8 minute read

Aprofundamento

Gonçalves Dias e o indianismo

No famoso poema de Gonçalves Dias (18231864), I-Juca-Pirama, o índio tupi que dá nome à obra teria sido aprisionado pelos timbiras, e o destino que estaria reservado a ele seria a morte por meio de um ritual antropofágico. Antes, porém, o prisioneiro deveria cantar suas proezas, pois, assim, toda a sua coragem passaria para os inimigos devoradores. I-Juca-Pirama vai então falar de sua coragem, de suas andanças, do encontro com tribos inimigas, dos embates contra os aimorés, mas, ao se lembrar do pai cego e doente, pede que lhe deixem viver, o que vem a ser interpretado como um ato de covardia. Por isso, o chefe timbira manda soltá-lo para que volte ao lar. O pai de I-Juca-Pirama se decepciona com a atitude do filho, e ele mesmo o conduz de volta aos rivais para que o destino seja cumprido com honradez. Para mostrar que não é covarde, o filho vai à tribo timbira e começa a atacar a todos, até que o chefe pede que aquilo cesse. E assim a honra do herói vem a ser recuperada. O mote “Meninos, eu vi!” – que provém da boca de um eu lírico timbira que guardou a história de I-Juca-Pirama em sua memória – também é empregado no livro O grumete e o tupinambá, mas, vindo da boca do personagem narrador. Se, por um lado, representa perplexidade, por outro, esse recurso estilístico revela um desejo de que o leitor não duvide das coisas que serão narradas, alusivas aos tempos em que Jean ingressou em terras brasileiras. Neste sentido, e alusivamente, pode-se considerar que o adolescente protagonista é propositalmente colocado na situação de alguém que narra feitos memoráveis aos futuros leitores. Em I-Juca-Pirama, nota-se que a visão de Gonçalves Dias sobre o indígena é idealizada, mas, ao mesmo tempo, há uma busca de certo realismo pelo poeta, o que se dá na descrição dos costumes nativos. Já no poema Os timbiras, o autor romantiza o índio ao nível dos heróis gregos, deixando evidente que a chegada da civilização europeia lhes roubou as terras e lhes afetou enormemente a cultura. Gonçalves Dias na poesia e José de Alencar na prosa são os consolidadores do Romantismo nacional, adotando o culto ao bom índio, símbolo de brasilidade em um país cujas elites sempre se esforçaram por detrair as próprias origens.

Advertisement

Breves comentários sobre representações dos índios na literatura brasileira

No século XVIII, o poeta árcade Basílio da Gama escreveu seu épico O Uraguai, que descreve a disputa entre jesuítas, outros europeus e indígenas em Sete Povos das Missões. Na corrente indianista do século posterior, destacam-se Gonçalves Dias e José de Alencar, ambos em busca de uma identidade nacional baseada na ancestralidade ameríndia que, apesar de às vezes serem inspiradas por relatos etnográficos, condensavam visões muito estereotipadas. Destacam-se, na prosa do indianismo romântico, obras como O Guarani, Iracema e Ubirajara. Na poesia, temos I-Juca-Pirama, Marabá e Os Timbiras, por exemplo. Na terceira geração do Romantismo, Sousândrade, com Guesa errante, mostra-se uma exceção na perspectiva indianista dos oitocentos. Tanto é que esta obra só foi reconhecida mais de cinquenta anos depois de escrita. No poema, o autor problematiza a questão da inter-etnicidade a partir de uma narrativa em que um indígena foge de um ritual andino para morar em Wallstreet, Nova York. Ainda no século XIX, a potiguar Nísia Floresta, primeira educadora feminista brasileira e amiga pessoal de Nietzsche, defendia os direitos das mulheres, dos índios e dos escravos. Dentre seus trabalhos, salienta-se A lágrima de um caeté (1849), obra peculiar em que se conciliava o drama do índio espoliado pelo colonizador e o dos liberais derrotados na Revolução Praieira, em Pernambuco. Na década de 1930, os artistas modernistas propuseram novas visões em relação às culturas indígenas, coincidindo com a profusão de pesquisas etnográficas publicadas à mesma época. Além do clássico Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, temos Cobra Norato (1931), de Raul Bopp, um poema épico em torno de mitologias amazônicas. Também merece destaque Oswald de Andrade, mentor do Movimento Antropofágico demarcado pelo Manifesto Antropófago (1928) e pelos textos da Revista de Antropofagia (1928-1929), da qual ele próprio foi o editor. O Manifesto representou um alerta para se pensar a presença europeia no Brasil: por um lado, opressora e genocida; por outro, colaboradora na formação do país. O escritor defendia um pensamento não colonizado. Guimarães Rosa, em 1963, publicou o conto Meu tio o iauaretê, que está na obra póstuma Estas histórias. Nele, o escritor mineiro descreve uma experiência de oncificação (ou jaguarização) de um sertanejo, temática metamórfica muito presente em variadas mitologias. Neste caso, trabalha-se com as dimensões internas indígena e jaguar, um devir animal, conforme o pensamento do filósofo francês Gilles Deleuze. E não podemos nos esquecer do romance Maíra (1976), de Darcy Ribeiro, que diz respeito à convivência do autor com os índios: narrativa admirável em que o mitológico, o social e o individual se cruzam para formarem um novo espaço.

Alteridade

Reduzir ou sublimar o outro é uma maneira de desumanizá-lo e, com isso, justificam-se atos de violência: se o colonizador entende que um índio é um “bárbaro” desprovido de entendimento da “civilização”, pode servir-se disso para descaracterizá-lo, vilipendiá-lo e desterritorializá-lo, por exemplo, dentre outras atrocidades. Não por acaso, na época da colonização, muitos índios foram levados à Europa como curiosidades – meras figuras fantasiadas, desprovidas de interesse maior que não o de deleitar as cortes do velho continente. Como ainda não existia a fotografia, diversos viajantes, por meio de desenhos e pinturas, expressavam um imaginário fértil em torno dos povos encontrados do lado de cá do Atlântico. Além disso, filósofos e pensadores se inspiraram na figura do nativo do Novo Mundo, dentre eles, Montaigne (Ensaio sobre os canibais) e, posteriormente, Rousseau (Do contrato social). Ambos transitaram pelo mito do “bom selvagem”. O segundo adotou um olhar que predizia que o homem era inocente e bom ao nascer, vindo a se corromper com a vida em sociedade, assim como os indígenas se corromperiam mediante o contato com o europeu. De tal formulação proveio o chamado “indianismo ideológico”. Já na Carta do achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel, há descrições sobre aspectos físicos e culturais dos índios. O escriba salientava a necessidade da imposição da religião cristã para que aqueles povos se tornassem aculturados e civilizados.

O “Sermão de Santo Antônio aos peixes”

O “Sermão de Santo Antônio aos peixes” foi pregado em São Luís do Maranhão em 13 de junho de 1654. Seu contexto está ligado às lutas que dividiam jesuítas e colonos em relação aos índios. Três dias após proferi-lo, o Padre Antônio Vieira foi para Portugal às escondidas, a fim de negociar com a metrópole uma lei para a regulamentação da liberdade indígena na colônia ultramarina. Homem de seu tempo, Padre Vieira entendia que o cristianismo tinha de ser apresentado aos índios, mas criticava duramente os pregadores que agiam em benefício próprio. A alegoria dos peixes foi muito pertinente: em primeiro lugar, o escritor coloca os animais aquáticos acima dos humanos para, em seguida, apontar-lhes alguns defeitos, os quais, evidentemente, seriam faltas de virtudes dos próprios colonos maranhenses para com os índios.

O perspectivismo ameríndio – uma introdução ao conceito

Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima desenvolveram o conceito do “perspectivismo ameríndio” para pensarem as relações dos amazônicos com os demais seres da floresta. A perspectiva filosófica desses povos torna os humanos, os outros animais, os espíritos e os encantados – e até mesmo os não humanos – uma espécie de “humanidade compartilhada”, o que se dá também pela partilha dos corpos. Aqui não se trata do conceito de humano como entendemos na filosofia ocidental, mas da consideração do outro (o animal não humano, a pedra, o rio, o tempo, etc.) como dotado de uma subjetividade partícipe da construção da chamada realidade. Neste sentido, a realidade ameríndia sempre dependeria da existência de um sujeito para interpretá-la e dar-lhe sentido. Além disso, uma variedade de naturezas emergiria dos corpos dos seres que se reconheceriam mutuamente como humanos (e não o contrário), o que tem raiz nas próprias mitogêneses amazônicas, nas quais bichos e coisas falavam e se entendiam antes do surgimento das especiações. O perspectivismo ameríndio aponta para uma descolonização do pensamento, colocando em xeque os pontos de vista da cultura ocidental. Não por acaso, o Padre Antônio Vieira havia denominado de “inconstância” a “incapacidade” de os indígenas assimilarem e reterem permanentemente os costumes europeus. Os nativos até se permitiam evangelizar, mas, em seguida, despojavam-se do que foi aprendido com imensa facilidade – o que criava um desafio à catequização. Foi daí que surgiu a metáfora da murta e do mármore: ou seja, evangelizar os pagãos do Velho Mundo, para o jesuíta, era difícil, mas o “resultado” perdurava e resistia como o mármore. Já os índios do Novo Mundo seriam como a murta – um arbusto muito maleável à poda, mas que, ao menor descuido, já esparrama novos galhos, não retendo a forma que o jardineiro quis lhe dar. Para Padre Vieira, a catequização não parecia tão difícil, porém, seu impacto não era duradouro entre os americanos, que, assim que possível, retornavam a seus costumes e tradições – de onde a necessidade de “reevangelizações” era constantes. Esta e outras questões indígenas, sobretudo entre os tupinambás (como a da antropofagia ritualística, a da vingança como questão de honra, a do hábito coletivo da beberagem do cauim, etc.) foram desafiadoras para o colonizador/ explorador/ invasor, demonstrando que o confronto com outras culturas não se dá passivamente. Outro jesuíta, Manuel da Nóbrega, foi mais otimista – ao menos em um primeiro momento –, acreditando que os tupinambás seriam como homens de cera, em cujas almas poderia se inscrever qualquer coisa. É que os recém-chegados da Europa foram incapazes de perceber que, talvez mais do que afirmações identitárias – uma das características da noção de cultura no Ocidente –, os indígenas valorizavam as trocas e o consumo de conhecimentos e de tecnologias, por exemplo, sem se preocuparem com um poder centralizado, com um deus total, com uma divindade única e, consequentemente, também não se importavam em obedecer cegamente ao outro. Para ilustrar esse pensamento, além do artigo de Eduardo Viveiros de Castro – sugerido na bibliografia –, não deixe de assistir os filmes Brincando nos campos do Senhor, Aguirre, a cólera dos deuses e Fitzcarraldo, todos comentados na seção “Sugestões de referências complementares”, páginas 26 e 27.

This article is from: