Diluviares

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Diluviares ricardo mattos



Diluviares ricardo mattos criação: flagrante delito SP – 2018 ISBN: 978-85-913155-6-7



Ao convite da saliva do vento, diluviei. Bastava experimentar o mundo na ponta da língua na extensão do arrepio Era urgente fazer crescer dentes nos olhos & lábios nos pés

como meninar um rolimã... o bafo quente da banguela na ladeira quando chega a curva o terror do ar preso & o riso após o suspiro um fio suspenso no distante & acrobacias na linha do horizonte. Por ali ele bambeou trupicou noutro lado & dipindurou uma constelação nos cílios. & vai no que escorre esvai disforme n’algo.

Deu na telha: vagabundagem é vadiar indolente nas forças do instante.

& tudo ganha esse movimento: uma árvore que despenca do chão é nada pra quem tá plantado mas o parapeito entorta um viaduto prum olho que entorna do corpo (& deixa entrever o horizonte tropeçando num prédio) 1


O portal de cada encruzilhada. Um muro se despe ao olhar que nasce. A esquina lateja nos suores da noite. Um lilás se esparrama na espuma de um beijo. Tão logo as pálpebras pisquem, um novo colapso reverbera. Rumo imberbe. Baque num beco trôpego, recheado de estranhos contorcionistas do asfalto. Aí é só inusitar os sentidos para aliciar uns de repentes. Bastam uns passos displicentes mastigando o acaso. A ginga matreira de um fio no umbigo ligado à Lua Uma calçada zoa zanza zumbi no corpo andarilho

O maltrapilho puxando palha na esquina pra ver o que acontece. Cio do ócio, no lapso em que a debandada de sapatos dá voos rasantes na bunda dos passantes. Um poste epiléptico. Levante das pupilas, em imagens surpresadas dum fluir incauto. Libélulas empunham garranchos que escorrem dum grafite: “Contra o dever, pelo devir”. Uma rasteira no plano, põe a planar. Se deixar levar. A maré dum tempo em que urge ir pra onde? sabe-se lá Nas entrelinhas, um arroto: do que o privado nos priva? Em que guarida nos consola? Onde nos leva? - com o traseiro soterrado na privada: a merda & o medo...... Geração torcicolo de internet. Quem güenta o cheiro? Basta jogar no ventilador... e o familiar dá no pé com a revoada do desconhecido. Estrangeirar. Resta apenas o carimbo: dromomania = surto deambulatório. Antes se prendia, agora é epidemia. Ó Recôncavo ardendo na boca de brasa. Ó chico vilão retalhando a estrada na ponta da adaga. um primeiro terço comedor de ópio atenção dispersa

percepção delirante

um neurastênico em jornada. humor lábil

imaginação flutuante. Um real

enrubesceu com os trejeitos do óbvio. 2


Se mija nas calças um futuro. Fortuna saltitando. Já não se espera, se espraia. O sobressalto efusivo diante do insólito. Miríade de sensações difusas. Ser possuído pela presença do efêmero quando nos deixa ver do ângulo inexato da sombra de um rato vomitando viadutos. Epifania de absurdos, ao soluço do imprevisível. O devanear dissoluto de um fluxo que já não é pensamento. Um jorro vívido das vísceras. De súbito, vadiamos dissolvidos lá onde o eu já é outros. Flutuava na deriva urbana com gestos lentos & um riso sarcástico diante da multidão de vultos, com crachás de identificação. Todo dia a mesma algazarra de espantalhos pendurando ternos nas fachadas. Os emparedados – onde até o ar está condicionado. Aqueles anões sérios medindo os escombros & redigindo relatórios de ruínas. A tarde atreve. Tarde entreva. Um vagabundo fazia engraçado movimento: suas mãos circulavam a calçada, acariciando-a; depois lambia o dedo & expunha ao vento – seguidas vezes. Perguntei se podia experimentar. Disse que não precisava, pois já havia conseguido. Era só o truque de esticar a calçada para a praça espreguiçar. Sentei-me. Era adestrador de janelas. Bastava deitar no banco da praça, arrancar alguns pedaços de nuvens & mastigá-los, com os olhos fechados. Depois se soprava, abria os olhos & as janelas iam aparecendo. Mostrou-me centenas delas, inventadas assim. O claustro do longínquo. Antes era de profissão imaginador de passarinhos. Ofício simples: se imaginava voando & logo aparecia um passarinho, pra dar prova. Voava. Via um passarinho sentado no banco. Pendurava máquinas de datilografar nos postes de luz. Só pra ver escorrer o tempo – sem necessidade de inovação. Logo se viam alguns orelhões pra cumprir a tarefa. Ficou habituado a trazer a morte encravada no pelo. Era simples: atravessava a rua movimentada qual vira-lata... se entortando no meio dos carros. Se via a vida frágil. Demonstração prática do fugaz. Sacrifício ritual arcaico, no ritmo das ruas. De repente, olhou entusiasmado. Fez uma concha na orelha & perguntou: “Tá ouvindo?”. “Ouvindo o que?”. “Não ouviu?” – insistindo. “Não tô ouvindo nada!”. “Nada, isso mesmo... chamo de silêncio” – finalizou, sorrindo. Era um incrível silêncio no intervalo dos semáforos. Antigamente colecionava silêncios em uma caixa de fósforos. 3


Sacou um monte de folhas amarrotadas do bolso & passou a escrever. Meio ensombrecido. Perguntei o que escrevia. Me empurrou com a mĂŁo. Senti um soco no estĂ´mago dentro de seu olhar que me atravessa me traveste me extravasa

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1. Coletânea de contrastes

Recostei, fatiei a parte mais alta do Banespão, recheei o pão & comi. Estava propício ao precipício. E me equilibrava no parapeito, com os braços em asas - tal como fazia no meio-fio, quando criança. A parada era vertiginar. Sentir a vida perto do instante em que finda. Era centrífugo: abismei. Despencado nas escamas da voragem. Me demorava na comitiva de gestos desesperados ao vento. E jamais alcancei ao chão. O vagabundo cutucou-me, meio assustado. Parecia pálido, como quem passa o dedo no olho para tirar um cisco - ou um surto. Contou-me quem o escrevia. Revolteio de imagens no curto-circuito das sensações. Sonhos golpeiam a pele com um trilho de trem esbarrando entre os edifícios & pisca em uma senhora que jantava sentada no vaso sanitário do banheiro, em frente à torneira da pia jorrando vinho. Penteu na sala, sendo assistido por uma televisão de bruços. Força de empinar terraços. E quando converso saem de minha boca umas ignomínias em debandada... ou glossolalias intercaladas com escarros; outra vez apareceram bicos soletrando ruídos que mordiscavam meu cérebro. Ioiô de escarros. Pra não dizer das sorrateiras caretas bizarras que se riem de mim sempre que tento fixar minha atenção em algo. Me pregam peças & reviraram minhas vísceras. Vaivém de novas sensações. Um formigamento no queixo que torna as coisas rápidos feixes de cores, permitindo senti-las em seus impulsos espontâneos. Um bigode transluz raios rubros que escorrem em forma circular, na medida de um sorriso; ou um tal portão de casa que adensa um mesclado pastoso & me torna um calafrio de cinta-liga. A brecha aberta a experimentações. Sussurro de surrealidades. Lusco-fusco do corpo. Tato deturpado, sem a impressão do limite com as coisas. Quando chove, ficou com medo de descer pelos bueiros. Amealho algumas páginas rasuradas. Insurreição do absurdo. Há coisas leguminosas como “caixote anfitrião”, “pingente alcalina”, “caga vitral”, “almanaque com esclerose & outros parricídios”. Quando se juntam, então, fica uma zona: “cajados penicam-se em motocas que dão tapinhas na bunda de terrenos baldios por onde se acendem baseados com um simples estalo na axila das flores”; ou: “tomada de bigode ajoelha gasolina em pelúcias soletradas pelo arroto de latas em trânsito na goela dos astros”. Eram quase palavras em devaneio embaralhadas ao 5


acaso das novas combinações. Isto tudo me lembra, sabe-se lá porque cargas d’água, quando vi cabeças enforcadas em esferas giratórias, nos dedos de um malabarista; quando olhei de novo eram apenas as rodas de um carro passando.

Havia alguns desses textos. Emaranhado de garranchos. Páginas e páginas no fuzuê – algumas repetindo as mesmas palavras ou frases, outras escritas com tanta força que a folha rasgara. Meras imagens. Tinha também muita coisa já penteada:

Motocas marítimas É infantil: um doce embaixo da língua & um mundo de cabeça pra baixo. sorver o cheiro do sol roçar num arco-íris de som o bafo do azul vazando no ventre

Rabiscos do abismo: soletrar a angústia / na tarde em que as trevas / entram / atrevidas / na soleira / do surto.

há meses o sol se pôs

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unha de gato

vadiar pelos jardins da cidade é canhestro os jardins sempre estão do lado de dentro! muros guaritas silêncio toque mágico: a cada porta, uma luz de vigilância um fruto cai da laranjeira retrucam dois nãos à espreita

uma piroca flácida ampara o alpendre sente-se um gosto agridoce na goela um pé na bunda as pernas ensaiam uma queda mas quem tenta escorar no muro: cerca elétrica quem tenta sentar: câmera de segurança

nada tira o corpo do movimento (mas o que sai do lugar?) quando menos se espera: mão na cabeça & documento

Após declamar, esses versos romperam uma membrana qualquer em minha face. Sentia escorrer algo por dentro da têmpora. As pessoas me olhavam com tapas, estupefatas. Vociferava:

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Faunos na geladeira Nos escombros, um silêncio espesso. Ventríloquos tiravam a chuva pra dançar & um tijolo cantarolava o suspiro que antecede o suicídio. Cabeleiras amontoam um toque de campainha na porta do estômago & uma voz longínqua: “De que é feito o chão?”. – “Limite”, tilintava meu vórtice. Era preciso o suspense de qualquer revelação. Talvez só a possibilidade urgente de um sobressalto. Bastava romper o invólucro de um sonho. Bancos de praça escalam uma árvore deixando entrever um lume alçando o viaduto. Aquela mesma fenda fitava o momento esperado do bocejo de carambolas. Limão, sal & cachaça para dilatar as artérias. Depois do estrondo, a colheita de penicos & suas fezes assinando contratos com a secretaria da curtura. E na semana seguinte estavam todos lá: uns versos de ontem esbravejando obviedades; 430 lugares-comuns para uso de engraxates; & uma performance de saia justa com uma trincheira costurada na altura do peido. Quem güenta? Essas lindas estufas de mesmice que se requenta & serve em louças de prata. Pareceu entusiasmado. Pegou uma caneta & uma folha, onde se lia: “pela lente flácida da garrafa vazia”. Sinalizou para que escrevesse. E foi de supetão que saiu: “as pálpebras espremem / o musgo a ninar o menino”. Tomou a folha tão logo terminei a frase & escreveu: “adormecido abraçado ao cachimbo”. Entregando-se ligeiro. Entre o vaivém de frases velozes foi surgindo um levante de versos.

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Pela lente flácida da garrafa vazia as pálpebras espremem o musgo a ninar o menino que dorme abraçado ao cachimbo uma goteira no viaduto salta quando um carro passa a raiz duma árvore rebenta a calçada um bueiro manco marcha em disparada ao som do lilás que despenca do horizonte por uma fresta entre edifícios Onde.

De tudo talvez reste apenas um lixo remexido um murmúrio de latas ou um aborto chacoalhando o pilar Enquanto.

Quando menos se espera pivetes batem boca num beco & as babas indolentes retorcem um estátua com torcicolo

Tão logo uma palavra ecoe nas entranhas qualquer um assume ar insuportável como pancadas no batente do olho uma coceira na costela ou centopeias a passear no pescoço & um Asco cresce até nossas unhas dilacerarem a pele 9


Quando. Um vagabundo passa cantarolando um unicórnio

Ouvir o poema, a voz, o eco das sílabas, o entrave de um acento, o silêncio após um ponto. Parto? E quanto menos se tentava compreender o tal “significado” das palavras, mais elas pareciam entranhar um sentido, s e n t i d o. Como se alongassem alguns gestos que me tornassem inflável, flácido: redemoinho vibra sem borda; movimento da água tocada por uma pedra. Um pulsar amorfo & latejante. Rodo na rajada de um skate que passa; me prolongo no sussurro de passos. Volátil na rugosidade de uma árvore. Surto? Súbito, um osso estremece & voltamos a senti-lo. Pesado & viscoso. Um gosto ácido na língua. Cãibra no olho. Gosmas da placenta, ainda frescas, formam um lago no umbigo. Um corpo sem a fronteira da pele Senti a experiência poética como iniciação. Volúpia do azul – em voz alta. Era urgente aprender a falar, novamente. Experimentar esse outro corpo, poroso; essa cintilação de lumes. O ventre que pari & nasce, simultaneamente. A pele permeável aos devires derivas veredas diluviares

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2. um susto de tocaia Dia seguinte me sentei no banco da praça. Era ele, revolvendo qualquer delírio pousado suavemente no ombro. Um ritual: era tomado pela presença fulgurante de qualquer intensidade & descarava versos:

Do destino das ratoeiras & outras cores Bastava cozer poltronas com pitadas de cinzeiros amanhecidos. Era aí que a fanfarra vestia seus solfejos - e não tinha mais jeito. Buscava por alguém que não levasse a sério. Alguém que pudesse dançar no vaivém das algas, após a tormenta; ou sentir as ondas eriçando nos olhos do quero-quero. Certo gosto pelo corpo que boia no mar, visto da altura de quando se encolina. Mas, nada! As mesmas bundas espremendo óculos escuros, com suspeitas cervejas à espreita. E só. Qual a piada das ondas a lamber a areia com a língua do horizonte? Em que murmúrio se deita a displicência do caranguejo sapateando nossas sombras? Como se chega ao tal sangue, em férias, que acaricia a navalha dos corais? Porque borbulha Zagreu sempre no ponto cego do mergulho? Isto não importa. O que não se consome ou consola, também não comove. E o que dizer do útero da lua pulsando na concha? “Não vale nada, nem um tostão”. E o levante de ilhas tropeçando epifanias? “Bobagem, pura mentira”. Deixa estar, é desutil mesmo.... tão ardido como uma cambalhota do surto no céu da boca. Outro dia vi que ele vinha vindo & me escondi atrás da árvore. Quando passou, dei-lhe um susto. Era o crepúsculo. Enrubesceu. Fez escorrer um tom lilás, lindíssimo, no horizonte. Entardeci.

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Guardei na mochila meus desvarios, levei uns quatro dilúvios no bolso como lembrança & fui-me embora, na carona das rochas que, exatamente naquela hora, resolveram rolar nas espumas.

Aqueles versos em enxurrada. Cataclismava num vir a ser vaporoso que envolve as coisas no contrapé de um lastro um voo do avesso

Roçaram alguns assombros na espinha. Entre as centenas de gravatas que passavam apressadas, algumas olhavam com displicência & riam – tentativa de acorrentar o inusitado nas peias do conhecido. “Mas um louco....” – sentia, em seus sorrisos. Eu mesmo via esses loucos às centenas, sempre com os mesmos trejeitos & alguns enigmáticos aparelhos: seus espelhos, seus símiles: cérebros celulares. Mas entre os passantes havia aqueles que olhavam com certa cumplicidade. Os gestos precisam de bem pouco para formar conluio. Como sexo: quanto menos se fala, mais se comunica. Lembravam aquelas transas de bandidos: bastava trocarem poucos olhares para estarem prontos para o delito.... Surgiu um engraçado atentado:

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Surrupios da poesia vadia: como farsar o idioma Era uma espécie de manual para uso de acrobatas das letras. Bater a carteira da linguagem: um vórtice, um beco & um pavor. Virá-la de cabeça pra baixo & despencar de seus bolsos alguns opróbrios. Assaltaram nossa infância com regras gramaticais. É urgente tomar o brinquedo de volta. Uma facção da Coquille (Cavalheiros do Punhal) dedicada a embustes semânticos. A palavra de desordem era farsar o idioma: colocar as substancias em devir: idiomar. A poesia vadia interessa-se demais pela língua. Chupar & fazer amor com as palavras, como Whitman. Sim, Artaud, a palavra certa soprada ao ouvido pode levar o homem à loucura. Quando se dá conta da ausência de princípios, se principia. Havia novas sensações com desregramento dos sentidos. Novas imagens com os encontros insólitos entre realidades distantes. Bastava agora desarrumar a linguagem para fazê-la expressar, a seu contragosto – diga-se de passagem – essas novas combinações. Empreendimento nada novo, como se sabe – o tempo não é de novidades. Sacanagens. Plágios. Colagens. Era simples: pôr-se a brincar com as palavras. Dada. Coisa gratuita, displicente: um jogo gozozo. Vadiagem vocabular. Como pisar em gargalos foragidos das gargantas colar pentelhos nas estrelas 13


enforcar um cinza do alto de seu urro

Um pouco abstrato, não? Pode ser também algo assim: sentar uma calçada em suas coxas encouchar um viaduto

Mas assim ficou desproporcional, muito frio... Procuremos outra coisa: ninar com o assobio de um parque ou arremessar um acidente de carros da espessura do óbvio

Talvez algo mais pessoal: soletrar um calafrio no quarto de hóspedes dos gramofones domesticar uma coceira Dá pra fazer inúmeras variações à la Ducasse: o encontro entre o pára-choque & o baton na casa de bonecas ou um pandeiro & um penico nas bordas de um bolo de noiva.

E por aí vai... Não importam as figuras de linguagem, mas sim a desfiguração.

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Há também aquelas trapaças manjadas. Chistosas. Por exemplo, inventar novos devires colocando as substâncias pra andar: um sapato se encalçadou para camuflar cotovelos gatunos escadei-a para foder seu cu Pode ser uma façanha mais cotidiana, o engenheiro enjanelou o horizonte. Ou mais simples: te delito me lobo ao luar - para não dizerem que fugimos sempre aos clichês. Há infinitas variantes desse tipo de averbação verborrágica.

Pode ser o contrário, também. Acorrentar o fluxo em entidades pessoais muito bem humoradas. Espécie de priapismo sintático: dois foderes deliraram novos excrementos um despencar guardou as encostas em sua mochila E a coisa vai longe... só propondo essas inversões infantis (me lembro da competição de cuspe em altura, ou mijo à distância). Dá pra brincar com as circunstâncias do tempo como se faz com dados: aquis faziam malabarismos com pulmões ainda frescos

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ou entretantos escarram ribaltas O meu predileto continua sendo talvezes roçavam o paradoxo enquanto os durantes prolongavam as ausências Outro dia, sem querer, experimentei o devir dos adjetivos & saiu. primitivei um poema: virou magia Isto pra ficar só com as subversões gramaticais. Dá pra fazer jogos só com as palavras, como a moralina de Nietzsche. A brincadeira pode durar horas ou vidas. Basta disposição sarcástica para se rir dos movimentos inusitados do idioma que, excitado com novos toques, já não funciona. É só chupá-lo até expelir suas misturas mais quentes & incontroláveis.

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3. muambinha de moita

Um olho vidrado na marquise / motim de associações alucinadas / supuradas no verbo / se acotovelando nos ermos da memória. Escorreram pelas têmporas alguns aforismos matutos

O andarilho saiu do acostamento, se embrenhou na mata & descaminhou. Jamais se encontrou. *** O moleque se aproximou do passarinho, deu um bote & pegou - seu canto. Saiu assoviando. *** Acordou atrasado, correu para o armário & abriu a gaveta dum sonho: era um sapo lambendo uma xícara de cócoras *** Uma boa rede sempre me espreguiça

*** Flama o velho mistério da viuvinha: como voar a flor sem deixar o pássaro plantado na Terra?

***

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mato um lojista em sonho enforcado com cabos telefônicos & um banner cravado no meio Ele amanheceu morto.

*** Gozozo: cafuné nas franjas do rio, pelado. *** Ludibriei o crepúsculo, roubando-lhe a eminência da catástrofe. *** Quando um pedreiro roda a massa, gira ciscando como o pombo chamando a fêmea. Mas como poderia voar, com asas de pedra? *** se esquece que se come se esquece que se fende o alimento que se funde no diverso como ser vegetal no cogumelo vadiagem na variedade das formas

***

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Ao sentir a fenda no tempo, não tema (o calafrio da ausência) é só um jeito do devir livrar-se de si & abri-lo ao fluxo *** Bater papo com a Lua é sinal de loucura só pra quem desconhece lonjuras. *** Para não enlouquecer lentamente basta dar um nó nos pilares de um edifício. *** Enquanto cago na moita, sentinelas de concreto vigiam a praça, com seus olhos de vidraça. com seus olhos estatelados de tédio. *** Li um adágio: “O homem limitado é aquele que desconhece seus limites”. Lógico! Brinquei: “O homem conformado é aquele que desconhece seus conformes” ou suas “fôrmas”. Logo: “O homem deformado é aquele que desconhece suas formas”. Ou: “O homem original é aquele que desconhece suas origens”; “O homem normal é aquele que desconhece suas normas”. Ilógico! Hilário! *** O guia prático do maloqueiro trazia toques simples para lambuzar a bunda da rua: basta pitá & puxá uma paia na praça. Pronto. 19


*** Ser humano ĂŠ a forma mais medĂ­ocre de devir *** Sismei

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4. Estilingue pro almoço

Era de meninar só jogar o verbo como bola de gude Inventou-se uma patuscadinha de adivinhar:

“Um prédio brincou com um viaduto: o que nasceu?” “ - Um ônibus!”

Lá vinha o outro, com gracejo: “Uma casa brincou com um poste: o que nasceu?” “ - Uma calçada!”

“Uma sacada brincou com uma escada: o que nasceu?” “ - Um portão!”

“Um petróleo brincou com uma loja: o que nasceu?” “ - A fumaça!”

....E uma cidade inteira foi se criando assim - no balanço do irracional...

Nascia a fórceps

Mas foi ficando sem graça. Pra quem traz a imagem roçando nos pelos, a cidade é muito manjada.... Prédio Codorna Prédio Ronca-Ronca Prédio Cachecol Prédio Balaústre Edifício Siricutico Edifício Mônada de Cristal Edifício Palestina Edifício Biboca Condomínio Andorinha Enforcada Condomínio Escarro Verde Condomínio Asas de Pedra Residencial Cutuca Nuvem Residencial Caranguejo no Cio Residencial De Butuca Avenida Serafim Paquiderme Avenida dos Refratários Avenida Bambuzal Punheta Viaduto Urbano Furtado Viaduto Macuco Zaroio Viaduto Teleférico de Porre 21


Beco do Boquete

Beco Mictório

Beco Pita-Crack Beco Troca-Troca Beco Boca

do Sapo A monotonia exigia exatidão matemática: Daí a equação: (4 postes com torcicolo + 1 viaduto perneta) X (3 condomínios carcomidos – 1 Avenida zumbido) = ½ automóvel batido.

Ou: quanto menos espaço, carros maiores quanto menos se anda, carros mais rápidos

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5. atoleiro com rodinhas

Às vezes se sente a vida como um ônibus que vai saindo pouquíssimo antes de chegarmos ao ponto. Se corre gesticulando. Mas o busão vai embora. Se fica emputecido. Se xinga. Se rosna. Aí o vagabundo resmunga. Calça o sério. Cerra o punho. Esparrama crítica. Ainda.

ponto.com

O homem consome seus dias

debruçado no vazio de suas faces dispostas em prateleiras virtuais como símiles como sombras simulacros

navegação do corpo atrofiado no acento: vida.com

uma felicidade embalada à vácuo com 20% de desconto pesadelos pasteurizados

abortos frescos, sem gordura trans promoção de surtos enlatados (com medicamento incluso!) culpas em conserva & uma utopia em pó personalizada 23


tudo ensacado em identidades biodegradáveis que não agridem o meio-ambiente

Os dias consomem o homem um mausoléu de máscaras nas vitrines assombros perfilados nos corredores sorrisos solúveis, prontos para o consumo êxtases africanos congelados suicídio: leve 3, pague 2 erotismo portátil (parcelamos em até 20 prestações) Beijo (com aroma artificial similar ao natural) Não percam: coletânea de suas compulsões 50% off brisas a beira mar, prontas em 5 minutos no micro-ondas Utilize nosso delivery (grátis, na compra de uma depressão estampada no espelho)

Consomem os dias o homem um link para farsas um click em dissimulações uma página que se abre & nos fecha na tela uma promoção que lateja no canto direito da cachola Vida.com: a mercadoria & seus disfarces a vida pronta para o desfrute pronta para o consumo pronta para o descarte

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Se batesse a fome entrava ela também na jogada.

Virado à paulista

Asfalto frito com a gordura que se acumula nas panças sedentárias & refogadinho de viadutos no vapor de escapamentos + uma porção de milhares de idiotas no trânsito cotidiano ao caldo de shoppings centers

salpicado de equipamentos eletrônicos

Tudo isso temperado com a ira de seus desesperos

Bom apetite!

Sentia-se a roupa meio apertada. Asfixiava? Quem vadiou no informe cria muito calo com roupa. Nada cabe. Mas se resmunga. Faz-se a crítica. É cínica, mas passa... Do sagrado se fazia o sátiro. Era urgente rir da própria cara. Uma peripécia da náusea. Gargalhada de ver a vida em banho-maria. Somos todos idiotas. Lampadarias. Caminho nu & você se espanta, coberta de razão. O que me veste, não me serve.

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6. baú com amnésia

& a deriva havia se entranhado. Sempre no mesmo lugar, um outro. Sempre na mesma pessoa, uma outra. O banco da praça como o portal de uma epifania. Quando se dava conta, a voz lá estava a verter seus versos:

trupe

quando um raio racha o horizonte um lilás encharca a cidade com a crueza do sangue na dureza do cinza aquele parapeito nada no meu pulmão em meio ao motim de ascensoristas nos chifres do terraço angolanos gesticulam danças aos celulares & um bardo peida alto no corredor

quando um raio racha o horizonte a fenda pagã suga putanheiros sua mãe sente um calafrio nas coxas & a rachadura se abre no teto

quando um raio racha o horizonte Dino Campana faz arruaça na rodoviária uma ribalta, finalmente, consegue arremessar & meninas brincam de amarelinha na rua de barro

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quando um raio racha o horizonte trombo Sileno na corredeira de tapume Bocato entorta um palco & um cacique recebe visita extraterrestre na Serra da Cantareira

quando um raio racha o horizonte concepcionistas traficam carapuças encanamentos debruçam zuretas & abortos jogam ioiô na fila de adoção

Nouveau recebe sua correspondência.

Aos poucos fui sentindo o poder do ritual. Colher uma montanha do horizonte & guardar entre os pelos das axilas. Degustá-la como o sapo que pulsa as vibrações da mata em seu papo. Depois ficava nu & pendurava na rocha as calças, em uma espécie de retribuição. Não importava as calças, mas ser vento no ventre. Não importava o rito, mas o corpo convulso. Conluio cósmico. Despir-se de toda finalidade. Se rir do humano pendurado na rocha. Crível? Não importa.

Ponte Grande senta num banco em frente. Uma faísca rajou de seu olhar & trespassou em versos, um vórtice:

Parapeitos andarilhos Nesta tarde paulistana de escafandristas uma folha despencou de seu colar desencadeando o levante do mausoléu da memória que babava duas amizades de boteco salpicadas com polenta frita + a silhueta de um camelo roendo o muro + rodopio etílico de passos desconexos foi então que me dei conta do quanto estamos absortos nos surtos do tempo. 28


7. guizos no pulso do cometa

Nas frestas de um assombro, a praça. Inóspita como um objeto perdido. Era ele: um maço de cigarros sentido, agora, como ausência, pra seu dono. Onipresente como as lamúrias de uma lembrança. Ou seria um pingente, daqueles hereditários, a guardar um segredo jamais visitado? Talvez um escaravelho de ouro, ainda fresco, que sobe nas pernas da noite & excita o sexo da menina. Agora já sibilina, quando toca o escaravelho & habita uma tormenta de imagens, vorazes, que cabiam todas em uma única palavra. Quem ousaria balbuciá-la? Vieram uns versos enroscados na barbicha, mais ou menos assim:

Flagrante Delito

O vandalismo poético inclui inverter placas de trânsito urrar na madrugada, em homenagem à lei do Psiu ou cortar a energia elétrica de vizinhos no horário do futebol arremesso de paralelepípedos do alto de viadutos lambe-lambe na bunda das catedrais sessões de haquiri nas vielas & orgias nas praças [para rebolar os anéis de Saturno]

distribuição gratuita de barbitúricos comer um pêssego depois de tomar um ácido & portas abertas & pernas abertas

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colar fechaduras de automóveis fazer gestos obscenos enquanto anda de bicicleta ou praticar sexo na sacada

ler Bílis, Bules & Bolas nas esquinas escarrar ao ver gravatas dançar de forma grotesca nas avenidas ou simplesmente dormir tendo o meio-fio como travesseiro

o clássico roubo de livros também serve ou mesmo deixar no chão exemplares de poesia beletrista com o convite: “PISA-ME!”

Se ainda quiser rabiscar alguns versos após tais façanhas (o que acho absolutamente desnecessário) o faça em mictórios públicos em e-mails a pessoas desconhecidas ou nos muros das embaixadas pequenos lembretes em praça pública são interessantes, tais como: não tropece no estorvo você já comeu sua mãe hoje?

é proibido andar nas calçadas

Pode ser até bastante salutar urinar nas portas de espaços culturais com a inscrição: performance fecal

E assim por diante.... precisamos ser mais criativos que os peidos discretos no elevador, grafites nos muros ou tocar campainhas & sair correndo A ação como mera extensão de novos desejos mais bizarros sem intermediários ou contraindicações

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8. Horta de pizzas

& o tempo apareceu pra mim vestindo meia-calça preta com suspensório. Um tesão! Em seu striptease, um corpo flutuando qual fumaça - fulgurou mais uma lembrança, vívida como nunca. À deriva, a cidade jorra por fendas imprevistas. Senti a calçada apinhada de rabiscos grotescos, de beira de abismo. Era lindo. Assustador. Pareciam provocar vertigens por seus traços longos & curvos – despencados incautos dum caos, gestando a si mesmo conforme se ia passando. Eram quarteirões inteiros, às vezes, rabiscados com restos de tijolo. Ali o concreto respirava. Por vezes dava uma volta na redondeza para encontrá-los. Ora, eram folhas, grandes, ao vento. Uma revoada de folhas sob forte ventania. Ora, seus movimentos curvos davam a impressão de um mar chacoalhado pela tormenta. Sentia mesmo neles as veias de cimento pulsarem. E ficava ali parado, durante horas, absorto no absurdo. Irresistível. Certa feita, enquanto andava na beira dos desenhos, para não pisar, pincelei com o corpo um movimento sinuoso, ofídico. Eram os rabiscos a partir de dentro; a rasura entranhada nas vísceras. Não relutei: fui logo pisando na extensão toda dos desenhos e experimentando seus movimentos. Um barco bêbado saracutiando na sacudida do mar e saltando suas ondas; ou umas asas emprestadas que permitiam perambular pelas folhas. Nunca uma pintura me havia feito dançar. E já não precisava dos desenhos no chão. Estavam inscritos em meus passos. Durante minhas derivas desenhava os traços em gestos. Era eu a obra. Sua transmutação no ar, suas curvas vibrando meus músculos. Sua verve em meu nervo. Fiquei estupefato ao ver o vagabundo os desenhando. Virei a esquina e, de súbito, lá estava ele. Ajoelhado, com as pernas desconjuntadas pra trás, qual curupira. Desenhava com o quadril: traços longos e abaulados, recurvos, dos braços que pareciam reger com batuta os riscos em transe. Desenhava com as duas mãos, simultaneamente. Eram serpentes num ritmo frenético, também acompanhado pelos ombros e cabeça. Babava, tamanha entrega. Fiz graça: ensaiei meus movimentos dentro dos traços até chegar bem perto dele. Nem olhou. E precisava? Em nossos corpos uma comunicação imediata e muda: plenitude dos devires da carne, como obras de arte. Trabalho de parto. 31



9. engarrafamento de atabaques

Por entre becos embebidos de delitos caminhava à praça pela última vez. Aprendera a falar, bastava achar quem ouvisse. Voltaria à deriva, ao corpo disperso no dorso do acaso. Sentei-me. Eis o vagabundo. Num gesto espontâneo, fiz com as mãos o movimento circular na calçada, lambi o dedo & ergui ao vento. Tinham o peso de um ritual: re-criar uma cena mítica de Origem. O originário: sem passado nem futuro: eterno retorno da presença: o começo, interminável. Um cara se aproximou e perguntou se podia experimentar. Disse que não, já havia conseguido. O quê, perguntou ele. Disse que era só um truque para esticar a calçada & a praça poder espreguiçar.... Vivi onde tarde n’algum.

São Paulo, 2012

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Ricardo Mattos ĂŠ autor dos livros de poesia Acaso Subversivo (2012), Espraiar (2014) e Grafia do Gozo (2018).


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