Calango em São Luiz do Paraitinga Autor: Ricardo Mendes Mattos Desenhos: Adriana Ferreira Sousa Fotos: André Silva Monteiro Criação: Malungo edições ISBN: 978-85-913155-5-0 São Luiz do Paraitinga 2016
Índice Introdução 1.
De repente, o calango................................................................................................
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2.
O calango entra na festa............................................................................................
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3.
Registros do calango em São Luiz do Paraitinga.......................................................
42
4.
Calango: cultura popular e contexto festivo.............................................................
52
5.
Verbo vivo: a tradição oral........................................................................................
56
6.
O improviso................................................................................................................
60
7.
O desafio....................................................................................................................
64
8.
Contexto de realização..............................................................................................
66
9.
Faces do calango: animação, desafio entre compadres e pelejas de “rancá o coro” ..........................................................................................................................
70
10. Perfil dos calangueiros de São Luiz do Paraitinga.....................................................
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11. Audiência....................................................................................................................
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12. Forma poética............................................................................................................
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13. Forma musical............................................................................................................
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14. Instrumental...............................................................................................................
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15. Criação dos versos.....................................................................................................
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16. Formas de transmissão..............................................................................................
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17. Desafios memoráveis.................................................................................................
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18. Origens do calango em São Luiz do Paraitinga..........................................................
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19. Confluências do calango com outras expressões da cultura popular......................
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20. Outros cantos de desafio em São Luiz do Paraitinga................................................
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21. Função social dos cantos de desafio.........................................................................
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22. A renovação da tradição do calango.........................................................................
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23. Desafios do calango no mundo contemporâneo......................................................
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24. Considerações finais: calango e a cultura caipira .....................................................
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Bibliografia, Discografia e Filmografia
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Introdução
Como canto improvisado de desafio, o calango entoa os contrastes do modo de ser caipira: do fortalecimento do vínculo comunitário ao processo de constituição de subjetividades singulares; dos versos por todos conhecidos, colhidos do manancial da cantoria popular, aos improvisos instantâneos; da força da tradição oral que cura e diverte, às palavras afiadas que ferem o adversário; da partilha de valores comuns à suspensão das regras sociais, em um regime de exceção, extremo na prática ritual da violência. O calango é, ainda, um caso emblemático dos diversos matizes que formam a cultura caipira, de portugueses e africanos do povoamento inicial, às movimentações constantes de tropeiros e ciganos, passando pela forte presença de mineiros na região. O Calango em São Luiz do Paraitinga se inicia com a descrição de desafios calangueados em um encontro inusitado num bar e numa festa popular. Esses registros permitem observar as feições atuais do calango na cidade, além de muitas de suas características mais marcantes. Posteriormente, há um apanhado geral de diversos registros do calango luizense no decorrer de sua história, desde a década de 1940 aos tempos contemporâneos. Iniciar o livro com as descrições do calango, em seu contexto natural de realização, parece-nos o melhor cartão de visita dessa expressão da cultura popular local. Consideramos o calango um canto improvisado de desafio com caráter festivo e ritual. Dessa forma, os capítulos seguintes procuram refletir sobre essas suas caraterísticas fundamentais: contexto festivo, tradição oral, improviso e desafio. Se a festa popular é o celeiro do calango, observa-se diferentes posições desse canto no contexto festivo: no centro da animação do baile ou em espaços marginais, nos quais o desafio desbocado pode correr solto, sem o espanto dos desavisados. Daí se constata o que poderíamos chamar de modalidades do calango: o papel na animação do baile, dividindo espaço com outras expressões musicais da cultura popular local; o desafio entre compadres e, por fim, a peleja mais agressiva de “rancá o coro”, como é conhecida. A seguir traçamos um breve perfil dos calangueiros, todos trabalhadores rurais imersos em expressões populares de extração lusitana, e provenientes de comunidades rurais tradicionais, pautadas na proximidade econômica e afetiva entre as pessoas. Daí a importância da audiência (pessoas que assistem e participam do calango) para esse desafio. Com tamanha proximidade, é comum um membro da audiência tomar parte no desafio, cantando ou tocando
3 um instrumento. A audiência tem importante papel nos desafios, pois suas reações contam muito para o desfecho da peleja. Contudo, observa-se também semelhanças entre a audiência e um coletivo eleitoral (no caso em que os cantadores adquirem prestígio e desempenham potencialmente papéis políticos na comunidade) ou um parlamento popular (que testemunha e encaminha a resolução de conflitos pessoais entre desafetos). Passamos, então, a análise da forma poética do calango e suas variações através dos tempos, seja pelo número de versos de cada estrofe, seja por modificações nas convenções de repetir os últimos versos do adversário no início do improviso. Observa-se como a forma poética se submete à forma melódica, executada por instrumentos musicais analisados brevemente. A fascinante maneira de criação poética do calango reúne aspectos contraditórios: imensa liberdade na composição dos versos no momento em que se canta, ao lado da necessidade de obedecer rigorosas regras poéticas. O calangueiro hábil sabe mesclar magistralmente versos colhidos da tradição popular, com composições próprias previamente decoradas e puros improvisos criados instantaneamente. As formas de transmissão da cultura do calango passam por elementos tradicionais da educação de novos integrantes das comunidades rurais. Embora não adquira feições iniciáticas, como os cantos de desafio de origem africana, o cantador de calango domina modos de falar, situações de vida, formas de cantar e símbolos típicos do modo de ser caipira. Assim, mesmo sendo vista com bastante simplicidade pelos calangueiros da região, a transmissão do desafio calangueado assume características complexas. A partir da recordação de calangueiros, descrevemos alguns desafios memoráveis. É também a memória dos cantadores que permite observar as origens plurais do calango em São Luiz do Paraitinga. Analisa-se, longamente, a procedência sobretudo portuguesa deste canto improvisado de desafio, seja a partir de incríveis semelhanças com relação ao trovadorismo ibérico, seja por meio de aproximações evidentes com cantigas ao desafio ainda atualmente praticadas em Portugal. Porém, como canto nômade – vinculado ao ligeiro réptil do qual empresta o nome –, o calango também tem grande influência das culturas dos tropeiros e das andanças de agrupamentos ciganos pela cidade. Também a presença de africanos e afrodescendentes deixou marcas nos cantos de desafio da região, especialmente a partir do jongo – além de um terreno fértil de tradição de pelejas, onde o calango floresceu. A migração mineira mais recente, a partir da década de 1930, trouxe em sua bagagem cultural a prática do calango, o que coincide com o período de grande popularidade e disseminação desse canto por
4 todos os bairros da cidade. Por fim, a influência de repentes nortistas, como o calango e a embolada, apimentou ainda mais as pelejas locais. No interior da vigorosa cultura popular local, o calango partilha alguns elementos com outras manifestações tradicionais, havendo confluência desse canto de desafio com as folias de Reis e do Divino, a cavalhada e, mais marcadamente, com outros cantos improvisados de desafio (como a antiga “cana-verde”, cantos alternados que acompanham a Dança do Caranguejo, o Vai de Roda, a “embolada”, o jongo e o brão). O calango, como, ademais, diversos outros cantos de desafio, possui fundamental função comunitária. Observa-se a importância de cantos como o calango nos processos de formação da subjetividade, em contextos rurais pautados em condições de vida equitativas e forte vínculo de pertencimento comunitário. Ao cantar, o calangueiro defende sua imagem pública e seu prestígio social, que pode se estender, inclusive, para sua importância como liderança política da coletividade. Por outro lado, o calango permite o exercício da competição, em espaços de tensão e conflitos pessoais, e mesmo de ritualização da violência, de forma a suspender diversas regras sociais, num momento em que os afetos agressivos podem ser descarregados, sem prejuízo maior para a vida cotidiana em comunidade. As transformações históricas pelas quais São Luiz do Paraitinga passa atualmente, especialmente a mercantilização das relações provenientes da plantação de eucalipto e da atividade turística, trazem fortes impactos nas comunidades e nos processos de renovação de culturas tradicionais como o calango. Analisa-se as dificuldades e as possibilidades desse contexto atual na renovação do calango, tendo em vista, ainda, a popularidade de cantos improvisados de desafio em grades centros urbanos. As considerações finais problematizam a noção de “cultura caipira” e demonstram como o calango serve de exemplo emblemático para se pensar os encontros – e confrontos – entre as diversas etnias (portugueses, indígenas, africanos, tropeiros e ciganos) que formam – e transformam – a cultura popular local. Ademais, um breve comentário sobre o método de pesquisa empregado nesse estudo. Realizei a pesquisa bibliográfica sobre o calango juntamente com interesse em leituras sobre a história da cidade de São Luiz do Paraitinga, com enfoque nas expressões de sua cultura popular, em especial cantos de desafio como o jongo e o brão. Tais leituras foram alimentadas por diversas conversas com mestres da cultura popular da região, principalmente com mestre Renô Martins, o qual visitava periodicamente desde minha mudança para o município, em 2014. Assim, as conversas que mencionarei, não apenas com o compadre Renô, mas também com
5 mestre Lauro Faria e Brás Ferreira, foram todas informais e versavam sobre diversos assuntos além do calango. Foram realizadas às vezes durante visitas, outras em festas após o desafio do calango, e, frequentemente, em encontros inusitados em beiras de estradas ou em praças. Neste contexto, não houve nenhum registro das conversas e pedi permissão a cada um deles para mencioná-las apenas quando decidi sistematizar meus estudos sobre o calango (por seu possível interesse público e/ou científico). Convém a alguns pesquisadores da cultura popular seguir mais as formas tradicionais e orais de transmissão dos saberes coletivos, do que as regulamentações das pesquisas científicas.
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1. De repente, o calango
Foi um encontro inusitado: o canto de improviso no ambiente improvisado. Para os diversos cantadores presentes, aquela tarde foi mais uma alegre função entre irmãos. Partilhei a mesma alegria, porém me lembrarei daquela ocasião como meu batismo no calango. Para além de uma recordação pessoal, tal descrição tem importância por ser um encontro espontâneo em que o calango acontece em seu ambiente natural: o clima festivo de um domingo no bar, com cantadores celebrando as tradições das comunidades rurais. Era uma tarde fria de 13 de setembro de 2015. A névoa acariciava a cabeça das montanhas e uma garoa fina adormecia no gramado. Cheguei no Sítio Três Cachoeiras, no Bairro da Cachoeirinha, no final da manhã. Mestre Renô Martins trabalhava no bar, jovens jogavam bilhar e um casal enamorado tomava cerveja. Cumprimentei todos e Mestre Renô me convidou para sentar dentro do bar, dizendo que estava muito frio para cantar lá fora. Apanhei minha viola e esquentei a garganta com um gole seco de cachaça. Disse ao mestre que queria experimentar cantar calango. Sem dizer uma palavra, Mestre Renô Martins começou o desafio, dando tempo de pedir sua permissão para gravá-lo em áudio: Mestre Renô: Quem dera meu colega Dentro da linha do Dão Eu sô memo nesse jeito Vamo cantá meu irmão Você veio lá de longe Visitá o seu irmão Para nóis aprendê Aprendê a lição Tanto rezo e tanto canto Também faço oração E eu rezo credo e cruz Pra livrá da assombração Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do barandão Todo dia eu ajoeio E faço minha oração Falei cantando: E faço minha oração E eu peço a São Gonçalo Pros violeiro proteção Mestre Renô:
9 Pra São Gonçalo Pra li dar a proteção É meu Santo milagroso Ele ajuda tudo irmão Quem dança pra São Gonçalo Nunca tem distração E a Dança do São Gonçalo É muito bão1 Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do barandão Qué sabe de onde venho Meu destino não é bão Moro no alto da serra No meio da serração Moro debaxo da chapa No suspiro do vulcão Mestre Renô: Quem dera meu colega Dento da linha do Dão Vi do ronco e da chuva Vi do ronco do truvão Plantei o curisco no pé E o raio no espigão O raio plantei na terra E já deu que nem feijão Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do barandão Eu sô ligero ingual corisco Tenho a força d’um lião Já dormi na mata virge No meio da escuridão E num tenho medo de nada Tenho boa proteção Mestre Renô: Quem dera meu colega Dento da linha do Dão Eu já vi uma pirua De vende é no barcão Larguei de bebê no copo Vô bebê no garrafão E agora eu tô comprano 1
Mestre Renô Martins é conhecido na região por ser devoto desse Santo e condutor da Dança de São Gonçalo, expressão da cultura popular católica que tive oportunidade de dançar quando o mestre a apresentou na Festa do Divino Espírito Santo de 2015, em frente à Igreja das Mercês, no centro histórico de São Luiz do Paraitinga.
10 Uma charré de latão Ricardo: Sô caboco perigoso Na linha do Barandão Quando falo treme terra Inté rebenta riberão Faço moim rodá sem água Monjolo toca sem mão Panela ferve sem fogo Preu cozinha meu feijão
Mestre encerrou o desafio, concluindo a melodia em sua viola. Todos, então, caíram na gargalhada. A grossa audiência participava entusiasmada do desafio: rindo, ovacionando ou gritando (“Irááá”), após cada cantador concluir seu improviso. Nesse momento, o homem acompanhado de sua namorada pediu a viola emprestada e engrossou a cantoria. Sua mão ligeira na viola, apoiada na ponta do joelho, não deixava dúvida: o caboclo conhecia do assunto. Puxou uma porção de toadas antigas, algumas das quais já havia ouvido na voz de Ranchinho e Alvarenga, Tonico e Tinoco ou Tião Carreiro. Mestre Renô sentouse ao lado do violeiro e passaram a cantar juntos diversas modas caipiras. O bar foi enchendo de gente e já juntava grossa audiência. Mestre Renô Martins não parava um só instante: cantava, atendia o bar e conversava com visitantes. Era comum, ao término de uma canção, alguém pedir cerveja e ele ir pegá-la. Aproveitando-se da boa voz do violeiro, Mestre Renô Martins sugeriu treinarem a folia de Reis, pois estava rememorando sua toada e preparando o grupo daquele ano. O folião posicionou sua viola em frente de onde estava, acenando, com a cabeça, para que eu aprendesse a tocá-la. O Mestre conduziu a folia lindamente e, curiosamente, outras vozes de moradores do bairro ali presentes foram se juntando à cantoria, entoada de forma tão comovida e entusiasmada que mal ouvia a viola do mestre. Percebeu-se a popularidade da folia no local e como algumas das pessoas que ali estavam já haviam tomado parte nas folias. É o caso de Marcolino, por exemplo, figura conhecida no local, integrante de companhia de congada, que cantava bem a toada de reis. Outra curiosidade daquela tarde estava numa prática comum: uma pessoa chegava para pegar alguma coisa no bar e mestre Renô a convidava para cantar uma moda. Assim ocorreu com Luiz Carlos, tocador de violão que chegara para comprar cervejas e contara quão apressado estava, pois tinha visitas em sua chácara. Ainda assim, o visitante cantou uma porção de músicas.
11 Em meio a diversas outras toadas, mestre Renô Martins puxou outro desafio calangueado, dirigindo-se para mim: Mestre Renô: Quem dera meu colega Na linha da Carretia Cachorro que corre paca Não pode corrê cotia A onça piô na serra Coelho perdeu a cria Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha da Carretia Cachorro de mão pelada Nunca passa na água fria Vaca véia na capoeira Da leite quiném novia Quando eu vejo Preta Véia Tomo bença e chamo Tia Mestre Renô: Quem dera meu colega Na linha da Carretia Que eu fui no cemitero Circulano meio-dia Tipo cum macho berrava Difunto até mi gimia Que eu ficava admirado C’oas careta que eles fazia Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha da poesia Eu passei no cemitero As nove hora do dia Os morto se levantaro E catacumba que gimia Fui dizeno boa-noite Eles dissero foi bom-dia Quanto mais eu rezava Mais as alma aparicia Mestre Renô: Quem dera meu colega Na linha da jirimia Eu sô memo nesse jeito Por tudo lugar qu’eu ia Eu já fui lá no céu Visita Santa Luzia Santo Antonio apriguntô
12 Do mundo comé qui ia Eu já fui arrespondi O mundo tava a riviria Casano primo c’om primo Sobrinho casa com tia Só que farta pá casá É o pai é com a fia Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha da poesia Eu cantei até no inferno Convite que eu ricibia Bati na porta gritano Pirguntaro quem batia Eu falei é o Ricardo Pá cantá na carretia Diabo ficô assustado Cruz-credo-ave-maria O diabo se cagô todo Seu corpo todo tremia Mas eu fui logo cantano Para toda diabraria Cantei sexta, cantei sabo Cantei domingo até meio-dia Quando foi segunda-feira Pirguntei se inda queria Mestre Renô: Quem dera meu colega Na linha da jirimia Eu também fui no inferno Coisa que ninguém fazia Tinha um plantadô de algodão Que satanás o possuía Pego fogo no armazém E cabô as alegria Quem dera meu colega Qui cabô sua aligria O diabo respondeu Isso aqui não é rimia .... nesse mundo Ninguém compra uma camisa Que o inferno tirô de tudo E acabo a diabaria Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha da poesia Quando eu vim da minha terra
13 Passei em Santa Maria Lá matei um delegado Acabô delegacia Cada tapa era um tombo Era soldado que caía Mestre Renô: Quem dera meu colega Na linha da jirimia Que quem num comeu pimenta Pensano que não ardia Quando foi no outro dia O estômago tava a rivilia E ocê comeu melão Pensano que é melancia Ricardo: Bora lá mata no coro No abc da poesia No mato que num tem onça Macaco dança quadria Mas no mato que onça berra Macuco no chão não pia Se piá de manhã cedo Morre ante do meio-dia
Mestre Renô Martins ficou entusiasmado com a cantoria e se recordou de um antigo desafio praticado na cidade, especialmente nas festas organizadas por Chico Pinto, no sertão do Rio do Chapéu. A peleja improvisada era chamada de “embolada”: Eu dei um tiro na cabeça de um cavalo Que o bicho caiu no valo E foi morreno devagar Eu dei um tiro na cabeça duma aranha Ô bicho da perna sanha Larga a mão de me atentar Eu dei um tiro na cabeça de uma égua Se eu corrê você não pega Quero vê quem vai pegá A “embolada” era cantada por grandes grupos e acompanhada de viola, sanfona e pandeiro. Naquela tarde, porém, Mestre Renô Martins a executou apenas na viola, numa levada em tudo semelhante à do calango, tocada, contudo, de maneira muito mais rápida (“é bem ligeirinha, viu?” – segundo seu comentário sobre a levada na viola). Embora muito diferente do calango em termos poéticos, pois segue um tema fixo e tem grande liberdade na escolha da
14 rima, é interessante notar como o desafio calangueado aciona na memória do mestre da cultura popular outras pelejas que julga muito próximas. Passamos a mais um desafio do calango, porém dessa feita sem sucesso. Confiante demais no meu improviso, deixei que mestre Renô Martins escolhesse novamente a linha a ser seguida. Escolheu a “linha do batedô”, a qual não conhecia e não pude acompanha-lo. Deixo registrado, contudo, os versos cantados pelo calangueiro: Mestre Renô: Quem me dera meu colega Na linha do batedô No dia que eu nasci O galo preto cantô Minha mãe viro e disse: - Meu fio sai cantadô Quem me dera meu colega Meu fio sai cantadô Eu sô fio de bom pai Neto de bom avô Quem me dera meu colega Na linha do batedô Eu sô memo nesse jeito Por tudo lugá que eu vô E a função caminhou com outras tantas modas de viola, até a chegada de Brás Ferreira, com sua sanfona. O calango, então, correu na linha do A, por longo tempo. Aí vai um trecho da peleja: Mestre Renô: Quem dera meu colega No calango centená Já chegô a sanfoninha Para nos alegrá
Brás: Venho vindo de tão longe Do sertão de Parmitá (bis) Minha casa é na ladera E o terreno é de rolá Sô fio da Dona Tereza Sobrinho do Mané Gaspar Ricardo: Quando eu vim da minha terra Quando eu vim de lá pra cá
15 Deixei meu pai passando ruim Deixei minha mãe passando má E cumeno cambuquira Ante da abóbra madurá E comeno peixe-cobra E bebeno água de sá Mestre Renô: Quem dera meu colega No calango centená Venho vindo lá de Cunha Você tamém era de lá Chegamo na Cachoerinha Aqui é nosso lugá (bis) Brás: Falô bonito Eu tamém quero falá (bis) Eu botei meu boi turilo No terreno ruminá Turilo (.....) grela Turilo largo de apá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Quando eu vim da minha terra Passei em Guaratinguetá Passei em Aparecida Passei inté em Bananá Pensei que tinha banana Mas era o nome do lugá Brás: Falô bonito Eu té posso acreditá Quando eu vim lá da minha terra Passei no Paraná Eu vi um falá com a morta Dispois de a morta berrá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Tudo que pranto não nasce Tudo o que nasce num dá Prantei na minha horta Foi nasce no meu quintá Faço um caroço de mio Da três quarta de fubá Brás:
16 Falô bonito Eu tamém quero falá O galo chocô no morro Pá galinha discansá A mai véia num dá leite Pode inté dá de mamá Mestre Renô: Me dera meu cola No calango centená Eu vim foi lá de Cunha Eu vim de lá pra cá Ocê tamém veio de longe Veio do Parmitá Pra morá na Cachoerinha Que é o nosso lugá E aqui nóis trabalhemo E vamo até a coisa andá Brás: Ai no calango Mas num vale pelejá Se você vai cantá comigo Precisa ocê chegá Tenho verso na ideia Que nem letra no jorná Ricardo: Você tem verso na cabeça Que nem letra no jorná Meu compadre querido Pra você eu vô falá O jorná eu inscrivi Foi pá pode te ensiná Renô: Quem dera meu colega No calango centená De jorná não entendo muito Mas eu posso te contá Aqui nesse mundo Sô caipira e vô falá Eu sô memo nesse jeito Por tudo lugá que vá Aonde qué que chego As coisa vai melhorá Brás: Falô bonito Eu tamém quero falá Eu nasci de sete meses Fui criado sem mamá
17 Nasci na sexta-feira Na semana do azá Ricardo: Ai, no calango! No batido serená Eu nasci de sete meses Fui criado sem mamá Era na teta da vaca Que ia me alimentá (bis) E comia todo dia Vinte quilo de fubá Vinte quilo no armoço Vinte quilo no jantá Minha mãe tinha é medo Do meu bucho rebentá Mestre Renô: Quem dera meu colega No calango centená Minha casa é na ladera O terreno é de rolá Eu sô memo nesse jeito Por tudo lugá que eu vá Me cutuca Manezinho Sivirino Zé de Sá Brás: Quando eu vim da minha terra Estava passano por lá E comi farinha seca Com costela de gambá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Faço galo botá ovo Pá galinha discansá Ranco toco de braúna Num dexo no chão siná Faço fogo nas parede Faço as teia cunversá Mestre Renô: Quem dera meu colega No calango centená Quando eu vim da minha terra Eu passei no Paraná Uma morena na janela Convidô eu pá chegá Perguntei é do pai dela O meu pai é militar
18 Eu posso entra pá dentro Vou pra mesa do jantá Brás: Falô bonito Eu tamém quero falá (bis) Boa noite minha gente Boa noite pessoal Com uma mão eu dô adeus Pra c’ao outra cumprimentá Terminado o verso, o sanfoneiro encerra o calango com a melodia em seu instrumento. É interessante notar a diferença marcante entre o desafio cantado com o acompanhamento da sanfona, com relação ao anterior, ao som de violas caipiras. Há uma variação grande na melodia, na forma de cantar e no ritmo. Com a sanfona, o calango corre mais ligeiro, e sua melodia determina muito o espaço para a composição dos versos. Com as violas, ao contrário, os instrumentos oferecem apenas uma “base”, com acordes cheios alternados (aproximados do que se considera as notas musicais Sol e Ré), deixando todo o trabalho melódico para a cantoria. Como a função esfriara e mestre Renô aproveitava para atender no balcão, convidei o sanfoneiro para o calango: Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Eu vim de longe Vim de longe pra cantá Dá licença dona da casa Me deixa eu calangá Boa tarde povaria Boa tarde pessoá Brás: Meu companheiro Pra ajuda eu a cantá Quem tiro ele daqui Ponha outro no lugá Eu pego no escurecê E vô té o dia clareá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Tem mais verso na cachola Que cachaça nesse bar Falei cantando:
19 Que cachaça nesse bar Eu sô de fica cantano Até caí o luá Brás: Falô bonito Eu tamém quero falá Eu marrei o meu bigode .......................... puçá Se ocê não acredita Vamo lá pa nóis marrá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Minha barba pego fogo Meu bigode quis queimá Minha barba é de farelo Meu bigode de fubá Eu rezei pá São João E São Pedro mando apagá Brás: Falô bonito São Pedro mandô apagá Botei fogo na igreja Pra vê santo pulá Santo Antônio mais ligeiro Saiu de salto mortá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Eu sô fio de calanguista Morro de calangeá No papai ninguém num bate Na mamãe ninguém num dá Se batê de manhã cedo De tarde eu mando matá Brás: Falô bonito Eu tamém quero falá Eu num sei o que contece Dum certo tempo pra cá Tudo o que pranto num nasce Tudo o que nasce num qué dá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Tiro leite de cem vaca
20 Na porteira do currá Tiro leite de uma purga Sustento dois arraiá Tiro leite até de pedra Quero vê pião tirá Brás: Meu colega eu tô dizeno Eu falei pá te escutá Vaca preta tá dano leite A preta já num qué dá A branca tá no gorduro A preta no carrascá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Eu vim lá do raizeiro Cheguei foi pá calangá Vim de terra de jongueiro Cheguei foi pá calangá Se me dé licença eu chego Se não dé torno vortá Brás: Falo bonito Se não dé se qué vortá Meu pai era demandista Eu nasci pá demandá (bis) Se deitado eu dô rastera Ainda mais se eu levantá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Que meu pai já carriô Também quero carriá Que meu pai foi lavradô Eu tamém quero plantá Se meu pai ganhô dinheiro Eu tamém quero ganhá Brás: Eu sô memo desse jeito Por tudo lugá que eu vá Boa noite minha gente Boa noite pessoá Se me dé licença eu canto Se não dé torno vortá Ricardo: Vamo s’embora cantano
21 No batido serená A cachaça quando é boa O cabra num qué mai pará Ele bebe o dia intero Até vê o mundo girá E depoi fica jogado Até a muié vi buscá Brás: Joguei meu chapéu pra cima Para vê onde ia pará Eu chamei por Deus do céu Meu chapéu torno vortá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Eu andei sessenta légua Foi no lombo dum preá (bis) Nunca vi bicho pequeno Danado pá caminhá Brás: Paraíba é água grande Pá quem num sabe nadá (bis) Eu deito nela dormino E travesso sem acordá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Minha mãe é uma serea Mora no fundo do mar Eu tamém sô fio dela Moro no memo lugá E canoa rio abaixo Nem precisa de remá Brás: Falo bonito Tamém quero falá Quero que você me conta Quantas listas tem a gambá Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Tem uma lista no rabo E outra na ponta da pá Falei cantano: Outra na ponta da pá Quero que ocê me conta
22 Quantos pexe têm no má O sanfoneiro deu fim no calango. Após o calango, novamente, os cantadores se recordam de outras formas antigas de desafio improvisado. O calango parece ter se fortalecido antigamente em rodas de cantoria junto a grande quantidade de outros desafios, daí sempre vir associado a outras disputas. Dessa vez, houve o desafio do Vai de Roda, cantiga com refrão coral cantado por todos, intercalado por versos improvisados por cada participante: Refrão: Vai de roda, vem de roda Não se encoste na parede Que o salão é muito grande Pra dançar caninha-verde Não se encoste na parede Que a parede sorta pó Encosta aqui no meu ombro Que esta noite eu dormi só Mestre Renô: Tropero só fala em burro Carrero só fala em boi Moça só fala em namoro Véio só conta o que foi Você diz que sabe sabe Tem outro que sabe mais Tem gente que tira ponta Do laço que ocê faz (Refrão) Mestre Renô: Eu joguei fubá na água Os pexe fez cardume Amor que não é sincero É uma rosa sem perfume
(Refrão) Mestre Renô: No arto daquele morro Tem porteira de batê Tem moreninha bonita É pra mim não é procê
23 (Refrão) Mestre Renô: No arto daquele morro Tem uma cadeira de pinho É pra eu sentá com ela E ela sentá comigo (Refrão) Mestre Renô: Eu joguei minha galinha No meio da bananeira Os lobo já gorô tudo Pinto saiu de carreira (Refrão) Brás: Eu joguei minha galinha Na raiz lá do cipó Os lobo já gorô tudo Fico só o galo carijó (Refrão) Brás: .................... Folha de banana Quase perdi minha vida Por causa de uma baiana (Refrão) Mestre Renô: Minha mãe me ensinou Como é que se namora Ocê arregala os zóio E põe a língua pra fora Brás: Quando for escolhê moça Escolha pelo seu andar A mocinha que é bonita Pisa no chão devagar
A função foi bem animada e despertou recordações nos cantadores. Contaram como antigamente se juntavam muitas pessoas para esses cantos de desafio. Trata-se de um tema de domínio público, o Vai de Roda, gravado, por exemplo, por Leôncio e Leonel, em 1956. Os
24 primeiros versos da canção eram conhecidos por todos, exatamente por terem sido gravados, ao passo que os demais deveriam ser inventados pelos desafiantes. Era comum colocar uma quadra de outra canção nessa toada, ou inventar uma quadra de improviso, a partir de fórmula já cantada. De qualquer forma, essas disputas duravam longas e divertidas horas. Mestre Renô comenta como era comum o cantador inventar versos, mesmo para canções por todos conhecidas. Na época em que tais canções se propagaram, os cantadores faziam uso apenas da própria memória para se recordar da canção. Ouviam no rádio ou na voz de outro cantador, e procuravam reproduzir à seu modo. Contudo, como a memória por vezes falha, era comum o cantador improvisar instantaneamente um verso de própria autoria para prosseguir a cantoria. Como a habilidade de improviso é marca dos cantos de desafio, tal expediente acidental pode ter sido incorporado nos bailes, como forma de desafio. Além do Vai de Roda, outras canções populares tornaram-se desafios dessa mesma maneira. Outro exemplo daquela tarde foi o clássico Cabelo Loiro (Tião Carreiro e Zé Bonito), gravado por Tião Carreiro e Pardinho (1964):
Refrão: Cabelo loro Vai lá em casa passeá, vai Cabelo loro Vá acaba de me matá Brás: Você diz que bala mata Bala não mata ninguém A bala que mai mata É o desprezo do meu bem (refrão) Mestre Renô: Cabelo loro Tem portera de batê Tem moreninha bonita É pra mim não é procê (refrão) Brás: Cabelo preto Vai lá em casa passeá Cabelo preto Eu tô lá pra ti interá (refrão)
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Brás: Tô falano Que a sanfona vai pará Sanfoneiro tá tocano Mai ninguém qué cantá Como que atendendo a advertência do sanfoneiro, Mestre Renô Martins emenda o calango. A sanfona não parou: Mestre Renô: Quem dera meu colega Dentro da linha do Dão Bate parma Sivirino Sapateia Vicentão Balancea Sivirino No gogó do Laurinão Eu sô memo nesse jeito Dentro da linha do Dão Brás: Meu companheiro Venha vindo devagá E você não me aperta Que eu não quero te apertá Mestre Renô: Quem dera meu colega No calango centená Puxei a linha do Dão Se foi na linha do A Nóis canta de brincadeira Nóis canta pra zoá Nóis samo desse jeito Vamo indo devagá Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do Barandão Eu cheguei nesse calango Pra cantá de coração Ai no calango! Pra cantá de coração Boa tarde povaria Boa tarde meus irmão Mestre Renô: Quem dera meu colega Dentro da linha do Dão A brincadeira tá bonita Vamo fazê união
26 E aonde companheiro Chega pá fazê função Nóis passa o dia inteiro Até a hora de ..... Ricardo: Vamo s’embora cantando Na linha do barandão Azeite no prato é mel Fava no fogo é feijão Trilha no mato é picado Rato no morro é figão Galinha sem pena é frango Mulhé sem cabelo é João Brás: Bora cantá Na linha do barandão Num dia eu sô carrero No outro eu sô pião Mestre Renô: Quem dera meu colega Dentro da linha do Dão Bate parma Sivirino Sapateia Vicentão Balancea Sivirino No gogó do Laurinão E vamo cantá a coisa Só na linha do Dão Brás: Eu tô dizeno Na linha do Barandão Eu usava era chinela Tô usano sapatão Ricardo: O pescador ficô feliz Com balanço do varão Acho que tinha pegado Era um baita dum pexão Mas ali não era pexe Era memo um tubarão E ele sarto fora d’água E cumeu toda embarcação Mestre Renô: Quem dera meu colega Dentro da linha do Dão Eu queria i pá Fortaleza Eu queria i de avião
27 Comprei passage pra í Mas aí não .... E eu fui adiano Então fui de caminhão Ricardo: Todo dia tô cantano De cantá não abro mão Num tenho medo de raio Nem de ronco de trovão Pra me livrá do perigo Tenho boa proteção O reio chuto c’o pé E curisco pego co’a mão Mestre Renô: Quem dera meu colega Dentro da linha do Dão Eu sô memo nesse jeito Na linha do trovão Plantei o curisco na pé E o raio no espigão Eu sô memo nesse jeito Dentro da linha do dão Bate parma Sivirino Sapateia Vicentão Balanceia Sivirino No gogó do Laurinão Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do barandão Mulhé que namora padre Vai casá c’o sacristão Sempre reza ajoeiada Mas num tem mas salvação Vira mula-sem-cabeça Sexta-feira da paixão Mestre Renô: Quem dera meu colega Dentro da linha do dão Esse mundo como está Eu num sei qualé a razão Muié casa com muié E vira sapatão E home casa c’o home E vai mexe o feijão O último verso foi interrompido por sonora gargalhada dos presentes, dando fim a cantoria. Chegado ali por volta das dez horas da manhã, já se cantava a mais de cinco horas. A
28 família de Renô Martins o aguardava para ao almoço há tempos e, como agora o mestre cedia ao pedido, aproveitei o ensejo para me despedir de todos.
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2. O calango entra na festa Os preparativos da Festa do Pinhão haviam se iniciado na primeira semana de julho de 2015, com a colheita de pinhão em mutirão comunitário. O trabalho cooperativo reunia pessoas do bairro rural da Cachoeirinha, próximo ao distrito de Catuçaba, com forte tradição de atividades comunitárias. Durante o mutirão, os trabalhadores entoavam o famoso canto do brão, desafio improvisado nascido do jongo afro-brasileiro, cantado pelos escravos no eito, durante a colheita de café. O brão é cantado em duplas, com vozes paralelas, que improvisam uma espécie de enigma, em linguagem metafórica. Os cantadores “lançam a linha”, ou seja, propõem a charada que deve ser descoberta pelas outras duplas. Há, então, interessante diálogo cantado, no qual as duplas desafiadas interpelam os cantadores, sempre com versos improvisados que são, por sua vez, respondidos também de forma cantada. É um instante em que se suspende a fala habitual e a palavra cantada toma o centro da comunicação. Um instante em que a fala é cantada e a arte é a vida. Naquele mutirão, mestre Renô Martins, o anfitrião da festa, teve o direito de lançar a linha. Cantou versos sobre três reis que protegiam sua propriedade e garantiam a prosperidade na lavoura. Os desafiados passaram a indagar sobre onde moravam tais reis e o cantador responde que estavam ali mesmo, porém também em muitos outros lugares: bastava ter fé para torna-los presentes, protegendo toda gente. Logo os cantadores conseguiram desatar a linha, ou seja, descobrir o enigma. Os três reis de que falava Mestre Renô Martins eram São João, São Pedro e Santo Antônio. O cantador tinha um hábito, que aprendeu com os “antigos”, de erguer um mastro para cada um desses santos. Em cada mastro (espécie de grande galho de árvore com uns três metros de altura) são espetadas as culturas plantadas na propriedade: espigas de milho, ramos de feijão, laranjas, limões, etc. Para o mestre da cultura popular, esse ritual garantia que a lavoura prosperaria, com grande fertilidade e sem pestes. Ressalta, ainda, a eficácia da crença: enquanto outros produtores tinham frequentes perdas, seus cultivos nunca tiveram problemas e mesmo suas frutas são reputadas como as mais doces da região. Cada mastro é erguido no dia do respectivo santo, momento em que se entoa uma oração com toda a família e se faz o pedido ao protetor. Os três mastros são dispostos na entrada da propriedade e, momentos antes do mutirão, mestre Renô Martins explicava esse ritual para alguns visitantes.
31 Daí ser considerada uma linha fácil de ser decifrada. O improviso do brão, como praxe, versa sempre sobre acontecimentos vividos coletivamente por todos os participantes, daí não ser difícil descobrir que os três reis mencionados no canto eram os santos de devoção do dono da casa. Antigamente, o canto do brão amenizava a dura labuta do trabalho; atualmente, o mutirão é mero pretexto para a realização da cantiga de desafio. O registro do mutirão, realizado por Olavo dos Santos Jacob, esclarece o quanto poucos minutos foram dedicados a colheita do pinhão, ao passo que a cantoria perdurou muito tempo depois do trabalho. Colhidos os pinhões, a festa foi realizada durante os dias 04 e 05 de julho, organizada por mestre Renô Martins e família, em seu Sítio das 03 Cachoeiras, no bairro da Cachoeirinha. Dentre as atividades estava a troca de sementes, exposição e venda de artesanatos produzidos por gente da região, baile com forró, palco aberto, etc. O calango teve lugar no último dia da festa, de forma inusitada. Mestre Renô Martins animava a festa com diversas canções caipiras. Chico Mineiro pra cá, O Inhambu-Xintã e o Xororó pra lá, o canto ganhava intensidade na expressão do rosto do cantador, como que entoada na tez da pele. Sua voz trêmula vibrava toda a força da poesia, incorporada por quem a vivia em seu dia-a-dia. Suas mãos calejadas pela enxada emprestavam à viola o ritmo da terra. Afinado “ao naturá”, tenho na voz seu diapasão, o instrumento era membro do corpo do cantador, e as veias saltadas em seu pulso se misturavam às cordas que vibravam no braço da viola. Há um instante de magia em que a canção descortina toda a vida caipira. Chega metre Lauro Faria, sabe-se lá de onde, com um triângulo antigo e pequenino, de um ferro que já não se vê por aí. Esclareceu, depois, que chegara à festa desprevenido, sem o seu habitual pandeiro, e pedira à dona da casa o triângulo que sabia estar por ali. Percebendo que a função esquentava, Brás Ferreira avisa aos compadres que buscaria sua sanfona. A cantoria correu solta e nada do sanfoneiro chegar – como havia nascido um bezerro de sua cria, durante a madrugada, demorou-se nos cuidados com o animal. A cantoria ao vivo foi substituída pelos aparelhos eletrônicos: enorme mesa de som, com grandes caixas amplificadoras e um computador recheado de canções sertanejas contemporâneas. Quando finalmente chega o sanfoneiro, senta-se muito naturalmente em uma mesa e toca seu instrumento. O tal “DJ”, por respeito, suspende a música e o sanfoneiro começa esquentando com o clássico Asa Branca, acompanhado por mestre Lauro Faria. Atendendo a
32 pedidos, cantam juntos As Mocinhas da Cidade. Brás trazia uma feição cômica e inquieta, deixando seu mineirês escapar ao final da música, com a exclamação: “Tem memo que acomprendê, uai!” – em diálogo com o último verso da canção (“Mas depois de nós casados, moreninha / Ele [o pai da moça] vai me compreender”).
Foto: André Silva Monteiro
Nesse espírito, Brás Ferreira inicia o calango, improvisando versos que chamavam seu compadre Renô Martins para tomar parte na cantoria:
Ô meu amigo venha vindo devagá tô esperano você pra pode nóis dois cantá a sanfona tá chorano eu também quero chorá meu amigo sem-vergonha venha vino devagá
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Como o compadre, anfitrião da festa, estava conversando com um convidado, o sanfoneiro continuou seu improviso sozinho, apresentando-se à audiência: de onde vinha, seus feitos e suas forças. Como aglomerava ao seu redor muitas pessoas, o calangueiro passou a provocar pessoas conhecidas, como o fez comigo: meu amigo, Seu Ricardo venha chegano devagá (bis) tá com seu copo na mão cuidado pá não afogá É interessante o instante em que o calango é incorporado pelo cantador. Sua fala tornase canto, ou melhor, ele passa cantar conversas. Poderia falar com seu compadre para ele vir calanguear, mas o faz por meio do improviso. O calango incorporado muda a feição da pessoa, que passa a ter traços traquinas e cômicos, com versos inicialmente satíricos que logo passam a atitude provocativa. Às vezes lembra alguns antigos palhaços, que encantavam mas eram temidos, por seu poder ao mesmo tempo cativante e insolente. Há um clima de suspense, na iminência do cômico ou do confronto. No centro do canto, o calangueiro sujeita a audiência com suas peripécias, movendo-se numa artimanha imprevisível: num salto rápido, do riso ao medo. Como Seu Renô tardava a chegar, o calangueiro passou a incitar qualquer dos presentes ao duelo, convidando outro cantador a tomar o lugar de seu compadre: Venho vindo de longe do sertão do Palmitá chuva grossa não me móia sereno que me moiá venho vindo de tão longe fui pará nesse lugá mas foram os meus amigo que mandô me cunvidá e cadê meu cumpanhero pra ajudá eu a cantá tira ele daqui e ponha outro no lugá Eis que uma pessoa da assistência, chamada também Ricardo, aceita a provocação: Ricardo: Falô bonito Seu Brás que não nego o naturá é filho da cobra verde
34 neto da cobra corá Brás: Falo bonito neto da cobra corá eu sô fio do boi turino neto do boi araçá O desafiante, pouco habituado à peleja, não conseguiu levar o improviso adiante. Já o sanfoneiro deixava claras impressões de que não duelaria com o visitante, possivelmente por não o julgar um adversário a sua altura. Porém, a entrada do jovem na peleja parece ter incitado Seu Renô Martins, que chega correndo à cantoria e, antes mesmo de parar, já começa seu improviso. Mestre Renô: quem dera meu colega no batido serená se dá licença eu chego se não dé torno vortá quem dera meu colega no batido serená me cutuca Manezinho Sivirino Zé de Sá bate parma Sivirino sapateia Vardemá balanceia Sivirino no gogó do Zé de Sá Brás: Falô bonito agora quero falá já chegô meu cumpanhero pra ajuda eu a cantá eu vendi duas mula vi até sola pulá Mestre Renô: quem dera meu colega no batido serená quando eu vim da minha terra eu passei no Paraná uma morena na janela convidou eu pá chegá perguntei é do pai dela o meu pai é militá o moço entra pá dentro vô pá mesa do jantá
35 Brás: Meu compadre tá dizeno pá fazê nosso jantá é você que tá contano já num vi ninguém contá
Mestre Renô: quem dera meu colega no batido serená eu venho vindo de Cunha ocê também era de lá e vim na Cachoeirinha que aqui é nosso lugá no tombo da Cachoerinha no tombo que a água dá Brás: meu colega tá dizeno no tombo que a água dá o galo chocô no morro pá galinha descansá a mais véia cacareja pode inté dá de mamá Mestre Renô: quem dera meu colega no batido serená cumpanhero não me pinique num quero te pinicá na volta do Rio Bonito lambari engoliu cará Brás: Falô bonito que agora eu vô falá (bis) Paraíba é água grande pra quem não sabe nadá deito nela dormino travesso sem acordá Mestre Renô: quem dera meu colega no batido serená eu sô memo desse jeito por todo lugar que eu vá (bis) eu sô memo caboclinho e vamo indo devagá Brás: meu compadre tá dizeno que é bobagem pelejá
36 eu sô duro na paçoca eu sô duro de cozinhá eu sô leite que não coalha soro que custa azedá Renô Mas quem dera meu colega no batido serená se a branca dá leite porque a preta não dá boto a branca no gorduro e a preta no carrascá Brás: Falô bonito eu tamém quero falá a branca no gorduro e a preta no carrascá tô falano e tô dizeno que é bobagem pelejá eu dei um pulo pra cima e virei sarto mortá Mestre Renô: Quem dera meu colega no batido serená minha casa é na ladera e o terreno é de rolá piso no chão e viro purga dexo o cacete malhá Brás: Meu compadre tá falano eu tamém quero falá quero que você me conta quanta água pega lá Mestre Renô: Quem dera meu colega no batido serená ocê não venha esnobano já não vai no rio pescá eu quero que se me conte quantos peixe tem no mar
Com esse último verso, todo mundo cai na gargalhada e o sanfoneiro encerra a melodia.
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Foto: André Silva Monteiro
Percebe-se que Brás provoca o desafio quando fala ao “cumpanhero”: “o galo chocô no morro / pá galinha descansá”. De forma metafórica, o calangueiro parece estar se referindo à demora do cantador em chegar para o improviso, pois o tal “galo” é ele próprio que cantava sozinho para tal “galinha” (referindo-se ao compadre Renô) descansar. A provocação se encerra nos versos finais, quando Brás satiriza a idade avançada do companheiro, assemelhado a galinha que cacareja e, de forma engraçada, pode até dar leite. Mestre Renô Martins entende de pronto a provocação e adverte seu adversário: “cumpanhero não me pinique / num quero te pinicá”. Há um jogo interessante no desafio dos compadres: um respeito recíproco e um pacto implícito de não pelejar, ao mesmo tempo em que se peleja e se provoca. Há um combinado de calanguear entre amigos, sem duelo desbocado, o que fica claro na advertência de Renô e na assertiva de Brás (“é bobagem pelejá”). Contudo, o próprio acordo é quebrado no instante em que vem à tona, pois quando Mestre Renô diz que não quer “pinicar”, acrescenta: “na volta do Rio Bonito / lambari engoliu cará”. Ou seja, pinica sem querer e afronta o adversário de que será engolido se desafiar. No mesmo assunto proposto anteriormente (o tema do rio), Brás emenda com: “Paraíba é água grande / pra quem não sabe nadá”. Aqui há um expediente típico do calango: a desqualificação do adversário, simultânea a exaltação da força do calangueiro. A tal “água grande” é a própria correnteza caudalosa de versos que Brás diz possuir, em detrimento do
38 adversário que não saberia nadar, ou seja, não conseguiria prosseguir o desafio em águas tão grandes. Já Brás Ferreira transitaria tranquilamente nessas águas, pois as atravessaria dormindo. Como a coisa ia esquentando demais, Mestre Renô Martins põe panos quentes: “vamo indo devagá”. Brás entende o recado: “meu compadre tá dizeno / que é bobagem pelejá”. Contudo, no mesmo instante, dá a entender que o companheiro não deseja um desafio mais agressivo porque ele é calangueiro muito difícil de vencer: “eu sô duro na paçoca / eu sô duro de cozinhá / eu sô leite que não coalha / soro que custa azedá”. Esse vaivém do pelejar, não pelejando, ou pinicar não pinicando, revela um movimento típico do calango: o respeito à solidariedade da vida comunitária e aos laços de compadrio, concomitante à ruptura desse acordo, com a rivalidade e a disputa. Ambos trocam desaforos, numa linguagem ao mesmo tempo engraçada e agressiva. Brás prefere o tema da demonstração de força, insinuando ao oponente os seus poderes, com seus saltos mortais. Mestre Renô Martins, contudo, faz alusão a violência física, com a imagem da vaca sendo assada ou do cacete malhando. A peleja se encerra quando Brás Ferreira faz uma pergunta a mestre Renô Martins, pergunta cantada que não conseguimos compreender, ao que este último julga que está sendo “esnobado”. Questiona, então, o sanfoneiro sobre quantos peixes têm no mar, ao que o sanfoneiro não responde e encerra o desafio, concluindo a melodia em seu instrumento. Após essa primeira rodada de improviso, Renô Martins pega sua viola e continuam a cantoria com time completo: sanfona, viola e triângulo. O calango divide a animação da festa com outras toadas, como Cortando o Estradão. O repertório era decidido de improviso pelos cantadores, sendo comum atenderem aos pedidos da audiência. Entre uma canção e outra aparecia o desafio calangueado, porém num tom mais ameno. Em um calango interessante, entre um verso e outro, o calangueiro era obrigado a inserir a interrogação “Oh! Saudade!”, por exemplo: [...] Gosto tanto de cantá Oh! Saudade Eu sô memo nesse jeito Oh! Saudade Não nego meu naturá Oh! Saudade Vamo nóis começá Oh! Saudade Tô chegano e tô saino Oh! Saudade Aqui não posso pará [...]
39 As rimas e os versos são idênticos àqueles cantados no desafio calangueado, contudo, cada cantador era obrigado a entremear o canto com a exclamação. Tal expediente parecia ter a finalidade de dificultar a improvisação, impondo um obstáculo a forma mais comum de desenrolar a cantoria. Contudo, mestre Renô Martins me contou depois que tais versos eram reminiscências de outro canto de desafio praticado na região, que fora como que absorvido pelo calango: a “cana-verde” ou “caninha” – conhecida em outras regiões, inclusive em Portugal, como dança popular. A forma poética, contudo, é diferente da cana-verde, tal como praticada enquanto canto de desafio, em outros locais do Vale do Paraíba paulista. Já a toada era familiar aos meus ouvidos, seja por sua semelhança com um desafio de cururu que presenciara em Tautí (SP), seja por lembrar o clássico Leva eu sodade, de Alventino Cavalcanti e Tito Neto, gravado por gente como Inezita Barroso e Sérgio Reis – artistas presentes no repertório da cantoria daquela tarde. Após mais algumas canções e outros tantos improvisos calangueados, os cantadores encerraram a função. Eis um exemplo típico do calango praticado atualmente em São Luiz do Paraitinga. A festa popular é o celeiro do calango. O canto surge de improviso, como também o instrumental que o acompanha. Versos mais quentes de desafio são entremeados por repertório de toadas caipiras, também decididas ao sabor do instante. Em meio a animação da festa, o calango surge como um contraponto: diverte, mas traz o confronto; fortalece a solidariedade comunitária, mas abre brechas para desaforos e disputas individuais. O calango traz a efervescência das relações humanas em comunidade, não apenas seus laços marcantes de amizade, mas também seus entreveros e rivalidades.
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3. Registros do calango em São Luiz do Paraitinga
3.1.
Calango luizense na década de 1940
O primeiro registro do calango em São Luiz do Paraitinga foi realizado por Alceu Maynard de Araújo, nos últimos anos da década de 1940, no sítio do Engenho Velho, no bairro do Oriente. O folclorista estudava a prática comunitária de mutirões rurais – nos quais se praticava outro importante canto de desafio, o brão – seguidos de festas populares. Numa dessas festas, observou o desafio do calango nas seguintes circunstâncias: “Enquanto no salão da casa da fazenda dançava-se o cateretê, perto de uma pequena fogueira, ao ar livre, dois violeiros cantavam um calango. Calango ou calanco é o nome que dão a uma forma de desafio de viola”. O pesquisador esclarece que há outro canto de desafio em voga no município, no qual os cantadores fazem uso da quadra, com rimas entre o segundo e o quarto verso. A característica específica do calango está na repetição do último verso improvisado pelo adversário. Do desafio entre Eurico e José Bento Gouvêa, Alceu Araújo registra um calango “célebre” da região, que “anda de boca em boca dos cantadores”:
Calango do Touro Araçá Zé bento: Meu amigo Orico, pra ocê eu vô falá, com uma cana cortei outra no meio do canaviá. Eurico: Fala colega no meio do canaviá, embaúba é pau ôco, lugá de cobra mora. Zé Bento: Oai, Oai lugá de cobra mora, vô manda fazê um côcho pro meu gado comê sá. Eurico: Fala colega, pô seu gado comê sá, hoje eu vim aqui pra êsse gado eu compra.
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Zé Bento: Oai, oai, prá êsse gado ocê compra, pegue os cavalo e vamo o gado recontá. Eurico: Fala colega, vamo o gado recontá, com prázu de duas hora, tive tudo no currá. Zé Bento: Oai, oai, tava tudo no currá, verméie o ferro da marca, o que fô meu, quero marcá. Eurico: Fala colega, o que fô seu, ocê qué marcá, não marque na cara, ocê marque no apá. Zé Bento: Oai, oai ôce marque no apá, ôce sabe qui me chamo Antonho minha marca é a letra “A” Eurico: Fala colega, minha marca é a letra “A” ocê vá fazeno as conta qui o gado eu quero pagá Zé Bento: Oai, oai o gado ocê qué pagá, le custa cincoenta conto fora o tôro Araçá. Eurico: Fala colega, fora o tôro Araçá, ajunte a piãozada pô gado nois sortá. Zé Bento: Oai, oai pô gado nois sortá, deixei pago e repago, despidi pá retirá. O folclorista comenta que se trata de um “calango velho”, do tempo em que uma boiada custava cinquenta contos de réis. Além desse calango consagrado pela tradição, há também o desafio mais acirrado:
44 Meu amigo Zé Bento, ocê tem feição de cachorro, cantadô de meia bota, de ocê num guento desafôro Oai, oai, num guenta desafôro, ocê cale a boca, qu’eu chegô ocê no côro Deste primeiro registro do calango em São Luiz do Paraitinga, fica clara a qualificação de Francisco Pereira da Silva do calango no Vale do Paraíba como uma cantiga marginal, pois o canto surge como um “gênero menor à margem das manifestações mais empolgantes do populário valeparaibano [como a Dança de São Gonçalo e o Cateretê]” (Silva, 1976, p. 07). Enquanto o baile oficial era animado pelo cateretê, o calango é praticado à parte, posição talvez compatível com o conteúdo agressivo da peleja. De qualquer forma, enquanto o calango desempenha papel de animar o baile em outras regiões, aqui aparece na forma de desafio; enquanto em outras regiões é conhecido como dança, em São Luiz do Paraitinga é apenas canto improvisado. É um desafio de viola: sendo este o único instrumento musical referido. A quadra é a forma poética praticada, com rimas terminais entre o segundo e o quarto versos, com a convenção de repetir o último verso do adversário. No “Calango do Touro Araçá”, segue-se a rima na famosa “linha do A”, enquanto que a outra porfia se articula em rima em “oro”, rara entre calangueiros. O desafio mais aguerrido divide com a crônica social os temas do calango, como demonstram esses dois exemplos. Por fim, a posição já tradicional do “Calango do Touro Araçá” pode estar relacionada com as raízes do calango local na cultura tropeira e cigana, ambas bastantes habituadas à criação e à negociação de animais. Esta crônica é também emblemática da forma improvisada de que se servem os cantadores: nutrem-se de um tema consagrado naquela coletividade e, possivelmente, de alguns versos já conhecidos, concomitante a criação individual e instantânea de outras passagens. O folclorista descreve os seguintes dados sobre o pai dos calangueiros: “mestre da folia do Divino Espírito Santo, contramestre de cavalhada, marcador de quadrilha, capelão-caipira e curandeiro”. O calangueiro é apresentado como “lavrador” e violeiro, cuja família está bastante ligada as tradições do catolicismo popular e de expressões populares ibérico-portuguesas.
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Os calangueiros Eurico Bento e José Bento Gouveia Foto: Alceu Maynard de Araújo (Alguns ritos mágicos, 1958)
Por fim, é interessante observar versos trocados entre José Bento (J) e seu irmão Antenor Bento Gouvêa (A), durante o canto de brão: J – Hoje neste mutirão com nada m’imbaraço os cantadô que tão aqui trago prêso em baixo do braço A – Prá vim neste mutirão eu torci o meu bigode, pode ajuntá teus companhêro que comigo ocê num pode Os mesmos cantadores na festa noturna se desafiam no seguinte calango: A – Meu amigo Zé Bento, ocê tem feição mais é de bode, não adianta rodeá cepo, que comigo ocê num pode J – Oai, oai, comigo ocê num pode, ocê tá muito feio, parece o Reis Herode
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Observa-se que há estreita relação entre o calango e o brão: realizados pelas mesmas pessoas, em forma poética coincidente e, inclusive, com um verso igual (“comigo ocê num pode”). Na grande obra folclórica de Alceu Maynard de Araújo, o calango não recebe a mesma atenção que os demais cantos de desafio (como o jongo e o brão) ou danças (como o cateretê, o caiapó e tantas outras). O espaço de registro do calango é reduzido, ainda assim em meio a descrição abrangente do mutirão rural. É nesse espaço marginal, tanto entre os registros dos folcloristas, como à parte da festa comunitária, que o calango tem lugar.
3.2.
Calango na década de 1980
O calango luizense é mencionado novamente na pesquisa de Carlos Rodrigues Brandão sobre o modo de vida caipira, no livro A partilha da vida (1995). Trata-se de um trecho no qual o cientista social observa a importância dos cantos de desafio no interior da sociabilidade rural. O calango, o brão e o jongo, seriam momentos de ritualização da rivalidade. O comentário mais específico sobre o calango surge na seguinte passagem: Na roda alegre de calango, as pessoas acompanhadas de instrumentos musicais sertanejos se alternam improvisando cantos em quadras ao longo de uma quase ladainha de frases rimadas além de ser um desafio à capacidade inesperada do improviso, porque nos bons calangos quem canta depois deve entrar no tema do antecedente e mesmo partir de frases deixadas pelo antecessor, o calango é uma troca cerimonial de desaforos. Embora breve, o trecho deixa entrever características do calango: a quadra como forma poética; presença marcante da rima; a prática do improviso; a utilização de frases do adversário na composição dos versos; o clima irreverente simultâneo à peleja; e o instrumental mais abrangente, não restrito à viola (embora não se possa precisar quais seriam esses “instrumentos musicais sertanejos”). O autor parece contribuir para o que se pode denominar como função social dos cantos de desafio na vida caipira – assunto que trataremos mais adiante. Novamente se verifica pequeno espaço dedicado ao calango, em meio a dezenas de páginas dispensadas ao mutirão do brão. Também coincidem os cantadores do calango e do brão, agora em outra região de São Luiz do Paraitinga: no bairro de Santa Cruz do Rio Abaixo,
47 conhecido como o “bairro dos mineiros”, na fazenda de Zé Leite. O fazendeiro pecuarista migrou para o município com um conjunto de outras famílias vindas da região mineira de Itamonte e Pouso Alto. Este detalhe é importante para se pensar na influência dos migrantes mineiros na cultura do calango, uma vez que Minas Gerais é grande polo de calangueiros. Outro detalhe parece importante: o mutirão de brão contou com a presença de grupos de várias áreas luizenses (Catuçaba e Santa Rita) e do município vizinho de Lagoinha. Tal fato revela a grande extensão da prática do mutirão do brão e do calango.
3.3.
O calango documentado em 2007
No documentário Calango e Calangueiros (2007), de Flávio Cândido, temos talvez o primeiro registro audiovisual do calango de São Luiz do Paraitinga. A apresentação desse canto de desafio, feita especialmente para a gravação do filme, contava com instrumental completo: sanfona de oito baixos (Brás Ferreira), viola (Mestre Renô Martins), pandeiro (Mestre Lauro Faria), além dos calangueiros Adão Charlô, Felipe Donizetti, Luciano Donizetti e Vicente Faria. Gravado no bairro da Cachoeirinha, distrito de Catuçaba, este registro traz alguns dos personagens presentes na pesquisa de Carlos Rodrigues Brandão (como Agenor Martins e Adão Charlô). É o primeiro registro exclusivo desse grupo que seria o único polo de prática atual do calango no município. O calango de 2007 mantém estrutura em quadras, com rima na “linha do A”, porém com modificação importante: cada calangueiro emenda, por assim dizer, duas quadras, repetindo, na última quadra, os últimos versos da primeira: Olha que eu digo deixa eu também falá estou cantando e pelejando vamo nóis tudo cantá Olha que eu digo vamo nóis tudo cantá vô cantando e pelejando do jeito que a pedra dá Falô bonito eu também quero falá onça brava não me pega gabiru que me pegá Aí no calango gabiru que me pegá
48 chuva grossa não me móia sereno que me moiá
O documentário registra, ainda, o calango de Lagoinha, cantado unicamente por mestre Amarildo Pereira:
Se me dé licença eu chego se não dé torno vortá canto na linha do E e canto na linha do A tenho verso na idéia que nem letra no jorná sô fio da cobra verde neto da cobra corá Note-se que os últimos versos do calangueiro são exatamente iguais aqueles coletados por Cássia Frade em terras fluminenses, assim como os dois primeiros versos da última quadra são tradicionais do calango. O trânsito de versos por diversas regiões é mais uma prova da ligeireza desse canto que atravessa diferentes culturas sem perder seu tom de tradição. A performance de calango foi acompanhada por entrevistas em que os cantadores fazem importantes observações. Mestre Renô Martins fala que aprendeu a calanguear em sua mocidade com uns tais “ciganos”, que frequentemente montavam acampamento na fazenda de seu pai, no bairro do Mato Dentro, além de salientar a importância dos “mineiros” do bairro de Palmital. Já Amarildo aponta a presença do calango na região a partir das festas de pouso da folia do Divino, realizadas por tropeiros.
3.4.
Calango em 2010
Com o mesmo grupo do bairro da Cachoeirinha, o calango foi registrado no Projeto Mestres Navegantes (2010), patrocinado pela empresa Natura. A apresentação, também arranjada exclusivamente com fins de produção de material audiovisual, começa com a fala de Renô Martins sobre o calango ali gravado: trata-se de mero “entrosamento dos versos”, diferente do calango que praticavam anteriormente, de “tirá o coro” – ao que se ouve, ao fundo, o comentário: “nóis cantando aqui é tudo amigo, né?”. Nele fica claro um traço marcante no calango da região: o abrandamento do desafio numa peleja entre compadres. Ou seja, a troca
49 escancarada de desaforos de outrora é substituída por versos mais amenos, por se tratar de um canto entre camaradas. Os improvisos têm como mote a amizade: Chega meu colega no batido serená tô chegando e tô saindo e não posso pará [....] meus amigo que vieram me visitá bom dia minha gente boa noite pessoá Meu amigo, meu colega meu amigo, meu xará (bis) Vamo nóis canta o calango vamo nóis dois calangá Cada um já canta um verso pra sanfona num pará
Permanecem os oito versos, mas agora sem o acento de duas quadras emendadas, com repetição convencional dos últimos versos da primeira quadra. Fica evidente, portanto, que o improviso se pauta da frase musical, ou seja, na forma melódica executada pela sanfona e pela viola. Nota-se que tomou parte no calango um importante cantador de brão de Lagoinha, José Roberto Landim, que tocava caixa. Possivelmente, o visitante estava ali para participar da gravação do canto do brão, para o mesmo projeto, e acabou tomando parte no calango. Novamente, o registro do calango demonstra afinidades com esse outro canto de desafio, protagonizado pelos mesmos cantadores.
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4. Calango: cultura popular e contexto festivo Estamos muito habituados a perceber a poesia, a música, a dança e o teatro como expressões artísticas distintas e específicas. Ao ler um livro, ouvir uma música ou assistir a um vídeo, acostumamo-nos com materiais gravados, distantes de seu contexto de realização. Ou, quando temos contato com essas artes ao vivo, em espetáculos, aceitamos de bom grado o lugar passivo de espectador. O artista tornou-se uma pessoa tão especial que acaba sendo cultuada como estrela que paira distante de nosso cotidiano. Pois bem, essas representações que temos sobre a arte e o artista não se aplicam ao calango, e nem as diversas outras expressões da cultura popular. Todo calangueiro é um poeta de mão cheia. Muitas vezes, no próprio instante em que canta, cria estrofes que seguem rigorosas normas de composição poética, em quadras (quatro versos), com necessárias rimas entre o segundo e o quarto versos. Essa composição improvisada é sempre cantada, em música tradicional que comporta diversas experimentações de ritmo e melodia, o que torna todo calangueiro um cantor. Frequentemente, além de poeta e cantor, o calangueiro executa algum instrumento musical ao mesmo tempo, o que torna sua tarefa ainda mais complexa. Como se não bastasse, em expressões corporais e gestuais, que muitas vezes teatralizam o tema do verso composto, ou debocham do adversário desafiado, o calangueiro não deixa nada a desejar a um performer. Contudo, o calangueiro, como muitos cantadores populares, não tem na arte uma profissão. É visto roçando, plantando e colhendo em sua terra; ou negociando no mercado aquilo que produziu; está nas praças aos domingos ou caminha entre amigos nas festas tradicionais. É gente comum, prestigiada pelo seu talento, sem dúvida, mas que leva sua vida mais ou menos como toda gente da comunidade. No calango, as pessoas que se desafiam não estão separadas das pessoas que estão ouvindo. A audiência do calango é muito distinta de uma plateia. Próximas, às vezes ao lado dos cantadores, as pessoas participam ativamente do desafio, seja com uma expressão de riso ou suspense, seja gargalhando do cantador satirizado ou saudando com exaltação um verso. No contexto festivo do calango é comum uma pessoa da audiência tomar parte do desafio, de maneira inesperada, e engrossar a peleja. Ou mesmo, como vimos tantas vezes acontecer, uma pessoa chegar com instrumento e tomar parte na música, ou substituir momentaneamente um tocador de pandeiro enquanto este vai ao banheiro. Assim, aquele que assiste ao calango é frequentemente um co-autor, quando não um tocador ou calangueiro que dele participa.
53 Embora o improviso traga a marca da individualidade do cantador, o calango é um canto tradicional fortemente coletivo, em dois sentidos fundamentais: primeiro porque os versos são, em grande parte, de domínio público, com uma autoria coletiva e intergeracional; segundo porque não se canta calango sozinho, devendo dele participar outros cantadores. Assim, se tomarmos o calango em seu contexto festivo, há poucas semelhanças com a música gravada, fixada de uma vez por todas por um autor ou intérprete determinado. Talvez nem seja pertinente tratar o calangueiro como artista, ou o calango como arte. Calango é festa, momento de suspensão das barreiras sociais, da divisão das artes em expressões estanques ou do artista com a assistência; enfim, o calango é festa como consagração da comunidade.
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5. Verbo vivo: a tradição oral do calango
No calango se canta como se fala. É um verbo vivo no cotidiano, um dialeto típico do contexto em que se realiza. Os temas, os símbolos, as metáforas, o vocabulário e o sotaque, emanam de uma experiência de mundo específica. No calango, o cantador atribui um sentido a realidade circundante e o partilha, em diálogo cantado, atualizando os saberes populares tradicionais. Assim, no mesmo ato em que o calangueiro lança mão de todo o acervo da tradição oral de sua comunidade, ele o enriquece com novas palavras, novos gestos, enfim, com uma forma inédita de atribuir sentido a uma realidade em constante transformação. O calangueiro atua como memória coletiva em movimento, pois seu verbo apresenta causos, situações e modos de ser de tempos imemoriais ou dos “antigos”, como afirmam na região. Outras vezes, em versos que beiram o aconselhamento, em máximas ou reprimendas, o cantador influencia os comportamentos da comunidade: sua moral e formas de conduta. O canto desempenha para as comunidades de tradição oral papel similar ao livro nas sociedades de ênfase escrita: preserva a memória, comunica, apresenta saberes, discute e diverte. O famoso verso de calango, “tem mais verso na ideia / do que letra no jornal” parece assemelhar o acervo de versos colhidos da oralidade de uma população, com as informações escritas em um jornal: em ambos a circulação pública de informações, a articulação de ideias, a formação de opiniões e a construção de modos de se viver. Contudo, a oralidade traz a voz viva em sua vibração corporal, seu ritmo e seu gestual. A palavra cantada é um gesto físico do corpo construindo seu ambiente, como uma enxada ara a terra, relação diferente das letras impressas em um livro. Nas tradições portuguesa, africana e indígena, berços da cultura caipira, o canto movimenta estranha magia: o verbo faz-se carne. O canto, acompanhado de instrumentos musicais, cura doentes – como testemunham rituais indígenas e africanos, mas também o murmulho devoto de benzedeiras. O canto evoca forças poderosas capazes de interferir no destino humano, como nas orações da Dança de São Gonçalo, ou nos saravás do jongo. Uma das possíveis raízes do termo jongo, é o termo nsongi, que tanto pode significar flecha, tiro ou o lançamento de algo pontudo em um adversário, quanto um verso do jongueiro durante um desafio cantado. Maria Ribeiro Borges, estudiosa do jongo no Vale do Paraíba paulista, notou como o ato de cantar um verso em desafio era referido pelos jongueiros como “lançar”, “jogar”, “soltar”, “atirar”. O verbo vivo no calango possui essa força física de ferir o adversário.
57 A importância da tradição oral no calango fica muito evidente no vocabulário empregado no canto. Devendo o cantador executar rimas obrigatórias entre os versos, definidas pela “linha” praticada naquele instante, o calangueiro faz uso da forma como a palavra é falada na comunidade, não em seu emprego culto do dicionário. A popularidade da “linha do A” se dá pela grande quantidade de palavras que, no dialeto caipira, tem essa terminação: a infinidade de verbos terminados em “ar”, como o próprio “cantar”, que recebe a forma de “cantá”; também substantivos terminados em “al” (sal, curral, canavial) que viram “sá”, “currá”, “canaviá”; além das próprias palavras terminadas em “á”, tanto na forma erudita quanto na popular, como sabiá ou gambá.
A própria “linha da carretia”, que determina a rima com
palavras terminadas com “ia”, é exemplo ilustrativo: deriva dos desafios cantados por trovadores medievais da Península Ibérica, para os quais a “Carretilha” definia a quantidade de versos que deveria ser empegada nas disputas. Contudo, não é a “carretilha” dicionarizada da norma culta da língua portuguesa a referência dos calangueiros, mas sim sua forma habitual de falar, a “carretia”.
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6. Improviso
Em comunidades caracterizadas pela tradição oral, o canto e a fala adquirem grande função na transmissão dos valores ancestrais que sustentam o modo de vida em comum. O suporte e a transmissão desses conhecimentos utilizam a memória como principal recurso. É na memória que se guarda os saberes diversos, desde as formas de plantar ou de criar animais, como também as rezas, os causos e os cantos. A memória, contudo, não é algo estático que registra uma informação que permanece a mesma para sempre. A memória está em constante movimento e não apenas transmite, mas reinventa seus conteúdos cada vez que os acessa. Isso significa dizer que a cada causo contado ou canção cantada seu conteúdo é reinventado, sempre diferente do anterior. O mistério da ininterrupta renovação de uma tradição oral é esse: um conteúdo é constantemente reinventado, mas permanece o mesmo saber ancestral. Como o sol, presente todo dia, mas sempre diferente. No fundo, os saberes comunitários são reinventados sem parar pela memória porque a vida, por mais que se tenha a impressão de continuar a mesma, está sempre em devir. Mudam as pessoas, mudam as formas de se relacionar, muda o mundo. A memória atualiza seu conteúdo no fluxo de transformação da vida. Quando um cantador ouve uma melodia, um verso ou um causo, depende apenas de sua memória para fazer seu registro. Assim, ele recria aquele conteúdo a cada vez que lembra. Essa recriação, às vezes, se dá porque o cantador se esqueceu da frase exata que ouviu, substituindo algumas palavras com as que surgem na cabeça naquele instante. Ao proceder dessa forma, ele canta uma canção reconhecida por todos da comunidade como tradicional, mas, em maior ou menor grau, alterada por sua interpretação pessoal. Dessa forma, a própria transmissão da tradição oral pela memória do cantador exige certo grau de improviso. O improviso é a habilidade de invenção de novas palavras, expressões, sons e gestos, dentro de uma tradição estabelecida. Não há improviso puro, vindo de uma liberdade incondicional do cantador, pois toda sua criação está submetida a regras bem claras de ritmo, melodia e versos. As sociedades tradicionais não necessitam de uma ruptura constante com o passado, como a sociedade moderna; assim, o dom do improviso é tão importante quanto a manutenção de regras mais ou menos estáveis. Poderíamos até pensar que no canto improvisado reside uma forma de relação do indivíduo com a comunidade, ou, mais especificamente, uma forma de constituição da
61 subjetividade. Ou seja, a pessoa constitui seu modo de ser sempre em sociedade, a partir de suas relações sociais. A esse conjunto de costumes e modos de ser de uma comunidade poderíamos chamar de tradição. Contudo, cada pessoa incorpora de maneira distinta essa tradição comunitária, reinventando-a, pois desenvolve um modo de ser particular. Esse modo de ser individual, construído coletivamente e banhado pela tradição, é muito similar ao improviso do cantador. Com a constituição da subjetividade e o improviso do cantador, a coletividade reatualiza constantemente seus saberes dentro de um mundo em devir, mantendo seu mistério de permanecer aparentemente a mesma, modificando-se a cada instante. Daí a importância do cantador em comunidades tradicionais. Seu canto transmite às novas gerações costumes ancestrais atualizados de acordo com as forças presentes naquele instante. Além dessa contribuição na educação (em sentido amplo) da comunidade, o cantador ainda diverte e até cura. O cantar é uma expressão poderosa, nos sentidos mágico, social e político. O improviso é o que marca a subjetividade do cantador e seu prestígio social. Contudo, a constituição da subjetividade se dá pela diferenciação do indivíduo em relação às outras pessoas da comunidade. Se a tradição os une, o improviso os distingue. Quando dois indivíduos, em busca dessa subjetividade específica, encontram-se, frequentemente o improviso gera confronto. Nesses momentos, a tensão com a vida compartilhada fica mais evidente: é o duelo, a disputa, o desafio.
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7. Desafio Sendo lugar de renovação da tradição, constituição de subjetividades e função social ligada ao poder, o canto improvisado frequentemente assume feição de disputa, peleja, desafio. No desafio, o cantador não apenas defende sua importância no interior de uma comunidade, mas um novo modo de ser, com papel marcadamente político. Há uma face lúdica e divertida nos cantos improvisados de desafio, que se assemelham aos jogos dialogados. Porém, os cantadores, mesmo que de forma bem-humorada e irônica, estão medindo suas forças. O desempenho e a força demonstrados nos cantos de desafio são proporcionais ao reconhecimento social e à importância política do cantador na comunidade. Contudo, o desafio não define apenas a subjetividade, mas coloca em atualização tensões maiores da comunidade. As cantigas ao desafio portuguesas em que há uma disputa entre um homem e uma mulher, como a desgarrada, deixam isso mais claro: o improviso de versos cantados define os modos de ser de homens e mulheres, do masculino e do feminino, na sociedade patriarcal portuguesa (e ocidental). Por vezes, um desafio calangueado se assemelha a espécie de parlamento popular, em que dois cantadores divergem em relação a assuntos da comunidade e a audiência, com sua participação ativa na definição da peleja, faz as vezes de júri que legitima este ou aquele comportamento. Outras vezes, o desafio coloca em suspensão os saberes cotidianos, e abre brechas para vocabulários, gestos e valores que são reprovados na partilha da vida em comum. O calango se assemelha, assim, a um ritual em que os membros da comunidade podem extravasar e descarregar tensões acumuladas durante o dia-a-dia, retornando a vida cotidiana renovados, deixando para trás suas desavenças. Esta face do calango é melhor observada em seu papel de ritualização da violência, ou seja, um instante em que dois desafetos podem duelar sem qualquer pudor, por meio do canto, e resolverem suas questões pessoais sem necessitarem de uma briga física, fato que atrapalharia a vida comunitária. O desafio surge, assim, como momento de exceção e exorcismo dos comportamentos desagregadores inevitáveis nas relações humanas. Após o ritual – e por ele fortalecida –, a moral comunitária se revigora. Tal como o improviso, o desafio é o outro elemento do calango que abrange essa contradição: permite a fruição das diferenças individuais, e mesmo incita o confronto ou a divisão entre pessoas da comunidade, ao mesmo tempo em que fortalece a união das pessoas em sua convivência cotidiana.
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8. Contexto de realização do calango
O celeiro do calango são as festas populares. O canto se desenvolve especialmente nos festejos rurais, como nas comemorações dos dias de santos (Santo Antônio, São João, São Pedro, etc) e festividades mais gerais do catolicismo popular, como as festas de Santa Cruz. Os frequentes mutirões rurais também findavam com alegre festança, na qual o calango era cantado. Mesmo em acampamentos ciganos, no cair da noite, a fogueira é acesa e o desafio tem lugar. Igualmente nas festas de pousos da bandeira do Divino Espírito Santo ou nos pousos de romarias. No ambiente urbano, o calango corre solto nas grandes festas, como na Festa do Divino Espírito Santo, em que a peleja se acirra com a presença de calangueiros de outras regiões. Enfim, onde quer que o povo se reúna para festejar ou se divertir o calango é improvisado. Os desafios podem ocorrer em bares, praças e demais espaços públicos de convivência. Geralmente o calango ocorre de forma ocasional e não programada. É comum, por exemplo, o desafio surgir de forma inusitada em meio ao repertório de cantigas populares executadas por um grupo de cantadores: entre uma moda de viola e outra, um improvisa um verso aqui, outro provoca acolá e o desafio calangueado corre enfezado. É frequente, também, um calangueiro iniciar o improviso sozinho, provocando os demais cantadores para com ele duelar. Há memória de mais de um desafio iniciado assim: um cantador na praça principal debocha dos calangueiros do lugar e dá mostras de sua força, até a notícia correr e logo aparecer um adversário para a porfia. A disputa é ainda mais acirrada quando o cantador que inicia a provocação é proveniente de outra localidade (outra cidade ou mesmo outro bairro). Há, entre os cantadores, a defesa de um território geográfico específico: em seu lugar, o calangueiro defende com unhas e dentes sua honra contra o estrangeiro, dependendo disso seu prestígio como calangueiro. Em todos os casos, é incomum o planejamento ou a decisão antecipada de um dia para ocorrer o desafio. A realização, ou não, deste canto improvisado é, também ela, improvisada e ocorre muitas vezes de forma inusitada. A realização do calango parece obedecer a uma série de elementos presentes em um instante específico: os cantadores presentes, o repertório musical que está sendo cantado, as reações da audiência, o local em que a cantoria ocorre, etc. Assim, por exemplo, em meio a toadas caipiras de um pouso de folia do Divino, um cantador pode iniciar o desafio, ou, se o festejo estiver animado e o público dançando, este desafio não ocorre. Outras vezes, em reuniões comunitárias na casa de anfitrião que aprecia o calango, o
67 desafio é mesmo incentivado, ao passo que em outras festividades o próprio anfitrião inibe o desafio. Se a festa popular é o celeiro do calango, o desafio ocupa diferentes posições nos festejos.
8.1.
No centro da festa ou no espaço marginal
Num passado não muito remoto, a cantoria ao vivo era a tecnologia mais avançada para a animação de uma festa popular. O festeiro convidava um ou mais cantadores e estes tinham a tarefa de divertir, durante longas e alegres horas, todos os presentes. Como os cantadores eram comuns nas áreas rurais, frequentemente o grupo musical se improvisada naquele momento, com um repertório também definido instantaneamente, muitas vezes atendendo a pedidos da audiência. Assim, os cantadores lançavam mão da mais variada gama de expressões da cultura popular caipira: as apreciadas funções de bate pé, em especial a catira, a quadrilha, a dança do sabão ou do caranguejo, além de infindas modas de viola e toadas de todo o tipo. O calango também ocupava lugar de destaque no centro da festa, em desafios improvisados que, contudo, tinham como finalidade última a animação da povaria, ávida por dançar. Mesmo nessas circunstâncias, o calango no município era sempre sinônimo de uma forma improvisada de cantar, jamais adquirindo feições características como dança específica – como ocorre em outras regiões. Também é importante reforçar que o calango partilhava esse espaço com outras tantas expressões populares. Entretanto, o calango ocupava frequentemente um espaço marginal nas festas. Francisco Pereira da Silva, estudioso pioneiro do calango no Vale do Paraíba, destaca sua posição como um “gênero menor à margem das manifestações mais empolgantes do populário valeparaibano [como a Dança de São Gonçalo e o Cateretê]”. Em São Luiz do Paraitinga há registros do calango ocorrendo em uma fogueira, num local próximo ao salão principal em que a festa era realizada. É possível que este espaço marginal seja propositalmente buscado por calangueiros para os confrontos mais agressivos, nos quais não falta a linguagem de baixo calão, a violência verbal, o teor licencioso e a tensão de uma briga eminente. Tais características, mal vistas ou mesmo reprovadas pela comunidade, podem exigir um espaço mais reservado para se desenvolverem com a liberdade – e a liberalidade – que a boa disputa precisa. Como prova dessa hipótese, está uma divisão comum, feita pelos cantadores mais antigos, entre canções “de salão” e as outras. Aquelas “de salão” são canções respeitosas, pertinentes ao ambiente familiar
68 e honrado. Canções com teor impróprio ao ambiente familiar buscam outros espaços de realização, distantes dos salões das casas, como parece estar evidente no calango.
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9. Faces do calango: animação, desafio entre compadres e pelejas de “rancá o coro”
Há três formas principais do calango em São Luiz do Paraitinga. No centro da festa, o calango divide com outras manifestações populares a finalidade de animação da comunidade para se divertir e dançar. Permanecem os traços marcantes do calango enquanto canto improvisado de desafio, mas é principalmente sua forma musical que ganha relevo. Talvez pela característica improvisada, o canto pode ser estendido por horas a fio, sem interrupção, legitimando sua utilização. Contudo, o calango adquire feições mais amenas e o desafio se resume à habilidade dos cantadores em improvisarem versos (sem as provocações e xingamentos, frequentes nos desafios). Além da animação da festa, o calango possui a face do desafio, aspecto mais comum e pelo qual é mais conhecido. Enquanto franco confronto é exatamente o canto que se sobressai, sendo sua forma melódica mero anteparo para o improviso – ao contrário de seu papel como animação de festa. Ainda assim, há duas formas distintas de desafio na região, conforme salienta mestre Renô Martins, na gravação do calango ao Projeto Mestre Navegantes (2010): o canto é ali apresentado como mero “entrosamento dos versos”, diferente do calango que praticavam anteriormente, de “tirá o coro”. O desafio entre amigos possui uma rivalidade evidente e também demarca as posições de melhor cantador/improvisador ou cantador de “meia bota” – como dizem. Também define o prestígio social e contribui para a posição política do cantador na comunidade. Contudo, os participantes se esquivam de uma peleja agressiva – com troca de desaforos, palavrões, xingamentos e ridicularização do adversário – porque são compadres. Observamos uma ocasião em que dois calangueiros companheiros se desafiavam em tom amistoso e um deles faz pequena provocação. Logo, o outro adverte o amigo de que ele está provocando e o desafio volta ao tom ameno. Em uma ocasião de desafio, Mestre Renô Martins deixou clara a importância do companheirismo, em um improviso. Desenrolávamos a linha do A, por longo tempo, e passei a engrossar a peleja: Ricardo: Meu comadre Seu Renô Eu quero lhe perguntá Você é cara bem sabido Vai sabe me falá
71 Eu quero que ocê me conte Quantas listas tem o gambá Mestre Renô: Quem dera meu colega No calango centená Isso é muito difícil É difícil pá conta Eu quero que ocê conte Quantas estrela tem no à Eu quero que se me diga Quantos pexe tem no má Ricardo: Ocê qué que eu te conte Quantos pexe tem no má Meu compadre Seu Renô Isso eu posso te falá Mas primero ocê me conta Por favor vai me contá Eu quero que ocê me diga Quanto mato nesse arraiá Mestre Seu Renô Quem dera meu colega No calango centená Ocê não venha esnobano Já não vai no rio pescá Na vorta do Rio Bonito Lambari engoliu cará Ricardo: Vamo s’embora cantano No batido serená Meu compadre Seu Renô Eu vô te homenagiá Você dança São Gonçalo E faz folia no natá Você é um grande mestre Da cultura populá Mestre Renô: Quem dera meu colega No calango centená Nóis faz tudo a cultura Nóis faz tudo juntá Até hoje a gente canta E canta ao naturá E nóis cantava por gosto Não cantava pá ganhá
72 Perceba como a disputa engrossa quando se testa a sabedoria do oponente, com perguntas tradicionais do calango (“quantas estrelas têm no ar”, “quantas listas têm a gambá”, “quantos peixes têm no mar”, “quanto mato tem nesse arraiá”, etc.). Tal expediente encosta o companheiro na parede e o leva a improvisar sobre questões paras as quais não há respostas. A partir de minha primeira cutucada, mestre Renô Martins aceita o desafio e me dirige perguntas. Prossigo o duelo de saberes até que o mestre sente que eu estava o esnobando, deixando o alerta: permanecendo a peleja ele iria me engolir (“na vorta do Rio Bonito / Lambari engoliu cará”). Entendendo o recado, abrandei o desafio, reiterando o respeito que tenho por esse mestre e por sua sabedoria. Com a homenagem deixo clara sua posição de mestre na peleja e minha posição de admiração. Porém, o mestre mata a charada, quando afirma: não se faz cultura popular sozinho (apenas o mestre), mas todos juntos como irmãos. Ou seja, a construção comunitária da cultura popular depende da relação de companheirismo – em vez da disputa – e o prazer no cantar – em vez da vontade de ganhar. Assim, o desafio entre amigos é prática mais comum no calango atual da cidade. Porém, há muitas recordações de duelos mais agressivos. O que é uma peleja de “rancá o coro”? Meu amigo Zé Bento, ocê tem feição de cachorro, cantadô de meia bota, de ocê num guento desafôro Oai, oai, num guenta desafôro, ocê cale a boca, qu’eu chegô ocê no côro Registrado no final da década de 1940, pelo folclorista Alceu Maynard de Araújo, o desafio também traz o traço de amizade (“amigo Zé Bento”). Em quadras de rima incomum (com terminações em “ro”) os companheiros se afrontam abertamente e sem pudores. O tom antropomórfico como o adversário é ridicularizado (“feição de cachorro”) é típico das cantigas de desafio desde os trovadores medievais – sendo comum aludir à semelhança do adversário com o macaco, por exemplo. Há dezenas de improvisos em que o cantador descreve de forma bem-humorada o oponente com traços de animais – cara de cavalo, orelha de burro, cheiro de gambá, etc. Mestre Renô Martins se recorda de disputas em que o tema rendia boas horas, nas quais os calangueiros se descreviam chistosamente “da cabeça aos pés”. Outro expediente comum é a desqualificação das habilidades de improviso do adversário (“cantadô de meia bota”). Durante a composição instantânea dos versos, é comum
73 o calangueiro hesitar num encadeamento de palavras, processo mais corriqueiro quando a disputa está quente ou quando já dura muito tempo. Nestas circunstâncias, é também frequente a desqualificação do cantador que “já começa a gaguejá”. A agressividade da palavra proferida é muito próxima da violência corporal. Em culturas de tradição oral, a palavra possui forte efetividade física e reconhecido poder de ferir. Ao finalizar a estrofe com o verso “de ocê num guento desafôro”, o calangueiro passa da agressão verbal à alusão ou à ameaça de conflito físico. Entre o verso e o braço, há uma fronteira muito tênue. Zé Bento responde à altura: como a ofensa é tão eficaz quanto uma agressão, ou o adversário “cala a boca” (para de o agredir verbalmente) ou ele o “chega no côro”, ou seja, agride-o de fato. Há ocasiões em que a peleja começa no verso e termina no braço. Não apenas a palavra era afiada: houve cantos de desafio em São Luiz do Paraitinga que terminaram em facadas e, inclusive, em morte. Porém, o mais habitual é a insinuação da agressão ou mesmo a ameaça. Dos inúmeros expedientes comuns em desafios de calangueiros estão os versos de demonstração de força: “nasci de sete meses / fui criado sem mamá” ou “dei quá foice no bambu / foi caí o bambuzá”. Seja pela dureza como foi criado (sem amamentação) ou pela força física que possui, o calangueiro tenta intimidar o adversário. Outras vezes, essa mesma demonstração de força se utiliza de antropomorfismos que acentuam a periculosidade do cantador: “sô fio da cobra-verde / neto da cobra corá”. Também é comum a demonstração de força com a exaltação da destreza na composição de versos (“tem mais verso na idéia / do que letra no jorná” ou “sô de fica cantano / até o dia crareá”) ou da beleza do seu cantar (“ocê canta ingual jacú / eu canto ingual sabiá”). A agressividade pulsante nestes versos, tanto quanto a exaltação do cantador ou depreciação explícita do adversário, são características do ponto alto do confronto. Há um sem número de versos mais sutis que fazem alusão implícita à força do cantador e fraqueza do adversário: “chuva grossa não me móia / sereno qué me moiá” ou “onça braba não me pega / gabiru que me pegá”. Tais versos falam de uma pessoa destemida que superou difíceis desafios (chuva grossa ou onça brava), sagrando-se vencedor. Num contexto de peleja, tais versos podem muito bem significar que o calangueiro já derrotou outros grandes cantadores (onças bravas) em acirradas disputas (chuvas bravas), não temendo os adversários que estão no desafio, por serem fracos (gabiru ou sereno).
74 Destaca-se que o calango em São Luiz do Paraitinga jamais assumiu a forma de uma dança específica – como ocorre em outras regiões –, embora seja utilizado na animação de bailes dançados. Da mesma forma, o calango nessa cidade sempre foi canto alternado entre dois ou mais cantadores, não assumindo a forma de um canto individual (tal como ocorre em outros locais do Vale do Paraíba, como os “embolados” individuais de Ernesto Villela, por exemplo). Atualmente, o calango praticado em São Luiz do Paraitinga congrega cantadores que são amigos, prevalecendo o desafio amistoso entre compadres – muito embora, como vimos, haja a tensão do não pelejar, pelejando. Como calango na cidade já não possui muitos praticantes, os encontros de calangueiros de diferentes regiões e prontos à disputa são raros, sendo incomuns as disputas de “rancá o coro”. Vez ou outra, nas festas da roça, o calango aparece para animar o baile, em meio a outras modas.
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10. Perfil dos calangueiros de São Luiz do Paraitinga
Alceu Maynard de Araújo descreve da seguinte forma dois calangueiros da década de 1940: “José Bento Gouvêa e Antenor Bento Gouvêa, irmãos, lavradores, brancos, bons violeiros, 20 a 23 anos de idade, filhos do Sr. Luís Bento da Silva, mestre da folia do Divino Espírito Santo, contramestre da cavalhada, marcador de quadrilha, capelão-caipira e curandeiro”. Em outra ocasião, em sua obra Alguns Ritos Mágicos, faz a seguinte observação sobre o terceiro calangueiro: “Eurico Bento é sitiante, lavrador e criador de gado, costuma curar com simpatias”. Há predomínio de lavradores ou pequenos proprietários rurais entre calangueiros da região: ou seja, é gente do campo. Vivem em bairros rurais, normalmente em propriedades próprias herdadas de familiares. Tais pessoas se dedicam há muitas gerações à agricultura de subsistência (com poucos excedentes comercializados) e à pecuária, com parca produção de leite e derivados que lhe rendem algum dinheiro. Gouvêa é família muito tradicional na região, presente desde o povoamento inicial que originaria São Luiz do Paraitinga. Na genealogia das famílias da cidade, há os “Gomes de Gouvêa”, provenientes de Faro e Algarve, e os “Gouvêa”, oriundos de Coimbra, ambas regiões portuguesas. Famílias com esse sobrenome podem descender do Capitão-Mor José Gomes de Gouvêa (nascido em Algarve em 1686 e falecido em Guaratinguetá, em 1731), com linhagem caracterizada por importantes militares, pessoas com reconhecidos cargos públicos e proprietários de terra. Capitão-Mor José Gomes de Gouvêa e Silva (nascido em Mogi-Guaçu, em 1745 e falecido em São Luiz do Paraitinga, em 1826), por exemplo, foi Juiz Ordinário e rico proprietário de terras no Morro do Chapéu (que separa São Luiz do Paraitinga de Cunha), com grande escravaria (76 pessoas). Essa breve digressão sobre as possíveis ascendências dos calangueiros de 1940 pode revelar um traço ainda hoje marcante nos calangueiros: muitos deles são de famílias tradicionais, de ascendência portuguesa, há tempos cultivando terras na cidade. O próprio “Calango do Touro Araçá”, muito popular nas primeiras décadas de século XX, deixa clara situação social do calangueiro: proprietário de terras, dono de boiadas e patrão de outros trabalhadores rurais (“piãozada”), a quem comanda na realização de atividades (pois afirma que vai “manda fazê um côcho” ou ajuntar os peões para soltar o gado). Os calangueiros provêm de locais caracterizados por forte vínculo comunitário e grande rede de relações de compadrio e ajuda mútua. A partilha de labutas e dificuldades cotidianas
77 estão lado a lado com a convivência divertida em festas rurais. Em bares, jantares ou festividades católicas, a comunidade fortalece suas tradições culturais e suas amizades, além das novas relações que surgem com os jovens enamorados. São gente predominantemente católica e devota, de uma expressão religiosa popular vivida cotidianamente, cujos rituais e crenças passam ao largo do catolicismo oficial.
O calangueiro Mestre Lauro Faria de Castro
Foto: André Silva
Monteiro
O Calangueiro Brás Vicente Ferreira
Foto: André Silva Monteiro
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O calangueiro Renô Martins de Castro
Foto: André Silva Monteiro
As manifestações tradicionais da cultura popular luizense florescem no ambiente rural. Da mesma forma que a família dos calangueiros descrita por Alceu Maynard de Araújo, mestre Renô Martins desenvolve papel similar àquele de “capelão-caipira” e, além de calangueiro, é violeiro, compositor de moda de viola, cantador de brão, mestre de Dança de São Gonçalo, Dança do Caranguejo e Dança do Sabão, catireiro, Mestre de cavalhada a várias décadas (como também mestre Lauro Faria), folião de Reis e do Divino, e reconhecido boleiro nos campeonatos locais. Mestre que preserva saberes ancestrais, Renô Martins foi frequentador de rodas de jongo e aprendeu a cantar brão sob influência de afrodescendentes – porém, não se considera
79 jongueiro pelo respeito às mandingas desse canto, restritas aos poderosos feiticeiros. Assim, pode-se dizer que Renô Martins preserva tradições culturais e religiosas tipicamente lusitanas. Há predominância de pessoas idosas no calango da região, cantadores que praticam o desafio desde a década de 1950 ou 1960, muito embora alguns jovens tenham também se dedicado ao calango – sem participação, contudo, nas festas populares de maior expressão, pois trata-se de um grupo de amigos que calangueia apenas, ao menos por enquanto, em festas familiares e eventos reservados. Em síntese, o calango em São Luiz do Paraitinga é praticado predominantemente por trabalhadores rurais, nascidos nas décadas de 1930 e 1940, imersos em manancial de expressões da cultura popular, principalmente de matriz lusitana, embora com forte influência africana.
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11. Audiência
No contexto festivo não há distância física nem diferença social entre o calangueiro e a audiência. Aqueles que assistem ao calango são pessoas conhecidas, pertencentes a mesma comunidade e que partilham as formas de falar e de cantar dos calangueiros. Essa semelhança entre aquele que canta e aquele que assiste é marcante, pois todas as pessoas da assistência são calangueiros em potencial. A qualquer momento, uma pessoa da audiência pode tomar parte no improviso, além de ser comum um calangueiro, antes de entrar na disputa, ficar na audiência estudando a forma de improvisar, analisando os adversários ou preparando seu repertório. É também comum haver na assistência uma pessoa que toca um instrumento qualquer e, de forma muito à vontade, se juntar aos calangueiros para contribuir na musicalidade do desafio. Contudo, mesmo com toda essa interpenetração entre audiência e cantadores, há papéis específicos da assistência no calango. O principal deles é a semelhança com uma espécie de “júri”, que julga qual o melhor cantador e o vencedor da peleja. Esse julgamento não é feito formalmente, nem tampouco espera o final da disputa. Ao concluir uma estrofe, cada cantador recebe de imediato as impressões da audiência: ora ovacionando ou gargalhando com a força do improviso, ora se calando ou, até, comentando de forma reprovadora a fraqueza do verso. Embora o fim da peleja e o vencedor do desafio sejam, normalmente, uma decisão dos próprios cantadores (mais comumente o perdedor reconhece seu destino e decide por encerrar o desafio), a reação da audiência conta muito para o desfecho da disputa. Há muitos casos em que o cantador executa seus versos e gestos tendo como referência a reação da audiência. Outras vezes, como que querendo ganhar a assistência, o improvisador canta versos específicos saudando a povaria, dando boa noite a todos ou elogiando a beleza das mulheres presentes. Alguns calangueiros mais ousados procuram uma relação de disputa com a audiência, como que a colocando no desafio – são comuns as provocações aos estados etílicos da assistência ou advertências aos homens acompanhados de que fiquem de olho em suas mulheres, senão serão conquistadas pelo cantador. Também é corriqueiro o cantador improvisar versos saudando algum visitante ou autoridade presente, explicitando novamente a importância da audiência como próprio tema ou mote do improviso. Frequentemente, um tocador ou cantador assiste a peleja e faz as vezes de audiência. Nesse sentido, parece haver uma permutabilidade constante de papéis: da mesma forma que
83 um membro da assistência pode, a qualquer instante, tomar parte na cantoria ou na música, os calangueiros podem fazer as vezes da audiência. Numa outra dimensão, o desafio calangueado possui uma importância social como eleição de lideranças comunitárias ou forma de resolução de conflitos entre desafetos – como veremos em detalhes posteriormente. Nesses casos, a audiência se torna espécie de parlamento popular tradicional ou colégio eleitoral. Ao exaltar um cantador específico, a audiência fortalece seu prestígio na comunidade, prestígio que se estende às funções políticas, na defesa dos interesses em comum – como o faz a instituição moderna da eleição. Da mesma forma, quando dois cantadores fazem uso do calango para resolverem conflitos pessoais, numa ritualização da violência física, a audiência ora se torna um vetor público do conhecimento do conflito, ora põe panos quentes e ameniza a tensão. O fato é que, após a peleja verbal, normalmente os dois desafetos resolvem suas pendências, o que evita prejuízos maiores para a comunidade, provenientes de brigas sangrentas. Nesses casos, senão como comissão julgadora, ao menos como testemunha ou integrante de uma catarse coletiva, a audiência desempenha importante papel.
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12. Forma poética
A forma poética do calango possui as seguintes características: a) estrofes com quatro versos (forma conhecida como quadra); c) rimas terminais obrigatórias entre o segundo e o quarto versos (esquema de rimas conhecido como ABCB); d) rima determinada pela “linha” praticada naquele momento (“linha do A”, palavras cantadas terminadas em “a”, “linha do Dão” ou “Barandão”, terminações em “ão”, etc.); e) canto dialogado, numa espécie de conversa cantada que deve seguir o mesmo assunto – procedimento às vezes concretizado com a repetição dos últimos versos do improviso anterior. Os temas, as metáforas, as maneiras de cantar e o vocabulário são típicos do modo de ser caipira. Isto talvez fique mais evidente no esquema de rimas, pois destaca a fonética típica do modo de falar caipira, diferente da norma culta da língua portuguesa ou da palavra dicionarizada. Tivemos já diversos exemplos de improvisos de calangueiros de São Luiz do Paraitinga, nas linhas do A, do Barandão e da Carretia. Vejamos agora um diálogo cantado na “linha do Batedô”: Mestre Renô: Quem me dera meu colega Na linha do batedô No dia que eu nasci O galo preto cantô Minha mãe viro e disse: - Meu fio sai cantadô Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do batedô Pus viola na sacola Pra visita um cantadô Que é meu compadre querido E também meu professô Na arte da cantoria Leva fama de doutô Me mostro como é o calango E também me batizô Na poesia e na viola Foi ele quem me ensinô E eu deixo essa homenagem Ao meu mestre Seu Renô Mestre Renô: Quem dera Seu Ricardo E você já estudô
87 Veio memo aprevenido Pra visitá seu professô E agora eu tô cantano Na linha do batedô Eu nasci de sete meses Me criei sem domadô Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do batedô Eu fazia minha oração E ouvi nosso sinhô Foi então que Ele disse O mundo como mudô Olha o povo lá da terra Como é trabaiadô Antes pegava na enxada Agora é no computadô Mestre Renô: Quem me dera meu colega Na linha do batedô O machado com a motosserra Uma briga disputô A motosserra apareceu E o machado desafiô Vamo nóis fazê uma aposta Para vê qual o vencedô O machado logo de cara Ele já que começô E entrô aí na mata E só cavaco que voô Motosserra arrebento tudo E a gasolina acabô Motosserra então perdeu E o machado foi quem ganhô Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do batedô Eu cheguei nesse calango Pra cantar com muito amor Eu peço sua licença Para esse cantadô Boa noite pras senhora Boa noite pros sinhô Mestre Renô: Eu tinha um relógio velho Era só o que o pai dexô Quando foi dá meia-noite O relógio repicô
88 E eu fiquei muito triste De alembrar o que passô Quando ele tá repicano É meu amor que se mudô Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do batedô Acordei de manhã cedo E lembrei do meu avô Que nasceu em Portugal E o mar atravessô E chegou aqui no Brasil Onde família criô Era um sujeito honesto Um homem trabaiadô Era da banda militar E um grande tocadô Quando eu era menino Foi que ele nos deixô Pá morá foi lá no céu Junto com nosso sinhô Mestre Renô: Ele foi lá pro ceú Junto com nosso sinhô Ele tá um bom lugá No lugá do nosso amô Ele foi é avisitá Também o meu avô Que já me deixô cantano E do jeito que eu sô Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do batedô Como no velho ditado Que dizia meu avô Na boca de quem é ruim Quem é bom não tem valô E na terra de gente bobo Inté topeira é professô Mestre Renô: Quem me dera meu colega Na linha do batedô Quando eu saí de casa O meu pai me comentô Você trata bem os outro Sim senhora e sim sinhô E meu filho não apanhe Que seu pai nunca apanhô
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Ricardo: Vamo s’embora cantano Na linha do batedô Qué sabe de onde venho Venho lá do Roncadô Onde a terra é muito boa E tem muito lavradô E muita moça bonita Que tem perfume de flôr
A forma poética do calango em São Luiz do Paraitinga passou por diversas mudanças através dos tempos. O desafio de viola observado por Alceu Maynard de Araújo, no final dos anos ‘40, possuía as seguintes características: (a) quadras (estrofes com quatro versos), (b) com rimas terminais entre o segundo e o quarto versos, (c) com extensão métrica aproximada em septissílabos (sete sílabas) e (d) obrigatoriedade de início do improviso com a repetição dos dois últimos versos cantados anteriormente pelo adversário. É a forma poética mais tradicional do calango, com todas as características praticadas no cancioneiro português, desde os trovadores medievais. Registra-se, nessa ocasião, rimas pouco comuns no calango, como terminações em “ode” (“ocê tem feição mais é de bode, / (...) / que comigo ocê num pode”) ou em “oro” (“num guenta desaforo / (...) qu’eu chegô ocê no côro”). Embora a rima com terminações em “ode” seja praticada na “linha do Sirigote” dos mineiros, tais rimas podem indicar um calango à moda da casa, com características específicas dos cantadores da região, pois basta haver um acordo entre dois cantadores para se criar uma linha de rimas no calango. É dessa forma que a região de São José do Barreiro, conforme nos conta o Mestre Jesus Pereira Lima, possui linhas específicas como a “linha do Retinido”, a “linha da Magnólia”, a “linha da Canelera” ou a “linha do Zé Lopreu”; ou o calango ao sul de Minas Gerais se desenrola em linhas incomuns como a “linha da Sereia” e “linha do Sirigote”, conforme descreve Ulisses Passarelli; ou, ainda, as linha do “caó”, “numerado” e “parecido”, presentes nos improvisos de Ernesto Villela. Seja como for, em São Luiz do Paraitinga, as linhas terminadas em “ode” e “oro” serão substituídas pelas linhas mais tradicionais no calango, a saber: “linha do barandão” ou “linha do Dão”, a “linha da carretia” ou “linha do meio-dia”, a “linha do batedô”, “linha da fumaceira”, “linha do E”, “linha das onze-hora”, etc.
90 Tal forma poética muda no registro de 2007 (documentário Calangos e Calangueiros). Os cantadores passam a organizar o improviso em estrofes de oito versos, sem a convenção de repetir os dois últimos versos cantados anteriormente. Contudo, uma análise mais detida revela que cada cantador improvisa, na verdade, duas quadras consecutivas, repetindo, na segunda, os dois últimos versos da primeira. No exemplo já descrito anteriormente, temos: Falô bonito eu também quero falá onça brava não me pega gabiru que me pegá Aí no calango gabiru que me pegá chuva grossa não me móia sereno que me moiá
A repetição do verso “gabiru que me pegá” deixa claro que o cantador busca a referência da primeira quadra para improvisar o desfecho – uma tradição bastante importante na forma poética do calango. É provável que esta forma poética responda a uma estrutura melódica diferente daquela de 1940. Esta última tinha como único instrumento a viola, ao passo que os registros posteriores contavam com viola, sanfona e pandeiro. Pode-se pensar, também, que as duas variações tenham sido praticadas pelos calangueiros da cidade, a depender do local onde se cantava ou do desafiante. Com sua habilidade no improviso, certamente o calangueiro conseguiria cantar dessas duas maneiras. Esta hipótese não pode ser aplicada à forma poética praticada nos registros de 2010 e 2015, pois foram feitos no mesmo local com os mesmos calangueiros. Houve, de fato, uma pequena modificação no jeito de calanguear. Se em 1940 repete-se os últimos versos do adversário e, em 2007, os versos últimos versos da primeira quadra do mesmo cantador, a partir de 2010 a repetição dos versos deixa de ser praticada de forma obrigatória – surgindo esporadicamente. Embora seja uma mudança pequena do ponto de vista poético, ela pode estar relacionada a uma transformação mais profunda no calango da região: a dificuldade de improvisar nos moldes tradicionais que leva a um abrandamento das regras poética e maior liberdade (e facilidade) na composição dos versos. Trata-se de um sinal de dificuldade de renovação da tradição calangueira na região, pois o afrouxamento das regras do canto pode
91 responder à pouca frequência com que o calango era cantado ou a necessidade de facilitar o improviso de novos praticantes. As alterações no tema ou mote da forma poética também sinalizam para uma transformação similar. Poderíamos pensar na existência de diversos temas do calango: versos tradicionais (“eu sô memo desse jeito / não nego meu naturá”); versos sobre o próprio calango (“bate palma corre linha / pro calango serená”); versos que contam causos (como aqueles da peça “Calango do Touro Araçá”); versos irônicos (“onça brava num me pega / gabiru qué me pegá”); versos de demonstração de força (“nasci de sete meses / fui criado sem mamá”); versos de agressão ou ridicularização do adversário (“ocê tem feição de cachorro, / cantadô de meia bota, / de ocê num guento desafôro”); versos de desafio aberto, inclusive com alusão à agressão física (“ocê cale a boca, / qu’eu chegô ocê no côro”). Pode haver, inclusive, uma sequência no diálogo calangueado que atravessa cada um desses temas. Normalmente, o improviso começa com versos tradicionais, sobre o calango ou contando causos. Trata-se de expediente comum para esquentar o calango. Posteriormente, os versos de demonstração de força trazem, implícita, a proposta de combate, assim como a provocação ou ridicularização do adversário incitam à disputa mais pegada. Daí o calango atingir seu ponto alto, após esse prelúdio, com o desafio escancarado. No registro da década de 1940 se sobressaíram os temas tradicionais (“Touro de Araçá”) e o desafio mais acirrado e agressivo. Na memória dos calangueiros permanecem vivos os duelos de “rancá o coro”, ou seja, disputas mais francas e desbocadas. Contudo, nos registros posteriores, o desafio propriamente dito deu lugar ao mero “entrosamento de versos” entre amigos – conforme palavras do mestre Renô Martins. A impressão que se tem é do desenvolvimento do tema mais livre. Tanto o abrandamento do desafio, quanto a frouxidão das regras poéticas, podem sinalizar para a prática do calango que perde raízes mais tradicionais, em virtude do próprio enfraquecimento da expressão do calango na região. No mais, a forma poética, no que se refere ao número e extensão dos versos, assim como a necessidade de terminar o improviso com versos mais triunfantes, está submetida à forma melódica.
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13. Forma musical
Uma característica marcante na musicalidade caipira praticada na região, especialmente entre cantadores populares de ofício autodidata, é a coincidência entre a melodia praticada no instrumento e a melodia cantada. Como ocorre muito nas modas de viola e toadas sertanejas, o sujeito canta exatamente aquilo que toca. Este expediente está relacionado, certamente, à ajuda mútua entre voz e instrumento: da mesma forma que a nota tocada no instrumento auxilia no tom da voz, o timbre e o ritmo da voz assentam o instrumento. Tanto é assim que a afinação rural da viola, chamada em todo lugar de “ao naturá”, é aquela em que o cantador afina cantando, ou seja, afina “na altura da voz”, como se ouve por aí. A voz é o diapasão. É lógico que a música assim executada foge aos padrões técnicos e às convenções de frequência que definem a vibração de cada nota. Tal prática explica porque a cantoria do calango reproduz a melodia executada, especialmente, pela sanfona de oito baixos. É exatamente a mesma frase musical: o tom, o timbre, o ritmo, a melodia, a quantidade e a sonoridade das palavras. Em suma, a cantoria reproduz a melodia da sanfona. É por esse motivo que a forma poética está submetida a forma musical, pois esta última determina o ritmo, o “espaço”, por assim dizer, do improviso. Logo, um verso muito longo ou muito curto, destoa notadamente da melodia, tendo o cantador que corrigir a forma poética: alongando sílabas nos versos muito curtos ou apressando palavras, em versos muito longos. Em ambos os casos, é notada a inabilidade do cantador. A frase da sanfona também determina o número de versos praticados e a necessidade de acentuar os últimos versos, na melodia de encerramento da forma musical. Este final de melodia corresponde a um verso mais enfático, necessário ao bom improviso. A proeminência da melodia também é percebida no caso exatamente oposto: na ausência da sanfona. Participamos de calangos acompanhados unicamente por violas, nos quais o ritmo e o andamento ficaram substancialmente diferentes, o que traz importante variação no improviso do calango. Canta-se de maneira mais lenta e com riqueza melódica maior, pois a viola oferece apenas uma “base” harmônica, deixando todo o resto para o cantador. Nessas ocasiões, curiosamente, a toada do calango adota um acento lusitano mais visível: assemelhase ainda mais aos despiques portugueses, como aqueles ouvidos nas ilhas da Madeira e dos Açores. Como calangueiro tive, inclusive, um momento de adaptação a esta outra forma de cantar, acompanhada apenas por violas (uma das quais era eu quem tocava). Mais habituado
95 ao canto ligeiro, amparado pela sanfona, tive alguma dificuldade em empostar a voz de forma lenta e melodiosa. Assim, tão correto quanto dizer que a forma poética se submete à forma melódica é afirmar que esta última varia de acordo com o instrumental de acompanhamento. Para tornar ainda mais complexa essa reflexão, é provável que a forma melódica varie tanto de acordo com o instrumento de acompanhamento quanto em função do tocador que o executa. Acompanhando a viola afinada “ao naturá”, típica do mestre Renô Martins, fiquei com a impressão que era uma marca específica desse cantador que impunha ao calango daquelas noites um toque muito especial.
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14. Instrumental do calango
O calango é cantado mais frequentemente com o acompanhamento de viola caipira, sanfona de oito baixos e pandeiro. Eventualmente triângulo, caixa e violão. A importância dos instrumentos é controversa. Alceu Maynard de Araújo considerou o calango um “desafio de viola”. Neste sentido, o calango observado não apenas era cantado unicamente com o acompanhamento de viola caipira, mas, principalmente, a viola parece ter característica inerente ao desafio. A grande popularidade do instrumento na cidade, e a proliferação de cantadores com viola por toda parte, facilitam a aproximação do calango com a viola. Porém, o violeiro Renô Martins atribui importância secundária à viola no calango: é principalmente a sanfona de oito baixos que determina o ritmo e a melodia da toada, que, por sua vez, condiciona a estrutura poética e o tempo de composição do improviso. Assim, a sanfona, mais especialmente aquela de oito baixos, é o instrumento que serve como marca registrada do calango na região – como, ademais, em diversas outras comunidades calangueiras. Muitas vezes, calangueiros experimentados se recusam a iniciar o desafio na ausência de um sanfoneiro. Assim como a viola e o pandeiro, a sanfona (conhecida por diversas outras denominações, como acordeão, gaita-ponto, etc) provém das cantigas populares portuguesas. Tomaz Ribas nota que os acordeões são de origem germânica e foram apropriados com tanta força pelos portugueses que podem ser considerados “instrumentos populares portugueses”. Há calangos na região apenas com viola ou exclusivamente com sanfona, a depender da situação. O calango não é somente um canto improvisado, mas uma expressão cultural que surge de forma improvisada. Ou seja, o encontro de calangueiros dispostos ao desafio é o suficiente para iniciar o canto. A rigor, bastam os cantadores para haver o calango. Em outras regiões, vimos, inclusive, um desafio calangueado ao som das palmas dos cantadores. Contudo, a situação mais comum é aquela em que o cantador disposto a calanguear esteja com seu instrumento, seja ele qual for. Daí haver frequentemente o uso de instrumentos musicais. Outrossim, a situação improvisada leva os calangueiros a disporem dos instrumentos presentes no momento. Por exemplo, chegado a uma festa em que o calango acontecia, um tocador de pandeiro que não trouxera seu instrumento logo conseguiu um triângulo, no qual executou o ritmo da música. Outras vezes, como a “audiência” participa ativamente do calango e mesmo participa dele de forma aberta e imprevista, havendo um tocador de violão ou de caixa, desejoso de participar da contenda, ele logo toma parte no calango sem qualquer surpresa dos demais.
99 Assim, tão verdadeiro quanto a prática do calango acompanhada principalmente de sanfona de oito baixos, viola caipira e pandeiro, é a cantoria com instrumentos improvisados presentes no contexto de realização. Como vimos anteriormente, esse instrumental improvisado imprime uma marca específica ao calango daquele instante, marca trazida na bagagem do instrumentista em questão. Essas variações do calango tornam o ofício do cantador ainda mais complexo, pois deve improvisar instantaneamente não apenas seus versos, mas também sua forma de cantar e, por vezes, tocar seu instrumento.
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15. Criação dos versos
A forma de composição dos versos no calango é caracterizada por dois aspectos aparentemente contraditórios: de um lado, a liberdade inerente ao improviso; de outro lado, o extremo rigor da forma poética. O calangueiro deve obedecer rígidas regras na criação instantânea de seu canto. O tema e o tom do verso respeitam, normalmente, o contexto da cantoria dos improvisos anteriores. Assim, numa peleja pegada, não convém ao cantador apresentar versos amenos ou crônicas, sob a pena de perder força ou “afinar” (se esquivar) da disputa; da mesma forma, num canto amistoso, o cantador não irá interpelar seu adversário com versos agressivos. Outra norma poética comum é o início do improviso com a repetição dos últimos versos do cantador anterior, procedimento que se relaciona com essa obrigatoriedade de respeitar o tema e o tom da prosa praticada naquele momento. Como vimos na reflexão sobre a forma poética do calango, o cantador obedece a uma estrutura melódica pré-determinada, que restringe o número de sílabas cantadas e implica num desfecho com versos mais enfáticos. Tais versos possuem estrutura estabelecida de quadra ou duas quadras emendadas, com rimas terminais entre o segundo e o quarto versos, além de a rima estar fixada pela “linha” executada naquele instante. Todas essas normas devem ser respeitadas durante o desafio, sob o risco de o calangueiro ser considerado de menor valor ou desqualificado enquanto cantador dessa expressão tradicional. Ainda que rigoroso, este conjunto de normas deixa muitas liberdades na criação poética e melódica. Com relação à melodia cantada, um recurso comum que dá um ritmo distinto e uma quebra na expectativa do ouvinte e/ou oponente, é a repetição do verso cantado ou a inversão de suas partes constituintes – característica típica das trovas medievais e das cantigas tradicionais portuguesas. O calangueiro luizense Adão Charleaux (ou Adão Charlô) – que, aliás, marca a presença francesa no povoamento da região e suas contribuições na cultura popular – é um exímio cantador de versos repetidos ou invertidos: Meu amigo, meu colega meu amigo, meu xará (bis) Vamo nóis canta o calango vamo nóis dois calangá Cada um já canta um verso pra sanfona num pará
103 Veja como os dois versos iniciais se alongam em uma quadra por sua repetição ritmada. O paralelismo dos versos seguintes (“Vamo nóis”), além de sua terminação quase igual (“calango” e “calangá”), os torna quase iguais. A pouca variação do repertório vocabular é compensada pela beleza da melodia – muito bem cantada, exatamente por utilizar o expediente da repetição. Além de pequena variação melódica e encanto da composição poética, tais repetições, muito frequentes no calango, são utilizadas para que o cantador tenha mais tempo na formulação do próximo verso improvisado ou, ainda, quando, no instante em que canta, não consegue formular um verso distinto. Quanto à criação poética, os calangueiros de São Luiz do Paraitinga distinguem duas formas distintas: o “verso decorado” e o “verso da hora”. O verso decorado é aquele já memorizado pelo cantador anteriormente, o que é perceptível no momento em que canta. Pode ser um verso colhido da tradição calangueira (“não nego meu naturá”, por exemplo) ou um verso de composição própria que o calangueiro ou já cantou em outras ocasiões, ou compôs em momento anterior ao desafio. Os versos provenientes do grande acervo oral do calango e encontrados, incrivelmente, em variedade de lugares e épocas, são mais importantes do que se poderia supor à primeira vista. Apesar de serem por todos conhecidos, tais versos têm a finalidade de demonstração do conhecimento da tradição do calango pelo cantador, ou, exatamente por serem reconhecidos de imediato, nortearem o rumo do desafio. A terminação “o seu coro eu vô rancá”, por exemplo, é bastante tradicional e sabida por todos, e, justamente por isso, serve como sinal evidente de que o cantador provoca para uma peleja agressiva. Os versos decorados, embora sejam considerados mais fáceis de se cantar, são fundamentais no calango, e mesmo os mais hábeis calangueiros deles fazem uso. O problema é quando o cantador usa exclusivamente versos da memória, pois não tarda para que lhe falhe a memória e fique de mãos vazias – e voz calada. O “verso da hora” é aquele composto pelo calangueiro instantaneamente, no mesmo momento em que se canta. A forma de cantar esse improviso é bem característica, seja pela expressão do cantador que denota a busca do verso, seja por certa hesitação sentida em sua voz – ou mesmo pelo alongamento ou encurtamento das palavras para caberem na forma poética e musical. O improviso instantâneo é a qualidade mais apreciada em grandes repentistas do calango. É também fundamental em qualquer embate, pois, enquanto os versos decorados são limitados, a disposição de improviso possui recursos ilimitados na criação de novas frases. Os desafios que duram horas a fio certamente são cantados por grandes improvisadores.
104 As composições próprias, decoradas ou instantâneas, porém, são criações inéditas ou jamais cantadas, com variado valor de inovação. Frequentemente fazem uso de temas e fórmulas tradicionais, o que torna seu ineditismo suspeito. Por exemplo, a fórmula convencional “tenho mais verso na ideia / do que letra no jorná” pode aparecer de maneira nova com pequenas variações: “tenho mais verso na cachola / que cachaça nesse bar” ou “tenho mais verso na cabeça / que pinguço nesse bar”, ou ainda, “tenho mais verso na cabeça / que mulhé nesse araiá”, etc. Outro tema tradicional importante é aquele sobre a trajetória de migração do cantador: “Quando eu vim da minha terra / Quando eu vim de lá pra cá”. Tais versos deixam clara a situação itinerante do calango, disseminado por pessoas em trânsito por várias cidades. Neste sentido, também a fórmula “Venho vindo de longe” é muito comum e revela movimento similar. Por fim, um tema consagrado no desafio é aquele em que os cantadores disputam seus saberes a partir da fórmula: “eu quero que se me conte / quantos peixes têm no mar”, como aquela que encerra a peleja entre mestre Renô Martins e Brás Ferreira, na Festa do Pinhão. Tal fórmula advém das cantigas portuguesas, como aquela recolhida por Fernando Reis, cujo título é, justamente, “Quantos peixes hão no mar?” (que reúne, ainda, perguntas como “Quantos anjos hão no céu?”, “Quantos gomos têm a lima”, “Quantos homens hão no mundo”, etc.). No calango, pode-se pedir para contar, ainda, “quantas estrelas têm no ar”, “quem ensinou cristo a rezá” ou “quantas listas o gambá” – como fez Brás Ferreira em duelo comigo, no calango de setembro. Tais temas tradicionais formam estruturas fixas sobre as quais o cantador pode improvisar, promovendo pequenas variações. Nesses casos, embora o ineditismo seja indiscutível, a criação surge familiar aos ouvidos e seu poder inventivo é reduzido. Embora possamos distinguir facilmente essas maneiras de criação de versos, o que chamamos de improviso muitas vezes se refere a forma inédita com que o calangueiro inventa seus versos, combinando frases da tradição, composições próprias decoradas e puras criações daquele instante.
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16. Formas de transmissão do calango
Mestre Renô Martins é direto: “pra ser calangueiro é só calanguear”. “– E o que é calanguear?”. “É cantar calango”. Simples. Diversas expressões da cultura popular possuem feições nitidamente iniciáticas de transmissão, frequentemente restritas aos laços consanguíneos. O jongo, para ficarmos com os cantos de desafio, é o exemplo mais emblemático. As mandingas (os segredos) desse ritual ficam raízes profundas em saberes ancestrais de origem africana. Para “saravar a ngoma”, ou seja, iniciar uma roda de jongo pedindo licença aos ancestrais, cuja voz se ouve na tez dos tambores, é preciso um jongueiro. Conheci mesmo pessoas de idade avançada, que jongam desde a infância, relutando em afirmar que são jongueiros – de tanto respeito a essa tradição mágica. Outras expressões possuem um tom iniciático similar, porém não admitido abertamente. A Dança de São Gonçalo, de origem devocional, por exemplo, é também restrita a pessoas cuja fé seja reconhecida e legitimada pela comunidade. O brão, canto de desafio que manipula uma palavra enigmática tributária do jongo, pode ser cantado também por qualquer aspirante. Porém, o aspirante precisa dominar intrincada melodia caipira, sem o acompanhamento de instrumentos musicais, cantada em vozes paralelas em terças, que compõem versos de maneira improvisada, em linguagem metafórica e lançando mão de todo um manancial tradicional de cantigas populares que, como senão bastasse, estruturam-se em um modo de falar bem peculiar, com vocabulário específico, vinculado a situações e modos de ser compreensíveis apenas por quem vive em comunidades rurais. Simples? Portanto, é necessário nada mais nada menos que um modo de vida – daí sua proximidade com a iniciação (o tal “renascimento”, presente nas diversas tradições místicas). Com o calango ocorre um processo similar de transmissão, ancorado num modo de vida e ratificado, por assim dizer, pelo coletivo de calangueiros. “É só cantar calango”, ou seja, cantar atento a uma forma melódica específica, em quadras improvisadas no instante em que se canta, com rimas rígidas no segundo e quarto versos (com terminações dependentes da linha praticada), repetindo versos ou “entrando” no tema do cantador anterior, com um modo de falar (sotaque) e vocabulário específicos, em diálogo com amplo acervo popular de cantigas, símbolos, metáforas, etc. Nem tão simples assim. Em sua simplicidade, mestre Renô Martins quer dizer que o calangueiro se torna tal a partir do momento em que consegue adentrar num desafio com outros calangueiros e ser reconhecido como tal por esse coletivo. O percurso requer experimentar um modo de vida específico, ou, ao menos, acessar essa forma de viver.
107 Em meu caso específico, aprendi o calango a partir de alguns toques que me dava mestre Renô Martins. Eu aparecia com a viola e pedia que tocasse o calango para que o acompanhasse; ou cantava junto e recebia orientações sobre a impostação da voz; ou, ainda, apresentava um verso de minha autoria ou algum coletado em leituras, para que avaliasse. Logo percebi que o segredo do calango é sua força simbólica: o calango é uma conversa cantada de forma metafórica. Assim, é como numa conversa cotidiana: se uma pessoa lhe pergunta que horas são, não convém responder quantos anos se têm – sob a pena de ser tomado por louco. Cantar calango é estabelecer um diálogo contínuo em linguagem metafórica, sem perder o fio da meada ou o assunto em voga – tal como ocorre no jongo e no brão. Após várias cantorias juntos, num determinado dia passei a improvisar tendo em vista esse assunto da conversa, proposto pelo mestre Renô Martins. Foi a partir dessa ocasião que me convidou: “apareça num domingo por aqui, pra gente cantá”. Como descrito no calango de setembro, desenrolei a cantoria com habilidade e as próprias reações da audiência e dos cantadores presentes ratificam o nascimento de novo calangueiro. Ainda assim, mesmo sendo considerado calangueiro num determinado momento, inicia-se infindo percurso de aprimoramento do ofício cantante para demonstrar forças nos desafios e não ser menosprezado com um “cantadô de meia bota” – como, aliás, é comum designar este ou aquele calangueiro (de boca miúda na conversa, mas muito abertamente no desafio calangueado). Embora seja intrincado e complexo o domínio de saberes atrelados ao calangueiro, muitos deles consideram simples o ingresso no desafio. Mestre Renô Martins, por exemplo, aprendeu a calanguear com “ciganos” que montavam acampamento na fazenda de seus pais, durante sua mocidade. Inicialmente, ficava na beira da roda, formada ao redor da fogueira, observando entusiasmado os cantadores em disputa. Numa determinada noite, um cigano afeito ao rapaz o convida a cantar, o que faz com apreensão, mas sem muita dificuldade. Não tardou para que o iniciado “rancasse” o coro de alguns ciganos. Brás Ferreira é ainda mais simples: quem nasceu entre mineiros calangueiros, “quando vai ver, já tá calangueando”. Ou seja, o processo de transmissão dos saberes dos calangueiros, assim como a estreia nos desafios, ocorre muito naturalmente, em meio a outras feições da educação dos novos integrantes da comunidade.
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17. Desafios memoráveis
Sendo o calango uma forma de desafio, a reputação do calangueiro se mede por seus feitos em combate. Um calangueiro respeitado é um guerreiro que acumula gloriosas vitórias contra fortes adversários. Vimos também ocasiões em que um calangueiro experimentado rejeita a peleja com um jovem que o incitava à disputa, pois o desafiante não estava à altura de sua força e reputação. Mestre Renô Martins é calangueiro que melhor representa essa honra guerreira, a disposição para combates, a defesa de um território de cantador e os feitos em disputas. Aqui uma breve curiosidade: após relatar duras batalhas, com fortes oponentes, em que se sagrou vencedor, perguntei sobre alguma disputa na qual havia perdido, ao que respondeu simplesmente: “essas eu não me lembro” (risos). Na narração de suas disputas vemos que o calangueiro é tão habilidoso no improviso quanto o é na contação de causos. Peleja com Chico Pinto. Durante uma Festa do Divino Espírito Santo de um ano qualquer da década de 1990, havia um calangueiro de que improvisava versos na praça principal de São Luiz do Paraitinga. Ao som de sua viola, o cantador entoava frases sarcásticas entre risadas, troçando dos outros cantadores e afirmando que ali não havia calangueiro com coragem para o desafiar. Num lugar qualquer da festa, mestre Renô Martins é procurado por um conterrâneo que noticia a ousadia do calangueiro visitante. Renô Martins chega a praça e, após observar atentamente a maneira como cantava o adversário, apresenta-se para a disputa. Eram dez horas da noite. No toma lá da cá de versos, os cantadores passaram e esgotaram a linha do A, da carretia, do “dão”, da fumaceira, etc. Perto das três horas da madrugada, os combatentes, exaustos, retornam à linha do A, dispostos, cada um com suas forças, a vencer o adversário. É nesse momento que Renô Martins observa o constrangimento e agitação do inimigo com versos provocativos que envolviam seu sobrenome (Pinto). Então passou a rimar versos, como: “pinto num canta / só sabe piá”, ou “vô rancá suas asa / quero vê ocê avoá”. Tomado pela fúria, Chico Pinto entrega os pontos, dizendo que iria parar, senão a disputa terminaria em briga. Desafio com Xangú. Filho do respeitado jongueiro e benzedeiro Tico Almeida, Xangú fascinava a Renô Martins por sua habilidade em laçar gado. O mestre de cavalhada conta com viva admiração uma ocasião em que Xangú laçara um novilho, a uns cinco metros de distância, com surpreendente destreza. Assim, quando Xangú estava calangueando numa mercearia próxima à Santa Casa de Misericórdia, no centro de São Luiz do Paraitinga, Renô Martins observou de longe, procurando conhecer melhor o adversário. Passou um cantador e Xangú o
111 venceu em duelo, e assim aconteceu com mais três. Enquanto isso, Renô Martins já tinha se aproximado e havia estudado sua forma de pelejar. Traçou sua estratégia e entrou na disputa. Xangú iniciou sua improvisação se gabando de já ter vencido meia-dúzia naquela noite e com confiança de vencer ainda tantos quantos ali chegarem. Os versos do adversário eram todos muito pesados e agressivos, de “rancá o coro”, e Renô Martins se limitou defender, improvisando na linha do oponente: ou seja, inventando versos instantâneos, em resposta as afrontas de Xangú. Por exemplo, enquanto cantava “seu coro vô rancá”, Renô respondia “tenho coro duro, difícil de tirá”. Assim, como o calangueiro já estava improvisando há algum tempo e os cantadores derrotados estavam na roda observando a sorte do novo desafiante, Xangú não podia repetir os versos já cantados e seu acervo já estava acabando. Após pouco tempo, Renô Martins passou a atacar e notou a dificuldade do calangueiro em criar novos versos em resposta. Dessa forma, não tardou para que Xangú pedisse para parar o desafio, falando que já estava cansado. Após narrar a estória, Renô observa o quanto é importante conhecer o inimigo e ter uma estratégia de jogo. Além disso, conclui que o bom calangueiro deve saber mais entrar na linha do adversário, ou improvisar a partir de seu canto, do que ter muitos versos decorados. Desafio sem fim. Mestre de cavalhada a mais de trinta anos e católico devoto, Renô Martins participa desde sua mocidade da romaria de cavaleiros a cidade de Aparecida. Como a grande distância percorrida pelos devotos dura diversos dias, há inúmeros “pousos” para passarem a noite. Nessas ocasiões, há o encontro de cantadores de diversas regiões do Vale do Paraíba e variada festança. Mestre Renô Martins comenta que os pousos da romaria são a escola dos cantadores, dada a intensa troca de saberes culturais e o aprendizado de várias toadas e canções. Isto porque a tradição oral de transmissão das músicas e causos encontra nesses momentos a sua forma principal de irradiação. Assim, o cantador se lembra de inúmeras canções que aprendia nos pousos e ia cantando durante todo o trajeto para fixa-las na memória. Estes pousos eram também momentos de disputas quentes entre calangueiros de diferentes locais, dada a grande visibilidade das festas e a possibilidade de correr por todas as cidades as histórias dos duelos e as habilidades do vencedor. Das recordações de mestre Renô Martins está a breve descrição de uma longa disputa com um tal de “Tico-tico”, afamado calangueiro. A peleja começou à noite e se prolongou, sem findar, madrugada afora. Os cantadores fizeram algumas pausas, mas nenhum deles queria dar o braço a torcer e entregar a disputa. Assim, ambos exaustos assistiram aos outros companheiros irem dormir, o sol raiar, o desjejum ser servido e continuaram a cantar seus improvisos até chegar a hora de prosseguir a romaria. Então, de comum acordo, os calangueiros decidem encerrar a peleja em empate, prometendo continuar o embate na romaria do próximo ano.
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18.Origens do calango em São Luiz do Paraitinga Adentrar na confluência cultural que originou o calango na região é penetrar na complexa rede étnica que forma – e transforma – a cultura caipira. O calango, canto ligeiro, origina-se da movimentação cultural de povos nos sertões do Paraitinga, desde a sua fundação como vila até elementos de sua história mais recente. As raízes lusitanas do calango estão nas diversas cantigas ao desafio ainda hoje praticadas em Portugal (despique, desgarrada, baldão, etc), além das cantigas que acompanham danças populares (cana-verde, malhão, etc). Quem nos conta é o calangueiro mestre Lauro Faria: o calango nasce no interior de um canto de desafio da região, chamado popularmente de “caninha” ou “cana-verde” – uma expressão melódica inequivocamente portuguesa, utilizada em diversos cantos de desafio daquele país. Mestre Amarildo, entretanto, observa como o calango chega à região na bagagem dos tropeiros, especialmente nos divertimentos de pouso das folias do Divino. De fato, no vocabulário, na toada e na presença da sanfona, a cultura das tropas influenciou muito o calango, como, ademais, as próprias folias da região. O termo calango, contudo, tem sonoridade caracteristicamente africana, sendo, inclusive, corrente na África. Assim, o calango guarda raiz também na matriz africana. Mestre Renô Martins aprendera o calango com ciganos que, na década de 1950, frequentavam a fazenda de seu pai – no bairro do Mato Dentro. Saber quem eram e como viviam esses ciganos pode nos ajudar a compreender as errâncias do calango. O sanfoneiro Brás Ferreira, como também o próprio Renô Martins, fazem alusão a importância dos mineiros de bairros como o Palmital – onde Brás nasceu e aprendeu a calanguear. Por fim, a geração dos mestres Renô Martins e Lauro Faria foi influenciada pela musicalidade veiculada pelo rádio, na aurora das gravações fonográficas de canções “sertanejas”. O calango se forma no encontro entre as culturas de portugueses, tropeiros, africanos, ciganos, mineiros, além de repentes nordestinos. É nesta intrincada rede de relações que o calango transita.
18.1.
Cantigas portuguesas ao desafio
Em seu clássico estudo sobre a poesia popular sertaneja, Luís da Câmara Cascudo destaca a procedência europeia dos cantos de desafio praticados no Brasil. Os duelos improvisados entre poetas remontariam a civilização grega e as disputas entre pastores, passando pelos desafios romanos conhecidos como “canto amebeu” e tendo um ponto forte
115 nos desafios poéticos entre os trovadores medievais. As chamadas “tenções” se disseminaram por todo o velho mundo na época medieval, recebendo denominações diversas: “contrasti” na Itália, “dayemans” na França e a tradição dos meistersingers (mestre cantadores) alemães. Na Península Ibérica, foco da colonização das américas, Câmara Cascudo observa diversas práticas entre os trovadores, além de formas populares como a desgarrada portuguesa. Tais desafios poéticos improvisados teriam chegado ao Brasil e aos demais países da América do Sul durante a colonização portuguesa e espanhola (como o “corrido” na Bolívia, Colômbia e Venezuela; ou a pajada do Chile, Argentina, Uruguai). Daí sua conclusão enfática – e um tanto nacionalista: O que existe no sertão, evidentemente, nos veio pela colonização portuguesa e foi modificado para melhor. Aqui tomou aspectos novos, desdobrou os gêneros poéticos, barbarizou-se, ficando mais áspero, agressivo e viril, mas o fio vinculador é lusitano, peninsular, europeu.
No caso específico do calango, a genealogia dos cantos de desafio proposta pelo folclorista é bastante evidente. Câmara Cascudo destaca, por exemplo, a predominância da quadra (estrofes com quatro versos) entre os trovadores medievais, além da convenção de repetir o último verso do adversário para iniciar a resposta. Tal forma poética e procedimento, característicos do calango, também são exemplificados por Cascudo em canções medievais e pelejas brasileiras e sul-americanas. A forma de organização das rimas, entre os segundos e quartos versos da estrofe (a famosa fórmula ABCB), era praticada pelos trovadores e é a tradicional forma poética do calango. O termo “carretia”, consagrado no calango para se referir a rima com terminação em IA, também é proveniente de uma forma poética medieval usada nas disputas, conhecida como “Carretilha ou Parcela”. O próprio verbo “trovar” é usado por calangueiros da região, como mestre Renô Martins, para se referir a forma de improviso do calango. Trouver (verbo francês que significa “achar”, “experimentar” e até “descobrir”) é o termo utilizado naquele país para se referir ao trovador (trouveur, sinônimo também de “descobridor” ou “inventor”). Também como adjetivo, trouve significa “original” ou “espontâneo”, encadeando uma teia de sentidos muitas vezes aplicada ao improvisador de versos: aquele que deve experimentar expressões e encontrar palavras para inventar um canto original e espontâneo. Além disso, o movimento poético medieval conhecido como Trovadorismo também inicia um momento propriamente popular da literatura medieval – como notam Elinês Oliveira e Francisca Mariano. A poesia restrita aos meios cultos vai encontrando adeptos em diversas
116 camadas populares. Tal importante mudança é acompanhada pela utilização do “regionalismo na linguagem oral, desconsiderando o Latim, língua oficial da Igreja Católica”. A proliferação popular do calango e a predominância do regionalismo caipira e seu dialeto, em detrimento da norma culta da língua portuguesa, guardam também aproximações com a formulação da linguagem trovadoresca. José D’Assunção Barros, estudioso do trovadorismo ibérico entre os séculos XIII e XIV, observa como os desafios poéticos se fortaleceram naquele momento histórico: a sociedade medieval era extremamente guerreira, e os confrontos cantados foram formas sutis e sofisticadas de dois cavaleiros duelarem, sem derramamento de sangue. O caráter bélico dos cantos fazia com que houvessem “verdadeiros combates em que dois trovadores partiam muitas vezes para o enfrentamento pessoal”. Tais combates frequentemente assumiam a forma de cantigas de escárnio e mal dizer, ou seja, os cantadores se utilizavam da ridicularização bemhumorada do adversário, arrancando risos da plateia. Assim, os desafios no trovadorismo ibérico compunham uma “verdadeira cadeia de escárnios”. Esse caráter bélico é bem marcado no calango, adquirindo mesmo feições de trincheira: cada cantador possui um território de domínio, território este defendido com unhas e dentes (e cantoria) contra qualquer oponente. Também a forma da sátira e da ironia é traço característico do calango, com as comuns tirações de sarro recíprocas, comparando o adversário a animais e fazendo outras associações engraçadas, que também arrancam risos da audiência. Dessa forma, pode-se dizer que o calango possui fortes características portuguesas e europeias, com acento especial nas incríveis semelhanças com o trovadorismo ibérico. Por outro lado, essa matriz lusitana do calango fica também explícita quando observamos as cantigas ao desafio ainda hoje praticadas em Portugal e na Península Ibérica. O estudioso Domingo Blanco, que se dedica aos cantos de desafio do norte de Portugal (região do Minho) e da Galícia (Espanha) nota a importância de cantos de desafio, com as seguintes características: improviso em quadras, com a fórmula de rimas em ABCB, repetição dos últimos versos do adversário, com tom humorístico, linguagem atrevida e à beira da agressividade. Tais cantos são praticados sobretudo no ambiente rural e refletem a maneira de falar dessas regiões. Vejamos a descrição de Machado Guerreiro sobre uma cantiga ao desafio portuguesa, conhecida como despique, praticada no Alentejo e na Serra do Algarve. Os cantadores se encontram normalmente na porta de uma venda para o desafio, que pode ou não ser combinado previamente. Uma média de oito pessoas combina as regras do jogo e propõe um
117 “ponto” que se refere a terminação da rima (em -ida, -são, -ada, -tia, -ol, etc). Inicia-se o duelo, no qual cada cantador deve “pegar o ponto” do antecessor, ou seja, a mesma rima, mas também estabelecer com ele um diálogo. Os cantadores vão improvisando e alguns desistem da peleja até que reste apenas um, considerado o “campeão” ou o que “fica por cima”. Os comentários de Machado Guerreiro sobre um desafio improvisado conhecido como “baldão” também são ilustrativos. Em regiões portuguesas como o concelho de Odemira, o “baldão” é cantado em quadras, em que se repete os dois últimos versos do adversário, com “rimas cruzadas” em ABCB, sob acompanhamento musical de viola campaniça. Da mesma forma, Carlos Nogueira dedica-se a grande variedade de cantigas ao desafio portuguesas, chegando a grandes aproximações com relação ao calango. Tais cantigas são praticadas nas praças, vendas, feiras, romarias e festas populares e atraem grande público, que possui importância de “co-autor” nos desafios. A improvisação marca tais cantos, e é sempre regida por rígidas regras (frequentemente vinculadas a repetição de versos do adversário), entremeando versos inventados na hora com versos da tradição ou situações vivenciais da comunidade. Há ênfase nas rimas terminais, sendo interessante notar que algumas rimas comuns no calango, como as terminações em A e ÃO, são consideradas por lá como “rimas “fracas” ou “fáceis”. Os cantadores demonstram grande habilidade na performance, não apenas na improvisação dos versos, como no uso de expressões faciais, gestos e demais dramatizações corporais. Muitas dessas cantigas ao desafio eram acompanhadas por violas, sendo mais comum atualmente o uso de acordeão – similar à sanfona. Carlos Nogueira ainda tece longos comentários sobre a importância social do canto e do cantador, em especial na formação e transformação dos valores e comportamentos da coletividade, refletindo muito da “identidade comunal e individual”. No que se refere ao desafio, o autor observa a prática da “hostilidade aberta” entre os adversários, além do “peso bélico das palavras”. A linguagem é frequentemente obscena e há largo uso de palavrões nos insultos entre os desafiantes, sendo comuns as exaltações cômicas dos adversários, seja ressaltando defeitos físicos ou traços pessoais, seja assemelhando o inimigo a animais. Em suma, os versos formam caricaturas ridículas dos adversários, sem qualquer pudor nos insultos, mas sempre com tom cômico. Por fim, Carlos Nogueira observa grandes semelhanças entre as cantigas ao desafio portuguesas e diversos cantos de inúmeras regiões brasileiras (especialmente o repente nordestino, o cururu paulista e mineiro e a payada do sul), além da payada argentina, as “topadas” no México e várias expressões contemporâneas das “batalhas” do rap.
118 Esta breve incursão por cantos improvisados de desafio ainda hoje praticados em Portugal e na Espanha não deixa dúvidas quanto as suas incontáveis semelhanças com o calango. Em São Luiz do Paraitinga, a herança dessas cantigas se concretizou principalmente na prática de um canto de desafio português, denominado na região como “cana-verde” ou “caninha”.
18.1.1. Cana-Verde
As cantigas populares frequentemente fundem composição poética, música e dança em um mesmo contexto comunitário e festivo. A “cana-verde” ou “caninha-verde” é grande exemplo dessa pluralidade de expressões da cultura tradicional, pois designa uma dança, uma forma melódica e um canto, ambos muito populares em Portugal. Em terras portuguesas a cana-verde compõe uma série de cantos de trabalho e expressões populares relacionadas ao cultivo do milho. A cana-verde era um ritual agrícola de fertilidade, no qual canto e dança dividem espaço com verdadeiros gestos de acariciar a cana verde do milho, para garantir o crescimento de uma espiga sadia e forte. Fernando Reis nota forte reminiscência pagã nesse rito, de extração grega. Após o crescimento das espigas, o verde da cana sedia lugar ao amarelo do milho, iniciando-se a ceifa e a desfolhada. Também a “desfolhada” nomeia um festejo popular, na mesma noite da desfolha das espigas, caracterizado pelas cantigas que enlevavam os namoros entre jovens. Durante a malhada ou debulha, os grãos são separados das espigas com o auxílio de um instrumento artesanal de madeira, chamado “malho”. Nesse momento, há importante cantiga de desafio, descrita da seguinte forma por Fernando Reis: Os cantadores põem à prova a sua capacidade de improvisação e encaixe, bem como os seus dotes culturais no desenvolvimento do tema sugerido pelo cantador, a quem compete iniciar o despique. O carácter humorista das quadras, a resposta a tempo e adequada à situação, são algumas das múltiplas dificuldades que os cantadores têm de enfrentar neste género de despique. A forte presença do cultivo de milho na região de São Luiz do Paraitinga tornava frequentes os mutirões coletivos para a desfolhada e a malhação das espigas – realizada com malho e também com o pilão. Nesses momentos, entoava-se cantigas de trabalho, que, segundo a memória de mestre Renô Martins, não incluíam desafios. Na cidade, a “cana-verde” era uma conhecida dança de salão, organizada em roda, acompanhada de cantadores que improvisavam seus versos. Na memória de mestre Renô
119 Martins, os grandes salões ficavam lotados de pessoas dançando e os cantadores, um de cada vez, iam percorrendo toda a roda, pois a dança acabava apenas quando todos os cantadores faziam seu percurso. A dança da cana-verde era animada por uma grande variedade de canções caipiras, entoadas com refrão coral e entremeadas por improvisos alternados dos cantadores. Assim, assumia tom de desafio, que parece ter sido o modelo mais antigo dos cantos de desafio na cidade. No decorrer do tempo, a dança da cana-verde deixou de ser praticada e a expressão ficou restrita aos desafios improvisados. A influência do canto da cana-verde nos cantos improvisados de desafio pode ser observada na fala do calangueiro Téo Azevedo, em seu livro Repente: “O repentismo mineiro é de origem portuguesa e vem do canto e dança da cana verde”. Não apenas do Vale do Jequitinhonha a cana-verde é signo de repente de desafio. No registro de um mutirão ocorrido no dia 16 de janeiro de 1954, na cidade de Guaratinguetá, Clovis Caldeira observa: “A cana-verde confunde-se com o desafio: cada um dos violeiros canta um verso que é respondido por outro”. Também o importante calangueiro Ernesto Villela desenvolveu seu talento no improviso, inicialmente, nos desafios de cana-verde, aprendidos das aguerridas pelejas das quais tomava parte sua avó materna. Sabe-se da importância da roça de milho desde a fundação da vila de São Luiz do Paraitinga, inclusive com expressiva produção comercializada no Vale do Paraíba. Na fala desses mestres da cultura popular parece claro que a “cana-verde” existia antes do calango e, inclusive, formou o terreno fértil para sua proliferação – como, ademais, o jongo e o brão, como veremos mais adiante. Essa constatação fortalece a hipótese de que o calango chega em São Luiz do Paraitinga a partir de influências distintas daquelas de seu povoamento inicial – que contou com gente de Taubaté, Guaratinguetá, Cunha e Pindamonhangaba, todos provenientes de regiões portuguesas de prática das cantigas ao desafio – provavelmente na bagagem de ciganos, tropeiros e mineiros. Contudo, é possível que o calango vindo na cantoria desses viajantes seja oriundo da cana-verde, como afirma Teo Azevedo, o que explica a forte difusão do calango em terreno fertilizado pela prática desse canto e dança proveniente de Portugal. Aos poucos, a “cana-verde” desaparece enquanto canto de desafio, sobrevivendo exatamente nos desafios calangueados.
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18.1.2. Cantigas de danças populares luizenses: Dança do Sabão e Dança do Caranguejo
As diversas danças populares portuguesas, ainda hoje praticadas naquele país, trazem outras influências ao canto improvisado de São Luiz do Paraitinga, com possíveis confluências em relação ao calango. Além do “malhão”, há também uma variedade das chulas, danças que trazem canções de acompanhamento com uma parte de refrão e solo improvisado – organizado em quadras, com rimas terminais entre o segundo e o quarto versos, de forma similar ao calango. Algumas danças presentes atualmente em São Luiz do Paraitinga trazem os traços indeléveis dessa herança lusitana: dançadas em duas filas, são animadas por cantorias similares às suas congêneres portuguesas. A famosa Dança do Sabão, que anima muitas festas populares na região, possui a seguinte forma poética, conforme gravação do violeiro Moreno Overá: Ai! Ai! Mexe o tacho de sabão (bis) Passa de lado não esbarre no tição Que leva a breca meu sabão Esse trecho da canção é entoado por todos como um refrão, acompanhando a coreografia em que os dançadores de uma fila passam para a outra, e vice-versa, havendo o jogo de esbarrar não podendo se tocar – jogo divertido que traz o encantado da dança (daí o verso “não esbarre no tição”). Esse refrão é entremeado por improvisos em fórmula repetida, com pequenas variações: O sabão pra ser bão minha Sinhá tem que ser da melancia (bis) Sabão se acaba e a roupa fica macia e roupa fica macia... O sabão pra ser bão minha Sinhá tem que ser do pessegueiro (bis) Sabão se acaba e na roupa fica o cheiro e na roupa fica o cheiro... [...] O sabão pra ser bão minha Sinhá tem que ser da marmelada (bis) Sabão se acaba e a dança é terminada, a dança é terminada....
121 Não se pode dizer que há exatamente um desafio, mas a necessidade de improviso alternado entre cantadores tem implícita uma expectativa sobre a criação dos versos. Além disso, o cantador que não consegue rimar seus versos a contento, é vítima de chacota. Dessa forma, há uma forma branda de disputa. Não podemos deixar de ponderar a influência marcadamente afro-brasileira nos versos dessa cantiga. A expressão “sinhá”, largamente utilizada em canções negras, refere-se a forma como a comunidade cativa se referia à senhora esposa do produtor escravocrata. A expressão “tição”, possivelmente se refere ao cabelo do dançarino, numa terminologia ainda hoje utilizada para se denominar o cabelo de um afrodescendente local. Já a Dança do Caranguejo, também organizada em duas filas, com canto refrão coral entremeado por improvisos solos, possui uma característica de desafio mais marcada. A dança é de provável origem na Ilha dos Açores (Portugal), chegada a São Luís do Paraitinga já em seu povoamento inicial, no qual a presença açoriana era numerosa e marcante. Pudemos presenciar, por exemplo, a execução dessa dança durante a Festa do Divino Espírito Santo de 2015, coordenada por Mestre Amarildo Pereira. Era entoado o refrão coral por todos presentes, com a seguinte quadra: Quando é mão, é mão, é mão Quando é pé, pé, pé No bailão da Mariquinha Caranguejo peixe é
Posteriormente, havia um canto improvisado em que Mestre Amarildo provoca o diretor de cultura do município, Leandro Barbosa, para o desafio. Em canto alternado, os dois cantadores trocaram versos em que ficou presente o traço humorístico, típico do calango. Cada cantador improvisava uma quadra, respondida pelo oponente, e depois se retornava ao refrão coral e assim sucessivamente. Em um de seus cantos, Mestre Amarildo satiriza, por exemplo, o cabelo de Leandro, corte conhecido como rastafári, assemelhado a “ninho de passarinho morá”. O mestre encerrou o desafio com os seguintes versos: “posso fica aqui cantano / até o dia clareá” Perceba como seu improviso segue constantemente a “linha do A” do calango e, muito provavelmente, o mesmo cantador utiliza tal estrofe em seus desafios calangueados. Tais semelhanças, seja aquelas das cantigas improvisadas que acompanham as danças populares, seja a das cantigas de desafio, deixam clara a influência lusitana no calango praticado em São Luiz do Paraitinga. Se é provável que o calango tenha chegado à cidade no século XX, ele encontrou ali um terreno fértil formado pela tradição de desafios improvisados que partilham
122 com o calango a tradição portuguesa, fato que certamente influenciou a proliferação e popularidade do calango na cidade.
18.2.
Cultura dos tropeiros
Desde sua fundação, São Luiz do Paraitinga foi abastecida pela cultura tropeira. A própria toada das mulas emprestou o ritmo para boa parte da musicalidade caipira, referida, exatamente, como “toada”. Durante o período do ouro, descoberto sob influência dos mesmos taubateanos que ajudaram a povoar a cidade, São Luiz do Paraitinga servia de pouso aos tropeiros, pois estava a meio caminho de Taubaté, onde o ouro era registrado, e o porto de Ubatuba, por onde escoava. Lagoinha, até a década de 1940 pertencente ao município de São Luiz do Paraitinga, fora povoada inicialmente pelas tropas que por ali pousavam – nesses mesmos pousos em que Mestre Amarildo afirma haver surgido o calango da região. Durante o período do café, sabe-se que a cidade foi principalmente entreposto comercial da produção do Vale do Paraíba rumo ao porto de Ubatuba. Novamente a presença cotidiana das tropas transformou muito a vida luizense. Assim, se durante o período do ouro os tropeiros trouxeram na bagagem a influência cultural de Minas Gerais, na época cafeeira serviram de importante canal cultural de comunicação das expressões populares de todo o Vale do Paraíba. A cultura tropeira se faz sentir no modo de vida do luizense, em seu jeito de falar, cozinhar, tratar os animais, trabalhar, cantar e festejar. O pesquisador da vida rural do município durante a década de 1930 e 1940, Carlos Borges Schmidt, notou que os lavradores da cidade chamavam de “tropeiro” o café que preparavam durante seu trabalho no eito, feito à moda das tropas. O estudioso do tropeirismo, Ocílio Ferraz destaca que a prática do trabalho cooperativo nos mutirões rurais guarda raízes na maneira como as tropas organizavam suas tarefas. Tom e Tereza Maia, em seu livro clássico sobre o folclore das tropas, tinham como informantes tropeiros luizenses, um dos quais é apresentado como “compositor e cantador de ‘música caipira’”. Por fim, Rafael Cursino dos Santos, em sua pesquisa sobre a Festa do Divino Espírito Santo, destaca a importância dos tropeiros na folia do Divino da cidade. Até os dias de hoje, os pousos de folia ou de romaria são momentos privilegiados para as pelejas entre calangueiros de diferentes regiões. Tal tradição talvez tenha sido inaugurada pelos tropeiros que Mestre Amarildo menciona com os responsáveis pela disseminação do
123 calango da região. Além da forma de cantar, do sotaque empregado e do vocabulário caipira, os tropeiros também eram exímios tocadores dos instrumentos utilizados no calango, especialmente a sanfona de oito baixos, a viola e o pandeiro.
18.3.
Afro-brasileiros
Ao defender a ascendência europeia dos cantos de desafios populares no Brasil, Câmara Cascudo rejeita taxativamente a influência afrodescendente: “O desafio, de improviso, acompanhado musicalmente, não há nas terras da África”. O venerado folclorista erra redondamente. Se houvesse lido os viajantes portugueses pela África (Alfredo Sarmento, Ladislau Batalha, Dias de Carvalho, etc) com a atenção dispensada aos clássicos gregos e romanos, teria logo encontrado a prática difundida do desafio improvisado em grande parte do solo africano. Bastava ter lido Mário de Andrade que, em seu Samba Rural Paulista, chega a conclusão diametralmente oposta, quando afirma: “o que havia de mais profundo e de mais característico da musicalidade negroafricana, a improvisação”. Em sua noção de consulta coletiva como característica dos sambas rurais paulistas, o modernista defende o traço do improviso como herança africana, chegando a dizer que é justamente o improviso afro-brasileiro que distingue sua musicalidade daquela dos “caipiras brancos”, marcada por evocações fixas de cunho eclesiástico, cantadas em coro. Além de sua pesquisa de campo, que inclui o jongo de São Luís do Paraitinga, Mário de Andrade recorre a vários estudiosos para corroborar a centralidade do improviso entre africanos: em Natalie Curtis-Burlin (Negro folk-songs), acentua o improviso individual que posteriormente é entoado coletivamente até o “êxtase comum”; em GastonDénys Périer (Négreries et Curiosités Congolaises), menciona o canto solo improvisado repetido pelo coro em cantos de trabalho; em Newman I. White (American Negro Folk-Songs) aponta como a improvisação não é exclusiva, mas “uma característica especialmente negra”; enfim, em Geoffrey Gorer (Africa Dances) salienta como “o processo mais geral é o improviso solista e o refrão coral”. Contudo, tanto Câmara Cascudo como Mário de Andrade parecem adotar perspectivas puristas, ao advogarem a ascendência apenas europeia-ibérica ou africana dos improvisos nos cantos de desafio brasileiros. Como temos ressaltado, o calango é expressão emblemática de como a cultura popular brasileira é formada – e transformada – a partir dos encontros (e embates) entre as diversas etnias aqui presentes. Não há dúvida quanto a influência dos
124 improvisos ibérico e africano nos cantos populares, porém o purismo está em puxar a brasa para a sardinha desta ou daquela etnia – rejeitando as outras. O termo calango é de origem inequivocamente africana, como a própria sonoridade sugere. Wilson Rodrigues, consultado fontes diversas, propõe as seguintes derivações: do dialeto ambundo, kalanga ou rikalanga, que significaria lagartixa; e do verbo kalanga (prevenir), do kimbundo. A primeira procedência é associada aos passos do calango enquanto dança, cujo arrasta-pé lembra um motivo imitativo dos movimentos desse réptil; ao passo que o segundo termo estaria relacionado à prevenção necessária do cantador em desafio. Nei Lopes também destaca o vocábulo kimbundo kalanga, porém significando o réptil que no Brasil recebeu o nome de calango. O autor ainda menciona o emprego do termo kalango para se referir a um tambor feito de madeira ou cabaça. De nossa parte, lembramos a obra Costumes Angolenses, em que Ladislau Batalha nomeia uma erva curativa, utilizada por um feiticeiro quibanda, com os nomes de “quicalango” e “catalango”. Em seu livro Cultura Popular do Norte de Minas, o calangueiro Téo Azevedo destaca que o calango é de origem “cabocla”. Já em conversa com Inezita Barroso, no Programa Viola Minha Viola (especial sobre os cantos de desafio), o repentista conta a “lenda do calango”: o canto teria sido criado pelo “mestiço” que não tinha lugar no baile dos “brancos”, no salão, nem tampouco no batuque dos “pretos”, no terreiro. O réptil traria ainda o significado do “mestiço” em movimento, na poeira da beira de estrada, procurando um lugar. Fazendo uso da tradição oral e da popular forma literária da lenda, o calangueiro dá boas pistas, pois o calango é fruto do encontro – nem um pouco amistoso – entre europeus e afrodescendentes (os tais “mestiços”), além de carregar forte conotação de pessoas itinerantes (como ciganos e tropeiros) ou em migração (como os mineiros vindos a São Luiz do Paraitinga, a partir da década de 1930). Porém, além de sua raiz etimológica, há outros traços de influência afro-brasileira sobre o calango? No verbete sobre o calango em seu Dicionário musical brasileiro, Mário de Andrade é taxativo: “CALANGO (s.m) – Dança de origem africana, com ‘rodopios, requebros e desengonços’”. O modernista baseia seu comentário em um artigo de Mariza Lira, publicado no Jornal do Brasil, no primeiro dia de 1938. No artigo, intitulado Música popular brasileira, a folclorista apresenta diversos exemplos de “música afro-brasileira” (caxambu, coco, chula, maracatu, etc), musicalidade indissociável da dança. Dentre elas, está o calango, assim detalhado: “Calango – Dansa de rodopios, e desengonços dos negros africanos”.
125 Exatamente pela via da dança, a folclorista carioca Vera de Vives se dedica ao que considerou a “origem africana” do calango. Em seu livro O Homem Fluminense, a autora observou o calango cantado no baile, mas também no eito, como canto de trabalho. O calango de desafio, também conhecido ali como “lera”, é cantado frequentemente com um “estranho e surpreendente rodopio”, com o cantador às vezes saltitando com uma perna só, movimento associado “aos volteios rituais dos feiticeiros africanos”. Já a estudiosa da música caipira, Rosa Nepomuceno, considera o calango uma das contribuições da população afro-brasileira na “música da roça”. Atribui essa influência ao convívio entre “caipiras” e “negros” desde o tempo da escravidão: “Nas plantações das grandes fazendas, negros e caipiras conviveram e trocaram conhecimentos, irmãos na pobreza, no tipo de vida, na paixão pela música”. Também Camila Mendonça, junto a importante grupo de pesquisadores do calango da Universidade Federal Fluminense, observa como o calango é praticado na atualidade exatamente em áreas de grande incidência de escravos negros bantu, no século XIX, e nas quais permaneceram no pós-abolição. Assim, além da “tradição ibérica dos desafios”, salienta a influência africana que faria com que os calangueiros de diferentes regiões tivessem um “conjunto de imagens e símbolos” compartilhado. A penetração afro-brasileira no calango também se faz notar em um importante refrão do calango, colhido por Luís da Câmara Cascudo: Calango tango Do calango da lacraia, Nunca vi nêgo d’Angola Qu’usa chapéu de paia. O refrão é importante porque tematiza negros de Angola nas regiões mineiras que foram grandes propagadoras do calango para o Vale do Paraíba paulista. O mestre calangueiro Ernesto Villela, exemplo maior do calango paulista, aprendeu a calanguear com negros mineiros, como descreve Alcemir Palma: “Somente quando teve contato com o calango é que seguiu uma carreira própria elaborando seu jeito de cantar e de versejar, essa aproximação se deu quando alguns lavradores vieram de Minas Gerais para trabalhar na fazenda de seu primeiro sogro no ano de 1940 como ele gostava de reafirmar: ‘quando conheci os negro de Minas é que me tornei calanguero’”. De nossa parte, não presenciamos quaisquer rodopios ou movimentos corporais que nos levassem a associar o calango com danças afro-brasileiras. Contudo, a convivência entre
126 libertos e caipiras revestiu o calango de feições afro-brasileiras específicas, ligadas aos feitos de feiticeiros. O calangueiro chama para si um imaginário mágico que pode estar associado a práticas rituais de origem bantu. Quais seriam estes feitos de feiticeiros? Um tema recorrente no desafio do calango, como vimos anteriormente, é a demonstração da força do cantador, a partir da narrativa de feitos extraordinários: “eu dei um pulo pra cima / e virei sarto mortá” ou “ranco toco com raiz / não deixo no chão siná”. Em alguns casos, contudo, tais feitos não são apenas extraordinários, mas também sobrenaturais: “piso no chão e viro purga / dexo o cacete malhá” ou “o galo chocô no morro / pá galinha descansá” – para ficarmos com exemplos da peleja entre mestre Renô Martins e Brás Ferreira. Tais versos, provenientes da tradição do calango, são muito abundantes, como demonstram outros tantos exemplos colhidos por Francisco Pereira da Silva: “faço um caroço de mio / dá três quarta de fubá” ou “tiro leite na cumbuca / faço quejo no imborná”. Tais práticas mágicas não encontram paralelo na tradição lusitana de cantigas populares. Entretanto, abundam no imaginário dos cantos afro-brasileiros, como o jongo e o vissungo, por exemplo. Em seu estudo sobre o jongueiro cumba e suas ligações com tradições mágicas ancestrais da África, Robert Slenes observa diversos paralelos entre feitos de jongueiros no sudeste brasileiro e aqueles de feiticeiros africanos: o ato de plantar bananeira que madura seus frutos durante a roda de jongo – feito relatado em São Luiz do Paraitinga exatamente por mestre Renô Martins – é descrito também nos estudos de Karl Laman, no reino do Congo, no início do século XX. Tal prática revela a manipulação mágica de forças ligadas à fecundidade, fertilidade e prosperidade (materializadas no símbolo da banana). O mesmo Laman descreve o poder de feiticeiros em transformarem cajados em serpentes ou chamarem cobras e anfíbios, força similar a feiticeiros do vissungo mineiro que poderiam evocar um enxame de marimbondos para atacar seu oponente no desafio cantado. Ora, há forte semelhança entre o poder sobrenatural de virar pulga ou transformar um cajado em serpente; de tirar leite de uma cumbuca ou fazer nascer e crescer uma bananeira. Em ambos casos, o feiticeiro africano, o jongueiro e o calangueiro narram poderes sobrenaturais de transformarem objetos ou se transformarem em espécies animais – num animismo abundante em rituais mágicos africanos –, ou manipularem magicamente objetos cotidianos para garantirem a fertilidade e alimentação da coletividade. Por essa via, feiticeiros cumbas africanos podem ter influenciado alguns calangueiros.
127 No entanto, a variedade da prática do calango está ancorada em contextos históricos específicos, sendo perigoso fazer associações mais gerais entre o “calango” (em sentido genérico) e outros cantos – também múltiplos em suas peculiaridades regionais –, como o jongo. Preferimos uma abordagem do contexto particular da cidade de São Luiz do Paraitinga. Nessa cidade, podemos afirmar que a tradição de cantos de desafio improvisados possui uma raiz africana bem definida: o jongo. Na festa ou no eito, o jongo se disseminou por todo o município no pós-abolição, abrangendo todas as etnias. O canto do brão, cantiga de desafio improvisada nos mutirões rurais, foi também “gerado pelos escravos” – como afirma Renô Martins. Neste contexto específico é inegável a influência afro-brasileira do jongo, evidente na tradição local, na função social e no imaginário mágico dos cantos improvisados de desafio. Porém, tais cantos, mais do que se distinguirem, parecem se interpenetrarem. Se o brão foi filho liberto do jongo, há verdadeiros desafios de calango durante linhas de brão. Em pontos de jongo também há influência do calango, assim como temas e símbolos típicos do jongo são observados em desafios calangueados. Em todos os cantos de desafio de São Luiz do Paraitinga parece ficar clara a presença de elementos de diversas etnias, sendo mais profícuo observar como tais culturas se interpenetraram na constituição da cultura popular local. Há, inclusive, livre trânsito das mesmas pessoas em diversos dos cantos de desafio. Renô Martins, calangueiro e cantador de brão, também participava de rodas de jongo. Luis Caié era jongueiro, cantava calango e comandava a dança do caiapó – de origem indígena. Assim, a influência do canto improvisado do jongo encontra confluência nas diversas outras etnias que formam a cultura popular local.
18.4.
Ciganos
Aventa-se o ano de 1574 como possível marco da presença cigana no Brasil. Já em 1603 se tem registro de ciganos na cidade de São Paulo. Contudo, a contribuição dos ciganos no povoamento destas terras se intensifica na década de 1680, com degredo de ciganos para o Maranhão e, posteriormente, para a Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Uma trajetória importante da cultura cigana é aquela que advém dos estudos de Mello Moraes Filho sobre a vida dos ciganos no Rio de Janeiro, a partir de 1718. Em sua etnografia, o estudioso observa elementos dos fandangos ciganos, seus cantos, sua poesia e, também, algumas de suas atividades econômicas, com destaque à sua participação no comércio de escravos. Sobre a marcha dos ciganos nas diversas regiões brasileiras, o etnógrafo é explícito:
128 Qual o rumo posteriormente tomado pelos [ciganos] deportados, quantos internaram-se nas florestas ou permaneceram nos centros colonisados, é uma questão complexa e de resolução difficilima. Tropas e tropas vagabundas infestavam o norte e o sul, vivendo da natureza e na natureza, commerciando nos pequenos povoados e pirateando nas estradas. A reprodução entre si deu-se em grande escala; o cruzamento com as três raças existentes effectuou-se, sendo o cigano a solda que uniu as três peças de fundição da mestiçagem actual do Brazil.
Há como conhecer alguns de seus caminhos. Com a descoberta do ouro, muitos ciganos migram para Villa Rica e de lá são expulsos, conforme documentos de 1723. É também em Minas Gerais que se têm os primeiros documentos do envolvimento de ciganos em atividades circenses e artísticas, em 1727. Na década seguinte, fala-se, inclusive, em uma “multidão de ciganos” na região das minas. Pelos menos a partir de 1820, observa-se a presença de ciganos na Zona da Mata mineira com uma estratégia interessante de sobrevivência: acampavam em terras de pequenos proprietários rurais, vivendo ali sob sua proteção – exatamente como os ciganos que ficaram alojados na fazenda da família de Renô Martins. Os estudos de Frans Moonen revelam o quanto os ciganos passam a ser banidos das cidades: “Minas Gerais expulsa seus ciganos para São Paulo, que os expulsa para o Rio de Janeiro, que os expulsa para Espirito Santo, que os expulsa para a Bahia, de onde são expulsos para Minas Gerais, etc.”. Assim, a grande movimentação de ciganos se dá tanto por sua vida errante como por repulsa ao seu modo de vida. Daí as dificuldades de mapear seus paradeiros e precisar de qual das diversas culturas ciganas são os tais companheiros que frequentavam a fazenda da família de Agenor Martins, nas décadas de 1940 e 1950. No Vale do Paraíba paulista, jornais da época noticiam a presença de acampamentos de ciganos em Caçapava, em 1885. Vindos de Minas Gerais, dedicavam-se a “negócio de animais” e escravos. Contudo, sabendo da importância de Taubaté na descoberta do ouro, seu registro e escoamento, os ciganos que se locomoviam para as minas provavelmente passaram por ali. Ainda no âmbito da formulação de hipóteses, uma vez que a ciganologia no Brasil ainda não permite precisões sobre a presença dos ciganos no Vale do Paraíba paulista, como negociantes de escravos e de animais, pode-se aventar sua itinerância por São Luiz do Paraitinga durante o século XIX, pois a cidade possui importância como entreposto comercial e possuía fazendas escravocratas e criação de animais. O historiados Jaime de Almeida, que realizou importantes estudos sobre São Luiz do Paraitinga no pós-abolição e primeiras décadas da República, nota a frequência do trânsito de
129 ciganos em terras luizenses durante as festividades natalinas, quando menciona “presença dos circos, ciganos, touradas e de mais espetáculos na cidade por esta época do ano”. Quem seriam os ciganos com os quais Renô Martins aprendera o calango? Seriam ciganos integrados as companhias de circo ou demais espetáculos artísticos? Seriam negociantes de animais, que com a família de Renô Martins faziam negócios? Seriam intermediadores de escravos que conheciam a região da época da escravidão, pois por ali havia a Fazenda Santana, onde Renô Martins cursou seus primeiros anos escolares, fazenda reconhecida pela grande escravaria? Seriam ciganos provenientes de Minas Gerais, vindos na grande “invasão” mineira em São Luiz do Paraitinga na década de 1940? Deles, Rêno Martins se lembra apenas que vinham para a região periodicamente para “briganhá cavalo” (barganhar ou negociar cavalos), no começo da década de 1950. No anoitecer, os ciganos acendiam uma fogueira e se desafiavam no calango, ao som da sanfona, viola e pandeiro. Inicialmente, o jovem ficava apenas observando até tomar coragem e improvisar seus versos em desafio. A relação afetiva de Renô com os ciganos o faz lembrar uma ocasião em que o líder do acampamento, “Ditinho Cigano”, quebrara a perna ao cair do cavalo e seu acampamento ficou alojado por semanas na fazenda de sua família. Assim, recorda-se de brincadeiras com os filhos do referido cigano – chamados intimamente como Tota, Lulu e Zezinho – que Renô afirma residirem atualmente em Taubaté. Há, inclusive, um cigano desse grupo que teria se fixado na cidade, pessoa conhecida como “Garnisé”. Uma coisa é certa: o calango praticado nos acampamentos ciganos na fazenda da família de Renô Martins, é um canto de desafio aprendido no Brasil. Mello de Moraes Filho reúne grande material sobre cantos dos ciganos, em seu livro Cancioneiro dos Ciganos (1885). Divididos em líricas, elegíacas e funerárias, as cantigas dos ciganos instalados no Rio de Janeiro são muito distintas de cantos populares, como o calango: linguagem alta, norma culta e verso consagrado pela tradição, distantes da oralidade, irreverência, desafio e improviso do calango. Contudo, a preponderância de cantigas em quadras ao som de violas, típica dos fandangos calons, aproxima o canto cigano do calango. Há também “poesia céga”, ou seja, improvisada instantaneamente. O estudioso dos ciganos em Portugal, Adolpho Coelho, contudo, contesta as cantigas coletadas por Mello Moraes Filho, que seriam “apenas poesia popular, semi-culta ou culta brasileira em boca cigana”. E acrescenta: por si sós [os ciganos] não são capazes de produzir uma poesia sua; mas têm a capacidade de apropriação da técnica poética já desenvolvida por outro povo (e por técnica não entendo aqui só o que
130 respeita à metrificação propriamente dita, mas todos os processos poéticos) e de produzir com esses elementos estranhos combinações novas e de valor.
É muito provável que esta habilidade dos ciganos no calango esteja relacionada a esta “capacidade de apropriação” das práticas poéticas dos lugares em que atravessam. Isto em duas direções: sabendo da importante presença dos ciganos na Península Ibérica, desde 1449, poderiam bem ter aprendido as cantigas ao desafio portuguesas ou galegas, que, como vimos, estão na raiz do calango; contudo, povo nômade que atravessa as regiões e absorve sua cultura, os ciganos podem ter aprendido o canto nessas suas passagens por Rio de Janeiro, Minas Gerais e Vale do Paraíba, locais de grande popularidade do calango. Seja como for, não deixa de ser curiosa a sintonia entre esse canto ligeiro, caracterizado pela rápida movimentação de versos e pelo improviso, com esta cultura nômade a improvisar constantemente seus modos de vida.
18.5.
Invasão mineira
Com a crise da produção cafeeira, a cidade de São Luiz do Paraitinga retorna a agricultura de subsistência levada a cabo por pequenos proprietários rurais, pois os grandes latifúndios cafeicultores foram fragmentados em um sem-número de pequenos sítios. Com o baixo preço da terra na região, São Luiz do Paraitinga recebeu o que alguns estudiosos denominam como “invasão mineira”, a partir da década de 1930. Nas terras pouco férteis pela exploração da monocultura do café ou do algodão, os mineiros, vindos especialmente do sul de Minas e da Zona da Mata, formaram grandes pastos nos quais se dedicaram a pecuária. As diversas famílias vindas de Minas Gerais que habitaram o bairro do Palmital, onde nasceu o calangueiro Brás Ferreira, são exemplo dessa migração. Além do Palmital, área posteriormente desocupada por ser reserva ambiental, há bairros todos povoados por mineiros, como aquele em que Alceu Maynard de Araújo documentou o calango, na década de 1940: Santa Cruz do Rio Abaixo, o “bairro dos mineiros”, cuja ligação com a pecuária fica clara na alcunha do proprietário da fazenda, Zé Leite (chegado à região com outras famílias oriundas da região mineira de Itamonte e Pouso Alto). Os dois exemplos evidenciam que os mineiros não apenas se integraram às tradições populares da região, como trouxeram grandes contribuições. É certo que a familiaridade entre as culturas
131 mineira e vale-paraibana pode ser facilitada pelas andanças dos tropeiros, que também calangueavam. Porém, o auge do calango na cidade e sua proliferação em grande parte dos bairros deve muito a presença dos mineiros. É bastante problemático afirmar uma única “origem” do calango, exatamente por se tratar de canto nômade que assimila elementos dos diversos lugares onde passa, além de ser comum a inúmeros grupos sociais (como ciganos e tropeiros). Contudo, é a “origem” mineira do calango aquela mais enfatizada, inclusive como tema de inúmeras canções. Em Balanço do Calango (1947), Luiz Gonzaga canta: “o calango vem de Minas / fui eu que mandei buscar”. Também Inezita Barroso, em Oi calango, é (1959), entoa em refrão: “vem de Minas Gerais, o Calango”. No primeiro registro fonográfico da dupla Chitãozinho e Xororó, o Calango Mineiro (1969) – composição de Tinoco, Tonico e Zé Cupido – também especifica o “calango de Minas Gerais”. Este vínculo do calango com Minas e mineiros permanece cantada até em registros mais recentes, como o Forró Calangueado (1999), de Alceu Valença.
18.6.
Pelejas nordestinas
O “mineiro” Brás Ferreira iniciou sua participação na Festa do Pinhão de 2015 tocando Asa Branca, em sua sanfona. Por sua vez, o nortista Luiz Gonzaga aponta, como vimos, a procedência mineira do calango. Esse entrosamento entre as culturas mineira e nordestina – que fora tema, inclusive, de versos do clássico Calango da Lacraia – parece ingrediente importante do calango praticado pelos mineiros que migraram para São Luiz do Paraitinga. O sanfoneiro Brás Ferreira, nata da cultura mineira na cidade, executa clássicos nortistas de Luiz Gonzaga, desde que aprendeu a tocar sanfona. Esse sotaque nordestino da sanfona é fundamental ao calango que observamos no bairro da Cachoeirinha. Tivemos a oportunidade, em pequenos encontros em um bar desse bairro, de participar de um calango improvisado apenas com violas, pois Brás Ferreira não estava presente. A levada da viola, numa toada mais lenta, tornava o calango sensivelmente diferente daquele cantado na companhia da sanfona. Diria que o calango com violas se assemelha ainda mais às cantigas ao desafio portuguesas, pois a melodia executada pela voz do cantador ganha bastante relevo. Já o calango mais comum, acompanhado pela sanfona, torna o improviso mais ligeiro – marca do calango nortista, presente em Calango da Lacraia, com rapidez digna de um coco de embolada.
132 É possível que nordestinos e mineiros tenham realizado grandes trocas culturais que enriqueceram significativamente o calango. Luís da Câmara Cascudo, por exemplo, destaca o seguinte refrão: Calango tango Do calango da lacraia Macaco que vai na roça Come o mio e deixa a paia!
O folclorista observa que tais versos são comuns aos mineiros e ao “Nordeste brasileiro”. Assim, o calango que chega aos paulistas sob influência da cultura mineira, traz também elementos da cultura nordestina. A marca nordestina mais evidente no calango está em sua musicalidade e estilo vocal. É verdade que a forma poética do calango coincide em grande parte com aquela de cantos improvisados de desafio, como a cana-verde ou a Dança do Caranguejo. Porém, a musicalidade e o estilo vocal do calango são característicos: a proeminência da sanfona de oito baixos em frase musical acelerada, com estilo vocal ligeiro. Gravações do calango, como o Calango do Juá – seja na gravação de Pirapó e Cambará (de 1963), seja na versão de Ernesto Vilella –, deixam clara a influência nordestina. Enquanto a dupla Pirapó e Cambará chama para si a alcunha de “reis da embolada”, Ernesto Villela utiliza a expressão “embolada” para se referir ao canto improvisado, deixando o traço inequívoco da influência nordestina. O improviso gravado no CD Mestre Calangueiro Ernesto Villela, na faixa de abertura (Calango do Juá) utiliza a forma de cantar inequivocamente nordestina do coco de embolada: não apenas a ligeireza dos versos, mas o final de cada improviso marcado pela expressão “Oí”, exatamente igual fazem cantadores de embolada, como Jararaca e Ratinho. A expressão “Oí” é praticamente uma assinatura tradicional do coco de embolada. Tudo indica que a influência nordestina está também presente na “embolada” praticada na cidade de São Luiz do Paraitinga, conforme descrição no calango de setembro. Parece certo que a prática da “embolada” não foi trazida por nenhum nordestino chegado à cidade, mas pela popularidade da dupla Jararaca e Ratinho, de cuja embolada Espingarda Pá, pá, pá, pá (1929), os cantadores de São Luiz inventaram a brincadeira – como veremos em detalhes mais adiante. Sabe-se que a “música sertaneja” daquela época (período dos registros pioneiros de Cornélio Pires) englobava toda manifestação popular produzida no “sertão” – isto é, longe dos centros urbanos. Assim, o “sertanejo” era tanto o caipira com seus catiras, toadas e modas de viola, quanto o nortista com suas emboladas, baiões e xaxados. As músicas sertanejas foram
133 gravadas em disco e amplamente difundidas no rádio. Assim, tanto Jararaca e Ratinho quanto Gonzagão podem ter chegado a São Luiz do Paraitinga pela forte circulação da música nordestina pelo mercado fonográfico, muito forte na década de 1930 a 1950 – período de formação da geração atual dos calangueiros da cidade. Assim, o calango em São Luiz do Paraitinga foi influenciado também pela cultura nordestina, muito forte no sotaque da sanfona – e presente em suas “emboladas”.
18.7 “A moda do calango”
O tema tradicional Calango do Juá foi gravado inicialmente pela dupla Alvarenga e Ranchinho, em 1937. É curioso notar como esse mote reincidente no calango paulista faça referência ao fruto de árvore original da caatinga nordestina, o juá (Ziziphus Joazeiro), que nomeia, também, uma localidade cearense. Nesse primeiro registro comercial do calango, há um verso curioso que fala em “moda do calango”. Tanto o interesse na gravação desse gênero musical, quanto a expressão “moda”, dão pistas da popularidade do calango na década de 1930. É o momento em que a “moda” (no sentido de ritmo musical) do calango parece se disseminar e ganhar grande popularidade (dando o sentido mais conhecido da expressão “moda”). É o período em que esse desafio parece se disseminar no Vale do Paraíba paulista. De um lado, trata-se de momento histórico de grande migração mineira para cidades como São José dos Campos e São Luiz do Paraitinga; por outro lado, o período coincide com o crescente interesse do sudeste brasileiro pela musicalidade nordestina. Alvarenga e Ranchinho fazem uma ambientação do calango em uma festa popular, no aniversário de personagem chamada Gilda. Contudo, o calango é acompanhado de pequena orquestra ao fundo, sem a popular sanfona de oito baixos. Também o estilo vocal dos caipiras (duas vozes simultâneas, com intervalo de terças) dá outro aspecto ao calango. Luiz Gonzaga foi a grande expressão da disseminação de tradições nordestinas por todo o Brasil. Já no início de sua carreira, em seu segundo trabalho gravado, em 1942, lança a faixa Calangotango. Depois, em 1946, há o famoso Calango da Lacraia, em parceria com Jeová Portela. Com mesmo parceiro, em 1947, Gonzagão grava Balanço do Calango. No Calango da Lacraia se menciona uma tal rixa entre “mineiros” e “nortistas”, rivalidade que poderia se fazer presente nas pelejas cantadas. De qualquer forma, em Balanço do Calango a mesma relação entre mineiros e nordestinos é destacada, mas agora como cumplicidade musical: “o calango
134 vem de Minas / fui eu que mandei buscar”. Nessa composição, Gonzagão deixa clara a procedência mineira do calango, tanto quanto sua participação na divulgação do gênero musical. Pela grande habilidade desse nordestino em tocar sanfona, o calango parece ganhar ares pelos quais ficou mais conhecido. A força da sanfona no calango também é observada nas gravações de Januário, pai de Luiz Gonzaga: seja em Calango do Irineu (1955) ou Calango jogo de bola (1962). Ambas composições são instrumentais e contam com a participação do célebre filho, dando um sabor maior ao calango enquanto gênero musical (não apenas como dança ou canto improvisado). No ano de 1945, duas diferentes gravações do calango parecem dar o tom de sua popularização. A dupla Nhô Nardo e Cunha Júnior, da primeira leva da música sertaneja paulista registrada por Cornélio Pires, grava Calangotango. A sanfona sobressalente dá o tom do improviso, em faixa gravada num momento da dupla recheado do melhor das canções caipiras paulistas. Já o cearense Xerêm, em dupla com De Morais, grava Dança do Calango, que, como o próprio nome sugere, enfatiza o calango como dança em par, com a presença de roda, como fica claro na letra da música:
Olha a dança do calango Calanginho bom Vira a roda moreninha Bate o pé no chão Quanto mais a gente dança Mais vontade dá E a sanfona tá tocando Num pode pará Eu me escangalho, me requebro Perco até o juízo E a dança do calango é um paraíso (bis) Quanto mais a gente dança Mais vontade tem E eu danço agarradinho Junto com o meu bem Fico doido, fico louco De tanto me espalhá Quanto mais a gente dança Mais vontade dá (bis) O dançar agarradinho e com “requebro”, ao som da sanfona, são os ingredientes da dança – que se pese a expressão “requebro” ser a mesma referida por Mariza Lira e Mário de Andrade para caracterizar a influência afro-brasileira na dança do calango.
135 Também Inezita Barroso grava Oi calango ê, no ano de 1959. O calango comparece na canção não como gênero musical de improviso, mas como tema da composição: o calango, em sua multiplicidade de sentidos (como réptil, como pessoa migrante, como dança ou como canto), é abordado em estreita relação com o povo mineiro – como fica claro no refrão, “vem de Minas Gerais, o calango”. Nesse sentido, o calango é signo de gente migrante mineira que traz consigo suas formas de cantar e suas crenças, enfim, seu modo de ser. É mais uma boa pedida para se pensar a expressão itinerante do calango e sua procedência mineira. Poderíamos ir mais longe nessa breve retomada dos registros do calango no circuito comercial da indústria fonográfica. Teríamos a presença dos autodenominados “reis da embolada”, Pirapó e Cambará, caipiras que iniciaram carreira em solo paranaense, e gravaram o Calango do Juá (1963). Chegaríamos até duplas como Chitãozinho e Xororó que, ainda em sua primeira gravação (no álbum Moreninha Linda, de 1969), lançam a faixa Calango Mineiro, de autoria de Tinoco, Tonico e Zé Cupido. A canção enfatiza o calango como dança mineira, trazendo sua influência para outra importante geração da música sertaneja. Da mesma forma, tomando como referência os calangos gravados por Martinho da Vila, observamos a influência do calango no samba carioca e seus partidos – como havia ressaltado Nei Lopes. Em Calango Longo, incluído no álbum Batuque da Cozinha (1972), o sambista dedica o calango à sua mãe, como lembrança de sua vida na “roça”, pois Martinho da Vila foi filho de lavradores e nasceu na Fazenda do Cedro Grande, em Duas Barras (RJ). O vínculo do calango com o ambiente rural fica claro em sua designação como “som da minha terra” ou “som rural”, havendo uma afinidade com outros gêneros musicais, quando Martinho da Vila se apresenta da seguinte forma: “sou partideiro, calangueiro e cirandeiro”. O partideiro e calangueiro ainda gravaria Calango Vascaíno (no LP Canta canta, minha gente, de 1974) e o Calango da Lua (em Sentimentos, de 1981). Por fim, a influência do calango em nomes de grande exposição midiática se completa com o Forró Calangueado, gravado por Alceu Valença em seu álbum Forró de todos os tempos (1999). Novamente o calango é tomado como uma dança mineira, entrosada com o ritmo nordestino do “forró” de Luiz Gonzaga. O que é importante para a presente pesquisa é observar como aquela que parece ser a primeira geração de calangueiros paulistas – de Ernesto Villela e, posteriormente, de Renô Martins – sofre grande influência de canções veiculadas pelo rádio. Da mesma forma que Ernesto Villela narra a importância do rádio para sua formação musical, Mestre Renô Martins também conta histórias de como andava quilômetros para ouvir o rádio adquirido por um tio.
136 Naquela década de 1940 em que a “moda do calango” recebia atenção do que viriam a ser importantes nomes da música sertaneja, as canções disseminadas pela rádio formava a musicalidade desses calangueiros pioneiros. Qual teria sido a influência dessa “moda do calango”, filtrada pela indústria fonográfica, na formação do calango no Vale do Paraíba paulista? Uma coisa é certa: trata-se de uma via de mão dupla, ou seja, da mesma forma que a disseminação do calango no interior de culturas populares tradicionais incentiva sua veiculação na rádio, esta veiculação influencia e fortalece essas mesmas culturas. O calango já havia chegado na bagagem de cantadores (tropeiros, mineiros ou ciganos) e parece ter sido fortalecido pela popularidade gerada pelas gravações fonográficas. Arrisco dizer, inclusive, que as canções ouvidas na rádio, relacionadas ao calango ou não, eram absorvidas pelos cantadores a partir dos mecanismos de culturais tradicionais orais. Em outras palavras, os cantadores ouviam canções e versos, em festas, em pousos ou no rádio, e memorizavam sua melodia e poesia. A partir dessa primeira memorização, eles reproduziam à sua maneira a canção, com variações musicais e poéticas. Essa adaptação pessoal da canção passava pelo fluxo da memória e do improviso que, como vimos anteriormente, são os principais recursos de transmissão de saberes em culturas de tradição oral. Exatamente por estarem suscetíveis a essas adaptações pessoais, muitas dessas canções de amplo conhecimento público acabam por servir como mote de desafios e improvisos, como vimos nos exemplos das canções Vai de Roda, Cabelo Loro e Espingarda Pá pá pá – ou Moreninha Linda e o Calango da Lacraia, músicas adaptadas por Ernesto Villela. Ainda que absorvida a partir de mecanismos próprios às culturas orais, tais canções influenciam as culturas tradicionais do calango, num dos primeiros efeitos de como a renovação dessas culturas convive bem e absorve as modernas formas de circulação de produtos musicais pela indústria fonográfica ou pelo rádio. De qualquer forma, além da influência presencial de tropeiros, ciganos e mineiros, não se pode descartar a contribuição desses calangos gravados, além de outras “modas” caipiras, na prática do calango no Vale do Paraíba.
Tendo em vista que toda tradição está em trânsito, ou seja, num processo de renovação constante, conjecturar sobre sua “origem” ou suas “origens” pode ser um contrassenso. Com
137 isso quero dizer que não há um marco preciso de surgimento de determinada manifestação cultural, nem tampouco uma homogeneidade em suas expressões que permita generalizações de uma região para outra ou de um momento histórico para outro. A rigor, o calango é múltiplo e mutável, modificando-se no decorrer do tempo e de acordo com as especificidades do contexto comunitário local. Aliás, o calango, enquanto canto em trânsito, é exemplo mais significativo de uma tradição itinerante que incorpora e se modifica de acordo com os lugares e as pessoas que perpassa. Daí ser importante o paralelo entre a cultura do calango como canto e a biologia do calango como réptil: ambos ligeiros e andarilhos, ambos num mimetismo com seus ambientes. Contudo, no caso específico de São Luiz do Paraitinga, a memória dos mestres permite conjecturar sobre a genealogia do calango, resumida da seguinte forma: 1) o calango chega na região a partir de populações nômades (tropeiros e ciganos) ou em migração (mineiros), provavelmente nas primeiras décadas do século XX; 2) o calango floresce em meio a farto manancial de cantos de desafio improvisado, especialmente a forte tradição da cana-verde; 3) o calango se desenvolve principalmente como canto de desafio e ritmo musical, jamais sendo uma dança específica (embora tenha animado bailes com danças em pares); 4) o calango incorpora a musicalidade de outros sertões, especialmente do nordeste brasileiro, que enriquece a música caipira local; 5) a tradição do calango absorveu e conviveu amistosamente com canções (calangos ou não) gravadas pela indústria fonográfica e reproduzidas no rádio. Essas conclusões encontram importantes paralelos com os estudos sobre o calango no Vale do Paraíba, realizados por Alcemir Palma, a partir do mestre calangueiro Ernesto Villela. Também na trajetória desse trovador, o calango chega a partir da migração de mineiros para o Vale do Paraíba, durante a década de 1930, e se dissemina em terreno fertilizado pela prática da cana-verde, como canto improvisado de desafio. Foi a tradição familiar nos desafios de canaverde que tornou o próprio cantador hábil no improviso e no desafio. A mesma forma poética com quadras, em esquema de rimas ABCB, certamente facilitou a incorporação do calango por esses improvisadores paulistas. Há, portanto, coincidências que fortalecem a hipótese de Alcemir Palma quando afirma: “O calango tem origem em Minas Gerais com manifestações no Rio de Janeiro e São Paulo...”. Outro elemento que reforça essa afirmação é o acervo comum de versos tradicionais nos improvisos de mestres como Ernesto Villela e Renô Martins. Há inúmeros exemplos, dentre os quais: Ernesto Villela:
138 Este viver alegre foi Deus que me presentiô na hora que eu nasci o galo preto cantô minha mãe virô e disse muito satisfeita eu estô o galo preto tá cantando meu filho sai cantadô. Renô Martins: Quem me dera meu colega Na linha do batedô No dia que eu nasci O galo preto cantô Minha mãe viro e disse: - Meu fio sai cantadô. O galo preto prenuncia o futuro dos dois grandes cantadores. Aprendido com mineiros, tropeiros ou ciganos, o calango possui o mesmo reservatório de versos que permite aproximações entre regiões como São José dos Campos e São Luiz do Paraitinga, certamente por beberem nas mesmas fontes. Eis mais uma habilidade desse canto/réptil ligeiro: percorrer culturas e espaços diversos, metamorfoseando-se constantemente, mas mantendo um manancial comum de tradição.
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19. Confluência do calango com outras expressões da cultura popular
É importante notar que o calango tem espaço em meio a outras manifestações da cultura popular local. Tais manifestações formam um conjunto de expressões que interagem constantemente, uma vez que estão arraigadas ao mesmo modo de ser caipira. Vimos como, nas festas populares, o calango era cantado num repertório que incluía músicas caipiras. Tamanha proximidade revela não apenas um instrumental e cantadores em comum, mas a afinidade musical e melódica do calango com outras modas de viola. O mesmo parece não ocorrer com danças rurais como a catira, o fandango e outras funções de bate pé. Curiosamente, nos espaços em que essas danças são executadas, o calango não tem lugar ou, como vimos no registro de Alceu Maynard de Araújo, ocorre em espaço à parte. Por outro lado, não deixa de ser interessante que muitos calangueiros da região lidem com gado e alguns sejam mestres de cavalhada. Há também coincidências de integrantes de folias de Reis e do Divino que são calangueiros, pois tais expressões populares possuem instrumental muito parecido. A influência da cultura tropeira na maneira de tocar a sanfona de oito baixos, por exemplo, pode ter influenciado igualmente as folias e o calango. Uma hipótese é de que o calango tem raízes ibérico-portuguesas em comum com a folia, a cavalhada, etc. Outras interpenetrações mais sutis podem surgir quando pensamos, por exemplo, que o calango alcança seu auge com a chegada dos mineiros, dedicados à criação de gado. A mesma relação entre os movimentos das mulas e a toada caipira é observada com relação aos tropeiros. Também em outras regiões, alguns cantos surgem vinculados à criação de gado, como o aboio e outros cantos de boiadeiros. Assim, não surpreende que o calango esteja relacionado com a cavalhada, manifestação cultural com um momento de desafio individual (com a demonstração de habilidades na arte da cavalaria). Da mesma forma, a cavalhada dramatiza a guerra entre cristãos e mouros, em evoluções que retratam diferentes batalhas, cada qual com série de duelos. Esse traço bélico e ibérico é também marcante no calango. Contudo, as interpenetrações mais profundas do calango na cultura local podem ser percebidas com relação a outros cantos improvisados de desafio da região.
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20. Outros cantos de desafio em São Luiz do Paraitinga Além do calango, há diversos outros cantos de desafio improvisados na cidade de São Luiz do Paraitinga. Além do improviso e do desafio, tais cantos se assemelham ao calango em diversos aspectos: forma melódica e poética coincidente (quadra), além da mesma posição das rimas; metáforas, temas e vocabulário similares; coincidente função social; e, inclusive, versos iguais. Assim, é de se supor que tais cantos se influenciaram mutuamente.
20.1.
Cana-verde, Vai de Roda e Embolada
A “cana-verde”, improviso que já analisamos anteriormente, propõe um desafio na mesma forma melódica e poética do calango. Inicialmente, o canto de desafio animava a dança no salão. Posteriormente, “cana-verde” tornou-se apenas uma brincadeira de roda, na qual diversos cantadores se sentam em forma circular e cada qual improvisa alternadamente seu verso – situação social em tudo similar a alguns despiques portugueses, como aquele descrito por Machado Guerreiro, por exemplo. Em São Luiz do Paraitinga, ouvi sob a designação de “cana-verde” variadas canções caipiras, dando a entender que o termo se generalizou para uma variedade de desafios – no que podemos considerar como variações da “cana-verde”. Em outras palavras, como parece estar consolidado na memória coletiva a cana-verde como sinônimo de canto improvisado de desafio, diversos cantos similares são denominados “cana-verde” quando há o improviso – ou quando “tem que tirá verso”, como se diz na gíria dos cantadores. Essa generalização parece ser facilitada pelo fato de que uma diversidade de canções caipiras animava a dança da cana-verde, ficando a expressão ligada ao desafio, independente da canção que o enseja. Os motes “Oh! Saudade!” e “Baianinha”, são exemplos dessa variedade do que os cantadores entendem por “cana-verde”. Na Festa do Pinhão, em 2015, ouvi essa toada cantada em desafio entre mestre Renô Martins e Brás Ferreira: Gosto tanto de cantá Oh! Saudade Eu sô memo nesse jeito Oh! Saudade Não nego meu naturá Oh! Saudade Vamo nóis começá Oh! Saudade Tô chegano e tô saino Oh! Saudade Aqui não posso pará
143 Cantada no contexto de um desafio calangueado, a canção se utiliza de mesma rima e até versos típicos do calango. Assim, ao ouvir o desafio imaginei que a repetição do refrão era artifício para dificultar o improviso e acirrar a disputa. Contudo, ao saber que esta toada provinha do duelo improvisado conhecido na região como “cana-verde”, não pude deixar de notar a característica marcadamente lusitana do lamento “Oh! Saudade” – fórmula fartamente vista no cancioneiro popular português, como aquele colhido, por exemplo, por Theophilo Braga que, em sua página de número 96, traz uma canção com igual expressão (“Oh saudades”). Vale registrar que a canção “Oh! Saudade” era muito praticada nas festas dos “mineiros” no bairro do Palmital – importante polo irradiador do calango na cidade. Outra variedade popular de desafio conhecido pelo nome de “cana-verde” é o seguinte: Refrão: Ai Baianinha! Você tá me enganando (bis) Você tá fazeno jeito Deu sair daqui chorano (bis) Mestre Renô: Eu vô m’embora Que dá pra mim levá? Eu levo saudade sua No caminho eu vou chorá (refrão) Ricardo: bibi água sete dia no gogó da sabiá e num vi amor gostoso sem os zóios virá Mestre Renô: Eu vô m’embora Que dá pra mim levá? ou me ame com firmeza ou deixa de me amá (refrão) Ricardo: Vô te contá um causo Causo de namorá vovó ficô banguela de tanto vovô beijá
144 A fórmula da canção “Baianinha” é a mais convencional dos desafios da cidade: um refrão coral cantado por todos os presentes, seguido de improviso individual alternado. Mantêm-se, como se pode observar, a forma poética da quadra com esquema de rimas entre o segundo e o quarto versos – características comuns ao calango. A coincidência é tão grande entre ambos os cantos, que possivelmente o calango absorveu, por assim dizer, a caninha verde. Da mesma forma que este último pode ter oferecido alicerce de tradição para o fortalecimento do primeiro, a cana-verde sobrevive na memória popular sobretudo nos desafios do calango. Entre esses cantos há o máximo de entrosamento, não se sabendo, ao certo, se o calango nasce como afluente da caninha verde, pois possuem raízes ibéricas muito parecidas, ou se é a caninha verde que é ativada na memória cultural coletiva a partir da presença do calango. Em setembro de 2015 pudemos observar o quanto o desafio do calango nasce em meio a outros tantos cantos de desafio. Ao calanguear, o cantador automaticamente rememora outras formas de disputa improvisada, deixando claras as aproximações entre eles. Podemos reunir essas formas de disputa sob a denominação Vai de Roda, como o fazem os cantadores locais. O Vai de Roda reúne uma série de canções improvisadas que guardam as seguintes características em comum: a) eram cantadas no salão; b) reuniam grande número de pessoas improvisando (“mai de dúzia”, segundo mestre Renô Martins); c) possuíam refrão fixo entoado por todos, seguido de canto improvisado alternado; d) o refrão e, inclusive, alguns versos “improvisados” era recolhidos de canções gravadas por grandes duplas da música caipira; e) e a forma poética é a quadra, com rima no esquema (ABCB). Tais cantos de roda eram praticados nessa formatação ao menos a partir da década de 1940 e 50, pelas recordações da meninice e da mocidade de mestre Renô Martins e mestre Lauro Faria. É possível que a caninha verde enquanto canto alternado de desafio tenha oferecido o manancial cultural para a proliferação desses improvisos, pois as variedades do Vai de Roda se propagam junto ao crescimento do rádio e da indústria fonográfica. Ou seja, os temas tradicionais dos desafios improvisados parecem ter cedido espaço para canções populares lançadas no rádio e no mercado de discos. Em outras palavras, os cantos improvisados de desafio mantêm sua força de tradição, mas incorporam a “novidade” da música gravada e difundida por outros meios. Aí parece haver uma primeira grande influência de processos modernos de difusão musical na cultura popular tradicional. O Vai de Roda é também cantiga de domínio público que versa sobre a dança da caninha verde. Os versos são inequívocos na descrição de uma dança de roda, executada no salão, que enleva os jovens paqueradores. É possível que tal canção tenha se popularizado na cidade na animação da dança da cana-verde nos salões.
145 Em 1956, a dupla Leôncio e Leonel gravou uma versão da canção, cuja autoria foi atribuída à Palmeira e Teddy Vieira. No improviso de setembro de 2015, foram exatamente alguns trechos dessa versão que serviram de sustentação ao improviso dos cantadores. Assim, é à versão da canção gravada, não àquela da tradição local, que os cantadores se reportam. Fica claro que a tradição local da caninha verde incorpora, por assim dizer, a influência da música veiculada pelo rádio e renova seu costume. Como a caninha verde era uma tradição local, a gravação desse tema parece ter facilitado a absorção dessa versão nos desafios da cidade. Recuperemos o refrão que oferecia o mote do improviso daquela tarde: Vai de roda, vem de roda Não se encoste na parede Que o salão é muito grande Pra dançar caninha-verde Não se encoste na parede Que a parede sorta pó Encosta aqui no meu ombro Que esta noite eu dormi só
Curiosamente, este refrão, em tudo similar à versão gravada por Leôncio e Leonel, está também presente nos improvisos de cana-verde de Ernesto Villela, recolhidos por Alcemir Palma: Eu canto a cana-verde Sou neto da minha avó Uai, uai sô neto da minha vó Não me encoste na parede Que a parede larga pó Encoste aqui no meu peito Que talvez seja mió” (94-85).
Ambos os trechos estão presentes no cancioneiro popular português, como na seguinte passagem, documentada por Theóphilo Braga, nas Ilhas de Açores, em 1869: Não vos encosteis à cal Que ella é branca, larga pó; Encostae-vos aos meus braços, Que esta noite durmo só.
146 A cana-verde, enquanto desafio e em sua forma gravada na canção Vai de Roda, é mais um exemplo da multiplicidade de formas de expressão das tradições lusitanas em terras brasileiras. Outro exemplo de canções populares difundidas pelo rádio que servem de ensejo a cantos alternados de desafio é a música Cabelo Loro, popularizada por Tião Carreiro e Pardinho. Na versão gravada, o refrão (“Cabelo Loro vai lá em casa passeá / Vai, vai cabelo loro vá cabá de me matá”) é intercalado por quadras. No canto de desafio, cada uma dessas quadras deve ser improvisada por um cantador, de forma alternada. Esse procedimento está também presente em outras comunidades calangueiras, como os improvisos de Ernesto Villela para a canção Moreninha Linda, da dupla Tonico e Tinoco, ou sua adaptação do próprio Calango da Lacraia, de Luiz Gonzaga. No caso específico de São Luiz do Paraitinga, a transformação de tais canções em desafios se dá pela própria característica da cantoria em contexto festivo. Em uma festa popular à moda dos antigos, o cantador anima o baile por horas. Durante todo esse período, o cantador depende apenas da própria memória para se recordar da letra da canção – pois as culturas de tradição oral não possuem outras formas de registro. Falhando a memória, o cantador improvisa uma quadra e a põe no lugar, para não interromper a cantoria. A habilidade de improviso, e mesmo aquela de memorizar o verso original da música, acaba por compor um aspecto valorizado e utilizado em desafio entre os cantadores. A “embolada” parece seguir esta mesma dinâmica. O exemplo que vimos, no contexto festivo de setembro de 2015, retoma a gravação de Espingarda Pá, pá, pá, pá, em 1929, pela dupla Jararaca e Ratinho. De acordo com material original redigido por Jararaca, colidido por Rosa Nepomuceno, a letra Espingarda foi criada em Alagoas, em 1916, e, conforme conta o alagoano, “inspirada em seus tempos de cangaço”: Espingada Pa, pa, pa, pa Faca de ponta Ta, ta, ta, ta Jacarecica, Ponta Verde e Mato Grosso Levada, Cambona e Pôço Bebedôro, Jaraguá; Coquêro Seco d’outro lado da Lagôa Se atravessa na canôa Camarão é no Pilá Faca de ponta
147 Espingarda e carabina Minha faca já tá fina Só de tanto eu amolá; Minha espingarda Quando tá azoretada Vae sóninha prá caçada E vorta sem dispará Fegué prá qui E arrepare o companhêro Vou lhe dá um granadêro Sem coronha, sem fuzi, E pra você podê segui Dou-lhe mais uma espingarda E lhe puxo pra caçada Da mata do Calumbí – oí Minha espingarda Tem a boca envenenada De matá onça pintada Caititú-Tamanduá – oí Eu dei um tiro Na cabeça da guariba A bala passou pra riba Matou dois Maracujá Exatamente essa última quadra oferece a fórmula da “embolada” praticada em São Luiz do Paraitinga: Ricardo: Eu dei um tiro na cabeça dum jumento Que andava muito lento E não queria trabalhá Mestre Renô: Eu dei um tiro Na cabeça duma véia Catingô fedô de téia Que eu não podia guentá Ricardo: Eu dei um tiro Na cabeça duma paca Que saiu pela culatra E foi a vaca acertá Mestre Renô:
148 Eu dei um tiro Na cabeça do cavalo O bicho caiu num valo E foi morreno devagá Ricardo: Eu dei um tiro Na cabeça foi dum porco Meu amigo ficou louco Pra costela nóis assá Mestre Renô: Eu dei um tiro Na cabeça duma aranha O bicho da perna sanha Pá larga de me atentá Ricardo: Eu dei um tiro Na cabeça de um defunto Que juro foi de pé junto Que ia vortá pá me pegá Mestre Renô: Eu dei um tiro Na cabeça do gambá O bicho catingudo Larga mão de me atentá
Mestre Renô Martins conta que os cantadores tocavam a “embolada” com o mesmo instrumental dos outros gêneros musicais (viola, sanfona, pandeiro), porém aceleravam o andamento da música (a velocidade), fato que torna o improviso ainda mais difícil de ser criado e mesmo cantado. O ambiente da embolada era o mesmo do calango: ambos improvisos eram cantados e tocados pelas mesmas pessoas. Não apenas os cantos improvisados de desafio inspirados nas canções populares gravadas guardam semelhanças com o calango. Este último se prolifera em meio a uma série de cantigas improvisadas tradicionais, como veremos a seguir.
20.2 . Dança do Caranguejo, Dança do Sabão, Jongo e Brão Outro canto improvisado, entoado em disputa, com a mesma melodia, forma poética e composição das rimas do calango, é a cantiga que acompanha a popular Dança do Caranguejo. Nesta dança, que dispõe os participantes em fila, entre um passo e outro, dois cantadores se
149 desafiam em quadras improvisadas, em tudo similar ao calango, a não ser pela rima não obedecer a nenhuma linha (ou terminação) pré-determinada. Vejamos um exemplo:
Refrão: Quando é mão, é mão, é mão Quando é pé, é pé, é pé No baião da Mariquinha Caranguejo peixe é Mestre Renô: No arto daquele morro Tem uma pipa avoando Não é pipa, não é nada É meu bem que vem chegano (refrão) Ricardo: Eu não quero me casar Já tomei meu parecer Boi solto se lambe todo Preso já não quer comer (refrão) Mestre Renô: Minha mãe me ensinou Como é que se namora Arregalar bem os olhos E por a língua pra fora (refrão) Ricardo: Ribeirão que corre manso Corre meio maneiroso Se namoro fosse crime Eu já era criminoso (refrão) Mestre Renô: Arlecrim na beira d’água Treme, treme mas não cai Eu convido a sua nora Pra ser nora do meu pai (refrão) Ricardo:
150 A maré que vai e vem No meio faz o remanso A pessoa apaixonada Coração não tem descanso (refrão) Mestre Renô: Eu perdi o meu anel No buraco do tatu Quem acha torna a me dá Meu anel da pedra azul (refrão) Ricardo: Eu não gosto de muié magra Que tem perna de peru Eu prefiro muié gorda Que tem coxa de chuchu (refrão) Mestre Renô: Eu joguei minha galinha No meio da bananera Os lobo já gorô tudo E o pinto saiu de carrera (refrão) Ricardo: Rapariga me dá um beijo Um beijinho a quem tem fome Mal criação de rapariga É dormir na cama sem home (refrão) Mestre Renô: Eu queria ser bodoque Naquele pau .... Pá tirá uma pelota Naquele zóio arregalado (refrão) Ricardo: Esse seu amor, menina É um amor bandoleiro Pega aqui, larga acolá Nada tem de verdadeiro
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(refrão) Mestre Renô: No arto daquele morro Tem uma cadera de vidro Que é pra mim sentá com ela E ela sentá comigo (refrão) Ricardo: No arto daquele morro Tem portera de batê E tem moreninha linda Que é pra mim, não é procê (refrão) Mestre Renô: Ia indo pro caminho Encontrei com uma coruja Eu pisei no rabo dela Me chamou de cara suja (refrão) Ricardo: Joguei meu chapéu pra cima Sem saber aonde ia O danado foi caí No colo de quem eu queria (refrão) Mestre Renô: Joguei meu chapéu pra cima Pra ver onde caía Caiu no colo da moça Isso memo que eu queria2
Vê-se que, em um calango na chamada “linha da carretia”, essa última estrofe caberia perfeitamente. Mais do que refletir sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, é importante salientar o quanto o calango e o desafio durante a Dança do Caranguejo acabam por
2
Há, curiosamente, um samba de roda de domínio público no Recôncavo Baiano, cantado nessa versão por Dona Edith do Prato, de Santo Amaro, com versos muito semelhantes: “Eu joguei um limão verde / por de trás da sacristia / o limão caiu no padre / e no moço que eu queria”. Mesmo tema, mesma quadra com rimas terminais em “ia”, entre o segundo e o quarto versos!
152 se fortalecerem mutuamente, no mesmo momento em que engrandecem a tradição popular oral da região. As mesmas semelhanças entre o calango e a Dança do Caranguejo poderiam ser estendidas a uma variedade de outras canções populares, como as cirandas e quadrilhas. Porém, vejamos um ponto de jongo, gravado em minha memória durante uma grossa jongada da comunidade do Tamandaré, em Guaratinguetá:
Joguei meu chapéu pra cima meu chapéu parou o ar rezei a Nossa Senhora meu chapéu tornou a voltá Na mesma época em que troquei com mestre Renô Martins os versos acima, na Dança do Caranguejo, brincava o jongo semanalmente no Grupo de Estudos Jongo Crioulo, de Taubaté, e cantava o ponto acima frequentemente. Exatamente a mesma quadra é cantada por Brás Ferreira em uma peleja comigo no calango de setembro. Ora, a mesma quadra é praticada no jongo, no calango e na Dança do Caranguejo! Tal exemplo esclarece que tais cantos de desafio, embora de procedência distinta e muito diferentes entre si, partilham de um mesmo acervo da música popular da região do Vale do Paraíba. O jongo, canto improvisado de desafio oriundo do povo afrodescendente, possui ritmo, melodia, instrumental e forma poética muito distintas do calango. Analisando uma jongada, Lavínia Raymond pôde afirmar: “Nenhuma regra como se vê. Nenhuma uniformidade, nem na forma poética, nem na forma melódica. Nem se quer há preocupação de rima, que aparece muito raramente”. A melodia do canto é tão variável quanto o número de versos, sendo ambos improvisados com muita liberdade pelo jongueiro, que não tem qualquer obrigação em termos de rima. Porém, é possível que o calango no Vale do Paraíba tenha sido muito influenciado pelo jongo. Por exemplo, num verso do calango registrado por Alceu Maynard de Araújo, lemos: “embaúba é pau ôco, / lugá de cobra morá”. A presença do vegetal com essa conotação é característica do jongo no Vale do Paraíba, num ponto em que o coronel (próximo da cobra, no imaginário popular) é assemelhado a embaúba (exatamente por ser tronco fraco, pois oco): “Com tanto pau no mato / embaúba coroné” – com variações, como aquela documentada pelo próprio Alceu Maynard de Araújo na cidade vizinha de Cunha (“Tanto pau de lei / que tem no mato / embaúva é coroné”). Num canto e noutro a mesma imagem, com conotação similar. A forte influência do jongo sobre o calango no Vale do Paraíba pode ser percebida na seguinte passagem de Francisco Pereira da Silva: No Vale do Paraíba (lado paulista) nossa peleja poética [o calango], geralmente, assume duas direções: - Visaria: versos amistosos, líricos
153 ou simplesmente jocosos (...) – Demanda: versos caracterizados pela agressão verbal e que atingem o clímax da violência no Jongo, através do chamado “ponto de ingurumento” Ora, em todo o Vale do Paraíba, os termos “visaria” e “goromenta” (corruptela de argumento) são usados para se referir aos desafios do jongo. Em São Luiz do Paraitinga, o próprio Alceu Maynard de Araújo, em seus estudos sobre o jongo, fala das “linhas” do jongo utilizando as mesmas expressões: “Há dois tipos de linhas nas quais se pode cantar o ponto: de ‘visaria’ e de ‘ingoromenta’”, acrescentando que a “disputa começa com ponto na linha de ‘visaria’ e pode passar para a ‘ingoromenta’”. Ao comentar a utilização desses termos para se referir ao calango, Francisco Pereira da Silva, um grande estudioso desse canto no Vale do Paraíba, evidencia como os calangueiros têm referências nos desafios de jongo, até para nomear suas modalidades de disputa. Contudo, outra observação do folclorista é importante: a semelhança entre jongo e calango está na contundência e agressividade do desafio. Cantos de desafio como a cana-verde, a Dança do Caranguejo ou o brão, jamais estabelecem um duelo franco e aberto, ficando o termo disputa restrito a habilidade dos cantadores em improvisarem seus versos – ou, no caso do brão, em decifrarem o enigma proposto pelo adversário. Tais cantos estão também tão entrosados que algumas vezes se confundem. Os exemplos são numerosos. O verso tradicional do calango, cantado por toda parte, “sô fio da cobra verde / neto da cobra corá”, é similar a um ponto de candombe, coletado na comunidade mineira dos Arturos, por Núbia Gomes e Edimilson Pereira, durante a década de 1980: Rê, rê, rê, hum Eu sô fio da cobra verde Neto da cobra coral
Vejamos também um ponto de jongo cantado por Luis Caié, coletado por Alceu Maynard de Araújo: ‘Treis dia anti Comecei a imaginá, Perdi meu par de anguaia, Mai truxe eu saravá’ Luis Caié Filho, pegou a linha de seu pai cantando outro [ponto] de ‘visaria’ ficando ‘emparelhado’ com ele: ‘Meu saravá eu truxe
154 Na bandeirinha, etc.” Veja como a resposta ao primeiro ponto de jongo inicia com a repetição de seus últimos versos, como praxe do calango. Além disso, trata-se de uma quadra com rimas entre o segundo e quarto versos, rimas terminadas em “á” – forma poética em tudo equivalente ao calango, em sua “linha do A”. Um dos últimos registros do jongo em São Luiz do Paraitinga, realizado por Paulo Dias, durante a Festa do Divino de 1992, traz o jongueiro Mestre Joviano cantando o seguinte ponto: Enquanto abóbra ‘madurece Vamo comeno cambuquira É um ponto de jongo seminal para o destino desse desafio no município, pois fica clara a dificuldade de renovação do jongo, seja pelos problemas sociais que os jongueiros enfrentam (pobreza, pois se come cambuquira por fome, não tendo tempo de deixa-la amadurar) seja pela ausência de jongueiros velhos com os quais travar desafio (Mestre Joviano não cantava entre jongueiros, mas com conhecedores de jongo, esses últimos assemelhados a meros brotos, comidos pelo jongueiro velho e maduro). Ora, tal ponto de jongo parece recolher versos consagrados da tradição do calango, como aquele recolhido por Francisco Pereira da Silva: Quando eu vim da minha terra, Quando eu vim de lá pra cá Larguei meu pai passando ruim Minha mãe passando má E comendo cambuquira Ante da abobra madurá Comendo pêxe-cobra Bebendo água de sá. Não apenas o verso é similar ao ponto de jongo cantado por Mestre Joviano, mas o tema é bastante semelhante. O jongo atualmente praticado pelo Grupo Orgulho Caipira, no município de Lagoinha, que o calangueiro Mestre Amarildo denomina como “jongo caboclo”, possui como característica exatamente uma prática comum no calango: iniciar a improvisação repetindo o último verso do adversário. Mesmo o calango cantado por Mestre Amarildo, no documentário Calangos e Calangueiros, “se me dé licença eu chego / se não dé torno vortá”, é similar a um ponto de jongo cantado por Benedito, jongueiro nascido em São Luiz do Paraitinga, mas, desde a juventude, morador da cidade de Taubaté:
155 Eu venho de longe venho tombatombando se me dé licença ou chego se não dé já tô vortando O pedido de licença para o dono da casa, para a povaria ou para os demais cantadores é traço comum em diversas expressões da poesia popular brasileira, como o é nas cantigas tradicionais portuguesas. Está nas folias, de Reis e do Divino, no canto do brão (quando os cantadores chegam à casa do “patrão”), na “chegança” das congadas, no calango, no jongo, no vissungo, no candombe e mesmo no samba de roda3. Com todas essas semelhanças, novamente é preciso dizer: embora o jongo e o calango sejam cantos marcadamente diferentes, isto não impede que se interpenetrem, pois partilham o mesmo imaginário local, reservatório de tradição oral e são, frequentemente, cantados pelas mesmas pessoas. Mestre Renô Martins é um grande exemplo: calangueiro, cantador de Brão, animador da Dança do Caranguejo e participante de rodas de jongo. Nos registros feitos por Alceu Maynard de Araújo e Carlos Rodrigues Brandão, os cantadores de brão durante os mutirões rurais eram os mesmos que cantavam calango na festa noturna. Durante um mutirão de Brão, os irmãos José Bento Gouvêa (J) e Antenor Bento Gouvêa (A), trocam os seguintes versos: J – Hoje neste mutirão com nada m’imbaraço os cantadô que tão aqui trago prêso em baixo do braço A – Prá vim neste mutirão eu torci o meu bigode, pode ajuntá teus companhêro que comigo ocê num pode Os mesmos cantadores na festa noturna se desafiam no seguinte calango:
A – Meu amigo Zé Bento, ocê tem feição mais é de bode, não adianta rodeá cepo, que comigo ocê num pode J – Oai, oai, comigo ocê num pode, 3
Num samba de roda cantado por Nega Duda, sambadora nascida em São Francisco do Conde, no Recôncavo Baiano, se ouve: “Dona da casa me dê licença / Me dê seu salão para vadiá / meiahora só /eu já vou já” – pedido de licença comum em outras variações de sambas de roda.
156 ocê tá muito feio, parece o Reis Herode Ora, os mesmos cantadores, na mesma forma poética e, inclusive, com um verso igual (“que comigo ocê num pode”). Essa clara aproximação do brão e do calango se dá por um traço de porfia satírica e bem-humorada, comumente associada ao calango, mas presente também no jongo. No romance Til, de José de Alencar, que se passa no ano de 1846, em fazendas do interior paulista, se descreve o seguinte canto de escravos no eito: Do pique daquelle morro Vem descendo um cavalleiro Oh! Gentes, pois não verão Este sapo n’um sendeiro? Após o improviso, os escravos caem na gargalhada, ao que o romancista comenta: “Têm os pretos o costume de entresacharem nas toadas habituaes, seus improvisos, que muitas vezes encerram epigrammas e allusões. Bem desconfiava pois o feitor de que a tal cantiga bolia com elle, e o sapo não era outro sinão um certo sujeito bojudo e roliço, de seu intimo conhecimento”. O improviso sarrista que assemelha o gordo feitor a um sapo pode bem ser aproximado do calango. Enfim, da mesma forma que os cantos de desafio influenciam o calango, versos do calango podem ser encontrados em cantos de brão e rodas de jongo, deixando clara a estreita relação entre estes cantos. Muito embora façamos comumente uma nítida distinção entre a variedade de cantos populares (calango, jongo, brão, dança do caranguejo, candombe, vissungo, samba de roda, etc), o cantador se faz valer dessas canções como parte de um mesmo acervo tradicional, à disposição de seu improviso.
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21. Função social dos cantos de desafio O cantador exerce importância crucial na vida comunitária. Além de seu papel mais evidente na diversão das festas, seus cantos atualizam a memória coletiva e mantêm vivas as tradições populares. Por vezes, traz na voz causos, informações e mesmo reflexões sobre acontecimentos cotidianos, com grande influência na opinião pública. Outras vezes, suas crônicas cantadas têm tom de aconselhamento, influenciando a moral que rege as relações na localidade. Ao cantar, todo cantador cria a própria vida da comunidade. É certo que essas características se aplicam a todo cantador em culturas tradicionais. Porém, nos desafios entre calangueiros, a disputa versa, algumas vezes, sobre quais as formas de conduta são mais adequadas à comunidade. Vale a pena ver um exemplo desse duelo moral. Numa peleja com mestre Renô Martins, descrita em detalhes no calango de setembro, cantei os seguintes versos: Ricardo: Sô caboco perigoso Na linha do Barandão Quando falo treme terra Inté rebenta riberão Faço moim rodá sem água Monjolo toca sem mão Panela ferve sem fogo Preu cozinhá meu feijão
Tais versos costuram o imaginário viril e aguerrido do sertanejo e a potência mágica de seu canto, em fazer vibrar as forças da natureza. O último verso, contudo, descreve o caboclo em uma atividade incomum ao papel do homem na sociedade patriarcal rural: ou seja, cozinhando feijão. Exatamente essa deixa foi motivo de chacota pelo adversário, em um improviso mais adiante: Mestre Renô: Quem dera meu colega Dentro da linha do dão Esse mundo como está Eu num sei qualé a razão Muié casa com muié E vira sapatão E home casa c’o home E vai mexe o feijão
159 O improviso de mestre Renô retoma um tema tradicional do calango: a revelia do mundo. É mais comum ouvi-lo cantando tais versos na linha da carretilha: sobe ao céu, onde encontra Santa Luiza e descreve a revelia do mundo (casamento entre familiares que chega ao absurdo da eminência do matrimônio entre pai e filha). A revelia do mundo é a confusão de valores e a transgressão de regras morais tradicionais (casamento entre membros da mesma família). Tal transgressão chega ao cúmulo quando arrisca ferir o tabu do incesto, forte interdito comum a diversas culturas. Nessa linha de raciocínio, para mestre Renô Martins, o casamento entre mulheres é um absurdo dessa envergadura, ou seja, a quebra de um forte valor comunitário. Da mesma forma, a revelia do mundo se revela no casamento entre homens, pois fere os princípios de virilidade atribuídos ao homem nas comunidades tradicionais, com papéis muito bem definidos: homens trabalhando fora de casa (na lavoura, no comércio, etc.) e mulheres trabalhando dentro (cuidado com os filhos e com a casa). Nesse conjunto de valores, a atividade culinária é restrita à mulher e o homem que cozinha leva a pecha de homossexual. O improviso canta a vida cotidiana. O ato de cozinhar feijão é uma realidade de meu diaa-dia, pois sou eu quem cozinho para meus filhos e para minha companheira. Trata-se de uma divisão das atividades domésticas que reflete o contexto contemporâneo e a reviravolta nos papéis de pais e mães, homens e mulheres. Contudo, tal comportamento é reprovado na comunidade rural em que o desafio teve lugar, pois os versos de mestre Renô foram ovacionados, com tamanho entusiasmo, que sequer tive a possibilidade de responder à sua provocação. A reação da audiência define não apenas o desfecho da peleja, mas opera como um coletivo democrático que escolhe (vota, se quisermos) quais dos valores apresentados pelos cantadores devem reger a vida comunitária. Assim, se a reflexão sobre os valores comunitários é tônica de todo canto popular, nos cantos de desafio ela parece mais explícita e com forte participação popular. Há também outras funções sociais específicas aos cantos de desafio. As comunidades rurais em que floresce o calango são pautadas em equidade das condições vida. Embora provenham de famílias mais ou menos abastadas, com propriedades mais ou menos extensas e com posse de animais mais ou menos numerosa, não há grandes desigualdades sociais. Todas as pessoas da comunidade desenvolvem trabalhos similares, na lavoura ou na criação de gado, alimentam-se de maneira similar, tem acesso aos mesmos bem culturais e fortalecem juntos uma forma de vida regida por uma moral em comum. Em contextos dessa natureza, a comunidade tem grande força e os laços de compadrio são fundamentais para a reprodução da vida social.
160 Carlos Borges Schmidt, estudioso da vida rural da cidade durante a década de 1930 e 1940, observa as dificuldades econômicas enfrentadas pelos pequenos proprietários rurais e a importância da união dos trabalhadores em mutirões cooperativos, seja para construir uma casa, seja para manter uma estrada, seja para realizar a limpeza de pastos e demais atividades que envolvam grande número de trabalhadores. A partilha de valores comuns e o pertencimento a uma comunidade são grandes suportes na constituição da identidade pessoal. Contudo, a identidade individual é constituída também por elementos de diferenciação em relação ao grupo social. Cada pessoa, tanto quanto busca um vínculo comunitário e uma identidade coletiva, busca também formas de se diferenciar dos demais e construir para si atributos específicos. Se o pertencimento comunitário exige a solidariedade para sustentar traços em comum, a identidade individual exige um espaço de tensão ou até de competição e conflito com os demais; pois, é exatamente por não ser comum que um traço específico é diferencial para a identidade individual. A própria comunidade oferece as formas de ritualização dessa competição e abre espaços para o desenvolvimento de habilidades pessoais. O mutirão rural é um grande exemplo: a força da solidariedade, na união cooperativa dos trabalhadores em atividades em comum, convive de forma contraditória com a franca competição entre os lavradores para decidirem quem é o melhor. A competição é acirrada (alguns trazem dizeres na enxada, como: “comigo ninguém trinca”) e todos se esforçam para serem os mais rápidos e eficientes trabalhadores rurais. O vencedor, como bem verificou Alceu Maynard de Araújo, é considerado o “salmorento”, a quem é dada a prioridade no oferecimento de flores as mulheres solteiras presentes; o mais lento é chamado de “caldeirão”, a quem cabe as tarefas mais árduas, menosprezadas por todos. O “salmorento” é quem inicia o canto de desafio chamado brão, cantoria que prossegue a ritualização da competição e os processos de distinção social. Ao cantar o brão ou o calango, a pessoa busca uma forma de diferenciar-se dos demais, de ser reconhecida por habilidades específicas, de possuir uma reputação valorizada pela comunidade. Nesse sentido, o estudioso dos repentistas nordestinos, João Miguel Sautchuk, observa como, nos duelos, está em jogo a própria subjetividade do cantador: sua imagem pública, sua reputação, seu lugar social. Assim, os cantos de desafios são rituais comunitários que promovem processos de constituição das identidades individuais, em tensão com os traços em comum da vida rural. Como mecanismos de individuação, os cantos de desafio são formas de definir o papel de uma pessoa na coletividade. Um cantador admirado possui maiores possibilidades na
161 conquista de namoros e na influência dos comportamentos de seus compadres. O prestígio social adquirido em decorrência do canto o torna respeitado, e também temido, pelos demais. Em alguns casos, nota-se a confluência entre o cantador condecorado e a liderança comunitária. Os cantos de desafio são formas de as pessoas medirem suas forças e entrarem em consenso com relação àquele mais poderoso. O cantador vitorioso influencia os demais em outras esferas de vida, como se o respeito adquirido no canto refletisse e se estendesse na vida cotidiana. Nesses casos, o canto de desafio é uma esfera social de formação de lideranças comunitárias, com proeminente papel político no bem-estar da coletividade. Esse ritual, contudo, tem outra faceta fundamental: institui um regime de exceção, em que as normas comunitárias são momentaneamente suspensas e as pessoas desenvolvem comportamentos que são reprovados no cotidiano. O calango é um grande exemplo da suspensão dos laços de fraternidade e compadrio, concomitante a instauração de um combate aberto em que vale tudo para ferir e derrotar o adversário. Xingamentos, agressão verbal, licenciosidade e posturas violentas, reprimidas no cotidiano da vida rural, são ali não apenas bem-vindas como seminais para um desafio calangueado. É um espaço ritualmente controlado exatamente por permitir a descarga de tensões e de desavenças, que, sem esse espaço de exceção, poderiam fluir no cotidiano e prejudicar a vida comunitária. É espécie de válvula de escape que incentiva o desenvolvimento de comportamentos inerentes ao sujeito social, num espaço de satisfação momentaneamente permitido. Assim, o indivíduo pode retornar ao espaço regulado do cotidiano, livre de tensões nocivas às relações sociais de solidariedade. O espaço marginal em que o calango muitas vezes opera, à parte dos festejos principais no salão, talvez seja uma das formas de favorecer esse regime de exceção. É a busca de local mais reservado em que os calangueiros se sintam à vontade para ousar no vocabulário, no comportamento agressivo e em outras expressões que poderiam estarrecer alguns membros da comunidade, exatamente por romperem suas formas habituais de falar e de se expressar. O estudioso dos duelos poéticos entre os trovadores medievais, José D’Assunção Barros, faz o seguinte comentário sobre o contexto histórico em que os cantos de desafio se fortalecem:
A Idade Média apresentou-nos uma sociedade fundamentalmente guerreira. Deve-se entender, contudo, que a guerra, os combates, e o espírito de enfrentamento foram paulatinamente se sofisticando e assumindo as mais diversas formas. A ferocidade da Alta Idade Média, cantada e declamada nas canções de gesta, foi cedendo lugar a uma luta mais sofisticada que incluía, além da violência e do arrojo, expedientes mais sutis e sofisticados. Astúcia, disfarce, estratégia,
162 capacidade de negociar com o inimigo... estes expedientes se tornam indispensáveis. É no contexto de uma sociedade guerreira, em que as desavenças eram resolvidas em sangrentos duelos, que surgem outras formas mais sutis de disputa entre desafetos: a “disputatio”, desafio entre mestres e alunos nas universidades; e as “tenções”, embates entre poetas, nos meios cortesãos. São sobretudo essas “tenções” entre os trovadores medievais que formam o alicerce poético e social das cantigas de desafio contemporâneas. Como alguns cantos de desafio, o calango é ritualização da violência. Aliás, o calango é o canto de desafio que mais explicitamente representa um combate violento. O gestual agressivo e ameaçador, com dedos na cara e teatralização de tapas e agressões físicas; as palavras mais afiadas, com xingamentos e ofensas; a ridicularização aberta do adversário, seus traços físicos e seu modo de ser; a expressão aberta da força de um e o escancarar a fraqueza do outro; a própria guerra travada é tematizada abertamente nos versos. É uma verdadeira violência verbal que lança mão das armas mais poderosas. Há uma fronteira muito tênue entre essa agressão representada e a agressão de fato. O historiador Jaime de Almeida relata uma notícia do jornal O Porvir, do ano de 1916, em que um tio fere um sobrinho a facadas durante um canto de desafio. Lavínia Raymond ouve de um jongueiro luizense que um cantador fora morto a facadas em decorrência de uma rixa iniciada na roda de jongo. Às vezes, os ânimos exaltados no combate verbal abandonam o verso e saem no braço. No calango luizense há registros de cantadores que brigam de fato, embora seja mais comum um cantador encerrar o desafio quando percebe que seu ódio redundará em confronto físico. Novamente, como regime de exceção, cantos de desafio como o calango permitem às pessoas descarregarem desafetos e pelejarem verbalmente, num ambiente ritualmente controlado que tenta evitar que a desavença redunde em briga no cotidiano e prejuízo maior para a vida da comunidade.
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22. A renovação da tradição do calango
As comunidades rurais são o celeiro da cultura tradicional. As expressões da cultura popular fincam raízes no modo de ser caipira. As transformações contemporâneas dessa cultura rural tradicional implicam nos dilemas da renovação de manifestações como o calango. Desde a sua fundação, a cidade de São Luiz do Paraitinga, constituiu sua cultura no encontro entre etnias – encontro que muitas vezes redundou em confronto. Segundo um historiador da década de 1930, Ignácio Marcondes César, as bandeiras, organizadas em Taubaté, para adentrar os sertões do Paraitinga previam “abater os índios”. Guaianazes, Puris e Tamoios foram, de fato, abatidos e dizimados, outros assimilados pelo jugo do colonizador. Melhor sorte não tiveram os escravos africanos, presentes desde a fundação da vila, que chegaram a representar grande contingente populacional em meados do século XX. Escravizados nas senzalas, trouxeram grande bagagem cultural que, inclusive, contribuiu muito em sua luta constante por liberdade, como atestam as inúmeras revoltas e formação de quilombos que acompanham a vida da cidade. Dessas relações de tensão entre portugueses, africanos e indígenas, além da constante presença de tropeiros e ciganos, formou-se a cultura caipira. É questionável, inclusive, o uso do termo tradição, se por essa se entende algo constituído há muito tempo que se mantém de forma mais ou menos inalterável no decorrer das gerações. Uma tal tradição não existiu em São Luiz do Paraitinga, mas sim um saber tradicional que acompanhou as transformações históricas da cidade e soube renovar-se constantemente, sem perder sua força comunitária. No pós-abolição e com a crise gradativa da economia cafeeira, houve grandes trocas culturais que acompanharam a miscigenação da população luizense rural. Num momento de grandes dificuldades econômicas, integrantes das diversas etnias quase que se igualaram na condição de pequenos proprietários rurais, desenvolvendo atividades muito similares, relacionadas a agricultura de subsistência e a criação de animais. Nessa primeira metade do século XX, consolida-se grande parte das expressões da cultura popular: o jongo, criado pelos afrodescendentes no Brasil, dissemina-se entre as outras etnias e, inclusive, gera cantos marcadamente caipiras, como o brão; os puxirões, o catira e a dança do caiapó dos ascendentes indígenas ganham grande popularidade; a musicalidade tropeira irradiou por todos os lados e mesmo as expressões dos ciganos movimentaram-se livremente; as festas, os santos, as folias e cavalhadas de extração lusitana são praticadas por todos. Enfim, trata-se de momento de grande fermentação cultural.
165 A maciça migração mineira a partir da década de 1930, como vimos, trouxe grandes contribuições para a cultura popular local, sendo o calango justamente um grande exemplo dessa incorporação da tradição da região de expressões provenientes de outras terras. Esse contexto sofre transformações cruciais, a partir do final da década de 1970, momento em que a cidade recebe o título de “a mais brasileira das cidades paulistas”, concedido pelo mesmo CONDEPHAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico Artístico e Turístico do Estado) que tombaria o centro histórico como patrimônio arquitetônico e cultural, em 1982. Abria-se as brechas para o mercado turístico, opção da cidade diante da crise econômica vivida no período. Data do início dos anos 1980 a invasão do ambiente rural por produtores de eucalipto, que trouxeram a mercantilização das relações no campo. O crescimento gradativo da atividade turística, que possui como marco o ano de 2002 e o título de Estância Turística concedido à cidade, traz grandes modificações na vida da população. Por um lado, as expressões da cultura popular passam por processo de folclorização e adquirem forte valorização por visitantes. No limite, tais tradições são transformadas em “atrativo turístico” e ganham outra conotação para a população: onde antes essas manifestações tinham forte valor de uso cotidiano pelas comunidades, na partilha da vida em comum, agora ganham um valor de troca na atração de turistas e ingresso na indústria de entretenimento. Por outro lado, os turistas trazem outros comportamentos que modificam substancialmente o modo de vida tradicional rural. A paisagem das estradas vai ganhando forte teor turístico, com enormes placas divulgando o turismo rural, com cachoeiras equipadas para receber adeptos de esportes de aventura ou com grande tráfego de praticantes de cicloturismo. A frequentação de pessoas de outras cidades nos meios rurais acaba sendo mais invasiva com a multiplicação de casas de veraneio, habitadas apenas aos finais de semana, por moradores fantasmas – mais afeitos ao isolamento (a paz do campo) do que ao convívio comunitário. Assim, as comunidades rurais sofrem grandes modificações e perdem suas feições mais tradicionais. A lógica mercantil também invade as relações no campo, com a mecanização de processos produtivos e especialização da mão-de-obra. Onde antes havia companheiros que dominavam o mesmo trabalho de enxada, agora há uma distinção entre trabalhadores que dominam diferentes formas de trabalho. Onde antes havia o compadrio e o mutirão cooperativo, agora há relação mercantil assalariada. Assim, junto com as toras de eucalipto a indústria papeleira ceifa as raízes da cultura rural. A renovação de tradições populares deve ser analisada dentro desse contexto histórico. Com a especialização da mão de obra rural, passa a haver maior desigualdade social entre as famílias, além de minguarem as formas de trabalho cooperativo, como os mutirões
166 rurais. Se cantos de desafio como o calango se fortalecem em comunidades com condições de vida equitativas, exatamente por serem vetores de diferenciação social e formação de identidades individuais, essa função social se enfraquece. O processo de subjetivação e prestígio social passa a ser filtrado pelo mercado: seja ele o mercado de trabalho e a valorização da profissão da pessoa, seja seu poder aquisitivo de consumir mercadorias. Em outras palavras, o prestígio social não advém do trabalhador mais ligeiro na enxada, ou do cantador mais hábil, mas daquele que possui um trabalho valorizado socialmente e dinheiro para acessar bens de consumo. Mestre Renô Martins costuma dizer que com a chegada da energia elétrica se acabaram as assombrações na região. Mula sem cabeça, saci pererê e outras lendas deixaram de ser vistas, com a iluminação elétrica. É uma metáfora importante de como os processos de modernização alteram a percepção que as pessoas têm da realidade. De nossa parte, diríamos que com os Djs, as festas animadas com cantadores deixaram de existir. É ainda mestre Renô Martins quem afirma: antes da possibilidade de reprodução de um disco ou CD, o canto ao vivo reinava soberano e o cantador convidado para animar a festa cantava por horas a fio. Hoje, reproduz-se amplo gênero de músicas e se reserva espaço limitado ao cantador. Conversando com o sanfoneiro Brás Ferreira sobre a transmissão do calango às novas gerações, ouvi-o dizer que a música é um grande legado da família: seu pai animava festas, calangueava e foi quem lhe deu a primeira sanfona e lhe ensinou a tocar. Perguntei sobre o interesse de seus filhos no instrumento e ele apontou para o palco da festa onde estávamos: uma grande mesa de som, ao lado de um computador, com enormes caixas amplificadoras. Era seu filho quem manipulava todo o equipamento e animava as festas, com toda aquela tecnologia. Também a função dos cantos de desafio na reflexão sobre os comportamentos, valores, modos de falar e de ser das comunidades entra em confronto com a massificação e homogeneização das subjetividades levadas a cabo pela televisão. Não é mais a via pessoal de comunicação oral que dissemina as informações, mas o telejornal; não mais o cantador tem importante papel na formação da opinião pública e na constituição dos valores e comportamentos da coletividade, mas a telenovela. Na gravação do Projeto Mestre Navegantes (2010), mestre Renô Martins confidencia seu sonho em compor mais modas caipiras. Afirma que fez muitas canções em tempos idos, mas agora não consegue mais criar. Explica que antes compunha toadas sobre os acontecimentos cotidianos da comunidade, mas agora “acontece tanta coisa” que já não tem inspiração. Tratase de depoimento emblemático sobre a perda do papel do cantador em propagar informações, registrar casos memoráveis e influenciar na opinião pública. As comunidades rurais, com pouco
167 trânsito de pessoas de outras regiões e informações de outras localidades, fortaleciam a função do cantador como porta voz dos acontecimentos e modos de vida da região. Com o bombardeio de informações pelos meios de comunicação de massa, o cantador observa minguar sua função social – e sua inspiração. Outros tantos fatores poderiam ser analisados, no sentido de demonstrar os fortes impactos dos processos sociais contemporâneos nas comunidades tradicionais rurais que, como dissemos, são o berço da cultura popular local. Porém, a pergunta crucial é a seguinte: ora, perdendo suas funções comunitárias com o processo de modernização da cidade, qual o espaço de renovação de expressões populares como o calango? Uma das possíveis respostas está na absorção das manifestações populares pelos mercados de entretenimento e de turismo, como “folclore” ou como “atrativo turístico”. Não é de se subestimar a força desses mercados na renovação das tradições populares da região. Por um lado, há indiscutível valorização da expressão cultural e exaltação de seus praticantes, sendo, portanto, fonte de prestígio e diferenciação social. Por outro lado, tais manifestações possuem, assim, inúmeros momentos festivos para serem realizadas, aumentando o número de praticantes. Não cabe aqui um julgamento moral, se tal renovação é boa ou má, mas apenas notar esta possibilidade (que é vista pelos calangueiros como fonte de renovação). A questão é polêmica: para alguns, esta renovação como folclore e atrativo turístico faz com que a manifestação popular deixe de existir enquanto tradição comunitária, e sobreviva vazia de vida como mero espetáculo; para outros, essa forma de renovação é aquela que se apresenta no contexto histórico atual e não pode ser descartada, sob pena de desaparecimento da referida expressão popular. Os registros do calango em 2007 e 2010 foram arranjados pelos respectivos produtores de materiais audiovisuais pelo interesse em relação ao calango como expressão popular. Não duvidamos da importância dessas iniciativas na documentação do canto e mesmo no incentivo à sua prática. Contudo, prevalece o interesse de pessoas externas à comunidade, sendo executado um desafio calangueado mais como demonstração ou apresentação do que como força espontânea. Entretanto, essa não é a única fonte de renovação do calango. Na comunidade do bairro da Cachoeirinha, principal polo atual do calango em São Luiz do Paraitinga, há prática do calango nas festas comunitárias (inclusive, nas festas dos “jovens”) e em encontros em bares. Nas festas modernas dos jovens, muitos deles também realizam o desafio calangueado como forma de divertimento, tiração de sarro e mesmo diferenciação das subjetividades, todos aspectos muito valorizados nesse momento da vida.
168 Assim, mesmo nos espaços em franco processo de modernização e urbanização, o calango permanece com sua força de tradição que, como tal, está em constante transformação, de acordo com as injunções de seu contexto histórico imediato.
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23. Desafios do calango no mundo contemporâneo
Sejamos francos: o calango, com a série de importantes funções sociais em comunidades tradicionais rurais, não existe mais; como, ademais, não existem mais essas comunidades. A sobrevivência do calango no mundo contemporâneo depende do poder de renovação de sua tradição, no interior de sociedades cada vez mais urbanizadas e globalizadas. Logo o calango, esse canto itinerante, mestre em metamorfoses, é convidado a mais um de seus devires. Logo o calango, este canto de guerreiros em duelo, é convidado a mais um grande desafio. Os contextos globalizados são aqueles em que as diferenças regionais sofrem o apelo de um processo de padronização maior dos comportamentos e homogeneização dos modos de ser. É a velha história: nesse mesmo momento, um jovem de São Luiz do Paraitinga, um aposentado estadunidense e uma dona de casa francesa disputam juntos o mesmo jogo virtual pela internet. Contudo, exatamente pela grande força da globalização, muitas comunidades tradicionais se fortalecem em torno de expressões culturais que refletem sua identidade específica. Ou seja, contraditoriamente, o momento em que a identidade local corre o maior risco é a grande oportunidade de seu fortalecimento. Cantigas ao desafio portuguesas como o “baldão” e a “desgarrada” podem ser vistas dessa perspectiva: suas pelejas têm grande prática, número crescente de novos adeptos, importantes festivais e muito público interessado. São Luiz do Paraitinga, cidade de fortes tradições e com histórico de grande valorização de suas expressões populares, tem uma identidade local também robusta e, inclusive, reconhecida por pessoas de diversas regiões que vêm à cidade exatamente para conhecer essa sua cultura popular. Assim, o calango, como ademais outras diversas expressões da cultura popular local, têm terreno fértil para aflorarem seus mais belos frutos. Mas não precisamos ir até Portugal para colher exemplos. O repente nordestino é exemplo maior do poder de inovação de uma tradição quando diante de um processo de urbanização inevitável. Chegado na garganta dos migrantes nordestinos para a cidade de São Paulo, o repente se disseminou pelos bairros paulistanos e continua com público interessado, no centro da cidade e em espaços com grande concentração de pessoas. Em suas comunidades de origem, repentistas se desafiam diante de grande público, em enormes salões de eventos. Certamente como disputa bem diversa daquela de origem, mas com grande poder de adaptação a contextos diversos (e adversos), o repente é grande exemplo da força de cantos de desafio tradicionais no mundo contemporâneo. Porém, não apenas os cantos tradicionais de desafio se desenvolvem com vitalidade: novos cantos improvisados contemporâneos se proliferam e demonstram outras faces das
171 pelejas cantadas. É o caso das agressivas “batalhas” do rap freestyle, com muitos praticantes jovens. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, esse novo canto de desafio se inventa com raízes das mais diversas: o rap estadunidense, a literatura de cordel e o repente nordestinos, os desafios do partido alto carioca – este último, como bem argumentou Nei Lopes, criado com grande influência do samba de roda baiano, do calango mineiro e do jongo valeparaibano. O que chama mais atenção nas batalhas entre rappers é sua penetração no meio jovem. Trata-se de um momento da vida caracterizado por essa busca de uma identidade pessoal, com grande interesse em medir forças e improvisar diversos modos de ser. Os cantos de desafio caem como uma luva nas experimentações da juventude. Certamente o calango, que influenciou o partido alto e, por tabela, o atual rap freestyle, está presente nesse apetite de tirar um sarro e ridicularizar o adversário, assim como nos gestos e versos violentos trocados entre jovens guerreiros. Se o contexto contemporâneo é aquele em que os cantos improvisados tradicionais encontram grande risco de desaparecimento, é também, contraditoriamente, um momento que oferece grandes possibilidades para sua renovação. Eis o desafio lançado ao calango luizense.
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24. Considerações finais: o calango e a cultura caipira Nas cantorias tradicionais se entoa a alma do povo. Nas manifestações populares espontâneas se forma o espírito nacional. Estas foram algumas das máximas que nortearam as pesquisas dos folcloristas, ávidos por documentar a cultura da “nossa gente”. No caso do Brasil, contudo, a composição do folclore nacional teve de se haver com a relação entre as etnias que povoaram essas terras. Sob termos como “miscigenação”, “mestiçagem” e “sincretismo”, os estudiosos procuraram compreender como a brasilidade foi constituída por índios, portugueses e africanos. Seja pela vontade de união entre as etnias no primeiro momento da República, seja pela dificuldade de pensar essas complexas relações, formou-se o conhecido mito das três raças. Com algumas variações, tal mito põe panos quentes nas tensões políticas entre as etnias e fomenta a falácia de uma democracia racial brasileira. Ou seja, a nação brasileira teria sido formada pelo encontro amistoso entre índios, portugueses e africanos, que, em sua mistura e interpenetração cultural, formaram o vigoroso folclore nacional. O otimismo dessa ideia escamoteia os processos de colonização e escravidão, que dizimaram os índios e subjugaram os negros. Nesse confronto – não encontro – se forma a cultura popular. Se podemos criticar a ideia de uma democracia racial, expressões como o calango demonstram a necessidade de pensar as relações entre essas etnias, de forma a não cair na harmonização dos conflitos. Uma das possíveis saídas para esse dilema pode ser aquela inspirada na história social da cultura de Edward Thompson, especialmente em sua crítica às noções de tradição e cultura popular, presentes nos folcloristas. Quando pensam em tradição, muitos folcloristas imaginam um costume formado de uma vez por todas em um passado longínquo, e reproduzido sem modificações no decorrer das gerações. Sem possibilidade de renovação, tais tradições estão sempre em risco eminente de desaparecimento. Pensada dessa maneira, a expressão cultural é retirada da história e destituída de suas ininterruptas transformações no curso do contexto social no qual está inserida. Por outro lado, a cultura tradicional é pensada a partir da ideia de uma comunidade estática e harmônica, livre de tensões e conflitos que constituem a vida em sociedade. Por fim, ansiosos por uma ideia homogênea de nação, muitos folcloristas adotam uma perspectiva generalista (o “folclore nacional”), omitindo as especificidades de cada contexto determinado e suas transformações no decorrer do tempo. Para o historiador inglês, a cultura popular está em constante transformação, no interior de seu contexto histórico específico e com a série de tensões e disputas que constituem suas
175 mudanças. Este estudo sobre o calango foi pensado dentro dessa perspectiva da história social da cultura. Porém, não foi propriamente uma preocupação com as questões mais gerais do “folclore nacional” ou da “brasilidade” que norteou a pesquisa. Nossas pretensões foram bem mais específicas, relacionadas à noção de “cultura caipira”, muito forte na cidade de São Luiz do Paraitinga. Sob esta insígnia, muito cara aos pesquisadores da região, pretende-se abarcar o melhor das manifestações tradicionais da cidade, provenientes da herança portuguesa que, simplesmente, absorveu as tribos indígenas em processo de mestiçagem. Muitas vezes, essa ligação entre cultura caipira e legado lusitano aparece nas entrelinhas dos discursos; outras vezes se exalta abertamente a “gente bandeirante” – como o faz Rosa Maria Nery, no subtítulo de sua obra. Obviamente, temos aí uma perspectiva parcial e simplista, que omite as lutas entre portugueses e indígenas, além de negligenciar os descalabros do processo colonizador. A “gente bandeirante” que Rosa Maria Nery estuda, chega ao sertão do Paraitinga com objetivo explícito e documentado de “abater os índios” – como vimos em Ignácio César. Ora, poderíamos chamar isso de mestiçagem? Os índios não foram apenas abatidos pelos portugueses, mas também banidos em sua contribuição na constituição da cultura local. Melhor sorte não tiveram os africanos por aqui escravizados e presentes desde a fundação da vila. Sr. Judas Tadeu de Campos, um dos pesquisadores mais respeitados da cidade, destaca os “estratos sociais” de São Luiz do Paraitinga, em 1850: o latifundiário, o sitiante, o agregado e o camarada. Ora, por esta época, o número de escravos, contados no recenseamento de Daniel Müller, alcançava a marca de 23% do total da população e a chegada de africanos crescia a cada ano. O que justificaria a omissão dos escravos na sociedade da época? Ora, se o negro não figura nos tais “estratos sociais” desse historiador, certamente ocupa posição central na luta de classes que acompanhou a história de sua “Imperial Cidade”. Se índios e negros têm este destino, os ciganos, então, não são sequer lembrados. Já os tropeiros são insistentemente exaltados, com a devida razão, mas num tom que mais quer se fazer valer da marca turística e culinária das tropas, do que de sua real contribuição. O brão é ressaltado como exemplo da musicalidade caipira e da sociabilidade das comunidades rurais que o cantam em mutirões cooperativos. Quem lembra que tal canto nasce a partir da matriz africana, presente no jongo? Quem lembra que os puxirões (proveniente do tupi, apatchiru, significando “reunião de gente para o trabalho”), nome antigo dos mutirões rurais, são reminiscências da forma com a qual os índios organizavam seu trabalho?
176 Teríamos mais exemplo, talvez exemplos até demais, que atravessam os modos de falar, os ritmos, a culinária, enfim, todo o modo de ser caipira conjugado na interpenetração entre as etnias. Durante uma festa tradicional de São João, em ambiente rural, notamos a força simbólica do fogo na vida daquela comunidade. À meia-noite, formava-se um tapete incandescente com as brasas da enorme fogueira e os populares atravessavam, descalços, fazendo seus pedidos ao santo. Algumas delas levavam um tição da fogueira para proteger suas casas, sendo comum deixa-lo na lavoura para evitar pestes ou no galinheiro para afugentar predadores – como documentado, inclusive, por Alceu Maynard de Araújo. Ora, os estudos de Robert Slenes sobre a importância do fogo na cultura africana, demonstram a mesma prática: ao acenderem o fogo no centro da aldeia, que representava a força dos ancestrais, as pessoas pegavam o minkisi (estatuetas que guardavam o fogo) e levavam para suas casas para as protegerem. Sutis, tais costumes revelam, no centro do catolicismo popular rural, a influência africana. O calango, talvez como nenhum outro, permite compreender essa ebulição que origina a cultura caipira. Permite, inclusive, observar as diversas modificações na tradição a partir das transformações históricas e fluxos de pessoas. A influência marcante da cultura portuguesa, transformada com a vinda de gente da África e pela constante movimentação das tropas. Uma cultura em movimento que incorpora traços ciganos e recebe forte contribuição dos mineiros. O calango pulsa estas tensões étnicas e as movimentações de pessoas que contribuíram – e contribuem – para a renovação da cultura popular local. Não deixa de ser irônico que esse canto ligeiro permita perceber as movimentações, as migrações e os trânsitos culturais. Não deixa de ser irônico que este canto talhado na tensão, permita entrever esses conflitos sociais. O calango, canto em que a vida pulsa no verso ligeiro e no desafio, permite ver a própria cultura caipira como vitalidade que advém de trânsitos e tensões.
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Ricardo Mendes Mattos é calangueiro e poeta. Possui o título de doutor em Psicologia Social da Arte pela Universidade de São Paulo e se dedica aos estudos de expressões da cultura popular de São Luiz do Paraitinga, em especial os cantos improvisados de desafio, tais como o jongo, o brão e o calango.
Contato: ricardomendesmattos@ig.com.br