do governo municipal e o desejo de ver a prefeitura arru� mar lugares dignos para os mo� radores de rua. “Eu gosto muito daqui. A minha vida é no centro de Santos!”. Sem perceber, vivemos um ciclo sem fim na região central. Moradores querem mais comér� cios para continuarem ali e os estabelecimentos, por sua vez, precisam dos moradores. Cami� lo Reys, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de San� tos, compara o centro histórico com o Gonzaga. “Há 30, 40, 50 anos, o centro de Santos era uma área residencial e por isso viveu seu apogeu. A região tinha sua própria vida, como o Gonzaga atualmente. O que vai realmente impulsionar o desenvolvimento central será o repovoamento, instalar novas moradias e revi� talizar as que já existem, para que haja realmente vida no cen� tro fora do horário comercial”.
OS DOIS LADOS DA MOEDA Apesar das belezas rústicas que o Cen� tro Histórico de Santos guarda, como todo lugar ele também possui lados bons e ruins. João Pedro da Silva Neto mora há três anos entre as ruas Amador Bueno e João Pessoa, próximo de todo tipo de comércio, pelo menos até as 18 ho� ras, enquanto ainda há escritórios ab� ertos e bastante movimento na rua. “Por um lado é bom, mas por outro nem tanto. A questão da segurança é bem ruim, há algumas semanas fui agredido e assal� tado na frente da minha casa. Ele surgiu do nada de bicicleta me chutando”, conta Pedro. Segundo ele, mesmo depois disso o policiamento da região continua igual. Apesar de também se divertir por lá e estar perto de muitos estabelecimentos comerciais, João Pedro já faz planos para se mudar do bairro o mais rápido possív� el: “Meu sonho é mudar daqui, gostaria muito de voltar a morar no meu antigo bairro”. Antes de morar no Centro, João morava no Canal 2, próximo à UPA. Ele contou que também não era um bairro to� talmente seguro, mas que ainda era melhor do que a região central, por ter mais movi� mento e comércios abertos de noite
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Meu sonho é me mudar daqui Pedro Neto Vendedor
Pedro faz planos para se mudar do Centro
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FESTA
ESTRANHA
COM GENTE
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ES QUI SITA
“BURAKO’S QUASE NO CENTRO DA TERRA” É UMA OPÇÃO PARA A JUVENTUDE UNDERGROUND CAIÇARA TEXTO: MARINA ESTEVÃO, ANA GABRIELA SALU, PABLO MELLO E VICTORIA MECHENAS FOTO E DIAGRAMAÇÃO: MARINA ESTEVÃO
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garagem localizada na rua Marquês de Herval, 11, no bairro do Valongo, parece uma casa comum à luz do dia. Porém, lá pela meia noite de uma sexta ou sábado, dá espaço a juventude underground de Santos. O “Burako’s Quase no Centro da Terra” é um dos pontos para quem quer se divertir pagando pouco, vestir seu figurino peculiar e embalar os corpos em ritmos diferentes daqueles tocados nas baladas tradicionais.
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O Selvagerya, por exemplo, é um dos que mais lotam, tocando ritmos como pop e funk. Os frequentadores geralmente vestem sua roupa mais diferente, com estampas, cores fortes, cabelos coloridos, acessórios como meias longas, choker... Tudo para se destacar na multidão e expressar sua individualidade. Os looks são o que se chama de instagramáveis ou aesthetics.
O casal Cauê Góis Santa Fé e Anne Caroline Ferreira frequenta o local desde 2018, e chamam a atenção na multidão
Para se ter uma ideia, o DJ agita a pista de dança tocando desde aberturas de desenhos japoneses até música disco anos 80! Tudo depende do tipo de evento. Logo na entrada, as artes na parede e quadros saltam aos olhos dos que estão acostumados com casas noturnas comuns. O equipamento de som fica num pequeno palco. Atrás, um telão passa vídeos ilustrativos. Depois do estreito corredor ficam os banheiros. Os que se aventuram a subir a pequena escada encontram sofás, pufes e mais arte, ideal para quando bate o cansaço A porta principal está sempre aberta e dá de frente a uma
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parede com desenhos, pichações e cartazes, num deles está escrito “não mate” (se referindo ao consumo desenfreado de carne). Tudo se mescla com as luzes amarelas dos postes e as construções antigas. Na rua paralela, a São Bento, outros bares e baladas estão disponíveis a outros gostos. O Cadillac Vintage Bar, por exemplo, fica próximo, com um público mais adulto e decoração das décadas de 50, 60 e 70. É fácil diferenciar quem “pertence” a qual lugar. Muitas tribos se reúnem lá: rockeiros, drag queens, LGBTs, funkeiros e outras. O público varia de acordo com o tipo de evento, mas o objetivo é se divertir.
HISTÓRICO O nome é sugestivo: “Burako’s” (com k) é porque o local em si é mesmo pequeno, feito no que antes era uma garagem. Isso não parece incomodar os frequentadores mais animados. Afinal, o som se escuta lá da rua, onde os mais claustrofóbicos podem dançar mais a vontade ou conversar. “Quase no Centro da Terra”, pode-se dizer que te transporta para uma viagem diferente, como que para outro mundo. O local existe desde janeiro de 2016, época em que seu atual proprietário Gastão Gomes, resolveu comprar a parte inferior do terreno onde atualmente mora. Antes disso, era um ferro velho. Gastão trabalhava com venda de peças de carretas e caminhões. Ao se aposentar, o plano inicial era deixar a Cidade e a Bacia do Macuco, região onde morou por mais de 15 anos. Porém, por indicação de um colega de trabalho, resolveu alugar a parte de cima de um imóvel no Valongo. Depois de um tempo, alugou também a parte de baixo.
Em noites de evento, a rua Marquês de Herval fica lotada de frequentadores de todas as tribos
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A prioridade é mostrar que o ser humano precisa de liberdade de expressão Pryscila Franco DJ
A ideia do espaço surgiu em conjunto com o amigo. Inicialmente, chamava-se “Buraco’s Espaço de Resistência Cultural”. Logo se desentenderam e a parceria acabou. Por exigência do antigo parceiro, o nome não poderia mais ser usado. O imóvel é uma casa tombada como patrimônio histórico e pertence a uma mulher que ele não conhece, mas que sabe que tem vários outros imóveis na região. RESISTÊNCIA NO ROLÊ A principal motivação de Gastão para criar o lugar foi a paixão pela arte e cultura. Ele faz poesia há mais de 50 anos e já publicou livros. Se engana quem pensa que o local é só mais um “rolezinho”. Os organizadores realizam
exposições de arte, bazares, apresentações de teatro, feiras de artesanato, pinturas, música e muito mais, em horários diferentes. Por isso, o Burako’s ficou conhecido entre os grupos alternativos da Baixada Santista. Mesmo sendo mais famosa por ser uma casa noturna, os eventos feitos durante o dia são ótimas opções para quem curte uma programação mais tranquila. “A nossa prioridade é mostrar que o ser humano precisa de liberdade de expressão”, completa a DJ Pryscila Franco, 28 anos. Segundo ela, é importante ocupar espaços para levantar questões políticas. “Nos eventos reunimos pautas muito impor-
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É um lugar que você pode ser você mesmo, e ninguém vai julgar
Anne Caroline Menezes Babysitter
tantes, como feminismo, veganismo, questão racial, política. Isso atrai as pessoas e não só por ser um lugar acessível, mas também por proporcionar troca de informações”. Alguns podem estranhar a falta de infraestrutura. As paredes têm algumas infiltrações e falta reboco. Isso porque o local arrecada dinheiro apenas com o bar, que tem que cobrir as despesas de luz, água e equipamentos de som. Não se cobra entrada nem tem cachê dos artistas. Aqui, a prioridade é promover a arte. O analista de marketing Enzo Freire de Sousa Paulino, 21 anos, relembra um dos eventos que a diversão e a militância deram as mãos, o Verve. Foi realizado um dia antes das eleições presidenciais de 2018. “Já esperávamos o pior. Parecia que, depois daquele dia, as pessoas nunca mais se divertiriam igual”. Felizmente para o público, o espaço continua sendo uma válvula de escape. Mas claro que a diversão também conta muito. Para os que querem apenas curtir, também
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é um lugar ideal. Thaisa Nilza Ferreira Carramão, 21 anos, frequenta desde 2018 e tem boas memórias da casa. “Minha melhor lembrança é de um evento Selvagerya, no carnaval deste ano. Foi quando eu comecei a ficar mais próxima de pessoas que hoje eu considero meus melhores amigos”. Ela conta que até tem um grupo no Whatsapp com o nome do evento. A babysitter Anne Caroline Menezes Ferreira, 23 anos, tem um estilo peculiar. Com seus cabelos roxos, roupas largas e coloridas, maquiagens extravagantes e acessórios, chama atenção em outros locais. Porém, para os padrões do Burako’s, esse é o figurino considerado normal. De acordo com ela, a melhor parte de frequentar o local é poder mostrar sua verdadeira identidade. “É um lugar que
você pode ser você mesmo, e ninguém vai julgar sua roupa, seu cabelo, sua dança ou seu estilo.Cada um curte na sua e todo mundo curte junto” FECHAMENTO Outrora, o Centro era mais movimentado nas noites de sexta e sábado. Havia muitas baladas e bares que fecharam suas portas, como o Clube 49, Tribal, Cats Music, The Joy e Higher Club, por exemplo. A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Santos e apurou que desde 2015, 10 casas noturnas encerraram suas atividades naquela região. Só em 2018, foram cinco. Os motivos vão de solicitação do interessado até prática de infração à legislação municipal. Ainda segundo eles, existem atualmente 12 inscrições municipais autorizadas ou com o pedido de alvará em andamento.
O Burako’s é palco para diversas bandas e cantores da região
Em abril de 2019, o Burako’s quase teve suas portas fechadas, mas não por causa de documentação. Gastão explica que foi por causa de uma falsa denúncia de que lá é um ponto de venda de drogas. “O dinheiro que a gente tira aqui é vendendo cerveja, vinho barato, corote, essas coisas. Não drogas”. Vinte e dois eventos foram cancelados durante o período. Gastão organizou uma arrecadação online para tentar impedir o fechamento do espaço. O objetivo era arrecadar R$1.620 em pouco mais de um mês, porém, só atingiu R$335. A vaquinha foi feita para que ele pudesse regularizar algumas coisas após o fechamento. Ele também usou o dinheiro para fazer melhorias na infraestrutura. Um fator que impede o pú-
blico de frequentar os arredores é a sensação de falta de segurança. A estagiária Gabriela Souza de Santa Maria, 21, diz que não se sente totalmente segura lá. “Não tem só o pessoal que foi pelo evento e por falta de iluminação, dá a impressão de ser um local propenso a assaltos”. É comum ser abordado por moradores de rua em busca de latinhas vazias, bebida e uns trocados. O publicitário William Miguel Lima Resende, 21, diz que “não considera os arredores do lugar como seguro, não recomendaria andar sozinho”. Ele normalmente volta para casa, em São Vicente, de Uber.
evento se adequa ao perfil local e público para fechar o negócio. Uma vez decidido, é criado um evento no Facebook e um flyer para divulgação. Atualmente, gêneros como música eletrônica e funk “proibidão” estão saindo de cena para dar lugar ao disco e pop por causa dos problemas judiciais. Bandas de rock estão proibidas porque não têm licença para isso. É permitido apenas bandas acústicas. Mesmo com os problemas de infraestrutura e até segurança nos arredores, enquanto o Burako’s existir, a cultura marginalizada sempre terá um espacinho em uma cidade EVENTOS uma vez apelidada de “CidaOs interessados em organizar de Vermelha”, mas que hoje é eventos no Burako’s podem considerada conservadora por entrar em contato através do muitos. Como os dizeres da telefone (13) 97405-1531. A parede: “Felicidade é resultado equipe responsável avalia se o da atividade criativa”
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NOVO LUGAR
ANTIGO A TENTATIVA DE RESSUSCITAR O BAIRRO
TEXTO: THAÍRIS CANHETE FOTO: KAIO NUNES DIAGRAMAÇÃO: KAIO NUNES E BRUNA GONZALEZ
A Um ambiente alegre para jogar conversa fora enquanto apreciar os melhores doces do Centro de Santos
sensação é a estar entre as décadas de 1980 e 1990. As lembranças são de alguns senhores e senhoras com quem conversei antes de escrever este texto. Na memória de quase todos, o antigo Centro de Santos, conhecido por eles como “cidade”, é o lugar de grande fluxo de pessoas, diversidade comercial e onde tudo basicamente acontece. Era comum e rotineiro que os escritórios se concentrassem nessa região pela facilidade de acesso a repartições públicas e bancos. Além disso, muita gente circulava pela grande variedade de lojas do bairro. Por não existir um comércio tão fortalecido
nos outros bairros da cidade, as donas de casa precisavam se deslocar para fazer compras, ir atrás de roupas para as crianças ou até mesmo comprar um presente de aniversário. Os funcionários das grandes empresas instaladas no Centro também eram responsáveis pelo poder de compra e movimentação do mercado empreendedor do local. Quase tudo estava concentrado na “cidade”. E não é para menos, já que o Centro foi o primeiro bairro de Santos e no seu processo de desenvolvimento recebeu marcos arquitetônicos que marcaram épocas, como a era do café e, mais recentemente, a era do pré-sal. Mas voltemos para 2019. Em
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Com novas moradias e empregados, o Centro ganha vida Marco Antônio Guimarães gerente executivo
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um rápido passeio pelo bairro hoje, podemos notar uma diferença considerável em relação às memórias trazidas pelos senhores e senhoras do início desse texto. O fluxo de pessoas é muito menor e deparamos a cada esquina com lojas de portas fechadas, placas de “aluga-se” espalhadas e um movimento de resistência que parece lutar contra o marasmo deixado pela falta de incentivo e de um plano econômico para a região nos últimos tempos. Sinal de que nem tudo está perdido. Há esperança para o Centro. A região está no foco de empresários e do poder público para que nos próximos anos possa se reerguer e tornar-se novamente potência empreendedora na região, além de receber um novo núcleo populacional. O movimento começou tímido, com o surgimento de algumas empresas que acreditam no potencial econômico da região e com eventos culturais que agitaram o bairro nos últimos tempos, mas parece que vem ganhando força.
da, pelo surgimento de empreendimentos modernos e com infraestrutura acessível e com o incentivo da Prefeitura para habitação em outros bairros. A falta de planejamento para a região também colaborou para a evasão que se verifica hoje em uma volta rápida entre a Praça Mauá e a Praça dos Andradas. A nova face da “cidade” vem sendo pensada e projetada há alguns meses por empreendedores, sindicatos, associações, e entidades públicas que se reuniram em torno de um projeto para revitalização do lugar. A flexibilização da Lei Alegra Centro, uma das primeiras conquistas desse grupo possibilita novas construções e reformas. Outro impulso deverá vir da Santos Criativa, lei proposta pelo Poder Executivo, que prevê isenção de impostos e taxas para empresas ali instaladas, atualmente em tramitação na Câmara para a fase de emendas. A expectativa é que essa lei entre em vigor em 2020 e que os resultados venham a ser colhidos a partir daí, de acordo com Camilo Rey Andújar, preA EXPECTATIVA sidente da Câmara de DirigenEm um processo que já dura tes Lojistas de Santos. alguns anos o esvaziamento do No mesmo sentido, Marco Centro de Santos é consequên- Antônio Guimarães, gerencia de alguns fatores, como a ri- te executivo do Sindicato do gidez nos processos de reforma Comércio Varejista de Santos, de imóveis tombados, a migra- acredita que, após a criação ção das empresas para imóveis de incentivo, a instalação de mais novos, a perda de um flu- empreendimentos e moradias xo de trabalhadores na região, voltará naturalmente para o a migração do polo econômico Centro. da cidade para outros bairros, “A Prefeitura está criando como o Gonzaga e a Apareci- mecanismos que possibilitem
que as construtoras se sintam incentivadas a construir novos empreendimentos residenciais na área. É simples: com novas moradias e novos empregados, o bairro ganha vida”, comenta. A expectativa é que a Prefeitura de Santos invista cerca de 44 milhões de reais no projeto de revitalização. Além da recuperação de prédios históricos, como o Teatro Coliseu, e da revitalização de espaços de convivência, como a Praça da República, o bairro também ganhará o conjunto habitacional Santos I, que será construído pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), com 50 unidades, em um convênio já assinado entre a Prefeitura e o Governo do Estado. COWORKING É só entrarmos no LAB 4D, localizado na Praça Mauá, que a imaginação ganha força. Ele respira arte e recebeu o trabalho de artistas plásticos e grafiteiros da região que deram vida às paredes. O espaço foi concebido para que favoreça a criatividade e a inovação e pretende ajudar pessoas que querem começar negócios ou projetos com ênfase em economia criativa e negócios sociais. Além de um espaço de trabalho compartilhado, conhecido hoje como coworking, o LAB promete ainda trabalhar com a incubação e aceleração de projetos. Ele se estabeleceu no Centro em 2017 e apesar do período ser de esvaziamento do bairro, os
Eventos da região ALAVANCAR A REGIÃO
Para turbinar e devolver vida ao Centro foram criados eventos sociais como shows, festivais, concursos, feiras de arte. SANTOS JAZZ FESTIVAL
Desde 2012, a iniciativa movimenta a região para incentivar a cultura musical da Baixada. ENCONTRO DE CRIADORES
Plataforma multicultural de criatividade que através de eventos e ações visam fomentar a economia criativa, relações humanas, expressões e manifestações artísticas. SANTOS CAFÉ
O festival mostra a história do grão, responsável por grande parte da vida do Centro. Conta com oficinas, música,
artesanato,
palestras,
apresentações culturais e exposições fotográficas.
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fundadores acreditaram no espaço e continuam trabalhando para que o Centro ganhe vida para os próximos meses. “O imóvel tinha uma boa localização e estava situado na Praça Mauá. Nós vimos uma oportunidade por estar reformado e fomos muito bem recebidos no Centro. O espaço fica próximo a repartições públicas e bancos. Além disso, estamos ao lado da entrada de Santos, o que facilita o acesso para aqueles empreendedores que precisam se deslocar até São Paulo, conta Santiago Carballo, Co Fundador do LAB 4D. O sonho do LAB parece crescer junto com o novo Centro de Santos e Carballo compartilha que o objetivo é criar um movimento empreendedor criativo que atinja ao menos 20 mil pessoas e chegue até a área continental de Santos. AÇÚCAR E AFETO Nove meses depois da inauguração, a alegria e a energia ainda são a marca da mais nova doceria do Centro de Santos, a Madalena Brigadeiro. Com um ambiente colorido e jovem, a alegria começa no excelente atendimento dos funcionários do café. Todos os clientes que visitam o local se sentem na casa da própria avó. Com doces para todo lado e uma decoração caprichada, é muito difícil não se sentir bem-vindo ao ambiente. A gerente Nathalia Vieira, que está na unidade desde a inauguração, conta que o pú-
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Além de turístico, o bairro também é um centro comercial Nathalia Vieira, gerente de loja
blico já pedia por uma nova udade da empresa no Centro da cidade. Hoje, a grande maioria agradece a vinda da Madalena Brigadeiros para esse bairro tão clássico da cidade, onde muitas empresas estão alocadas e seus funcionários transitam todos os dias. Ao abrir essa nova loja, a em-
presa, que já está há nove anos no mercado, visou a quantidade de pessoas que passam pelo bairro que, além de turístico, é um centro comercial. Alguns clientes até ousam a dizer que era o tipo de comércio que estava faltando na região, para adoçar a vida de tantos empresários e trabalhadores locais.
Quando visitamos o local, era o Dia do Brigadeiro e, em cerca de 20 minutos, pudemos observar cerca de 12 clientes entrando na loja, comendo docinhos, tomando café e até levando alguns doces para comer mais tarde ou presentear alguém. Até a equipe da Viral fez questão de provar as doçuras dessa empresa que já se tornou
referência na cidade.Não restam dúvidas de que foi um bom investimento da Madalena estar ali. De acordo com a gerente da loja, a unidade não chega a atingir o faturamento da matriz, localizada no canal 3, também em Santos. Mesmo assim, ela gosta de estar ali e ver que a clientela é fiel e aprova essa nova localização da marca.
Ambientes cheios de vida para novas formas de empreender, como o Lab 4D, estão adotando o bairro
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Meio século & problemas RODOVIÁRIA CHEGA AOS CINQUENTA ANOS COM A URGÊNCIA DE UMA REFORMA
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TEXTO E FOTO: LUCAS FREIRE, RAFAEL SOUZA, RODRIGO FLORENTINO DIAGRAMAÇÃO: LUCAS FREIRE, RODRIGO FLORENTINO
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eja para viajar, tomar um lanche, acompanhar alguém que está embarcando ou receber um velho amigo, a Estação Rodoviária Jaime Rodrigues Estrela Jr. é o palco de um sem-número de encontros diários. O frenético entra e sai e o movimento das chegadas e partidas, no entanto, vêm acumulando reclamações e reivindicações de melhorias. Isso às vésperas do cinquentenário do principal terminal intermunicipal e interestadual da Baixada Santista, a ser completado em dezembro de 2019.
Na rodoviária de Santos, 33 empresas de transporte mantêm guichês abertos, que emitem em média, 4.500 bilhetes por dia para as cinco regiões do Brasil. Por se tratar de um local público, é normal pensar que sempre haverá profissionais zelando pela segurança de quem circula no local. Mas os relatos de abordagens e de intimidação de pedintes crescem em número e em ousadia. Problemas de infraestrutura, como banheiros sujos e sem manutenção e a ausência de guarda-volumes também estão no topo das queixas dos usuários.
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Já escutei muitos relatos de ocorrências aqui no local Amanda Almeida Tavares, funcionária pública
PERCEPÇÕES A circulação de moradores de rua nas áreas de desembarque e embarque e entre as lojas e guichês de venda de passagens é constante. Alguns querem ‘’oferecer uma mãozinha’’ com as bagagens, em busca de trocados. Outros abusam da ousadia e, em lugar do gentil “você precisa de ajuda?”, pegam as malas
e correm pelas escadas em direção aos ônibus. O cenário em volta da Rodoviária apenas parece ser tranquilo, mas o clima apresentado no local é de insegurança. Não são raros os olhares tortos dirigidos aos passageiros e outras pessoas que circulam por ali quando ouvem alguma recusa. No primeiro dia de apuração, um dos repórteres foi vítima desses transeuntes. Quando estava sozinho em frente a uma das lanchonetes, foi abordado e ameaçado por um homem que havia acabado de sair do banheiro. Depois de falar frases como “Menino, me dá uma ajuda aí. Fica suave que ‘’nois’’ do (Morro) São Bento só rouba a molecada ‘’playboy’’ e “Você tem dinheiro para me dar? ”, logo que recebeu o dinheiro, e saiu andando rapidamente.
RELATOS Amanda Almeida Tavares, funcionária da Prefeitura de Santos que ocupa o balcão de informações, diz que nunca sofreu nada, mas já escutou relatos de roubos de guichês de passagem, carteiras, além de ocorrências mais graves como tiroteios. Segundo relatos, os problemas com a insegurança teriam crescido quando o quadro de seguranças foi reduzido. Antes, oito vigias por turno estavam em pontos estratégicos da rodoviária. Hoje são apenas dois, em regime de 12 por 36 horas. Claudenir Gomes Ferreira é um deles. Trabalhando há oito anos no espaço, reconhece que o quadro não atende à demanda de fluxo de pessoas e o número de ocorrências, sobretudo em feriados e fins de semana. Para evitar aborreci-
Em péssimas condições de uso, os banheiros são alvo constante de reclamações dos passageiros
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mentos, Gomes sugere dicas de prevenção, como não deixar objetos à mostra e tomar cuidado com quem está perto. Segundo ele, os seguranças têm uma atuação muito limitada, já que não podem deter ou reter um assaltante, mesmo diante de um flagrante, apenas pedir para que se retirem do local, o que basicamente não resulta em nada, pois eles voltam pouco tempo depois. Os comerciantes também sentem a falta de segurança. Vanessa Cristina, vendedora em uma loja de souvenirs, trabalha em frente das tomadas para carregar eletrônicos. Um dia viu quando um ladrão roubou o celular de uma mulher que estava no local. “O pessoal da rodoviária está olhando pelas câmeras e esperando ele voltar para o pegarem”. Há também problemas de conservação nos banheiros, com portas quebradas ou até inexistentes, falta de papel higiênico, sujeira, espaços para pias vazios, e não é raro deparar com cidadãos que tomam banho na pia. O guarda-volumes e maleiro estão desativados há cinco anos, desde que o contrato entre a CET e a empresa Rápido Veleiro se encerrou. VISÃO DOS PASSAGEIROS Os maiores usuários da Rodoviária reforçam as reclamações. O jornalista e estatístico Victor Herman, de 25 anos, inclusive já presenciou um caso de assédio. “Uma moça se aproximou de mim e de uma colega pois estava com medo de um rapaz
O serviço de guarda-volumes está desativado desde 2014, quando acabou o contrato entre CET e a Rápido Veleiro
que a estava seguindo e assediando”. Na hora de reportar o crime, não havia nenhuma autoridade por perto, apenas uma funcionária da CET. “Seguranças e policiais são raros”, atestou o jornalista. Herman já presenciou também situações de ‘corre-corre’, as quais ele acredita que foram causadas por roubo, e foi abordado por pedintes que buscavam dinheiro e comida. Porém, nunca foi alvo de ameaças. Sobre a estrutura, as reclamações não mudam: colunas e paredes com rachaduras, banheiros sujos e alagados e comércio precário, com falta de opção de lanchonetes. “Até o local para recarregar celulares é ruim, pois é perto da escada, apenas duas das três tomadas funcionam e precisamos ficar em pé para usá-
-las”. Ele sugere reforma do prédio, o aumento na limpeza e melhorias na segurança para que as pessoas se sintam bem em transitar por lá. Narrador esportivo, Matheus Pinheiro reclama de atrasos nos ônibus. Nunca foi roubado, mas é abordado frequentemente por moradores de rua. Sobre a segurança, considera como mais ou menos deficitária: “Vejo o policiamento, então posso me sentir seguro, mas não 100%. Por isso peço aumento de segurança e também que os ônibus saiam no horário”. O estudante Victor Persico até faz uma comparação com a Rodoviária de Campinas, o segundo maior terminal do estado de São Paulo, dizendo que a de Santos poderia ser como ela em questão de estrutura
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e qualidade. Ele é mais um que pede por mais segurança. “É preciso um número maior de vigilantes, pois agentes da CET que aparecem por lá não têm essa função”. Apesar de tudo, a alegria também é percebida no local, seja na comemoração de um gol no futebol visto na televisão da lanchonete ou nas conversas entre funcionários e passageiros. Tudo ao som dos empregados das empresas de ônibus que gritam o destino e o horário de saída dos veículos. PODER PÚBLICO O vereador Manoel Constantino (PSDB) faz parte da Comissão Permanente de Obras, Serviços Públicos e Transportes e da Comissão Permanente de Fiscalização, ambas da Câmara Municipal de Santos. Já recebeu diversas reclamações sobre a situação do local, especialmente em pontos como segurança e estrutura. Para o parlamentar, a rodoviária não é adequada para as necessidades de uma cidade como Santos, pois é muito antiga e ultrapassada: ”Conheço o espaço há mais de quarenta anos e sei que é inadequado”. Com 5.200 m² de área, uma ampliação da Rodoviária seria válida, segundo o vereador, através do pátio de manobras. Ainda assim, sugere uma reforma. Presidente da Comissão Permanente de Fiscalização da Câmara Municipal, o vereador Fabrício Cardoso (PSDB) reforçou em matéria no site da Câmara Municipal que já es-
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É comum ver cenas de parentes e amigos se despedindo de quem está embarcando
teve várias vezes lá e não gostou do que viu. “Flagrei diversas situações lamentáveis. Os banheiros são terríveis, a iluminação é precária, não têm câmeras de monitoramento interno e a segurança é zero. Não dá, não tem a menor condição”, reclama. Para ele, a Rodoviária deveria ter uma estrutura condizente com a proposta, que é receber bem os visitantes. “Deveria ser um cartão de visitas. O cenário apresentado é um lugar deplorável, onde há a presença da insegurança e da improvisação, que amedronta e envergonha quem usa o local”. Em 27 de setembro deste ano, o prefeito Paulo Alexandre Barbosa (PSDB) anunciou o Projeto Novo Centro Velho, que, entre outras revitalizações, propõe a reforma e modernização da Rodoviária. Orçado em R$ 6 milhões, o projeto promete nova distribuição das funções internas, implantação da praça de alimentação, fechamento com vidros, espaço de espera mais confortável e cobertura para ampliação de embarque e desembarque dos ônibus. Tem previsão de início em janeiro de 2020 e de entrega em junho do mesmo ano. Haverá também obras da segunda fase do novo trecho
do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que passará pelo Centro e contará com uma estação na região da Rodoviária. O início da obra, orçada em R$ 300 milhões, está previsto para janeiro de 2020, com término em janeiro de 2022. Na audiência pública realizada na Câmara Municipal em 2 de outubro, o diretor-presidente da CET, Rogério Vilani, disse que recebe reclamações sobre o local e que é preciso um projeto arquitetônico ade-
quado. Segundo ele, a nova estrutura está sendo baseada nos sistemas dos aeroportos, com barreiras de controle e locais exclusivos para os passageiros. Sobre a segurança, o tenente da Polícia Militar, Marcos Xavier, declarou na mesma oportunidade que a instituição mantém uma Base Comunitária na região e que, em época de eventos e feriados, há reforço no policiamento. Ele apoia a ideia de melhorar a iluminação na Praça dos Andradas
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Conheço a Rodoviária há quarenta anos. Sei que o espaço é inadequado Manoel Constantino, vereador de Santos
e a diminuição nos pontos de acesso para maior controle de quem circula na região. O comandante da Guarda Municipal, Marcelo Messias, contou que a corporação tem uma coordenadoria atuando no Centro. São feitas abordagens junto aos moradores de rua para verificar sua situação, além de patrulhamentos e atendimentos na própria Rodoviária. Os dois ressaltam a importância do registro do Boletim de Ocorrência
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UM NOVO SIGNIFICADO
PARA AS BANCAS SAEM OS JORNAIS E REVISTAS E ENTRAM OS PRODUTOS EM GERAL
TEXTO: GUILHERME GASPAR, LEONARDO MAIOLINO E VINÍCIUS BORGES FOTO E DIAGRAMAÇÃO: GUILHERME GASPAR E VINÍCIUS BORGES
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uem não se lembra das cenas de caminhões e Kombis varando a madrugada para abastecer as bancas com as notícias quentes do dia anterior? Antes mesmo que o primeiro leitor aparecesse, ou seja, antes dos primeiros raios de sol, os jornais e revistas já estavam cuidadosamente empilhados, com as manchetes em lugares de destaque para chamar a atenção dos passantes. Pois é, o romantismo das notícias frescas, servidas como pão quentinho nas manhãs do Centro de Santos, ficaram no retrovisor. Hoje os jornais são depositados em caixas coleto-
ras e o próprio jornaleiro, como num sistema de autosserviço, se serve de seus exemplares. A pequena multidão que se formava em torno das bancas mais concorridas, apenas para ler as notícias do dia e se deliciar com as chamadas dos diários sensacionalistas, também não existe mais. As pessoas passam com olhos fixos no celular, indiferentes ao que se passa. Que o modo de consumir as notícias mudou, todo mundo sabe, mas os donos das bancas ainda estão procurando um jeito de se reinventarem, pouco a pouco. A menos de vinte passos do octogenário Palácio José Boni-
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fácio, hoje sede da Prefeitura Municipal, está localizada a Banca do Marco. Lá, na esquina entre as ruas General Câmara e Dom Pedro II, o proprietário Marco Aurélio, de 39 anos, encontrou uma outra finalidade para o estabelecimento. Isso porque os jornais e as revistas, que em outra época ocupavam praticamente toda a grade de exposição da banca, deram lugares a películas e acessórios para aparelhos eletrônicos. “Implantar essa tecnologia, hoje global, foi a minha intenção desde o começo. Por isso, decidi trabalhar com películas, capinhas de proteção e carregadores”, explica. Ao entrar na banca, logo temos a comprovação da fala de Marco Aurélio. Na parede mais larga, oposta à entrada da banca, cerca de quarenta capinhas tomam o seu devido espaço. O motivo é evidente e fácil de entender. “Junto com as películas, é o produto que mais sai aqui”. Entre as capinhas transparentes e decoradas, é possível, ainda, notar a presença de acessórios como pequenos tripés destinados a celulares e carregadores portáteis. No lado esquerdo, poucos jornais e revistas dividem espaço com uma geladeira, repleta de refrigerantes e garrafas de água. De todos os periódicos, apenas quatro sobreviveram ali: A Tribuna, Diário do Litoral, Folha e Estadão. “O Expresso Popular, extinto há alguns meses, era um dos que mais saía. Até hoje recebo clientes interessados em uma
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A proximidade à Prefeitura ajudou Marco Aurélio a construir boa reputação junto aos clientes
nova edição, que não sairá”. Já no lado oposto, atrás do balcão onde Marco Aurélio atende os clientes, há uma pequena mesa. É ali que são feitos os serviços com eletrônicos, desde a instalação das películas, sejam elas de plástico ou de vidro, aos pequenos consertos. “Vai fazer um ano desde que decidi expandir o nosso atendimento para a área de consertos. Mas com as películas, produto no qual eu me especializei, trabalho há mais de sete anos”. No balcão, em pequenos compartimentos de vidro, o proprietário expõe os chicletes e cigarros que comercializa. “Desses aqui, os que mais saem são o Trident e o Gudang”, revela, enquanto aponta para cada um. Antes de Marco Aurélio assumir a banca, o estabelecimento era gerenciado por um casal de idosos que trabalhava no ponto havia mais de 40 anos. O atual proprietário tem alguma experiência no comércio, trabalhou longos anos em uma loja DPaschoal. “Passei por diversos cargos e, ao sair de lá, decidi comprar a banca. Isso foi em 2010”. Durante os nove anos de banca, Marco Aurélio conseguiu atrair clientes que trabalham nas proximidades de seu
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Estou sofrendo, mas não quero desistir. Insisto para ver se a coisa anda Solange de Jesus Dona de banca
estabelecimento. “Depois que ‘construí’ meu nome na área, passei a atender o pessoal que trabalha por aqui e o contato com eles foi levado adiante, por meio de simples indicações”, afirma.
A quantidade de produtos expostos no ponto de Solange é visivelmente maior do que nas outras bancas
JORNAL PARA CACHORRO É cada vez mais comum que os jornais antigos sejam vendidos nas bancas para uso de animais domésticos. É, aliás, o campeão de vendas na banca de Jorge Barbosa. Sempre de olhar sereno e confiante, trabalha na movimentada rua João Pessoa, em frente a uma farmácia, desde 1998, e há cerca de um ano começou com essa tática de comercializar os “jornais pet” . No tempo das vacas gor-
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Comecei a vender os jornais PET para ajudar nos lucros Jorge Barbosa Dono de banca
das dos diários de notícia, eles eram dados gratuitamente a quem pedisse. Já hoje, geram receita para o jornaleiro e atraem o consumidor para outras mercadorias no interior das bancas, algo fundamental para a sobrevivência do negócio, como explica Barbosa. E eles podem ser vistos em diversas outras bancas do Centro, com os donos procurando sempre deixá-los em destaque e bem localizados, geralmente exibidos ao lado de cartazes onde se lê: “Jornais Pet”. Ao longo dos 21 anos em que está à frente da banca, Barbosa percebeu que com a chegada da internet e dos aplicativos, a venda de jornais e revistas diminuiu bastante, mas, ele ressalta: “Dependendo do assunto e da matéria, a pessoa vem procurar o impresso para se aprofundar no assunto.” Como exemplo, ele cita o atentado às Torres Gêmeas noticiado na edição do dia 12 de setembro de 2001. Ele se recorda da grande quantidade de pessoas que se aglomeraram em frente à banca para
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saber tudo da tragédia. Recentemente, a procura também foi maior pelas revistas de política. “Na época da disputa judicial entre Sérgio Moro e Lula, muitos curiosos vinham comprar as revitas Veja, Isto É, Carta Capital, etc...” Gibis também eram vendidos em grande quantidade, mas hoje a procura é fraca. O que ele tem visto são pessoas que se interessam por revistas de saúde e de treinamento do cérebro. Na época próxima ao ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), estudantes também aparecem em busca de livros das matérias, alguns voltados especificamente para a prova. “Geralmente em cima da hora do exame”, brinca ele. Por conta de todos esses problemas que vêm assolando as bancas de jornal como um todo, ele mudou a sua, e agora vende diversos outros produtos, como capinha para celulares, doces, cosméticos. FUTURO E o destino das bancas parece ser mesmo o da reinvenção que elas estão procurando fazer: “A tendência é que as bancas virem mais uma loja de conveniência mesmo, vendendo um pouco de tudo.” Ou seja, uma loja faz tudo, como os famosos “1,99” que vemos por aí, só que num espaço bem menor. Mas, no universo das bancas, nem todos são como seu Jorge, trabalhando há mais de 20 anos no mesmo local, com larga experiência e muita história para contar. Solange de Jesus, por exemplo, tem sua
banca há apenas oito meses no Centro, bem na esquina da ruas General Câmara e Itororó, a uma quadra da Praça Mauá. Ela chegou a ter uma banca em Cubatão, cidade onde mora, mas decidiu mudar para Santos em busca de mais movimento. Solange acaba ficando meio “escondida” na banca, devido à enorme quantidade de produtos que põe do lado esquerdo, bem em frente ao seu balcão, que mal dá pra se ver. Ainda por cima, para se chegar até ela, é preciso desviar da máquina de sorvete, do lado direito. E foi assim, escondidinha
O jornal PET, acima, é, agora, um dos produtos que mais se vende nas bancas do Centro de Santos Ao lado, a banca de Jorge que oferece livros, gibis e até cosméticos
dentro da banca, que ela admitiu, com muito pesar no olhar, que o movimento está bem fraco. Segundo a dona, as maiores vendas hoje são com garrafas de água e cigarro. “Jornal sai pouco, revista também, estou sofrendo, mas não quero desistir. Insisto bastante pra ver se a coisa anda”. O desabafo de Solange mostra o quanto é difícil manter-se bem nesse negócio hoje. A persistência de Solange tem a ver com um detalhe importante: ela não paga aluguel. “Por enquanto estou tentando, porque graças a Deus eu não pago aluguel, porque se pagas-
se não ia dar para continuar.” Se Solange está há pouco tempo com sua banca, Romildo Vieira comprou a sua há semanas, e pretende fazer mudanças. Morador de Santos há 30 anos, Romildo veio da Bahia tentar a vida aqui no litoral de São Paulo. Ele já foi camelô durante um bom tempo, até recentemente aparecer a oportunidade da compra da banca. Dá expediente todos os dias da 8 até as 19 horas, e já pensa em repaginar o ponto porque percebeu que com vendas de jornais e revistas não irá sobreviver. “Vendo de 12 a 15 reais por dia em jornais e revistas, isso não paga nem
minha licença”. Sua banca, hoje, está repleta de revistas, gibis, livros, jornais. Mas por pouco tempo, pois ele começará a vender o que a maioria dos donos de banca está oferecendo hoje aos seus clientes. Ele aponta os celulares como grande culpado pela queda das vendas do estabelecimento. Segundo ele, as pessoas têm as notícias, as histórias em quadrinhos e praticamente todos os outros artigos vendidos por ele nas pontas dos dedos. Apesar das mudanças, Romildo garante que continuará à disposição daqueles que preferem as edições físicas
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Vai um cafezinho aí?
O SAUDOSISMO E A MEMÓRIA AFETIVA É O QUE FAZ O CAFÉ IR MUITO ALÉM DE UM MERO PRODUTO DE CONSUMO
TEXTO: MANUELLY CARDOSO FOTO: ALICIA ALVES DIAGRAMAÇÃO: ALICIA ALVES
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h, o café... Só de ler a palavra dá para imaginar o gosto na boca, lembrar do quente no paladar e o cheiro delicioso que fica no ar. No mundo, o Brasil é o país que mais consome e exporta a bebida. Não por acaso, nessa relação singular com o brasileiro, há dois ingredientes principais da casa: o saudosismo e a memória emotiva que o faz ir muito além de um mero produto de consumo. Intimamente ligado ao desenvolvimento econômico da região, o Centro de Santos teve o primeiro impulso de crescimento sistemático no período
de 1860 até 1890 com a praça comercial localizads entre as ruas do Comércio, a XV e a Frei Gaspar. Nesse pedacinho se comercializava praticamente todo o café do Brasil e, durante muito tempo, estavam praticamente todas as empresas que dominavam o mercado do café. Também por isso, andar nessas e em outras ruas da região central da cidade, nos faz visitar um passado bem distante. Este espaço conta aos moradores e turistas a relação afetiva e econômica que Santos tem com a fabricação e o consumo do café. O Portal do Café ou Escritório
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De novos a velhos processos, Hallyson - ao lado - faz questão de ensinar cada etapa Acima, cascas de café após o processo da torra
Carvalhaes, que existe na Rua do Comércio desde o final do século 19, é um claro exemplo disso. A partir de 1918, Alvaro Carvalhaes, da terceira geração do café, começou a trabalhar na corretagem do grão, e no final dos anos 20, seu irmão Nelson se juntou ao escritório, ajudando a expandir os negócios. Em 1933, sentindo necessidade de uma comunicação constante com seus clientes, o Escritório Carvalhaes deu início à publicação de um boletim informativo semanal. Ele continuou a ser editado ao longo
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dos anos, sendo hoje a mais antiga publicação periódica do café brasileiro. Atualmente o Escritório Carvalhaes é dirigido por Eduardo Hayden Carvalhaes, que trabalha com café desde 1945, e por seus filhos Eduardo, Sérgio e Nelson. O escritório atua nas áreas de corretagem, laudos, aprovação de amostras e embarques, prestando serviços também na área da exportação do café. RELAÇÃO INTRÍNSECA Quem trabalha no setor diz que a cultura do café jamais irá
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Não é só tomar um café, é saborear e saber que ele é encorpado não porque é amargo, mas porque tem uma persistência melhor no paladar Hallyson Ramos Barista
morrer na cidade. É intrínseco, faz parte do que Santos é e do que ela tem a contar. Para se reinventar a modernidade, lugares como o Museu do Café, um ícone municipal quando falamos do grão, oferece curso de barista ministrado por Hallyson Ramos. O intuito é criar na população a consciência de que para um café chegar até a mesa do consumidor, ele passa por um processo lento e artístico por trás. Para o especialista, sensibilidade no plantio, na colheita e no consumo é o que gera a qualidade do café.
“Não é só tomar um café, é saborear e saber que ele é encorpado não porque é amargo, mas porque tem uma persistência melhor no paladar. Isso traz a nota sensorial do café, seja ele coado ou expresso”, explica o barista do Museu do Café. A profissão de barista requer levar ao consumidor o melhor café. Orientá-lo sobre a maneira certa de como deve consumir , levar a consciência de como ele é separado, feito, produzido, até chegar ao consumidor final. O cuidado começa na fazenda. Sementes são escolhidas,
plantadas e mantidas em viveiros que dão origem às mudas. O barista explica que a planta demora, em média, dois anos para alcançar o ponto de colheita. “Depois disso a produção é anual, e aquele mesmo pé dura de 25 a 30 anos”. A etapa seguinte é a colheita. No Brasil, existem três tipos básicos: derriça, a dedo e mecânica. Durante o processo de derriça, um plástico é colocado embaixo da planta. Os grãos são arrancados e depositados sobre uma lona, evitando o contato com a terra. Mais caro e demorado, o
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chamado “a dedo”, exige mão de obra, e consiste na escolha apenas dos grãos maduros. Já a mecânica é rapidamente feita por uma máquina que acumula os grãos em sacas, que depois são despejadas em caminhões para transporte. No processo de separação,as chamadas “impurezas” e “defeitos”, como pedra, folhas e terra são eliminadas. Após isso, o processo de fermentação retira a parte úmida e deixa a semente pronta para a secagem. Na fábrica é onde eles se transformam no conhecido pó. “Para dar o sabor que o café tem, quando as sacas chegam aqui, são torradas adequadamente ao seu tipo”, explica o barista. É necessário respeitar onde o café foi plantado, as características e o aspecto. “É um perfil que designa a variação entre temperatura e fluxo de ar, e você tem controle para alterar isso. Após, ele é moído e o café pode ser feito”, ensina. Um processo anterior a esse é o da classificação. A Associação Brasileira da Indústria de Café seleciona o café em três tipos: o tradicional, superior e o gourmet. “O tradicional é o torrado e moído das marcas mais comuns e eles são avaliados mediante o que se tem de volume de defeitos e impurezas. Quanto melhor for a pontuação será mais alta podendo chegar até a um café gourmet”, detalha Hallyson. O Centro da Cidade tem na sua essência o café. “Existe uma nova onda onde jovens estão se interessando não só sobre tomar a bebida, mas também so-
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Acima, café industrializado. Ao lado, grão gourmet
bre tudo o que a engloba, como não misturar com açúcar porque é melhor para o paladar. E esse interesse leva ao crescimento da economia, porque esses mesmos jovens procuram cursos de barista, por exemplo”, explica o detalhista Hallyson, o expert do museu. “A cultura ainda não acabou porque ela se recicla. Cafecultura sempre existirá. No Centro você aprende na teoria e na prática sobre o café porque aqui há história. A raiz não se perde, não se muda”, finaliza.
O cenário de paredes amarelas e portas verdes é marca registrada do Centro de Santos desde 1912
O REI DA GONÇALVES DIAS E por falar em história, não tem como passar pelo local sem viajar no aroma delicioso que fica no ar. A rua Gonçalves Dias é a propria definição disso. O bom cheiro sai da chaminé do Rei do Café. O imóvel de janelas verdes e paredes amarelas ilustra a rua da região central de Santos desde 1912. Essa é uma das razões que faz tal década ser tão importante para a história da cidade. Neste período o município passou por diversas transformações. A Bolsa do Café era instituída oficialmente por um decreto federal, pois o grão era o principal pro-
duto agrícola em movimento na cidade e no país. No ano da inauguração do estabelecimento também começavam a funcionar os canais que atravessam a cidade, o sistema de saneamento projetado pelo sanitarista Saturnino de Brito. Quem deixou o local para o atual dono José Reinaldo Alves foi o seu pai Joaquim Augusto Alves, que faleceu em 1996. O que começou como uma pequena loja de torrefação e moagem de café, hoje se trata de um dos principais locais que cuida do processo de forma artesanal, sensível e, por isso, única.
QUARTA GERAÇÃO Um dos filhos de José, Victor Alves, também comanda o local. Para ele a maior mudança em relação ao consumidor de hoje é que ele se atenta mais a qualidade do produto. “Temos um cuidado redobrado. As pessoas são mais críticas quanto ao gosto, cheiro, textura. Tudo isso conta”. Apesar de considerar o Centro de Santos uma tradição quando se trata do grão, insiste na importância da inovação, pois mesmo sendo um lugar histórico, ele nada seria se não agradasse o seu fiel consumidor
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TRAFICADAS E PROSTITUÍDAS, AS POLACAS CONTAM UM CAPÍTULO TRISTE DA HISTÓRIA DO CENTRO DE SANTOS
O G R A M A O D A L O
A I M E O B DA
F
ome. Miséria. Pobreza. Doenças. Intolerância. Quando se vive em condições tão extremas, não há muito que fazer além de orar por uma salvação; por algo ou alguém que possa apresentar uma vida melhor. No auge do desespero, uma proposta para um bom casamento, trabalho, casa e conforto em outro país surge. E, para as meninas judias com idades entre 18 e 22 anos, que viviam no leste europeu, parecia a oportunidade de ouro. Em 1892, com muita esperança e uma mala pequena, entravam em navios e seguiam para os mais variados destinos, entre eles o Brasil, principalmente Rio de Janeiro e Santos. Durante o trajeto de mais de 9.887 km, os sorrisos perdiam o brilho com uma descoberta: foram iludidas. Quando o grande barco atracasse, o destino seria muito diferente do esperado, e envolveria prostituição e exploração sexual em troca de condições de sobrevivência. Foi assim que muitas mulheres
TEXTO: JULIANA CORREIA FOTO: JACQUELINE GARCIA DIAGRAMAÇÃO: RAFAEL ZACARIAS ARTES: LAVÍNIA BARRETO
foram traficadas e obrigadas a se prostituírem na região central de Santos, há quase um século. Discriminadas e esquecidas na Europa e pelo próprio povo judeu, a realidade não foi diferente no Brasil. Pouco se ouve falar das “polacas” (mulheres trazidas de países como Polônia, Lituânia, Letônia, Ucrânia e Rússia), mas em Cubatão, há um pequeno cemitério israelita com muito para contar. São 69 covas, sendo 54 de mulheres e 15 de homens, todos com algo em comum: a prostituição e o tráfico de pessoas. Tudo que as polacas queriam era um enterro decente: descansar a sete palmos da terra, com nome, túmulo e lápide, não como indigente ou próximo aos muros de qualquer cemitério - punição para prostitutas, cáftens e suicidas. O FIM DA ESPERANÇA Estima-se que as polacas tenham chegado ao Brasil por volta de 1867, porém, foi em 1892, com a inauguração do Porto de Santos que a cidade litorânea começou a receber mais essas mulheres. Eram jovens pobres, geralmente de famílias com muitos filhos, em que o pai não tinha dinheiro para pagar o dote exigido na época e conseguir assim bons maridos. Era um período pré-guerra, no qual muitos passavam fome. E, se aproveitando da situação, sur-
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giram os cáftens, os aliciadores de uma rede de tráfico internacional chamada Zwi Midgal, com sede em Buenos Aires, na Argentina. O interessante, é que a palavra ‘cáften’ se refere a um sobretudo, peça de roupa muito utilizada por aliciadores. Esse termo foi abrasileirado e hoje o conhecemos como cafetão. Quem refez o caminho delas foi a historiadora Beatriz Kushnir, que lançou em 1996 o livro Baile de Máscaras. Ao chegar ao Brasil e entender que seriam escravas e propriedades desses homens, muitas garotas preferiam o suicídio. “Há um versículo da Torah, do antigo testamento, que diz que as filhas de Israel não cometerão adulté-
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Para eles, estar ao lado de uma prostituta já era considerado pecado Wellington Borges historiador
Para os judeus, não há o costume de deixar flores e velas. Em vez disso, são utilizadas pedras brancas
rio, não se prostituirão e nem se suicidarão. Logo, ser prostituta ou se matar, não é aceito. Elas se sentiam rejeitadas”, explica o historiador Wellington Borges, responsável pelas visitas monitoradas ao cemitério das polacas. A rotina envolvendo serviços sexuais era - e ainda é - perigosa. Além dos riscos de contrair doenças sexualmente transmissíveis, a integridade física era ameaçada por clientes e pelos cáftens. Porém, por incrível que pareça, muitas mulheres se envolveram e construíram suas famílias com os aliciadores. “Elas eram realmente traficadas, mas algumas acabavam construindo uma relação amoro-
sa com os cáftens. No final das contas, muitas mulheres acabaram virando as proprietárias dos bordéis e cafetinas”, diz Borges. O tráfico se deu entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Apesar dos esforços pela liberdade, muitas polacas não conseguiram voltar ao país de origem e morreram na cidade. As polacas começaram a renascer quando a historiadora Beatriz Kushnir, em uma dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense, elaborou um trabalho que, anos depois, se tornou um livro. Atualmente, ela é referência no assunto e diretora geral do Arquivo Geral da Cida-
de do Rio de Janeiro. “O mais importante não é o que elas fizeram para sobreviver e ganhar dinheiro, mas o que elas fizeram para se reinventar nesses lugares. Elas precisaram construir uma associação de ajuda mútua para se manterem judias, e ainda unidas e fortes. Para onde eles vão, homens e mulheres, eles precisam se manter judeus. Talvez tenha sido isso que mais me encantou”, disse Beatriz em uma entrevista no canal TV Brasil. Para ela, é triste ver como as polacas são como fantasmas para a sociedade judaica, que em alguns lugares trabalham para que os cemitérios percam o simbolismo, a referência e o respeito a
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essas pessoas traficadas no século passado, permitindo enterros de outras pessoas, descaracterizando assim o Cemitério das Polacas. A REJEIÇÃO Ao entrar no Cemitério de Cubatão, basta mirar na capela e virar à esquerda para se deparar com um portão suntuoso no lado esquerdo, de cinco metros de altura e dois de largura, que se sobressai num paredão de túmulos com limo, pedaços quebrados, teias de aranha e flores de plástico. Fechado com três cadeados, o acesso se dá mediante visita monitorada. Ao abrir as grandes e bem cuidadas portas com estrelas de Davi no meio, os visitantes se deparam com uma espécie de “champanheira” com pedras brancas, que servem para deixar nos túmulos. É uma forma de mostrar empatia e respeito aos mortos, assim como é comum levar flores e velas em cemitérios cristãos. O Cemitério Israelita existe desde 1929, quando as prostitutas que integravam a Associação Beneficente Israelita de Santos adquiriram o terreno, devido a um desejo de ter um local próprio para enterrar as associadas. Em cemitério judeu comum, não eram aceitas. De acordo com Borges, o costume judeu diz que prostitutas e suicidas são enterrados na parede, próximo aos muros, que é um sinal de desprezo. “Os judeus acreditavam que estar perto e pisar no mesmo local era pecar da mesma forma, como se estivessem se deitando com uma delas”, conta. Num primeiro momento, as covas não eram em Cubatão.
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Eram próximas de onde estão os tanques da refinaria, na Estrada Velha de Santos, junto com o Cemitério Municipal. Porém, na década de 1950, quando o Governo Federal escolheu o espaço para sediar a Refinaria Presidente Bernardes, o cemitério precisou ser transferido. Foi em 1953 que houve o translado dos corpos do Cemitério Municipal, que ainda era muito pequeno. Nesse caso, como as polacas haviam comprado o terreno, por volta de 1920, a Prefeitura cedeu, em uma espécie de permuta, uma área dentro do Cemitério de Cubatão a elas. Na década de 1960, a Associação das Polacas já estava acabando, porque todas estavam muito idosas. As poucas que ficaram foram acolhidas pelo Lar Golden Meire, em São Paulo, e o cemitério acabou abandonado. Quase trinta anos depois, graças ao esforço da Associação Cemitério Israelita de São Paulo, conhecida como Chevra Kadisha, junto com a Prefeitura de Cubatão, houve uma restauração que fez a história dessas mulheres se tornarem conhecidas. “As pessoas passavam por aqui e não entendiam, outros falavam que era o cemitério dos japoneses, ou simplesmente o ‘cemitério dos gringos’, até porque não sabiam de quem era. São 54 sepulturas femininas e 15 masculinas, que a princípio são os cáftens. E nós mesmos, historiadores, não conhecemos a história de vida de cada um. Na verdade, só conhecemos de duas pessoas”, diz Borges.
EM BUSCA DO PASSADO PERDIDO Annie Symberlist e Henrique Luiz Sims eram bisavós da vendedora Fernanda da Rocha, de 30 anos. O pouco que se sabe sobre eles é que se casaram em Londres entre 1915 e 1916, e que vieram para o Brasil em 1927. O nascimento da avó da vendedora foi em 1929, em São Paulo, e o ano de chegada em Santos é desconhecido. “Eu tenho dúvida se a Annie foi traficada até hoje. Consegui algumas informações com a comunidade judia da Polônia e sei que ela veio de uma família muito pobre, pois me mandaram recortes de jornal escritos na língua deles. Meu tataravô passou necessidades lá, por isso Annie deve ter ido ao Reino Unido, para tentar uma vida melhor”, conta Fernanda. A princípio, o intuito de conhecer mais sobre a história familiar veio da necessidade de escrever o nome corretamente. Mas depois que molhou a pontinha dos pés nesse mar profundo e desconhecido, passou a rastrear o máximo que pode da vida deles. “Em Santos, falta eu checar um imóvel na Rua Amador Bueno, e talvez em Londres
Apesar da bisneta estar atrás de informações, os netos que conviveram com Annie não aceitam o possível passado
para saber mais sobre o casamento deles e como foi a vida enquanto moraram lá. Eu não sei se eles faziam parte desse tráfico de mulheres brancas ou só simpatizavam com elas e por isso foram enterrados no mesmo local. Pois diferentemente da vida de muitas, minha família teve imóveis na cidade e deixou herança suficiente para que minha avó nunca precisasse trabalhar”, explica. Annie chegou ao Brasil com 37 anos e Henry, com 45. Faleceram com 73 anos e 69 anos, respectivamente, sem deixar muitas
pistas. Porém, a história do casal ainda é a mais “completa” quando o assunto é contar sobre a exploração das polacas. Infelizmente, Fernanda ainda tem muitas dificuldades para saber sobre seus bisavós, mesmo que o pai e o tio tenham crescido na presença deles. Para os netos de Annie e Henry, essa história nunca foi muito bem vista, e preferem não se aprofundar ou entrar em detalhes. Talvez esse mar realmente seja muito mais escuro do que possamos imaginar, ou simplesmente alguns prefiram fechar os olhos
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