O canto do brão em são luiz do paraitinga ricardo mendes mattos 2018

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BrĂŁo: o canto de trabalho dos mutirĂľes



Brão: o canto de trabalho dos mutirões rurais em São Luiz do Paraitinga

Ricardo Mendes Mattos

Imagens gentilmente cedidas por Marcelo Toledo

ISBN: 978-85-913155-8-1

Coleção Galo Preto, volume 1.

São Luiz do Paraitinga

2018



Ao mestre RenĂ´ Martins & famĂ­lia



Índice

Introdução................................................................................................................... 01 1.

Mutirão............................................................................................................... 1.1. Puxirum indígena......................................................................................... 1.2. Possibilidades de trabalho cooperativo no povoamento da região............ 1.3. Adjutórios nas comunidades rurais portuguesas........................................ 1.4. O trabalho coletivo dos escravos................................................................

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2.

Cantos de trabalho............................................................................................. 23 2.1. Os cantos de trabalho portugueses............................................................. 24 2.2. Os cantos de trabalho afro-brasileiros........................................................ 28

3.

Brão: filho liberto do jongo................................................................................

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4.

Brão através dos tempos.................................................................................... 4.1. Um mutirão de 1916................................................................................... 4.2. O primeiro registro do Brão: década de 1940............................................. 4.3. O Brão na década de 1980.......................................................................... 4.4. Mais de 400 cantadores no eito: um mutirão de Seu Argeu...................... 4.5. Brão de dia e jongo de noite: um mutirão de Seu Alfredo Rocha............... 4.6. O declínio dos mutirões............................................................................... 4.7. Demonstração do canto do Brão no Projeto Mestres Navegantes.............

47 48 50 60 67 72 74 84


4.8. Canto do Brão em 2013............................................................................... 103 4.9. O Brão durante a Festa do Pinhão de 2015................................................. 110 5.

Contexto de realização....................................................................................... 123

6.

Forma poética.................................................................................................... 6.1. Cerimonial de chegança, linha e despedida................................................ 6.2. Improviso livre e toada fixa......................................................................... 6.3. Linguagem metafórica................................................................................. 6.4. Advinha e enigma........................................................................................

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7.

Forma de cantar e estilo vocal...........................................................................

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8.

Perfil dos cantadores.......................................................................................... 171

9.

Desafios na renovação da tradição....................................................................

Bibliografia, Discografia e Filmografia

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Introdução


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“O mutirão é o brão; é a festa dos companheiros” – diz Agenor Martins a Carlos Rodrigues Brandão, no final da década de 1970. É uma frase curta e crucial. A partir dela, o mestre da cultura tradicional desata a linha da vida caipira, em suas expressões solidárias de trabalho, em suas fortes redes coletivas de compadrio, em suas formas de cantar e festejar a vida comunitária. Quando o mutirão é o Brão, identifica-se o trabalho e o canto, em uma cantoria incorporada no dia-a-dia das comunidades rurais tradicionais. Trabalha-se cantando e cantase trabalhando, num laço estreito entre a produção da vida material e a produção cultural. É interessante notar que o mesmo mestre Renô Martins compôs, nesta mesma época, uma moda de viola caipira nomeada “A Enxada e a Viola”, em que mantém um forte vínculo entre o principal instrumento de trabalho da roça e seu principal instrumento musical. O ato de arar a terra é indissociável daquele de tocar um instrumento, em mais uma forte imagem de como a música caipira canta a vida coletiva. Um trabalho assim cantado é muito distinto do trabalho assalariado moderno, que distancia a atividade produtiva do lazer e as relações profissionais dos vínculos de amizade. A “festa dos companheiros”, cantando o Brão em um mutirão, só é possível em ambiente tradicional, pautado na equidade de condições de vida entre pequenos proprietários rurais, seus agregados e camaradas. O mutirão é um trabalho solidário que possui a característica


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maior da festa popular: a instauração de um instante de exceção, em que todos são iguais, independente de faixa etária, etnia, condição social, etc. O livro Brão: o canto de trabalho dos mutirões rurais em São Luiz do Paraitinga se inicia com a apresentação da forma cooperativa de trabalho representada pelo mutirão. Observa-se o mutirão como criação conjunta das diversas etnias que formam e transformam a cultura caipira da região: do puxirum indígena aos adjutórios das comunidades aldeãs portuguesas, passando pelo trabalho coletivo dos africanos e afrodescendentes cativos. Essas diversas etnias trouxeram grandes contribuições em termos de cantos de trabalho, formando o trabalho cantado que está na raiz do Brão. Contudo, o Brão foi criado no período do pós-abolição, como filho liberto e mestiço do jongo, um canto de trabalho dos escravos. Descreve-se as características do jongo em tempos de cativeiro, como viveiro do Brão. A seguir, apresenta-se o canto do Brão através dos tempos, desde registros recuados às primeiras décadas da República até filmagens contemporâneas. Esse passeio pela história do Brão permite enveredar pelas modificações no sistema do mutirão e no canto, acompanhando as transformações econômicas, sociais e políticas do contexto histórico específico da cidade de São Luiz do Paraitinga.


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O contexto ritual de realização do Brão, o mutirão festivo, é detalhado em suas características gerais. Dos mutirões quase diários ao declínio dos trabalhos cooperativos, avalia-se o impacto da modernização das relações de trabalho, mediada pelo mercado capitalista, em culturas tradicionais como o Brão. Detalha-se a forma poética do canto do Brão, na união entre o livre improviso de matriz nitidamente africana, e o imaginário e os versos típicos do cancioneiro popular português. Descreve-se as cerimonias rituais do Brão, as formas de cantar e as características do desafio, a partir de um enigma enunciado em linguagem metafórica. Por fim, observa-se o perfil dos cantadores de Brão e os desafios em sua renovação no mundo contemporâneo.




1. O mutirĂŁo


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As práticas de trabalho cooperativo fincam profundas raízes nas terras em torno do Rio Paraitinga. Acompanhar as estórias dos mutirões é percorrer a história do município. Dos puxirões indígenas, às redes de compadrio dos primeiros “povoadores”, passando pelo trabalho coletivo de escravos, até chegarmos aos mutirões do pós-abolição. Cada um desses povos cultivou terras onde o mutirão floresceu. Acompanhemos, pois, seus cultivos, seus cantos e seus frutos.

1.1.

Puxirum indígena

Antes da chegada dos chamados “povoadores”, as terras próximas ao rio Paraitinga (em tupi-guarani, rio das “águas claras”) eram habitadas por tribos indígenas. A própria nomeação de “povoadores” para os primeiros luso-brasileiros que por lá chegaram denota a expropriação das terras desses outros povos e a tentativa de apagar sua história na região – que estaria povoada, apenas, com a vinda dos colonizadores. O fato é que as terras do que hoje se denomina como Vale do Paraíba eram habitadas por uma variedade de aldeias indígenas, especialmente os Puris, Tamoios, Guaianazes e Tupis-tupiniquins. No próprio documento de envio de homens para a fundação da vila de São


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Luiz do Paraitinga, a Ordem Régia de 18 de maio de 1771, menciona-se outra tribo, em meio a pessoas indesejadas, que seriam obrigadas a tomar parte na povoação: “os vadios, carijós, vagabundos, e habitantes de sítios volantes em partes desertas”1. Sabe-se lá qual foi o destino dessas tribos: se guerrearam, se fugiram, se foram escravizadas ou incorporadas no povoamento oficial. Alguns registros de batizados na Freguesia do Facão (atual Cunha), dão sinais de como foram convertidos ao credo do colonizador e adquiriram identidade portuguesa, pois lê-se, por exemplo: “Antonio, índio, filho de Miguel Moura e de Maria de Siqueira”. O frequente discurso de que tais índios se miscigenaram é comum em documentos oficiais que se referem a “paulistas” ou “caipiras” como sendo mistura entre portugueses e índios. Essa assimilação dos indígenas pelos povoadores portugueses deixa poucos rastros de sua presença. Contudo, Carlos Rodrigues Brandão, durante a década de 1980, observou a história de uma trilha denominada “dos Guaianases”, entre o sertão perto de Cunha e o litoral, lembrada pela suposta presença de uma tribo indígena no local. Enveredando por essas e outras trilhas podemos observar algumas das contribuições desses primeiros habitantes nas culturas tradicionais São Luiz do Paraitinga. 1

A denominação “carijó” possivelmente se referi a indígenas já mestiçados com portugueses, conforme típico da época, pois não consta a presença de índios carijós na região.


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Numa programação da Festa do Divino Espírito Santo da década de 1950, lê-se: “Os nossos índios serão lembrados na bem ensaiada dança de Caiapó, que ficará a cargo do sr. Luís Caié e Mestre Pedro”. O tom paternalista da referência (“nossos índios”) deixa entrever o quanto a cultura indígena é colocada num passado remoto e inerte (pois precisa ser lembrada). Outro detalhe é importante, Luis Caié e Mestre Pedro são afrodescendentes, além de reconhecidos jongueiros. Nas recordações desse último, conhecido como reconstrutor da igreja de Nossa Senhora do Rosário na cidade, o caiapó era dança exclusiva dos “caboclos” (filhos de índios e africanos), durante o período da escravidão. Jaime de Almeida observa o quanto a dança do caiapó teve forte importância política, pois era a principal forma de participação popular no carnaval burguês paulistano, de acordo com fontes do período da escravidão. No Vale do Paraíba, a dança era também frequente nas festas religiosas em Taubaté, sendo, inclusive, no período do pós-abolição, relacionada a grupos de “novos cidadãos”, ou seja, libertos. Nas memórias de Mestre Pedro coletadas por Alceu Maynard de Araújo, em maio de 1947, descreve-se a dança do caiapó como realizada por 20 a 30 dançantes:

Todos vestiam-se de tangas e penas, por cima de um calção curto, cujas pernas ficavam acima do joelho. Uma pequena camiseta cor de carne,


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bem decotada e sem mangas; calçavam meia preta presa abaixo do joelho, por uma jarreteira de barbante, enfeitada com penas de variadas cores. Os brincantes eram adornados com braceletes e penas nos braços, máscara no rosto e um “capacete de penas”; já o cacique possuía um “lindo cocar, com grandes penas de pavão, o que o distinguia dos demais dançantes”. Cada dançante tinha um “pauzinho na mão”, bastões apropriados posteriormente pela dança do moçambique. Mestre Pedro rememora o conjunto de instrumentos que acompanhava a dança, chamado de “Panca” e formado por “um tambor, um bombo uma caixa (que é a Tarola ou caixa de guerra) e um adufe”. Os brincantes se dividiam em duas colunas, dançavam e cantavam em “marcha”, até chegarem à praça. Ali, a coreografia consistia em um giro para a esquerda e, posteriormente, para a direita: “Cada vez que executavam o movimento da direita para a esquerda, ajoelhavam com o parceiro e batiam os pauzinhos; era essa a única figura da dança”. O próprio Alceu Maynard de Araújo registrou a dança do caiapó, conduzida por Luís Caié, no ano de 1951. Trata-se de uma dança dramática, na qual se encena a morte de um menino indígena (“Curumi”) por um homem branco. Os guerreiros da tribo levam-no ao pajé e imploram sua cura. Ressuscitado o menino, todos participantes festejam. Além do “Curumi” e do “Cacique”, tomam parte da dança dez guerreiros com arco e flecha. Todos os


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participantes se vestem como índios, com colares, tornozeleiras e cocares ornados com penas de pássaros. Além do caiapó, o grande número de cesteiros habilidosos nos trançados de taquara deve também muito às culturas indígenas da região. Alceu Maynard de Araújo, em 1947, observa o quanto as formas de trançado reportam a “técnica primitiva herdada dos índios”. Outra trilha da influência das culturas indígenas nas práticas tradicionais luizenses vem dos registros dos mutirões. Ainda na década de 1940, essa forma de trabalho comunitário era denominada como “putirão” ou “muquirão” – como revela o próprio título do artigo publicado por Alceu Maynard de Araújo, em 1949, na revista Fundamentos, intitulado “Muquirão”. De acordo com Clovis Caldeira, grande estudioso dos trabalhos cooperativos no Brasil, a origem do termo mutirão está em expressões indígenas como “pixuru” (existente ainda em Gravataí, Rio Grande do Sul) ou “apatxiru” (comum entre os índios Tapirapés estudados por Curt Nimuendaju). Em tupi, a palavra apatchiru designa uma “reunião de gente para o trabalho”, expressão similar a putiru, disseminada no Brasil como “puxirum”, “puxirão”, “mutirum”, “muxirão” ou “mutirão”. A expressão “puxirão” era empregada em São Vicente (São Paulo) e Guarapuava (Paraná).


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Os putirões luizenses, portanto, trazem traços indígenas e grande influência desses povos na forma de trabalho associativo, como revelam as expressões locais para designar as atividades coletivas solidárias.

1.2.

Possibilidades de trabalho cooperativo no povoamento da região

As terras do que viriam a ser a cidade de São Luiz do Paraitinga pertenciam ora à Vila de Taubaté, ora à Freguesia do Facão e mesmo à Vila de Guaratinguetá. O primeiro impulso de povoar a região vem no ano de 1641, momento em que o capitão Domingos Dias Félix obteve sesmarias no então bairro taubatense de Paraitinga. Tal impulso inicial, porém, não prosperou e, no dia 05 de março de 1686, o bandeirante Capitão Matheus Vieira da Cunha (também de família de fundadores de Taubaté) obtém do Capitão-Mor de Itanhaém, Felipe Carneiro Alcaçouva e Souza, provisão para povoar a região. Um trecho do documento de concessão deixa claro o objetivo das bandeiras: “bater os índios, devastar os sertões e explorar as minas nos Sertões do Paraitinga”. E assim se constituiu cerca de 50 fogos (sítios) que, além de gente de Taubaté, tinha também famílias de Pindamonhangaba e Guaratinguetá. Tais famílias viviam de uma


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policultura de subsistência baseada em produtos alimentícios (milho, mandioca, arroz, feijão) e criação de animais (especialmente porcos). O trabalho na lavoura era realizado apenas por membros da família e expostos. A região estava isolada e se vivia em situação de pobreza e sem civilidade (sociedade civil). Ora, um pequeno povoado isolado, formado por famílias camponesas, certamente desenvolveu fortes relações de compadrio e cumplicidade. É muito provável, portanto, que diversas atividades rurais que necessitassem de maior número de trabalhadores, assim como ações coletivas para a manutenção de espaços de bem comum (como estradas), fossem realizadas em sistemas solidários, muito próximos dos mutirões rurais. Se considerarmos que esta gente tinha raízes nas aldeias portuguesas ou em tribos indígenas, praticantes de formas associativas de trabalho, essa probabilidade é ainda maior. Contudo, com a descoberta de ouro na Minas, realizada com participação de bandeirantes taubateanos, a vida na região muda substancialmente. A região se torna passagem para o transporte do ouro extraído nas Minas, registrado em Taubaté (no atual bairro de Registro, próximo a São Luiz do Paraitinga) e embarcado para Portugal, por meio do porto de Ubatuba. Outras vezes, as imediações da cidade eram atravessadas por um antigo caminho de Parati às Minas, muito frequentado por pessoas que iam desde o Rio de Janeiro a Minas Gerais. Rogério Luz observa o “infinito emaranhado de caminhos” ou “verdadeiros


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labirintos” na região, por onde passavam “soldados, nobres, bandeirantes, mercadores, pintores, sábios e bandidos”. Há poucas notícias do pequeno povoado que habitava a região do Paraitinga. Petrone Pasquale comenta ser comum o abandono das terras por seus proprietários e sua apropriação por outros possuidores. Já Carlos Borges Schmidt observa em toda a Capitania de São Paulo uma “repulsa à vida em aldeia”, pois os proprietários relutavam em aceitar o controle provincial e os marcos da sociedade civil. O autor menciona queixas do próprio Morgado de Mateus (1767): “Os pequenos [recusam a vida em aldeia] porque querem viver na liberdade, na dissolução, e nos vícios, livres de todo o gênero de justiça; e os grandes porque querem servir-se daqueles mesmos, debaixo do nome de administrados, e tê-los como verdadeiros escravos...”. Preferiam o “mato virgem” à “Sociedade Civil”, como revelam as diversas leis proibindo os “sítios volantes” e ordenando ajuntamento em “povoações civis”. Daí a conclusão de Schmidt: “...das povoações então criadas por força de lei, nem todas sobreviveram. Ficaram outras estagnadas, e somente se desenvolveram quando novos elementos de progresso se impuseram”. A 2 de maio de 1769, D. Luís António de Souza Botelho Mourão, representando moradores da Villa de Guaratinguetá, pede licença para formar um povoado entre Taubaté e Ubatuba. Assim, no dia 8 de maio deste ano, é nomeado Sargento-Mor Manoel Antonio de


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Carvalho para fundar um povoado nas margens do Paraitinga. Em 1771 se tem a notícia de que havia um pequeno arraial com 50 casas e uma pequena capela. Finalmente, a 31 de março de 1773, o povoamento é elevado à categoria de villa. Neste dia é erguido o pelourinho, símbolo da “autoridade real”, e não demoraria para virem os outros elementos da sociedade civil, como a Casa da Câmara e a Cadeia. O primeiro recenseamento, realizado em 1774, oferece indicações de como era o modo de vida desses “povoadores”. Nas palavras de Petrone Pasquale:

O primeiro recenseamento da Vila de S. Luís, efetuado em 1774, deixa entrever a situação da maior parte da gente que ia formar nessas povoações; elas se ‘compõem de ordinário de pessoas miseráveis, que não tem estabelecimento certo em outra parte’; famílias pequenas, com seu chefe, vivendo do próprio e dos membros da família, sem escravos, gente realmente miserável, em que vem assinalado um grande número de deficiências orgânicas; estes formam a maior parte da população. Para o pouco mais de 800 pessoas que apresenta essa primeira contagem, há um número irrisório de proprietários (setes), cujo lote de escravos vai de 6 a 24 peças; uma parcela um pouco maior tem de 1 a 3 escravos, mas uma grande porção nada. O grosso dessa gente, é natural dos municípios de Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá; há também naturais de outras vilas, e reinóis alguns comprovadamente descidos de vilas minerais.


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Ora, a grande maioria dos proprietários de terras de São Luiz do Paraitinga não possuía escravos e dedicava-se à agricultura de subsistência, levada a cabo por membros da família e agregados. As difíceis condições de vida dessas famílias são salientadas em diversos documentos, como também em relatos de viajantes. São condições em que a ajuda mútua é fundamental à sobrevivência, formando-se fortes laços de compadrio e intensa vida comunitária. É muito provável que aqueles supostos mutirões do século XVII tenham acontecido com feições similares nesse final de século XVIII. Os próprios registros do Brão revelam elementos que permitem afirmar que eram adjutórios muito influenciados pelas formas solidárias de ajuda vicinal praticada em aldeias portuguesas – que cederam grande parte do contingente que veio habitar o Vale do Paraíba paulista e, consequentemente, compunham uma tradição comunitária rural partilhada por essas primeiras famílias luizenses. Um breve passeio por algumas práticas de trabalho cooperativo em aldeias portuguesas pode oferecer elementos para imaginarmos como seriam esses primeiros mutirões luizenses, seja das primeiras tentativas de povoamento, seja da época da fundação da vila.


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1.3.

Adjutórios nas comunidades rurais portuguesas

Não há descrições sobre mutirões rurais datados dos primeiros séculos da cidade de São Luiz do Paraitinga. Porém, os registros do brão oferecem uma série de indícios que permitem associar os mutirões luizenses com as formas solidárias de organização do trabalho em aldeias portuguesas, praticadas até pouco tempo atrás. Brian Juan O’Neill, no final da década de 1970, realizou pesquisa sobre a prática do trabalho cooperativo em uma aldeia no noroeste de Portugal, na província de Trás-osMontes. Os aldeões, vivendo em condições equitativas, do ponto de vista social e econômico, possuíam diversas práticas de trabalho associativo relacionado as atividades agrícolas. São atividades como a debulha de cereais, a sementeira da batata, a ceifa e o transporte de cereais, todas elas exigindo mais braços do que aqueles que as famílias possuem. Nessas situações, convoca-se um mutirão solidário de participação voluntária, mas quase obrigatória, de todos os convidados. Há muitos elementos que se assemelham aos mutirões luizenses: o sistema de convocação, organização do trabalho pelo anfitrião, oferecimento de alimentação farta e bebida alcoólica à vontade, realização de cantos e divertimentos durante o trabalho, competividade entre os mutireiros, além de desfecho com festividade. Porém, há um outro detalhe que nos chama atenção: “... o organizador de qualquer grande tarefa


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conjunta... é transitoriamente tratado por ‘patrão’ pelos cooperantes presentes”. Não se trata de caso específico dessa comunidade, pois também nos mutirões das vindimas de Santo Tirso de Prazins, perto de Guimarães, aquele que organiza o mutirão é chamado “patrão”. É exatamente a mesma denominação do promotor dos mutirões do Brão, em São Luiz do Paraitinga. Ora, essa especificidade nos parece evidência de que os mutirões em São Luiz do Paraitinga possuem referências em terras portuguesas, a partir de costumes muito provavelmente trazidos do além-mar pelos considerados primeiros povoadores da vila. Há outro indício importante. Ao comentar as práticas de mutirão em terras portuguesas, Clovis Caldeira observa: “As segadas, em que a cada um compete a sega de uma margem, caracterizam-se geralmente por uma verdadeira competição, esforçando-se cada qual por manejar a foice com maior rapidez”. Certamente, a prática de competição entre os mutireiros é expediente comum em atividades cooperativas, tal como observa o próprio Clovis Caldeira no mutirão baiano, da região da Serrinha, conhecido como “boi-roubado”: “dá-se ao acontecimento caráter de competição”, com verdadeira disputa relacionada a “rapidez e a eficiência”. Porém, na região de São Luiz do Paraitinga, a acirrada competição na enxada, descrita por Alceu Maynard de Araújo, possui raiz luso-brasileira evidente. O trabalho coletivo dos escravos tinha, antes, a característica de retardar o ritmo de trabalho, não


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havendo qualquer interesse em competir pela rapidez e a eficiência. Igualmente, as atividades comunitárias das tribos indígenas não possuíam qualquer necessidade de competição tendo em vista a otimização da eficiência do trabalho. Muitos traços dos muquirões luizenses são semelhantes aos adjutórios portugueses, reforçando a ideia de que a gente lusitana que “povoou” a vila tenha trazido a herança comunitária dos mutirões rurais.

1.4.

O trabalho coletivo dos escravos

É óbvio que o mutirão é impensável entre escravos, pois pressupõe homens livres, unidos voluntariamente em um trabalho coletivo, revertido em seu próprio benefício. Quando muito, podemos pensar que aqueles escravos que obtinham concessão para o plantio em uma roça, poderiam se fazer valer de um trabalho cooperativo próximo do mutirão. Porém, a própria instituição da escravidão implica em trabalho coletivo e cooperativo, ainda que compulsório e vigiado. No pequeno espaço para sua autonomia, mesmo trabalhando em regime escravo, os africanos tinham laços solidários nas atividades


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no eito – ainda mais acentuadas quando procuravam disseminar em seus cantos a chegada da vigilância. O marcante trabalho coletivo entre africanos e afrodescendentes leva Arthur Ramos, em sua obra Introdução à Antropologia Brasileira, a defender a “origem bantu” do mutirão brasileiro, ou seja, “uma forma de trabalho coletivo de origem africana”. Clóvis Caldeira, contudo, observa o quanto a prática de trabalhos solidários no ambiente rural brasileiro tem origem na integração das diversas etnias, ambas com forte tradição de atividades cooperativas. São Luiz do Paraitinga parece ser exemplo emblemático dessa integração, nem um pouco amistosa.



2. Cantos de Trabalho


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Além de trabalho solidário, o Brão é canto de desafio. Certamente, o Brão se origina do jongo cantado no eito, porém, também floresce em meio a forte tradição aldeã portuguesa de cantigas de desafios.

2.1.

Os cantos de trabalho portugueses

Observamos que os luso-brasileiros chegados a São Luiz do Paraitinga, a partir do século XVII, eram provenientes de aldeias rurais portuguesas com forte tradição comunitária de mutirões solidários. Trata-se, também, de um país com marcada tradição de cancioneiros populares, que incluem uma grande variedade de cantigas ao desafio. Assim, o canto do Brão pode guardar relação com as cantigas ao desafio portuguesas entoadas no eito durante práticas agrícolas. Na memória de mestres da cultura popular luizense, como Mestre Renô Martins e Mestre Lauro Faria, temos a menção a um canto de desafio muito praticado antigamente, denominado “cana-verde” ou “caninha”. Em Portugal, como em diversas regiões brasileiras


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(inclusive no Vale do Paraíba), a cana-verde designa uma dança popular. Contudo, em São Luiz do Paraitinga e Guaratinguetá trata-se de um canto alternado improvisado, em forma de desafio, brevemente registrado por Clóvis Caldeira, neste último município, após um mutirão rural, ocorrido no dia 16 de janeiro de 1954: “A cana-verde confunde-se com o desafio: cada um dos violeiros canta um verso que é respondido por outro”. O estudioso da música folclórica portuguesa Fernando Reis, descreve diversos cantos de trabalho relacionados às atividades agrícolas. No que se refere à cultura do milho, presente em São Luiz do Paraitinga desde seus povoadores da década de 1640’, Reis ressalta cantigas que acompanham cada etapa de seu cultivo, colheita e preparação do alimento. O primeiro ritual é exatamente aquele em que se entoa o poema cana-verde, evocando as forças naturais que garantem a fertilidade da terra e a fecundação do vegetal. O canto é entoado ao mesmo tempo em que se acaricia os ramos verdes do milho, especialmente as barbas de onde sairá as espigas. Quando o verde da cana dá lugar ao amarelo da espiga, ocorre a ceifa e o transporte dos ramos em carros de boi. A próxima etapa é aquela de um canto de trabalho, simultâneo a uma festa, conhecido como desfolhada. Realizada em noite de luar, as espigas eram desfolhadas em clima festivo que guarda forte relação reprodutiva com o imaginário de namoros. Posteriormente, havia outra cantiga de trabalho dançada,


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conhecida como “malhão”, pois ocorria no momento de separação dos grãos das espigas (a malhada), atividade realizada com instrumento artesanal denominado “malho”: [O malhão] é sobretudo muito rico quando cantado ao desafio, daí a sua popularidade. Os cantadores põem à prova a sua capacidade de improvisação e encaixe, bem como os seus dotes culturais no desenvolvimento do tema sugerido pelo cantador, a quem compete iniciar o despique. O carácter humorista das quadras, a resposta a tempo e adequada à situação, são algumas das múltiplas dificuldades que os cantadores têm de enfrentar neste género de despique Fernando Reis apresenta o seguinte exemplo de um desafio no malhão, praticado em Vila Verde:

Homem: Com licença meus senhores De lhes vir apresentar Esta linda cantadeira, Que me vem desafiar. Mulher: Como a licença foi dada Eu então vou começar Vou cantar à minha moda


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O que ele não vai gostar. Homem: Atirei com a pedra ao rio Com o peso foi ao fundo Eu não temo a cantadeira Ainda que venha do outro mundo. Mulher: Esta noite à meia noite Ouvi cantar uma coruja Parecia que dizia Vai-te embora cara suja. Homem: Vou fazer a despedida Que fez o cachorro magro Comeu encheu a barriga Saiu abanando o rabo.

Há diversas semelhanças entre esse canto e o Brão. Ambos são cantos alternados que constituem um diálogo cantado. Ambos possuem a feição de desafio. A forma poética também é similar e, muito provavelmente, as formas de cantar guardam estreitas relações.


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Esse conjunto de cantos de trabalho e/ou danças realizado durante práticas agrícolas solidárias guardam forte relação com o mutirão do Brão. Haveria, ainda, outros cantos de trabalho a serem mencionados, como a “desgarrada” portuguesa, que Luiz da Câmara Cascudo associa a diversos cantos de desafio do sertão brasileiro. Veremos mais adiante o quanto muitas das imagens e metáforas das toadas do Brão são ressonâncias do cancioneiro popular português, além de trejeitos de cantar tipicamente lusitanos serem abundantes nesse canto de trabalho. Se o Brão é filho liberto e mestiço do jongo afro-brasileiro, muitas de suas características refletem a influência das culturas tradicionais das aldeias rurais portuguesas.

2.2.

Os cantos de trabalho afro-brasileiros

O grande estudioso dos sons negros no Brasil, José Ramos Tinhorão, insere os cantos de trabalho africanos no interior de profunda incorporação do sagrado na vida cotidiana. Os


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rituais agrícolas compunham “canções propiciatórias”, fundamentais para estimular as chuvas, fazer as sementes crescerem e para garantir boas colheitas. Em tempos de cativeiro, contudo, tais costumes ancestrais se modificam, pois “a decifração do duplo sentido de certos versos” ou o “jogo metafórico das imagens” compunham uma linguagem hermética inteligível apenas por membros daquela cultura. Essa língua enigmática, segundo Tinhorão, era herança do “costume africano das advinhas”, que garantia uma comunicação segura, já que não compreendida pelos agentes do controle senhorial. Os dois grandes exemplos desses cantos de trabalho enigmáticos são o vissungo e o jongo. Aires da Mata Machado Filho, no ano de 1928, fez laboriosa coleta de cantos de trabalho dos afro-brasileiros mineiros, em São João da Chapada (Diamantina/MG). O autor observa que, no pós-abolição, a população afrodescendente trabalhava apenas para quem permitisse o canto, entoado em sistema de trabalho cooperativo, associado ao mutirão: “É cantando que se deslocam grandes pedras. No mutirão usam-se cantigas apropriadas”. Os vissungos, também chamados de fundamentos, eram cantados durante o trabalho nas minas, de duas formas distintas: o boiado, canto solo de um mestre sem acompanhamento nenhum; e o dobrado, assim denominado porque o solo era seguido da resposta em coro, às vezes acompanhada de ritmos feitos com instrumentos de trabalho. Há


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vissungos similares a “cantos religiosos”, que guardam forte “caráter místico”, mas também cantigas registrando “o momento em que o patrão, saindo de casa, se dirigia para a lavra”. Há também canções funerárias ou canções em que se pede licença ao patrão, a exemplo daquela intitulada “pedindo licença para cantar”: “Ia uê ererê aiô gombê - / Com licença do curiandamba [mais velhos, ancestrais], / com licença do curiacuca [cozinheiro], / com licença do sinhô môço / com licença do dono de terra”. Há também cantos de desafio entre mestres rivais: “Dividiam-se em grupos, cada um com seus adeptos, que formavam o ‘coro’. Entregavam-se a desafios”. Os cantadores enfeitiçavam frequentemente seus rivais, deixando-os “amarrados”, ou seja, sem voz. Embora tais cantos não possuíssem, quando coletados em 1928, nenhum acompanhamento instrumental, os antigos rememoravam a utilização de tambor denominado “angono-puíta”. Ora, os cantos de desafio com palavras enfeitiçadas que amarram o adversário, tanto quanto a utilização do tambor de fricção conhecido como puíta, são características do jongo valeparaibano. Quanto ao Brão, há semelhanças entre o pedido de licença ao patrão – muito embora o pedido de licença (ao patrão ou à dona da casa) seja prática comum nas folias e sambas de roda. Porém, um comentário de Aires da Mata parece mais fundamental:


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A melodia da música sertaneja, langorosa e lenta, é negra a mais não poder. E é de notar a influência visível que nelas os vissungos exercem (...) O final de quase todos os vissungos, pela sua lentidão no andamento e pelo seu ritmo livre, lembra a terminação mais típicas cantigas sertanejas.

Essa opinião, ratificada por José Ramos Tinhorão, estende a influência do vissungo a grande parte da musicalidade caipira praticada em São Luiz do Paraitinga. Compare-se, por exemplo, essa melodia “langorosa e lenta”, ritmada pelos instrumentos de trabalho nas minas, com a seguinte descrição do Brão por Carlos Rodrigues Brandão: “As ‘duplas de brão’ que suspendiam por um instante o trabalho e faziam ecoar, longe e perto, os cantorios secos, tristes, quase lamentosos desacompanhados de instrumentos e tendo como coro apenas o vento nos montes e o ruído compassado das foices no mato”. Langorosos pra um, tristes e lamentosos para outro, tais cantos parecem semelhantes, ao menos nas impressões de seus ouvintes. Sabe-se lá se as vozes do vissungo chegaram ao vale do Paraitinga. Sabendo do constante fluxo de tropeiros e gente das minas pela cidade, poder-se-ia pensar que a influência dos vissungos tenha chegado nas toadas das tropas. Outra possibilidade é a chegada das melodias dos negros mineiros a partir da migração das Minas ao Vale do Paraíba,


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no período do pós-abolição. O historiador Robert Slenes afirma que “algum tempo depois da Abolição, tropeiros negros viajavam nos caminhos do Vale do Paraíba, muitos deles descendo para os portos vindo [sic.] da província de Minas Gerais”. Por fim, elementos do vissungo podem ter chegado na importante migração de mineiros para São Luiz do Paraitinga, a partir da década de 1930, no que Carlos Borges Schmidt chamou de “invasão pecuária”. A partir dos tropeiros dos séculos XVII, XVIII e XIX ou com os sul-mineiros no XX, o teor nitidamente caipira do vocal do Brão pode ter recebido influências deste outro canto de trabalho africano. Tinhorão considerou o jongo um “herdeiro do mistério dos vissungos”. É uma posição muito discutível, pois as semelhanças entre ambos derivam da herança em comum na cultura banto centro-africana. Porém, há outros cantos de trabalho afro-brasileiros que podem ter associação com o jongo e, por conseguinte, com o Brão. Ambientado no oeste paulista, no ano de 1846, o romance Til, de José de Alencar, traz a seguinte passagem, respeitando a grafia da época:

Na roça estavam os pretos no eito, estendidos em duas filas, e no manejo da enxada batiam a cadência de um canto monotono, com que amenizavam o trabalho:


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Do pique daquelle morro Vem descendo um cavalleiro Oh! Gentes, pois não verão Este sapo n’um sendeiro? Adubavam o mote com uma descomposta risada e logo apoz soltavam um grito gutural: - Pxú! Pxú! Têm os pretos o costume de entresacharem nas toadas habituaes, seus improvisos, que muitas vezes encerram epigrammas e allusões. Bem desconfiava pois o feitor de que a tal cantiga bolia com elle, e o sapo não era outro sinão um certo sujeito bojudo e roliço, de seu intimo conhecimento; mas fingia-se despercebido da coisa. Um canto no eito, repetido por trabalhadores próximos uns dos outros, em forma de improvisos organizados em quadras, com rimas entre o segundo e o quarto versos, com uso de linguagem enigmática (epigramas e alusões): são características do Brão! O tal sapo era metáfora cômica do feitor, num antropomorfismo comum em cantos de desafio luizenses (como o calango e o Brão). Júlio Ribeiro, no romance A Carne, ambientado também no interior paulista, no ano de 1887, traz passagem similar: “Ao longe, quase indistinto a princípio, mas progressivamente acentuado, fez-se ouvir um chiar agudo, contínuo, monótono, irritante. A crioulada reunida


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em frente ao engenho levantou uma gritaria infrene, tripudiando de júbilo”. A mesma dobradinha entre canto monótono seguido de gritaria e gargalhada. Maria de Lourdes Borges Ribeiro observa que a expressão “canto monótono” pode fazer referência ao jongo: “Julgo se referiam ao jongo, quando os ‘pontos’ são repetidos interminavelmente até que um ‘cumba’ mais sabido o decifre”. É uma opinião verossímil, pois o jongo repete o enigma até sua decifração. Contudo, é difícil identificar todo “canto monótono” com o jongo, pois a expressão “canto monótono”, com poucas variações, era um chavão monótono repetido por muitos dos viajantes estrangeiros que assistiram rituais negros em diversas regiões da África e do Brasil. Se podemos questionar se os cantos descritos por José de Alencar ou Júlio Ribeiro eram mesmo jongo, o mesmo não ocorre com as coletas de Stanley Stein sobre o canto de trabalho rememorado por ex-escravos, no município de Vassouras (Rio de Janeiro):

Os grupos de escravos geralmente trabalhavam a uma distância em que pudessem escutar o canto do outro, e, para ritmar suas enxadas e fazer comentários sobre o mundo limitado em que viviam e trabalhavam – suas próprias fraquezas e as de seus senhores, feitores e capatazes –, o mestre cantor de um grupo iniciava o primeiro ‘verso’ de um desafio,


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um jongo. Seu grupo fazia o coro da segunda linha do verso e então capinava ritmicamente enquanto o mestre cantor do grupo vizinho tentava responder ao desafio apresentado.

Stanley Stein, como também Maria Ribeiro, observam como tais cantos eram também utilizados como forma de resistência, seja porque denunciavam a presença dos feitores ou vigilantes, seja porque os jongos eram utilizados para comunicar acontecimentos entre escravos de diferentes fazendas, convidar para festividades ou combinar revoltas. Novamente, a distância entre os grupos de cantadores, entoando cantos de desafio ao ritmo de enxadas, são feições características também do Brão. Estas semelhanças entre o jongo e o Brão são tamanhas que Mestre Renô Martins chega a dizer que os escravos cantavam Brão no eito.



3. BrĂŁo: filho liberto do jongo


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O momento histórico do pós-abolição foi fundamental para a construção das tradições culturais de São Luiz do Paraitinga. Os libertos de 13 de maio tiveram destino diverso: muitos permaneceram nas antigas fazendas escravocratas, na condição ambígua de trabalhadores “livres”; alguns migraram para outras regiões, buscando melhores condições de vida; o grande contingente aquilombado permaneceu em suas terras; e, por fim, algumas comunidades afro-brasileiras se formaram em terras concedidas por antigos proprietários ou em terras apropriadas. Seja como for, um grande contingente afrodescendente convive no ambiente rural em condições de vida similares aos pequenos proprietários rurais. Entre os “caipiras” “brancos” e os libertos “negros” houve grandes trocas culturais. Em relação aos elementos culturais afrodescendentes houve uma reação ambígua: de um lado, o aberto preconceito para com seus rituais, frequentemente taxados como feitiçaria ou magia negra; por outro lado, contraditoriamente, grande fascínio e influência de elementos rituais negros, como seus ritmos, cantos e danças. Essa ambiguidade acompanhava um processo social de maiores proporções: o dilema da inclusão dos novos cidadãos libertos na sociedade republicana nascente. A elite conservadora, demasiada influenciada pelos valores civilizatórios europeus, tendia a rechaçar a escravidão como coisa do passado, como mácula a ser superada na construção de uma


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nação. Por outro lado, havia a necessidade pungente de encontrar um lugar social aos libertos, que, obviamente, possuíam as marcas da escravidão em carne viva no seu modo de ser. Do ponto de vista das tradições culturais houve duplo movimento: as danças afrodescendentes, como o moçambique e o jongo, passam por diversas modificações sob o olhar da moralidade cristã vigente; e as expressões tradicionais caipiras incorporam elementos dos rituais afrodescendentes. As coreografias da dança do jongo, por exemplo, antes consideradas lascivas e obscenas, vão se modificando aos olhares civilizados e são frequentemente comparadas às danças de origem portuguesa, como a quadrilha. Os pontos de jongo, antes tidos por incompreensíveis ou poeticamente pobres, são agora considerados “torneios espirituais” – para utilizar expressão do cronista Mário Aguiar. Trata-se de um reflexo do esforço em incluir os libertos e suas tradições culturais à vida republicana. Contudo, o preconceito que pairava em relação às “danças dos escravos” ou “danças dos pretos” impedia que muitos caipiras delas participassem. É claro que passou a ser corriqueiro a presença de “brancos” no moçambique ou no jongo, mas houve uma outra estratégia sutil de os “caipiras” “brancos” lidarem com os rituais afrodescendentes. A antiga divisão rigorosa entre salão e terreiro – ou danças de família e danças indecentes, expressões “brancas” e batuques “negros” – sede lugar a sutil interpenetração. Os jongos continuam


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sendo dançados nos terreiros, ao som de tambores, mas seus versos e ritmos invadem os salões. Trata-se de uma incorporação do jongo sob a feição de “samba”: os conhecidos sambas rurais paulistas, ainda hoje presentes em São Luiz do Paraitinga. Tais “sambas” são executados sob acompanhamento de instrumentos tradicionais da cultura caipira, especialmente pandeiro e viola, mas incorporam os versos, as formas de cantar, as danças e os ritmos negros. Tudo ocorre como se, impossibilitados de jongarem pelo premente preconceito racial, mas fascinados pelos seus ritmos, os “caipiras” “brancos” inventassem uma forma de jongar no salão. O “samba” rural luizense foi uma dessas estratégias de apropriação de elementos da cultura negra em roupagem familiar aos ouvidos e gostos dos pequenos proprietários rurais, demasiado influenciados pelos cantos e danças de origem portuguesa (como a cana-verde e a Dança do Caranguejo, por exemplo). O canto do Brão é outro exemplo dessa apropriação: pequenos proprietários rurais, provenientes de diversas etnias, incorporam o jongo, enquanto canto de trabalho dos escravos, mas agora sob uma nova configuração. Mestre Renô Martins afirma que o brão foi “gerado pelos escravos”. Seu tio Agostinho, com o qual aprendeu a canta o Brão, contava que, no tempo da escravidão, “os negros cantavam o brão, mas cantavam baixinho para o senhor não escutar. Quando o senhor ia viajar, eles cantavam mais alto, porque o tomador de conta gostava de ver eles cantarem’”


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Criado no bairro do Mato Dentro, próximo à Fazenda Santana, onde, inclusive, cursou os primeiros anos do ensino formal, o mestre da cultura popular ouvira também de um filho de escravos daquela fazenda que os afrodescendentes cantavam o brão em suas atividades na lavoura. Assim, a “linha” do Brão estaria pautada no “ponto” do jongo, havendo mudança apenas no nome. Talvez nem no nome, pois a expressão linha é utilizada por Alceu Maynard de Araújo em seus registros sobre o jongo em São Luiz do Paraitinga. A expressão é também disseminada pelo jongo em todo o Vale do Paraíba, o que permite a Maria de Lourdes Borges Ribeiro associar as diversas “linhas” do jongo com as “linhas da Macumba”, especialmente a “linha de caxambu”, descrita por Artur Ramos. Assim, as “linhas” do Brão são apropriações “caipiras” dos pontos de jongo. Ambos possuem como característica primordial o improviso livre – despido das formas poéticas lusitanas, como observaremos mais adiante. O jongo e o canto do Brão também versam um enigma ou advinha, a ser decifrado pelo cantador desafiado. Tal enigma, em ambas as cantigas, é formulado a partir de intrincada linguagem metafórica, conhecida apenas por quem partilha um mesmo modo de vida. Contudo, a mandinga dos pontos de jongo, ou seja, seu teor mágico efetivo, não encontra paralelo no canto do Brão. Os feitiços afrodescendentes cantados em linguagem


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mística ficam de fora do canto do Brão, exatamente pelo temor e preconceito que os rituais afro-brasileiros suscitavam na sociedade luizense – haja visto a grande quantidade de processos criminais no pós-abolição, que constituíam uma verdadeira caçada aos “feiticeiros negros”. O contexto de realização do jongo enquanto canto de trabalho e do Brão também é em tudo similar: o trabalho no eito, com os cantadores a uma distância tal que conseguem ser ouvidos mutuamente. Assim, se o mutirão tem procedência plural, o canto do brão, conforme memória de cantadores, tem fortes raízes nos cantos de trabalho afro-brasileiros, em especialmente o jongo. Inclusive, uma das prováveis origens do jongo afro-brasileiro é a instituição angolana do onjango – tese defendida pelo importante estudioso do jongo, Paulo Dias. Na África, o onjango ocupava lugar central na organização das atividades comunitárias, abrangendo aspectos múltiplos como ligados a educação, rituais de iniciação, justiça popular, celebração de festas, etc. Uma das variações do onjango era a feição denominada “ondjuluka/otchipito” (solidariedade). Conforme observa Martinho Kavaya, o “ondjuluka era o encontro de planejamento de um projeto de vida ou de uma ação a ser realizada em comunidade, pela comunidade e para a comunidade em forma de mutirão solidário”. Tais mutirões africanos eram convocados com


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diversas finalidades, tais como: preparação de casamentos ou velórios, organização para receber uma visita, preparação de atividades bélicas ou organização de caçadas coletivas. Kavaya ainda ressalta ser comum a realização de festas após tais mutirões, com danças e cantos que celebram a vida. A partir dessa esfera do onjango angolano, Paulo Dias destaca a relação do jongo valeparaibano com mutirões rurais:

Quanto à articulação da celebração jongueira com o trabalho solidário, ainda pode ser observada em lugares onde se preserva a pequena propriedade rural e seus modos tradicionais de relacionamento vicinal, como nos municípios paulistas de Lagoinha e Cunha. Nos trabalhos coletivos de capina conhecidos como puchirões, o ritmo das enxadas escande os versos cantados em duplas pelos camaradas, contendo enigmas (linha) e louvações (amizade). Ao término destes, o esforço de todos é coroado com o oferecimento, pelo dono da casa, de uma refeição, seguida de um jongo, que pode durar até o sol raiar. Os versos cantados aos quais se refere o etnomusicólogo são exatamente os cantos do Brão. Porém, sua articulação do jongo afro-brasileiro como ressignificação diaspórica do onjango angolano serve também para o legado africano nos trabalhos solidários rurais praticados na região.


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Aqui está uma identidade mais profunda entre o canto do Brão e o jongo. Ambos consagram a vida comunitária e são principal fonte de renovação das tradições. Trata-se de uma função política fundamental. A união de diferentes etnias centro-africanas na constituição de uma identidade cultural compartilhada foi o grande ponto do Jongo. Permitiu o enfrentamento da escravidão, com as combinações de revoltas e formação de quilombos, além da consolidação de uma comunidade negra. Enquanto mutirão de homens livres, o Brão parece dar continuidade a essa função comunitária: fortalece uma identidade caipira, com um universo simbólico e linguajar em comum, mas também uma forma de organização do trabalho rural pautada no auxílio mútuo e camaradagem – que, de alguma forma, fazem frente à inserção de relações modernas de trabalho, pautadas na exploração capitalista. Enquanto o jongo combate a escravidão, o Brão canta o trabalho coletivo do povo liberto, contra o trabalho assalariado moderno.




4. BrĂŁo atravĂŠs dos tempos


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A partir da década de 1930, o movimento folclorista brasileiro se fortalece em diversas regiões. No Estado de São Paulo, a criação da Sociedade de Etnografia e Folclore, em 1937, sob a coordenação de Mário de Andrade, simboliza a reunião de folcloristas paulistas e o empenho em registrar diversas expressões das culturas tradicionais da região. Data desta época os primeiros registros de manifestações de São Luiz do Paraitinga, como o jongo, o calango, a cavalhada, o moçambique, dentre outras. O mutirão e o Brão são registrados em primeira mão justamente nesta época, por pesquisadores da cidade de São Paulo interessados na vida das comunidades rurais e suas tradições culturais. Antes dessa época, no entanto, uma briga entre familiares permite pensar uma primeira menção aos cantos de desafio em mutirões rurais. Vejamos.

4.1. Um mutirão de 1916

A primeira fonte histórica sobre mutirões em São Luiz do Paraitinga, com cantos de desafio, é uma notícia do jornal O Porvir, de 24 de dezembro de 1916. A matéria é comentada da seguinte maneira, pelo historiador Jaime de Almeida:


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Às vésperas do Natal de 1916, durante um mutirão na roça de Sebastião Egídio Pinto, no Bairro dos Alvarengas, José Mandu fere seu sobrinho João Mandu a faca e o dono da casa, que tentava apaziguar o tumulto, recebe uma cacetada. O motivo do conflito, segundo o jornal ‘infantil’ O Porvir, são cantigas de mau gosto que estimulam uma rixa antiga. Sabemos que o bairro dos Alvarengas foi um dos grandes polos de mutirão com cantiga de Brão. Há registros de que os cantos de Brão de antigamente estabeleciam acirrada disputa entre os mutireiros. Assim, é possível que a tal “cantiga de mau gosto” seja o canto do Brão. Jaime de Almeida comenta o quanto “os desafios são uma forma convencional que a tradição reserva para quem pretende medir forças com algum desafeto”. Assim, uma rixa familiar encontrou no mutirão uma forma de descarga de suas tensões. Contudo, se mais comumente o desafio cantado serve como ritualização da violência, resolvendo o conflito de maneira simbólica e não violenta, neste caso o artifício da ritualização não surtiu resultado: o conflito foi resolvido na faca. São inúmeras as recordações de cantadores locais sobre conflitos originados em canto de desafio que terminam em morte. Lavínia Raymond, em seu estudo sobre o jongo no ano de 1944, ouve do informante, João Antônio Pereira de Castro, “a história de um jongo entre gente da roça e gente da cidade; os da cidade ‘fechavam’ muito o jongo, não davam licença


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para os da roça entrarem. No dia seguinte, o ‘galo’ (jongueiro importante, rival temido) da cidade amanheceu morto, com uma facada....”. É possível que, nas primeiras décadas do século XX, os cantos de desafio tivessem um clima bélico mais pesado. Se não se pode afirmar que a notícia de 1916 se refira ao canto do Brão, com certeza esse ambiente agressivo atravessava as cantigas dos mutirões. Nas décadas seguintes, contudo, o canto do Brão vai se caracterizar por intensa confraternização entre os companheiros, muito embora as disputas sejam igualmente aguerridas.

4.2. O primeiro registro do Brão: década de 1940

No texto intitulado Muquirão, publicado no ano de 1948, por Alceu Maynard de Araújo, temos o primeiro registro do Brão em São Luiz do Paraitinga. O folclorista observa que a tradição dos mutirões rurais estava desaparecendo em outras regiões, porém, na cidade, era praticada em grande parte dos bairros.


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O mutirão teve lugar no sítio do Engenho Velho (Bairro do Oriente). Tinha o objetivo de fazer a “carpição” ou “acudir a limpa do milho”, ou seja, capinar um milharal. O organizador do mutirão recebe a denominação transitória de “patrão”. O convite é feito para todos os moradores do bairro, e tem forte sentido de obrigação. Como não é necessária nenhuma especialização, qualquer trabalhador rural pode participar. Aqueles sitiantes que não podem comparecer enviam um representante, que pode ser, inclusive, um trabalhador assalariado. Até aquelas pessoas doentes se sentem no dever de participarem de alguma forma, como, por exemplo, tocando viola. Daí o mutirão rural reunir grande número de pessoas. Na chegada dos mutireiros é oferecida uma refeição de desjejum, com café e farinha de milho. Os homens, então, dirigem-se ao eito, enquanto as mulheres ficam responsáveis pelo preparo dos alimentos. Cabe ao “patrão” determinar a atividade que será executada, em que extensão de terra e de que forma. A forma de trabalho pode ser em “linha” (todos os trabalhadores executando trabalho em única fileira) ou em “quadra” ou “tarefa” (na qual cada trabalhador fica responsável por um pedaço de terra, a quadra). A área total a ser trabalhada é dividida em duas partes: uma a ser trabalhada pelo “patrão” e seus camaradas; outra em que trabalham os demais companheiros convidados.


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Há ferrenha competição entre os trabalhadores. Alguns mutireiros fazem inscrições no cabo da enxada com dizeres tais como: “Comigo você não trinca” ou “Esta dará a salmora”. Isto porque o mais rápido e eficiente trabalhador do mutirão recebe o título de “salmorento”, aquele premiado com a entrega de flores às moças solteiras presentes. O primeiro a terminar sua tarefa faz um estampido, batendo sua enxada em uma pedra ou ferro. É o sinal de que a peleja tem seu vencedor. O prêmio do salmorento simboliza sua prioridade no namoro das moças, além de ter o privilégio de iniciar a linha de Brão. Há, portanto, espécie de continuidade da disputa na enxada com aquela do canto de desafio. Ambas as atividades são responsáveis pelo prestígio social do vencedor e posição de destaque na comunidade. O último a terminar sua “tarefa”, muitas vezes auxiliado pelos demais, é chacoteado com o título de “caldeirão”, a quem cabe as atividades menosprezadas pelos demais. Ao terminar sua quadra, o salmorento chega a algum trabalhador de sua tarefa ou grupo e canta:

Eu canto este meu verso Que hoje ninguém cantô Dô um viva ao Patrão E outro pros cantadô


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Ao final do canto, passa a ajudar seu time para vencer a peleja contra os membros da outra tarefa. O almoço é servido lá pelas 10 horas, levado ao eito pelas mulheres, em latas ou vasilhas grandes. É servida grande quantidade de cachaça como aperitivo. Aproximadamente as 13 horas é oferecido o café da tarde. Novamente, os trabalhadores servem-se de grande quantidade de cachaça, desta vez com o objetivo de “limpar a garganta” dos cantadores para iniciar o brão. Após todas as duas tarefas terem sido concluídas, se tem início o canto do brão, inicialmente como “vivório”: cantadores se dividem em duplas, em dueto, e cantam no eito durante o trabalho. As toadas de cada dupla são fixas e acompanhadas pelo ritmo das enxadas – eventualmente, se alguém estiver ali tocando viola, por não poder tomar parte no trabalho de capina, há o acompanhamento desse instrumento. Logo, os cantadores passam a fazer a linha do brão, ou seja, um canto improvisado em forma de enigma que deve ser desatado pelos demais cantadores. Trata-se de um canto de desafio, na forma de “demanda” ou de “perguntas”. O Brão segue uma única melodia praticada por todas as duplas. O desafio se inicia com um “pedido de licença”:

Meu amigo cantadô


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escuita o que vô cantá, (bis) eu trago aqui um causo pá nóis tudo podê brincá (bis)

Uma das duplas rivais responde:

Eu canto êste meu verso pro meu amigo Juvená (bis) pode sortá o seu causinho, nóis tamo aqui pá te ajudá (bis)

Alceu Maynard de Araújo registrou na íntegra um canto dialogado do Brão, entre os jovens irmãos José Bento (J) e Antenor Bento Gouvêa (A):

A – Meu amigo Zé Bento, pra ocê eu vô fala, (bis) num vim andano pô chão, e nem avoano pô á, (bis) J – Meu amigo Antenô,


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irmão do meu coração, (bis) pergunto se veiu a cavalo, ou se veiu de caminhão? (bis) A – Meu amigo Zé Bento, já falei e torno a falá, o pé num tava no chão, mas enroscado nargum lugá J – Meu amigo Antenô, eu canto na boa fé, eu pregunto pa ocê onde tava enroscado o pé? A – Meu amigo Zé Bento, Esse causo é de duvidá, O pé num tava no chão, Tava enroscado no á J – Meu amigo Antenô, Agora até fiz careta, Seu pé num tava no chão, Decerto tava de muleta Eurico Bento e José Bento Gouveia Foto: Alceu Maynard de Araújo (Alguns ritos mágicos, 1958)

A – Meu amigo Zé Bento, Ocê tá muito enganado,


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O pé num tava de muleta, Mas vinha vino carregado. J – Meu amigo Antenô, Agora vô te dá a resposta, Eu fico admirado, D’ocê carrega o pé nas costa A – Meu amigo Zé Bento, Não é que tava carregano Era nas costa do meu cavalo Que eu tava viajano. J – Meu amigo Antenô, Cabocrinho sacudido, Comigo ocê enrosco, Deu a linha por perdido. A – Vô cantá este meus verso Pro meu amigo José, Cantei as linhas p’rocê, Porque ocê veio beijá meu pé J – Hoje nesse muquirão, Com nada m’imbaraço Os cantadô que tão aqui


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Trago preso embaixo do braço A – Prá vim neste muquirão Eu torci o meu bigode Pode juntá teus companhero Que comigo ocê num pode J – Meu amigo Antenô, Nóis tava nóis dois junto, Cantadô de sua marca Eu faço perdê o assunto Não tendo Antenor dado a resposta, José Bento, canta outro para acabar, porque Antenor ficou calado, ou seja, deu-se por derrotado:

J – Meu amigo Antenô Ocê é muito garganta Bamo pará de cantá Porque tá na hora da janta.

A linha de Brão foi formulada por Antenor Bento Gouveia, sobre como teria ele chegado no muquirão: não estava voando no ar, nem andando no chão. Lançado o enigma,


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inicia-se o canto alternado em um jogo dialogado. José Bento Gouveia passa a fazer perguntas para facilitar a decifração, frequentemente querendo saber mais detalhes que possibilitem matar a charada. Aquele que põe a linha pode responder diretamente, ou, às vezes, embaralhar o enigma, atrapalhando sua decifração. No final das contas, Antenor entrega a linha, quando afirma que “era nas costa do meu cavalo / que eu tava viajano”. Daí o próximo improviso de José Bento se referir à Antenor, que “deu a linha por perdido”. Neste momento ocorre algo interessante, os cantadores continuam a cantoria com versos mais agressivos e provocadores, incomuns no canto do Brão atual. Por fim, José Bento vence a peleja, pois Antenor deixa de responder a seu verso, como sinal evidente de que entregou os pontos. Perceba como esse primeiro registro pormenorizado do canto do Brão traz uma cantoria muito diferente daquele que se convencionou no município. O cantador canta sozinho, sem a parelha da segunda voz paralela, em improviso regido pela forma fixa da quadra (estrofe com quatro versos, com rimas obrigatórias entre o segundo e o quarto versos), sem a toada fixa de cada cantador – características que veremos em detalhes posteriormente. Terminado o trabalho, há farto jantar. O patrão solta foguetes para anunciar a todos o início do festejo. Traz-se um garrote médio no laço para servir os participantes. Há grande


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alvoroço na cata do boi, rapidamente esquartejado pelo salmorento, o melhor acudidor da limpa de milho. Zé Emboava, o salmorento, foi sangrar o boi com um ritual em que coloca na cabeça do novilho algumas flores que ganhara das moças, como presente por sua vitória. Ao caldeirão coube a tarefa ingrata de recolher o sangue para o “chouriço”. O churrasco é devorado com tamanha voracidade, ainda um pouco cru, levando Alceu Maynard de Araújo associá-lo à omofagia praticada em cerimoniais ao deus grego Dionísio. O jantar foi servido com grande capricho pela família anfitriã: leitoas, frangos, patos, torresmo e pururuca, acompanhados por arroz pilado, feijão, farofa de miúdos e grande quantidade de farinha de milho. Foram servidos, também, bolos de farinha, bolo de penca (de tapioca), bolo de arroz, paçoca de amendoim, doce de cidra, furrundum, melado com queijo e muito café, adoçado com garapa. Após o jantar, houve animado baile no salão. Cantadores, violeiros e um sanfoneiro alegraram a função com a dança da xiba, quadrilha e catira. Ao ar livre, ao redor da fogueira, cantadores se desafiavam no calango. Antes de ir cada qual para sua casa, o cantador que mais se destacou no brão “puxa” o canto de despedida, cantado em coro por todos os presentes. Trata-se de uma homenagem ao patrão:


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Vô cantá êste meu verso pro meu amigo patrão, eu dispeço do senhô, com dô no coração

Ao que o “patrão” responde, tirando o chapéu:

Fiquei muito satisfeito cum vontádi di chorá, sô moradô do Oriente, percisano é só chamá

4.3. O Brão na década de 1980

Corria a notícia de que Zé Leite iria fazer um mutirão. A notícia corre junto a vizinhos e compadres e com ela vai a obrigação de todos tomarem parte do adjutório. O mutirão é convocado quando se necessita de um trabalho coletivo e opta-se pela forma solidária do mutirão, em detrimento do serviço pago. O convite reveste-se de convocação, pois os


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mutireiros se sentem obrigados a tomarem parte do trabalho coletivo, seja por vínculos de compadrio, seja pelo anfitrião já ter contribuído em um mutirão convocado pelo convidado. O mutirão do Brão ocorreu em fevereiro de 1984, promovido pelo fazendeiro Zé Leite, no Bairro de Santa Cruz do Rio Abaixo, conhecido como “bairro dos mineiros”. O anfitrião viera há alguns anos atrás habitar a região, junto a outras tantas famílias das bandas de Itamonte e Pouso Alto (Minas Gerais). Participaram do adjutório cerca de sessenta homens – vindos de Catuçaba, de Lagoinha, de Santa Rita e Santa Cruz do Rio Abaixo – para fazer a “bateção de pasto” para o pecuarista. Cabia ao patrão os gatos com o transporte (gasolina) de alguns mutireiros, além do fornecimento de ferramentas àqueles que não traziam. Os mutireiros eram donos de fazendas ou sítios, donos de vendas na cidade, arrendatários, meeiros, empregados mensalistas e camaradas diaristas. Logo que chegavam, as duplas de Brão já entoavam suas cantigas preferidas, em meio a pedidos de licença ao “patrão”. Carlos Rodrigues Brandão assemelha “os cantorios secos, tristes, quase lamentosos” àqueles das “duplas sertanejas”. Cada dupla sempre entoa uma cantiga própria que funciona como sua “assinatura musical”.


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Enquanto os homens cantavam e organizavam os instrumentos de trabalho para seguirem ao eito, as mulheres trabalhavam na cozinha, desde o dia anterior. Uma delas pôde comentar: “Diversão de homem, trabalho da mulher”. Após tomar a refeição da manhã, os trabalhadores se dirigiam ao eito. Havia uma preocupação de todos sobre a eficácia do trabalho e cumprimento da empreitada determinada pelo patrão. Zé Leite, contudo, dedicava-se a principal obrigação do patrão: tratar bem o povo, ou seja, prover comida e bebida. Atravessava o eito, montado numa mula carregada com dois galões de leite cheios de cachaça. Servia a todos com abundância e insistência. O “patrão” não exercia qualquer controle sob o trabalho realizado, mas se dedicava a incentivar ou motivar os trabalhadores. Parecia se preocupar, antes, com a festa, ou o trabalho festivo, pois apenas servia seus companheiros. Para Carlos Rodrigues Brandão, comportava-se mais como “festeiro” do que como “patrão”. O “patrão” se referia aos demais participantes como “companheiros” (trabalhador voluntário) e não “camarada” (empegado pago por dia), revelando a relação que se estabelecia entre ambos. Os trabalhadores se dispunham em “linhas” no eito e as duplas passaram a cantar de improviso, um desafio em linguagem enigmática a ser decifrado ou “desmanchado”. O tom de brincadeira e divertimento, leva o observador a associar o Brão a um diálogo coletivo para


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distrair a dura labuta: “Diálogo que é o próprio brão, pois ele não quer ser outra coisa mais do que uma conversa múltipla e cantada durante a jornada do trabalho”. Contudo, além do companheirismo, Carlos Rodrigues Brandão salienta o mutirão e o Brão como “exercício ritual da competição e mesmo do conflito”. Isto porque ao lado do trabalho cooperativo, há competição do mais hábil trabalhador; ao lado do diálogo coletivo, há o desafio cantado. É exatamente enquanto cantos que ritualizam desafios que o pesquisador assemelha o Brão, o jongo e o calango – este último uma “troca cerimonial de desaforos”. Esse mesmo contraste atravessa o relacionamento entre os participantes: tratam-se como irmãos e companheiros, em condição de igualdade, relembrando amizades e consagrando a partilha da vida em comum; contudo, competem, na enxada e no canto, como ritualização das diferenças entre si. O Brão é cantado em todos os momentos da convivência do mutirão: na chegada, as saudações ao patrão e aos demais companheiros; no trabalho no eito; durante as refeições; e na despedida. As duplas de cantadores intercalam um improviso com uma toada fixa. Das diversas toadas que Carlos Rodrigues Brandão coletou, há aquelas de uma frase só (“oi rosa branca cheira”) ou a organização mais comum em quadras:


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A minha pombinha branca Bateu asa e avoou Me deixou e foi se embora Meu cuitelo beija-flor É hoje que eu vim Hoje mesmo eu vou voltar Na hora da despedida Não quero ver ninguém chorar No sertão adonde eu moro Onde os passarinho pia Aí, morena! Não tenho mais alegria Ribeirão que corre corre Corre meio maneiroso Se namoro fosse crime Eu já era criminoso Além da toada fixa, o diálogo entre cantadores é estabelecido pelo improviso. Os improvisos de chegança anotados pelo observador, são os seguintes:

Tô chegando, tô chegando


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Nessa hora de alegria Eu saúdo o meu patrão Com toda a sua família Do povo de Santa Rita Eu tenho muita saudade Tô cantando de alegria Pra vocês, companheirada

Um exemplo de despedida:

Na hora da despedida Eu não quero nem pensar Vou deixar meus companheiros De saudade eu vou chorar Carlos Rodrigues Brandão nota que as saudações recíprocas são formas de cantar as cerimonias presentes na convivência cotidiana entre os companheiros: o cumprimento inicial, a conversa e a despedida. Contudo, “a alma do brão é a linha”. Naquele mutirão do Zé Leite, a linha não foi desmanchada, mas revelada no momento de despedida. No início do mutirão, chegaram


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companheiros atrasados e sem ferramentas. Como não havia mais foices para todos, o patrão dispôs enxadões para os dois retardatários. A linha foi formulada tendo em vista um patrão com uma “novilhada”, na qual havia uma parelha de novilhos bem diferentes, tratando-se da dupla de trabalhadores com enxadas – diferente dos demais que trabalhavam com foices. O enigma proposto pela dupla Mário Pacífico e Zé Amador, do bairro de Santa Rita, foi o seguinte: Meu patrão tem uma boiada Boi e novilho emparelhado No sertão aonde eu moro Onde os passarinhos piam Ai, morena! Não tenho mais alegria

A partir do enigma enunciado, há alguns diálogos entre as duplas, registrados pelo antropólogo: Se esses bois é de negócio To disposto a breganhar É hoje que eu vim aqui Hoje mesmo eu vou voltar


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Na hora da despedida Não quero ver ninguém chorar No meio da novilhada Tem dois boizinho emparelhado No sertão aonde eu moro (...) Meu amigo Zé Pacífico Quero comprar essa juntinha (bis) Ao final do mutirão, os cantadores de Brão improvisam saudações ao “patrão” como “demonstração pública de apreço”.

4.4. Mais de 400 cantadores no eito: um mutirão de Seu Argeu

A memória dos mestres populares é a fonte caudalosa das culturas tradicionais de transmissão oral. Algumas cantigas do Brão são rememoradas com entusiasmo pelos mutireiros, dada sua importância para o fortalecimento dessa expressão tradicional. Era o final da década de 1970 e Seu Argeu, grande jongueiro e cantador de Brão, convoca um mutirão para limpeza do pasto, em sua fazenda, no bairro dos Alvarengas. Havia


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mais de quatrocentos trabalhadores! Os relatos convergem para uma paisagem surpreendente: um grotão com algumas montanhas repletas de cantadores, cada qual com sua enxada em punho. A fileira de mutireiros cobria quilômetros. Agenor Martins e Pavão, do Distrito de Catuçaba, estavam entre os cantadores. O jovem Agenor sentia-se especialmente confiante naquela manhã e comentara a seu companheiro que tinha uma linha boa para colocar no mutirão. “- Você está maluco? É um mutirão do Argeuzão, todo cantadô bão da cidade estará lá!” – exclamou Pavão, assustado. Ao chegar no eito, Agenor procurou um lugar no meio da grande fileira, pois queria cantar para todos ouvirem. Seu Argeu demorou-se para chegar no eito, ocupado com os preparativos para a recepção de tantos trabalhadores. Porém, ao se aproximar e notar que ninguém cantava, exclamou enfurecido: “Morreu alguém por aí? Ou isso é um mutirão de viúva?”. O anfitrião se aborrecia com o fato de que nenhum cantador ainda iniciava a cantiga do Brão e, com seu cavalo carregado de três “latões” de cachaça, atravessou a longa fileira debochando dos cantadores. Pelo enorme respeito e temor suscitado pelo “patrão”, os cantadores ficaram ainda mais assustados. Ao chegar ao local onde estava Agenor Martins, Seu Argeu ironizou ao jovem: “Ninguém aqui quer cantar... estão todos cagando de medo. Canta você então Genor”. Para a surpresa de todos, Agenor Martins cantou a plenos pulmões. Saudou o patrão


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e os demais companheiros e colocou a linha: tinha ele um cobertor todo rasgado e precisava da ajuda dos companheiros de mutirão para remendarem, pois o frio estava chegando e ele não tinha outra forma de se esquentar. Das diversas vezes que ouvi esta história, contada por mestre Renô Martins, Pavão ou Seu Pedro Santo, um detalhe me surpreende: a grande quantidade de cantadores espalhados por várias montanhas, cantando quase concomitantemente. Seu Renô diz que parecia o canto dos galos na alvorada: pululando cantos de todos os lados. Colocada a linha, inúmeros cantadores experimentados procuravam decifrar o enigma proposto pelo jovem cantador de Catuçaba. Muitos pensaram que o tal cobertor era a própria empreitada do mutirão, ou seja, o trabalho de limpeza do pasto que deveria ser realizado por todos os trabalhadores unidos. Moreirinha, um dos cantadores mais afamados, solicitou a Agenor que cantassem juntos, numa estratégia para se aproximar de quem pôs a linha, almejando coletar pistas que o levassem a matar a charada. Cantaram o dia todo e ninguém conseguiu desatar a linha. Alguns cantadores até duvidaram do enigma proposto pelo jovem, pensando que nem ele próprio sabia do que estava cantando. A cada pergunta, contudo, o jovem respondia com firmeza. Dava pistas, como quando ponderava que já havia até encomendado novos cobertores, mas se não o ajudassem, não teria como pagá-los e o dono da loja iria querer os cobertores de volta.


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Durante aquele mês de abril, Agenor Martins percorrera arduamente muitos dos bairros rurais do município, na condição de festeiro da importante festa de 13 de maio. De casa em casa, conversou com camaradas e conhecidos, distribuindo listas que simbolizavam o compromisso de cada um em arrecadar fundos para a realização da festa. Muitos dos cantadores presentes estavam com as tais listas em sua casa e Agenor estava aflito, pois já havia feito despesas fiadas para a organização da festa, mas ainda não tinha os recursos necessários para cumprir esses compromissos financeiros. O sol se pôs e os mutireiros caminhavam para a janta. Perguntaram a Agenor: onde estaria o tal cobertor, ao que declara que cada cantador tinha em sua casa um retalho do mesmo:

Delicados cumpanhero Ocês são muito descuidado Aqui memo na casa do patrão Tem um pedaço pro cobertor fica bem remendado Com essa pista mais direta, os cantadores desataram a linha: o cobertor era a grande festa do dia 13 de maio e os tais retalhos eram as folhas de arrecadação de recursos (as “listas da festa”).


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Seu Argeu exclamou, surpreso: “Mais que linha boa, Genor!”. Nasce um cantador. Mestre Renô Martins narra esse mutirão como sua iniciação na cantoria de Brão. A partir desse momento, passa a ser convidado para todos os mutirões na condição de grande cantador. Sua fama percorrera toda a cidade e, de quebra, a linha que propusera ajudou a alavancar as arrecadações daquela que foi uma grande festa de 13 de maio. Esse mutirão memorável é importante por diversos motivos. Primeiramente porque demonstra um momento histórico em que a instituição do adjutório estava muito fortalecida: o mutirão contava com centenas de trabalhadores, oriundos de quase todos os bairros da extensa área rural de São Luiz do Paraitinga, além de gente das cidades vizinhas de Cunha e Lagoinha. Segundo, porque esclarece que cada uma das comunidades rurais realizava mutirões semanalmente e tinha muitos cantadores experimentados. É um reflexo do auge do trabalho cooperativo no município e da grande popularidade da cantiga do Brão. O mutirão era tradição que ocupava posição central no fortalecimento e na renovação de outras expressões da cultura popular. O próprio reconhecimento de um “cantadô” passava por sua habilidade na cantoria do Brão. Sabendo da importância do cantador em culturas tradicionais, este fato é digno de nota, pois era o Brão que legitimava a importância deste ou daquele cantador. Também outros momentos de consagração da vida comunitária, como as


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festas, eram organizados na ocasião dos mutirões. As festas que se seguem ao mutirão eram grandes encontros de cantadores que compartilhavam cantorias e renovavam tradições. Essa importância do mutirão pode ser comparada aos pousos de folias ou aos pousos de romarias: os grandes celeiros da cultura caipira, com o encontro de cantadores de diversas regiões e a partilha de todo o manancial da cantoria popular.

4.5. Brão de dia e jongo de noite: um mutirão de Seu Alfredo Rocha

Alfredo Rocha, do bairro da Água Santa, também era uma grande liderança na organização de mutirões rurais. São inúmeras as lembranças sobre os adjutórios por ele convocados, que possuem um elemento importante: a relação entre o Brão e o jongo. Mestre Renô Martins se recorda de um mutirão de brão organizado pelo compadre Alfredinho da Rocha. O mutirão diurno foi emendado com um jongo, daqueles de varar a madrugada. Renô Martins – que não é jongueiro, mas cantador de Brão – participou da roda de jongo e conseguiu decifrar um ponto de “ingoromenta” (corruptela de argumento, denominação para um canto de desafio ou demanda) do jongueiro Luiz Mariano. O ponto dizia: “Ô, o pai que apusentá / mai num pode não / purque o fio num fica no lugá”. Seu Renô


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Martins observou que o jongueiro se referia aos tambores, pois o tambu (o pai) era centenário e estava com o couro bem deteriorado. Porém, o candongueiro (o filho), segundo Seu Renô, também estava precisando de reparo. Daí o ponto de “desamarração”: “Ô, o pai que apusentá / mais num vai / purque o fio é mais véio que o pai”. O coro repetiu o verso final, aos gargalhos, para ira do jongueiro, que só não arrumou prontamente confusão pelo respeito que se tem a este cantador de Brão. O verso de Luiz Mariano poderia ser decifrado também de outra forma. O jongueiro destaca a dificuldade de renovação do jongo, pelo desinteresse das gerações mais novas – que não param no lugar, seja porque migram para cidades vizinhas em busca de melhores condições de vida, seja porque se interessam por temas contemporâneos criados distantes do seu local de origem. Daí os mais jovens não poderem tomar o lugar dos pais, renovando a atividade tradicional, e estes não poderem se aposentar. É um ponto poderoso, pois é um presságio. Foi cantado perto do fim da última geração dos grandes jongueiros luizenses, que se foram sem que seus filhos ficassem em seus lugares. Daí ser curiosa a decifração de Seu Renô Martins, que desato da seguinte forma: os velhos jongueiros estão cansados e se queixam dos sinais de fraqueza da cultura popular e tradicional, mas seus filhos, que a viveram pouco e pouco sentiram seu potencial comunitário, estão mais velhos que os pais – ou seja, estão mais cansados ainda, talvez


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porque imersos na cultura de massa e suas mercadorias de entretenimento para um público passivo e prostrado. De qualquer forma, fica explícita a estreita relação entre jongo e Brão. Os mesmos cantadores se desafiam em versos similares, com enigmas semelhantes e um diálogo cantado praticamente igual. Ocorre que a tradição dos mutirões rurais convencionou chamar seu canto de trabalho como Brão, com vozes paralelas (parelhas) e sem acompanhamento de instrumentos musicais, e o ritual sob a fogueira e ao som de tambu e candongueiro permanece sendo denominado jongo. Um depoimento de Nhô Antônio Monteiro, jongueiro da cidade de Cunha, é fundamental: o jongueiro esclarece ser comum cantar a “linha” dos mutirões rurais durante as rodas de jongo, propondo enigmas que devem ser decifrados. É uma ocasião em que Brão e jongo se interpenetram e quase se confundem.

4.6. O declínio dos mutirões

Já no século XXI, Mestre Renô Martins se recorda de um mutirão significativo. Havia doze anos que não participava de nenhuma cantoria de Brão e convidara alguns


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companheiros para realizar um “mutirão” em sua propriedade: o Sítio 03 Cachoeiras, no bairro da Cachoeirinha, Distrito de Catuçaba. Mestre Renô Martins recebeu com grande alegria antigos companheiros de mutirão que há tempos não encontrava. Subiram ao eito como tradição, mas logo ficou claro que não havia nenhuma necessidade de trabalho cooperativo a ser realizado, apenas a vontade de manter viva a cantoria do Brão. Cantaram. Como “patrão” da empreitada, mestre Renô Martins colocou a linha: a princesa de sua propriedade não saia de casa a doze anos e, justamente naquele dia, ela via a luz do sol. Os cantadores, entre cheganças, saudações e rememorações, logo se debruçaram sobre o tal enigma da princesa. Alguns imaginaram que se tratava de um familiar, outros pensaram se referir a alguma ferramenta de trabalho. Mestre Renô Martins e sua família serviram farto almoço, com a grande mesa de jantar que costumava ficar na cozinha da casa e, em ocasiões de festas ou de reuniões de família, era levada ao terreiro para melhor receber os visitantes. Cantou-se, ainda, a tarde toda, mas nada: as tentativas foram frustradas e ninguém havia descoberto a metáfora da princesa. Os “mutireiros”, contudo, não desanimaram e continuaram seu diálogo cantado até cair a noite. Na ocasião do jantar, a tal mesa já tinha retornado à cozinha da casa, em virtude do frio de lá de fora. Os cantadores todos estavam sentados à mesa, quando mestre Renô


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Martins passou a dar indícios mais concretos sobre a tal princesa – pressionado pelos cantadores que pediam que revelasse a linha. Em tom bem-humorado, mestre Renô canta que a princesa saiu de casa para ver o sol e já retornava, e uns mais abusados estavam até “passando a mão” nela:

Delicado companheiros, ai ai A princesa faz doze ano que não sai fora do castelo, ai ai Pois ela chorava e dizia Não vai, não vai Não vai, meu amor, não vai Um poquinho que ela saiu, ai ai Já tão passano a mão nela, ai ai Pois ela chorava e dizia (...) Nesse exato momento, Alfredinho Rocha, que estava com suas mãos repousadas exatamente na mesa, decifra a linha: a tal princesa era a mesa com a qual a família anfitriã servira os cantadores; a mesa que há doze anos não saía da cozinha, justamente pela ausência de mutirão – que trazia a necessidade de servir os cantadores no lado de fora da casa. Todos


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caíram na gargalhada pela metáfora, tão simples e tão complicada, proposta por esse grande cantador de Brão. Esse encontro é importante por dois pontos principais. Primeiro, por evidenciar o declínio do trabalho cooperativo nas comunidades rurais luizenses. Segundo, por anunciar uma mudança nos papéis entre o mutirão e o canto de trabalho: antes o Brão amenizava a labuta coletiva, agora o mutirão é pretexto para a manutenção da tradição da cantiga. Desde o “povoamento” da região, a instituição do mutirão rural congregava a principal forma de organização do trabalho para as atividades que necessitavam de mais trabalhadores dos que aqueles que cada família possuía. Com o pós-abolição e a fragmentação dos grandes latifúndios cafeeiros, o mutirão do Brão ganhou forças em duas frentes: fortaleceu-se como grande trunfo das comunidades rurais e elemento fundamental para a manutenção da vida em comum; floresceu em meio a trocas culturais entre as diversas etnias que formam e transformam o mundo caipira (descendentes de portugueses, indígenas e africanos). O mutirão estava no centro e o canto de trabalho era seu aliado: uma forma de congregação e consagração da vida comunitária que unia a necessidade de trabalho coletivo com o fortalecimento das tradições locais. A partir da década de 1990, há uma inversão: a cantiga do Brão toma o centro do encontro entre cantadores, que convocam um mutirão por pura tradição, não por necessidade. O mutirão, de fato, não ocorre, mas apenas serve de


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ensejo à cantoria. Como não se concebe a cantoria do Brão sem o trabalho cooperativo, quase que se simula ou apenas insinua uma atividade cooperativa de trabalho, para proporcionar a alegria do canto solidário. Essa inversão será a grande tônica dos registros futuros do canto do Brão: o trabalho cooperativo, quando ocorre, é meramente encenado nos registros audiovisuais ou apenas em áudio, como um elemento mantido por tradição, mas dispensável do ponto de vista prático. Em outras palavras, já não há mais mutirão, apenas o encontro para o canto coletivo. Que processos sociais estão implicados no fim do mutirão no município? Eis uma questão complexa. Começaria por pensar: quais aspectos sociais e econômicos caracterizam a vida da cidade de São Luiz do Paraitinga nesse período? Aqui a resposta é mais direta: é o momento de implementação do mercado turístico na cidade, além da invasão da indústria do eucalipto. Esmiuçemos essas duas atividades. Diversos pesquisadores que estudaram a história da cidade de São Luiz do Paraitinga convergem na descrição de alguns “ciclos” econômicos: a policultura familiar de subsistência, das primeiras tentativas de povoamento, no século XVII, até os primeiros anos do século XIX; a agricultura de subsistência, agora acrescida de produção excedente para abastecer demandas do mercado da capital, com a vinda da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808; a monocultura cafeeira, já no início do século XIX, que dura até os primeiros anos do


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século XX; o período da pecuária, datado do início da década de 1930’ até meados da década de 1980; e, por fim, o período atual caracterizado pela monocultura do eucalipto e pelo turismo. Cabe ressaltar que desde a sua fundação, a cidade de São Luiz exerceu importante papel de entreposto comercial entre as cidades do Vale do Paraíba paulista e o porto de Ubatuba, inicialmente no escoamento do ouro das Minas Gerais e, posteriormente, da própria produção cafeeira. A uma linda canção composta por mestre Renô Martins, chamada Fazenda Mato Dentro, que retrata suas memórias de infância, durante a década de 1940.

Quatro horas da manhã A tropa tava arriada Nóis Martinhos já saía Com a tropa carregada Carregada de leite Pra trazê em Catuçaba As seis hora da manhã Vinha a Embaré e pegava, ai ai A canção demonstra como a vida familiar daqueles pequenos produtores rurais gira em torno da criação de gado e produção de leite. Já no ano de 1914, alguns os fazendeiros


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recebem 20 sacas de sementes de capim como incentivo à pecuária. Porém, a atividade ganha grandes proporções apenas na década de 1940, com a atividade da empresa de laticínios Embaré, incorporada à companhia Vigor, em 1953. Em meados da década de 1980, a Vigor fecha as portas, anunciando o fim do período da pecuária. Este momento coincide com a introdução da monocultura do eucalipto em grande parte do mundo rural de São Luiz do Paraitinga. Com a exploração da região pela indústria papeleira, não apenas se acirrou o processo de êxodo rural, como se alterou toda a cultura tradicional. A cultura do eucalipto exige o trabalhador assalariado individual, em detrimento do trabalho cooperativo; e o emprego de tecnologias maquinais por mão-de-obra especializada, em vez da enxada. Ora, o vínculo de companheirismo estava exatamente assentado no trabalho coletivo, sem remuneração, e na mão de obra pouco especializada (transmitida pela tradição) – ou seja, todos manejavam igualmente a enxada no eito. Com a modernização das relações de trabalho na cultura do eucalipto, o Brão é ceifado em suas raízes: no mutirão como forma de trabalho solidário e na valorização da transmissão oral da cultura caipira. Da mesma forma, já no final da década de 1970’, se esboça a atividade turística na cidade, quando recebe o título de “a mais brasileira das cidades paulistas”, concedido pelo mesmo CONDEPHAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico Artístico e


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Turístico do Estado) que tombaria o centro histórico como patrimônio arquitetônico e cultural, em 1982. Abria-se as brechas para o mercado turístico, opção da cidade diante da crise econômica vivida no período. O crescimento gradativo da atividade turística, que possui como marco o ano de 2002 e o título de Estância Turística concedido à cidade, traz grandes modificações na vida da população. Por um lado, as expressões da cultura popular passam por processo de folclorização e adquirem forte valorização por visitantes. No limite, tais tradições são transformadas em “atrativo turístico” e ganham outra conotação para a população: onde antes essas manifestações tinham forte valor de uso cotidiano pelas comunidades, na partilha da vida em comum, agora ganham um valor de troca na atração de turistas e ingresso na indústria de entretenimento. Por outro lado, os turistas trazem outros comportamentos que modificam substancialmente o modo de vida tradicional rural. A paisagem das estradas vai ganhando forte teor turístico, com enormes placas divulgando o turismo rural, com cachoeiras equipadas para receberem adeptos de esportes de aventura ou com grande tráfego de praticantes de cicloturismo. A frequentação de pessoas de outras cidades nos meios rurais acaba sendo mais invasiva com a multiplicação de casas de veraneio, habitadas apenas aos finais de semana, por moradores fantasmas –


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mais afeitos ao isolamento (a paz do campo) do que ao convívio comunitário. Assim, as comunidades rurais sofrem grandes modificações e perdem suas feições mais tradicionais. Retomando a questão do declínio dos mutirões rurais, poderíamos dizer que o plantio do eucalipto introduz formas de trabalho incompatíveis com os modos cooperativos tradicionais, assim como a atividade turística traz fluxos de pessoas que não partilham os valores tradicionais de realização de mutirões. Contudo, há forte tendência de os visitantes da cidade valorizarem suas culturas tradicionais, como ocorre com o canto do Brão. Daí o apelo para que essas tradições sejam colocadas no lugar de atrativos turísticos ou bens culturais, introduzidos nas prateleiras do patrimônio cultural da cidade ou assediados pelo mercado de entretenimento. O registro fonográfico e audiovisual do canto do Brão responde a essa demanda do mercado de produtos culturais: o interesse pela cantoria tradicional, sem observar sua inserção comunitária e sua importância ritual no interior de práticas de trabalho solidárias.



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4.7. Demonstração do canto do Brão no Projeto Mestres Navegantes

A primeira gravação audiovisual do canto do Brão ocorreu no interior do projeto Mestres Navegantes, em sua pesquisa em São Luiz do Paraitinga. O projeto realiza abrangente mapeamento das principais expressões das culturas tradicionais brasileiras da cidade, com textos de estudiosos locais e participação de grandes mestres da cultura popular. O Brão é registrado como manifestação popular ligada ao mestre Renô Martins, junto à Folia de Reis, Calango, Dança de São Gonçalo, etc. O registro do desafio de Brão se deu em meados de 2010, no Sítio 03 Cachoeiras, bairro da Cachoeirinha (Distrito de Catuçaba). Trata-se de uma demonstração do canto de trabalho desprovido de seu contexto ritual de realização: o mutirão. A dissociação entre a cantiga e o mutirão é símbolo maior do declínio dos adjutórios. O canto de trabalho do mutirão, que possuía importante sentido comunitário, é agora reduzido a mero produto cultural, em demonstração de uma tradição para o mercado consumidor de expressões da cultura tradicional. É apenas quando destituído de seu valor de uso comunitário e revestido de um valor de troca, pela apreciação de pessoas externas às comunidades de origem, que o Brão pode circular como mercadoria na indústria do entretenimento.


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Assim, o registro traz um canto com dificuldades de renovação em um contexto de encenação que descaracteriza a expressão ritual do Brão. Tomam parte do canto as seguintes duplas: mestre Renô Martins e Adão Charleaux (Catuçaba); Jorge Faustino e Roberto Landim (cidade de Lagoinha); Pavão e Adão (Catuçaba).

Mestre Renô e Adão: Ai, dá licença, o meu patrão Oi, o meu patrão Pra chegá no seu terreiro Aô, querida Quem não se adverti, morena Que gosto terá na vida, ai morena

Ai, vô sarvá o meu patrão Oi, o meu patrão E a sua família inteira Aô, querida (....)

Jorge e Roberto: Vô cantar esse meu verso Debaixo de alegria (bis)


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Garça branca bateu asa E foi sentar lá no jardim Eu também queria ir

Vô sarvar o meu patrão E toda sua família (bis) Garça branca bateu asa (....) Pavão e Adão: Vô fazê minha chegada, ai ai Com licença do patrão, ai ai Eu vô s’embora pra mina Vô levá comigo aquela menina Da feição fina e zóio preto Que alumina Na casa do Genôr Martim, ai ai Nói viemo advertí, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...)

Mestre Renô: Ai já sarvei o meu patrão


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Oi, o meu patrão Vô sarvá os cantadô, ai Aô, querida (...) Ai também sarvo os cumpanhero Oi, os cumpanhero E quem ainda não cantô Aô, querida (...) Jorge e Roberto: Vô saudar os cantador Que pra mim são importante (bis) Garça branca bateu asa (...) Também quero dar meu viva Para todos os visitante (bis) Garça branca bateu asa (...) Pavão e Adão: Vô fazê minha chegada, ai ai Aqui na casa do patrão, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...) Eu sarvano o meu patrão, ai ai Já sarvo todos que estão aqui, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...)


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Mestre Renô: Ai, delicados cantadô Ai, os cantadô Cantadô que eu tanto adoro, ai Aô, querida (...)

Os cantadores fazem sua chegança: saúdam o “patrão” e sua família, trocam saudações mútuas e acolhem, ainda, o grupo de visitantes. Cada qual improvisa os primeiros versos, seguidos de uma toada fixa e constante, que acompanha todos os improvisos e serve como marca registrada da dupla durante aquela cantoria. Essa regra geral da forma poética do Brão é respeitada por todos os cantadores, embora haja variações na forma de cantar. Mestre Renô Martins e Pavão formulam versos terminados com o lamento “ai ai”, típico das folias e muito comum no cancioneiro popular português. Já Jorge Faustino e Roberto Landim, fazem uso da repetição do dístico (os dois versos improvisados), com o famoso recurso do “bis”, procedimento também abundante nos diversos registros das cantigas tradicionais lusitanas, desde o século XIX. Outra regra invariável na forma de cantar é o estilo vocal, com duas vozes simultâneas e paralelas, uma mais grave e outra mais aguda (como as primas da viola, sua dupla de


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cordas). É a forma de cantar popularizada pelas duplas comerciais de música sertaneja. Cada cantador tem sua parelha, ou seja, seu companheiro de canto. O cantador que improvisa faz a primeira voz (mais grave), ao passo que o acompanhante executa a mais aguda. Quando o cantador chega para participar, mas não traz uma dupla fixa, empresta, muito naturalmente, a dupla de outro cantador presente. Essa regra também possuí variações: há duplas em que o cantador principal improvisa e a parelha busca repetir os versos simultaneamente, deixando clara certa hesitação de quem não conhece o verso e acompanha praticamente a melodia da voz ou atrasa para reproduzir exatamente a palavra cantada pela voz principal. É o caso de mestre Renô Martins e Pavão. Já Jorge Faustino e Roberto Landim cochicham entre si e combinam o verso improvisado antes de iniciar a cantoria, o que se evidencia quando as vozes simultâneas ficam mais ajustadas e cantam exatamente o mesmo verso, após o breve ensaio preliminar. Este cerimonial inicial da chegança demonstra o respeito recíproco entre os cantadores e define seus papéis na cantoria: o “patrão” Agenor Martins, a quem cabe formular o enigma ou “pôr a linha”, e as duplas de cantadores a quem cabe decifrá-la. Assim, ao invés de se dirigirem ao eito para iniciarem o trabalho e a cantoria, mestre Renô Martins anuncia a linha do Brão daquela tarde:


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Renô: Ai eu estou apreocupado Oi, apreocupado Com o freguês que bebe e vai embora, ai Aô, querida (...) Jorge e Roberto Landim: Eu gosto da cantoria E torno cantá outra vez (bis) Garça branca bateu asa (...) Pregunto para o Genor Como é que é os seus freguei (bis) Garça branca bateu asa (...) Pavão e Adão: Eu saí de Catuçaba, ai ai E cheguei nessa hora, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...) Eu ví o freguês bebeu a pinga E foi s’embora, ai ai Eu vô s’embora pra mina (bis) Mestre Renô: Ai eu estou apreocupado


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Oi, apreocupado Mas tô muito contente Aô, querida (...) Ai, quanto mais bebida eles bebe Oi, ai eles bebe Mais a freguesia aumenta, ai Aô, querida (...)

Eis a charada cantada pelo anfitrião: sua preocupação com o freguês que bebe e vai embora. A linha do Brão é improvisada sempre de acordo com um elemento do contexto imediato. Ou seja, deve tratar de um acontecimento vivido coletivamente, no mesmo instante em que se canta. É esta a condição de formulação de uma linha. É um enigma criado com todo o cuidado metafórico, mas sempre concreto e vivencial. Não há linha do Brão sobre um fato abstrato ou evento particular, de conhecimento exclusivo de um ou outro cantador. Como toda toada caipira que se preze, o Brão canta a vida comunitária: é canto encarnado. Daí a dificuldade de um registro fonográfico, ou mesmo audiovisual, em captar a profundidade do contexto de realização do Brão. Há experiências coletivas que atravessam a cantoria e são conhecidas pelos participantes, que tomam parte no cotidiano da comunidade, mas que fogem ao conhecimento de quem observa, ouve ou assiste ao material registrado.


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Na propriedade de mestre Renô Martins funciona um bar, por ele administrado. A cantoria ocorria exatamente no bar. É enquanto dono do bar que o cantador enuncia sua preocupação com o tal freguês que bebe e, aparentemente, vai embora sem pagar a conta. Uma vez anunciado o enigma, as duplas de cantadores presentes passam a dirigir perguntas a quem colocou a linha, no sentido de obter mais pistas sobre o enigma. Tais perguntas são sempre respondidas, mas de formas diversas. Mestre Renô Martins, responde as indagações oferecendo elementos aparentemente contraditórios, como que dificultando a decifração: está preocupado, contudo, contente; quanto mais os fregueses bebem, mais a freguesia aumenta. Ou seja, os fregueses, agora tomados no plural, bebem e vão embora sem pagar a conta, mas são bem quistos pelo dono do bar, que fica contente com o aumento dessa freguesia inadimplente. Em suas respostas, mestre Renô Martins reveste a charada de feições ainda mais enigmáticas. E a cantoria prossegue.

Jorge e Roberto Landim: Eu fico muito contente Que o patrão é de alegria (bis) Garça branca bateu asa (...)


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Eu pergunto pra você Se o freguês vem todo dia (bis) Garça branca bateu asa (...)

Pavão e Adão: Meu amigo Agênor Esse freguês deve ser muito bom, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...) Esse freguês deve ser igual ao pavão2, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...) Mestre Renô: Esses freguês é muito bom Oi, é muito bom Faz parte da minha família, ai Aô, querida (...) Ai, se farta a bebida Oi, a bebida Eles fica muito triste, ai Aô, querida (...)

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Pavão designa tanto a ave como o apelido de um famoso cantador, presente na cantoria, conhecido por pagar bebidas a seus amigos.


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Jorge e Roberto Landim: Uma coisa que eu admiro Do dono do bar não ser ridículo (bis) Garça branca bateu asa (...) O freguês saiu contente Porque já moiô o bico (bis) Garça branca bateu asa (...)

Após a dupla cantar esses últimos versos, mestre Renô Martins dá gostosa gargalhada. Trata-se de um interessante momento da cantoria. Fica implícito que Jorge e Roberto já sabem o enigma ou estão muito próximos de sua decifração. Contudo, eles comunicam esse fato em linguagem metafórica, sabida apenas por quem também conhece o enigma, ou seja, apenas mestre Renô. Para os demais presentes, o enigma continua tão obscuro quanto antes. Algumas vezes, a dupla que matou a charada continua a cantoria por muito tempo, em cumplicidade com aquele que pôs a linha. Isto acontece, segundo contam alguns, para que a brincadeira se prolongue animada, sem a interrupção pela decifração. A dupla que desvendou o enigma, contudo, tem o direito de colocar uma nova linha, o que às vezes ocorre.


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Pavão e Adão: Meu amigo, seu Jorginho, ai ai E também seu cumpanhero, ai ai Essa coisa é muito engraçada, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...) Esse freguês do Genor Gosta muito de vinho do padre Eu vô s’embora pra mina (...)

Mestre Renô: Ora, meu amigo Jorge Oi, amigo Jorge Você é meu bem querer, ai Aô, querida (...) Ele móia o bico e avua a cem por hora Oi, a cem por hora Como eu vô arrecebê, ai Aô, querida (...)

Jorge e Roberto Landim: O amigo seu Genôr


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É uma flôr de onze hora (bis) Garça branca bateu asa (...) Esse freguês tem pressa Ele bebe e vai s’embora (bis) Garça branca bateu asa (...)

Pavão e Adão: Esse freguês do Genor Martim, ai ai Ele tem pressa de ir embora, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...) Ele se despede e vai s’embora, ai ai E vai banano o rabo, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...)

Mestre Renô: O meu freguês são bem enjoado Oi, são bem enjoado Gosta só de bebida doce, ai Aô, querida (...)

Jorge e Roberto Landim:


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Eu vô cantá esse verso E eu sei que não repete (bis) Garça branca bateu asa (...) Se ele gosta de bebida doce Cuidado com a diabete (bis) Garça branca bateu asa (...)

Pavão e Adão: Meu amigo Genor Martins, ai ai Nói somo da mesma família, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...) Senhor trata bem dessa família, ai ai Que tem proteção divina, ai ai Eu vô s’embora pra mina (...)

Renô: Delicado cantadô, ai ai ai Com grande satisfação, ai ai ai Morena do zóio preto Cinturinha de boneca Por causo dessa morena


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Que eu estou levando a breca Vocês vão embora com Deus, ai ai ai E leva meu coração, ai ai ai Morena do zóio preto (...)

Mestre Renô Martins dá a linha por perdida e inicia o ritual de despedida. Ora, mas afinal de contas, qual era o tal enigma? Como foi descoberto? Essas são questões que certamente passam pela cabeça daqueles que não estão familiarizados com a cantiga do Brão. Aqui há um detalhe importante: a cantoria do Brão é um ritual de mutirão rural, restrito a cantadores. Ou seja, não é uma apresentação ou um canto que pressupõe uma audiência. Parte-se do pressuposto de que todos os cantadores presentes são conhecedores das metáforas empregadas e estão acompanhando o desenlace do desafio. Ocorre que, gravado em áudio ou vídeo, ou mesmo presenciado por visitantes, o diálogo cantado parece sem pé nem cabeça. É interessante notar como a linguagem simbólica do jongo era considerada exatamente dessa forma, por importantes observadores, como Luciano Gallet ou Mário de Andrade: a letra nada dizia, notavam esses importantes folcloristas. O Brão mantém essa característica: sua linguagem cifrada e seu cerimonial cantado não pressupõe a presença de observadores externos, pois os trabalhadores estão entre


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companheiros, no ermo do eito. Daí ser difícil acompanhar a cantoria apenas ouvindo ou assistindo, sem estar presente e conhecer os códigos que norteiam a cantoria. No bar de mestre Renô Martins há alguns daqueles bebedouros próprios para beijaflores, no qual ele coloca água com uma pitada de açúcar. Passando poucos minutos no local onde ocorria a cantoria, é comum ver os beija-flores bebericando rapidamente o líquido e indo embora com a mesma pressa. É o beija-flor o freguês que preocupava Renô Martins. Daí ser um freguês que vai embora rapidamente, mas alegra o cantador. Daí voar com grande rapidez (a cem quilômetros por hora). Quando a dupla Jorge e Roberto cantou que o freguês saiu contente porque já havia molhado o bico, deixou implícito que sabia que o tal freguês apressado e caloteiro era o beijaflor. A gargalhada de todos indicou que a linha estava perdida, mas Pavão não havia entendido o enigma. Mestre Renô canta que o amigo Jorge é seu bem querer, sinal evidente de que captou a mensagem: a linha estava perdida e a dupla matou a charada. Contudo, a cantoria continuou brincando com o enigma, deixando Pavão e a audiência nutrirem a expectativa sobre quem era o tal freguês. A brincadeira passa a ser a das duas duplas de cantadores, de Renô e de Jorge, com os visitantes e a outra dupla. Os improvisos vão dando dicas: é um pássaro que molha o bico, voa a cem quilômetros por hora e gosta apenas de bebida doce. É o beija-flor.


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Uma curiosidade: mestre Renô Martins, nesses últimos versos, muda a toada em termos de melodia e forma poética. Passa a cantar de um jeito diferente, com a famosa toada da morena dos olhos pretos. É mais comum o cantador manter a mesma melodia e a mesma toada durante toda a cantoria. Porém, mestre Renô Martins frequentemente muda sua toada no meio da cantoria, como uma marca pessoal de sua forma de cantar o Brão. Posto e decifrado o enigma, a cantoria se dá por encerrada com a cerimônia de agradecimentos e despedida. Jorge e Roberto Landim: Amigo Genor Martim É um homem de fartura Garça branca bateu asa (...) Tem bebida pros freguês E pra todas criatura (bis) Garça branca bateu asa (...) Pavão e Adão: Nóis já fizemo a chegada Agora vamo fazê a despedida, ai ai Aô, vô fazê a despedida, ai ai Mai num pode demora muito, ai ai


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Senão os freguês vorta aqui agora Senão os freguês vorta aqui agora, ai ai Mestre Renô: Ora, meu amigo Jorge, ai ai ai Veja bem como é que é, ai ai ai Morena do zóio preto (...) Fregueizinhos são muito bom, ai ai ai Vieram, Deus, me ajudá, ai ai ai Morena do zóio preto (...) Tem freguês que vua direto, ai ai ai Tem argum que até anda de ré, ai ai ai Morena do zóio preto (...)

Jorge e Roberto Landim: Vamos fazer a despedida Que temos que viajar (bis) Garça branca bateu asa (...) Mai vamo deixá saudade Saudade vamo levá (bis) Garça branca bateu asa (...)


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Pavão e Adão: Vamo adespedi do Jorginho e do Genor Aô, ai ai do Jorginho e do Genor Vô despedi agora Que amanhã eu vô mim’bora Comigo não vai ninguém Despedindo do Genor Despeço do freguês também Aô, ai ai do freguês também

Mestre Renô: Delicado cantadô, ai ai ai Aceite meu parabéns, ai ai ai Morena dos zóio preto (...) E com Deus vocês vai, ai ai ai Com Deus nóis fica também, ai ai ai Morena dos zóio preto (...)


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A cantoria é encerrada com uma salva de palmas a todos. A audiência presente pergunta então sobre a linha, ao que mestre Renô Martins responde e comenta sobre a sua alegria em receber os beija-flores.

4.8. Canto do Brão em 2013

O documentário Brão, realizado por Victor Biganezes é o registro mais completo da cantiga dos mutirões rurais. Além da gravação de um mutirão cantado, o documentário traz entrevistas com cantadores e conhecedores, homenagem a cantadores consagrados e importantes questões sobre a origem, a história e o processo de “extinção” do Brão. O mutirão foi produzido especialmente para registro audiovisual e se deu no Sítio 03 Cachoeiras (bairro da Cachoeirinha, Distrito de Catuçaba), no dia 31 de agosto de 2013. Participaram da cantoria, principalmente, as duplas formadas por mestre Renô Martins e Zé Leite, e Zé Liano e João Gino. Comecemos pela “chegança”:

Mestre Renô:


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Tá chegano meus amigo Oi, os meus amigo Pra chegá no meu terreiro Aô, querida Quem não se adverti morena Que gosto terá na vida, ai morena Zé Liano e João Gino: Peço licença pro patrão Pra fazê nossa chegada Garcinha branca bateu asa E avoou Adeus morena, eu me despeço E também vou Mestre Renô: Ai tá chegano o Alfredinho, Oi, o Alfredinho E alegrou mai para mim, ai Aô, querida (...) Mestre Renô: Me ajuda companheiro Que nóis somos de um corpo só


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Noís chega na brincadeira Nóis canta memo sem dó Oi garota Porque que não me adora Eu fico aqui sozinho E porque não me adora, ai Mestre Renô: Porque me tira as tristeza Oi, as tristeza Que sinto no coração, ai Aô, querida (...) Após a chegança e as saudações iniciais as duplas se dirigem ao eito, para realizar um roçado de pasto. Neste momento, canta-se:

Zé Liano e João Gino: Nói tamo aqui no terreiro Mai nói vai chega no eito Garcinha branca bateu asa (...)


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O anfitrião, mestre Renô Martins, anuncia a linha do Brão:

Mestre Renô: Ela é muito estimada Ai, muito estimada E eu tenho uma pena Aô, querida (...) Zé Liano e João Gino: Amigo Genôr Martins Como é bonita a natureza Garcinha branca bateu asa (...) Mestre Renô: Ela é muito bonita, oi bonita mai tem muita variz na perna, ai Aô, querida (...) Zé Liano: Ela tem tanto variz Parece um pé de jabuticaba Garcinha branca bateu asa (...)


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Mestre Renô: Ela tá faltano massagem Oi, faltano massagem Mais sem ela quem sofre mais é nós, ai Aô, querida (...) Os cantadores deixam o eito e se dirigem para a casa do anfitrião para a refeição de almoço, momento em que se canta:

Mestre Renô: Tamo chegano pra armoçá, Ai pra armoçá Nói tá tudo cansado, ai Aô, querida (...) Chegados ao almoço, mestre Renô Martins abençoa a refeição coletiva:

Deus abençoe esse armoço, ai ai ai Que é dado pros camarada, ai ai ai Morena do zóio preto Cinturinha de boneca Por causo dessa morena


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Que eu estou levando a breca Ainda durante o almoço, os cantadores responsáveis por decifrar a linha continuam suas perguntas e comentários:

Zé Liano e João Guino Essa senhora Tá dano muito trabaio Garcinha branca bateu asa (...) Mestre Renô: Oi a rainha do vestido curto, Oi do vestido curto, Como é que eu levo ela pro castelo, ai Aô, querida (...) Ocê tá preocupado à toa, Oi, preocupado à toa Ocê passo pertinho dela, ai Aô, querida (...) Com essa dica, os cantadores visitantes parecem ter decifrado o enigma da linha:


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Zé Liano e João Gino: Ela vem lá do sertão ................ Garcinha branca bateu asa (...) Mestre Renô: Ela vem lá do sertão Lá do sertão E abastece a família inteira, ai Aô, querida (...) Todos batem palmas: a tal rainha de saia curta e varizes na perna era a cachoeira, que leva o nome de Cachoeira Renô Martins. Normalmente bastante caudalosa, a queda estava muito diferente naquele período de grande estiagem. A queda fraca de água dera ensejo para a metáfora da rainha com saia curta e varizes. Segue-se a despedida dos cantadores:

Mestre Renô: Ocês vem adispino Oi despedino, Até me dá uma tristeza, ai Aô, querida (...)


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4.9. O Brão durante a Festa do Pinhão de 2015

No dia 02 de julho de 2015 houve um mutirão para a colheita de pinhão, destinado a abastecer a quinta edição da Festa do Pinhão. O mutirão foi realizado no Sítio 03 Cachoeiras, bairro da Cachoeirinha (Distrito de Catuçaba – São Luiz do Paraitinga), na propriedade do festeiro: mestre Renô Martins. Toda a atividade cooperativa, bem como a cantoria do Brão, foi registrada por Olavo dos Santos Jacob e, posteriormente, comercializada em vários pontos da cidade, no formato de DVD. O mutirão se reduziu a uma simulação da colheita do pinhão, realizada em poucos minutos por todos os presentes: cantadores e visitantes. Após a encenação, os cantadores iniciaram a cantiga do Brão, em frente à casa do mestre Renô Martins. Além do anfitrião, tomaram parte na cantoria duas duplas da cidade vizinha de Lagoinha: Zé Liano e João Guino, Seu Jorge Faustino e “Galo”. A cantoria começa com os cumprimentos iniciais, a troca de gentilezas e a chegança:

Mestre Renô: Eu arrecebo os cantadô


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Com grande satisfação Se eu pudesse eu cumpanhava Todos ao divertimento Eu cantô com meus amigo Eu passo as hora mais contente É a primeira que nóis faz De cultura do pinhão Se eu pudesse eu cumpanhava (...)

Zé Liano e João Guino: Nóis tamo aqui neste dia Tão bonito e abençoado Gracinha branca bateu asa E avoou Ai, adeus morena Eu me despeço e também vou Peço licença pro patrão Pra fazê nossa chegada Gracinha branca bateu asa (...)


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Seu Jorge e Galo: Deus Pai e Espírito Santo São três palavra sagrada (bis) Garça branca bateu asa E foi sentá lá no jardim Eu também queria ir Com essas três palavras santas Eu faço minha chegada (bis) Garça branca bateu asa (...) Pra chega nesse lugar Eu passei por Lagoinha (bis) Garça branca bateu asa (...) Agenor como tá o senhor E como tá a sua família (bis) Garça branca bateu asa (...)

Mestre Renô: Nóis tivemo muito trabalho Pra nóis ir até Lagoinha Se eu pudesse eu cumpanhava (...)


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Porque eu sabia que essa alegria Acontecer em cachoeirinha Se eu pudesse eu cumpanhava (...) Zé Liano e João Guino: Nesse dia tão bonito Nóis tamo muito contente Gracinha branca bateu asa (...) Aqui vai o nosso abraço Pra todos que estão presentes Garcinha branca bateu asa (...) Seu Jorge e Galo: Agenor eu fiquei contente Como o convite do senhor (bis) Garça branca bateu asa (...) Na beira do seu terreno Sinto o perfume de flor Garça branca bateu asa (...)

Mestre Renô: A cantoria do Brão Faz parte da minha tradição


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Eu sabia que ocês não fartava Para alegrá meu coração Oi garota Porque que não me adora Eu fico aqui sozinho E porque não me adora, ai

Zé Liano e João Guino: Amigo Agenor Martins Que grande satisfação Garcinha branca bateu asa (...) Hoje pela primeira vez Devo participar da Festa do Pinhão Garcinha branca bateu asa (...)

Mestre Renô: A brincadeira tá muito boa Mas quero salvar os cantadô Adeus morena Há tanto tempo andei sofreno Não achei quem me quisesse


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Perceba como o cerimonial da chegança e das saudações ocorre naturalmente, mas com uma curiosidade: mestre Renô Martins varia bastante sua toada fixa, após o improviso inicial, cantando três versões diferentes. Com esse entusiasmo, o cantador anfitrião coloca a linha daquela ocasião:

Mestre Renô: Mas eu estou acostumado Com três reis Que aqui chegô Adeus morena (...)

Zé Liano e João Guino: Amigo seu Genor Não precisa preocupá Garcinha branca bateu asa (...) Os três reis que moram aqui Veio pra te ajudá Garcinha branca bateu asa (...)


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Seu Jorge e Galo: A nossa amizade é grande Eu sinto satisfação (bis) Garça branca bateu asa (...) Pergunto pro senhor Genor Se os três reis não são irmão (bis) Garça branca bateu asa (...) Mestre Renô: Oh, amigo Zé Liano Os três têm o meu apoio Adeus morena (...) Sempre têm me ajudado muito Na minha família e na lavoura Adeus morena (...) Os três reis não são irmão Mas a idade é quase igual Adeus morena (...) Mas eles faz aniversário No mesmo mês e quase igual Adeus morena (...)


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Seu Jorge e Galo: Amigo Genor Martins Eu conheço, é boa gente (bis) Garça branca bateu asa (...) Os três reis são quase igual Mas a coroa é diferente (bis) Garça branca bateu asa (...)

Zé Liano e João Guino: Eu moro no Brasil Não moro no Estados Unidos Garcinha branca bateu asa (...) Os três reis tão pareado ............ muito lindo Garcinha branca bateu asa (...) O enigma da cantoria é sobre os três reis que chegaram à casa do mestre Renô Martins. As duplas de cantadores passam à tradicional rodada de perguntas, permitindo amealhar indícios de quem, de fato, seriam estes reis. O diálogo cantado continua:


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Mestre Renô: Meu amigo seu Jorginho, ai, ai, ai Lhe tenho muito respeito, ai, ai, ai Morena do zóio preto Cinturinha de boneca Por causa dessa morena Eu estou levando a breca Os três reis são daqui memo, ai, ai, ai ............................ Morena do zóio preto (...) Seu Jorge e Galo: Amigo Genor Martins Nossa amizade é muito nobre (bis) Garça branca bateu asa (...) O aniversário dos três reis É dia 13, 24 e 29 (bis) Garça branca bateu asa (...)


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Como sempre, o sagaz seu Jorge Faustino mata a charada, os três reis são Santo Antônio, São Pedro e São João (cujas datas de comemoração são nos dias 13, 24 e 29 de junho). Mestre Renô tem um hábito, que aprendeu com os “antigos”, de erguer um mastro para cada um desses santos. Em cada mastro (espécie de grande galho de árvore com uns três metros de altura) são espetadas as culturas plantadas na propriedade: espigas de milho, ramos de feijão, laranjas, limões, etc. Para o mestre da cultura popular, esse ritual garante que a lavoura prosperará, com grande fertilidade e sem pestes. Ressalta, ainda, a eficácia da crença: enquanto outros produtores tinham frequentes perdas, seus cultivos nunca tiveram problemas e mesmo suas frutas são reputadas como as mais doces da região. Cada mastro é erguido no dia do respectivo santo, momento em que se entoa uma oração com toda a família e se faz o pedido ao protetor. Os três mastros são dispostos na entrada da propriedade e, momentos antes do mutirão, mestre Renô Martins explicava esse ritual para alguns visitantes. Mestre Renô Martins convida todos os cantadores para fazerem o encerramento da cantoria e anuncia a resposta ao enigma, certamente atendendo à curiosidade da audiência:

Mestre Renô: Todos juntos


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Vamo fazê o encerramento, ai, ai, ai Com grande satisfação, ai, ai, ai Morena do zóio preto (...) Os três reis é Santo Antônio, ai, ai, ai São Pedro e São João, ai, ai, ai Morena do zóio preto (...) É servido, então, farto almoço, no qual, ainda na forma de cantoria, mestre Renô Martins abençoa a refeição:

Deus que abençoe esse armoço Que fizeno pros camarada Se eu pudesse eu cumpanhava (...)

Zé Liano coordena a oração coletiva para abençoar a refeição. Rezam Pai Nosso e Ave Maria, iniciando o almoço e terminando a cantoria.




5. Contexto de realização


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O mutirão rural é o contexto obrigatório de realização do canto do Brão. Como afirma mestre Renô Martins, o mutirão é o Brão; poderíamos afirmar também o contrário, o Brão é o mutirão. De qualquer forma, são elementos indissociáveis. Veremos que ao falar na renovação do Brão, os cantadores remetem a pouca frequência dos mutirões, demonstrando a importância do contexto ritual de realização para a própria transmissão do canto de trabalho. Quais as principais características do mutirão do Brão? Durante toda a história do município, o mutirão é a principal forma de organização do trabalho coletivo, em comunidades rurais. Os pequenos proprietários rurais dependiam do trabalho cooperativo como única forma de realização de atividades que demandavam grande número de trabalhadores. Seja para atividades particulares, como a roçada de pasto, limpeza do milho ou barreamento de casa, seja para manutenção de bens coletivos, como estradas ou pontes, o mutirão era extremamente necessário para a subsistência desses pequenos proprietários rurais. Advém dessa necessidade concreta a importância dos mutirões e a quase obrigatoriedade de responder a um convite para o adjutório. Diversos pesquisadores se surpreenderam com o fato de o convite para o mutirão possuir caráter obrigatório. Pessoas respondiam ao convite mesmo adoentadas ou com dificuldades de andar; outras vezes


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mandavam familiares ou trabalhadores assalariados para comparecerem em seu lugar. Nas comunidades rurais tradicionais, a sobrevivência de cada integrante estava submetida a força de união de todos. Não havia possibilidade de sobreviver se não fosse por forte rede de compadrio e ajuda mútua. Daí a solicitação de ajuda ser obrigatória, assim como a retribuição ao auxílio prestado, pois, invariavelmente, um precisaria sempre do outro. Frequentemente esse laço de compadrio se estendia por diversas comunidades, como demonstram adjutórios que reuniam moradores de muitos bairros, em número muito expressivo – haja vista, os quatrocentos mutireiros que acorreram ao chamado de Seu Argeu. Em se tratando de lideranças comunitárias, como Seu Argeu ou mestre Renô Martins, a mobilização de pessoas é ainda maior. A definição dos papéis no contexto de realização do Brão se inicia justamente no convite aos mutireiros ou convocação do mutirão. Aquele que convida os demais passa a ser chamado de “patrão”. Ao chegarem os companheiros para atenderem ao pedido do “patrão”, este oferece uma refeição matinal que simboliza sua principal obrigação: alimentar todos os mutireiros. A refeição é servida com o cardápio mais tradicional do café da manhã no ambiente rural: café preto, leite e farinha de milho. É comum o caboclo encher seu corpo de café e colocar por cima a farinha de milho, comendo tudo misturado.


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A refeição simboliza o acordo implícito no mutirão: a paga do dia de trabalho é a alimentação. Não se deve menosprezar a importância dessa retribuição. Em comunidades rurais caracterizadas pela economia de subsistência, as famílias trabalham o suficiente para adquirir os meios necessários para sua sobrevivência. Ou seja, o mais importante era a agricultura, a criação de animais e a realização de atividades dirigidas especificamente para o consumo da própria família. Produzia-se tendo em vista o valor de uso, não o valor de troca. Em outras palavras, a família produzia para o próprio consumo e apenas um ocasional excedente era partilhado com compadres e comadres, com eles trocados, ou, mais raramente, comercializado no mercado municipal. Há uma hierarquia na economia de subsistência: primeiramente a subsistência da família e agregados; posteriormente, um ocasional excedente de produção é dado a vizinhos, familiares ou conhecidos; um excedente maior é comercializado. A “doação” a um vizinho possui a troca implícita ou explícita: pressupõem o escambo, ou seja, a retribuição obrigatória de outro produto em troca, com valor similar, tendo em vista o tempo de trabalho necessário para sua produção. O excedente de produção era muito comum na criação de animais: ao matar um boi ou um porco, o pequeno proprietário rural não conseguia consumir toda a carne antes que apodrecesse. Assim, envia pedaços do animal a seus companheiros ou realiza uma refeição coletiva. Numa boa safra de milho ou feijão ocorre o mesmo expediente.


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No caso de o excedente ser comercializado, ocorre um processo de escambo similar. O caboclo vai ao mercadão (Mercado Municipal), vende seu produto e, no mesmo instante, compra de um outro produtor alguma mercadoria de que necessite. Em todos esses casos a produção visa a subsistência e não a acumulação: signo da circulação de mercadorias em período anterior ao mercado capitalista. Assim, a refeição matinal, o almoço e a janta são a paga justa pelo trabalho. Pressupõem-se que o camarada trabalharia em sua propriedade naquele dia para garantir sua subsistência (alimentação): daí receber essa retribuição. A alimentação como paga é largamente praticada ainda hoje. Como cantador, fui convidado a participar de diversas funções (festas), em que a retribuição do anfitrião era a “janta”, ou seja, minha alimentação durante o período em que estive ali cantando. Há casos em que a retribuição se estende a outros elementos de subsistência, como a moradia: em locais distantes, oferece-se, além da janta, o “pouso” (local para dormir). As folias de Reis e do Divino são realizadas até hoje, tendo como retribuição mais frequente exatamente uma refeição (a janta) e a hospedagem (o pouso). Na última residência visitada pela folia no dia, faz-se o pouso com farta alimentação e festa animada. Daí os pousos das folias serem conhecidos e respeitados, até hoje, como grande celeiro das tradições culturais da região.


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Vimos como, no registro de Carlos Rodrigues Brandão, em 1984, o café da manhã já vinha acrescido de um pouco de cachaça, bebida que, no registro da década de 1940, era servida apenas no almoço – momento em que grande parte do trabalho já havia sido concluído. O ato de servir a cachaça simboliza o momento do lazer (ou da festa), da mesma forma que o canto. Na década de 1940’ o Brão era cantado apenas à tarde, o que se modificou também em 1980, momento em que o Brão é cantado durante todo o dia. A cachaça e o Brão durante todo o dia simbolizam um momento em que a festa e o canto tomam posição central no encontro coletivo, em detrimento da ênfase no trabalho e no mutirão – como ocorria em 1940’. Após a refeição, o coletivo de trabalhadores prepara suas ferramentas para se dirigir ao eito. Nos casos de limpeza de pasto e demais atividades com o uso de foice ou enxada, cada trabalhador traz seu próprio instrumento de trabalho, pois, certamente, o patrão não teria ferramentas para oferecer a todos. Esse instrumento individual é importante também porque cada trabalhador possui sua enxada ou foice no peso e características que melhor se adaptam a sua forma de trabalho. Era comum os mutireiros trazerem inscrições nos instrumentos de trabalho, como observado por Alceu Maynard de Araújo. É obrigação do “patrão”, até hoje, oferecer os meios de afiar a foice ou deixar o instrumento de trabalho apto ao uso.


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Nos casos de mutirões para barreamento de casa, colheita de frutos ou reparo de pontes, cabe ao “patrão” preparar previamente todos os materiais necessários para a empreitada. Outra obrigação do “patrão” é delimitar a empreitada, ou seja, o trabalho que deve ser realizado no mutirão. Cabe ao anfitrião, também, estabelecer a forma de trabalho: seja em filas, seja por quadras individuais. Determinando a empreitada e a forma de trabalho, o responsável pelo mutirão comporta-se propriamente como um “patrão” mais convencional: organiza o melhor modo de aproveitar a mão-de-obra de que dispõe. Contudo, muito diferente dos “patrões” tradicionais, o proprietário que organiza o mutirão trabalha da mesma forma que os demais. Não há qualquer privilégio pelo fato de ser o “patrão”. Essa condição de igualdade se estende a todos os companheiros. Grande ou pequeno proprietário, agregado ou camarada, trabalhador empregado ou caboclo sem eira nem beira, todos são iguais no mutirão. Essa característica do trabalho solidário levou estudiosos a associarem o Brão ao trabalho festivo, pois essa igualdade universal é consagrada especialmente nas festas populares. Durante a história dos mutirões, vimos como alguns patrões se restringem a motivar ou animar os demais trabalhadores. Menos frequentemente, o patrão se comporta apenas como festeiro, responsabilizando-se pelos cuidados com os demais, especialmente em


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termos de servir a cachaça no eito. Nesses casos, mantêm-se os vínculos entre companheiros, mas há papéis distintos bem definidos entre os mutireiros e o patrão. A principal característica das festas em culturas tradicionais era a suspensão ritual e momentânea das regras que regem a comunidade. Dentre essas regras estava exatamente as diferenças sociais, econômicas ou étnicas. A Festa do Divino Espírito Santo talvez simbolize melhor essa quebra de toda barreira social e a instauração de uma fraternidade universal entre os participantes: o Espírito Santo simboliza a vivência direta do sagrado e a união solidária entre todos os irmãos, independente de etnia, condição social, idade, gênero, etc. A abundância da festa, em termos de comida e bebida, também distingue esse momento daquele mais cotidiano, regulado por uma economia dos meios de sobrevivência. Enquanto no dia-a-dia no campo, cada família batalha para conseguir os meios de subsistência através do trabalho, na festa se gasta alegremente toda a energia acumulada no cotidiano. Todos esses elementos permitem distinguir a festa como um momento especial, muito diferente daqueles instantes cotidianos da vida de comunidades tradicionais. No mutirão do Brão, a presença do canto, normalmente destinado às horas de lazer ou às festas, também contribui para embaralhar as fronteiras entre o trabalho e a festa. A


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distribuição de cachaça à vontade entre os mutireiros, também confunde comportamentos comuns no lazer com aqueles mais próprios ao trabalho. É assim que mestre Renô Martins pode afirmar que o mutirão é o brão e ambos são a festa dos companheiros. Como trabalho festivo ou festa trabalhada, os cantadores vivem no cotidiano de vida, o momento especial da festa. Nem todas as barreiras sociais são quebradas no mutirão do Brão. A divisão social do trabalho entre homens e mulheres permanece a mesma: os homens responsáveis por prover a família e exercer as funções públicas e as mulheres restritas ao cuidado com a família e ao ambiente privado. Enquanto os homens trabalham no eito, as mulheres trabalham na cozinha. Mantem-se a configuração de uma comunidade patriarcal e, frequentemente, machista. Mestre Renô Martins se lembra de alguns grupos de mulheres que cantavam o vivório, enquanto preparavam as refeições aos mutireiros. Porém, pouco se sabe sobre essas atividades, exatamente porque as atenções se voltam apenas para as tarefas dos homens (e não há mulheres cantadoras de Brão). Após o desjejum, os cantadores se dirigiam ao eito para começar suas atividades. Antigamente, o período da manhã, aquele mais produtivo, era dedicado exclusivamente ao trabalho. O desafio é acirrado, mas ocorre apenas na enxada, em aguerrida emulação entre os trabalhadores para verem quem é o melhor e mais rápido nos afazeres agrícolas.


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A realização do trabalho, em primeiro lugar, depois o canto, denota a importância do mutirão propriamente dito. O “patrão” coloca em primeiro plano a realização da empreitada, permitindo o canto do Brão no momento da tarde, em que grande parte da tarefa já foi realizada. Com o declínio dos mutirões rurais e sua utilização como mero pretexto ao canto do Brão, essa ordem se inverte: o canto acompanha toda a jornada de trabalho, jornada que passa a segundo plano. Essa transformação coincide com a passagem do canto como modo de atenuar o trabalho ao canto como centro do encontro entre companheiros. Nos mutirões antigos, servia-se o almoço no eito, por volta das dez horas da manhã, trazidos pelas mulheres e crianças, em enormes latões ou recipientes improvisados. Era apenas nesse momento que o patrão servia a cachaça, como convencionalmente, para abrir o apetite. Trabalhava-se, ainda, o início da tarde e começava-se a cantar o Brão apenas quando toda a empreitada estava em vias de terminar. Anteriormente, iniciava a linha do Brão aquele trabalhador mais hábil, o salmorento, havendo uma continuidade entre trabalho e canto. Novamente aqui, o canto se submete ao trabalho, além de o trabalhador salmorento ser premiado com a prioridade na paquera das moças presentes – pois ganha a possibilidade de entregar flores a elas. A partir, aproximadamente, da década de 1950, continua havendo a emulação e o título de salmorento, mas a colocação da linha cabe ao patrão ou alguém por ele escolhido,


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normalmente cantador do bairro – pois há, até hoje, uma divisão territorial em que cada cantador defende com unhas e dentes sua área de domínio. O declínio do trabalho no mutirão e o aumento da importância do canto terminam com a ausência de emulação na enxada e o desafio restrito ao canto do Brão. Posteriormente, essa gradual substituição da importância do trabalho do mutirão pelo canto do Brão, termina com a realização somente do canto, com a mera simulação ou encenação do trabalho no eito. Após o mutirão diurno, havia a prática comum de grande festança. Farta refeição era servida, seguida de uma animada função que varava a madrugada. As funções eram animadas pela cantoria de preferência do “patrão”, pois era ele quem convidava os cantadores e instrumentistas para promoverem a festa. Alceu Maynard de Araújo observou uma grande festa no salão, na década de 1940, com as danças do catira e da quadrilha. Já as festas de Alfredo da Rocha, davam prioridade ao terreiro e à roda de jongo. Atualmente, provavelmente porque o mutirão de trabalho propriamente não exista e se festeje durante todo o dia, a festa não ocorre nessas configurações. Mantem-se, contudo, a farta refeição e a confraternização entre os companheiros, que termina ao final da alimentação.



6. Forma poĂŠtica


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A poesia tradicional cantada no Brão mistura elementos típicos dos cantos afrobrasileiros, em especial do jongo, com características do cancioneiro popular português. Como traço comum entre as culturas tradicionais, trata-se de uma poesia sempre cantada, jamais escrita, cuja transmissão depende unicamente da participação ritual. Ou seja, o canto ocorre no Brão e tem na voz dos cantadores seu único meio de expressão. Os registros escritos ou audiovisuais, mais contemporâneos, permitem um contato com o canto distante de seu contexto ritual de realização. Porém, a transmissão desses cantos através das gerações pressupunha apenas a participação presencial no ritual. Vejamos algumas características gerais do canto do Brão: as cerimonias de chegança, linha e despedida; o desenrolar do diálogo cantado durante a “linha” do Brão; a linguagem metafórica; e a importância do enigma ou da advinha.

6.1. Cerimonial de chegança, linha e despedida

O canto do Brão possui um início, um meio e um fim. São os momentos da “chegança”, colocação e desenlace da linha, e despedida. São instantes obrigatórios e inerentes ao ritual do Brão.


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Chegança

A “chegança” institui o ritual. Ao chegarmos na casa de uma pessoa, ou mesmo ao encontrarmos um conhecido em local público, há o cumprimento. Esse ato convencional da convivência humana é transposto, no canto do Brão, no momento da chegança. O traço que marca a instituição do ritual é a palavra cantada. Cumprimenta-se cantando, não falando. Ao chegar na casa do “patrão” e cumprimenta-lo cantando, institui-se a palavra cantada como forma de comunicação. O diálogo cantado inaugura o culto do Brão, no qual apenas os cantadores conseguem se expressar. A “chegança” ou a “chegada” demonstra que o visitante incorporou a veia de cantador e se dirige a todos de maneira cantada. Uma primeira cerimônia é aquela do pedido de licença. O cantador se dirige ao dono da casa ou “patrão” e pede sua permissão para chegar ao terreiro e cantar. Pedidos de licença comuns no canto do Brão são: Mestre Renô e Adão:


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Ai, dá licença, o meu patrão Oi, o meu patrão Pra chegá no seu terreiro Zé Liano, João Guino: Peço licença pro patrão Pra fazê nossa chegada O pedido de licença é convenção comum em diversos cantos populares. Diversas cantigas tradicionais portuguesas expressam a mesma solicitação, assim como outros tantos cantos populares brasileiros. O samba de roda do Recôncavo Baiano é talvez aquele que expressa esse pedido de licença de maneira mais insistente e obrigatória. Em tradições de locais distintos, como de Santo Amaro e São Francisco do Conde, sambadoras como Dona Edith do Prato ou Nega Duda, respectivamente, iniciam o ritual com uma solicitação similar: Ô dona da casa me dê licença me dê seu salão para eu vadiar Dona da casa me dê licença Me dê seu salão para vadiá


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Meia-hora só Eu já vou já Vimos, ainda, como o pedido de licença marca cantigas ao desafio portuguesas e cantos de trabalho dos negros mineiros (os vissungos), respectivamente:

Homem: Com licença meus senhores De lhes vir apresentar Esta linda cantadeira, Que me vem desafiar. Mulher: Como a licença foi dada Eu então vou começar Vou cantar à minha moda O que ele não vai gostar.

Com licença do curiandamba3, Com licença do curiacuca Com licença do sinhô môço Com licença do dono de terra. 3

Curiandamba se refere aos anciãos e/ou ancestrais, ao passo que curiacuca é o cozinheiro.


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Um pedido de licença similar se pode ver, igualmente, nas folias de reis ou no calango:

Dá licença, boa gente Que os meus Reis já vêm chegando Vêm da parte do oriente Boa noite vêm lhe dando Brás Ferreira: Eu sô memo desse jeito Por tudo lugá que eu vá Boa noite minha gente Boa noite pessoá Se me dé licença eu canto Se não dé torno vortá Por fim, no jongo também é comum o “saravá” ao festeiro, santo protetor ou aos ancestrais, num pedido similar de licença. Em um ponto colhido em Lagoinha, por Maria Borges Ribeiro, temos:

Papai chegô aqui Pede licença Pede licença pra angoma


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Pede licença pra tudo Pra chegá no seu reiná. Veja como os versos possuem praticamente o mesmo conteúdo e é comum variações presentes no Jongo, no Calango, na Folia de Reis ou nas Congadas. No canto do Brão, o pedido de licença é respondido de forma cantada pelo “patrão”. A chegança continua com o improviso de versos que desejam boa saúde ao anfitrião, saúdam ou elogiam a sua família, fazem menção à beleza do lugar, etc. Tais versos consolidam um vínculo amistoso e fraterno entre o cantador e o patrão:

Tô chegando, tô chegando Nessa hora de alegria Eu saúdo o meu patrão Com toda a sua família Por fim, a chegança tem como convenção saudar os cantadores presentes. Essa saudação pode ser expressa por um cantador visitante, pelo próprio “patrão” ou por ambos. É comum essa saudação mencionar outras pessoas presentes no ritual: dona da casa, cozinheira, visitantes, etc.


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Mestre Renô: Ai já sarvei o meu patrão Oi, o meu patrão Vô sarvá os cantadô, ai Aô, querida (...) Ai também sarvo os cumpanhero Oi, os cumpanhero E quem ainda não cantô Aô, querida (...) Jorge e Roberto: Vô saudar os cantador Que mim são importante (bis) Garça branca bateu asa (...) Também quero dar meu viva Para todos os visitante (bis) Garça branca bateu asa (...) Em suma, a chegança institui o início do ritual do Brão, em que a palavra cantada toma o lugar central na comunicação; em que os cantadores visitantes pedem licença para adentrar o terreiro e participar da cantoria; em que o anfitrião assente à licença solicitada; em que a família do “patrão” ou suas terras são elogiadas pelos visitantes; e, por fim, todos os


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cantadores e demais participantes do ritual (dona da casa, cozinheira, visitantes, etc.) são saudados. Com a chegança institui-se o ambiente ritual e amistoso para o desenvolvimento da cantoria.

Colocação e desenlace da linha do Brão

Após a chegança, os cantadores são servidos de refeição matinal, preparam suas ferramentas de trabalho, conhecem a empreitada e a maneira de organização do trabalho e se dirigem ao eito – como vimos em detalhes no contexto de realização. No caminho para o eito é comum uma dupla puxar uma toada, entoada coletivamente por todos:

Nói tamo aqui no terreiro Mai nói vai chega no eito Chegados ao eito os trabalhadores iniciam a tarefa para concluir a empreitada estabelecida pelo “patrão”, utilizando a forma de trabalho também por ele determinada.


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Antigamente, como observado no registro de Alceu Maynard de Araújo, os trabalhadores lançavam a linha do Brão apenas após concluírem meia jornada de trabalho. Certamente, isso se deve ao fato de que a realização do trabalho estava em primeiro plano, sendo o canto um acessório no encontro entre camaradas ou uma forma de animar o trabalho coletivo. Após realizarem grande parte da empreitada proposta, o “patrão” se dava por satisfeito, pois auferira a mão-de-obra desejada. Apenas nesse momento o “patrão” libera a realização do desafio do Brão, com a colocação da linha. No registro de Alceu de Araújo cabia ao salmorento colocar a linha. Ou seja, dava-se ênfase ao desafio na enxada, que premiava o vencedor com a possibilidade de formular o enigma. É mais um indício de que o trabalho estava em primeiro plano, pois era o trabalhador mais hábil quem tinha prioridade no canto. A acirrada competição na enxada certamente era forma de otimizar o trabalho, e a premiação do salmorento era forma de incentivo para que todos os trabalhadores se esforçassem para concluírem sua tarefa em tempo menor do que o habitual. A premiação do salmorento revela a ênfase no trabalho e a posição secundária do canto. No momento em que o mutirão perde a centralidade do encontro para o canto, a competição na enxada também tem reduzida sua importância. Estabelece-se como regra para a colocação da linha aquele cantador escolhido pelo patrão, normalmente um cantador


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da comunidade em que ocorre o mutirão. Há casos mais incomuns, como aquele registrado por Carlos Rodrigues Brandão, em que cada dupla de cantadores coloca um enigma diferente e competem, por assim dizer, para ver qual linha será seguida naquele mutirão. A formulação de um enigma cantado em linguagem metafórica, seguida de um longo diálogo de decifração da charada, é o centro do canto do Brão. Analisaremos mais adiante as características da linha, em termos de improviso, desafio, linguagem, etc. Por ora cumpre dizer que o tempo de duração de uma linha era muito variável. Na época em que os mutirões eram muito frequentes, uma mesma charada permanecia durante diversos dias. Era mesmo sinal de que a linha era boa, o fato de demorarem mais de um mutirão para a desvelarem. Nesse momento histórico, os mutirões ocorriam em diversos diais seguidos, e a permanência de uma mesma linha também contribuía para a participação de todos os trabalhadores, com a expectativa de conhecerem o desenlace do enigma. Quando os mutirões passam a ser menos frequentes, a linha passa a ser decifrada sempre na mesma ocasião. É comum ouvir os cantadores dizendo que ao haver demora na decifração, aquele que colocou a linha passa a facilitar demais com suas dicas para matar a curiosidade dos presentes e não deixar para sabe-se lá quando o conhecimento do enigma. Passa a ser mais comum, também, o desenrolar de mais uma linha por mutirão. Seja pela pouca habilidade do cantador em formular uma charada, seja pelo desejo de que outro


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cantador também tenha a oportunidade de compor seu próprio enigma, o cantador que desata a linha (decifra o enigma) tem a possibilidade de formular outra charada.

Despedida

Após o trabalho no eito, os participantes se dirigiam à casa do “patrão” para a “janta” e a festa. Era o grande momento do encontro: o merecido divertimento após a dura labuta no campo. Nas ocasiões em que a linha não era decifrada no eito, continuava-se a cantoria durante o jantar e mesmo em meio à festa. Num caso e noutro, com a linha desatada ou não, após a festa fazia-se o cerimonial da despedida. No registro realizado por Alceu Maynard de Araújo, durante a década de 1940, vimos um bom exemplo de despedida, realizada primeiro pelo cantador convidado e respondida pelo “patrão”:

Vô cantá êste meu verso pro meu amigo patrão, eu dispeço do senhô, com dô no coração


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Fiquei muito satisfeito cum vontádi di chorá, sô morado do Oriente, percisano é só chamá

6.2. Improviso livre e toada fixa

A poesia oral do canto do Brão se organiza a partir de um culto que inclui chegança, colocação e decifração da linha e despedida. Cada um desses momentos oferece um mote ou tema para o improviso de versos. Quanto à forma poética propriamente dita, atualmente o Brão se organiza como um improviso livre, seguido de uma toada fixa. O improviso livre inicia a cantoria com a formulação de versos de número variável, com esquema de rimas também indeterminado. Daí o qualificativo “livre”, pois muitos dos cantos improvisados praticados no município realizam um improviso dentro de rígidas regras poéticas (como o calango, a Dança do Caranguejo, a Cana-verde, etc).


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Este detalhe é fundamental. Não há dúvida de que cantos de desafio como o calango e a cana-verde se fazem valer do improviso. Consideramos como improviso a combinação inédita de versos da tradição com versos criados instantaneamente, em um diálogo cantado. Os cantos improvisados de origem portuguesa, contudo, se fazem valer de uma forma poética fixa. Como já tivemos a oportunidade de desenvolver com detalhes em outra ocasião4, tais cantos se organizam com rimas cruzadas obrigatórias. Baseiam-se na forma poética da quadra, a redondilha maior de Portugal – como bem defende Luiz da Câmara Cascudo. Calango, Cana-verde e os desafios durante a Dança do Caranguejo fazem uso do esquema de rimas conhecido como ABCB, ou seja, com rimas obrigatórias entre o segundo e o quarto versos. Essa é a marca registrada do cancioneiro popular português, desde o movimento literário conhecido como Trovadorismo Medieval. Foi exatamente a disseminação do improviso dentro dessa forma poética que levou Luiz da Câmara Cascudo a afirmar a extração ibérica-portuguesa dos cantos improvisados sertanejos. Em contrapartida, Mário de Andrade, na análise dos sambas rurais paulistas, no interior dos quais incluí o jongo de São Luiz do Paraitinga, afirma que o improviso é marca da herança africana. Trata-se de um improviso diferente do anterior, pois o jongo possui total

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MATTOS, Ricardo Mendes. Calango em São Luiz do Paraitinga. São Luiz do Paraitinga: Malungo, 2016.


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liberdade na forma poética e na melodia – ao contrário dos cantos improvisados de origem lusitana, com forma poética e melodia fixadas rigorosamente de antemão. O canto do Brão possui o improviso livre idêntico ao do jongo, ou seja, o cantador cria seus versos e a melodia do canto com total liberdade em termos de quantidade de versos, número de sílabas, uso ou não de rimas, etc. Aplica-se ao Brão o comentário de Lavínia Raymond sobre o jongo luizense: “Nenhuma regra como se vê. Nenhuma uniformidade, nem na forma poética, nem na forma melódica. Nem se quer há preocupação de rima, que aparece muito raramente”. É um improviso afrodescendente, mas cantado segundo os trejeitos portugueses, como veremos mais adiante. Uma exceção à ausência de regras poéticas no canto do Brão é o importante cantador Jorge Faustino. Isto porque o cantador tende a compor sempre uma quadra inequivocamente portuguesa, muito embora de forma sutil e discreta. Vejamos exemplos:

Jorge e Roberto Landim: Eu fico muito contente Que o patrão é de alegria (bis)


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Garça branca bateu asa E foi sentar lá no jardim Eu também queria ir Eu pergunto pra você Se o freguês vem todo dia (bis) Garça branca bateu asa (...)

Seu Jorge e Galo: Agenor eu fiquei contente Como o convite do senhor (bis) Garça branca bateu asa (...) Na beira do seu terreno Sinto o perfume de flor Garça branca bateu asa (...)

Jorge Faustino canta nas convenções do Brão: um improviso livre, seguido de uma toada fixa invariável. Contudo, se repararmos bem, os improvisos do cantador formam uma quadra portuguesa perfeita (o esquema de rimas cruzadas conhecido como ABCB):


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(A) Eu fico muito contente (B) Que o patrão é de alegria (C) Eu pergunto pra você (B) Se o freguês vem todo dia (A) Agenor eu fiquei contente (B) Como o convite do senhor (C) Na beira do seu terreno (B) Sinto o perfume de flor

Este é o único cantador que faz uso da forma poética da quadra, assim conjugada. Não à toa é o cantador que traz até em seu sobrenome a filiação portuguesa mais precisa. Veremos mais adiante como sua forma de cantar também obedece às tradições comuns no cancioneiro popular português. Outra característica marcante do improviso do canto do Brão é sua relação necessária com o contexto imediato de convivência comunitária. Não se improvisa uma linha sobre um fato que não tenha sido vivido coletivamente na mesma ocasião em que o canto ocorre. Ou seja, o improviso incorpora os elementos presentes no contexto imediato de realização. Não se versa sobre acontecimento privado ou abstrato, mas sobre a própria vida que pulsa


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naquele instante. É por esse motivo que o canto do Brão é indissociável do modo de viver, falar e atribuir um sentido ao mundo, característico das comunidades caipiras. Atualmente, o improviso é obrigatoriamente seguido por uma toada fixa, cantada pela dupla sempre de maneira igual. Contudo, nem sempre foi assim. O registro de Alceu Maynard de Araújo, durante a década de 1940, demonstra como os cantadores improvisavam sempre quadras, com rimas obrigatórias entre o segundo e o quarto versos. Não havia a toada fixa, nem tampouco o canto com vozes simultâneas, pois se cantava sozinho. A configuração atual do canto do Brão, entretanto, é muito bem consolidada pela tradição, pois todos os grandes cantadores vivos, que aprenderam o Brão durante a década de 1950 ou 1960, já iniciaram a cantar nessa forma atual. Assim como o improviso, a toada fixa também não respeita qualquer forma poética determinada, mas é criada com muita liberdade pelo cantador. A toada funciona como uma marca registrada e intransferível da dupla, frequentemente sendo utilizada em diversos mutirões. Como vimos anteriormente, as toadas mais ouvidas são as seguintes:

Jorge Faustino: Garça branca bateu asa E foi sentar lá no jardim Eu também queria ir


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Zé Liano, João Guino: Garcinha branca bateu asa E avoou Ai, adeus morena Eu me despeço e também vou Zé Liano, João Guino: Canário canta na gaiola Sereia canta no mar O carro corre na linha Telefone anda no ar Renô Martins: Morena do zóio preto Cinturinha de boneca Por causo dessa morena Que eu estou levando a breca Aô, querida Quem não se adverti, morena Que gosto terá na vida, ai morena O mais comum é a dupla utilizar apenas uma toada fixa durante todo o mutirão ou, também com frequência, durante vários mutirões. Apenas mestre Renô Martins tem o hábito


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de utilizar mais de uma toada por mutirão. Quando muda a toada, o mestre altera o conteúdo e a melodia, passando a cantar de forma totalmente diferente da anterior. Mestre Renô Martins pondera que a metáfora da toada pode simbolizar a própria linha. Assim, quando a “linha está presa”, ou seja, os cantadores não conseguem decifrá-la e fica nela enredados, o mestre canta a seguinte toada:

Canta, canta canário Canta preso na gaiola Não canta triste canário Se ocê cantá tão triste eu choro Arrisco dizer que se o improviso inicial traz os traços da herança africana do jongo, a toada fixa guarda influência do cancioneiro tradicional português, de maneira igualmente marcante. Os temas normalmente versam sobre o encontro ou injunções românticas, num tom enamorado típico das cantigas populares portuguesas. Também as imagens, metáforas e expressões são facilmente identificáveis em sua filiação lusitana. O tema da “garça branca”, cantado por Zé Liano ou Jorge Faustino, encontram ressonâncias nos versos coletados em diferentes épocas e locais portugueses. A garça ou a pomba são símbolos muito utilizados para se referir à mulher amada. É sem dúvida a


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“pombinha branca” quem mais figura como símbolo da menina moça, desde os romanceiros medievais. Vejamos alguns exemplos recolhidos por Theóphilo Braga, nas Ilhas de Açores, em 1869:

A pombinha chega o bico Ao pombinho rolador: São signaes que symbolizam A doce união d’amor. De maneira clara e inequívoca a tradição oral popular explicita esses sinais da pombinha e o que eles simbolizam. Outras vezes,

A pombinha vae voando, Nas azas leva o descanso; Assim são estes meus olhos, Em olhar p’ra os teus não cansam. A pombinha que voa leva o descanso. São diversas as canções sobre pombas que voam, como que fugissem de seu amado. Isso porque o símbolo da pombinha, frequentemente nessa forma diminutiva, especialmente se branca, simboliza uma moça


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casta. Sabe-se que o próprio Divino Espírito Santo, conforme uma oração popular, recebia esta metáfora: “na terra sois pombinha”. Contudo, embora angelical e pura, a tal pombinha excita os desejos mais terrenos, como fica evidente nessa cantiga registrada por Maria Arminda Zaluar Nunes:

Esse teu peito, menina É um casal de pombinhas Deixa-me ir lá com a mão Para ver se tem asinhas Os seios da tal “menina” são as pombinhas, que o atrevido cantador deseja pôr a mão. As asas, nessa canção, não simbolizam a fuga da amada, mas a possibilidade de enlevar o amante: de fazê-lo voar. As garças brancas que voam no canto do Brão utilizam metáfora, imagem e enredo, inequivocamente portugueses, como vemos no tratamento lírico e poético do tema da pombinha branca. Assim, se afirmamos que a forma poética do canto do Brão mescla as heranças portuguesa e africana nas cantigas tradicionais de São Luiz do Paraitinga, o improviso livre afrodescendente e as toadas fixas com teor lusitano, são grande exemplos dessa combinação.


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6.3. Linguagem metafórica

Em linhas gerais, a metáfora é a utilização de uma palavra que tem substituída sua significação mais habitual para se referir a uma outra coisa. Por exemplo, a pomba que vimos nos versos acima, ao invés de significar a ave, como ocorre com mais frequência, tem sua significação substituída para se referir à moça. Com maior ou menor frequência, a metáfora é uma figura de linguagem utilizada em diversos cantos tradicionais. No canto do Brão, a colocação da linha emprega, necessariamente, o uso da metáfora. A expressão “princesa” por exemplo, ora é utilizada por Renô Martins como metáfora para uma “mesa”, ora para significar uma “cachoeira”. Um caminhão de leite é tomado por elefante ou um bem-te-vi faz as vezes de um freguês que bebe e vai embora sem pagar. Se a metáfora surge em diversos cantos improvisados, na formulação da linha do Brão ela não apenas ocorre, como é necessária. O canto do Brão é o único em que a metáfora é obrigatória. Se o improviso versa sobre elemento imediatamente concreto no contexto de realização da cantoria do Brão, a metáfora implica em uma abstração desse elemento, a partir


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da substituição de sua significação. Esse jogo de falar irremediavelmente sobre a vida concreta presente, mas de uma forma não compreensível imediatamente, foi marca do ponto de jongo. O ponto de jongo foi a forma de cantar em que o uso da metáfora alcançou esse grau de necessidade. Ancorado nas diversas modalidades de advinhas presentes na literatura oral centro-africanas, como veremos adiante, o uso da metáfora era necessário no jongo por um motivo político. Era a partir do ponto de jongo que africanos e afrodescendentes de diversas regiões de origem trocavam ideias, comunicavam fatos, criticavam o sistema escravagista, combinavam revoltas e formavam quilombos. Todo o acervo de metáforas vinculadas ao universo mágico africano era utilizado para uma comunicação cifrada, compreensível apenas por africanos e afrodescendentes. Essa característica da metáfora, em permitir uma comunicação hermética, simboliza a força do canto na mobilização política da comunidade cativa. No jongo de São Luiz do Paraitinga, por exemplo, quando um jongueiro perguntava “a chuva, onde está?”, estava se referindo à cachaça e ao desejo de os jongueiros a tomarem. É o emprego quase obrigatório da metáfora no jongo que oferece o modelo de formulação dos enigmas presentes nas linhas do Brão. Não apenas o uso da metáfora, mas,


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principalmente, o uso da metáfora na formulação de um enigma, é marca africana presente no canto do Brão.

6.4. Advinha e enigma

O ponto de jongo advém do gosto das comunidades centro-africanas pelas advinhas. Uma das possíveis origens do termo jongo se refere exatamente ao jinongonongo: uma forma de advinha da literatura oral africana. Maria Borges Ribeiro, importante estudiosa do jongo no Vale do Paraíba paulista, deriva o jongo da expressão jinongonongo, oriunda do dialeto quimbundo. Trata-se de uma palavra para designar um diálogo por meio de enigmas, enunciados em linguagem metafórica. No interior da vasta literatura oral do povo angolano, o jinongonongo é o que conhecemos como advinha ou charada, mas que emprega termos enigmáticos recolhidos da experiência mágica ancestral. A folclorista se baseia nas coletas de “tradição oral” realizadas por Ladislau Batalha, estudioso do tronco linguístico banto, na África do final do século XIX. Vejamos a passagem dos estudos do linguista em que surge o jinongonongo:


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Nesses enigmas (jinongonongo) passam os filhos de Angola noites inteiras ao pé do lume, fumando ao ar livre nos seus cachimbos. Cada um propõe a sua adivinhação, - e aquele que a decifra responde. Assim: Pergunta: Mborio ku rima ria xilu? Um pardal atraz do monturo? Resposta: Kiala ku rima ria mulembu. A unha nas costas do dedo. Há outros exemplos, como: “Qual a coisa que passa de noite sem nunca parar? A água do rio”. Além das pesquisas de Ladislau Batalha, Maria Borges Ribeiro também consultou a obra Folclore Musical de Angola (1968), em que observou canções de iniciação em linguagem simbólica, ainda naquela época presentes em Angola, também semelhantes aos cantos de jongo. Realmente, os pontos de jongo empregam linguagem metafórica na formulação de um enigma que deve ser decifrado pelo desafiado. Da mesma forma, é comum a utilização de expressões que possuem um sentido apenas para iniciados nos mistérios africanos. Mário de Andrade registrou um jongo em Minas Gerais, recolhido por Dantas Mota, em 1944, muito similar aos jinongonongo registrado por Ladislau Batalha. Vejamos:


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‘Junta, junta pra nói cumbiná. Chega língua puru língua, vamo segui mgoma. (Assim diz o Capitango – capitão de uma das fações, no Jongo, convidando seus soldados para seguirem mgoma, isto é, para seguirem a linha). Pergunta: - Pai véio já morreu faz cem anos, / puruque cotovelo de pai taí memo? Resposta: Cotovelo de pái véio eu mufina ele debaixo de minha camunga. Pergunta: Puruque macumbi subiu na serra e marimba roncô? Resposta: Culpa mboare Pergunta: Qual é o pássaro que passo no rungo, travessô calunga sem cabeça? Resposta: - Na sexta-feira da paixão eu mufina este passo debaixo de minha camunga (Esclarecimento: o pássaro (em virtude de asas?) é o peixe bacalhau...”. Veja como o diálogo cantado em linguagem metafórica é em tudo similar às advinhas do jinongonongo. Até o sistema perguntas e respostas permanece o mesmo. Tal como Batalha, Dantas Mota também se esforça por explicar o conteúdo, colocando uma espécie de dicionário, com verbetes utilizados no diálogo do jongo (Pai véio – pinheiro; Cotovelo de pai véio – nó de pinho; Mufinar – cozinhar; Camunga – panela; Macumbi – veado; Marimba – coração, caixa; mboare – cachorro; rungo – navio; calunga – mar).


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Ora, o improviso de um enigma com utilização de linguagem metafórica é um traço comum entre o jongo e o canto do Brão. Marca-se, assim, mais uma grande influência do jongo sobre o Brão. Como salientamos anteriormente, o jongueiro Nhô Antônio Monteiro, da cidade de Cunha, descreve o quanto algumas rodas de jongo se dedicavam às “linhas” dos “mutirões”, ou seja, exatamente ao canto do Brão. Se mestre Renô Martins afirma que os escravos cantavam Brão no eito, a partir do depoimento de Nhô Antônio Monteiro, pode-se dizer que cantavam Brão na roda de jongo. Esse expediente somente é possível porque a charada da linha do Brão provém do ponto de jongo e, às vezes, com ele se confunde.




7. Forma de cantar e estilo vocal


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Se a forma poética do canto do Brão reflete a grande influência afro-brasileira, a forma de cantar e o estilo vocal demonstram a filiação lusitana. Canta-se versos afro-brasileiros, mas de maneira tipicamente caipira, em mais uma evidência de que algumas expressões afrodescendentes foram apropriadas pelos “brancos”, a partir de uma adequação ao seu universo musical – perdendo a predominância do ritmo e as formas de cantar de matriz africana. Comecemos pelos trejeitos de cantar. Em diversos cantadores de Brão, é comum a terminação do verso com o lamento “ai ai”. Trata-se de uma marca comum no cancioneiro popular português. Por um lado, como destaca Maria Arminda Zaluar Nunes, é comum o processo de inclusão de palavras meramente fônicas nos versos (como “Lari-li, lo-lelá”), expediente similar ao “ai, ai”. Da mesma maneira, essas terminações em “ai, ai” são típicas dos cantos-orações das Folias de Reis e do Divino, na região do Vale do Paraíba paulista. É um procedimento largamente utilizado em Portugal, haja vista as recolhas de Michel Giacometti. Numa cantiga intitulada “Meu lírio roxo do campo”, vemos um verso com esse mesmo estilo de cantar:

Meu lírio roxo do campo Criado na primavera


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Quem me dera amor saber, ai, ai A tua tenção qual era A forma de cantar é a mesma do Brão e de outras expressões culturais de matriz lusitana. O mesmo ocorre com a utilização frequente da repetição dos versos, com o conhecido signo “bis” – muito presente em cantadores como Jorge Faustino. Novamente recorremos à compilação de cantigas portuguesas reunidas por Michel Giacometti para fazer associações. Há dezenas de exemplos de cantigas em que, para utilizar suas palavras, “cada dístico das quadras é repetido”, como por exemplo:

Deixa a rapariga Que ela é brejeira (bis) Vai-t’embora, António, Vai prá brincadeira (bis) Essa repetição dos versos é muito comum nos cantos improvisados, pois é um recurso empregado para que o poeta ganhe tempo para formular os versos seguintes. Em algumas variedades de Cana-verde e no Calango, a repetição possui essa função principal. Não é o caso de canto do Brão, pois o poeta compõe apenas dois versos, não havendo nenhuma necessidade de ganhar tempo. No Brão a repetição dos versos está relacionada à melhor


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comunicação de seu conteúdo. Como os cantadores estão, ás vezes, a grande distância uns dos outros, a repetição garante que o interlocutor ouviu e compreendeu o verso cantado. Seja no uso da expressão “ai ai”, seja na repetição do dístico, a forma de cantar o Brão remete a uma tradição lusitana de cantoria. O mesmo ocorre com o estilo vocal. O Brão praticado inicialmente em São Luiz do Paraitinga possuía o canto solo, como consta no registro de Alceu Maynard de Araújo. Posteriormente, convencionou-se cantar sempre em duplas, sendo a primeira voz aquela do improvisador, e a segunda voz aquela de um acompanhante. As relações entre a primeira e a segunda voz são similares àquelas da dupla de cordas de uma viola: uma mais grave, outra mais aguda. Trata-se de uma forma de cantar característica da música caipira, consagrada nas diversas gravações comerciais de música “sertaneja”. Segundo a estudiosa da música caipira, Rosa Nepomuceno, esse estilo de canto em duplas é “herança das modinhas portuguesas da segunda metade do século XVIII, que eram cantadas em duas vozes paralelas, segundo o historiador Mozart de Araújo”. Tratase de uma herança portuguesa comum em diversos cantos tradicionais brasileiros. Aqui marca-se mais uma diferença entre o jongo e o canto do Brão: enquanto o primeiro possui como marca o canto improvisado solo, seguido de resposta coral (característica de muitos cantos africanos e afro-brasileiros), o segundo apropria-se do canto de trabalho do jongo, mas com a roupagem lusitana das duas vozes simultâneas.


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Curiosamente, essa diferença musical revela uma questão social e política importante. O canto solo seguido de resposta coral revela a importância política do jongueiro como liderança comunitária, no tempo de cativeiro: o líder seguido pelos demais companheiros. Como bem notou Mario de Andrade em sua noção de “consulta coletiva”, o improviso solo precisava ser repetido coletivamente para fazer parte da roda ritual. É algo similar à proposta política de uma liderança comunitária que é avaliada coletivamente para ser incorporada por todos participantes. Já o canto simultâneo do Brão revela a condição de igualdade dos cantadores no pós-abolição, irmanados na similar situação de pequenos proprietários rurais que dependem do trabalho cooperativo no mutirão para conquistarem melhores condições de vida.



8. Perfil dos cantadores


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No período do pós-abolição, em que o canto do Brão foi criado, a cantiga se disseminou por praticamente todo o extenso ambiente rural do município. A própria característica solidária do mutirão congregava pessoas das mais diversas condições sociais e etnias. Pequenos proprietários rurais, agregados e camaradas eram irmanados na supressão de todas as diferenças sociais e étnicas, num ambiente fraterno e inclusivo. Há grandes cantadores do Brão entre afrodescendentes e ascendentes de portugueses. Vejamos dois exemplos. O grande jongueiro e curandeiro conhecido como mestre Raizeiro (Benedito Bonifácio), era liderança comunitária do bairro do Rio Abaixo, ao qual, posteriormente, emprestou o nome – sendo conhecido, atualmente, por toda gente, como bairro do Raizeiro. Esse afrodescendente se iniciou na arte de curandeiro exatamente durante um mutirão rural com cantoria do Brão, quando socorreu com ervas um companheiro que passava mal. Mestre Raizeiro foi jongueiro, benzedeiro, folião de Reis, congadeiro, moçambiqueiro e coordenador da Dança de São Gonçalo. O perfil dos irmãos José Bento Gouvêa e Antenor Bento Gouvêa, cantadores de Brão no registro pioneiro de Alceu Maynard de Araújo, é o seguinte: “irmãos, lavradores, brancos, bons violeiros, 20 a 23 anos de idade, filhos do Sr. Luís Bento da Silva, mestre da folia do Divino Espírito Santo, contramestre da cavalhada, marcador de quadrilha, capelão-caipira e


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curandeiro”. Em Alguns Ritos Mágicos, Alceu Maynard de Araújo complementa a descrição com a menção a outro irmão dos cantadores: “Eurico Bento é sitiante, lavrador e criador de gado, costuma curar com simpatias”. Gouvêa é família muito tradicional na região, presente desde o povoamento inicial que originou São Luiz do Paraitinga. Na genealogia das famílias da cidade, há os “Gomes de Gouvêa”, provenientes de Faro e Algarve, e os “Gouvêa”, oriundos de Coimbra, ambas regiões portuguesas. Famílias com esse sobrenome podem descender do Capitão-Mor José Gomes de Gouvêa (nascido em Algarve em 1686 e falecido em Guaratinguetá, em 1731), com linhagem caracterizada por importantes militares, pessoas com reconhecidos cargos públicos e proprietários de terra. Capitão-Mor José Gomes de Gouvêa e Silva (nascido em Mogi-Guaçu, em 1745 e falecido em São Luiz do Paraitinga, em 1826), por exemplo, foi Juiz Ordinário e rico proprietário de terras no Morro do Chapéu (que separa São Luiz do Paraitinga de Cunha), com grande escravaria (76 pessoas). Essa variedade no perfil dos cantadores de outrora é bastante reduzida atualmente. Os cantadores de hoje possuem, muitas vezes, idade avançada, são pequenos proprietários rurais e expressam fervorosa fé católica. Provenientes de culturas rurais tradicionais, dedicam-se a agropecuária e é comum participarem de outras expressões populares, como as cantorias caipiras, modas de viola, calango, etc. Criados na roça durante as décadas de


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1940’, 1950’ ou 1960’, tais cantadores cursaram os primeiros anos do ensino formal, o “primário”, dedicando-se, desde a infância, a atividades rurais junto a seus pais, tios ou irmãos mais velhos – com os quais, aprenderam a cantar o Brão. Muito geralmente, tais cantadores não conseguiram transmitir aos familiares da geração posterior a tradição do Brão. Trata-se de geração que recebeu educação formal mais extensa, cursando comumente o atual ensino fundamental e médio, trabalhando como profissionais no mercado urbano e não desenvolvendo trabalhos rurais. Essa dificuldade de renovação do canto do Brão leva muitos estudiosos e cantadores a falarem no fim dessa cantiga de trabalho.




9. Desafios na renovação da tradição


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A transmissão da tradição do canto do Brão ocorre no contexto ritual do mutirão. A rigor, basta o cantador respeitar as convenções da cantoria, especialmente em termos de forma poética e estilo de cantar, para tomar parte no Brão. Contudo, com o declínio do mutirão, a renovação dos cantadores de Brão se torna problemática. Em entrevista a Chico Abelha, o próprio mestre Renô Martins comenta o quanto, em sua juventude, os mutirões ocorriam quase diariamente, nos quais aprendeu a cantar acompanhando os outros cantadores: “Agora, não tem mais mutirão e fica difícil de ensiná os mais novo”. Outros cantadores partilham da aflição do mestre Renô Martins. João Gino pondera: “Nóis vai acabano e se não passá pra os mais jovem vai acaba tudo”. O cantador de Lagoinha ressalta que os mutireiros estão envelhecendo e partindo, sem oportunidade de transmitir o legado do canto do Brão às próximas gerações. De maneira semelhante, Alfredo Rocha fala com bastante franqueza: “Os cumpanhero da gente falecero bastante (...) Gosta a gente gosta, mai a idade chegô e tamo devagar, né?” O próprio mestre Renô Martins lamenta que se continuar desse jeito, o Brão vai acabar e ficará apenas seu registro audiovisual para contar história. Os processos históricos implicados no declínio dos mutirões rurais são os mesmos que distanciam as gerações mais jovens das culturas tradicionais. É a modernização das


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comunidades rurais. Instituições modernas como o ensino formal, o trabalho assalariado e o sistema público de saúde, por exemplo, entram em tensão com as formas de reprodução da vida na roça, pautada na partilha de saberes ancestrais, no trabalho familiar e/ou cooperativo e em práticas rituais de cura. O mutirão tinha razão de ser apenas nesse contexto tradicional, em que pequenos proprietários rurais formavam forte vínculo de companheirismo para prover a mão-de-obra necessária para o desenvolvimento de atividades que precisavam de grande número de trabalhadores. O declínio dos mutirões, como já visto anteriormente, é gerado pelos mesmos processos que distanciam as novas gerações dos trabalhos da roça, dos modos de vida no campo e das expressões das culturas tradicionais. É um quadro histórico que leva muitos cantadores e estudiosos a falarem na “extinção” ou “fim” do canto do Brão. As dificuldades de se convocar mutirões frequentes leva a uma inversão, muitas vezes apontada: antes o canto amenizava o duro trabalho no mutirão, ao passo que hoje o mutirão é pretexto para o Brão. Os mutirões atuais são menos frequentes e até desnecessários, ou seja, são movidos não por necessidade concreta, mas por vontade de encontrar os companheiros de cantoria.

Ainda que com pouca frequência e nessas características

específicas, os mutirões têm acontecido de maneira regular e o Brão tem sido cantado, seja em São Luiz do Paraitinga, seja em Lagoinha.


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É crescente o número de pesquisadores e pessoas interessadas em registrar ou estudar o canto do Brão. Há, também, cantadores novos, algumas vezes provenientes de outras cidades, introduzindo-se nos mutirões e aprendendo o canto com os mestres das culturas tradicionais. Se o quadro de declínio dos mutirões oferece uma visão pessimista da renovação do canto do Brão, a satisfação de cantar entre companheiros, demonstra a força da solidariedade em festejar juntos a vida em comum.


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Ricardo Mendes Mattos é mestre calangueiro e poeta. Possui o título de doutor em Psicologia Social da Arte pela Universidade de São Paulo e se dedica aos estudos de expressões da cultura tradicional de São Luiz do Paraitinga, em especial os cantos improvisados de desafio, tais como a cana-verde, o jongo, o samba rural paulista, o brão e o calango. É autor do livro Calango em São Luiz do Paraitinga (Malungo, 2016).

Contato: ricardomendesmattos@gmail.com



Coleção Galo Preto Na hora que eu nasci O galo preto cantô Minha mãe disse: - “Meu filho sai cantadô!” É o galo preto quem anuncia o nascimento do cantadô, nesse verso tradicional, conhecido por toda parte. Cantando como o galo cocorica, o cantadô incorpora o gestual da ave que inaugura a aurora. É também a extensão do canto que mede o território de domínio do galo – e do cantadô. Não é um galo qualquer, mas um galo preto: signo das relações do cantadô e do violeiro com as forças sensuais e conflituosas, associadas ao marvado. Ao chegarem no terreiro, o galo e o cantadô cantam, em alto e bom som, a vida nas comunidades rurais tradicionais: consagrando seu passado e anunciando seu futuro.


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