FEMININO OU MASCULINO? Marcella Sant Anna, a mulher que atravessou a fronteira de gêneros sem perder a pose
+14 PERFIS DE PESSOAS INSPIRADORAS
Revista Laboratório do 4º Ano de Jornalismo UNISANTA
Junho|2016 - Ano 1 - Edição 1
#VIRALIZOU
Entrever Pessoas
REVISTA LABORATORIAL DO 4º ANO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL COM ÊNFASE EM JORNALISMO DA UNIVERSIDADE SANTA CECÍLIA (UNISANTA) - JUNHO 2016 COORDENADORES PROFESSORES HELDER MARQUES, RAQUEL ALVES E NARA ASSUNÇÃO
PARTICIPARAM DESTA EDIÇÃO ALEXSANDRA IZAR, ANDRESSA LARA, ALYNE ISABELLE, BIANCA SOUZA, BRUNA FARO, BRUNO SECCO, BRUNO LESTUCHI, CAIO MALTA, CAROLINE MORAES, CAROLINE OLIVEIRA, DANIEL ARIANTE, DANIELA SILVA, DUDA MATIAS, FERNANDO MARANO, GRAZIELA SIMÕES, IRINEU PAIXÃO, JADE AQUINO, JESSICA SENA, JHENIRFFER ADORNO, JULIANA BRAZ, JUNIOR FARIA, KAROLINA SPILA, KAROLINE OLIVEIRA, LAURA BOJART, LEONARDO BARBOSA, LETÍCIA MACHADO, LUCIANA MARQUES, LUCAS MUSETTI, LUCAS RODRIGUES, MARCELO HERMSDORF, MARIANA FERNANDES, MARINA TORRES, MICHELE ROCHA, NATHALIA PINI, RAFAELA DIONE, RANIER GRANDÉ, ROBERTA CAPRILE, RODRIGO BERTOLINO, SARA HOFFANN, ROMILSON ALLISON, TAYLA LORRANE, THAISE SOUZA E VERIDIANA AUGUSTO, WILLIAN MATIAS.
2 VIRALUNISANTA.BLOGSPOT.COM
No fundo, é isso que a gente espera quando lê uma entrevista. Queremos saber o que o sujeito pensa, não só o que ele diz. Ler seus pensamentos, enxergar o mundo através do seu ponto de vista, conhecer suas verdadeiras intenções e sentimentos. Entrevistar é enxergar através de alguém. Além de fazer a pergunta certa na hora certa, é observar situações reveladoras. Um desvio do olhar, uma tosse forçada que espanta a timidez ou um sorriso no canto da boca que fala mais do que dezenas de parágrafos. Esta edição é tão plural quanto as histórias dos personagens retratados aqui. É fruto do esforço coletivo dos alunos do 4º ano de Jornalismo da UNISANTA para dar continuidade ao trabalho que começou na edição número 0 da revista Viral. Nesta edição tomamos a liberdade de assumir a linguagem visual e o estilo de diagramação, da primeira à última página. Tudo para alcançar a verdade de cada personagem entrevistado. Os perfis a seguir são mergulhos no universo particular de pessoas reais, de carne e osso, que por serem exatamente como eu e você, têm histórias fascinantes para contar. Porque como disse o mestre Gay Talese, “as pessoas comuns podem ser extraordinárias quando as conhecemos bem”.
4 Claudenice, a mulher que aceitou o desafio de liderar sua comunidade
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Conheça Luiz Fernando Almeida – ator independente que segue a linha “faça você mesmo”
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No Sul Maravilha, José Rodrigues fez as pazes com o destino
As histórias de Marion Oliveira e sua luta contra o tempo
Lutar pelo direito dos autistas é a bandeira de Ana Lúcia Félix
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Longe da guerra, Salam encontra a família e a paz
10 | Grafiteira, Mag Magrela, usa a arte para falar do papel da mulher no mundo 16 | Sônia Maria, a primeira montoneira de bonde do Brasil 38 | Baixa visão nunca impediu Edson Junior de enxergar longe 52 | Fernanda Vicente, vadia com muito orgulho 58 | CAPA Marcella SantAnna e a difícil transição de gênero 64 | O campeão Olímpico de vôlei, Rodrigão, mira a educação esportiva 70 | Gabrielle Roncatto, a menina prodígio, em busca do sonho olímpico 76 | Mestre Dique revela segredos do surfe aos deficientes físicos 80 | João das Cobras, ervas, raízes e chás que curam quase tudo
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SER OU SER, EIS A QUESTÃO 4 CULTURA
CONHEÇA A HISTÓRIA DO SANTISTA LUIZ FERNANDO ALMEIDA, UM ARTISTA INDEPENDENTE POR VOCAÇÃO
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no de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), diagnosticado na infância, que o faz se dedicar a muitos projetos ao mesmo tempo. Quando criança ele frequentava a Igreja Batista com a família e foi lá que surgiu o talento artístico do pequeno Luiz. “Eu era muito exibido e desde criança falava que seria ator. Com 10 anos, já trabalhava com animação de festa”. Quando entrou no projeto Carlitos, iniciativa da Prefeitura para fomentar as artes nas escolas, Luiz teve certeza que ser ator era a sua vocação. Sob os olhos atentos da professora Miriam Vieira, a qual considera sua “mãe teatral”, o jovem aprendeu a atuar, cantar, dançar e produzir. De acordo com Miriam, Luiz já mostrava muita força de vontade aos 14 anos de idade. Ela lembra
que na montagem da peça “Capitães de Areia” com os alunos do projeto, deu cerca de R$ 50 para o jovem montar o figurino da peça. “Falei para ele ir a brechós à procura de ternos e sapatos para os meninos. Ele trouxe quase a loja toda com o dinheiro que dei! Então, disse que ele se daria muito bem fazendo produção. Tenho um baita orgulho de ter ajudado na formação dele”.
Foto: Divulgação
m um confortável apartamento próximo à praia do José Menino, em Santos, vive o ator e produtor cultural Luiz Fernando Almeida, de 42 anos. Conhecido por seguir a linha Do it Yourself (DIY), ou “faça você mesmo”, o artista produz seus espetáculos de forma independente e é capaz de transformar qualquer espaço em palco de teatro: de casarões antigos a residências. Lugares incomuns como esses já receberam as peças “Dama da noite” e “Gotas de Codeína”, ambas estreladas pelo ator. Algo assim só poderia sair de uma mente que fervilha ideias constantemente. A vida de Luiz é uma correria frenética e ele mesmo se considera um cara inquieto e sempre em movimento. Com as pernas balançando sem parar e o cigarro sempre entre os dedos, mesmo apagado, o ator conta que sofre de Transtor-
“O trabalho tem foco na população LGBT, mas não é voltado só para estas pessoas” SAINDO DO ARMÁRIO Com o sonho de ser artista e um pouco de dinheiro vindo do trabalho de animação em casas noturnas, aos 17 anos Luiz se inscreveu na Escola Superior de Artes Célia Helena, em São Paulo. Pena que a família não o apoiou na decisão. E o conflito na casa do artista aumentou quando ele assumiu para os pais que era homossexual. Nesta nova fase, Luiz viu sua relação com a família desmoronar e acabou rompendo relações com o pai. Mesmo assim foi à luta. Tinha como se sustentar por dois meses e passou a dividir um apê com um amigo. Porém, enfrentou a difícil vida de um ator na capital paulista. Luiz é do tipo que conta com a sorte e em pouco tempo conseguiu trabalho no espetáculo infantil “Caxuxa”, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Mesmo assim, a pindaíba era grande e foi obrigado a abandonar o curso no Célia Helena. Teve que dividir seu tempo entre os palcos e bicos de garçom. Luiz encarava tudo com bom humor e sabia como entreter os clientes. “Quando ia fumar, passava na cozinha do restaurante e pegava duas laranjas. Elas viravam tetas e partia para o salão. Os clientes adoravam”, relembra. As coisas só começaram a me-
lhorar quando ele foi trabalhar em um bar/brechó chamado Superbacana, na Vila Madalena. Lá seu horário era mais flexível e por isso conciliava seus projetos como ator. DE VOLTA PARA CASA A ideia de “deixar de ser um operário do teatro” se transformou em mantra. Luiz retornou a Santos, em 2006, para se reconciliar com a família e ajudar o pai doente. No início envolveu-se com produção de festas na região e na Capital. Também montou uma produtora de shows, a Superbacana, em homenagem ao bar onde trabalhou. Incentivado por amigos, voltou à cena teatral em março de 2009. Depois de dez anos longe dos palcos, o artista reestreou em “Quando os Olhos Se Fecham”. O espetáculo teve ótima repercussão e recebeu prêmio Plínio Marcos de Melhor Ator de Comédia. Sua consagração veio com o monólogo “Dama da Noite”, em 2011. Baseado no conto homônimo de Caio Fernando Abreu, o ator encarnou “uma bicha velha”
que não se sente inserida no mundo em que vive. “O trabalho tem foco na população LGBT, mas não é voltado só para estas pessoas. A mensagem é dar visibilidade e conversar sobre sexualidade”, afirma Luiz. A produção é independente e apresentada para plateias pequenas em espaços alternativos, escolhidos a dedo pelo artista. A pequena equipe é formada pelo diretor André Leahun, que também é iluminador, e o maquiador Cleber Kleis. Segundo Luiz, o trabalho funciona como se fosse em família. “Quando fui convidado para participar deste projeto topei de cara”, conta o maquiador. “Eu conheço o Luiz pela respiração e sei quando ele está uma pilha de nervos. Mas não rola estresse e nos conhecemos muito bem”. “Dama” é um grande sucesso. Já foi finalista no prêmio Aplauso Brasil 2013, nas categorias Ator, Durante a sessão de fotos em sua casa, Luiz mostrou-se mais tímido do que nos palcos
Como general do Bazar Cafofo, Luiz faz questão de trazer os produtos mais descolados para os estandes
Diretor e Figurino e foi indicado ao prêmio Papo Mix da Diversidade 2012, na categoria Espetáculo Teatral. A peça também virou um curta-metragem com direção de Dino Menezes. “As primeiras apresentações foram para poucas pessoas. Mas de repente começou a ganhar vulto e fizemos temporadas longas em Santos, na Capital e em várias partes do Brasil”, conta o diretor. GOTAS DE LIBERDADE O monólogo “Gotas de Codeína” veio na sequência. O espetáculo é encenado em apartamentos e lugares inusitados, jamais em teatros. Apenas dez pessoas acompanham a peça por sessão. O diferencial não é só o cenário escolhido, mas também o tema: suicídio. Para assistir “Gotas” é preciso acessar a página do espetáculo no Facebook
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e descobrir onde será a próxima apresentação. A partir deste primeiro contato, o público conhece a história de Cesar, um homem amargurado e deprimido por não poder mostrar ao mundo quem realmente ele é. “Se o ser humano pudesse viver sua sexualidade com toda a plenitude, teria o direito de entender o que lhe dá prazer e descobrir quem ele ama. Como somos criados de uma forma cristã, tudo é pecado”. Entrar em um estado de concentração que permita atingir a emoção do personagem é outro ponto importante para a encenação. “Quando o público chega, o Cesar está apropriado do espaço e já se encontra em mim há horas. Isso porque o ator nada mais é do que uma carcaça a serviço do personagem”. BAZAR DA DIVERSIDADE Luiz não vive apenas do teatro. O artista é organizador de eventos como Combo Cultural, Bazar Cafofo, Verão Teatral, Teatro nas
Bibliotecas, Teatro ao Meio Dia e a SANSEX (Mostra da Cultura da Diversidade Sexual de Santos). De todos, o Bazar Cafofo é o que dá mais trabalho, diz o ator. “Organizá-lo transformou minha vida por completo. Tenho dois funcionários e o telefone não para”. O projeto começou vendendo roupas na internet mas se tornou um evento físico e multicultural, que reúne moda, música e arte. “Descobri que tinha coisas que nem imaginava que existiam. Vendi tudo tão rápido que meus amigos que trabalham com economia criativa começaram a pedir ajuda para vender as tralhas deles”. O ator afirma não ser um comprador compulsivo, mas gosta de moda e de se vestir bem. Sua cor favorita é o preto. “Eu sou um ser humano exagerado e não sei usar cores. O preto é prático para quem vive de teatro. Mas o gosto pela cor vem desde a adolescência, quando passei por uma fase gótica”.
TEXTO Alexsandra Izar FOTOS Caroline Oliveira e Divulgação DIAGRAMAÇÃO Junior Faria
Foto: Adilson Felix/Divulgação
“Acho até que sou casca grossa, mas no fundo sou uma moça”
TATOO DA SUPERAÇÃO Negras também são as seis tatuagens espalhadas pelo corpo de Luiz. De acordo com ele, uma das tatoos favoritas é representada por um copo quebrado com a inscrição frágil no bíceps direito. Questionado sobre o motivo do desenho, o ator explica que as pessoas o conhecem como um cara forte e determinado, e que pouca gente sabe como é na intimidade. O amigo Betinho Neto confirma este lado sensível do artista, e salienta que na maioria das vezes o lado sério de Luiz se sobressai. “Com ele é tudo preto no branco”, comentou. Mas tudo isso não passa de uma simples carapaça, conforme o ator, que confessa vender esta imagem. “Aprendi a superar minha fragilidade e tenho aptidão para contornar a crueldade das pessoas. Só queria dar o benefício da dúvida para quem não me conhece. Acho até que sou casca grossa, mas no fundo sou uma moça”
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A RUA É DELA! ALÉM DE IMPRESSIONAR COM O COLORIDO DE SUA ARTE, MAG MAGRELA CHAMA A ATENÇÃO PARA O PAPEL DA MULHER NO MUNDO ARTÍSTICO
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teliê do Murique, Vila Madalena, espaço de trabalho de Mag Magrela. Lugar calmo, de paredes brancas, com plantas, mesas e cadeiras feitas de materiais reutilizáveis. Tudo parece combinar com a personalidade de Carolina Maciel, a mulher e artista plástica por trás do pseudônimo. Sob o olhar atento de uma de suas obras, “Ali onde me escondo”, Mag conta que a mulher de olhar triste é ela. “Elas são eu. Todas as que faço são diferentes, mas ao mesmo tempo são uma só”. Mas o caminho para descobrir sua identidade artística foi longo. Primeiro Mag teve que se descobrir como pessoa. Criada na Vila Madalena, bairro de São Paulo famoso por suas expressões culturais, que atrai turistas de várias regiões, ela cresceu admirando e absorvendo todo tipo de informação. Em casa, ainda criança, via o pai pintar quadros. Todas essas influências renderam apenas algumas telas feitas em horas livres; de resto, foram guardadas como lembranças. Mag ingressou na universidade, mas logo percebeu que não era algo que a motivava. “Nunca passou pela minha cabeça levar a sério. Eu estava fazendo faculdade de Administração, totalmente em uma outra vibe”.
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Embora a arte fosse fonte natural em sua família, ela conta que é “autodidata” e que “não sabia que dava para viver disso”. A reaproximação com a arte aconteceu durante uma crise existencial. Sem se identificar com o caminho que tinha escolhido, começou a sair com o irmão e redescobriu a cidade de São Paulo e seus moradores. A moça, agora com 22 anos, conheceu grafiteiros e quis também se expressar. Quando começou sua “história na rua”, como ela mesma chama, a então jovem mulher se viu intimidada e buscou fugir do que considerava “desenho de menina”. “Minhas criações eram mais agressivas. Eu não queria que alguém visse e pensasse: Ah, isso foi feito por uma mulher. Fazia personagens masculinos e infantis, mas percebi o grande poder de pintar nas ruas e busquei mudar, desenhar mais, achar meu estilo”. No início, Mag trabalhava em grupo. Aprendeu técnicas e esti-
los, debateu temas e trabalhou em equipe, mas ela não nega, prefere a liberdade de poder desenhar e pintar como deseja. Antes, como explica, as obras eram resultado de um conjunto de ideias. Hoje, seu traço a representa. Na Galeria King Cap, que fica a seis quadras de seu ateliê está a sua mais nova exposição, “Não Trago seu Amor de Volta”. A mostra mistura quadros, peças de arame, cerâmica e assemblagens (incorporação de objetos do dia a dia na obra), mostrando que seu talento vai além das pinturas. Os visitantes também podiam se expressar e interagir com as obras, deixando mensagens ou desenhos em um caderno ou ainda descobrir a cada página de um livro os esboços feitos por ela. Na rua ao lado do Beco do Batman (uma pequena viela considerada uma galeria a céu aberto, com paredes inteiramente dedicadas ao grafite), encontramos a sua primeira obra,
“Entre cacos e cortes, onde a dor se redime”. Assim como alguns de seus desenhos, o nome foi dado por uma senhora que passava pelo local. “Cada um tem sua interpretação e o nome que foi sugerido por ela fez sentido no que eu buscava transmitir”, explica. HISTÓRIAS NOS MUROS O trabalho mais atual de Mag Magrela tem total inspiração na luta feminina na sociedade, mostrando as mulheres de forma pensativa e angustiada, contrastando com a personalidade forte do sexo que não tem nada de frágil. Com um trabalho forte, Magrela consegue inspirar outras grafiteiras, como aconteceu com Aline Benedito, mais conhecida como Fixxa, a principal representante do grafite feminino na Baixada Santista. “O trabalho dela é incrível. É inspirador como ela trabalha com a nossa representatividade”. Com traços marcados, cores em excesso (principalmente laranja) e proporções distorcidas, ela procura expressar personagens machucadas ou sorridentes e pensativas. Spray e tinta esmalte são os principais materiais que ela usa na criação de seus desenhos. Além deles, um
“Valenti. Olhos em ti”. Red Marquet, Londres, Inglaterra 2015
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Acima, “Ali onde me escondo”, São Paulo, Brasil 2014
diferencial da arte da Magrela é o uso de azulejos para compor seus desenhos. “A paleta de cores surgiu de forma intuitiva. Percebi que o laranja contrasta incrivelmente com as paredes cinzentas da cidade. É lindo, chama a atenção”. Já a opção por azulejos foi a forma de colocar um pouco da sua família no trabalho. Seus avós eram portugueses e tinham como tradição a instalação do azulejo em paredes. A força e vulnerabilidade dessas figuras femininas estão nos muros em bairros nobres e na periferia, onde Mag diz serem palco de quebras de tabus e conflitos. “A pintura na rua nos tira da bolha. Desfaz nós e preconceitos. Tanto das pessoas em relação a mim, por ser mulher, como de mim em relação ao todo”, acredita. Seja no ateliê ou na rua, Magrela tem seu estilo próprio e faz sempre o seu ritual. Com os cabelos presos em um coque alto, roupas largas e claras, está sempre acompanhada de seu caderno com capa preta, que a auxilia enquanto faz o esboço de sua
Ao lado, “O que me liga a você está esperando o cheiro de terra molhada”, Finsbury Park, Londres 2015
mais nova personagem no muro. Ágil, ela afirma gastar uma hora, em média, para terminar suas obras. Mag cresceu em uma família tradicional paulistana e, embora o pai tenha incentivado suas expressões artísticas com a pintura, quando o assunto é grafite o estímulo fica apenas na infância. “Não que eles sejam contra, até vão em alguns lançamentos, mas não converso com eles sobre a minha arte”. Ela conta que criou um espaço ao seu redor, portanto não conversa com seus pais sobre o seu trabalho. “Foi algo natural, eles sabem que eu grafito, mas nunca me perguntam sobre, então me acostumei com essa distância e hoje até prefiro assim”. Apesar dos perigos que uma cidade como São Paulo proporciona, Mag relata nunca ter estado em situações complicadas por
“Elas são eu. Todas que faço, diferentes, mas ao mesmo tempo uma só”
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ser mulher e estar sozinha na rua grafitando. Mas já perdeu a conta de quantas vezes já se envolveu em confusões com a polícia por estar pintando em muros proibidos. A primeira vez foi em Itaquera, zona leste de São Paulo. Ela lembra que usou seu lado mais feminino para escapar da situação. “Ser mulher nessas horas tem suas vantagens, fiz um charme, me liberaram e até deixaram que eu continuasse”, conta, aos risos. NA GRINGA Em 2012, a produtora americana Alexandra Henry descobriu o trabalho de Mag durante um passeio pela cidade de São Paulo e, através de amigos em comum, conheceu a artista. “Nós rapidamente sentimos uma empatia através da nossa paixão pelas artes visuais e nos tornamos grandes amigas desde então”. Um ano depois, Alexandra começou seu novo projeto “Street Heroines”, um documentário para a web com artistas de rua do sexo feminino da América do Norte e do Sul. E Magrela não poderia ficar de fora. “Ela é uma artista apaixonada que acredita em partilhar o seu trabalho para que os outros possam pensar de forma diferente. Impossível que ela não fizesse parte”, sublinhou
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a americana. A primeira parte do documentário foi gravada no Brasil e alguns meses após a sua volta a Nova York, Alexandra convidou Magrela para a sua primeira viagem internacional. Em outubro de 2014, a artista de rua viajou para Nova York, onde pintou seis muros em duas semanas. Usando barcos e lágrimas, ela teve como objetivo levar a seca que na época acontecia em São Paulo, para as suas obras, deixando suas personagens nos bairros do Brooklyn e Manhattan. A experiência de grafitar no exterior mostrou a Mag o quanto o artista brasileiro é valorizado
Acima, “Sala de Jantar”, Lisboa, Portugual 2015 Abaixo, “Se Tarsila hoje em dia fosse, Corasebo de concreto - loei - seria”, Greenpoint, Nova York, EUA 2014, ao lado, “Guardiã dos Portos”, Porto, Portugual 2015
pelos estrangeiros. “Essa viagem me mostrou como o nosso universo criativo e a mistura de culturas nos faz importantes lá fora”. Desde então seus desenhos se espalham por outros lugares, como o Rio de Janeiro, Lisboa e Londres. Além de sua trajetória no grafite, Mag se aventura por outros caminhos. Com dois livros publicados nos últimos dois anos, o primeiro, intitulado “Pintame”, em parceria com Lilá Botter, é o segundo número de uma coleção para colorir para adultos composto por mais de 70 desenhos. O outro é uma publicação da Canvas Galeria de Arte intitulado “Photo Grafite”, do fotojornalista Paulo Matheus Lacerda, composto por 162 registros dos maiores grafiteiros do mundo. Hoje, aos 31 anos, Magrela é considerada por sites internacionais de arte como Street Art Brasil, Dumbwall e Inspiriting City, além dos jornais The NYC Mind e Brazil Observer como uma das 20 maiores grafiteiras do Brasil, título também apontado por revistas brasileiras como a TPM e Veja São Paulo Ela afirma que essa consa-
Além de grafite, Magrela também trabalha com cerâmicas gração só foi possível a partir do seu amadurecimento pessoal, o autoconhecimento e a aceitação de sua condição feminina. “A minha arte é a minha vida. As figuras que faço são autoretratos, onde eu me expresso para limpar o coração. Todas temos isso dentro de nós, então, as mulheres se identificam”
POR Letícia Machado FOTOS Daniela Silva/Arquivo Pessoal
“A minha
arte é a minha vida. As figuras que faço são autoretratos, onde eu me expresso para limpar o coração”
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SÔNIA, A PRIMEIRA MOTORNEIRA DO PAÍS
16 CULTURA
ELA TEM 51 ANOS E SEMPRE SONHOU EM DIRIGIR UM BONDE ELÉTRICO
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as últimas décadas as mulheres vêm conquistando mais espaço no mercado de trabalho. Em alguns lugares, ninguém jamais imaginou ver uma mulher exercendo tal profissão. Quer um exemplo? Você já viu uma mulher conduzindo um bonde? Então, pode pegar carona na janelinha e fazer esse passeio com a gente a bordo de um bonde com toque feminino. Olhando de fora a gente nem imagina, mas de perto fica fácil perceber que o bonde verdinho está mais rosa. A responsável pelo charme no transporte é Sônia Maria Nardes Lisboa, a primeira motorneira dos bondes de Santos. Sônia integra um grupo de sete motorneiros e seis condutores (colaboradores que cobram as passagens). De terça a domingo, eles proporcionam passeios agradáveis de bonde pelo Centro Histórico, relembrando a importância do Porto para a era do café. Colaboradora da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) por 15 anos, Sônia tem experi-
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ência na condução de outros veículos. “Quando abriu uma vaga para trabalhar no bonde, eu era a única na empresa que, além de ter todas as categorias de habilitação, possuía os cursos necessários para conduzir o elétrico. Fiquei eufórica e garanti minha chance”, conta a motorneira. A profissional ainda passou por uma série de treinamentos durante mais de um mês para aprender e se adaptar a todos os comandos. Segundo ela, a principal diferença está em dominar o veículo nas mãos. “Em um carro, o controle está basicamente nos pés. No bonde tudo é na mão, por isso tem que andar de forma cautelosa” revela. PRECONCEITO Quando decidiu tirar a habilitação categoria E (CNH para dirigir carreta), Sônia ouviu que isso era coisa para homem. A intenção dela era tirar a categoria D, mas após ouvir que não seria capaz de dirigir uma carreta mudou de planos. “Não gostei do que ouvi, parecia um desafio, sabe? Foi aí que decidi ir até a auto-escola, perguntei o valor e
Passeio de bonde relembra a importância do Porto para a era do café
“Quando abriu uma vaga para trabalhar no bonde, eu era a única na empresa que, além de ter todas as categorias de habilitação, possuía os cursos necessários para conduzir o elétrico”
TEXTO E FOTOS Mariana Fernandes DIAGRAMAÇÃO Jade Aquino EDIÇÃO Jade Aquino
“Ainda existe muito preconceito com as mulheres, principalmente quando estão na direção” era o mesmo da carta D. Decidi me matricular e apareci com a carta E nas mãos”, conta. Na época, Sônia foi a primeira mulher a se formar carreteira em São Vicente. O preconceito ainda não acabou. Até hoje a motorneira mais famosa da Cidade ouve frases do tipo “Cuidado aí hein, será que esse bonde não vai sair do trilho?” ou “nossa, isso não é muito pesado para uma mulher?”. “Sabe, ainda existe muito preconceito com as mulheres, principalmente quando estão na direção. É por isso que estou aqui, para provar que dirigimos sim, e muito bem por sinal”, comenta. RECONHECIMENTO Avó e mãe de três filhas, Sônia é motivo de orgulho para a família.
“Minhas filhas adoraram, postaram nas redes sociais, chamaram as amigas para me ver e a diretora do colégio delas até colocou uma reportagem no mural. Muito legal!”, diz Sônia. Quando recebeu a proposta para ser motorneira dos bondes da cidade, ficou encantada. “Muito gratificante as pessoas reconhecerem. A mulher hoje em dia está em todos os lugares”, comenta. Wanderley Emanuel Mattoso, que atua há 20 anos na CET Santos e há 3 anos como condutor, fala sobre a experiência de trabalhar com Sônia. “Eu gostei, achei muito interessante, foi um incentivo para mudanças. Gosto de trabalhar com ela. O cenário mudou, está mais feminino, basta olhar pra ela”, afirma Mattoso. O sucesso de Sônia vai muito além do amor de sua família e do reconhecimento no pátio da CET. É na hora do trabalho mesmo que a motorneira recebe o carinho dos turistas. Para a aposentada Aparecida Gomes Ribeiro, de 66 anos, o título é motivo de orgulho para todas as mulheres. “É a primeira vez que vejo uma mulher conduzindo um
bonde. Fico feliz, pois ela está nos epresentando. Sou de um tempo em que, nós mulheres, não tínhamos muita voz, mas hoje em dia vejo esse cenário mudando e cada conquista é motivo de orgulho”, afirma Aparecida. O paulistano Ricardo Pereira não vê diferente. “Venho a Santos sempre que possível. Passei minha infância brincando nessas praias e, hoje, resolvi fazer um passeio diferente com meu filho. É gratificante saber que estou conhecendo a primeira mulher motorneira do País. Pelo jeito elas vão mesmo dominar o mundo. Quem sabe com uma visão feminina a gente não consegue um mundo mais compreensivo”, declara. Sônia deixa um recado não só para as mulheres que sofrem preconceito, mas também para aquelas que não se sentem capazes: “ O recado que eu deixo é que na prática tudo se pode fazer, nada é impossível. Se alguém já fez é porque dá para fazer, independente do sexo. O sexo na verdade é o que menos importa. E é esse legado que eu deixo para a minha irmã, minhas filhas e para todas as mulheres”, finaliza
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Sônia encara qualquer desafio e é motivo de orgulho para sua família
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QUANDO EU “
MERGULHEI
NO AZUL DO MAR,
20 INCLUSÃO
SABIA QUE ERA
AMOR”
A MÚSICA DO GRUPO 14 BIS RESGATA O SENTIMENTO DE ANA LÚCIA FÉLIX AO DESCOBRIR QUE O FILHO ERA AUTISTA
Cada detalhe da decoração remete aos filhos. No quadro, as iniciais dos nomes de André, Carolina e Caco
“Chegaram a falar que eu não sabia cozinhar e nem alimentar meu filho direito. Eu já tinha experiência com dois filhos e nada disso tinha acontecido. Fiquei aflita por não obter respostas”
22 INCLUSÃO
“T
udo estava programado para acontecer”. Esta é a frase que melhor define a mudança que ocorreu na vida da professora aposentada do Ensino Fundamental, Ana Lúcia Leite Félix, de 51 anos. Mãe de André Felipe, hoje com 26 anos e Ana Carolina, com 21, ela foi presenteada em 1998, com a chegada de Carlos Alberto, hoje um rapaz alto, magro, de sobrancelhas largas e olhar distante, que já completou 18 anos. “Quando veio o terceiro filho senti que era o meu bilhete premiado”. Lúcia se referia ao autismo detectado em seu caçula quando ele tinha 8 anos de idade. Criadora do Grupo Acolhe Autismo, lançado em março de 2012, Ana Lúcia abriu um caminho importante para incluir o autista na sociedade. O movimento que ela lidera tem como objetivo servir como canal de trocas de experiências entre as mães e familiares de autis-
tas. Hoje o grupo criou uma rede, informal, que discute e luta por tratamentos, além de batalhar por políticas públicas para os autistas e suas famílias. O grupo se organiza por meio de uma página no Facebook, que serve de ferramenta para divulgar informações, palestras, vídeos, notícias entre outros temas que interessam à causa. O contato com as mães acontece pelo chat da página. ACOLHEDORA Uma mãe coruja, assim podemos classificar Ana Lúcia. Uma mãe zelosa e cuidadosa, que sempre estampa um largo sorriso no rosto quando fala de seus três “pequenos”. O termo mãe coruja não é simples modo de dizer, está na decoração da casa, onde podemos encontrar bibelôs representando ela e seus herdeiros. Por seu perfil generoso e altruísta, Ana Lúcia se tornou uma ativista na luta por direitos mais amplos para os autistas, por meio do cum-
“Eu luto por eles, pois meu filho já tem uma idade avançada para determinadas lutas do grupo”
primento e criação de políticas públicas que facilitem a luta de mães como ela. Mesmo que muitas das solicitações para as quais ela batalha já não sirvam para o seu caçula: “Eu luto por eles, pois meu filho já tem uma idade avançada para determinadas lutas do grupo. Ele já passou da época escolar e continua sendo tratado”. Criar Carlos Alberto Júnior, o Caco, foi um desafio e tanto. A primeira dificuldade foi chegar ao diagnóstico. A falta de apetite do pequeno intrigava os pais, que buscaram ajuda médica em vários especialistas. Mas até mesmo os médicos, psicólogos duvidaram que o filho de Ana Lúcia tivesse algum distúrbio mais sério. “Chegaram a me falar que eu não sabia cozinhar e nem alimentar meu filho direito. Eu já possuía uma bagagem
Trocar ideias com outras mães, parentes e professores é parte da rotina de Ana
com dois filhos e nada disso tinha acontecido. Fiquei aflita por não obter respostas”, conta. Batalhadora, Ana Lúcia continuava nas buscas incessantes para descobrir o que poderia resolver a falta de apetite do caçula. Em 2006, enquanto fazia buscas na internet, colocando os sintomas do filho, se deparou com o termo “autismo”, que se encaixou como uma luva nos sintomas de Caco. Em fóruns, chats e sites especializados no assunto, Ana Lúcia começava a trocar experiência com outros pais que passavam pela mesma situação e buscavam ajuda. Seguindo as indicações deles, foi para São Paulo onde encontrou o diagnóstico para o seu filho, em uma consulta com uma psiquiatra da Universidade de São Paulo, quando o garoto já tinha 8 anos. “Senti um grande alívio ao descobrir porque meu filho não se alimentava e apresentava comportamento diferente das outras crianças. Mas ao mesmo tempo, pensava em como eu daria o tratamento que ele precisava”, comenta. “Por que eu?”. Esta, normalmente, é a primeira pergunta que vem à cabeça de quem recebe a notícia de que o filho é autista. Com Ana Lúcia foi diferente. Ao contrário de muitas mães que ficam em choque, a aposentada não lamen-
tou o fato de ter um filho diferente. Ela conta que durante esses anos de militância junto ao Grupo já viu diversos pais receberem a notícia e pensarem até em se matar, desistir, devolver o filho que haviam adotado ou não acreditarem naquilo que os médicos davam como diagnóstico. Mas para Ana certas coisas não acontecem por acaso. “Quando está no nosso destino, não há como escapar”, acredita a professora. Para evitar que mães passem pelo mesmo aperto, Ana Lúcia passou a estudar o autismo a fundo. Segundo ela, o distúrbio pode afetar as áreas sensoriais e se manifestar em sentidos diferentes para cada pessoa. No caso de Caco, o paladar foi afetado, fazendo com que ele não sentisse a textura e o gosto dos alimentos, o que tornava a refeição sem graça e sem prazer. Além disso, o garoto falava pouco, era tímido e não se interessava pela escola. Esses sinais, somados à falta de apetite e ao interesse obsessivo por coisas banais, como organizar brinquedos, aumentaram ainda mais a desconfiança de Ana. “Ele gosta muito de carros. Quando era menor, fazia filas com carrinhos e dizia que era o trânsito”. O que parecia uma simples brincadeira de criança, na verdade, era um sintoma clássico do autismo: a obsessão por ordem, ou organização. “Eles precisam sentir que es
tão no comando. Se algo está fora do lugar, se irritam”, explica. DESTINO Caco não foi o primeiro desafio ligado à gravidez que afetou Ana. Exatamente um ano antes do nascimento dele, ela havia tido outra gravidez não planejada. Quando ela e o marido se acostumaram com a ideia da vinda de mais uma criança, descobriram que a gestação era sem embrião (quando o óvulo fertilizado se implanta no útero, porém o embrião não se desenvolve). O abortamento natural foi inevitável. Após o trauma, enquanto estava sozinha no quarto do hospital,
Ana Lúcia teve uma visão: os pais de seu marido, que ela somente conheceu por fotos, caminhavam em sua direção. Como estava sem os óculos, ela passava a mão nos olhos para se certificar do que via. Porém, a cena continuava diante dela, tal qual um filme. Ela viu o sogro chegando mais perto, seguido da esposa que trazia uma criança nos braços, envolvida em uma manta azul, a cor símbolo do autismo. Saindo do hospital, Ana contou para o marido sobre sua visão, que para ela na época, não teve significado. Um ano mais tarde, nasceria o seu terceiro filho e veio o que para ela seria a res-
posta: a descoberta do autismo em seu caçula. Ana enfrentou diversos percalços antes de descobrir o que realmente acontecia com seu filho. A passagem por oito pediatras que não conseguiram diagnosticar o que ocorria com Caco foi um das dificuldades. Para evitar que as mães que acabaram de descobrir o autismo em seus filhos tenham uma espera mais longa para o início do tratamento, Ana Lúcia sempre indica os médicos pelos quais já passou e os que confia, já que antes de qualquer terapia é necessário um laudo no qual conste o autismo para que os direitos das crianças sejam assegurados. “Eu encontrei uma médica muito ética”, diz. Apesar de todo o conhecimento, ela também teve que superar obstáculos que se tornaram uma verdadeira saga. Primeiro se viu obrigada a ir para São Paulo, onde conseguiria uma escola especial para Caco. Antes disso, teve que dar entrada em uma solicitação para que o Estado arcasse com os estudos do filho. A professora acredita que tan-
Família é a base de apoio e motivo da luta de Ana Lucia
1. Legenda e mais e mais legenda e mais legenda e mais um
Informar, estimular o diálogo e antecipar o diagnóstico são hoje as bandeiras de Ana
O símbolo de mãecoruja materializado nos bibelôs que enfeitam a casa Aos 18 anos, Caco é um exemplo de que a luta vale a pena
ta burocracia para assegurar os direitos do seu caçula, seria uma tática para fazê-la desistir. Mas, por ser uma mulher determinada, em momento algum pensou em não prosseguir batalhando. CONQUISTAS Quando questionada se teve que alterar sua vida depois da chegada de Caco, tranquila, porém pensativa, Ana Lúcia diz que não e nem teve que abandonar nenhum sonho por causa dele. As metas profissionais de sua vida já haviam sido alcançadas, porém novas surgiram, mas agora
voltadas para a vida familiar. Ela viu que não poderia mais ficar parada, vendo que seu caçula precisava de uma atenção especial em situações simples, como ir à escola. Hoje ela é uma espécie de consultora online, que não cobra pelo serviço. As pessoas que têm dúvidas a procuram através das redes sociais para pedir explicações e orientações sobre o assunto. Até mesmo pessoas de outros estados recorrem a ela para saber o que fazer. Há casos de outras professoras, que também solicitam informações sobre como lidar com
os alunos, além de pessoas que têm amigos passando por essa situação e não sabem como agir. O tratamento de Caco não depende mais de tantas medicações, ele somente toma um remédio para dormir, pois sua hiperatividade o impede de pregar os olhos. O resultado do esforço da mãe é perceptível. Durante a entrevista para Viral, Caco, o menino que não gostava de comer, reclamou: “Mãe estou com fome, vai ficar aí conversando ao invés de colocar minha comida?”. A frase provou que o que antes faltava, hoje tem de sobra
TEXTO Michele Rocha FOTOS Michele Rocha DIAGRAMAÇÃO Marcelo Hermsdorf EDIÇÃO Graziela Simões
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MINHA PRAIA, MINHA VIDA CONQUISTAS E DESVENTURAS DE CLAUDENICE OLIVEIRA, A LÍDER COMUNITÁRIA QUE FAZ DE TUDO PARA PROTEGER SEU LAR: A PRAINHA BRANCA
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uerreira, humilde, boa articuladora e dona de uma habilidade rara para lidar com conflitos, principalmente os que envolvem a sua comunidade. Características que cairiam como uma luva para qualquer protagonista de novela. E assim como manda o roteiro, a heroína sempre vence no final. No enredo de vida da “nossa” personagem, sua maior conquista foi chegar ao posto de “mãe” da Prainha Branca, no Guarujá. No plano pessoal, ela tem na família seu maior orgulho. E já que falamos em novela, ela também teve que enfrentar os antagonistas. E está quase vencendo mais uma batalha. Essa é Claudenice Oliveira Almeida Flávio, uma das lideranças comunitárias da Prainha Branca, no Guarujá. Nascida em 14 de agosto de 1971 na própria comunidade, Claudenice é fruto de uma combinação bem brasileira: o pai é pernambucano e a mãe índígena. Ela é casada, tem três filhos, atua como ministra da Igreja de Nossa Senhora Imaculada da Conceição e é conhecedora de cada cantinho de terra, mato e areia da região. Claudenice é líder que dispensa o confete. Às 8h da manhã de um sábado encoberto, véspera do Dia das Mães, ela recebe a reportagem de Viral na padaria de sua mãe, com a frase: “Você não tem repelente?!”, seguida de um sorriso de boas-vindas. A recepção de Claudenice é calorosa, não apenas pelo sorriso largo, mas também pelo lanche preparado especialmente para a reportagem. Não é necessário esforço para reparar a simplicidade e gratidão que ela tem pelo local onde vive. Aos 44 anos não se importa de revelar a idade. “As pessoas dizem ‘nossa, 44?’ Não parece’. Aí eu digo, ‘muito que bem’”. A Prainha Branca de Claudenice é como o cenário paradisíaco de novela: ainda preservado e distante do centro da cidade. Apesar de pertencer a Guarujá, o local é mais próximo do município de Bertioga. Uma praia de águas claras que para chegar é necessário fazer uma trilha de aproximadamente 30 minutos, usar barco, ou pegar uma estrada de terra particular que já deu muito problema por lá. A infra para receber turistas e visitantes é simples, apenas alguns campings e pequenas pousadas, além de restaurantes e bares com vista privi-
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legiada para a imensidão do mar. Todos os fins de semana, a praia lota de turistas. Atualmente Claudenice é a 1ª secretária da Associação de Moradores da Prainha Branca, abaixo apenas do presidente. A Associação toma conta de uma área de preservação ambiental que abriga 108 famílias, sendo mais de 500 moradores. Com mais de 20 anos dedicados à comunidade, ela demonstra que tudo que faz pelo local é fruto do seu amor pela terra onde nasceu. Prova disso é que Claudenice não faz parte de nenhum partido político: “Comecei a me interessar em participar da liderança da comunidade aos 18 anos, quando decidi formar uma chapa feminina para concorrer à presidência da Associação. Isso surgiu depois de eu ter atuado como voluntária nos eventos tradicionais da comunidade, como a Folia de Reis”. Claudenice apresenta a comunidade como uma excelente guia turística, evocando memórias apaixonadas de cada local
por onde passa: um balanço em frente à praia, onde diz ter passado parte de sua infância; a Igreja, onde aprendeu a conduzir seus ‘fiéis’; as escolas, construídas para atender às crianças da região e também onde foram comemorados alguns dos aniversários de seus três filhos. A parada obrigatória é na pracinha, onde ano após ano, ela trabalha na montagem das festas que incentivam a economia local. No trajeto -que bem poderia ser locação para apresentar as memórias da protagonista- ela recebe cumprimentos de moradores que são retribuídos com muita simpatia. Há um sentimento mútuo de gratidão entre a líder e a maioria das pessoas da comunidade. “Ela sempre fez muito pela gente, tem aqueles que tentam arranjar briga por interesse político, mas estamos sempre com ela” garante Maria Conceição dos Santos, uma das moradoras da Prainha Branca. Claudenice também se diverte ao apontar para uma enorme pedra em uma ilha de fren-
“Comecei a me interessar em ser uma liderança aos 18 anos, quando decidi formar uma chapa feminina para a presidência da Associação da Prainha Branca”
Na outra página, Claudenice no dia do seu casamento, na década de 1990 Abaixo, em uma ação voluntária de limpeza da praia em 2015; e fazendo pose para a Viral
“Criamos o projeto da construção do posto de saúde da Prainha e apresentamos para a Prefeitura. Fomos muito elogiados... uma pena que o engenheiro responsável morreu e ficou por isso mesmo”
te para a comunidade:. É ela quem conta: “uma vez um casal de turistas veio e pichou a sigla ABC, como referência ao local de onde eles vieram. Inconformados, os moradores deram o troco: picharam os corpos dos turistas e ainda os expulsaram da praia”, ri. “Não foi um ato de violência, mas também não foi certo o que os turistas fizeram”. Ela conta que inúmeros grafiteiros acabam querendo deixar sua marca na comunidade, e quando solicitado, é permitido fazer desenhos em certos locais. Foi a partir da Associação que Claudenice passou a ser mais conhecida na comunidade. Aos 18 anos criou, junto de amigas locais, uma chapa feminina que venceu a eleição e passou a gerenciar o convívio social da Prainha por quatro anos. “Desde cedo eu já sentia
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uma diferença na briga política entre homem e mulher. Foi no tempo de coordenadora da igreja que eu conheci a Antonieta”, refere-se à atual prefeita de Guarujá, Maria Antonieta de Brito (PMDB). A partir de então sua presença nos bastidores da política da cidade se tornou mais efetiva. Nos anos de 1990, montou um projeto com um engenheiro da Prainha para construir o posto de saúde que a comunidade tanto precisava. “Fizemos um projeto possível para nossa condição ambiental”. A Prefeitura enviou um engenheiro para avaliar a obra e o local, e aprovou o que viu. “Fomos muito elogiados e nos prometeram construir o posto. Uma pena que o engenheiro morreu e ficou por isso mesmo”, conta com bom humor. Desde a década de 1980 a comunidade não tinha
Na página da esquerda, de cima para baixo, durante a festa religiosa da Imaculada; em palestra sobre turismo ecológico para monitores do SESC SP À direita, Claudenice em família
um posto de saúde, o que só foi de fato concretizado no ano passado, e hoje atende cerca de dez pacientes por semana. A reviravolta na história da protagonista foi também uma das maiores brigas de Claudenice. Um de seus maiores dissabores se deu por causa de uma estrada que permite a entrada e saída de carros da comunidade. O acesso pertence a um homem que não vive na região. Ele deixou no comando uma das famílias mais antigas do lugar que queria controlar o fluxo de pessoas a caminho da praia. Segundo ela, para usar a estrada era preciso pedir “muito e muito”, às vezes até “implorar”. Em abril de 2014, depois de solicitar a liberação da estrada por motivo de socorro médico, o filho mais velho da família responsável pelo acesso se irritou e agrediu Claudenice fisicamente.
Nem mesmo a formalização de uma queixa na delegacia livrou a líder comunitária de uma segunda agressão, em agosto de 2015. Claudenice andava bem cedo pela trilha a caminho do trabalho, quando foi surpreendida por duas mulheres da tal família, que a espancaram. Nunca mais a Prainha teve paz. Além desses problemas, Claudenice queixa-se de ser perseguida algumas vezes dentro e fora da comunidade, a ponto de sempre pedir companhia, já que o corredor para a sua casa fica entre o terreno da família agressora. O marido dela, Marildo Flávio, demonstra evidente desconforto com toda essa situação, mas respeita a decisão da mulher de permanecer na comunidade. Como ela mesma diz: Desistir? Deixar a Prainha? “Nunca”!
TEXTO Juliana Braz e Andressa Lara FOTOS Irineu Paixão
“As pessoas quando me conhecem costumam dizer: ‘nossa! Você tem 44 anos?! Não parece’... eu respondo: muito que bem”
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DIAGRAMAÇÃO Lucas Rodrigues
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PINTANDO O CANECO
AOS 82 ANOS, MARION SABE QUE O FIM DA LINHA ESTÁ CHEGANDO, MAS SE RECUSA A ENVELHECER
O
s mais velhos geralmente têm boas histórias para contar. Alguns, mais entusiasmados e experientes começam a contar a trajetória de vida e quem está em volta para para ouvir. É o caso de Marion Oliveira Carvalho de 82 anos, moradora de Peruibe. Aqui, abrimos um parêntese. Recentemente, ouvimos Marion para uma reportagem sobre o Núcleo da Terceira Idade do qual ela é diretora. Poucos minutos foram suficientes para que quiséssemos voltar para ouvir mais sobre esta senhora que gosta de “pintar o caneco” - expressão equivalente a bagunçar, muito usada na sua mocidade. Dona Marion (ela não gosta que a chamem assim) é viúva e mora sozinha em um apartamento no centro de Peruíbe. Solidão? Jamais. Ativa e sem tomar qualquer remédio, ela não para e se recusa a chegar cedo. Além do trabalho no Núcleo, a agenda semanal inclui cantar e dançar em serestas e luais e encontrar amigos em um bar. No pouco tempo que não está na rua, ler e escrever são seus hobbies. “Eu não envelheci. Não gosto de ficar em casa, sem fazer nada. Gosto de dançar, can-
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tar, rir, conversar. Todo dia é oportunidade de aprender algo novo”. E o anseio de adquirir novos conhecimentos fez com que Marion descobrisse, por acaso, o que pode ser considerado seu dom: trabalhar a comunicação de crianças surdas. Cientista social de formação, Marion morava em São Paulo há mais de 50 anos, quando um dia, passou em frente a um prédio de onde saia um barulho estranho: eram jovens surdos tentando conversar. O trabalho fazia parte de uma equipe da França trazida pela PUC ao Brasil para implantar uma nova metodologia de comunicação, criada na antiga Iugoslávia. A clínica estava com inscrições abertas. Marion se interessou pelo curso e se apaixonou. Ao fim das aulas, ela era dona do Instituto e já cursava Fonoaudiologia na USP. Depois disso, foram 46 anos trabalhando com crianças surdas, antes de se aposentar. Ela foi considerada uma das dez melhores implantadoras de próteses auditivas no mundo. “Viajei o mundo com esse trabalho. Abri uma clínica em cada capital do Brasil, de Natal a Santa Catarina. Todas funcionam até hoje. A metodologia é assim. Eu não sei fazer
“Temos obrigação de ser feliz. Ninguém tem direito de ser infeliz, muito menos de amargar a vida do outro”
Marion possui um acervo da sua família e segue abastecendo-o com frequência
“Devo ter tido uns 850 namorados na minha vida” “Carnaval na casa do padre? É comigo mesmo” “Sei que estou no fim. Todo dia é uma oportunidade de aprender algo novo”
sinal, mas ensino a falar mesmo, com ritmo. Algumas até escrevem”. O caso mais curioso da carreira na comunicação de surdos aconteceu depois da aposentadoria de Marion. Um casal veio da França ao Brasil disposto a fazer com que a filha, de dois anos, fosse tratada com Marion. Quando chegaram a São Paulo, ouviram que ela tinha se aposentado e estava morando em Peruíbe. O casal, ele diretor da Unesco e ela dona de indústria de roupas, insistiu por semanas e oferecia muito dinheiro. Marion tentava se esquivar, pois não tinha a estrutura necessária. Foi quando os pais da criança compraram uma casa no litoral de São Paulo e “a obrigaram” a usar a metodologia. Ao iniciar o processo, Marion descobriu que a filha mais nova, de seis meses, também era surda. O trabalho foi positivo, e, atualmente, uma é repórter de uma revista na Alemanha e a outra fala quatro linguas e é professora de idiomas na França. “Essas meninas são excepcionais. Hoje são mulheres e conversamos sempre. A professora me enviou uma poesia em inglês recentemente. Fico muito orgulhosa”. CASO DE FILME DE FICÇÃO Marion admite que sempre foi “namoradeira”. E foi “furando o olho” de uma
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amiga que ela encontrou o amor de sua vida, com quem viveu mais de 50 anos. Em 1957, Marion namorava com Carlos, havia cinco anos, e morava em São Paulo. Ele disse a ela que viajaria para visitar seus avós em Ribeirão Preto no Carnaval. Ela, que gosta de festas, disse que ficaria na Capital. No sábado de Carnaval, uma amiga ligou para Marion e falou que seu tio, que era padre, estava com a casa vaga em Itanhaém. Sem nada marcado, ela aceitou o convite e viajou com três colegas para a praia. “Carnaval na casa do padre? É comigo mesmo”. Quando estavam comprando o bilhete de trem, Marion viu um “morenaço” atravessando a rua e vindo em sua direção. Era o namorado de uma das amigas da viagem. “Prazer, Amauri”. As amigas estavam na casa do padre quando as marchinhas começaram a tocar em um hotel vizinho. Elas, então, decidiram curtir o feriado e procuraram por um baile. Pegaram as batinas e fizeram fantasia. Curtiram a noite e voltaram para casa. Na manhã seguinte, às 10h, a campainha tocou. Marion, com sono leve, levantou e foi atender. Era o “morenaço”. “Fui chamar a minha amiga, educadamente (risos). Mas pensei que se ela não desse um jeito nele até tarde, era meu”. À tarde, depois de almoçarem feijoada em lata, Marion disse que queria ir para a praia. Sua amiga
Crônicas da Vovó Marion PARA DEMONSTRAR MOMENTOS MARCANTES, EM SEU ANIVERSÁRIO DE 80 ANOS, ELA ESCREVEU UMA CRÔNICA PARA CADA NETO PALOMA
É a primeira neta. Quando ela nasceu, quase enlouquecemos: deixamos a casa aberta (moramos na praia) e fomos para a maternidade, em São Paulo. Era também a primeira menina que aparecia na nossa família: temos três filhos. O avô chorou emocionado quando a pegou no colo. Eu estava tonta de alegria... Por todos esses e outros motivos, foi muito mimada e o centro das atenções durante pelo menos três anos. Depois veio o Lucas, primo dela, lindo (como todos os meus netos), loirinho de olhos azuis. O ciúme chegou junto. Dia de reunião de família aqui em casa, os homens estavam acendendo a churrasqueira e nós, mulheres, arrumando a mesa e batendo papo... Lucas estava no meu colo. Quando Paloma viu a churrasqueira quente, chegou perto de mim e sugeriu: - Vovó, deite ali um pouquinho. Pegue eu...
VÍTOR
5 anos, levadíssimo, gostava de tudo o que era motor. Brinquedo algum era melhor que um aspirador de pó ligado ou uma base de liquidificador funcionando. O avô deu a ele, de presente, uma porção de fios achados nos seus guardados, na garagem. Eu, na cozinha, fazendo os quitutes para eles, e Vítor me chamou: - Vó, vem ver a minha “emendação”! Corri, com um certo pressentimento, mas não deu tempo: ele tinha enfiado as duas pontas do fio na tomada, emendado todos os outros e, quando eu cheguei, juntou as outras duas extremidades! Curto circuito geral, com direito a faíscas, fumacinhas e tudo o mais! Felizmente ele estava de tênis! Diante da minha cara, meio assustada, meio brava, completou, numa tentativa de “habeas corpus preventivo”: - Veja lá como me trata, hein? Eu sou visita!
LUCAS
4 anos, alegre, carinhoso e muito sensível, sempre teve paixão pela prima Paloma. Era seu ídolo. Nessa época, já existiam a Alice, irmã mais nova do Lucas e Vítor, mais novo que a Paloma e levadíssimo. Ela estava aprendendo, comigo, a fazer crochê e resolveu fazer uma bolsinha para dar de presente de aniversário à Ana Cândida (outra neta). Trabalhou o dia inteiro. Quando a bolsinha estava quase pronta, numa distração da menina, Vítor veio e puxou o fio até desmanchar mais da metade do trabalho! Choradeira, berreiro imenso, com razão. - Eu quero matar ele! Quero mesmo, de verdade! E não havia quem pudesse acalmá-la. Sentou-se por fim, no banco do terraço, ainda chorando... Lucas estava consternado. Não podia ver a prima chorar... sentou-se ao lado dela e investiu no consolo: - Paloma, não chore. Vai melhorar. Olhe, a Alice também era assim, putz, chata, putz pentelha melhorou pra caralho...
ARTHUR Arthur e Naná foram com a mãe à ortodontista para verificar se havia alguma alteração em suas mordidas – visita de rotina orientada pela escola. No consultório, entraram os três e a ortodontista, enquanto atendia a Naná, deu um espelho de mão para o Arthur: - Olha aí no espelho e depois você me diz se acha alguma coisa errada... Enquanto isso, examinou a Naná, linda, inteligente, falante e , encantada, demorou-se um pouco brincando com ela. Depois, voltando-se para o menino: Achou alguma errada, Arthur? - Achei sim, esta minha cara de bobo olhando para o espelho todo esse tempo enquanto você estava babando em cima da minha irmã...
ALICE 6 anos, linda, loira, de olhos azuis, numa conversa a dois com o pai, num intervalo da televisão: - Pai, você transa com a mamãe? O pai, quase engasgado, resolveu falar a verdade: - Transo sim. - Com camisinha ou sem camisinha? Espantadíssimo, mas achando que era coisa da televisão, ele resolveu ser politicamente correto: - Com camisinha. - Mentiroso! Olha eu aqui! O barulho que se seguiu foi de um tombo da cadeira...
ANA CÂNDIDA (NANÁ) 5 anos, é doce, meiga e educadíssima. É a irmã mais velha, e única, do Arthur. Nasceu no Recife, quando os pais estiveram morando lá por uns tempos e, de lá, trouxeram a Rosa (iá), uma babá gordinha, cor de canela queimada, que todos querem muito bem. Uma vez, foram à exposição de um pintor famoso que só pintava gente gorda – Botero – e de lá trouxeram um álbum que mostraram para a iá - Vou lá, chegar nesse moço pra ver se ele me pinta... E Ana Cândida, muito carinhosa: - Mas você não precisa, iá... Você já é pintada...
não quis. Amauri, sim. “Vi que a paquera ia dar pé. Ela era bocó. Cada um com a sua competência”. Enquanto conversavam, Marion disse que estava com vontade de tomar champagne com pêssego. Às 17h de um sábado de Carnaval, Amauri levantou, saiu, e voltou com a bebida e a fruta em menos de uma hora. “Sabia que era meu”, arrematou. Marion levantou para ir à praia, e Amauri foi junto. Sua amiga ficou em casa. Não deu outra. “Ele olhou para mim e disse que era sem vergonha, e que tudo que falassem dele era verdade, mas que tinha acabado naquele instante e nos beijamos”. À noite, em um clube, Amauri a puxou e perguntou se ela queria casar com ele. A resposta era um retumbante sim. Horas depois do primeiro beijo, Marion, aos 22 anos, aceitou se unir a um homem de 32 anos que tinha conhecido horas antes. Marion voltou para São Paulo e avisou seus pais que o casamento estava marcado para dezembro. O que começou por acaso, durou mais de 50 anos até Amauri falecer, em 2008.
Jeitos e trejeitos... Marion diz não se importar com as rugas. Abusa dos olhares, caras e bocas para temperar suas histórias. Aliás, a senhora (que não gosta de ser chamada assim) sabe bem compartilhar a sua trajetória de vida. Quando nova, ela queria ser jornalista, mas seus pais achavam que era coisa de ‘mulher da vida’. Os tempos mudaram, não é?!
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VIDA NÔMADE As circunstâncias da vida fizeram com que Marion “pulasse de galho em galho” desde criança. Seu pai era gerente de cassino e precisava viajar para as cidades com temporada em aberto. Santos, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba... eram três meses em cada lugar. Acostumada com as viagens, ela já sabia como fazer sua mala e gostava de estar sempre viajando. O problema é que nunca pode estudar regulamente em escolas. “Eu achava aquilo muito lindo. Estava sempre viajando. Meus pais me alfabetizaram e eu sempre li muito. Minha educação foi baseada em livros, devorava Monteiro Lobato, por exemplo. Só pude estudar de verdade depois dos 10 anos”. Como os cassinos movimentavam muito dinheiro, sua família ficava em hotéis de
luxo e o pai ganhava bem. Isso até 1946, quando o presidente Dutra decidiu proibir os jogos de azar. Sem dinheiro guardado, os pais perderam tudo. A solução foi morar em um cortiço na rua Vergueiro, em São Paulo. “Foram três meses naquele porão. Lembro de ver os pés das pessoas andando na rua por uma janelinha”. A situação financeira melhorou quando a sua mãe, homeopata, voltou a trabalhar. Com o auxílio do então ministro Oswaldo Aranha, ela voltou a ser chefe do serviço de saúde no Estado, cargo que ocupava antes de “largar tudo” por causa do marido. Como a mãe precisava percorrer cidades de São Paulo para inauguração de hospitais e fiscalização do serviço de saúde, Marion voltou a ser nômade, e a viver bem. Em Santo Antônio do Pinhal, um dos locais em que morou, ela andava de bicicleta dentro da casa que compraram. Quando casou, seguiu a vida sem rotina. Amauri, seu marido, era gerente de banco. O início da vida a dois foi em São Paulo e depois em Brasília, para onde ele foi transferido. Marion só aquietou quando foi morar em Peruíbe, onde está há 34 anos, mas o tempo inclui viagens pelo mundo para divulgar sua metodologia de comunicação de surdos. ÚLTIMO SONHO Marion diz que sabe que está na fase final de sua vida, mas ainda deseja um “último desejo”: ela quer ver o Hotel Glória, desativado, transformado em um curso de hotelaria do Senac. A moradora de Peruíbe enxerga grande potencial turístico na região, e acredita que o ensino poderia gerar muitos empregos. “Seria um curso de cuidar da grama até administração, cozinha, rouparia, tudo. Infraestrutura de recepção é falha em todos os setores. Já apresentei na Câmara e ao prefeito, mas nada ainda Meu sonho é esse, mas acho que não vou conseguir. Colocaria jovens lá, tiraria desse caminho natural de drogas e prostituição. Quem sabe eu não conseguiria?”
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“Acho que as melhores qualidades da minha vó são a energia e o bom humor. Ela está sempre rindo, tem sempre uma boa história pra contar. Se eu fosse apresentá-la para alguém, diria: - Essa é a minha avó Marion, ela mora em Peruíbe e faz um croquete que é imperdível. Não subestime o cabelo branquinho dela. É cheia de energia e nunca para em casa” Ana Cândida, neta.
“Se tivesse que escolher sua maior qualidade, com certeza seria altruísmo: como ela se empenha e se dedica a ajudar todos à sua volta. Sua família, seus amigos, seus vizinhos, seus colegas e conhecidos, as crianças e adolescentes na Colônia Veneza, cada paciente e aluno que ela atendeu em seus longos anos como fonoaudióloga e professora” Paloma Carvalho, neta
TEXTO E FOTOS Lucas Musetti DIAGRAMAÇÃO Leonardo Barbosa e Ranier Grandé INFOGRÁFICOS Willian Matias
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O QUE VOCÊ FARIA COM APENAS 25% DA VISÃO? O UNIVERSITÁRIO EDSON JR. DE 17 ANOS ESCOLHEU ESTUDAR CIÊNCIAS DO ESPORTE NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS.
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O
calouro no curso de Ciência do Esporte da Universidade de Campinas, Edson dos Santos Júnior, de 17 anos, é mais um dos milhares de alunos dedicados na instituição, mas com uma característica que o diferencia dos demais. Ele possui apenas 25% da visão. Problema que surgiu ainda na infância por conta de uma catarata congênita. Para ele, o mundo - sem os óculos adaptados - é mais escuro e com pouco foco. Não bastasse isso, o rapaz também é filho de um casal de deficientes visuais. Nem por isso ele fechou os olhos para as oportunidades. A faculdade, que teve início neste ano, na cidade de Limeira, interior do Estado, apresentou ao jovem de Itanhaém, algumas missões que ele terá para os próximos quatro anos. Uma delas será suportar a distância da família e dos amigos, que vivem a mais ou menos 200 quilômetros de distância. A outra é encarar os desafios e responsabilidades dos estudos, além dos possíveis preconceitos pela baixa visão, mesmo diante de uma vida normal que ele mesmo faz questão de ressaltar que vive. A trajetória do adolescente, conhecido como Edinho está só no começo.
coisa interessante é que lá tem pessoas de várias partes do País também, com o mesmo interesse que o meu: estudar, fazer uma faculdade boa e tudo mais”, disse Edinho.
ADAPTAÇÃO Edson é o primogênito do casal Maria Isabel dos Santos, de 49, e Edson dos Santos, 42 anos, ambos deficientes visuais. Seu problema de visão é quase similar ao do irmão, Leonardo dos Santos, de 16 anos, que nasceu com glaucoma tem de visão apenas 15%. A mãe do universitário é professora e ensina braile a crianças das redes municipais de Cubatão e Itanhaém. O pai atua como fisioterapeuta. Assim como o irmão, o estudante utiliza lentes adaptadas de 10 graus, que são chamadas de catral e possibilitam uma vida normal. Dona Isabel sempre incentivou a autosuficiência do filho: “Desde sempre mostrava ao Edinho que todos nós somos diferentes. Também oriento para que ele nunca use a limitação como uma muleta”. Questionado sobre preconceito, o estudante revela: “Me senti bem acolhido na universidade. Uma
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O jovem universitário driblou a deficiência e foi cursar Ciências do Esporte, na Unicamp
“Uma coisa interessante é que lá tem pessoas de várias partes do País, com o mesmo interesse que o meu: estudar, fazer uma faculdade boa” Edson Jr.
ROTINA A jornada acadêmica começou há quase três meses. “Quando ele contou que havia passado, eu fiquei muito feliz e impressionado ao mesmo tempo. Agradeci primeiramente a Deus, junto com meu irmão e nossa família. Confesso que fiquei um pouco triste, agora que ele está mais longe, lá em Limeira. Mas, no fundo, isso tem um lado bom, pois ele está fazendo algo que gosta e é o que importa”, disse o irmão caçula. O universitário lembra que o ingresso na faculdade não era questão de sorte ou destino, pois a chegada a esta trajetória envolveu muita dedicação aos estudos, como o investimento em cursinhos pré-vestibular. O adolescente afirma ter lido cerca de 100 livros, e adora português e literatura, mas que no momento tem lido mais treinamento tático e fisiologia. “Não me sinto uma pessoa especial por ter passado na Unicamp. Isso é resultado de esforço não têm segredo, então, basta estudar bastante para conseguir alcançar esse objetivo”, avalia. A MILHAS DE CASA Atualmente o rapaz vive em uma quitinete, localizada na região da Cidade Universitária, próxima ao Campus. O imóvel, entre outras despesas necessárias são todas custeadas pelos pais que gastam, em média, R$ 1.500 ao mês. Além da distância, a vida estudantil acumula novos afazeres, como la-
POR ALYNE ISABELLE, DUDA MATIAS, NATHALIA PINI
“Quando ele contou que havia passado, eu fiquei muito feliz e impressionado ao mesmo tempo. Eu agradeci primeiramente a Deus, junto com meu irmão e nossa família.” Leonardo, irmão de Edson
Todos integrantes da família possuem deficiência visual e nenhum deles usa a limitação como desculpa
var a própria roupa, louça, cuidar da casa e economizar – coisas de adultos. “É mais fácil lidar com o amigo de longe do que com os pais. Eles são importantes e ofereceram suporte a minha vida inteira. Não tenho experiência fora de casa, então é difícil, porque tudo depende de mim. Os amigos, por mais que estiveram em muitos momentos, não ajudarão em algumas situações. Caso eu precise ir ao hospital, por exemplo, terei que ir com algum amigo, para não ir sozinho”, disse. Mesmo com os constantes desafios ele pondera: “Mas hoje, já me sinto quase um dono de casa”. O contato com a família tem sido mais difícil nos últimos meses. O alto custo da passagem, que chega a R$ 60, somado ao curto tempo para aproveitar uma estadia tranquila são as razões das visitas cada vez mais espaçadas. Por isso, o universitário prefere embarcar para Itanhaém somente em algumas datas, como o Dia das Mães, ou em feriados prolongados.
Os pais também revezam e, de vez em quando, enfrentam a estrada para matarem a saudade e continuarem o apoio mais de perto. NOVIDADES? A comunicação com amigos e a família à distância é feita todos os dias pelo telefone, sendo por intermédio de ligações ou mensagens trocadas pelo WhatsApp. Quando não está matando as saudades, o jovem aprecia passar os dias livres em Limeira, com atividades voltadas à faculdade. E quando sobra tempo, ele procura sair para se divertir com os amigos universitários. “Para mim é tranquila a ausência dele, nos falamos todos os dias praticamente e isso acaba sendo suprido de alguma forma. Na verdade, eu me preocupo mais com o desempenho dele, do meu lado é mais cobrança. Eu sempre pego no pé dele e falo: olha, a gente está gastando, então eu quero só os resultados”, conclui o pai, que se diverte com a situação
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UM TOQUE DO NORDESTE A HISTÓRIA DE UM NORDESTINO QUE VEIO TENTAR A VIDA NO SUDESTE, DEU A VOLTA POR CIMA E VIROU UM CAIÇARA ARRETADO
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“Quando cheguei aqui não estava acostumado com o inverno. Cheguei a ficar 15 dias sem tomar banho”
Vestir-se a caráter foi a forma mais confortável que Rodrigues encontrou para falar sobre sua vida
T
elevisão, sofás, mesa de jantar, porta-retratos e quadros. Aparentemente uma típica sala de casa paulista, como qualquer outra do Guarujá, se não fosse pelos chapéus nordestinos empilhados em cima da estante. Dois deles se destacam, um chapéu de vaqueiro comum e outro parecido com o que Luiz Gonzaga – ícone nordestino – costumava usar. É nesse ambiente, com um toque do Nordeste, que José Rodrigues dos Santos se sente confortável para começar a contar um pouco sobre sua vida. A sessão de perguntas foi iniciada por ele com um sotaque bem carregado: “Vocês estão avexados?” – expressão nordestina que significa apressados. E nós, como jornalistas dispostos a fazer uma boa entrevista, respondemos: “não”. Os 14 anos vividos no Nordeste, na cidade de Porto Real do Colégio, a duas horas de Maceió, no estado de Alagoas, não trazem boas lembranças para Rodrigues. Nos anos 1970, nem os mais pobres recebiam ajuda do governo, como acontece hoje. “Na minha época, quando vinha a seca, não morria só o gado, morria
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gente também. Lembro de alguns dias acordar de noite com minha mãe chorando, porque não tinha um caroço de feijão em casa”, diz. A fome, além de ter sido a maior das dificuldades, foi o que influenciou sua mãe e irmãos a deixarem a cidade natal para tentar a vida em Guarujá, assim como alguns familiares já haviam feito. Dentre tantas lembranças ruins, José Rodrigues consegue lembrar de uma boa, que lhe arranca até risadas: o fato de ter escolhido o próprio sobrenome. Algo que poucas pessoas podem se dar o luxo. Isso porque na cidade onde nasceu, o registro era feito na igreja, e quando as crianças católicas eram batizadas, o padre já colocava o nome. Na vez de Rodrigues, seu nome ficou apenas José. “Meus pais eram separados e meu pai não quis me dar o registro. Só aos 14 anos, quando tive de deixar o Nordeste, é que fui em busca do cartório mais próximo e me registrei. Pelo fato do meu pai nunca ter sido presente, só coloquei os sobrenomes da minha mãe”, explica. No Guarujá, Rodrigues não passou por muitas dificuldades, mas o frio, segundo ele, foi um grande desafio. “Quando cheguei aqui, não estava acostumado com o inverno. Cheguei
Frank Aguiar, um dos ídolos que ele teve oportunidade de entrevistar Apesar de ter começado como um hobbie, o programa de TV Rodrigão da Parada e sua gente está no ar há seis anos
“Na minha época, não morria só gado. Quando vinha a seca, morria gente também. Lembro de alguns dias acordar de noite com minha mãe chorando, porque não tinha um caroço de feijão em casa”
a ficar 15 dias sem tomar banho. Quando eu conseguia tomar, era só grude na pele. Hoje, graças a Deus, esse frio não existe mais”. Apesar da baixa temperatura no inverno, foi aqui que a vida do alagoano de riso fácil começou a melhorar. Quase um ano após ter chegado à cidade, com apenas 14 anos, ele arranjou seu primeiro emprego, como cobrador de ônibus na Viação Guarujá. Na época, não existia lei contra o trabalho infantil. Depois disso, passou por vários trabalhos. Foi padeiro, pedreiro, confeiteiro e outros, até encontrar sua vocação: ser motorista de táxi. Função que exerce até hoje, após 30 anos, e afirma que foi a profissão que o escolheu e não o contrário. Isso porque a sorte deu um empurrãozinho: “Meu irmão me ajudou a comprar o táxi e ainda me arrendou o ponto bem no centro da cidade, algo que só consegui comprar por causa de um prêmio acumulado de uma quina, e desde 1988 aquele ponto é meu”, conta. Além de ter encontrado sua vocação, foi a profissão de taxista
que deu origem ao apelido Rodrigão da Parada. “No ponto tinha pelo menos oito Josés. Foi pelo meu sobrenome Rodrigues, que cheguei em Rodrigão”. Depois disso, por causa de uma loja de CDs que Rodrigão abriu na cidade, com o nome de Parada Popular, alguns amigos começaram a chamá-lo de Rodrigão da Parada. O apelido colou e hoje a maioria das pessoas o conhece assim. Por conta do trabalho, Rodrigão não tem uma rotina regrada. “Não tenho horário certo para acordar ou ir ao trabalho. Mas na hora que levanto, não faço corpo mole e me pico (expressão nordestina que significa saio correndo)”. Hoje, além de ser taxista, ele também produz eventos, apresenta o programa Rodrigão da Parada e sua gente na TV Guarujá, que divulga bandas e casas de forró. No programa, conta com a ajuda da produtora Maria Aparecida dos Santos Nunes, que ele conhece carinhosamente por Cida e a considera como uma amiga. Cida guarda boas lembranças dessa amizade. “Um dia fomos gravar com
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o Frank Aguiar em São Paulo. Filmamos tudo e só ao término da entrevista o cinegrafista viu que a câmera estava sem cartão, ou seja, não havia gravado nada. Foi chato, mais depois rimos muito”, lembra. Para manter o laço com suas origens, Rodrigão é presidente da Associação dos Nordestinos da Ilha de Santo Amaro, que é referência da cultura nordestina na cidade. E também tem uma trajetória na política, apesar da ideia de tentar ser político não ter partido dele. “Comecei a ajudar um amigo muito próximo que era candidato a vereador. Um dia ele teve uma dor de cabeça e morreu em 24 horas. Os médicos diagnosticaram meningite. O pessoal do partido se apressou em querer me colocar no lugar dele. Aceitei e tive mais de 600 votos na primeira eleição”. Depois desse episódio, Rodrigão voltou a ser candidato a vereador em 2012 e para a Câmara Federal em 2014, sem sucesso. Atualmente ele é pré-candidato a vereador, com um sonho a ser realizado: criar um Centro de
Tradições Nordestinas no Guarujá, para dar à cidade mais um toque do Nordeste. Os mais de seis mil quilômetros que distanciam Rodrigão de suas origens não são um empecilho na hora de matar as saudades de sua terra. “Por conta de questões financeiras, fiquei 12 anos sem conseguir voltar para o Nordeste, mas essa dificuldade não existe mais. Hoje, sempre que posso, vou até lá. Já fiz 18 viagens de carro e duas de avião”. Enquanto espera a próxima oportunidade, ele mata as saudades no cômodo ao lado de onde conta essas histórias. Lá podemos encontrar coleções de CDs, DVDs e discos de vinil de bandas nordestinas, além de retratos de Rodrigão com importantes cantores de bandas de sucesso como Belutti, da dupla Marcos e Belutti, e Caju e Castanha. Mesmo com tantas lembranças e saudades, e até uma proposta de emprego para voltar para o Nordeste, a família que Rodrigão criou em Guarujá – sua esposa e quatro filhos
“Sempre foi um pai amigo. Que chega, conversa e vê quando a gente não está bem” Arthur Rodrigues dos Santos
Orgulhoso, Rodrigão mostra foto ao lado de Belutti, no início de sua carreira. Hoje, integrante da dupla Marcos e Belutti
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Para relembrar do Nordeste, Rodrigão apela para a buchada de bode CD’s, DVD’s e fotos: a música e os músicos do Nordeste têm destaque na coleção do apresentador A família reunida para “bater um retrato”, como ele mesmo diz
TEXTO Fernando Marano e Caroline Moraes
- é que o impede de voltar às origens. “Já recebi proposta de voltar, mas eu não quis por conta de uma frase que um dos meus filhos falou para mim: ‘Pai, parabéns pela proposta, mas me sinto mais seguro com você aqui’. Pelo fato de minha família vir sempre em primeiro lugar, essa volta está fora de questão”, garante. O fato de se autodefinir como uma pessoa bem família não é da boca para fora. Seus familiares mais próximos corroboram tal afirmação, e enquanto Rodrigão participa de uma sessão de fotos (ou bater retrato, como ele diz) que vai ilustrar essa matéria, eles ainda vão um pouco além. “Ele faz e sempre fez tudo pela família. Nunca tratou nenhum dos filhos diferente, nem os dois que têm comigo, nem os dois que teve no primeiro casamento. Além disso, também é uma pessoa muito trabalhadora e honesta”, enfatiza Luciana Maria Rodrigues, que mantém há 30 anos uma união estável com Rodrigão. Na hora de tecer comentários,
os filhos também não economizam elogios: “Sempre foi um pai amigo. Que chega, conversa e vê quando a gente não está bem”, diz Arthur Rodrigues dos Santos. Sua irmã, Thaís Rodrigues dos Santos, finaliza: “Se algum dia eu tiver uma família, farei de tudo para criá-la exatamente do jeito que ele fez com a gente”. Enquanto ouvia os elogios, Rodrigão não emitiu um som, se bem que não foi necessário, pois seus olhos encharcados falaram mais que sua boca. Mas como qualquer nordestino cabra macho, enxugou as lágrimas disfarçadamente e já deixou o sorriso tomar conta do rosto. Mesmo com a família e corpo em São Paulo, a alma de Rodrigão não está completamente em um só lugar. Ela se divide entre a terra atual e o lugar onde viveu sua infância. “O Nordeste representa minha origem. Adoro o Guarujá, pois tenho raiz aqui. A família que criei, meu táxi, o pouco que eu tenho é daqui. Mas nada como uma buchada de bode para relembrar a minha terra”
FOTOS E DIAGRAMAÇÃO Marina Torres
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REFÚGIO DA PAZ LONGE DA GUERRA, SALAM AL-ZUBEDI AFIRMA QUE HOJE É BRASILEIRO COM MUITO ORGULHO E MUITO AMOR
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“Não foi fácil.
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arba rala, cabelo escuro e calvo, bem aparados. Olhos distantes e pele branca. Tranquilidade na voz e dificuldade na fala. Afinal, quem não teria relutância com o idioma português, depois de passar os primeiros 27 anos da vida falando árabe? Quem não sentiria saudade da família - há 10 mil quilômetros de distância - que não o vê há quase três anos? Quem não sonharia com a paz após dormir em meio à guerra? Salam Al-Zubedi, dono do sim para todas as perguntas anteriores, sonhou. Agora, ele acorda e dorme, todos os dias, no Brasil. No começo da guerra, Salam Al-Zubedi tinha esperança de que aquele conflito duraria cerca de quatro a cinco meses. O sírio tinha o sonho de viver tranquilamente o resto de sua vida com sua mulher e família no país onde nasceu. No entanto, as constantes bombas lançadas próximas à sua residência o fizeram mudar de ideia e, consequentemente, do rumo de vida. O ano de 2011 marcou o início da Primavera Árabe, nome dado à onda de protestos e revoltas populares contra o governo ditatorial de Bashar Al-Assad. Em Damasco, capital da Síria, uma das maiores zonas de atentados, Salam Al-Zubedi, 29 anos, trabalhava junto com seu pai no Palácio do Governo como assistente de Tecnologia da Informação, área pela qual conquistou seu bacharelado. Salam perdeu as contas de quantas vezes teve que sair correndo do seu ofício por conta dos ataques do grupo terrorista do Estado Islâmico (EI), que geralmente ocorrem em locais com grande circulação de pessoas. Seus olhos ficam trêmulos quando questionado sobre seu pai, que morreu no início dos ataques. “Ele estava no centro da cidade, passeando no seu horário de almoço, quando foi atingido por uma bomba de um grupo terrorista. Ele foi o alvo, pois ninguém mais foi atingido naquele dia”. Salam acredita que o atentado foi premeditado, pois seu pai era um político bem posicionado na época. “Não gosto de falar disso” repete, contendo a emoção, evitando falar do assunto. O pior dia de sua vida aconteceu em um bom-
Durante a guerra perdi meu pai, amigos e familiares em menos de um ano. Mas no Brasil encontrei a paz de que tanto precisava”
bardeio que começou às 23h e terminou oito horas depois. “Ninguém na minha casa conseguia dormir porque o barulho era muito alto e tínhamos muito medo. Era uma mistura de cansaço e desespero”. Aquele dia foi o gatilho para que o sírio tomasse uma atitude urgente. A busca pela paz só se concretizaria saindo do país. Mas a agonia estava só começando. Ele e sua família chegaram a ficar mais de duas semanas sem água e energia elétrica. “Os próprios terroristas cortavam as fiações de luz para facilitar a invasão nas residências”. Foi nessa época que invadiram a casa de Salam. Toda a sua família fugiu somente com a roupa do corpo. “Graças a Deus, ninguém se feriu naquela noite”. Após o incidente, Salam e sua família passaram a morar na casa de amigos e parentes, em uma cidade vizinha, que ficava a dois quilômetros da capital. Como já estavam “acostumados” aos ataques, faziam economia de água e de alimentos. Por exemplo, quando chovia eles juntavam vários utensílios de cozinha para o armazenamento e dividiam os alimentos para vários dias, o que amenizava os gastos da família.
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Conheça as rotas de fuga dos imigrantes O número de refugiados sírios pelo mundo supera 1,5 milhão, devido às constantes guerras. Países vizinhos como Turquia, Líbano e Jordânia, devido à alta concentração de refugiados, não estão recebendo os sírios. A alternativa para alguns refugiados é a travessia pelo Mar Mediterrâneo. A problemática é que durante o trajeto muitas pessoas não sobrevivem. Segundo a Organização Mundial das Migrações (OMI), desde janeiro de 2015, mais de 2 mil pessoas morreram, sendo 30% crianças. O Brasil conta hoje com 8.731 refugiados de 79 nacionalidades diferentes, sendo 2.252 sírios.
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LAR ESTRANGEIRO Após tantos dias de tortura e a morte de seu pai, o sírio começou a pesquisar países que realizavam programas de ajuda para refugiados. Na época, ele também era professor de inglês e dava aulas a distância através do site Englishtown, que possibilita o contato com pessoas de vários países. Por meio dessas aulas, Salam conheceu um aluno brasileiro chamado Márcio Soares, um médico de 48 anos. Após o contato com Soares, que reside em Santos, tornaram-se amigos e começaram a trocar mensagens com maior frequência. A amizade permitiu que Salam pedisse ajuda ao aluno para sair da Síria e se instalar no Brasil. Ele descobriu um programa de refugiados no Brasil que só iria liberar o visto em seu passaporte quando fosse apresentado um comprovante de residência
de um brasileiro. Soares liberou o documento a Salam e ele solicitou a vinda para o Brasil nesse programa. Após o pedido no aeroporto de Beirute, no Líbano, esperou 40 dias para que a sua viagem fosse aprovada. “Meu amigo disse que me esperaria no aeroporto, mas fiquei com medo dele não aparecer. Ao chegar, fiquei aliviado ao encontrá-lo”. O médico abrigou Salam, enquanto ele se esforçava para aprender a falar a língua portuguesa. Soares se considera solidário à causa Palestina e se sentiu bem por ajudar o sírio. “Ele vivia tranquilo, apesar de conviver com a angústia da distância de seu povo e da sua família” explica o médico. Em busca de emprego, o sírio chegou a fazer várias entrevistas em Santos e em São Paulo, mas foi reprovado por não conseguir desenvolver a fala. Só conseguiu trabalho depois de quase dois
Na página ao lado, Damasco, na Síria em 2011 Hoje, Salam mora em um prédio com o irmão e a esposa, no Gonzaga.
anos, e ainda assim, por indicação do amigo. Ele continua trabalhando em uma empresa santista, na área em que se formou. Depois de empregado, Salam trouxe a esposa para o Brasil. Ele afirma que só conseguiu trazê-la porque na época a guerra estava começando, facilitando o refúgio. No entanto, ainda tem dificulda des para resgatar o resto da família. “Tenho minha mãe, meus três irmãos, meu cunhado e minha sobrinha, que ainda estão lá. Está muito difícil trazê-los”, diz. No começo, a família de Salam não pensou que ele fosse conseguir o visto para o Brasil. “Quando anunciei que queria sair do país, minha mãe desacreditou, achando que não iria dar certo. Então, no dia que apareci com o passaporte nas mãos, ela chorou”. A mãe também é a pessoa que Salam mais sente falta. “Ainda na Síria, todas as noites,
quando eu chegava do trabalho, não importava o horário ou o meu cansaço, eu ia até o quarto dela pedir a sua benção” relata Salam, com pesar. Devido à grande quantidade de sírios que abandonaram o país (números que ultrapassam 100 mil, desde 2011), o procedimento para sair da Síria ficou mais rígido, o que dificulta o desejo de Salam trazer seus parentes. Uma outra alternativa seria atravessar a fronteira como muitos refugiados têm feito, porém, é um processo arriscado. A travessia pelo mar sem autorização também é perigosa e muitos já morreram nessa jornada. “Não foi fácil. Durante a guerra perdi meu pai, amigos e familiares em menos de um ano. Mas no Brasil encontrei a paz de que tanto precisava. Hoje, sinto que sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, conta, sorrindo
TEXTO Thaise Souza e Veridiana Augusto FOTOS Thayla Lorrane
“Tenho minha mãe, meus três irmãos, meu cunhado e minha sobrinha, que ainda estão lá. Está muito difícil trazê-los”
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DIAGRAMAÇÃO Bruno Lestuchi
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MISANDRIA E ALEGRIA JORNALISTA, FEMINISTA E MILITANTE DE CARTEIRINHA. CONHEÇA FERNANDA VICENTE, A INQUIETA ORGANIZADORA DA MARCHA DAS VADIAS NA REGIÃO
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eu nome já foi colado aos nomes e projetos que realmente contam para o avanço do movimento feminista no Brasil. Assertiva, direta e pouco ligada às “feminices” da vida moderna, a jornalista Fernanda Vicente costuma emprestar uma definição da santista Patrícia Galvão, a Pagu, para falar de sua militância: “Esse crime, o crime sagrado de ser divergente, nós o cometeremos sempre”, pontua, com autoridade de quem sabe que comprar brigas, algumas vezes, é também evoluir. Almofadas estampadas com o rosto de Frida Kahlo, ícone feminista, e uma cadela vira-lata de cor preta batizada com o nome Zelda (nome dado às mulheres de família real do jogo eletrônico The Legend of Zelda) são alguns símbolos do movimento feminista que povoam a casa e o dia a dia de Fernanda Vicente. Ela se descobriu feminista há 15 anos e, desde então, quer ajudar e incentivar mulheres a lutarem por seus direitos. É uma das organizadoras da Marcha das Vadias da Baixada Santista e trabalha em diversos outros projetos e coletivos.
“Mesmo outras mulheres declaram que elas não precisam do feminismo e que o movimento é fruto da ‘falta de sexo’.”
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Fernanda não nasceu feminista mas foi colecionando ao longo da vida as injustiças de um mundo em que homens podem muito mais que mulheres. Isso sempre foi motivo de indignação para ela. Mas foi o fim de uma tumultuada relação abusiva que lhe deu a coragem de lutar por seus direitos. Seus e de muitas outras mulheres. “Quando eu saí desse relacionamento, prometi a mim mesma que, enquanto vivesse, eu ajudaria outras mulheres. Por muito tempo acreditei que estava merecendo. Quando me dei conta de que era exatamente ao contrário, fiz essa promessa e cumpro com gosto”. E já se vão 10 anos de militância. Durante esse tempo, Fernanda se envolveu com diversos projetos. Por dois anos foi voluntária em uma casa de apoio a mulheres vítimas de agressão. Ela mesma conta: “Era muito bom, eu levava conhecimento para elas”. Até seu tempo livre era dedicado ao movimento. A página Feminismo sem Demagogia, que ela administra no Facebook, contabiliza mais de 1 milhão de acessos e surgiu justamente nesses momentos entre uma conversa e outra. Após recente e assombroso caso do estupro de uma menina de 16 anos por outros 33 homens, no Rio de Janeiro, Fernanda criou outra página, Quero um dia sem estupro, voltada para vítimas de abuso sexual, A ideia é compartilhar relatos anônimos diariamente. A página ganhou popularidade em pouco tempo. Em 72 horas foram mais de 1500 curtidas. Mas sua militância não se limita ao mundo online. Com a mente sempre ativa e grande
vontade de lutar e ajudar o próximo, ela desenvolveu projetos como o coletivo Roda de Mães, focado no feminismo e maternidade, já ativo, e um que busca o empoderamento feminino através da fotografia. Tem também o projeto Nossos Traços, tocado em parceria com a militante Tatiana Guimarães. “Queremos mostrar paras mulheres sua beleza natural. Uma fotografia real, sem Photoshop, com sovaco peludo, barriga, cirurgia de violência obstétrica. Mostrar para a mulher que o bonito não é só o padrão imposto por todo um sistema”, defende. Fernanda ainda faz parte do Coletivo Feminista Pagu e é organizadora da Marcha das Vadias da Baixada Santista, uma de suas atuações de maior destaque. Ela resolveu entrar para o movimento, que é mundial, há 5 anos, depois de participar na edição de São Paulo. No ano seguinte ocorreu a primeira manifestação na Baixada Santista. Ela faz questão de ir nas duas, apesar de atualmente só fazer parte do coletivo da Marcha do litoral, que ajudou a organizar
desde o seu início. O coletivo faz várias atividades, além da Marcha, que é anual e sempre acontece entre outubro e novembro. Para abrir o ano, as militantes costumam promover um piquenique no mês no março. “É um piquenique feminista, homens podem colar, mas o protagonismo é nosso. Nosso lugar de fala. Quem manda ali são as minas”, rebate com seu tom naturalmente incisivo. Ao contrário do que se costuma pensar, a Marcha das Vadias não é sobre sexo, é sobre violência. As militantes querem discutir e chamar atenção para o estupro, falar de feminicídio. Todo ano, antes de começarem a marchar, as organizadoras anunciam os nomes de uma por uma das que foram assassinadas naquele ano. “Teve um ano que uma amiga nossa estava na Marcha e no ano seguinte falamos o nome dela. O namorado a matou, espancou e esfaqueou. Para você ver que nem ser feminista te livra da violência e da misoginia.” Mas nem todos compreendem a luta de Fernanda. Além de lidar
FIQUE LIGADO A nova onda do feminismo, que ganhou corpo não só com a internacionalização da Marcha das Vadias, mas também com o engajamento de artistas de dentro e de fora do Brasil, deu projeção a movimentos, expressões e palavras que deverão ser cada vez mais usadas na mídia, nas escolas, e até nas conversas de bar. Femismo - a ideia que mulheres são superiores aos homens. Misandria - repulsa, desprezo ou ódio contra o sexo masculino. Misoginia - repulsa, desprezo ou ódio contra o sexo feminino. Sororidade - irmandade entre mulheres.
Fernanda durante a Marcha das Vadias de 2015, com a frase “chega de transfobia” marcada na pele
Fernanda: “se existe mulher que parou de apanhar foi por conta do feminismo” Mulheres se preparam para a primeira Marcha das Vadias da região
“Se não fosse o feminismo, você não estaria aqui agora, estaria fazendo um bolo pro seu marido e apanhando.”
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com a revolta de homens misóginos diariamente, ela recebe até mensagens de outras mulheres declarando que não precisam do feminismo e que o movimento é fruto da “falta de sexo”. Porém, segundo Fernanda, ele está presente na vida de cada uma, querendo ou não. “Se estamos aqui hoje é porque lá atrás um monte de mulher batalhou. Se não fosse o feminismo, você não estaria aqui agora, estaria fazendo um bolo pro seu marido e apanhando. Se existe mulher que parou de apanhar, foi por conta do fe-
minismo – porque existe agora Maria da Penha, Delegacia da Mulher.” Ainda assim há muito a ser feito. De acordo com o Mapa da Violência da Mulher de 2015, foram mortas mais de 3500 mulheres apenas no ano passado. São 15 mulheres mortas por dia. Cada 5 minutos, uma mulher é agredida até a morte e a cada 12 segundos, uma mulher é estuprada. “A gente está aqui conversando, duas, três já foram espancadas”, comenta, fazendo com que um silêncio caia sobre a conversa por um longo momento. É por isso que a militância se faz tão necessária. O trabalho que Fernanda desenvolve de forma tão abnegada é elogiado em
vários setores da sociedade. A advogada Camila Indes, de 53 anos, diz que mobilizações como essas ajudam a reduzir o estigma da culpabilidade que atinge as vítimas. Ela, que já presenciou diversos casos de violência à mulher, diz que “é legal ver que graças ao crescimento do movimento e a essas mulheres que lutam tanto por ele, as outras se sentem mais confiantes para se defender. Uma das pautas no feminismo é a culpabilidade da vítima. Temos que chamar a atenção para o quanto isso é errado. Quanto mais gente souber disso, melhor”. Em sua página no Facebook, Fernanda estampa a frase “misandria e alegria” em destaque. Misandria é a repulsa, desprezo ou ódio contra o sexo masculino. Logo abaixo, seu status de relacionamento mostra que é casada com Dom Lino, um homem – contradição que virou motivo de piada para o casal. O próprio Dom sabe que a provocação não passa de uma brincadeira: “Não existe essa de misandria, isso parece viagem de ácido. Não existe, simplesmente porque mulheres não podem oprimir homens.” Esse pensamento desconstruído o acompanhava mesmo antes que ele conhecesse Fernanda, mas ele diz que estar com ela se tornou um aprendizado constante. “Agora eu já tenho um detector, vejo algo e logo penso: acho que tem alguma coisa machista nisso. Aí eu chamo a Fê e ela diz o que é.” Mas o machismo já se mostrou presente até entre amigos, quando o assunto era o relacionamento dos dois. “Vários amigos já vieram perguntar: ‘nossa, você está com uma feminista, tem que tomar muito cuidado com o que fala,
“Eu sei que o mundo lá fora é sexista e machsta, mas aqui dentro ele não encontra isso. Eu quero colocar um babaquinha a menos no mundo.” né?’. Não, a gente só fala merda. Não é essa dificuldade toda que você está pensando”. E Fernanda complementa, orgulhosa: “Até porque você não fala merda. O Dom sabe que é complicado para caramba ser mulher. E ele sempre pensou assim, senão eu não estaria com ele. Já acabou a minha cota de babacas. Tem que entender meu feminismo, minha misandria. Ele morre de rir.” Juntos, Fernanda e Dom criam Davi, filho dela de sete anos. Por ser um menino, há toda uma preocupação em educá-lo para que ele cresça de mente aberta, livre de preconceitos. “A gente martela muito a questão do respeito, ele vê como o Dom é comigo. A questão da coisa linear... Não temos papel de gênero aqui dentro. Sou uma pessoa muito autônoma, então mostro pra ele que a menina não é um ser frágil que precisa de um super-herói para tudo. Tem que tratar bem e tratar igual. Eu sei que o mundo lá fora é sexista e machista, mas aqui dentro ele não encontra isso. Eu quero colocar um babaquinha a menos no mundo”, sonha
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TEXTO E FOTOS Bruna Faro e Laura Bojart DIAGRAMAÇÃO Bruna Faro e Laura Bojart
E L A MARCELLA SANT ANNA, NASCEU MARCELO. COM MUITA CORAGEM E PERSISTÊNCIA SUPEROU O PRECONCEITO E ASSUMIU A TRANSEXUALIDADE
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ealizada. É assim que Marcella Sant Anna, de 28 anos, se descreve hoje. Mas nem sempre o sorriso tímido foi tão fácil. Para se sentir confortável dentro da própria pele precisou passar por muita coisa, ainda quando menino. Ficou confuso? Pois é. A infância de Marcella também foi de muita confusão. “Eu me via de uma forma e me enquadrava socialmente de outra”, explica ela. “Masculino” ou “Feminino” eram e ainda são as opções possíveis no campo ‘sexo’ da certidão de nascimento no momento em que a obstetra constata o órgão sexual do bebê. A definição médica é vista como obstáculo para quem não se identifica com o que está escrito ali e luta para mudar algo a que nunca teve direito de escolha. É a realidade de Marcella, que nasceu no dia 17 de setembro de 1987, como Marcelo. Mas não apenas os aspectos físicos e padrões estéticos definem um gênero, e Marcella é prova disso. A confusão interna veio cedo, lá pelos nove anos. “Nunca me senti confortável para brincar com meninos. Percebia uma repressão de todos os lados. A sociedade cria o menino para ser menino e a menina para ser menina, então é muito confuso”. Quando tinha 10 anos Marcella e a família, que eram de Santos, se mudaram para São Vicente. Criada pela bisavó materna, apesar de sempre ter a mãe presente, ela começou a estudar no Fortec, onde concluiu o Ensino Médio. Na época, ainda menino, tinha um comportamento mais heteronormativo, mas sofria com hostilidade e agressões. Sant Anna chegou à adolescência sem ter ninguém para conversar. Não entendia porque se sentia tão diferente. A
autoaceitação veio aos 16 anos, quando notou que em sua classe havia gays, transexuais e meninas descobrindo-se lésbicas. Foi nessa época que Marcella beijou pela primeira vez seu “amor platônico”, um garoto da classe. “Eu lembro que a gente estava no banheiro da escola e quando nos beijamos foi aquela coisa meio de livro mesmo. Eu não sentia o chão, um segundo parecia que demorava 10 minutos”. O garoto, já assumido, foi quem impulsionou Marcella a se apropriar de sua orientação como homossexual. A partir desse momento as piadinhas começaram a ser respondidas de cabeça erguida. UNIVERSO FEMININO A descoberta da profissão foi logo aos 17 anos. No último ano do Ensino Médio, Marcella começou a trabalhar como ajudante de cabeleireiro. Depois de dias de trabalho intenso ela queria extravasar. Sua diversão fora da escola e do salão passou a ser o “point” LGBT mais
popular da Baixada Santista há quase 30 anos, o Quiosque da Cris, em São Vicente. Mesmo antes dos 18, Marcella passou a frequentar baladas e descobriu o palco. Vieram os shows e até participação em concursos de Drag Queens. Durante o ensino médio ela se trasvestia apenas para os shows. “Até então eu me via como homossexual e mantinha relação com outros rapazes gays”, explica. Marcella ainda não imaginava que na intimidade mesmo era transexual, tanto que já se sentia muito bem vestida de mulher. Ela mergulhou cada vez mais fundo no universo feminino. Comprou peruca de cabelo natural e até deixou o cabelo crescer. O ápice foi o começo da automedicação
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com hormônios. O corpo ganhou mais curvas. Nas blusas fluídas que desciam sobre seu colo, os seios apontavam. “Quando alguém comentava sobre a mudança, eu falava que estava fazendo tudo pela arte. A resposta estava pronta na minha cabeça, eu buscava uma desculpa para mim mesma por não me aceitar”. O “estalo” aconteceu em uma festa na casa de um amigo. Na ocasião, uma antiga colega de escola chegou transvestida. “Eu conheci aquela moça como menino e lá estava ela com o corpo feito, peito, cabelo enorme. Quando eu a vi, pensei: quero ser assim 24 horas por dia.” DOCE ILUSÃO “Mãe sente. Eu sabia da condição da Marcella, desde que ela tinha dois anos”, diz a dona de casa, Claudia Aguiar Santana. A “descoberta” aconteceu durante a primeira Parada Gay da Baixada Santista. Foi a primeira vez que Marcella, vestida de mulher, encarou a rua e a luz do dia. “Senti que saí do gueto, da obscuridade”. Uma vizinha da família viu Marcella e foi contar para a bisavó dela. O medo de magoar os familiares e até de ser expulsa de casa fez com que Marcella não voltasse para casa naquele dia. “Desmontada”, de cara lavada pelas lágrimas, Marcella buscou abrigo na casa de uma amiga. Cláudia Santana relembra a história: “Umas onze da noite uma amiga dela me liga, pensei: mataram, espancaram ele. A amiga então falou que não sabia como contar o que tinha acontecido e eu respondi: meu filho é ‘viado’ o que aconteceu? Bateram nele?”. Depois desse dia Marcella percebeu que, de fato, a mãe sempre soubera. Diante da aceitação da
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mãe, teve certeza de que não devia satisfação a mais ninguém. À FLOR DA PELE Aos 18 anos Marcela optou pela terapia hormonal com um investimento do próprio bolso, usando técnicas correntes no mundo transgênero, na base do ‘diz que me diz’. Só há dois anos consultouse com uma endocrinologista, que cobrou R$ 250,00 por um atendimento decepcionante. A médica afirmou que não receitaria remédio algum. “Ela foi negligente, não me pediu exames para saber se eu estava ferrando com meu fígado por tomar remédio em excesso, foi totalmente omissa”. A única informação construtiva que tirou da sua primeira consulta como transgênero foi sobre a existência do ambulatório de transexualidade do Hospital das Clínicas, em São Paulo. “Entrei na internet, mas era uma fila enorme, não consegui nem um encaixe”. Demorou, mas o destino deu um empurrãozinho. Através de uma postagem no Facebook, feita por Taiane Myiake, transexual ativista, Marcella tomou conhecimento do Ambulatório de Transexualidade que funciona desde o ano passado no hospital estadual Guilherme Álvaro, em Santos. Além de procurar um tratamento hormonal correto, foi atrás de um sonho, a troca da documentação. “Eu só lembro realmente do meu nome quando vejo um documento ou uma foto antiga. No espelho eu não reconheço mais o Marcelo”, confessa. Ela já venceu uma das batalhas. Depois de passar por diversas consultas psicológicas no Guilherme Álvaro, Marcella conseguiu uma declaração para alterar o nome de registro. Depois de inúmeros constrangimentos por ter o nome Marcelo em seus documentos desde
“Conheci aquela moça como menino e lá estava ela com o corpo feito, peito, cabelo enorme. Quando eu a vi, pensei: quero ser assim 24h horas por dia.”
Marcella: Sorrisos, caras e bocas para as lentes da Viral
“Foi muito doloroso. A mão da mulher tremia ao injetar o silicone, de tão denso. Tem muita gente que morre assim e eu dei sorte.”
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problemas com cartão no supermercado, até falta de respeito em hospitais, Marcella poderia enfim se identificar com o nome que escolheu. Na rua não é diferente. Segundo dados da organização Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis. “Eu, graças a Deus, nunca levei um tapa no meio da rua. Xingamentos sim”. Na luta contra o preconceito, ela tem uma aliada e tanto. Desde o episódio da parada LGBT, Cláudia, a mãe, virou a grande defensora da filha. “Se tivesse que ter de novo, eu a teria do jeito que ela é agora. Se ela não contar com o amor da mãe o que seria? Eu defendo mesmo”. REDESIGNAÇÃO “A primeira pergunta que as pessoas me fazem é se eu sou operada”. A resposta é não. Marcella não é operada e nem quer. Nem por estética, nem para obter aceitação alheia. “Eu gosto e adoraria ter a oportunidade de voltar em outra vida travesti. É diferente, não sou
nem uma coisa nem outra. Eu sou transexual, travesti, transgênero. Sou isso e ponto”. Só existe um motivo que a faça mudar de ideia: poder gerar uma vida. “Se um dia a ciência fizer com que eu possa gerar uma criança, aí sim serei a primeira a entrar na fila”. EXPERIÊNCIAS Após o termino do seu primeiro relacionamento Marcella decidiu abandonar tudo e partir para São Paulo, onde sentiu-se pela primeira vez em casa. “São Paulo é uma terra que abraça”, diz ela. Marcella morou em uma república com outras oito travestis que se prostituiam, e por influência delas, chegou a se prostituir por seis meses. Policiais que chegam brigando, pessoas fedidas, bêbadas e até caras legais. Essas são as principais lembranças que Marcella tem da época. “Foi uma experiência interessante e não me arrependo. Mas não é fácil e é um risco à saúde física e mental. Hoje eu relembro e penso: prefiro ficar das 9h às
TEXTO Roberta Caprile FOTOS Jheniffer Adorno
DIAGRAMAÇÃO Luciana Novais
22h com o secador e a escova na mão, puxando o cabelo do povo, fazendo escova e engolindo progressiva”. Com o passar do tempo, percebeu que apesar de morar com outras travestis estava, na verdade, no meio de uma competição de egos onde a mais bonita era a que levava a medalha. Frases como “travesti sem silicone não é travesti, é viadinho”, começaram a machucar Marcella. O mundo ao qual ela acreditava pertencer dava-lhe “surras” também. Ela então desceu a serra em busca do tão desejado silicone, porém, de forma clandestina. Na primeira tentativa, foram 26 furos na região dos glúteos para a injeção do silicone industrial, fechados com cola Super Bonder, na raça e sem anestesia. E 15 dias dormindo de barriga para baixo, sobre uma tábua de madeira. Esse foi o resultado do procedimento realizado no corpo de Marcella por outras travestis, chamadas de “bombadeiras”. “Demorou umas três horas e foi muito doloroso. A mão da mulher tremia ao injetar o material, de tão denso. Tem muita gente que morre assim e eu dei sorte. Fiz por pressão, mas não me arrependo. Coloquei pouco”, diz Marcella. CERTO POR LINHAS TORTAS Marcella voltou para São Vicente depois de seis meses porque a bisavó adoeceu. “Ela não conseguia viver sem mim”, brinca. Na praia conheceu seu atual namorado, o autônomo Yuri Fernandes Urnikis, 27, através de um amigo em comum. A princípio nenhum dos dois tinha a intenção de um relacionamento sério, mas o tempo passou e o namoro foi oficializado em maio de 2011. Pelo fato de Yuri só ter tido relacionamentos héteros,
eles tinham receio da reação da família dele. “Uma das primeiras perguntas que o pai dele me fez foi sobre o que eu fazia. Quando falei que era cabeleireira acredito que ganhei alguns pontos”. A partir daí a aceitação só cresceu. Hoje Marcella frequenta normalmente a casa dos pais de Yuri, que são budistas, A sogra “querida”, como ela mesma diz, aproveita o dom de Marcella para cortar os cabelos. “É um relacionamento normal, me sinto muito em família”, diz Marcella, com um sorriso no rosto.
nova forma de registro em que se respeite isso”, diz Marcella. Fazer faculdade está entre seus planos, um feito que ela quer dedicar à mãe Claudia. Outro sonho é formar novos cabeleireiros. E por último, mas não menos importante, Marcella lembra de Yuri: “quero continuat com ele até ficarmos bem velhinhos”. “Tudo o que eu tiver com conforto e felicidade, serei a pessoa mais feliz do mundo. O resto são as lutas do dia a dia que não vão terminar tão cedo. Mas graças a Deus é uma batalha de mais vitórias do que derrotas”, completa
LÁ NA FRENTE “Eu acredito que a identidade de gênero daqui a alguns anos não vai mais ser estabelecida. As pessoas vão viver da maneira que se acham no direito de viver. Talvez as crianças não sejam mais registradas como menino ou menina, talvez seja adotada uma Na foto ao lado, Marcelo quando bebê Abaixo, Marcella Sant Anna atualmente
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VÔLEI NA ERA DO OURO O CAMPEÃO OLÍMPICO RODRIGÃO CONQUISTOU MUITAS MEDALHAS NO VÔLEI E AGORA MIRA PROJETOS SOCIAIS NA BAIXADA SANTISTA
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odrigo Santana, 37 anos, tem muita história para contar. Com três olimpíadas no currículo, uma medalha de ouro e duas de prata, o atleta é um exemplo de raça e determinação. Rodrigão do vôlei, como é chamado, chegou para a entrevista de bermuda, camiseta e chinelo. Do alto de seus 2,05 metros de altura, usou o bom humor para se desculpar pelo atraso de quase uma hora. Ele decidiu que a conversa com a reportagem da Viral seria ali mesmo, no hall do prédio em que reside, em Praia Grande. Mas ao final da conversa, a equipe já estava no apartamento para ver de perto a coleção de troféus e medalhas. A casa de Rodrigão é típica de um homem solteiro, com algumas peças de roupa espalhadas e decoração bem clean. Para onde quer que se olhe há objetos, bolas, medalhas, troféus, fotos de alguns momentos dele em quadra e até camisas autografadas por grandes atletas. Nem sempre Rodrigo morou em Praia Grande. Ele cresceu em Osasco, onde começou sua carreira de atleta. Porém, seus padrinhos eram de Praia Grande, então ele passou boa parte da infância na cidade, à qual ficou bastante ligado. “Sempre gostei daqui e como nunca pude ter um lugar fixo por causa da profissão, fiz de Praia Grande a minha base. Antes aqui era só para passar as férias. Eu nasci em Pirituba, mas com 19 anos já estava morando aqui”.
“Foi uma Aposentado das competições, ele revelou que pretende tocar alguns projetos esportivos na cidade, que, segundo acredita, têm muito potencial para o desenvolvimento do jovem no esporte. Rodrigão tem conversado com o prefeito Alberto Mourão sobre alguns projetos, mas são todos para 2017. “O importante do esporte é que ele ensina valores importantes. Disciplina e dedicação, por exemplo. Então mesmo que as crianças não sigam carreira esportiva, terão uma boa base. Aqui tem muitas crianças que moram em comunidades, e o ídolo delas, muitas vezes, é o dono do morro, o traficante, isso tem que mudar. Se o ídolo dele for um jogador de vôlei, de natação, ou qualquer outro esporte, isso muda o foco. A gente tem que trazer o ídolo pra perto das crianças”. NAS ALTURAS Desde muito jovem, Rodrigão escuta que é alto, que deveria se dedicar ao basquete ou ao vôlei, mas o interesse pelo esporte só despertou aos 13 anos, incentivado pela Geração do Ouro Olímpico de Barcelona de 1992. Foi então que ele decidiu fazer um teste no time do Banespa, clube de tradição do voleibol paulista e que já contava com atletas de peso, como o Tande. Rodrigão foi no último dia da peneira e acabou garantindo uma das últimas vagas. Por um ano inteiro ficou no banco, não entrou em nenhum jogo e não se destacava. Mas, com muito treino, após quase dois anos de Banespa ele conseguiu entrar em quadra em um dos jogos próximos da final do campeonato. “Foi uma sensação boa, pois tinha um olheiro da seleção brasileira,
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que me convidou para ficar de reserva na seleção infantojuvenil”. A partir daí as coisas mudaram na vida de Rodrigo. Em 1994, convidado a morar nos alojamentos do Banespa, ele chegava também ao banco de reservas da seleção brasileira. Em 1995, após três anos de experiência no esporte, foi convocado para jogar no time titular da seleção brasileira infantojuvenil. Foi quando entrou para o time do Suzano e ficou no banco de reservas do time adulto da seleção brasileira. “Saí do Banespa pois lá nunca fui titular e o Suzano me fez uma boa proposta. Me chamaram para ser titular na minha categoria e reserva da categoria adulto”. No Suzano, a carreira do atleta deslanchou. Depois da passagem vitoriosa de quatro anos pelo time, Rodrigão jogou em diversos clubes do exterior. O primeiro foi o Estense 4 Torri Ferrara, depois o Lube Banca Marche Marcerata, ambos
Campeão olímpico, Rodrigo Santana revelou seus futuros projetos esportivos
sensação boa, pois tinha um olheiro da seleção brasileira, que me convidou para ficar de reserva na seleção infantojuvenil”
da Itália, e ainda Ziraat Bankasi Ankara, da Turquia. Sua última experiência estrangeira foi no Barij Essence, do Irã. O último jogo oficial de Rodrigão foi em 2015, na Indonésia, onde o atleta ficou por três meses. “No meu último jogo, não teve nada demais, acho que a sensação mais emocionante foi mesmo na final olímpica, em 2012, quando eu estava deixando a seleção. Uma sensação de dever cumprido”. Mesmo com toda essa experiência, o clube que mais marcou sua carreira foi o Suzano, não por ser o primeiro clube grande, mas porque atletas, comissão técnica e dirigentes viviam como uma grande família. Segundo o atleta, algumas vezes esse amor se tornava loucura, como quando o técnico comprou 300 máscaras do filme “Pânico” e distribuiu pela arquibancada, para poder assistir a um dos jogos
Camisa autografada por todos os atletas da seleção: lembrança dos anos dourados Emoção no pódio das Olimpíadas de Pequim, em 2008 Conduzindo a tocha Olímpica de Londres, em 2012
disfarçado, pois estava expulso e não poderia acompanhar a partida. Segundo o atleta, para monitorar a viagem da equipe a caminho do jogo, o treinador costumava pedir para que o pessoal do pedágio ligasse para ele, avisando quando eles passassem pelo ponto. “Pra você ter ideia da loucura, ele colocou o Giba para morar em frente à casa dele, pra monitorar quando ele ia dormir, a hora que acordava. Tinha vezes que ele ligava na casa do Giba e falava: ´Ô Giba, já são 23h30, tá na hora de apagar a luz`.O amor e zelo ultrapassavam os limites. Mas eu sei que era por cuidado e puramente amor” relembra Rodrigão. Com 18 anos Rodrigão teve o primeiro filho e, um ano depois, o segundo. Por estar no início de carreira, tudo foi difícil. Ele
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ganhava R$ 450 por mês, cerca de R$ 800 em valores de hoje. “Eu tinha dois filhos para criar, então essa época foi bem difícil, mas o vôlei sempre foi a solução pra mim”, resume. Segundo ele, a carreira já estava consolidada, mas não tinha estrutura para criar dois filhos, ainda assim acredita que tudo valeu a pena. “Minha relação com eles é muito boa. Hoje tenho três filhos: o mais velho, Victor Hugo (18) joga vôlei; a minha filha, Rafaela (16) não se interessa por esporte, quer outras coisas; e o mais novo, Pedro Henrique (8) é tranquilo também, mas é pequeno, não sabe o que quer, só quer brincar. Toda aquela parte complicada do começo, de não saber como criar, o que fazer, me ajudou muito hoje. A gente sai
junto, conversa, brinca junto”. Rodrigão se sente orgulhoso e bem exigente quanto ao empenho do filho mais velho no esporte. “Opino muito nos jogos. Eu critico demais porque acho que ele é muito preguiçoso. Trouxe dois atletas aqui em casa pra treinar no começo do ano e eu mostrei o porquê de eles serem melhores. Eu falava pra gente treinar às 7h, eles estavam de pé. Já meu filho não, ficava enrolando. Fiz um campeonato e meu filho ganhou no grupo, porque estava jogando com esses dois. Na disputa em duplas foram eles que ganharam porque treinavam todos os dias com afinco, enquanto ele estava com preguiça. Eu sempre falo onde ele erra, e ele responde sempre com diversas desculpas, mas faz parte”.
Despojado, Rodrigão relembra as boas histórias de bastidores
Rodrigão considera o Lube Banca Marche, no qual jogou entre 2005 e 2008, o melhor time. “Cheguei no meio do campeonato, que já estava quase perdido, e conseguimos vencer. Foi o título que eu mais comemorei”. Ele conta que havia 12 mil pessoas no estádio e os torcedores invadiram a quadra. “Eu saí quase sem roupa”, relembra. Depois disso, voltou para o Brasil para jogar no Pinheiros Sky que, segundo ele, tinha um projeto muito bom, mas foi mal administrado. FAMA O voleibolista trabalhou bastante para chegar onde chegou. Rodrigão desabafa que é uma profissão difícil, pois sacrifica muitas coisas, como o aniversário dos filhos, os momentos em família, mas no final é recompensador. “Nunca imaginei essa fama. Comecei a perceber o tamanho do meu nome quando fui jogar fora, aí percebi que as pessoas estavam me observando» conta o esportista. Hoje, Rodrigão pensa em ser técnico, mas para isso é necessário estudo e muita burocracia, então ainda vai esperar. As Olimpíadas serão no Brasil e muitas pessoas se perguntam se o País tem estrutura para o evento. Para o atleta, que já esteve em Atenas, Pequim e Londres, a resposta é sim. Segundo ele, mesmo com os problemas, há muita gente competente no Comitê Olímpico.
“Chance de ganhar sempre tem, mas os times são muito fortes. Chances claras de medalha. Meu medo maior é a falta de foco”. Na opinião dele, quando o time vai jogar fora do país, existe o assédio da imprensa, mas não é igual quando se joga no Brasil. “Eu quero ver como vai ser isso, porque o atleta não pode sair da quadra às 22h e ir tomar café com a Ana Maria Braga no dia seguinte. A gente tem que fechar muito bem o grupo pra essas coisas não acontecerem”, analisa o ex-jogador. O vôlei na vida de Rodrigão representa tudo, toda uma história, sua vida. Ele começou a jogar se inspirando em Dante, mas conta que hoje em dia não tem um ídolo específico, pois todos os jogadores têm uma história muito legal por trás
TEXTO Karoline Oliveira FOTOS Sara Hoffmann
“O atleta não pode sair da quadra às 22h e ir tomar café com a Ana Maria Braga no dia seguinte”
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SONHO OLÍMPICO A ALEGRIA E O DIA A DIA DA NADADORA QUE CONQUISTOU A VAGA OLÍMPICA TÃO NOVA E JÁ PLANEJA FAZER HISTÓRIA
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FOTO: Alex Pussieldi/Divulgação
“Ela era exatamente o que é hoje. Nadava muito bem, se aplicava nos treinos, era educada, não faltava e gostava muito do esporte”. Claudio Paz, o primeiro treinador
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ma menina em busca de um sonho. Assim se pode definir o atual momento na vida de Gabrielle Gonçalves Roncatto, de apenas 17 anos. Dona de diversos títulos nacionais e internacionais, como a medalha de ouro no Campeonato Sul-Americano Juvenil de Natação, em 2015, e a prata nos Jogos Pan-Americanos de Toronto, no mesmo ano, ela ainda comemora a classificação para as Olimpíadas do Rio de Janeiro. A mais jovem nadadora da seleção brasileira quer ajudar a equipe de revezamento 4x200 metros livre, a disputar a prova final e entrar para a história da natação brasileira. Além de nunca ter conquistado uma medalha olímpica, a equipe brasileira feminina de natação só disputou uma final de Jogos Olímpicos na história, em 2004, nas competições de Atenas. Gabrielle, com 1,65 metro de altura e pura simpatia, deu as primeiras braçadas aqui mesmo na região, na Universidade Santa Cecília (UNISANTA), seu atual clube, influenciada pelo seu irmão Matheus, apenas três anos
Gabi venceu quatro provas e bateu dois recordes em sua categoria no Brasileiro Juvenil em 2015
mais velho. Enquanto ele treinava, a futura atleta olímpica, então com sete anos de idade, o observava e ficava com vontade de se jogar na água. Até que um dia sua mãe sugeriu que ela também praticasse o esporte. Nem precisou insistir. Gabi não apenas aceitou a sugestão, mas ao contrário do irmão, nunca mais parou de treinar. E de vencer. Claudio Paz, o primeiro treinador da vida de Gabrielle Roncatto, acompanhou sua evolução até quase os 10 anos de idade. Ele lembra com detalhes o perfil de uma atleta focada e talentosa. “Ela era exatamente o que é hoje. Nadava muito bem, se aplicava nos treinos e não faltava nunca. Tudo o que ela é hoje é fruto desse empenho e determinação. Você vê que ela é uma menina que não se distrai, não fica fazendo coisas extras, brincando ou extrapolando na balada.” A admiração é recíproca. A atleta reconhece que não seria o que é sem os ensinamentos de seu primeiro treinador. “Ele foi como um pai pra mim. Desde pequena ele me acolheu e me ensinou muita coisa na natação, que eu acabei levando para minha vida pessoal”.
Gabi dá exemplos: “Nos treinos ele me mostrava a forma certa de agir em cada situação no momento das provas. A gente até brigava bastante porque eu queria treinar mais e ele não deixava, pela fadiga que poderia gerar para mim (risos)”. Fora das piscinas, Gabi tem uma vida bem corrida. Está no primeiro ano de Direito na própria UNISANTA e se equilibra para conciliar os estudos com a rotina de treinos, sem abrir mão de um tempinho para sair com os amigos e curtir uma balada. Os longos cabelos castanhos e o corpo atlético com certeza chamam a atenção por onde passa e Gabi admite que às vezes se permite alguns deslizes. Como boa descendente de italianos, a nadadora não dispensa uma la-
FOTO: Satiro Sodré/Divulgação
FOTO: Satiro Sodré/Divulgação
Ao lado, entrevista no início da carreira
FOTO: Reprodução/Youtube
Acima, concentração máxima antes da prova
sanha. Ela comenta que adora hambúrguer e que uma fugidinha na alimentação regrada de vez em quando não faz mal. Em 2011, ela foi nadar no Pinheiros, em São Paulo, considerado como um dos maiores clubes do país e que já revelou talentos como João do Pulo e Cesar Cielo e é um celeiro de atletas olímpicos em várias modalidades. Gabi teve um ótimo desempenho nos quatro anos que ficou por lá. Sua maior proeza foi vencer o campeonato nacional Chico Piscina quatro vezes consecutivas. Porém, sua adaptação à capital paulista não foi das mais fáceis. “Foi um ano muito difícil. Fui apenas com meu pai e meu irmão, enquanto minha mãe e minha irmã permaneceram em Santos. Sempre fomos uma famí
“Acordava sempre às 5h da manhã para treinar, e depois ia para a escola. O clube era longe de minha escola e eu tinha que pegar ônibus. Ficava tanto na rua que só voltava para casa às 21h. Foi bem puxado”.
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FOTO: Assessoria Unisanta/Divulgação
“Às vezes eu dormia na aula, principalmente quando treinava de madrugada. Muitos professores entendiam. Meus amigos também me ajudavam e eu conseguia fazer os trabalhos”.
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lia unida. Eu voltava para Santos apenas no final de semana, o que era muito desgastante. Acordava todo dia às 5 horas da manhã para treinar, e depois ia direto para a escola. Além disso, o Pinheiros ficava longe da casa dos meus avós, onde a gente morava, e eu tinha que pegar ônibus. Ficava tanto na rua que só voltava para casa às 21h. Foi bem puxado”. Apesar das dificuldades, Gabi passou quatro anos e meio no clube paulistano, já com toda a família morando em São Paulo. Ali, nadando ao lado de outras feras, como o nadador Bruno Fratus, consolidou seu nome entre os grandes do esporte. Outro ponto que contribuiu para o seu desempenho no Pinheiros foi a presença de seu irmão e sua irmã como companheiros de treino. “Um dava dica para o outro. Sempre fomos unidos e era muito legal treinar com eles. Meu irmão mais velho sempre me ajudava e eu procurava fazer o mesmo com a minha irmã mais nova”. Mesmo com a rotina intensa e exaustiva, Gabi nunca deixou os estudos de lado. Na sala de aula, a superação era conseguir ter as
Medalha conquistada e a tão sonhada vaga olímpica garantida
notas e passar de ano. “Às vezes eu dormia na aula, principalmente quando treinava de madrugada. Muitos professores entendiam. Meus amigos também me ajudavam e eu conseguia fazer os trabalhos”. Além da adaptação, Gabi conta que seu momento mais difícil ocorreu fora das águas. Seu pai sofreu um problema cardíaco sério, quando foi diagnosticado com uma artéria quase totalmente entupida. “Fiquei muito abalada nesta época”, conta. Embora o susto tenha sido grande, seu pai fez a cirurgia de cateterismo e recuperou-se bem. Outro fator que a desmotivou, já perto do final de sua passagem pelo Pinheiros, foram as críticas. “Muitos sites diziam que eu já tinha atingido meu limite, o que me entristeceu muito, mas tentei lidar com isso da melhor forma possível”, disse. Perto do final de 2015, Gabi retornava à UNISANTA, seu clube de origem. Então as coisas começaram a melhorar. O desânimo foi diluído em conversas com o psicólogo Henrique Carpegiani e seus treinadores, Gerson Pazian e Marcio Latuf. E, mais tarde, todo seu esforço,
MEDALHA INÉDITA amiga em Santos e com seu cachorro Billy, que encontrou na rua. Ela ficou apaixonada pelo cãozinho e não desgruda dele. No dia a dia, a atleta conta que para acabar com o mau humor, costuma ouvir bastante música, principalmente quando tem que acordar cedo para treinar. Em poucas semanas, Gabi viverá seu sonho: nadará nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Chegar na final já seria um feito inédito para a natação feminina no Brasil. Mas a jovem de 17 anos pode ir além, junto com Larissa Oliveira, Jessica Bruin e Manuella Lyrio – sua equipe no revezamento 4x200m livre – pode quebrar o jejum de medalhas da nataçãoolímpica brasileira
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A seleção brasileira de natação já conquistou 13 medalhas olímpicas na história: oito de bronze, quatro de prata e apenas uma de ouro. Porém, todas nas competições masculinas. Nunca uma nadadora brasileira subiu ao pódio em Jogos Olímpicos. Caso consigam esse feito inédito, Gabi e sua equipe no revezamento 4x200m livre entrarão para a história do país como as primeiras a terminarem o torneio com uma medalha no peito.
Gabi aproveita intervalo de competição para conhecer o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro
VIDA QUE SEGUE... Atualmente Gabi mora com uma
TEXTO Bruno Secco, Daniel Ariante, Rodrigo P. Bertolino DIAGRAMAÇÃO Daniel Ariante e Rodrigo P. Bertolino
FOTO: Arquivo Pessoal/Divulgação
garra e superação ao longo dos anos em que esteve treinando e se superando teve resultado: Gabi conquistou seu sonho, garantindo sua vaga nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, como parte da equipe de revezamento 4x 200 metros livre. Com sua confiança retomada, Gabi partiu para o troféu Maria Lenk, disposta a dar o seu melhor para calar a boca dos críticos. A competição, que serviu como uma seletiva para os Jogos Olímpicos, foi disputada no Rio de Janeiro em abril deste ano. A disputa foi acirrada. Durante a prova dos 200 metros livre, Gabi não alcançou as três primeiras colocadas e só conseguiu uma arrancada seguida de ultrapassagem nos últimos 50 metros, concluindo a prova com um tempo de 1 minuto e 59 segundos. A atleta descreve a emoção dizendo que “a cada braçada que eu dava, parecia mil pessoas nadando ao meu lado e me ajudando. Depois da prova, chorei de felicidade vendo a comemoração da minha família. Diariamente lembro um pouco desse dia, foi muito emocionante”. Após conseguir um ótimo tempo nos 200 metros livre, Gabi ainda nadou os 200 metros medley e conseguiu o quinto melhor tempo da prova. Como a terceira colocada era a argentina Virginia Bardach e a vice campeã, a tcheca Barbora Zavadova, Gabi ficou entre as melhores brasileiras e pode, com o fim do torneio, comemorar o auge de sua carreira e o sonho de nadadora com a garantida vaga olímpica.
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O SURFE VENCEU MESTRE DIQUE DESENVOLVEU TÉCNICAS E EQUIPAMENTOS PARA ENSINAR OS SEGREDOS DO SURFE PARA DEFICIENTES FÍSICOS
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estre Dique é figura fácil na Praia das Pitangueiras, em Guarujá. O pedaço de mar que tem como limites o Sobre as Ondas e o Morro do Maluf oferece formação de ondas, ideal para surfistas iniciantes. Ali é a sala de aula de Edilberto Cardoso, conhecido como mestre Dique. Foi nas Pitangueiras que ele começou a surfar, aos 12 anos de idade. Nascido em 1974, na periferia de Vicente de Carvalho, Mestre Dique encontrou no surfe um caminho para sua realização pessoal e um atalho para escapar da marginalidade, tão comum entre os jovens de sua comunidade. Aprendeu a domar as ondas, desvendou os segredos dos drops e cut backs e ganhou fama entre os garotos que frequentavam as Pitangueiras. Com pouco mais de 20 anos decidiu ensinar tudo que aprendeu aos garotos curiosos da nova geração e virou referência na arte de ensinar os truques do esporte. Teve entre seus alunos o genial Adriano de Souza, o Mineirinho, campeão mundial do esporte em 2015. Em 2009 resolveu inovar, desenvolvendo técnicas especiais e um método próprio para ensinar o esporte para pessoas com deficiências físicas. Usando uma prancha com sensor que avisa o momento certo de entrar na onda, ele atraiu primeiramente os deficientes visuais. “Eu gosto de dar aulas para os deficientes visuais, mas não foi fácil. No começo, pensei que nem fosse conseguir. Foi a garra e a força de vontade deles que fez com que eu me apaixonasse ainda mais pelo meu trabalho. Ver um deficiente visual sobre de pé sobre uma prancha é uma coisa que me impressiona até hoje”. Durante alguns anos Mestre Dique trabalhou também com as crianças autistas do no Instituto Evolução, de Guarujá, mas a parceria não foi adiante. As turmas eram muito grandes, com 30 alunos pela manhã e mais 30 à tarde e não havia equipamentos para todos. Já a turma de deficientes visuais é bem menor, tem apenas cinco alunos. Segundo Mestre Dique a Prefeitura do
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Guarujá não tem repassado verba para a sua escolinha, o que dificulta a compra de material novo e adaptado. “Quem me ajuda com material e financeiramente, é o pessoal da praia mesmo e alguns amigos meus. O pessoal da Prefeitura conhece o meu trabalho, mas não Colabora, e olha que pago alvará para trabalhar na praia todos, cerca de R$ 1.200 por ano. Antes de começar a sua aula, Mestre Dique, pede que os banhistas abram espaço os deficientes visuais. Ele conta com a ajuda do surfista Jorge Nogueira e sua esposa, a estudante de educação física Ana Nogueira. Há um ano, Dique tenta dropar a onda mais perigosa de sua vida. Há um ano ele descobriu um câncer do reto, que está sendo tratado no hospital da Universidade de Campinas (Unicamp), em Campinas. A produtora santista Viva Filmes gostou tanto do trabalho de Mestre Dique que decidiu fazer um mini-documentário sobre sua escola. Com entrevistas com os alunos e frequentadores da praia e com o próprio Mestre Dique, o curta Surfe para Todos pode ser visto no YouTube. Ele dá o recado pra quem quiser ter aula de surfe. “Se a pessoa quiser ter aula comigo em particular na escolinha, é cobrado R$100,00 mas, para as pessoas com deficiência, a aula é gratuita, é só ter força de vontade para aprender. Basta fazer o cadastro, que eu avalio as condições físicas e escolho os equipamentos específicos para cada pessoa”. A escola funciona das 8 da manhã até as 5 da tarde, mas é preciso agendar as aulas antecipadamente
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Mestre Dique com o aluno Cícero durante aula de equilíbrio
TEXTO Romilson Allison FOTO Arquivo Pessoal
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JOÃO DAS COBRAS, O CURANDEIRO DO RÁDIO CLUBE QUANDO OS SINTOMAS APARECEM, OS MORADORES DA ZONA NOROESTE, EM SANTOS, JÁ SABEM A QUEM RECORRER
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oão das Cobras está sentado em uma cadeira no seu quintal, enfiado em um jaleco verde, com seu chapéu de pescador. Do seu lado direito, uma caixa cheia de ervas em pacotinhos transparentes. À sua esquerda, a bengala fica apoiada em uma cadeira vazia, à espera de alguém em busca de cura ou simplesmente de uma boa prosa. Enquanto a visita não chega, ele faz palavras cruzadas no jornal, com um olhar pensativo e distante, enquanto saboreia uma xícara de chá. João é um homem simples, que deixa a porta aberta para quem quiser entrar e conversar. Sua aparência é a de uma pessoa cansada, mas com um olhar que transmite carinho e paciência. Aposentado, ele só não consegue largar uma, entre as inúmeras profissões que já teve: a de curandeiro. Até pouco tempo ele mantinha, no terreno ao lado de casa, um empório de ervas, plantas e sementes com poderes curativos. Mas a lojinha não está mais aberta. O dinheiro que entrava não cobria nem os custos. João resolveu fechar o estabelecimento, mas manteve as portas de sua casa abertas para que jamais faltasse uma possibilidade de socorro para aqueles que o procuram. Seu João das Cobras é um dos personagens mais populares do Rádio Clube, Zona Noroeste de Santos. É curandeiro dos bons, já tratou muita pedra nos rins, muita doença ginecológica, tosse e o que mais aparecesse na sua porta. “Eu ia daqui até Praia
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Grande andando pra buscar um remédio no meio da mata. A minha satisfação é ver as pessoas curadas”. O seu trabalho no dia a dia é bem parecido com o de um médico tradicional: o “paciente” chega, relata os sintomas, João faz algumas perguntas e sapeca uma receita que vai aliviar a angústia ou a dor do visitante. “Tenho medicamentos para quem não tem condições de comprar um remédio caro”, resume. Ele conta que nos tempos de fartura distribuía erva de graça na feira do Gonzaga. Por cinco anos manteve esse hábito. Muitos o julgavam como louco, mas ele só queria ajudar a quem pudesse. Até bem pouco, tudo que se passava no seu “consultório” era guardado na memória: o nome do paciente, a queixa, o remédio indicado. Hoje em dia João não consegue mais receitar sem lançar mão do que ele chama de “pai dos burros”, um caderninho que contém anotações de próprio punho, sobre todas as ervas e para quais problemas de saúde elas servem. “Remédio é uma coisa que a gente tem que dar direitinho, né”. Ele jura que não foi o peso de seus 79 anos que afetou a memória, mas sim um Acidente Vascular Cerebral (AVC) que o acometeu 10 anos atrás. O AVC representou um momento trágico em sua vida, que fez um homem ativo ficar preso a uma cadeira de rodas por meses. Poderia ter sido pelo resto da vida, não fosse seu conhecimento sobre o poder da natureza selvagem. A incrível recu-
peração dos movimentos surpreendeu médicos e moradores do bairro. Para as pessoas da região, era nítido que aquele homem não poderia estar andando tão bem e com todos os movimentos. A recuperação espantosa mostrou para todos que a casa bege, de portão prateado e com a calçada branca não era como a “casa de ferreiro, espeto de pau”. Pois foi graças ao uso que fez de suas próprias folhas, que João das Cobras melhorou e voltou rápido aos trabalhos. As ervas não ajudaram apenas na sua recuperação física, mas também no seu emocional. Ele confessa que quando se viu internado em um hospital, ficou arrasado, mas depois de algumas horas uma enfermeira apareceu no seu leito e disse: “Não acredito que o senhor está aqui”, segundo sua memória essa gentil enfermeira era uma mulher que havia sido curada por ele, com um de seus chás. “O senhor salvou o meu útero, agora vou cuidar do senhor como um rei”, teria dito a enfermeira para Seu João. A partir desse encontro, tratamento VIP ao enfermo mais famoso da Santa Casa, com direito a deliciosas sopas feitas especialmente para ele. TRAJETÓRIA Apesar do seu talento com as plantas, João teve que lutar contra a resistência de sua família, no interior de Mato Grosso. Seu pai, benzedeiro, não queria que João seguisse esse caminho e quando o garoto insistiu em continuar aprendendo a arte de conhecer o poder de cada folha, raiz ou seNa página ao lado, embalagens transparentes, recheadas com misturas de ervas já ficam prontas, à espera do próximo cliente Acima, matéria-prima aguardando o processamento para virar remédio Mesmo fechada, a antiga loja, que é quase um anexo da casa onde João mora, e ainda atrai muitos clientes
mente, foi expulso de casa aos 14 anos de idade. O interesse por esse universo surgiu, pois ele morava em uma fazenda e tratava dos animais doentes com as ervas. Seu pai só descobriu que ele tinha começado a receitar ervas para os vizinhos, quando um deles apareceu na sua porta, para saber mais a respeito da raiz que João havia lhe receitado. Longe de casa, ele escolheu seguir carreira militar para se tornar médico, que era o seu sonho. Atuou como policial do exército por anos, mas não conseguiu seu sonhado diploma de Medicina. Mesmo assim, lembra com carinho das histórias que viveu vestindo a farda. O apelido “das Cobras” tem a ver com um hobby no mínimo bizarro: quando jovem, João se aventurava no meio da mata para
caçar cobras. A primeira vez foi por acidente. Ele andava pela floresta com dois cachorros e um deles foi mordido por uma cobra. João sabia que o soro para curar seu cachorro teria que ser feito com o veneno da cobra que o atacou, e então ele se embrenhou na mata atrás da danada. Queria a cobra viva para poder sintetizar o antídoto. Ele salvou o cachorro e quis ajudar mais vítimas de mordidas de cobra. Começou assim a fazer um serviço voluntário e de grande utilidade pública. Todos os espécimes que encontrava, levava para o Instituto Butantã. Em sua antiga loja de ervas, “Toca das Ervas”, João guardava amostras de muitas cobras que capturou. Jaracuçu, jararaca, cascavel e coral eram as mais comuns. O curandeiro mais famoso da Zona Noroeste nunca cobrou pelo serviço. No lugar de contabilizar os dividendos, ele prefere falar dos milhares de bebês que acredita ter ajudado a vir ao mundo. João perdeu as contas depois de 3.600. Sua maior recompensa são as fotos e lembranças trazi-
das pelas mães, uma prática comum nos consultórios dos obstetras e ginecologistas. SAÚDE DA MULHER João das Cobras diz que mulher é um “bicho” que sofre demais. Ele tem pena delas e por isso pesquisou quais as melhores combinações de ervas para curar miomas, ovários policísticos, corrimentos e diversas doenças ginecológicas, que muitas vezes interferem na fertilidade. Aroera da bahia, barbatimão e calêndula são algumas das ervas que ele mistura para fazer o seu famoso chá. Mas não só as mulheres se beneficiam do seu conhecimento. Em reportagem do jornal A Tribuna publicada em 13 setembro de 2009, ele diz que também tem estimulantes para homens. E avisa que, caso uma mulher se submeta aos seus tratamentos e não queira engravidar, deve tomar muita precaução, pois ficará mais fértil. Ele não faz essa ressalva por acaso, já que sua própria filha, Marília, pediu para o pai cuidar dos seus problemas ginecológicos, mas não seguiu à risca seu conselho.
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Ficou grávida e, a princípio, não queria ter a criança, por isso escondeu a gravidez de João. Quando ele descobriu, disse que havia avisado e agora era unir a família e cuidar da criança. O neto, Andrey, de 11 anos, é grudado com o avô. Quando está por perto, ajuda o avô a pegar ervas no estoque ou simplesmente faz companhia, observando o movimento da rua. Uma de suas clientes mais satisfeitas é Carla Fraguas, de 42 anos. Ela jura de pé junto que só engravidou por causa do chá poderoso do seu João. Por estar com seus 32 anos na época e nunca ter engravidado – já havia tentado inúmeras vezes sem sucesso-, foi a especialistas e descobriu que tinha um mioma. Pensou que não poderia ter filhos. Ela estava em um relacionamento estável e sem contar nada para seu noivo, decidiu testar o chá do João das Cobras: “Não tive que esperar muito para ver o resultado, em menos de um mês soube que estava grávida do Raul”. Quem também tem o que falar sobre os acertos de João das Cobras é o aposentado, Sadraque Vicente, de 47 anos. A pedido de sua esposa, que sofre de diabetes, ele procurou seu João. Como ouviu muitas histórias sobre o curandeiro, a esposa de Vicente pediu para o marido procurar o curandeiro Para garantir total eficiência do novo tratamento, Vicente tirou inúmeras dúvidas sobre os métodos de uso e perguntou sobre a doença que acomete sua esposa. “O remédio dela não está mais fazendo efeito”, reclamou. João entregou-lhe dois saquinhos transparentes, deu as instruções de uso e não cobrou pela consulta, nem pelo medicamento. Doenças sempre vão existir, mas para os moradores da Zona Noroeste a forma de tratamento pode ser bem diferente. Além do diagnóstico e umas folhas de chá como remédio, os moradores também têm acesso fácil e garantido a uma boa prosa
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João faz uma volta ao passado folheando o álbum de fotos e a pasta de recortes
“Eu ia daqui até Praia Grande andando pra buscar um remédio no meio da mata. A minha satisfação é ver as pessoas curadas”