Zé da Escola: artista popular

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Zé da Escola: artista popular Autor: Ricardo Mendes Mattos ISBN: 978-85-913155-9-8 Criação: Malungo edições São Luiz do Paraitinga 2019


Índice

Ode à ingenuidade Introdução...................................................................................................... 01 1. Cronologia................................................................................................ 03 2. Entrevista................................................................................................. 10 3. Obra Plástica............................................................................................ 21 4. Zé da Escola: artista popular.................................................................... 30 5. Zé da Escola por ele mesmo....................................................................

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6. João Paulino e Maria Angu: um conto de Zé da Escola............................. 63 Referências


Ode à Ingenuidade

Não se aprende a ingenuidade. A ingenuidade vem do coração, não do cérebro. Champfleury, Histoire de l’imagerie populaire, 1869.

Ricardo Mendes Mattos é um artista incomum. Não sei como era antes, mas desde o momento em que o conheci; incomum. O sentido desta palavra é muito variado e ambíguo. Isso é importante para que não a tomemos de modo estreito. Incomuns foram designados os artistas populares que escapavam das designações convencionais: próximos da arte bruta, mas não exatamente como ela; próximos dos ingênuos, mas não exatamente como eles. Ricardo, porém, atravessa o meio popular carregando consigo uma longa formação acadêmica em psicologia social, literatura e estética. Assim, ele não é incomum como os outros; é incomum a seu modo. Dotado de uma ingenuidade refinada, como aquela da qual falava o crítico de arte Mario Pedrosa, a olhar o mundo como se fosse sempre a primeira vez, Ricardo manteve-se atento aos moradores de rua em incursões pelo centro de São Paulo e aos caipiras nos campos de São Luiz do Paraitinga. Sempre conduzindo sua atenção à sensibilidade do outro, procurando aprender com eles. Não será, portanto, fortuito o encontro de Ricardo Mendes Mattos com José Carlos Monteiro. Ambos são pessoas simples, sempre atentos ao mundo sensível. No entanto, uma simplicidade surpreendente. Eles exigem muita atenção para atravessar a complexidade das coisas do mundo e encontrar lá no fundo as coisas simples. Isso é surpreendente; o simples. E talvez aqui resida a primeira contribuição deste livro. O autor nos lembra desde o início que “popular”, “naïf”, “ingênuo”, “primitivo” estão sempre entre aspas; mas, simples não. I


No primeiro capítulo, a cronologia de uma vida dedicada à transformação do mundo em pintura já sinaliza que o grau de simplicidade aqui é grande. Simplicidade é coisa profunda. Vale recordar que o surgimento do valor das coisas simples, de gente comum, ainda no início do século XIX, vinha associado ao termo ingenuidade. Na Europa daquele tempo, muito longe dos usos atuais, a palavra ingênuo era referida pelo potencial do olhar em conhecer o mundo sem o peso das categorias acadêmicas, como dizia o escritor Johann Wolfgang von Goethe. Em solo francês, a ingenuidade encontrou os autores notáveis do realismo em um trabalho intenso de valorização das artes populares. Dentre eles, estavam o escritor Jules-François-Félix Husson, conhecido por Champfleury, e o pintor Gustave Courbet. Neles, a ingenuidade torna-se uma qualidade imprescindível ao artista. Champfleury publicou o livro História do imaginário popular, em Paris, no ano de 1869, em cujo conteúdo encontra-se um dos primeiros elogios à ingenuidade dos artefatos populares: “a ingenuidade vem do coração, não do cérebro.” O “dom” do desenho abriu a Zé da Escola um mundo social, como uma linguagem que possibilitaria o diálogo, desde o colégio até o ingresso no mundo da arte. Em meio aos “primitivos” da arte, achou que gozavam dele quando elogiaram suas primeiras telas. Duvidava da amplitude dessa linguagem que expressava em tintas seus sentimentos mais sinceros. Diante disso, Ricardo Mattos trata com cuidado a diversidade de designações dirigidas à arte de Zé da Escola. Um cuidado marcante quando se está diante dos chamados artistas populares. Vale ressaltar que o pintor oferece um caminho: “pintor primitivo é o pintor brasileiro, considerado com uma pintura mais rústica ou rupestre até. O naïf já é francês, porque na França eles já se interessavam pelo que os pintores de lá faziam.” Conforme Zé da Escola, o naïf, versão francesa de ingênuo, não é o mesmo que primitivo: II


Eu entro na parte do naïf porque é sentimento: ele transmite a parte sentimental dele na tela. Tem mais luz, tem mais vida porque ele transmite um pouco dele na tela. O primitivo não: ele mostra assim o que ele vê, a imagem, sem muito daquela inspiração de sentimentalismo.

O sentimentalismo que permeia uma “técnica inspirada” é o distintivo desse artista, assim como o é sua vontade de expressar a si mesmo: “Eu mesmo quero contar, não quero que o outro fale por mim.” Como bem notou Ricardo Mattos, “na opinião de José Carlos Monteiro, os termos “primitivo”, “naïf” e “artista plástico” são colocados em uma escala de gradação técnica.” O pintor fez sua escolha dentre as categorias disponíveis, ao que Mattos acrescenta: “A expressão genuína dos sentimentos é a principal característica do artista naïf, algo que se consegue com mais espontaneidade do que técnica de pintura.” O resultado da pesquisa e do convívio de Ricardo Mattos com José Monteiro responde a esse empenho do pintor em falar sobre seu trabalho. Neste caso, sem abandonar a parceria e a visão do outro, o livro nos apresenta as vozes de ambos: a biografia, uma conversa, as reproduções de telas, fotografias e um comentário crítico. Note-se, o comentário crítico não tem nada de pedante. O autor conhece bem as palavras, é versado em poesia. A observação arguta está sempre voltada para os fenômenos que envolvem seu corpo, como num banho de riacho. Diante das imagens de Zé da Escola, o colorido é o que mais atrai o olhar. Através dele a técnica confere volume às personagens, para além do jogo de luz e sombra, por uma volumetria construída pela densidade da própria da cor. Foi assim que vi a pintura na Escola Monsenhor Ignácio Gióia. As cores moldam formas exuberantes de coisas e pessoas. Por outro lado, o estudo da perspectiva

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fica bem marcado na tela “Afogado no mercado”, nas linhas da construção e nos planos das cenas. Olhando a pintura, entendemos porque as categorias “primitivo” e “naïf” são sempre imprecisas. Mesmo designações mais atentas ao ato criador, “singulares” ou “ínsitos”, permanecem como categorias externas à própria experiência do artista; uma experiência inominável. Quando, pois, apresento este livro como uma ode à ingenuidade, o faço de modo distinto das categorias artísticas e em proximidade ao valor do conhecimento das coisas simples, ditas populares. Ricardo Mendes Mattos também fez sua escolha. Ele não se ateve às categorias e nomeações. Prefere dedicar-se à escuta do artista e à percepção de suas imagens. Eis o convite ofertado ao leitor deste livro: ouvir e perceber. Agradecemos ao autor e ao artista esta oportunidade.

Arley Andriolo Osasco, outubro 2018

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Introdução José Carlos Monteiro é uma pessoa simples. Pode ser visto andando de bicicleta pelas ruas de sua cidade natal, São Luiz do Paraitinga, proseando na praça da Igreja Matriz ou pintando suas telas ao ar livre, no Mercado Municipal. É figura conhecida na cidade como pintor, contador de causos e entendido nas lendas locais. É artista plástico reconhecido pela crítica de arte, como pintor “popular”, “primitivo” ou “naif”. José Carlos Monteiro, conhecido como Zé da Escola, é uma pessoa especial. Pode ser visto falando da espiritualidade dos Atlantis, descrevendo contatos que teve com seres extraterrestres ou discutindo as diversas versões de uma lenda tradicional. Possui um longo currículo como artista plástico, participando de exposições no Brasil e no exterior, além de acumular premiações, farta crítica de arte e entrevistas a grandes veículos midiáticos. Artista plástico, muralista, ator e escritor, José Carlos Monteiro conjuga contrastes entre sua simplicidade e sua erudição, sua humildade e sua popularidade. Mas quem é esse ser múltiplo e criativo? Como iniciou sua trajetória nas artes? Como alcançou reconhecimento dos cidadãos de São Luiz do Paraitinga e de críticos de arte? Zé da Escola: artista popular se inicia com uma Cronologia desse multiartista, apresentando a linha do tempo de seu percurso nas artes. Posteriormente, apresenta-se uma Entrevista com José Carlos Monteiro, na qual relata como se deu sua paixão pela pintura, quais foram suas principais realizações, como é seu processo criativo e quais são seus projetos para o futuro. No capítulo intitulado Obra Plástica temos alguns exemplos de telas e painéis pintados por Zé da Escola. Em seguida, uma análise crítica de sua vida e obra permite contextualizá-lo no interior da história da arte, bem como discorrer sobre suas características como artista. Como escritor, o próprio artista se apresenta ao público em um ótimo texto denominado José Carlos Monteiro por Ele Mesmo. Por 1


fim, apresenta-se um conto do autor, ainda inédito, em que narra o surgimento dos bonecões João Paulino e Maria Angu, bem como as contribuições do próprio José Carlos Monteiro para renovar essa importante tradição do folclore de São Luiz do Paraitinga. Em seu conjunto, o livro pretende lançar luzes sobre a linda obra de José Carlos Monteiro, a partir de diversas perspectivas, tingidas com diferentes cores. Sua obra é traçada em uma vida cheia de desafios e enigmáticas coincidências. A própria vida é sua maior obra de arte; é esta que José Carlos Monteiro nos convida a conhecer.

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1. Cronologia 1954: no dia 27 de setembro, nasce José Carlos Monteiro, no bairro rural de Santo Antônio, município de São Luiz do Paraitinga; 1956: é abandonado em um “tanque de lavar roupas”, após a separação dos pais biológicos; 1956: após passar por diversas famílias, pela Delegacia e pela Igreja, José Carlos Monteiro é adotado por seus pais de criação, um pedreiro e uma dona de casa; 1960’: assiste filmagens de Amácio Mazzaropi, o que desperta sua vocação como ator; 1960’: pinta santos e imagens religiosas em bandeiras expostas em mastros das festividades populares, bem como estandartes de procissões e de companhias de Moçambique e Congada; 1966: com a morte do pai de criação, começa a desenhar figuras de livros para os colegas da escola, em troca de lanches; 1967: trabalha como engraxate, na Praça Oswaldo Cruz (São Luiz do Paraitinga) e começa a pregar cartazes de filmes na portaria do cinema da cidade; 1968: sendo convidado por festeiros locais, pinta santos e imagens religiosas em bandeiras expostas em mastros e em estandartes de procissões; 1970’: pratica intensamente o desenho de festas locais e tradições da cultura popular (como as Companhias de Moçambique); 1974: inicia sua carreira na pintura em tela, retratando casarões e espaços públicos da cidade, no que considera um “estilo Naïf”; 1976: passa dois anos trabalhando como operário na General Motors, na cidade de São José dos Campos; 1980’: Inicia sua carreira como funcionário público, na condição de zelador de escola, que lhe rende a alcunha de “Zé da Escola”;

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1982: participa de exposição coletiva no Museu de Antropologia de Jacareí; 1982: expõe no 1º. Salão Brasileiro de Pintura Ingênua, no Centro Cultural de São Paulo;

Pintando a Bandeira da Festa do Divino Espírito Santo de São Luiz do Paraitinga de 2012.

1987: é incluído no livro “Os 14 do Vale: pintores primitivos”, com suas obras “Capela das Mercês”, “Fazenda Boa Vista” e “Casarão de Paulo Cabral”; 1988: participa de exposição coletiva no Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand); 1990: expõe na I Mostra de Arte da Universidade de Taubaté; 1991: expõe no Projeto Arte no Intervalo da Universidade de Taubaté; 1992: é membro fundador do Centro Cultural de Arte Primitiva de Brasília; 1993: expõe na Fundart (Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba); 1993: participa de exposição no Serviço Social do Comércio (SESC) Pompéia, em São Paulo; 1993: pinta painéis, voluntariamente, na Casa Oswaldo Cruz, em São Luiz do Paraitinga; 4


1994: a partir da obra “João Paulino e Maria Angu”, passa a pintar personagens e festividades do folclore de São Luiz do Paraitinga; 1994: expõe na Bienal Brasileira de Arte Naïf, no SESC Piracicaba; 1994: sua obra “João Paulino e Maria Angu” recebe Prêmio de Aquisição no SESC Piracicaba; 1994: sua obra “João Paulino e Maria Angu” é utilizada como cartão postal da cidade de São Luiz do Paraitinga, em mensagens de ano novo;

1995: participa da exposição itinerante “O Divino na visão ingênua”, no SESC Piracicaba; 2004: sua obra “Afogado no Mercado” é exposta na Bienal Naïfs do Brasil, no SESC Piracicaba; 5


2004: é convidado para ser membro da Academia Vale Paraibana de Letras e Artes de Taubaté; 2004: expõe sua obra “Festa do Divino”, na Galeria Renot e a tem publicada na Revista Renot do mês de agosto; 2005: expõe sua obra “Grupo de Moçambique”, na Gabriel Galeria de Arte; 2005: expõe na Galeria Casa Amarela; 2005: expõe sua obra “Procissão de São Benedito”, na Galeria Renot e a tem publicada na Revista Renot do mês de novembro; 2006: sua obra “João Paulino e Maria Angu” é vista no Cultural Center (Chicago, EUA), durante a exposição “Brazilian Naive Arte from the SESC Collection”; 2006: participa do projeto “Futebol Paixão Brasileira”, com exposição que se iniciou no Memorial da América Latina e percorreu diversos municípios do Estado de São Paulo, por intermédio do Sistema de Museus do Estado; 2006: expõe sua obra “Encontro das Bandeiras”, na Galeria Renot e a tem publicada na Revista Renot; 2006: participa da III Mostra de Arte do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Região Serrana, realizada pela Prefeitura Municipal de Taubaté; 2007: é realizada reportagem sobre seu trabalho para a revista Viaje Mais; 2007: Atua como ator principal no filme “Mai será o Binidito?”, e recebe uma “Moção de Parabenização” da Câmara Municipal de São Luiz do Paraitinga;

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2008: expõe no Espaço da Cultura Caipira, em São Luiz do Paraitinga; 2009: recebe o título de Mestre de Arte, pelo Ministério da Cultura, Brasília; 2010: após a enchente que assolou São Luiz do Paraitinga, contribui com a restauração de quadros e recebe homenagem da prefeita da cidade; 2010: participa da III Mostra de Arte Primitivista, Ingênua e Naïf, no Centro Cultural Municipal de Taubaté; 2010: participa da VI Mostra de Arte do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Região Serrana, realizada pela Prefeitura Municipal de Taubaté; 2010: participa da Semana Artística e Cultural São Luiz do Paraitinga em São Paulo (SESI/FIESP), pintando quadros; 2012: é mencionado no livro “São Luiz do Paraitinga: sem rabo e sem chifre”; 2012: expõe no Balaio das Artes, em São Luiz do Paraitinga; 2012: estreia como escritor com a publicação da primeira versão de seu livro “Lendas, contos e causos de São Luiz do Paraitinga”; 2013: a TV Vanguarda realiza reportagem especial sobre sua obra; 2013: expõe na IX Mostra de Arte do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Região Serrana, realizada pela Prefeitura Municipal de Taubaté; 2013: aposenta-se como funcionário público; 2013-6: realiza voluntariamente a pintura de 18 grandes painéis na Estadual Monsenhor Ignácio Gióia, em São Luiz do Paraitinga;

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Durante a pintura de painéis na Escola Monsenhor Ignácio Gióia

2014: faz exposição individual na Biblioteca Municipal de São Luiz do Paraitinga; 2014: sua obra “Folclore” ganha Medalha de Bronze no 11º Salão de Belas Artes de Ubatuba; 2014: recebe carta de agradecimento do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, por sua “capacidade criativa em resgatar o folclore, cultura e história de São Luiz do Paraitinga”; 2015: participa do XVI Salão de Artes Plásticas de Cerquilho; 2015: realiza a exposição individual “Exposição Cultura Viva”, em São Luiz do Paraitinga; 2015: pinta um grande painel encomendado pela Pousada Nativas, de São Luiz do Paraitinga; 2016: suas obras “Moçambiqueiros” e “João Paulino e Maria Angu” são expostas no 13º. Salão Ubatuba de Belas Artes; 2016: sua obra “Folclore” participa da Bienal Naïfs do Brasil 2016; 8


2016: sua obra “Figureiro Geraldo Tartaruga” recebe menção especial na publicação Bienal Naïfs do Brasil, do SESC São Paulo; 2017: participa da Bienal Naïfs do Brasil: Evidências, com sua obra “Figureiro Geraldo Tartaruga”, exposta no Sesc Belenzinho, em São Paulo; 2017: realiza oficinas durante o Balaio das Artes, em São Luiz do Paraitinga; 2018: Expõe seu quadro “Congada”, no 10º. Aniversário da Associação Totem Cultural (Socorro/SP).

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2. Entrevista

Quando despertou no senhor a paixão pela pintura? Quando eu tinha sete anos de idade eu fui lá no Mercado, com a minha mãe. Foi a primeira vez que eu saí de casa, porque a gente era preso em casa. Daí eu vi o irmão do Geraldo Tartaruga fazendo trabalhos na cumbuca. Aquilo me despertou. Eu pensei: “puxa vida, que bacana esse negócio”. Foi com o João Tartaruga. Eu ouvia as histórias dele e também do meu pai, no pé do fogão à lenha.

Durante o Documentário “O Pintor Naïf – José Carlos Monteiro”, de Chico Abelha (2016)

Mas daí eu entrei na escola. Comecei a aprender teatro com a Didi Andrade e a gente recitava nas festas. Ela deu as primeiras orientações sobre como era o personagem e o gestual. Na escola, o pessoal pedia muitos desenhos: de Pedro Álvares Cabral, Tiradentes e caravelas. Eu comecei a fazer aquilo e depois de gibi também. Daí fui aprendendo os movimentos das linhas e comecei a ampliar ou fazer mais pequeno. A turma gostou e me pedia para fazer. Às vezes eu não tinha lanche direito. Eu trocava o desenho pelo lanche. Fazia o Pedro 10


Álvares e ele trazia um pedaço de goiabada ou queijo e estava tudo certo. Eu cresci com esse dom do desenho. Depois chegou uma época que o pessoal das festas, sabendo que eu desenhava, começou a trazer as bandeiras para mim. Eu fazia e eles gostavam e passou a comentar de um para o outro e todos os bairros de roça começaram a trazer para mim. Depois o pessoal da cidade trazia também [as bandeiras da festa].

Qual idade o senhor tinha? Eu estava com meus quatorze anos, mais ou menos. Já estava aprimorando no desenho. Depois eu dei uma parada, fui trabalhar na fábrica [General Motors, em São José dos Campos] e depois voltei para São Luiz.

O senhor conhecia alguém que pintava nessa época? Conheci o Bento: ele era pedreiro e, de vez em quando, pintava uns quadros bem coloridos e simples. Ele era primitivo. Tinha um quadro que eu gostava muito que era uma casa, uma lagoa e um pato. Só que o pato era tão grande que se fosse real, não tinha jeito: era muito grande em proporção ao lago e à casa. Um baita de um pato gigante. Ele não deve ter pintado muito porque naquele tempo – eu estava começando e ele já era pintor – não tinha incentivo nenhum, ninguém ligada e aquilo era bobeira. Diziam: “O cara é caipira, é um bobo”. Então ele ia morrer desapercebido. Mas teve um cara [José Nazareno Mimessi] que montou um livro falando do Bento, do Ranchinho (que ficou famoso) e do Geraldo Tartaruga. O Geraldo pintava com látex na madeira e o Bento na cartolina.

Qual foi a primeira vez que o senhor viu alguém pintar em tela? Foi um amigo meu que estava aprendendo por correspondência. Quando fui na casa dele, ele estava lá pintando. Chamava-se Waldecir Siqueira. Eu me 11


interessei, porque até então eu pintava na cartolina também, com lápis de cor e guache. Eu perguntei para ele como que funcionava aquilo dali e ele falou: “É tinta a óleo”. Ele me explicou. Mas ele copiava a técnica de muitos pintores e acabou não ganhando estilo nenhum. Aí eu pensei: “Vou pintar também”.

Moçambiqueiro (2016)

Como começou a pintar em tela? Eu fui em casa, como me alembro, pintei três telas e pus em cima do guarda roupa. Porque antes eu pintava bandeira e estandarte no pano com látex. Quando comecei a pintar em tela daí achei que aquilo era importante. Eu não me alembro da tela que foi, mas a única coisa que alembro é que tinha pintado uma santa: uma Nossa Senhora sentada na beirada de um ribeirão, com o menino Jesus no braço. Foi quando apareceu o pessoal de Jacareí fazendo pesquisa para montar um livro sobre os artistas do Vale do Paraíba. Daí foram atrás de mim. Esse livro ia ser editado pela Monsanto do Brasil.

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Como os pesquisadores te conheceram? Andaram pesquisando por aí e foram atrás desse Waldecir Siqueira. Depois foram na minha casa. Daí eles perguntaram para mim se eu pintava e disse: “Eu? Eu não sou pintor não”. Eu não me considerava artista. E minha vergonha, então... Eu falei que quem pinta é o Siqueira, porque foi ele quem me ensinou. Mas eles disseram que o trabalho dele não servia. Eu pensei: “Se o dele não serve, que já está estudando há três anos, o meu piorou”. Daí eu não queria mostrar, não. Eles insistiram que tinham ouvido que eu pintava, então disse: “Pra dizer que não tenho, eu tenho três telas”. Eu peguei as telas em cima do guarda roupa, entreguei para uma moça e ela disse: “Nossa!”. Na minha cabeça eu pensei: “ela achou uma porcaria” e fiquei até com vergonha. Ela passou para o outro e disse: “Que lindo!”. Eu pensei: “Eles estão de gozação”. Eu não entendi nada. Mas ela falou: “Ele tem estilo”. Então eles pediram para eu pintar umas telas que iriam me pôr como pintor do Vale do Paraíba.

Foi assim que o senhor participou da primeira exposição, em Jacareí e depois em São Paulo? Sim. Passou um tempo e eles vieram. Eu pintei um da Praça Central, um da Capela das Mercês e um casario. E saiu no livro: Os 14 do Vale. Daí chegou no Centro Cultural de São Paulo, pelo Mario Garcia-Guillèn. Só sei que as coisas foram acontecendo.

Como foi o reconhecimento? Foi bom, mas teve também o Mokiti Okada, em São Paulo. A prefeitura arrumou uma Kombi furada para mim. Cheguei lá pingando com os meus quadros na caixa de papelão. E eles selecionaram um japonesinho de lá, achei muito furado... marmelada. Porque o prêmio era uma viagem ao Japão, por uma semana, e foi justamente um japonês que ganhou. E eu não passei. Eu falei para

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eles: “Andei 200 quilômetros, cheguei todo molhado, e não passei nem para expor? ”.

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Nessa época o senhor pintava casario? Eu comecei pintando porta e janela. Não pintava a casa inteira porque não sabia. Depois me arrisquei a pintar a Capela das Mercês. Depois eu comecei a desenhar com perspectiva. Eu já estava arriscando pôr a frente e a lateral. Comecei a procurar informações com outros pintores, com quem entendia de desenho e em revistas que eu via. Estudei aquilo de ponto de fuga.

O senhor passou a estudar pintura? Sim. Depois aconteceu também que eu estava expondo na pracinha e passou um rapaz da roça: pé no chão, caboclão mesmo. Ele disse: “Gostei muito do seu quadro, mas pena que ele está com um defeito”. Eu pensei: “Defeito? Mas o que esse cara tem haver? Fica colocando defeito nas coisas dos outros”. Eu falei assim: “O que está errado aqui no meu quadro?”. Ele falou: “É o telhado da sua casa. Eu sou pedreiro e está errada a queda da água, pois do jeito que você fez aí, na primeira chuva vai inundar tudo. A caída da água não é essa daí”. Eu perguntei: “Mas como que é?”. Então ele me ensinou a fazer a canaleta. Eu arrumei a tela do jeito que ele falou e passou uns tempos ele passou ali comprou o quadro. Então eu aprendi também com a opinião dos outros.

Como começou a pintar temas diferentes daqueles de casario? Eu pintava casario. No tempo em que não tinha ninguém para expor lá [no Sesc Piracicaba] meu quadro servia e ganhava prêmio. Agora que eles estavam com muita gente lá, eles estavam querendo tirar eu. Eu que dei força também para crescer lá. Então estava meio enfezado com eles. Foi em 1994 que o Sesc falou para mim se eu tinha quadro folclórico. Disseram que se eu só pintasse casario que eu mandasse, mas talvez eu não conseguisse mais passar lá. Daí perguntei: “O que vocês querem?”. Eles queriam quadros com movimento. Daí para não ficar feio para mim eu falei que pintava, mas não pintava nada. Foi quando os bonequeiros Benito [Benito Euclides de 15


Moura Campos] e Porva levaram a cabeça do João Paulino para eu pintar para eles. A turma do Sesc duvidando que eu fazia quadro com gente e eu pensei: “Porque eu não posso fazer João Paulino e Maria Angu correndo na praça?”. Então eu fiz os casarios de São Luiz, retratando bem a cidade, pus os bonecões e pus umas pessoas ali e mandei lá. Eu pintei o quadro e mostrei para o Homerinho [Luiz Homero Ivo dos Santos], que estudava belas-artes: “Queria mandar o quadro, mas não sei se ele serve, porque se eu mandar e não prestar esse quadro vai ficar feio para mim”. Ele falou: “Esse quadro aqui tá bom”. Eu mandei e fiquei entre os cinco melhores.

Você pinta muitos temas de carnaval, não é? Do carnaval foi que eu estava fazendo pesquisa sobre as histórias de assombração da cidade e surgiu o carnaval com os bonecões e eu me inspirei nos bonecos. Eu pesquisei fotos dos bonecões mais antigos e pintei dois quadros, meio parecidos. Aconteceu que no primeiro quadro tem o estandarte verdadeiro, mas no segundo tive um problema: tive uma influência espiritual que me mandou tirar o diabo que estava no estandarte. Eu olhava no quadro e começava a passar mal. Ouvi assim: “Você não faz isso não porque ele é um símbolo da maldade e não combina com o bloco”. O primeiro eu vendi, mas no segundo não tem o diabo. Foi na noite de Natal: fui e apaguei o diabo.

Detalhes de duas versões da tela “Apocalipse”.

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O senhor usa muito o termo “pintor primitivo” ou “pintor naïf”: o que é isso? O pintor primitivo é o pintor brasileiro, considerado com uma pintura mais rústica ou rupestre até. O naïf já é francês, porque na França eles já se interessavam pelo que os pintores de lá faziam. Então resolveram se aprofundar nesse conhecimento e vieram para o Brasil, chamando nós de naïf. E tem o ingênuo também. Eu penso assim: eu tenho uma opinião sobre aquilo dali e você quer saber sobre a mesma coisa, mas tem outra opinião, então naïf e primitivo é uma opinião particular de cada um. O naïf e o primitivo para mim não é o mesmo. As pinturas do naïf são mais técnicas do que as do primitivo. O primitivo é o puro, lá da caverna, é mais traçado do que pintura. O naïf já tem técnica. O meu já está quase que saindo do naïf porque tem ponto de fuga, tem tudo: quando o primitivo vai saber disso? O primitivo é chapado, é mesma coisa que pegar um chuchu e colocar as perninhas nele e fazer uma vaquinha. Eu entro na parte do naïf porque é sentimento: ele transmite a parte sentimental dele na tela. Tem mais luz, tem mais vida porque ele transmite um pouco dele na tela. O primitivo não: ele mostra assim o que ele vê, a imagem, sem muito daquela inspiração de sentimentalismo.

Como você pensa a técnica em seus quadros? Não pode olhar muito nas telas dos outros senão fica muito na técnica. Eu gosto muito do Van Gogh, nem sei da técnica e não estudo muito, mas ele tem inspiração e inventou um novo modelo. Ele faz muito do jeito dele, não da técnica. Eu gosto do Van Gogh na espontaneidade. Eu emprego isso nos meus quadros: não vou muito para o lado da técnica. Eu uso a técnica no desenho, mas na pintura eu uso o primitivo ou o naïf. Por exemplo, se for pintar com pincel a nuvem, fica muito técnica. Do meu jeito eu não uso pincel, mas o dedo, porque o dedo é mais original do que o pincel.

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Como foi sua experiência como ator principal no filme “Mai será o Binidito?”? Eu assisti muitas filmagens do Mazzaropi e já tinha uma experiência de ator nos teatrinhos da escola, com a Didi Andrade. Então eu fui aprendendo. Daí me convidaram para fazer o filme “Mai será o Binidito?”. Eu lembrei desse tempo e estava muito querendo fazer e arrisquei. A entendida de cinema fez um teste em que eu tinha que fazer o papel de morto. Aí foi fácil: deitei na cama e fiz que estava morrendo. Ela falou que estava bom.

Cena do filme “Mai será o Binidito?”, com José Carlos atuando como ator tendo um de seus quadros ao fundo.

Você participou de exposições coletivas encomendadas, como aquela do “Futebol: Paixão Brasileira”? Daí já é outra coisa, porque é imposto para você, já não é do seu gosto. O tema é aquele ali. Então eu pintei a peladinha de quintal, o futebol de várzea e o cara profissional. Esses foram os três quadros que eu mandei: eles gostaram e fez sucesso. 18


E agora também mandaram o tema, da cidade de Socorro (a Associação Totem), e o tema é congada.

Como o senhor faz para criar uma tela? Para pintar uma tela eu demoro uns 2 ou 3 meses. Porque São Luiz tem casarios e muita sombra. Eu gosto de dar vida aos casarios e parece que você está dentro da cidade, parece que você está olhando ao vivo.

Como é pintar painéis, como o senhor fez na Escola Monsenhor Ignácio Gióia ou em pousadas? Porque geralmente o artista quando faz só na tela a turma acha que é fácil: “Mas quero ver ele fazer um gigante”. Porque não tem cópia, não tem nada, é um desafio para o artista. Eu levei 3 anos e deixei 18 painéis na escola. É inspiração e força de vontade, porque hoje eu olho lá e não sei se teria coragem de fazer de novo. Porque lá tudo tem vida, ficou tão bom... não tem nenhum painel que saiu mais ou menos. Durante a pintura de painéis na Escola Monsenhor Ignácio Gióia.

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O senhor faz pesquisa das lendas locais e escreve também. Como é sua trajetória como escritor? Tudo começou com os quadros do Encuca a Cuca [bloco de carnaval], porque eu tinha que retratar os personagens e falar deles. Penso também que muitos artistas famosos que já faleceram talvez não tenham deixado a ideia deles por escrito. Os críticos acham que entendem e falam das coisas dos artistas. Eu penso que não: tenho que deixar a minha ideia. Eu mesmo quero contar, não quero que o outro fale por mim.

Quais são suas atividades artísticas, hoje? Quase não estou pintando mais. É o final da carreira, não estou pintando nada. Estou perdendo o gosto pela pintura por causa da sinusite: eu pinto três dias e passo quinze com problema de tosse e respiração. A vista também anda ardendo um pouco. Também não está tendo muita coisa para eu retratar, porque eu gosto muito de passar São Luiz do Paraitinga e eu já retratei bastante São Luiz. Então para mim está ficando meio enjoativo o tema. Também não estou conseguindo vender os quadros pelo preço que valem. Não vale a pena gastar minha saúde. Então acho que está na hora. Agora como o livro é mais fácil eu estou pensando em expor muita coisa que eu sei.

Entrevista concedida no dia 05 de abril de 2018.

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3. Obra Plástica

Casarão de Paulo Cabral (1987) Acrílico sobre tela, 38 x 55.

Fazenda Boa Vista (1987) Acrílico sobre tela, 33 x 41.


Apocalipse AcrĂ­lico sobre tela.


Folclore (2014) AcrĂ­lico sobre tela, 60 X 70.


Procissão do Divino (1994), restaurado após a enchente de 2010.

Afogado no Mercado (2004) Acrílico sobre tela


Detalhes do esboço e da finalização de painel na Escola Monsenhor Ignácio Gióia


BonecĂľes do Carnaval AcrĂ­lico sobre tela


Painéis da Escola Monsenhor Ignácio Gióia


Futebol Paixão Brasileira (2006) Acrílico sobre tela, 40 X 50.


Figureiro Geraldo Tartaruga (2015). AcrĂ­lico sobre tela, 70 X 50.


4. Zé da Escola: artista popular Os primeiros traços do artista dão o contorno da própria vida. As linhas que tangem a subjetividade, as cores que tingem os afetos, formam o pano de fundo sob o qual a obra ganha perspectiva. Só assim as telas surgem vivas, nas veias pulsantes de um modo de ser, estranhamente tão comum e especial como aquele de José Carlos Monteiro. O artista nasce traquina em uma tarde do ano de 1960. Era um passeio especial ao Mercado Municipal da cidade de São Luiz do Paraitinga. Entre os cheiros das frutas, o reboliço de pessoas e o murmúrio das conversas, as atenções da criança se voltam para um artesão. Com o corpo arqueado e o nariz sobressalente, João Tartaruga apalpava a argila e modelava pequenos seres fantásticos das lendas locais. O Saci, o Cabrá ou a Cuca adentravam num cenário no interior de cabaças, formando obras de uma singeleza e beleza que marcariam história.

Mercado Municipal de São Luiz do Paraitinga. Acervo Juventino José Galhardo Junior

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O infante José Carlos Monteiro fazia naquela tarde seu primeiro passeio na cidade. O tempo parou nas mãos do artesão amassando a argila; os olhos da criança brilhavam no instante em que tocavam um universo maravilhoso que o fascinou. Arriscou tocar a argila e sentiu seu destino tomar forma na palma da mão. Voltou de seu passeio com uma prematura convicção: queria ser artista.

Artista Plástico Geraldo Tartaruga

A fascinação de José Carlos vinha de uma experiência muito frequente em sua infância. Sentava-se ao lado do pai adotivo e ouvia as fantásticas lendas locais, na beira da fogueira. Na crepitação da chama se formavam gigantes, serpentes e assombrações. As miragens moventes da imaginação habitavam sua vida e suas brincadeiras. Agora, nas mãos de João Tartaruga, seus sonhos se tornavam palpáveis. Era como se toda a imaginação coubesse na palma da mão. Essa estranha magia está no centro da verve criativa do artista. 31


Aos 60 anos José Carlos Monteiro pinta uma nuvem num painel de uma escola secundária. Tem a pretensão de alcançar a nuvem do céu e traze-la para a tela. Modela, na ponta do polegar, a profundidade do azul. Em gestos ligeiros imprime o movimento das nuvens. Torna tangível todo o azul do céu. Essa vivência, tão profunda na sua infância e tão fecunda em sua velhice, manipula a mesma magia: a visibilidade do invisível; a concretização da imaginação. Agora, porém, José Carlos torna realidade seu próprio sonho de ser artista.

Desenhos em troca de doces

Tudo começa na escola primária. Interessava-se pelas aulas de arte e se extasia com as encenações teatrais, conduzidas por Dona Didi Andrade. Contudo, são as aulas de história e geografia que revelam seu talento especial para o desenho. Os estudantes tinham como lição de casa desenhar mapas geográficos e personalidades históricas. José Carlos desenhava com tamanha facilidade e precisão que passa a auxiliar seus colegas nessas tarefas. Chateado com o fato de sempre levar como lanche o suco de groselha e o pão com mortadela, pede dos colegas, em retribuição, goiabadas, paçocas e demais doces da roça. Essa troca se intensifica com a chegada de gibis à cidade. O garoto desenhista passa a receber encomendas dos amigos que queriam decorar suas casas com imagens do Pato Donald ou do Mickey Mouse. José Carlos passa do lápis de cor em papel sulfite à aquarela em cartolina, dominando uma diversidade de técnicas para reduzir ou ampliar seus modelos, conforme o gosto ou as possibilidades de sua clientela. A habilidade nos desenhos popularizou José Carlos Monteiro por toda a cidade. Sempre que alguém precisava de um desenho, era a ele que procurava.

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Artista popular

Aos 14 anos, José Carlos Monteiro passa a receber encomendas de comunidades rurais, companhias de Congada e Folias de Reis. Tratava-se da retratação de santos que adornavam bandeiras de festas, estandartes das companhias e a bandeira das Folias. Naquela altura, São Luiz do Paraitinga era uma cidade reconhecida pela força de sua tradição popular. As festas da roça homenageavam os santos padroeiros da comunidade, cujo retrato era hasteado em um mastro ao lado da capela local. Tais bandeiras eram pintadas em tecidos com tinta látex. São João, São Pedro, São Sebastião ou Santo Antônio são exemplos de santos retratados nessas ocasiões. Sua atividade passa a adquirir as feições profissionais, pois, quando o festeiro havia condições, José Carlos cobrava pelo serviço prestado.

Durante a pintura de uma bandeira de festa (2010).

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O mesmo ocorria com os estandartes de Congada ou Moçambique. Levados à frente da companhia, tais bandeiras identificam a devoção dos integrantes, o bairro de onde vieram e a data de surgimento do grupo. Em sua maioria, as companhias eram devotas de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Além de retratar o santo no tecido, as bandeiras são adornadas com fitas ou bordados, que exigem trabalho artesanal não restrito à pintura. A Folia de Reis é uma tradição do catolicismo popular que faz um ritual da visita dos três reis magos na ocasião do nascimento de Jesus Cristo. Na bandeira das folias se têm retratados, normalmente, os reis magos ou algum motivo marcante da data de natal.

Bandeira de Folia de Reis pintada por José Carlos Monteiro em 2016.

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Na pintura de santos, José Carlos Monteiro tem grandes desafios: a técnica da pintura em tecido com uso de tinta látex e a criação de um motivo que não se limita à mera cópia. Ou seja, as comunidades e companhias pediam para retratar um santo determinado, mas cabia ao artista criar seu próprio modelo em grande diversidade de formas de representa-lo. José Carlos precisou, então, fazer pesquisas sobre os santos e recorrer a algumas das imagens já realizadas (em esculturas dos santeiros ou em imagens no interior das igrejas). Assim, criava maneiras originais de retratar os santos: ressaltando expressões faciais, inserindo detalhes e tingindo o retrato com suas marcas pessoais. Na condição de artista popular, José Carlos Monteiro responde principalmente à tradição de pequenas comunidades. Quais são as características do artista popular? Um cantador, um palhaço de Folia de Reis, um folgazão da Dança do Caranguejo, um santeiro ou um pintor de mastros são pessoas que entregam seu talento para a comunidade, sem que a atividade seja associada ao trabalho ou à necessidade de auferir recursos para a sobrevivência. Fazem música, teatro, dança, escultura ou pintura, é verdade, mas não são músicos, atores, dançarinos, escultores ou pintores. A razão é muito simples: suas atividades não são organizadas pelo mercado capitalista ou por instituições modernas. Ou seja, não são formados em instituições oficiais de ensino de artes, não são profissionais que vedem sua força de trabalho, não circulam suas atividades no mercado. Isso ocorre porque respondem a uma formação econômica, política e artística précapitalista: a cultura tradicional. Cultura esta que imprime fortes marcas éticas e estéticas nesses artistas. De acordo com a tradição, o resguardo e a transmissão do saber dependem de um mestre. Normalmente figura com idade mais avançada e portador de saberes ancestrais, convém ao mestre transmitir seus conhecimentos e renovar a tradição no interior das próximas gerações. O mestre realiza essa renovação a partir do “batismo” ou “iniciação”, termos utilizados 35


para designar uma série de saberes não meramente artísticos, mas principalmente relacionados a uma ética que deve ser respeitada. No meu caso específico, batizado e consagrado mestre calangueiro por Renô Martins de Castro, o mestre de cultura tradicional mais respeitado em São Luiz do Paraitinga, a ética exige se colocar à serviço do interesse comunitário sem auferir dinheiro ou colocar seus interesses pessoais acima daqueles coletivos. O mestre diz: “para cantar em uma festa a gente pede a janta e, às vezes, o pouso; nada de dinheiro”. O artista serve a comunidade, não ao mercado. A história de José Carlos Monteiro está imersa nessa cultura tradicional. Primeiramente, durante o ensino primário, realizava seus desenhos à base de escambo com lanches. A alimentação é a paga do artista tradicional, pois, em uma sociedade caracterizada por uma economia de subsistência (não de acúmulo de capital), a refeição é o símbolo de um valor justo de troca. Da mesma forma, retrata os santos às vezes de maneira voluntária, quando a comunidade não podia retribuir financeiramente. Dessa forma, em sua juventude, José Carlos é consagrado um pintor tradicional a serviço de sua comunidade, sem que essa atividade lhe confira uma identidade profissional ou seja utilizada para seu sustento pessoal. Responde a forma de produção e circulação de arte típica da cultura tradicional. José Carlos Monteiro desenvolve essa função até hoje. Esse período de seu percurso fortaleceu seu compromisso comunitário e seu reconhecimento como artista popular. Sua trajetória é interrompida com a maioridade e a necessidade de trabalhar formalmente. Passa a trabalhar como operário na montadora General Motors, muda-se para a cidade de São José dos Campos e interrompe suas atividades artísticas.

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Durante o documentário “José Carlos Monteiro – artista Naïf” (2016).

“Eu, pintor?”

No final da década de 1970, José Carlos Monteiro retorna a São Luiz do Paraitinga, pela dificuldade de se habituar à vida na cidade grande. Continua seu ofício de artista popular, retratando os santos em bandeiras, mas se interessa também por desenhar festas populares, bonecões e figuras lendárias. Sua experiência artística muda com uma interessante coincidência, no início da década de 1980. Um amigo, Waldecir Siqueira, inicia um curso de artes plásticas por correspondência. Adquire apostilas, telas e tintas, passando a se dedicar à pintura. Pela amizade com José Carlos e pelo seu reconhecimento como desenhista, Waldecir partilha com o amigo seu aprendizado e o convida para conhecer suas telas. Foi a primeira vez que José Carlos Monteiro se viu diante de uma tela. Os amigos passam a estudar juntos e a conhecer a obra de um pintor local, Seu Bento. Familiarizam-se também com telas de outros pintores primitivos, especialmente Ranchinho (Sebastião Paulino da Silva), integrantes da famosa publicação de José Nazareno Mimessi “Pintura Primitiva (Naïve) – resultados de uma pesquisa”.

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José Carlos consegue três telas e tinta acrílica e, curioso para saber como era criar dessa nova maneira, pinta as telas retratando santos, como tantas vezes fizera nas bandeiras. Eis que aparece na cidade um grupo de pesquisadores liderados pelo psicólogo Adelmir Morato de Lima. Tinham a intenção de conhecer algum pintor local e foram indicados a Waldecir. Este, contudo, não despertou o interesse dos pesquisadores e recomendou que conhecem a José Carlos, ao qual visitaram. Ao baterem à porta de sua casa perguntaram-no: “ - Procuramos por José Carlos, o pintor”. José Carlos, surpreso, confessou: “Pintor? Não, eu não sou pintor!”. Com muita insistência, José Carlos mostrou as três telas que havia pintado, impressionando aos seus visitantes. Fizeram um combinado de que ele pintaria telas para serem incluídas em um livro sobre pintores “primitivos” do Vale do Paraíba. Uma delas integrou a primeira exposição de José Carlos Monteiro, no Museu de Antropologia de Jacareí, em 1982.

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Capela das Mercês (1987) Óleo sobre tela, 27 x 41

Essa passagem da vida de José Carlos é muito emblemática. Tinha, então, 28 anos de idade e desde os 14 anos se dedicava à pintura de santos. Contudo, não se considerava “pintor” ou “artista”, título que creditava aos profissionais das artes. Contudo, a visita de especialistas e estudiosos muda a opinião de José Carlos. Ao reconhecerem sua obra como a de um “pintor” ou “artista”, conferem a identidade profissional a José Carlos. A partir desse momento, irá se definir como artista plástico. Por intermédio de um amigo, o pintor expõe nesse mesmo ano no 1º. Salão Brasileiro de Pintura Ingênua, no Centro Cultural de São Paulo. Considerado pintor “ingênuo” ou “primitivo”, José Carlos Monteiro tem sua arte transformada radicalmente. Passa a pintar principalmente em tela e com cavalete, com tinta a 39


óleo. Não mais a bandeira ou o estandarte, mas a tela revela uma influência da arte profissional. Da mesma forma, as figuras religiosas, com valor de uso imediato pela comunidade, sedem lugar a pintura de casarões ou igrejas, temas provenientes de uma tradição artística erudita. A motivação, os materiais, os motivos e os traços vão adotar características profissionais. O artista agora se reporta as técnicas de pintura e as revistas especializadas. A partir desse momento, não é mais a cultura tradicional que oferece os valores que orientam sua prática artística, mas expedientes de pessoas de fora da comunidade. Se José Carlos Monteiro tinha grande reconhecimento de sua comunidade, agora busca o reconhecimento de profissionais e críticos de arte. Se antes enfatizava o valor de uso de sua obra, agora se sobressai o valor de troca. A pintura de José Carlos passa a ser orientada pelo mercado de arte, no qual ingressa com a denominação de pintor “primitivo”. Embora receba também a alcunha de “ingênuo” ou “popular”, é a expressão “primitivo” ou “primitivista” que se sobressai nesse momento. Até recentemente, faz-se uso desse termo, como se vê na reportagem: “Um mestre do primitivismo, na pacata São Luiz!!!” (Jornal Eletrônico de Caçapava e Região, 2010). O que é um “pintor primitivo”? No interior da história da arte, o termo primitivo tem sido utilizado para englobar uma ampla variedade de expressões artísticas: arte pré-histórica, manifestações de culturas não-europeias, produções de loucos, de crianças ou de culturas populares. Tais expressões são o avesso do artista civilizado com formação profissional, sendo valorizadas por sua pureza, ingenuidade, espontaneidade e criatividade. Na obra “Os 14 do Vale”, artistas como José Carlos Monteiro são considerados “pintores populares”, caracterizados pelo autodidatismo e pela “necessidade irreprimível de expressão” (Lima, 1987, p. 09). Para tais pintores a “técnica” não é fundamental, mas sim a liberdade e a vontade de expressão. Tais 40


artistas inovam na utilização de materiais incomuns (madeira, palitos, óleo de cozinha), assim como pintam de maneira inusitada, com a tela apoiada no joelho ou no chão. Para Adelmir Morato de Lima, psicólogo e museólogo organizador do livro, no Vale do Paraíba o que diferencia esses autores é a “temática”, inspirada na “tradição oral herdada dos antepassados” e nas características regionais. Trata-se da pintura baseada em vivências cotidianas como motivos arquitetônicos, festas populares, cenas rurais, personagens e lendas do folclore regional. Morato de Lima observa a variedade de denominações utilizadas para compreender tais artistas, como os conceitos acadêmicos de “ínsitos”, “incomuns”, “populares” ou “naïfs (ingênuos)”. Para ele, contudo, tais artistas sempre se expressaram, independente do que se considera arte. São artistas que se dedicam a outros ofícios e, em sua maioria, não possuem preocupação em vender quadros. O grande valor de tais artistas se deve à “vitalidade das raízes culturais” ou seja, são poetas, festeiros, pintores e escultores que expressam suas tradições regionais e possuem “verdadeiros tesouros da sabedoria popular” (Lima, 1987, p. 10). José Carlos Monteiro é apresentado como um “primitivo do período colonial”, especializado em pintar sua cidade: capelas, igrejas, fazendas e cenas rurais. No livro, estão registradas suas telas “Capela das Mercês”, “Fazenda Boa Vista” e “Casarão de Paulo Cabral”. Considerado “primitivo”, no conjunto do livro, salienta-se o fato de o artista não possuir uma formação oficial em artes e estar imerso no contexto da cultura tradicional. Este último ponto é fundamental: José Carlos Monteiro era um artista tradicional que passa a pintar telas e impressiona pelo seu talento. A inclusão do artista no mundo oficial da arte gera a necessidade de rótulo, e “primitivo” ou “primitivista” é o escolhido para legitimar sua participação em exposições artísticas.

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Outro detalhe é importante, como “primitivo” José Carlos Monteiro pintava expressões da arquitetura. Embora já desenhasse espontaneamente personagens folclóricos, santos, festas e lendas locais, suas telas não retratavam pessoas, mas Igrejas, casarões e fazendas. Mudam os materiais, os temas e as técnicas: José Carlos agora é um pintor profissional.

Procissão de Nossa Senhora Acrílico sobre tela

“Sou um artista plástico Naïf”

Na opinião de José Carlos Monteiro, os termos “primitivo”, “naïf” e “artista plástico” são colocados em uma escala de gradação técnica. Acredita que o pintor “primitivo” retrata aquilo que vê, sem qualquer domínio de técnicas, ao passo que o naïf tem como foco expressão de seus sentimentos com a utilização de técnicas de pintura. Por fim, o “artista plástico” profissional é aquele formado em escolas de artes oficiais, ou aquele que domina técnicas profissionais de pintura.

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Assim, no vídeo produzido por Chico Abelha, o pintor naïf afirma: “É isso que é o difícil: não é pintar, é transmitir o seu ‘eu’ para o quadro”. Diz ter “medo” de perder seu talento se desenvolver muita técnica, pois “você entrou na técnica, você foge do real e passa a ser um tipo de um robô. Esse é o perigo que corre o artista”. A expressão genuína dos sentimentos é a principal característica do artista naïf, algo que se consegue com mais espontaneidade do que técnica de pintura. Aperfeiçoando-se na técnica, durante a década de 1990’, José Carlos Monteiro almejou ser reconhecido agora como “naïf”, pois esse passo representava uma ascensão no interior da profissão de pintor. Isso ocorreu com mais uma curiosa coincidência. O Sesc Piracicaba alerta o pintor que os temas arquitetônicos já não eram mais tão bem-vindos, sugerindo a José Carlos pintar temas folclóricos. Até então o pintor primitivo tinha tido bastante sucesso em sua carreira, pintando o que chama de “casario”. Em 1988, expôs no Museu do Masp, em São Paulo, e em 1992 foi membro fundador do Centro Cultural de Arte Primitiva de Brasília. No ano seguinte, tem suas telas expostas na Fundart de Ubatuba e no SESC Pompéia, em São Paulo. Com a nova demanda do mercado, José Carlos aceita o desafio e cria a obra “João Paulino e Maria Angu”, em 1994. O histórico da tela é inusitado. Havia sido convidado por artistas da cidade, que fazem os bonecões para as festas populares, a pintar os referidos personagens nos bonecos já esculpidos. Aproveita o ensejo e usa os mesmos bonecões tradicionais como tema de sua tela. “João Paulino e Maria Angu” é um sucesso: é exposta na Bienal Brasileira de Arte Naïf, no Sesc Piracicaba, e recebe o Prêmio de Aquisição. Nesse mesmo ano, a obra é utilizada como cartão postal da cidade de São Luiz do Paraitinga, em mensagens de ano novo. A partir de então, José Carlos Monteiro desenvolve um estilo próprio que mescla sua habilidade em retratar casarios com a expressão de tradições do 43


folclore local, como festas e manifestações populares. São telas ambientadas sempre no centro cidade de São Luiz do Paraitinga, com grande cuidado na pintura de sua arquitetura histórica, que tem como motivo principal um fato folclórico. Ou seja, esse seu momento de criação que denomina como “folclórico” quase que se funde ao momento anterior, de pintura de “casarios”. Tomemos como exemplo suas obras em torno da Festa do Divino Espírito Santo, principal festa tradicional de São Luiz do Paraitinga. Trata-se de uma festividade portuguesa que celebra a presença do Espírito Santo entre as pessoas. As atividades se iniciam com a organização comunitária de arrecadação de prendas por uma espécie de grupo musical conhecido como Folia do Divino, que leva a bandeira e a graça do Espírito Santo aos lares dos devotos. Posteriormente, as diversas bandeiras se encontram em um grande momento, chamado de Encontro das Bandeiras. Na cidade, organiza-se o Império da festa, local em que as bandeiras aguardam a vinda dos devotos e oração. A festa possui sua parte sagrada, com a realização de novenas e rituais católicos, assim como a parte considerada profana, com a vinda de grupos de cultura tradicionais. Caracterizada pela suspensão das diferenças entre classe social, todos se irmanam na partilha de uma mesma refeição: o “afogado” (um ensopado com carne bovina e batatas). A Festa se encerra com grande procissão. Há diversas telas de Jose Carlos Monteiro que tematizam a Festa do Divino, tais como “Procissão do Divino” (1994), “Festa do Divino” (2004), “Afogado no Mercado” (2004), “Grupo de Moçambique” (2005), “Encontro das Bandeiras” (2006) ou “Congada” (2018). Tomemos como exemplo sua tela: “Folclore” (2014).

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Folclore (2014) Acrílico sobre tela, 60 X 70.

A tela é ambientada na Praça Central da cidade. Todo o cenário do quadro é cercado por casarões assobradados antigos, com grande rigor nos detalhes. Um desses casarões é o Império da Festa do Divino, perceptível pela decoração com bandeiras e pela placa que o identifica. Embora os casarões lembrem muito àqueles de São Luiz do Paraitinga, o palco da festa não retrata fielmente a Praça 45


Oswaldo Cruz, principalmente pela ausência da Igreja Matriz. Contudo, o ambiente citadino divide os espaços, acima e abaixo da tela, com o meio rural. Acima da tela, três grandes montanhas verdejantes acolhem uma lua cheia frondosa. Trata-se de uma paisagem nitidamente rural, pois não há ali construções que caracterizam o espaço urbano. Na parte inferior esquerda da tela há um casarão de roça, com a estrada de terra característica. Trata-se da representação da Fazenda Boa Vista, no bairro rural de Santa Cruz do Rio Abaixo. A vegetação rural se estende por toda a porção inferior do quadro, na qual se vê diversos sacis brotando em meio a bambuzais. No centro da tela, com sua base no ambiente rural, está uma grande viola, símbolo maior da cultura caipira. A viola traz em seu bojo um carro de boi, transporte no qual chegavam antigamente as pessoas da roça para festejarem na cidade. Todo o quadro parece fazer um movimento da cultura tradicional luizense: suas raízes fortes plantadas na roça que desabrocham, nos dias de festa, no ambiente urbano. Acima do carro de boi estão os bonecões João Paulino e Maria Angu, símbolos fortes da cultura luizense para José Carlos Monteiro. Em meio aos bonecões, os braços da viola se transformam em pau de sebo, tradição da Festa do Divino caracterizada por uma enorme vara que deve ser escalada por grupos de jovens que alcançam no topo sua premiação. O topo do pau de sebo coincide com o fim do braço da viola, no qual os devotos do Espírito Santo colocam diversas fitas coloridas em suas violas. As fitas coloridas da viola recaem no quadro exatamente onde as moças realizam a tradicional Dança de Fitas, um dos destaques da festa. Em um dos lados, é retratada a dança do Catira ou Cateretê, com os homens devidamente dispostos em fila e adornados com lenços característicos, sob o comando do mestre violeiro destacado no centro. No outro lado, é retratada a “Imperial Congada”, com violas, surdos e o estandarte. Acima da Congada, uma série de bandeiras do Divino se concentram em frente ao

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Império, na tradicional procissão que encerra a festa. Há, ainda, a Fanfarra da cidade e uma roda de capoeira. No centro da Praça há diversos grupos folclóricos com suas respectivas bandeiras, sendo identificada claramente uma companhia de Moçambique ao fundo, com seus tradicionais devotos dançando com bastões em punho e paiás nos tornozelos. José Carlos Monteiro retrata a Festa do Divino com características muito originais. Sua ênfase recai sobre a importância do ambiente rural como berço da cultura tradicional. Uma perspectiva incomum é a ausência da Igreja Católica, sem a própria igreja física ou qualquer sacerdote representado no quadro. A fé do catolicismo popular é ressaltada a partir de devotos do Divino e grupos folclóricos: o coração sagrado da festa.

O Carnaval e as lendas locais

O Carnaval é a festa popular que projetou São Luiz do Paraitinga nacionalmente. A saga da festa começa na década de 1980’ quando jovens luizenses decidem organizar um carnaval fora do convencional. Ao som das antigas marchinhas, decidiram retratar as lendas regionais fazendo uso dos tradicionais bonecões. Com a criatividade de Luiz Homero e Benito Campos, houve grande pesquisa dos personagens fantásticos e das histórias de assombrações, que compuseram a estética do Bloco Encuca a Cuca. José Carlos Monteiro foi contagiado por essas pesquisas e, desde então, também descreve as diversas versões de uma lenda local ou discute detalhes da representação plástica de um personagem fantástico. Sua veia de escritor tem aí seu germe, pois atualmente trabalha exatamente na redação de lendas e na contação de causos. 47


Contudo, sua obra plástica também foi muito influenciada pelo carnaval, especialmente quando procurou traçar a história desse festejo na cidade, na tela intitulada “Apocalipse”. Fruto de pesquisa árdua, coletando memórias orais e consultando fontes históricas, a tela representa o carnaval durante a década de 1980, com seus elementos originais.

Carnaval 2010 Acrílico sobre tela.

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Bloco Encuca Cuca AcrĂ­lico sobre tela

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Multiartista

Uma das características dos “pintores primitivos” observada por Adelmir Morato de Lima é a multiplicidade de expressões artísticas: são poetas, pintores, escultores, contadores de causos, etc. José Carlos Monteiro é um grande exemplo de um multiartista: pintor, ator, escritor e contador de histórias. Desde as aulas de teatro na escola primária, José Carlos sonhava em ser ator, especialmente quando acompanhava algumas filmagens de Mazzaropi na cidade de São Luiz do Paraitinga e se apaixonou pelo cinema. Esse sonho foi realizado com sua atuação como ator principal no filme “Mai será o Binidito?” (2007), de Edivaldo dos Santos e Cezar Roberto Olandim. De fato, embora pouco habituado a encenação, José Carlos desenvolve esse talento com grande naturalidade e desenvoltura. Poucos anos mais tarde, em 2012, organiza uma série de contos e lendas populares e estreia como escritor. Trata-se do livro “Lendas, contos e causos de São Luiz do Paraitinga”, que está sendo ampliado para receber sua segunda edição. As aventuras artísticas de José Carlos Monteiro não param por aí. Na filmagem de um documentário realizado por Chico Abelha, o pintor sentiu vontade de dirigir cinematograficamente. De improviso, formulou um roteiro em locais históricos da presença de assombrações e teve vontade de filmar uma ficção sobre algumas lendas regionais.

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Três momentos da pintura de um painel na Escola Monsenhor Ignácio Gióia.


Compromisso coletivo: amor à cidade de São Luiz do Paraitinga

José Carlos Monteiro considera toda a sua obra plástica uma exaltação de sua cidade natal. Inicia pintando os casarios da cidade que, em 1982, seria tombada como patrimônio arquitetônico e cultural pelo CONDEPHAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado). Suas telas sobre motivos folclóricos se originam com sua preocupação em retratar uma tradição dos bonecões João Paulino e Maria Angu que estava sofrendo grandes transformações. De ponta a ponta, sua obra desfila procissões, celebra festas e colore grupos folclóricos. São Luiz está no centro de seu processo criativo. No vídeo produzido por Chico Abelha, afirma: “o arzinho de São Luiz você respira no meu quadro... você vê a nuvem de São Luiz do céu... o azulzinho de São Luiz está ali”. Tem a pretensão de transmitir todas as sensações da cidade para aquele que vê seu quadro. No ano de 2010 houve uma catástrofe que inundou o centro histórico da cidade. A grande enchente trouxe forte impacto emocional nos moradores e frequentadores de São Luiz do Paraitinga. Toda a comunidade se uniu para restaurar o centro histórico e reconstruir a cidade. José Carlos Monteiro participou ativamente desse processo. Iniciou restaurando, voluntariamente, seus quadros pertencentes à Prefeitura da cidade. Posteriormente, como arista plástico e entendido das lendas locais, retratou o acontecimento, ressaltando o heroísmo do trabalho dos que José Carlos nomeia como “anjos do rafting” (que contribuíram para que não houvesse mortos). Como escritor e contador de causos, José Carlos Monteiro procura uma explicação mítica para o ocorrido. Conta a lenda da Dama da Noite ou CobraGrande do Apocalipse. Trata-se de uma mulher que, em vingança pelo desprezo da população local, se transforma em Cobra-Grande, que habitava o Rio Paraitinga e devorava alguns de seus moradores. A população resolve então 52


atrair a serpente gigante para uma grande vala que atravessava a cidade, enterrando-a. No local se constroem, posteriormente, Igrejas, ruas e casas, exatamente na extensão da grande cobra. Contudo, a Cobra-Grande ressuscita de vez em quando causando grandes calamidades. A grande enchente de 2010 teria sido mais uma vingança da Dama da Noite.

A cobra do Apocalipse (2010)

Entretanto, a maior contribuição do pintor ainda estava porvir. José Carlos Monteiro trabalhou 3 anos na pintura de 18 painéis na Escola Monsenhor Ignácio Gióia. Ainda antes de sua aposentadoria, já com a saúde fragilizada, reuniu grande esforço físico e intelectual para trabalhar esses anos todos. Ressalta a 53


grande força de vontade e entusiasmo que o alentavam nessa empreitada de ajudar a reconstruir sua cidade querida. Atribui a essa disposição de ânimo a grande inspiração que o fez pintar os painéis de uma maneira que considera excelente: todos os painéis ficaram perfeitos, de maneira que até ao pintor surpreenderam.

Painel na Escola Monsenhor Ignácio Gióia.

Esse feito lhe rendeu longa reportagem especial pelo Link Vanguarda, no canal televisivo de maior audiência na região do Vale do Paraíba. Sobre o dia do voluntariado, a reportagem destaca a grande generosidade e genialidade de José Carlos.

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Fim de Carreira?

No momento da realização da pesquisa que deu origem a este livro, no primeiro semestre de 2018, nos familiarizamos com o trabalho plástico de José Carlos Monteiro. Acompanhamos todo o processo criativo de uma tela que pintava, intitulada, em sua finalização, “Congada”.

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Congada (2018) Acrílico sobre tela, 60 X 70.

Inicialmente, José Carlos pintou a Praça Oswaldo Cruz, no coração na cidade de São Luiz do Paraitinga. Começou pela parte direita da obra, retratando com fidelidade arquitetônica os casarões assobradados. Houve grande preocupação com a perspectiva, com as sombras e com as cores. O artista pintava em loco, no próprio ambiente público e, posteriormente, levava para sua casa para finalizar os detalhes. Pintou depois a Igreja Matriz da cidade, tendo o bairro do Alto do Cruzeiro ao fundo, no qual se vê as antenas de transmissão da rádio. A pintura do céu e das nuvens é um momento especial da criação artística de José Carlos: pretende trazer todo o azul do céu de São Luiz para ser apreciado em seu quadro. Por fim, pintou-se a parte esquerda do quadro, com detalhes da praça e seus canteiros laterais. Toda a pintura do asfalto demanda minucioso trabalho plástico, com pinceladas precisas e parcimoniosas.

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Em cerca de três meses a tela estava aparentemente pronta, como bom exemplo do período arquitetônico da criação plástica de José Carlos Monteiro. Não havia nenhum personagem, só o retrato do “casario”, como ele gosta de falar. Eis que o Instituto Totem Cultural, da cidade paulista de Socorro, convida o artista para pintar uma tela na ocasião de seu 10º. Aniversário. Havia um tema pré-determinado: Congada. No período de uma semana, José Carlos finaliza o quadro. Os casarões ganham a bandeira vermelha da Festa do Divino, surgindo pessoas nas sacadas. Uma das casas é escolhida para ser o Império do Divino, adornada de maneira especial. Surgem alguns transeuntes, apreciadores da festa e a Igreja também é pintada a caráter, tendo um padre defronte. A Praça ganha o colorido de flores e um conjunto de balões coloridos, típicos das festividades populares. A rua vazia acolhe agora o motivo principal do quadro: a companhia de Congada. A Congada é uma manifestação popular afro-brasileira vinculada as conhecidas Irmandades de Homens Pretos, devotos de santos católicos. A Congada retratada por José Carlos Monteiro é a única ainda em atividade na cidade. O grupo do bairro do Alto do Cruzeiro é liderado por “Tonhão”, figura que tem seu nome estampado no uniforme e porta o apito característico de quem conduz a companhia. Há um cuidado na pintura do estandarte que, ao invés de São Benedito, reverencia Nossa Senhora Aparecida, São Luiz Tolosa e a própria pomba branca, símbolo maior da Festa do Divino. Três homens tocam instrumentos de percussão (pandeiro e surdos) e uma mulher toca sanfona. Ao fundo, duas outras integrantes da companhia carregam uma faixa com os dizeres: “São Luiz do Paraitinga parabeniza o Instituto Totem Cultural pelo seu 10º. Aniversário”. A congada retratada no quadro possui o número de integrantes e as características condizentes com a companhia do Alto do Cruzeiro. José Carlos comentou que lhe deram o curto prazo de uma semana para que enviasse a tela. Para seu processo criativo este tempo é impossível, pois demora 57


aproximadamente de 2 a 3 meses para concluir uma obra. Contudo, como a parte mais demorada dos casarios estava concluída, o artista conseguiu aproveitar o cenário para compor o motivo principal estabelecido pelo Instituto. Atualmente, o trabalho plástico demanda grande esforço físico de José Carlos Monteiro. Queixa-se frequentemente de problemas respiratórios, irritação no nariz e na garganta, provenientes da exposição às tintas. Diz que pinta três dias e fica duas semanas para se recuperar. Porém, não é apenas por motivos de saúde que o artista tem trabalhado menos. Sente que há um esgotamento de seu tema principal: a cidade de São Luiz do Paraitinga. José Carlos observa que já pintou tudo aquilo que queria e não tem mais inspiração para pintar novas telas. Por fim, com a saúde debilitada, a idade avançada e a aposentadoria garantida, José Carlos se queixa de não conseguir mais comercializar suas telas pelo valor que acredita ser o justo. Ouvi-o comparar suas telas às de Cândido Portinari e estimar obras suas como valendo 200 mil reais. Como tais valores não são oferecidos, pensa não ser reconhecido como deveria. Por outro lado, seu momento de vida está em grande ebulição de produção intelectual. Lê muitos livros sobre temas religiosos e espirituais. Possui ideias complexas sobre tais temas e têm inúmeros projetos de livros que gostaria de escrever e publicar. Para o futuro, José Carlos Monteiro parece apostar todo seu talento na criação de livros, sobre o tema maior da espiritualidade, no qual repousa o próprio sentido da vida humana.

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Durante a pintura de um painel na Pousada Nativas, em 2015.


5. Zé da Escola por ele mesmo Sou José Carlos Monteiro, nasci na roça. Quando eu tinha 2 anos de idade meus pais se separaram. Minha mãe, muito pobre, não tendo condições financeiras, me alimentava com garapa (ou caldo de cana), outras vezes com água e açúcar. Com muitas feridas pelo corpo e magro eu não iria sobreviver. Minha mãe vem a cidade e me abandona dentro de um tanque de lavar roupas, nos fundos de um sobrado na casa de minha madrinha de batismo. Disse que ia comprar umas balinhas e não mais voltou. Minha madrinha não me querendo por eu estar doente, entregou-me ao delegado da cidade, que me passou a outra família e assim fui passando de mão em mão, pois todos achavam que eu iria morrer. Até que um casal muito bondoso me aceitou. Ele, João Evangelista de Moura, pedreiro, contador de histórias, violeiro, ela do lar, Cecília Salinas de Moura, religiosa, gostava de montar presépios nas casas que não tinham, para as noites de natal. Aos seis anos de idade fui para a escola, onde comecei ali a aprender teatrinho, com uma professora local muito conhecida na cidade por seus trabalhos religiosos. Aos meus 12 anos de idade, meu pai faleceu. Meus coleguinhas precisavam de desenhos e não sabiam faze-los e eu também não, mas com muita paciência eu os ia copiando dos poucos livros que a escola dispunha. Às vezes era a fisionomia do Pedro Alvares Cabral outras do Tiradentes e os ampliava para mais ou menos. Depois que eu os fazia, trocava os mesmos, com os lanches dos coleguinhas, às vezes era doce caseiro de abobora, outras uma fruta, e assim fui aprendendo a arte do desenho. Nessa idade, comecei a ser reconhecido como artista local e a pedido dos festeiros da minha cidade, comecei a desenhar nas estrelas dos mastros os Santos que me pediam, e que iriam sair nas procissões, outras vezes estandartes para os grupos de Moçambique ou enfeitar com pinturas algum dos mastros. Eu os fazia sempre do meu jeito e eles gostavam, pois não tinha quem os fizessem nessa época. Muitas vezes eu não cobrava pelo trabalho e faço isso até hoje, pois muitos não tinham como paga60


los. Mas eu sempre fico satisfeito por poder contribuir com as festas, para que as mesmas não acabem, nem o folclore. Hoje, pinto alguns painéis em murais pela cidade quando sou solicitado por amigos, para embeleza-los ou trazer algum conhecimento sem remuneração. Deixei 18 pinturas painéis murais na escola em que trabalhei como servente de escola, que fora construída após uma enchente que destruiu parcialmente nossa cidade, em 2010. Nela retratei nosso folclore local, com o objetivo de não deixar morrer nossas tradições, passando aos alunos mais conhecimentos. Exponho sempre em lugares visíveis ao povo, para um melhor contato de todos com as artes. Geralmente é em minha cidade, nas praças públicas. Já fiz e ás vezes faço palestras nas escolas sobre artes, conto um pouco de minha vida para que saibam, que nem tudo é fácil, somente com fé em Deus, amor ao próximo e muita persistência poderemos conseguir o que desejamos, ser artista. Conto até que certa vez fui expor em São Paulo a 200 km dessa cidade, e me levaram em uma Kombi emprestada. Ao lá chegar, eu estava todo molhado e os meus trabalhos também, pois havia chovido e a condução estava com o assoalho furado e ao passar por uma poça d’agua, a jogava em mim. Estudei nas escolas públicas dessa cidade concluindo o magistério em 1985. Sou Funcionário Público Estadual aposentado e artista plástico autodidata Naïf. Tendo por influência as histórias contadas por meu pai e por pessoas da cidade, tornei-me contador de lendas, contos e causos. Acompanhando em minha cidade quando criança, filmagens do ator Mazzaropi, tornei-me por vocação, ator amador. Comecei a pintar em telas em estilo Naif aos 20 anos de idade, a princípio registrando minha cidade, capelas, igrejas, fazendas e cenas rurais, passando a retratar pessoas a partir de 1994, quando pintei o quadro intitulado "João Paulino e Maria Angu", registrando o folclore local. A montagem de minhas obras é realizada através do real, intuição espiritual, imaginário e observação de fotografias, do próprio local a ser pintado. Registro também em minhas telas trabalhos de outros artistas de profissões 61


diferentes, ou os faço por via oral ou escrita. Falo sobre aqueles que estão carregando algum boneco gigante, como o personagem de nossa cidade “João Paulino e Maria Angu”, ou saindo como palhaços de folias de reis, preservando a cultura local e o nosso folclore, para que sejam reconhecidos por estes seus trabalhos e mais divulgados e entendidos por todos, pois muitas vezes ficam escondidos atrás de seus próprios personagens. Falo também dos trabalhos que eram feitos em argila e montados dentro de cambucás como as do Sr. Geraldo A. da Silveira, apelidado Geraldo Tartaruga, hoje falecido, com seus contos e causos, hoje feitos por seu filho, Daniel. Só assim, muitas vezes com a ajuda de outros artistas e profissionais, conseguimos registrar nossos trabalhos.

José Carlos Monteiro, 2018

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6. João Paulino e Maria Angu: um conto de Zé da Escola Conta-se que, nos fins do século XVIII, veio morar em São Luiz do Paraitinga um casal de portugueses. Eles contavam que em Portugal, na cidade em que viviam, era costume, na Festa do Divino Espírito Santo, sair um casal de bonecões gigantes desfilando por suas ruas e todo fim de festa eram guardados no Império do Divino.

Com o passar do tempo, após o falecimento desses portugueses, os moradores de São Luiz do Paraitinga, resolveram introduzir nas festas dessa cidade esse mesmo costume. Fizeram dois bonecões gigantes em homenagens a eles que ficaram conhecidos como João Paulino e Maria Angu. O apelido fora dado ao boneco de Dona Maria por ela ser conhecida na cidade como a fazedora de polenta ou angu. Ela os vendia pela cidade em cestinhas de taquara, cobertas por um guardanapo, já que naquele tempo não existiam lanchonetes. Essa forma de homenageá-los através dos bonecões acontece até os dias de hoje, pois já viraram tradição, sendo comum encontrá-los também em outras festas. 63


Cada festeiro apresenta seus bonecões com a aparência que quiserem, preservando apenas seus nomes. Os bonecões são mais comuns de aparecerem na Festa do Divino Espírito Santo, pois, além de serem divertidos, ajudam a entreter a criançada, que deixam seus pais por algumas horas livres, com disponibilidade para fazer o que quiserem: enquanto elas brincam correndo atrás desses bonecões gigantes, seus pais poderão ir buscar o afogado no Mercado Municipal, sem se preocuparem, pois sabem que eles estão se divertindo. O afogado é um prato tradicional da Festa do Divino de São Luiz do Paraitinga, sendo preparado em grandes tachos de ferro. É um cozido à base de batata e carne bovina, bem temperado e quando servido vem sempre acompanhado de farinha de mandioca. Antes de ser distribuído ao meio dia, ele recebe as bênçãos do padre, depois colocam fogo em um foguetão de vara, que subindo ao céu no explodir, faz ouvir-se um grande estrondo, e seu som é propagado por todo o vale do rio Paraitinga, que por seu intermédio consegue anunciar a todos em grandes distâncias, que o afogado já está pronto e será servido. O afogado é servido pelo festeiro e seus auxiliares nos pratos ou outros utensílios que os próprios moradores trazem de suas casas, e algumas vezes em marmitex, para aqueles que querem aprecia-los ali mesmo, ou levá-los. O corpo dos bonecões João Paulino e Maria Angu, era feito de jacás, construídos em taquaras. As cabeças eram feitas de papelão e ainda hoje o são, os braços e as mãos, de pano. Tinham em média, a altura de dois metros e meio a três, sendo carregados por homens fortes, (como o conhecido Detefon e seu irmão Chicão, na década de sessenta e tantos outros voluntários). Os mesmos acabavam ficando escondidos dentro deles ao carrega-los pelas ruas da cidade, não se importando com este fato, pois o faziam, por puro prazer, e o mais importante era fazer a alegria da criançada e valorizar a tradição local. Antigamente, quando saíam correndo atrás da criançada, chegavam a ser acompanhados por centenas delas. 64


Em sinal de respeito, os bonecões tinham o costume de cumprimentar as pessoas que estavam nas sacadas dos sobrados que rodeiam a praça central, abaixando educadamente suas cabeças. Muitas destas vezes atingiam a cabeça das pessoas, quando ficavam com os seus rostos lado a lado (colados). É tradição um menino segui-los batendo um bumbo, enquanto as crianças os acompanham em grande algazarra. A cada bum, bum, bum do tambor, elas cantam: “Oi, oi, oi. Oi João Paulino! Oi, oi, oi. Oi Maria Angu!” Por tradição, os meninos seguiam João Paulino, e as meninas a Maria Angu. Hoje em dia, já não existe essa divisão. Entre os homens que carregavam esses bonecões, havia sempre um combinado entre eles, que determinava quais as ruas da cidade iriam percorrer, e em qual dessas esquinas iriam se encontrar, sem que a criançada soubesse. Como a cidade tem ruas e ladeiras, quando os bonecões as desciam em disparada , acontecendo o tal encontro, tanto a criançada quanto os bonecões se amontoavam na esquina, formando um “bololô”. Aí eram só risadas, encontrões, empurra-empurra. Quando os bonecões conseguiam ficar novamente em pé, saíam correndo e a criançada também. De repente os gigantões paravam e girando seus corpos, faziam rodopios e seus braços e mãos atingiam propositadamente o rosto das crianças mais próximas. Aí, era uma bagunça só, uns choravam porque se assustaram outros porque o ‘tapa’ do boneco foi forte, e outros ainda pensando em se vingar, esperavam o boneco correr para lhe passar o pé e ver o seu tombo. Quando isso acontecia, as próprias crianças socorriam o boneco levantando-o novamente, e rapidamente a brincadeira continuava por horas a fio. Naquele tempo não se ouvia dizer que alguma criança, tivesse se machucado.

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Algum tempo depois, os bonecões eram guardados na casa do saudoso Sr. Xinica, que segundo dizem, foi um dos primeiros a confeccioná-los. Mais tarde, em outras casas, sendo uma delas a do Rei Canário e em outros lugares. Na maioria das vezes era na casa da festa onde as crianças esperavam ansiosas pelo café servido com biscoito, paçoca doce, de carne e amendoim. Hoje em dia eles geralmente são guardados na Prefeitura. Outro costume da festa era, ali pelas três da tarde, ser erguido, em frente aos casarões da praça central, o Pau de Sebo, para que as crianças nele subissem e pegassem algumas guloseimas, que estavam penduradas em sua ponta. Depois, começaram a usar dinheiro em notas, para valorizar mais as dificuldades da subida no mesmo, pois nele passavam (e ainda passam) muito sebo de vaca ou boi. Era de costume (e ainda é) ajuntar um grupo de crianças e adultos em volta do pé do pau de sebo, para formarem um triângulo ou pirâmide e facilitar as suas subidas. São formados por três ou quatro pessoas embaixo, e em seus ombros sobem tantas quantas forem preciso, geralmente três, depois serem mais dois e, por último mais um, que irá tentar chegar até o topo, usando, às vezes uma cordinha para tentar laçar os prêmios e puxá-los para si. Caso 66


consigam chegar ao topo pegando o prêmio, eles dividem o mesmo com todo o grupo.

Resgatando os Gigantes Algumas décadas atrás, os bonecões João Paulino e Maria Angu quase já não saiam ás ruas de São Luiz do Paraitinga nos dias de festas. Eram raras essas vezes, talvez por não encontrarem pessoas que se interessassem em carregá-los, devido ao seu tamanho e peso. Segundo comentários de alguns luizenses, moradores de cidades vizinhas, vinham até a essa cidade e os emprestavam para abrilhantarem as suas festas ou encomendavam algum deles, enquanto por aqui ia enfraquecendo nossas raízes culturais. Eu comecei então a pensar sobre isso. Em 1994 recebi um convite para seleção de quadros para uma exposição na Bienal do Brasil, a ser realizada no Museu do SESC, na cidade de Piracicaba. Todavia não sabia o que retratar, pois não tinha feito nenhum dentro deste estilo, pois neles entravam imagens e eu não tinha retratado nenhum até aquele instante. Também não poderia fazer feio perante eles que já me conheciam. Coincidentemente o secretário da Cultura de nossa cidade na época, o Sr. Benito de Campos, e o artesão Luiz Antônio (Porva), trouxe duas cabeças de bonecões feitas de papelão e arame para que eu pintasse e desse fisionomia a eles, que seria uma do João Paulino e a outra da Maria Angu. Eles deveriam sair às ruas na festa do Divino daquele ano. Depois que eu os pintei comecei a refletir sobre aquele caso comentado anteriormente pelo SESC, surgiu-me a ideia de aproveitar aquela oportunidade e inspiração para retratar os mesmos em minhas telas, pois eram folclóricos estando dentro do tema daquela exposição, e eu fiquei pensando em conseguir duas coisas ao mesmo tempo: ser selecionado para

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expor; e, se isto acontecesse, os nossos João Paulino e Maria Angu passariam a ser conhecidos em todo o Brasil, ficando definitivamente registrado como nosso. Então os retratei e mandei. Passados alguns dias veio a seguinte resposta: _ “Caro José, o seu quadro João Paulino e Maria Angu foi selecionado e premiado” e isto também significava que os mesmos ficariam expostos naquele Museu definitivamente. E assim a foto do João Paulino e Maria Angu saiu no livro dos premiados e os mesmos distribuídos para todos os Museus do Brasil. O prefeito da época, Sr. Luiz Mariano Rodrigues, também admirador da arte e querendo preservar a nossa cultura e nosso folclore, mandou fazer mais de mil folhinhas (calendário) com a foto desse quadro premiado e distribuiu a toda população luizense. Dessa maneira os bonecões João Paulino e Maria Angu ficaram registrados na história do folclore brasileiro. Em 2007 essa tela foi selecionada em meio a tantas outras desse Museu e mais uma vez foi exposta. Agora no Cultural Center em Chicago nos Estados Unidos, revelando uma de muitas outras das nossas culturas luizenses no exterior e esses bonecões a partir de então notei que passaram a ganhar uma nova perspectiva de vida, para melhor. E eu consegui um de meus objetivos de infância. Divulgar o que temos de melhor em nossa cidade, para orgulho de todos os luizenses.

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Referências ANDRIOLO, Arley. Traços primitivos: histórias do outro lado da arte do século XX. São Paulo, 2004, 220 p. Tese (Doutorado), Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2004. JCM – Pintor Naïf. Direção Chico Abelha. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5WKOXtPkfBY. Acesso em: 23 abril de 2017. LIMA, Adelmir Morato de; KAWALL, Luiz Ernesto M. Os 14 do Vale: pintores primitivos – Vale do Paraíba. São Paulo: Art Editora/Monsanto, 1987. Um mestre do primitivismo, na pacata São Luiz!!! Jornal Eletrônico de Caçapava e Região, 2010. Disponível em: http://www.taiadaweb.com.br/um-mestre-doprimitivismo-na-pacata-sao-luiz/ Acesso em 09 fev. de 2018.


Ricardo Mendes Mattos é mestre calangueiro e poeta. Possui o título de doutor em Psicologia Social da Arte pela Universidade de São Paulo e se dedica aos estudos de expressões da cultura tradicional de São Luiz do Paraitinga, em especial os cantos improvisados de desafio, tais como a cana-verde, o jongo, o samba rural paulista, o brão, a embolada e o calango. É autor dos livros Calango em São Luiz do Paraitinga (Malungo, 2016), Brão: o canto de trabalho dos mutirões rurais em São Luiz do Paraitinga (Malungo, 2018) e Jongo em São Luiz do Paraitinga / Brazil (Novas Edições Acadêmicas, 2019).

Contato: ricardomendesmattos@gmail.com


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