Quanta beleza consigo encontrar na velhice

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Quanta beleza consigo encontrar na velhice Ricardo Crispim Mestre em Ciências da Educação e Licenciado em Educação Social e Serviço Social rmscrispim@hotmail.com

Vou escrever umas coisas, nada de muito significativo, umas coisas apenas. O que lhe trago hoje é uma brevíssima reflexão acerca do meu percurso trilhado junto de pessoas merecedoras de todo o meu respeito, carinho e dedicação e de tão grande valor humano: as que já passaram os 65 anos. A muitos não lhes é dado o devido valor porque os males do corpo mutilam a (pouca) vontade de viver. Dores incessantes, latejantes, cortantes, frias, apenas com um sentido: esquartejarem o sentido da vida. Mas nem só de dores vive, por exemplo, o idoso acamado. Existem desejos e sentimentos expressos através de um simples acenar de mão ou abanar de cabeça. Membros que ainda mexem, corpos que ainda transpiram, Pessoas que ainda são Pessoas. E aquelas pessoas presas a duas rodas? Duas fatídicas e lastimáveis rodas que aprisionam corpos sedentos de esperança no correr, no andar, no saltar! Existem ainda aqueles prisioneiros de si mesmo. Aqueles indivíduos a quem o Alzheimer ou demais patologias erroneamente equiparadas, roubam o entendimento das coisas mais simples e banais. Simples porque nós as conseguimos fazer esquemática e rotineiramente sem exigir um grande esforço, mas para estas pessoas, o simples ato de comer, como é no exemplo da doença de Alzheimer, nalguns casos representa uma tarefa de impensável execução. Agora imagine quão degradante é ser-se portador de um estado demencial ou físico que roube a capacidade de ir à casa de banho as vezes que lhe apetece? Imagine então quão frustrante é não conseguir ir à casa de banho sozinho urinar ou defecar? Pense nisto: quando, em idoso, tem vontade de ir à casa de banho, cantar, sair à rua e essa vontade é por outros reprimida porque se tem fralda, porque se faz barulho ou porque se pode perder, inicia-se um processo de degradação da identidade pessoal, de perda de consciência do “eu próprio” a favor de um “eu falsificado”. É uma realidade à qual todos nós temos de aprender a lidar. Já pensou quando for a sua vez? Caminhamos a passos largos para a dependência das fraldas – e peço-vos que imaginem o quão humilhante deve ser usar uma fralda quando já se foi perfeitamente autónomo –, um mal necessário diriam vocês. Pense nisto também: quando se foi um excelente pai ou mãe, avô ou avó, e se tem de contentar (forçosamente) com migalhas em forma de presenças furtivas com a justificação que “andamos sempre a correr”, “é muita pressão”, “não temos tempo para nada”… Já pensou quando for a sua vez de ser pai e mãe com uma avançada idade, ou avô ou avó? Nota ao caro/a leitor/a: Outra coisa me arriscaria a pedir-lhe para imaginar, mas esta será suficiente: como se verá enquanto idoso/a? Como quer ser visto? Como quer ser tratado? Com mais um pouco de sorte, e outras tantas coisas que só a química emocional e a biologia humana explica, será avô ou avó. Pergunto novamente: Como quer ser visto? Como quer que o seu neto ou a sua neta o/a trate? Quer receber visitas dos netos, ou quer ficar apenas com saudades dos tempos que

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passou com eles? Quer ser surpreendido/a com a presença dos netos, ou viver amargurado/a pela sua ausência? Quanto à minha, ainda, curta experiência profissional, apenas gostaria de ressalvar que o meu ímpeto enquanto Técnico Superior de Educação Social, não é ganhar mais uns euros ao fim do mês, nem sequer conferir pontuais momentos lúdicos e recreativos aos “meus amigos mais velhos”, mas antes, fazê-los crer que são Pessoas. Isto não exige muita criatividade, nem sequer teorias que o comprovem. São somente necessárias algumas tintas, pincéis e uma tela. Confuso/a? Então eu explico: não precisamos de ir em modas para sermos pessoas fascinantes ou fora de série, basta ajudarmos os idosos a desenharem na tela um mapa, faze-los crer que são capazes de definir as setas que os levarão para o melhor caminho, depois, damos-lhes as tintas e os pincéis e, lado a lado, tentamo-nos tornar invisíveis, e deixamo-los pintar. Quando o quadro estiver pintado, penduramo-lo nas paredes da sua memória, e até morrerem lá estaremos nós a relembrá-los que foram pintores por um dia.

Texto escrito a 24 junho de 2012 Texto reformulado a 26 de julho de 2017

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