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Carta ao Professor
Caro professor, O grumete e o tupinambá – romance da França Antártica é uma obra voltada para os anos do Ensino Médio e contempla temas como, 2.6.7.1 Projetos de vida, 2.6.7.2 Inquietações da juventude, 2.6.7.7 Protagonismo juvenil, e 2.6.7.9 Diálogos com a sociologia e com a antropologia, todos eles caros à Base Nacional Comum Curricular, a BNCC. Neste material digital, você encontrará subsídios para desenvolver várias atividades em sala de aula, bem como para se aprofundar sobre alguns tópicos derivados das propostas de trabalho. E não deixe de aproveitar as sugestões de referências complementares. Nesta carta de abertura, estão também as palavras do autor e do ilustrador a respeito de si mesmos e de seus trabalhos profissionais e do livro O grumete e o tupinambá – romance da França Antártica.
O Autor
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Aos doze anos, escrevi meus primeiros contos com a intenção de ser escritor. O curioso é que, com aquela idade, eu já queria escrever para crianças e adolescentes. Amava os romances e os contos, as histórias de mistério, mas, também, as crônicas de humor. E, aos quatorze anos, atrevi-me a ler um senhor que passou a ter lugar de destaque em minha vida: Sigmund Freud. Hoje, vivo rodeado por livros: os que li, os que estou lendo, os que releio e os que quero ler. Aprendi que, quanto mais livros de boa qualidade você tem ao redor de si, mais segura é sua vida emocional e mais conteúdos você dispõe para compartilhar com os outros. A leitura nos proporciona prazer, mas também senso crítico e capacidade de reflexão. Em especial, reflexão política, pois somos uma espécie gregária, que se movimenta por redes e abomina a solidão. A leitura nos assegura um lugar como sujeitos no mundo. Nos ensina a pensar por nós mesmos. Fosse o brasileiro um leitor com melhor formação, certamente estaríamos hoje em um país com mais capacidade de estabelecer diálogos, apesar das diferenças. Neste sentido, ler nos liberta, por um lado, e, por outro, nos torna absolutamente responsáveis pela construção do mundo que nos cerca. Paralelamente à ficção, atuo como pesquisador nas áreas de semiótica, psicanálise e comunicação. Podemos dizer que somos feitos, em grande medida, por aquilo que lemos. As histórias são um material palpável e extremamente plástico. Por elas – especialmente por elas –, nos constituímos como Homo sapiens, essa espécie capaz de representar o que não se faz presente, de pressupor, de prever, de inventar. Em suma: somos seres de falta, conscientes da finitude e, por isso também, linguageiros.
© Adriano Messias – arquivo pessoal
O grumete e o tupinambá – romance da França Antártica é uma obra histórica e de aventuras que escrevi pensando no leitor jovem. Sua história foi se construindo pouco a pouco e, quando me dei conta, ela saltava da página como um peixe no mar. O enredo traz o sabor do início da adolescência, quando eu então me perdia em livros de aventura. Ao terminar de escrever o livro, lembrei-me que, durante meus estudos de doutorado em Paris, eu tinha visitado Provins, a terra de Villegagnon, ainda sem saber que ela faria parte de um de meus romances. Medieval e amuralhada, por aquela cidade francesa incensa o perfume da cidra e dos doces de rosas. E, como meu personagem Jean, atravessei o Atlântico de um lado a outro, ida e volta, percorrendo o mesmo caminho e tendo as mesmas paragens dos navegadores do século XVI: Rio de Janeiro, Cabo Frio, Salvador; depois, acenos ao arquipélago de Fernando de Noronha antes de ganhar, por vários dias, o marasmo assombroso do oceano na altura do Equador – linha reta, silenciosa e profunda. O Atlântico, em seu coração de abismo, carrega o mistério de cinco mil metros de profundidade. Ao entardecer, na superfície esverdeada como o azeite, nenhum sopro, nenhum peixe. Quase se pode caminhar sobre aquelas águas. O mar é tão plástico a três mil quilômetros de qualquer rocha! Senti depois as aragens de Cabo Verde, até avistar, dias mais tarde, a suntuosidade do vulcão Teide. Subi até seu sopé no interior da ilha de Tenerife, formosas Canárias! Os alísios são uma bênção. Nunca pensei que o vento trouxesse alegrias tão doces. Passei pelo estreito de Gibraltar e subi em seu rochedo, povoado por macacos, em verde mata e feérica bruma. Também cruzei as colunas de Hércules de norte a sul, rumando ao profundo Marrocos, por onde viajei até dunas nas quais tempestades de areia nos arrebatam em vermelho morno. Aportei em Barcelona, cidade de minh’alma – porto magnífico da novela humana. Menino perplexo do Sul das Gerais, que viveu entre mares de montanhas verdes e azuladas, não imaginei ir tão longe, meu horizonte! Deixo para você, leitor, as confidências deste escritor que sabe que um poeta só se torna arauto da própria aldeia quando ganha o mundo.
* Nota No romance O grumete e o tupinambá, os nomes de tribos e etnias indígenas foram aportuguesados, como se faz em literatura. Ou seja, eles aparecem escritos em iniciais minúsculas e adotando-se o plural sempre que necessário. Porém, em trabalhos científicos, acadêmicos e didáticos, em geral, se usa a grafia das iniciais em maiúscula e sempre no singular. Portanto, esta é a opção gráfica para este material.
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O Ilustrador
Carlos Caminha nasceu em Caxambu, sul de Minas Gerais, e desde criança gosta de desenhar. Passou pela Escola de Belas-Artes da UFMG, na década de 1980, e pela Escola Guignard, já nos anos 2000. Trabalha no mercado editorial há dezessete anos, fazendo ilustrações para os mais diversos projetos, desde livros infantis e de poesia, a obras didáticas. Seu estilo vai de traços livres ao realismo, e varia enormemente as técnicas. Desenvolve ainda um trabalho em artes plásticas que tem, como principal característica, a forte expressividade no uso de tintas, principalmente aquarela, acrílico, nanquim e grafite. Suas influências vão desde artistas do Renascimento até os modernistas. Aprecia os desenhos e as pinturas de Egon Schiele, as “pinturas” de Anselm Kiefer, e as obras contemporâneas de Jenny
Em se tratando de ilustrações para livros, a comunicação tem de despertar o interesse e ampliar as perspectivas do leitor. Em alguns de seus recentes trabalhos, Caminha usou aquarelas livres e bem manchadas com colagens de recortes de revistas, pedaços de renda e jornais rasgados.
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© Carlos Caminha – arquivo pessoal
Saville. Em ilustração, possui grande influência das histórias em quadrinhos, uma paixão desde sua infância e que se desenvolveu graças aos quadrinistas das décadas de 1970 e 1980.
A Obra
O grumete e o tupinambá – romance da França Antártica é uma obra de ficção histórica e juvenil de 144 páginas, dividida em duas partes. O livro possui ainda uma apresentação (Escritor navegante), na qual Adriano Messias explica o processo de escrita do romance, além de uma nota explicativa à guisa de epígrafe sobre a palavra “grumete”, uma seção para breve contextualização sobre as figuras históricas mencionadas, e notas explicativas sobre determinadas opções terminológicas e a respeito do ponto de vista do narrador. Após o título de cada parte, há uma epígrafe literária. No aspecto gráfico, O grumete e o tupinambá conta com ilustrações e vinhetas coloridas de Carlos Caminha, proposta que oferece uma bela configuração realista que acrescenta ainda mais aos sabores de aventura do livro.
Estilo
Pode-se entender por estilo a maneira específica de um autor escrever, a forma como ele se apropria da linguagem para organizá-la. Estilo tem a ver com forma. O estilo em O grumete e o tupinambá é dinâmico, envolvendo o leitor na trama a cada capítulo. Existe uma preocupação em se retratar a realidade histórica, mas sem que esta se torne mais forte do que o desenrolar das ações. A linguagem é acessível ao adolescente do Ensino Médio, que também poderá enriquecer seu vocabulário com criações e recursos linguísticos que homenageiam a época privilegiada pelo romance. Além disso, o livro se abre a várias relações dialógicas e intertextuais com obras clássicas de nossa literatura.
O romance como gênero narrativo
O gênero literário narrativo de O grumete e o tupinambá é o romance. Esta obra possui tanto características de romance histórico quanto de romance de aventuras. Ao mesmo tempo, o caráter intimista das reflexões do narrador, que propõe uma leitura em flashback, confere à obra o aspecto de romance psicológico. Por oferecer um arco da vida do protagonista narrador, também se pode detectar algo de romance de formação presente na obra de Adriano Messias. Dessa forma, percebe-se como as classificações em literatura são porosas e intercambiáveis. O romance histórico busca tratar de fatos, eventos e situações que aconteceram e que fazem parte da chamada realidade e de seus registros. Mesmo que haja personagens fictícios, os romances deste subgênero tentam seguir uma coesão histórica que esteja conforme pesquisas, investigações e dados, por exemplo. É nesse contexto que O grumete e o tupinambá se enquadra de forma mais precisa. Informação histórica, evocação do passado e cor local costumam ser características notadas em um romance histórico. De forma consensual, a obra que demarca o aparecimento do romance histórico é Ivanhoé (1820), do escocês Walter Scott, que trata das pelejas medievais entre os normandos e os saxões. Em nosso país, considera-se José de Alencar um dos fundadores do romance histórico com suas obras de ambientação colonial (As minas de Prata e A guerra dos mascates), e também de cunho indianista e regionalista. No século XX, destacam-se, por exemplo, a trilogia O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, e os três volumes de Os subterrâneos da liberdade (1954), de Jorge Amado. A partir da década de 1970, nossa literatura presenciou uma onda de romances históricos, a exemplo de Galvez, imperador do Acre (1976), de Márcio Souza; A prole do corvo (1978), de Luiz Antonio de Assis Brasil; Mad Maria (1980), de Marcio Souza; A estranha nação de Rafael Mendes (1983), de Moacyr Scliar; Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro; Os varões assinalados (1985), de Tabajara Ruas; A cidade dos padres (1986), de Deonísio da Silva; Boca do Inferno (1989), de Ana Miranda; Agosto (1990), de Rubem Fonseca; Ana em Veneza (1994), de João Silvério Trevisan; e Terra Papagalli (1997), de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. No século atual, podemos destacar A máquina de madeira (2012), de Miguel Sanches Neto; O bibliotecário do Imperador (2013), de Marco Lucchesi; Em breve tudo será mistério e cinza (2013), de Alberto A. Reis; e Quatro soldados (2017), de Samir Machado de Machado. De forma geral, o romance histórico está, assim como todo o gênero do romance, em constante reinvenção, e pode oferecer tanto continuidades quanto rupturas com as vertentes clássicas do subgênero, sobretudo a partir dos anos de 1990, quando o revisionismo histórico incentivou novas leituras sobre o passado do Brasil. Talvez seja esse um dos diferenciais de um romance histórico contemporâneo para com um romance histórico tradicional, além da relativização da versão oficial – categoria questionável e dúbia. Afinal, desde os “mestres da suspeita” – Friedrich Nietzsche, Karl Marx e Sigmund Freud –, jamais vimos o mundo da mesma forma. Além disso, tem-se de considerar que um romance histórico, ainda que atrelado a fatos históricos, é sempre produto da ficção artística e jamais deve ser considerado um documento ou testemunho da história. Um romance histórico é, antes de tudo, literatura.
O romance de aventuras como subgênero literário
O romance de aventuras é um subgênero sempre apreciado por jovens, seus leitores implícitos principais. Na estrutura, costuma haver um herói colocado em espaços e ambientes muitas vezes hostis para que possa dominar a si mesmo e desenvolver seu arco de maturidade. Ao longo do século XIX, em especial, autores europeus valorizaram esse tipo de criação literária, transportando seus personagens a “lugares exóticos”. Com isso, também se tentava vincular o interesse dos leitores à abrangência territorial dos impérios e domínios ultramarinos das nações da Europa. Entretanto, a distância geográfica do escritor para com o local retratado também facilitou exageros e incongruências em muitos relatos. No final das histórias de aventura, o herói costuma ser recompensado com crescimento emocional, espiritual e, às vezes, até mesmo material. Vê-se, em tal esquema, muito da tradição das narrativas mitológicas (como a epopeia) e das novelas de cavalaria da Idade Média, quando o herói se torna metáfora das descobertas pessoais e existenciais do indivíduo.
Construção do narrador
Na obra O grumete e o tupinambá, o narrador empregado é em primeira pessoa, como se pode verificar no excerto a seguir: “O que eu fazia durante aqueles meses todos em alto-mar era cuidar atenciosamente das madeiras do convés que, com a secura e o calor, ameaçavam sofrer rachaduras” (p. 21). Jean, o narrador, propicia um contraste do leitor contemporâneo para com a vida dos indígenas do século XVI. Ao mesmo tempo, pelos olhos do francês se conhece o enredo e se apreende a visão de estrangeiro a respeito daquele mundo novo. Em outro prisma, este mesmo olhar serve, ao leitor implícito, como ponto de partida para que se realizem reflexões pessoais sobre a narrativa, relativizando-se qualquer discurso de “verdade” que, em um primeiro momento, possa emoldurar o relato de um narrador.
Construção dos personagens
A obra O grumete e o tupinambá coloca personagens fictícios ao lado de figuras históricas, como o vice-almirante Villegagnon. Jean-François Delamare, o grumete; Îagûanharõ, o índio tupinambá amigo de Jean; Paskou, o cozinheiro; Grégoire, o compenetrado cronista e copista; Michel Le Gros, espécie de líder da tripulação; Gonzagues, o timoneiro; Jean-Cent-Hommes, bravo marujo com uma misteriosa tatuagem; Le Bon, um franzino artista beberrão; Ron, o marinheiro que foi picado por uma cobra; e María Del Mar, a louca catalã; são os principais personagens do livro. Jean tem dezesseis anos quando as embarcações de Villegagnon aportam no litoral carioca. Ele é descrito como um francês de sardas no rosto, órfão criado por monges que desenvolverá um arco de maturidade a partir das aventuras proporcionadas pelo encontro entre dois mundos: o europeu e o americano. Jean recebe sempre alguma proteção paterna, seja de Villegagnon, de Cent-Hommes ou de Le Bon, e convive na fratria de seus camaradas mais velhos. Já Îagûanharõ é o adolescente tupinambá que, em boa parte do livro, intrigará Jean. Ambos não se comunicarão muito bem em termos idiomáticos, mas demonstrarão afeições e afinidades que vencerão algumas das estruturas culturais que permeiam o mundo de cada qual. A tripulação que desembarcou na Guanabara era formada por marujos normandos e bretões, em sua maioria. Alguns haviam sido bandidos ou eram reincidentes que mereceram o perdão em troca de participar das perigosas explorações no Novo Mundo.
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Jean-Cent-Hommes, como o apelido dizia, valia por cem: era um homenzarrão silencioso, portador de um machado e com cicatrizes pelo corpo. Le Bon, “bretão magricela e ruivo com cavanhaque e suíças bem desenhados” e “de índole um tanto acovardada”, era um artista mulherengo afeito a beberagens que, após ser condenado na França, acabou tendo de seguir viagem com Villegagnon para não perecer nas prisões de seu país. Grégoire era o escriba que relatava o que ia encontrando pelo caminho, enquanto Le Gros, com espírito de liderança, sempre colocava ordem no grupo. Já Gonzagues, o crédulo timoneiro, e Paskou, o cozinheiro, contavam histórias de arrepiar. Dentre as personagens femininas, destaca-se María Del Mar e sua loucura progressiva. A ressentida catalã com corpo de matrona, sempre magoada com as demais mulheres que vieram da França para o Brasil, era apaixonada por Le Bon, que preferiu o amor de uma índia. Um ponto a se destacar é que os personagens da obra demonstram que o encontro entre tupinambás e franceses já se fazia há algum tempo, antes mesmo da chegada de Villegagnon: uns e outros conheciam costumes e hábitos mutuamente. Os indígenas, por exemplo, usavam ferramentas e armas de metal que lhes foram presenteadas pelos europeus, assim como os estrangeiros aprendiam as artes da caça e da pesca nativa.
Ambientação e tempo da narrativa
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Os personagens de O grumete e o tupinambá recebem um forte impacto da ambientação, como se esta lhes influísse diretamente. A viagem marítima e a instalação da colônia na ilha próxima ao litoral em que desaguava o rio de Janeiro, bem como a Mata Atlântica – densa e cheia de vida, em meio à qual se erguiam aldeias em enormes clareiras –, compõem a ambientação tropical e exuberante do livro. Marcos geográficos que hoje são recortes na paisagem urbana carioca emergem na narrativa com o frescor dos primeiros tempos em que os europeus aportaram naquelas terras. Essa paleta de tons e texturas participa ativamente na composição da cor local, a qual ajuda a dar o tom aventureiro ao romance histórico. Em termos de época, a história se passa durante o período em que a França tentou fundar uma colônia na baía de Guanabara. No próprio livro, precedendo os capítulos iniciais, há informações que auxiliam na contextualização sobre a ambientação e o tempo.