Ana de Oliveira
Copyright © 2010 by Ana de Oliveira
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Oliveira, Ana de Tropicália, ou, Panis et circencis / Ana de Oliveira ; [tradução (textos)/translation (texts) Peter Musson ; tradução (letras)/translation (lyrics) Christopher Dunn. -- São Paulo : Iyá Omin, 2010. Edição bilíngue: português/inglês. ISBN 978-85-63909-00-8 1. Música popular - Brasil - História e crítica 2. Tropicalismo (Movimento musical) 3. Tropicalismo (Música) - Brasil 4. Tropicalismo - História I. Título. II. Título: Panis et circencis. 10-10205
CDD-781.630981
Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Tropicalismo : Música popular 781.630981
2010 Todos os direitos de publicação reservados à: Iyá Omin Tel: 55 11 3554-3306
patrocínio
Para Caíque de Oliveira e a Porta do Sol. For Caíque de Oliveira and the Porta do Sol (Sun´s Gate).
sumário
06
TROPICÁLIA ou PANIS
76
Manuel da Costa Pinto
ET CIRCENCIS: disco-livro
imagem: Ailton
Ana de Oliveira
14
MISERERE NOBIS
84
22
Aguilar imagem:
94
Guto Lacaz
mamãe coragem Bráulio Tavares
Leandro Feigenblatt
PANIS ET Circencis Noemi Jaffe imagem:
102
BATMAKUMBA Antonio Risério
assume vivid astro focus
imagem: André Vallias
40
LINDONÉIA Viviane Mosé imagem:
112
Jorge Mautner
parque industrial imagem:
Rico Lins
geleia geral Bené Fonteles imagem:
Nelson Provazi
68
BABY Frederico Coelho imagem:
Gringo Cardia
hino do senhor do bonfin
Lenora de Barros e Adriana Ferla
Cristopher Dunn
58
imagem:
imagem: Aguilar
30
50
enquanto seu Newton Cannito
Ermane Cortat
coração materno
Krenak
lobo não vem
Hermano Vianna imagem:
três caravelas
imagem:
122 123 124
Ray Vianna
capa CONTRACAPA ENSAÍSTAS, DESIGNERS E ARTISTAS VISUAIS
126 127
agradecimentos CRéditos
contents
06
TROPICÁLIA or PANIS
76
Manuel da Costa Pinto
ET CIRCENCIS: RECORD-BOOK
art: Ailton
Ana de Oliveira
14
MISERERE NOBIS
84
22
94
30
Leandro Feigenblatt
PANIS ET Circencis assume vivid astro focus
40
LINDONÉIA
102
50
art: André Vallias
112
Cristopher Dunn art:
58
Rico Lins
general jelly Bené Fonteles art:
Nelson Provazi
68
BABY Frederico Coelho art:
Gringo Cardia
HYMN OF OUR LORD OF THE GOOD ENDING Jorge Mautner
Lenora de Barros e Adriana Ferla
industrial park
BATMAKUMBA Antonio Risério
Viviane Mosé art:
MOTHER COURAGE art: Aguilar
Noemi Jaffe art:
Guto Lacaz
Bráulio Tavares
Aguilar art:
WHILE MR. WOLF IS GONE art:
Ermane Cortat
MATERNAL HEART
Krenak
Newton Cannito
Hermano Vianna art:
THREE CARAVELS
art:
122 123 124
Ray Vianna
cover back cover WRITERS, DESIGNERS AND VISUAL ARTISTS
126 127
ACKNOWLEDGEMENTS CRedits
Tropicália ou Panis et circencis: disco-livro Ana de Oliveira Uma vertiginosa movimentação cultural no Brasil do final dos anos 1960 marcou o momento tropicalista da cultura brasileira. Foi um período seminal de confluências artísticas no país, de um intenso intercâmbio entre as diversas esferas culturais e experiências de vanguarda, no cinema, com os filmes Terra em transe, de Glauber Rocha, e O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla; nas artes visuais, com o projeto ambiental Tropicália, de Hélio Oiticica, e as Máscaras sensoriais de Lygia Clark; no teatro, com a encenação de O rei da vela, de Oswald Andrade, por José Celso Martinez Correa; ou ainda na literatura, com o romance Panamérica de José Agripinno de Paula; e na música, com as novas proposições do grupo tropicalista. Mesmo dentro de uma heterogeneidade expressiva, de práticas e linguagens, todos convergiam no pensar e no assimilar antropofagicamente a realidade brasileira em suas muitas instâncias (a exemplo do Manifesto antropófago de Oswald de Andrade), num projeto de modernidade no qual experimentalismo e participação eram associados à crítica cultural, política e comportamental. O Tropicalismo, como parte dessa malha interdisciplinar, assimilou matrizes criativas distintas – desde as formas populares arcaicas até as eruditas e as de invenção contracultural – e estabeleceu uma relação dialógica sem precedentes entre cultura de massa, mercado, tecnologia, tradição e modernidade. A incorporação do rock internacional como informação legítima, o uso de elementos da alta cultura articulados com meios de comunicação de massa e a reivindicação de uma linguagem universal no ato de pensar a cultura nacional, foram algumas das premissas a partir das quais o Tropicalismo efetuaria uma intervenção decisiva na criação artística e nos debates estético-político-culturais do Brasil. O arrojo tropicalista atingiria seu ponto máximo no álbum Tropicália ou Panis et circencis, engendrado coletivamente por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Mutantes, Tom Zé, Torquato Neto, Capinan e o maestro e arranjador Rogério Duprat. Gravado em maio e lançado em agosto de 1968, o disco-manifesto tropicalista é o primeiro disco conceitual do Brasil. Registro de uma série de vozes e dicções, composições cujo eixo comum é a perspectiva crítica – porém afetuosa – do nosso processo cultural, Tropicália ou Panis et circencis contitui a mais certeira exposição das relíquias e mitos culturais do Brasil. Os tropicalistas, como
verdadeiros artífices da modernidade musical, introduziram a crítica à sociedade capitalista de consumo, a crítica aos modelos familiares tradicionais e conservadores e a crítica afiada ao regime autoritário e ao modelo de modernização implantado pelos militares no país. Ao mesmo tempo, afirmaram o interesse pelas novas informações culturais, desde o pop-rock dos Beatles até a vanguarda radical dos poetas concretos, e a busca de um pensamento latino-americano mais autêntico. Tudo isso em meio ao discurso cristão do martírio e da salvação, das trevas (sangue e morte) e da luz (a presença do sol e da luminosidade é constante nas letras). Aliás, os tropicalistas foram hábeis em trabalhar dentro dos códigos e do imaginário do brasileiro médio, em que a religiosidade católica é parte fundamental da identidade. A religiosidade popular, as metáforas e os simbolismos da igreja perpassam diversas faixas do disco. Temos, por exemplo, o vinho no linho da mesa, o coração arrancado do peito da mãe ajoelhada a rezar, o desaparecimento de Lindonéia da igreja e do andor e a oração do Senhor do Bonfim, padroeiro baiano que representa o cristo na cruz. O álbum tropicalista incorpora – ou canibaliza, para usarmos uma expressão cara aos antropófagos –, uma variedade de linguagens e estilos heterogêneos, nacionais e estrangeiros, passados e atuais, sincretizados no conjunto de letra, música, arranjo e interpretação vocal. Esse procedimento havia sido adotado pelos Beatles no disco-conceito Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, lançado em 1967. O disco da banda inglesa inspirou os tropicalistas na estruturação polifônica, com canções que emendam finais e começos, nos arranjos orquestrais, nas intervenções experimentais, na proposta de temas interligados e mesmo na capa, com todos os participantes do projeto. A capa é uma representação paródica da tradição e do conservadorismo brasileiros: Gil, de bata hippie, segura um retrato de formatura de Capinan; Gal Costa e Torquato Neto, sentados, mantêm uma postura de bom comportamento; Tom Zé aparece como um retirante nordestino, carregando uma mala de couro; os Mutantes exibem suas guitarras; Caetano Veloso mostra uma foto brejeira de Nara Leão; e Rogério Duprat, elegantemente, segura um penico como se fosse uma xícara de chá. Já a contracapa traz uma espécie de roteiro cinematográfico desencadeado, com diálogos intermitentes e debochados. Na primeira cena,
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uma mensagem apocalíptica é anunciada: “não há ideologia nem futuro para o Brasil e o mundo”. Depois, valores da cultura pop e da cultura tradicional são confrontados e Câmara Cascudo, o grande folclorista brasileiro do século XX, é estrategicamente citado. Duprat, sintomaticamente posto no alto de uma torre de transmissão de TV (o moderno das comunicações de massa), desafia a todos com perguntas sobre o valor de mercado da empreitada musical tropicalista. Em seguida, numa provável referência não só ao dramalhão de Vicente Celestino como também ao primeiro transplante cardíaco realizado no Brasil, em 1968, Caetano pergunta “vocês são contra ou a favor do transplante de coração materno?”. Num diálogo descontínuo e sem respostas concatenadas, Nara cita nomes como Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, enquanto os Mutantes rebatem com bandas da psicodelia hippie dos anos 60, como Jefferson Airplane e The Mamas and the Papas. Os poetas concretos são homenageados com a menção à antologia Noigandres, publicada no final da década de 50, e Paulinho da Viola é lembrado com a citação do último verso de sua canção “Coisa do mundo, minha nega”. Na sequência final, João Gilberto manda dizer aos tropicalistas que está olhando para eles. A frase é verdadeira – dita para Augusto de Campos em uma visita dele a João. Voz coletiva, disco de parceria, Tropicalia ou Panis et circencis tornou-se um marco de experimentalismo musical no Brasil da época e, até hoje, no mundo todo. *** Um livro sobre um disco que é o mais emblemático trabalho coletivo da música popular brasileira! O latim incorreto do título do LP (circencis escrito com “c” e “i”) foi afetuosamente mantido neste livro, numa transposição direta da obra original. Embora no disco o deslize não tenha sido intencional, aqui no nosso livro ele fica como um registro da “contribuição milionária de todos os erros”: uma lição oswaldiana que o Tropicalismo nos reensinou. A ideia original era apenas reunir ensaios inéditos sobre as doze canções que compõem o LP. Mas a infinidade de imagens poéticas das letras desse disco nos inspirou a convidar designers e artistas visuais
de variadas tendências e disciplinas a apresentarem interpretações para cada faixa: André Vallias, Gringo Cardia, Lenora de Barros, Guto Lacaz, Ernane Cortat, Aguilar, Ray Vianna, Ailton Krenak, Rico Lins, Nelson Provazi, Leandro Feigenblatt, Adriana Ferla e o coletivo artístico internacional assume vivid astro focus. Assim, as obras musicais foram traduzidas para linguagens próprias das artes visuais, os capítulos ganharam ilustrações personalíssimas e cada canção foi contemplada com um pôster que acompanha a primeira edição desta obra. Faremos aqui uma breve apresentação para que o leitor possa melhor aproveitar as considerações teóricas ou as inflexões poético-filosóficas de cada ensaio. “Miserere nobis”, composta por Gilberto Gil e Capinan, é a faixa de abertura. Sim, o disco-manifesto tropicalista abre (e fecha) com uma reza. E Hermano Vianna não estranha o fato. Em seu engenhoso ensaio, ressalta o caráter religioso e solene da canção. Religiosidade, porém, pontuada por uma alegria trágica, possível apenas nos atos revolucionários de uma nova era musical e cultural no Brasil, a alegria de descobrir novas possibilidades de se pensar a tragédia cultural e histórica do país. Hermano ainda provoca o leitor com questões não muito presentes em análises sobre música popular, ao sugerir que “Miserere nobis” também nos estimula a pensar o amor e o inferno como polos extremos da experiência tropicalista. Transitando entre essas polaridades estariam, paradoxalmente, certa “ironia amorosa” e a violência iminente. Toalhas manchadas de sangue, fuzis e canhões incitam a súplica por piedade num momento de insurgências políticas, repressões militares desabridas e, portanto, grandes tensões no interior da nação. No segundo artigo do livro, Aguilar faz um corte conceitual e nos apresenta “Coração materno” como objeto de um surpreendente diálogo entre aluno e professor no Brasil de 2175, época em que máquinas (mães-mecânicas) faziam o papel de progenitoras da sociedade. Com esse salto futurista radical de mais de um século, Aguilar enxerga a faixa, o disco e a própria história brasileira por um prisma sci-fi. E ainda afirma o advento tropicalista como agente da quebra da dualidade do pensamento: o pensamento para além do bem e do mal, do bom e do mau gosto. A canção de Vicente Celestino representa para muitos um momento passadista de um disco de vanguarda. Mas é justamente nesse
passado patriarcal de amores brutos narrados na canção que Aguilar enxerga a amorosidade tropicalista que, segundo o professor do referido diálogo, motivariam anos depois “uma cultura de paz mundial” através da música brasileira. Para contemplar a faixa-título “Panis et circencis”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, Noemi Jaffe mergulha nos múltiplos sentidos que letra e música despertam. Primeiro, ela situa a expressão latina em seus vários usos – corretos e incorretos. Depois, expande ideias e sonoridades presentes nessa expressão que batiza não só a canção e o álbum, mas também a política dos imperadores romanos para a massa, e complementa com leituras não diretamente relacionadas ao Tropicalismo, como Fernando Pessoa e Luis Buñuel. Nesse arranjo polífono de alusões, novos significados e possibilidades de leitura são enunciados pela autora. Viviane Mosé faz uma bela análise de “Lindonéia” construindo, a partir da letra de Caetano Veloso e do quadro inspirador de Rubens Gerchman (cujo título é o mesmo da canção), um painel abrangente da cultura e do cotidiano. Como Hermano, Viviane entrevê na canção uma brecha trágica reveladora da alma brasileira. As feridas e o desaparecimento da jovem suburbana Lindonéia são metáforas dessa tragédia nacional. Ao mesmo tempo, os elementos reunidos na canção – encomendada por Nara Leão – demonstram a capacidade aglutinadora de referências e inovações que o Tropicalismo propunha. Christopher Dunn comenta a única canção de Tom Zé no disco, “Parque industrial”, mostrando como o ceticismo e a ironia crítica do compositor conseguem apresentar um quadro complexo da urbanização industrial no Brasil do final dos anos de 1960. O “parque industrial” de Tom Zé distribuía felicidade em sorrisos engarrafados, mas faturava a conta no sangue encadernado, pronto para folhear e usar. O artigo de Christopher demonstra, com propriedade, que, desde o período tropicalista, Tom Zé já mantinha um olhar mais agudo e distanciado sobre a modernidade capitalista e suas consequências nas sociedades de massa. Bené Fonteles, aqui, não toma o Tropicalismo exatamente como objeto de estudo. Ele assume um tom mais confessional e mescla sua experiência pessoal na primeira audição de “Geleia geral” com impressões particulares sobre o movimento tropicalista e seu impacto na cultura brasileira. Seu relato perpassa um amplo cenário de nossa crônica
cultural – de João Cabral a Ary Barroso, de Nara Leão a Castro Alves, de Ney Matogrosso a Oswald de Andrade – e, por fim, destaca o poeta como figura pioneira do movimento, a quem dignamente coube o desfolhar da bandeira. A música de Gil e os longos versos de Torquato Neto são, na visão de Bené, um “petardo poético” de grande força telúrica. Abrindo o lado B do disco, Frederico Coelho propõe uma saborosa leitura de “Baby”, uma das faixas mais conhecidas do disco. O fato de ter sido composta por Caetano Veloso e interpretada por Gal Costa inspirou Frederico a situar a personagem Baby num espaço indefinido de gêneros, relacionando a declaração de amor do último verso (I love you) com a exigência de se viver o tempo presente. O texto traz ainda uma espécie de colóquio imaginário entre Baby e outras personagens solitárias desse período da canção brasileira: Carolina, de Chico Buarque, e Lindonéia, do próprio Caetano. Se o presente urbano exige que Baby saia de casa, entenda da gasolina e tome um sorvete na lanchonete, a nostalgia e a delicadeza da melodia de Caetano – enobrecida pela interpretação de Gal – nos lembra que essa linda canção é, acima de tudo, uma declaração de amor. No texto seguinte, Manuel da Costa Pinto compreende “Três caravelas”, de Algueró Jr e Moreu, a partir da prática tropicalista de trabalhar os extremos do arcaico e do moderno em uma mesma lógica cultural. Segundo Manuel, essa rumba cubana, gravada na versão brasileira de João de Barro, o Braguinha, dialoga com outra canção do disco, “Coração materno”. Nessas duas regravações há uma autocrítica dos músicos tropicalistas em relação ao que se entendia na época por cultura brasileira. Tanto o kitsch como a nossa – muitas vezes ignorada – face latinoamericana aparecem como limites discursivos da estética revolucionária e antropofágica da Tropicália. Para analisar “Enquanto seu lobo não vem”, de Caetano Veloso, Newton Cannito concentra-se na obra do compositor, colocando-o, tanto quanto a canção, em perspectiva histórica. Primeiro, compara “Enquanto seu lobo não vem” com músicas de sucesso da época que abordam a temática do “passeio”: “A banda”, de Chico Buarque, e “Caminhando” (“Pra não dizer que não falei das flores”), de Geraldo Vandré. Depois, ao assinalar a especificidade do músico baiano em relação aos seus pares, Newton situa “Enquanto seu lobo não vem” em relação à própria obra de Caetano. O intuito é demonstrar como essa canção marca uma
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tomada de posição política radical por parte do compositor. Indo além, Newton elabora uma teoria sobre essa persona artística, propondo, em suas palavras, o entendimento da obra de Caetano entre um “pessimismo paulista” e um “otimismo tupiniquim” que, no final das contas, é o que prevalece em sua análise. No artigo dedicado à “Mamãe coragem”, de Caetano Veloso e Torquato Neto, Bráulio Tavares visita as diversas formas de arte – literatura e cinema, teatro e música popular – em que a separação entre pais e filhos aparece como tema e mote. Seja no diálogo com outras canções dos anos 1960 (como as de Bob Dylan e dos Beatles), seja na permanência dessa temática na obra dos próprios autores, Bráulio aponta os dois impulsos básicos da operação estética tropicalista: o impulso afetivo da crítica dos costumes e o impulso intelectual da crítica da linguagem. A citação de folhetins em “Mamãe coragem” realça a estima tropicalista para com as representações de um passado à margem da cultura nacional, como os melodramas popularescos do século XIX, com suas tramoias e perfídias monstruosas. Essa estética do arrebatamento de paixões foi benevolamente assimilada pelos tropicalistas que, segundo Bráulio, “eram capazes de comover-se com uma coisa e rir dela ao mesmo tempo”. Antonio Risério é quem destrincha a complexa montagem de signos e representações presentes na intrincada “Batmakumba”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Para Risério, trata-se e uma das mais inovadoras peças do repertório tropicalista, com sua batida hipnótica e letra “bi(tri) língue” em que uma expressão verbal é desconstruída para, em seguida, ser restaurada. Desmontando e remontando suas partes – bat, macumba, Batman, iê-iê, Obá –, o crítico traz à tona todos os elementos projetados na letra, começando pelos da cultura de massa, na figura do herói das histórias em quadrinhos (Batman) e do ritmo pop da época (o iê-iê-iê). Adiante, ele nos fala dos simbolismos da cultura afro-diaspórica (macumba, Obá) e do intercâmbio definitivo entre os compositores tropicalistas e a poesia concreta paulista. Assim, Risério propõe que em “Batmakumba” o pop e o ancestral são sintetizados pela conjunção de Brasil, África, cultura de massa norte-americana, poesia concreta e música pop. Por fim, encerrando o álbum – e o livro – temos o “Hino do Senhor do Bonfim”, uma ode à história de lutas do povo baiano frente ao império colonial. Aqui se rende graças ao Redentor, “a guarda imortal da Bahia”,
e se clama por justiça e concórdia. Jorge Mautner é quem ilumina poeticamente a peça final de Tropicália ou Panis et circencis. Com um verdadeiro artigo-manifesto, Mautner nos convida a um longo passeio pela história do Brasil, desde seus tempos imemoriais, antes da chegada dos portugueses, até o momento tropicalista e a decisão de incluir no disco um hino religioso. José Bonifácio, Joaquim Nabuco, são Paulo, Pedro Álvares Cabral, os templários, Walt Whitman e Noel Rosa são alguns dos personagens que o ajudam a costurar essa imensa trama histórica que desaguará no “Hino do Senhor do Bonfim”. Suas articulações de ideias sugerem que essa escolha, além da referência óbvia à terra “onde tudo começou”, representa o ambicioso projeto tropicalista de colocar em perspectiva crítica e estética toda a história cultural brasileira e suas conexões com a história universal. Mautner nos oferece um painel grandioso que encerra nossa sincera deferência a esse também grandioso disco da música popular brasileira. *** E salve aquela Força que, decidida e infalivelmente, pronunciou: “eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval”.
Ana de Oliveira é pesquisadora e autora do site Tropicália (www.tropicalia.com.br).
Tropicália or Panis et circencis: record-book Ana de Oliveira A vertiginous cultural movement in Brazil at the end of the 60’s marked the Tropicalist moment in Brazilian culture. It was a seminal period of artistic confluences in the country, of intense interchange between various cultural spheres and the experimentation with the avant-garde, whether in film, with movies such as Terra em transe (Land in a trance), by Glauber Rocha, and O bandido da luz vermelha (The red light bandit), by Rogério Sganzerla; in the visual arts, with the environmental-artistic project Tropicália, by Hélio Oiticica, and the Máscaras sensoriais (Sensory masks) by Lygia Clark; in theater, with the staging of Oswald Andrade’s O rei da vela (The Candle King) by José Celso Martinez Correa; or in literature, with the novel Panamérica by José Agripinno de Paula; and in music with the new ideas of the Tropicalist group. Even within an expressive heterogeneity, of practices and languages, all of them converged in their thinking and in anthropophagically assimilating Brazilian reality in its many facets (following the example of Oswald de Andrade’s Anthropophagical Manifesto), in a plan for modernity in which experimentalism and participation were associated with cultural, political and behavioral criticism. Tropicalism, as part of this interdisciplinary network, assimilated various creative moulds - from archaic popular forms to ones that were erudite or countercultural – and established an unprecedented dialog between mass culture, the market, technology, tradition and modernity. The incorporation of international rock as legitimate information, the use of elements from high culture articulated with mass communication media and the demand for a universal language in thinking of Brazilian culture, were some of the premises from which basis Tropicalism would make a decisive change in artistic creation and in esthetic-political-cultural debates in Brazil. The daring of Tropicalism attained its highest point on the album Tropicália ou Panis et circencis, collectively engendered by Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, the Mutantes, Tom Zé, Torquato Neto, Capinan and the musical conductor and arranger Rogério Duprat. Recorded in May and released in August 1968, the Tropicalist record-manifesto was Brazil’s first concept album. The recording of a series of voices and dictions, compositions whose common axis was a critical but affectionate perspective of our cultural process, Tropicália ou Panis et circencis constituted an accurate exposure of Brazil’s cultural myths and relics. The Tropicalists, as the real inventors of musical modernity, introduced criticism of capitalist consumer society, criticism of the traditional and conservative family models and a sharp criticism of the dictatorial regime and the model of modernization implanted by the country’s military. At the same time, they affirmed an interest for new cultural information, from the pop-rock of the Beatles to the radical avant-garde of the concrete poets, and the search for a more authentically Latin American way of thinking; all this in the midst of a Christian discourse of martyrdom and salvation, of darkness (blood and death) and of light (sun and luminosity are constantly cited in the lyrics). In fact, the Tropicalists were skilled at working within the codes of the average Brazilian’s imagination, in which Catholic
religiosity is a fundamental part of the identity. Popular religiosity, the metaphors and the symbolisms of the Church run through various of the record’s tracks. We have, for example, the wine on the table linen, the heart torn out of the mother knelt in prayer, Lindonéia’s disappearance from the church and the bier and the prayer to Nosso Senhor do Bonfim (Our Lord of the Happy Ending), patron saint of Bahia, who represents Christ on the Cross. The Tropicalist album incorporates – or cannibalizes, to use an expression dear to the anthropophfagists – a variety of heterogeneous, Brazilian and foreign, past or current languages and styles synchretized in the lyrics, music, arrangement and vocal interpretation. This procedure had been used by the Beatles in their concept album Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band, released in 1967. The English band’s record inspired the Tropicalists with its polyphonic structure, songs that merged into each other at the beginning and end, orchestral arrangements, experimental interventions, interconnected themes and even the cover, with its panorama of everyone involved in the project. The cover is a parody of Brazilian tradition and conservatism: Gil, in a hippie robe, holds Capinan’s graduation portrait; Gal Costa and Torquato Neto, seated, maintain a pose of good behavior; Tom Zé appears as a migrant from the Northeast, carrying a leather suitcase; the Mutantes are showing their guitars; Caetano Veloso exhibits an impish photo of Nara Leão and Rogério Duprat elegantly holds a potty as if it were a teacup. The back cover is a sort of unleashed cinematographic screenplay with intermittent and irreverent dialogs. In the first scene, an apocalyptic message is announced: “there is no ideology or future for Brazil or the world”. Afterwards, values of pop and traditional culture are contrasted and Câmara Cascudo, that great 20th researcher of Brazilian folklore is strategically cited. Duprat, symptomatically placed at the top of a TV transmission tower (icon of modern mass telecommunications), challenges everyone with questions on the market value of the Tropicalist musical endeavor. Then, in a probable reference not only to Vicente Celestino’s melodrama but also to the first heart transplant in Brazil in 1968, Caetano asks “are you for or against transplanting a mother’s heart?” In a discontinuous dialog without linked answers, Nara cites names such as Chiquinha Gonzaga and Pixinguinha, while the Mutantes reciprocate with names of psychedelic 60’s hippie bands such as Jefferson Airplane and The Mamas and the Papas. The concrete poets are paid tribute with the mention of the Noigandres anthology, published at the end of the 50’s, and Paulinho da Viola is remembered by quoting the last verse of his song “Coisa do mundo, minha nega”. In the final sequence, João Gilberto says to the Tropicalists that he’s looking up to them. The phrase is true – said to Augusto de Campos when he visited João. A collective voice, a record of musical collaboration, Tropicalia ou Panis et circencis became a benchmark for musical experimentalism at the time, and continues so until today, all over the world.
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A book about a record that is the most iconic collective work in Brazilian popular music! The incorrect Latin of the LP title (circencis written with a “c” and an “i”) has been affectionately kept in this book, in a direct transposition of the original work. Although on the record the slip had not been intentional, here in our book we have kept it as a record of the “valuable contribution of all cultural manifestations and expressions”: an Oswaldian lesson taught us by Tropicalism. The original idea was only to gather together unpublished articles on the twelve songs composing the LP. However the infinite number of poetic images in the record’s lyrics inspired us to invite designers and visual artists from various fields and disciplines to produce visual interpretations of each track: André Vallias, Gringo Cardia, Lenora de Barros, Guto Lacaz, Ernane Cortat, Aguilar, Ray Vianna, Ailton Krenak, Rico Lins, Nelson Provazi, Leandro Feigenblatt, Adriana Ferla and the international artistic collective “assume vivid astro focus”. The musical works were in this way translated into languages proper to the visual arts; the chapters were given very personal illustrations and each song has a poster which accompanies the first edition of this book. We will give a brief introduction here so that the reader may better make full use of the theoretical considerations or poetical-philosophical inflections of each article. “Miserere nobis” composed by Gilberto Gil and Capinam, is the opening track. Yes, the Tropicalist record-manifesto begins and ends with a prayer. And Hermano Vianna is no stranger to the fact. In his ingenious essay, he emphasizes the religious and solemn nature of the song. Religiosity, nevertheless, punctuated by a tragic joy, only possible in the revolutionary acts of a new musical and cultural era in Brazil, the joy of discovering new possibilities of thinking about the country’s cultural and historical tragedy. Hermano also provokes the reader with questions not often found in analyses of popular music, by suggesting that “Miserere nobis” also stimulates us to think of love and hell as two opposite poles of the Tropicalist experience. Between these two poles are, paradoxically, a certain “loving irony” and imminent violence. Towels stained with blood, rifles and cannons inciting pleas for mercy at a time of political insurgencies, crude military repression and, consequently, great tension in the heart of the nation. In the book’s second article, Aguilar delimits a concept and introduces us to “Coração materno” (Maternal Heart) as the object of a surprising dialog between student and teacher in a Brazil of 2175, a time when machines (mechanical mothers) perform the role of society’s progenitors. With this extreme futuristic leap of over a century, Aguilar sees the track, the record and Brazilian history through a sci-fi lens. And also confirms the advent of Tropicalism as an agent of the rupture in duality of thought: thinking beyond good and evil, of good and bad taste. For many, this Vicente Celestino song represents a throwback on an avant-garde re-
cord. But it is exactly this patriarchal past of brutal loves narrated in the song that Aguilar perceives the Tropicalist amorousness which, according to the teacher in the dialog, would years later bring about a “culture of world peace” through Brazilian music. To contemplate the title song “Panis et circencis”, by Caetano Veloso and Gilberto Gil, Noemi Jaffe immerses herself in the multiple senses awoken by the music and lyrics. First, she situates the Latin expression in its various uses – correct and incorrect. Afterwards, she expands the ideas and sounds in this expression that christen not only the song and the album, but also the Roman Emperors’ policy regarding the masses, complemented with readings not directly related to Tropicalism, such as Fernando Pessoa and Luis Buñel. In this polyphonic arrangement of illusions, new meanings and possibilities of interpretation are expressed by the author. Viviane Mosé makes a fine analysis of “Lindonéia”, constructing a broad picturel of her culture and daily life from Caetano Veloso’s lyrics and Rubens Gerchman’s inspirational painting (whose title is the same as that of the song). Like Hermano, Viviane glimpses in the song a tragic opening into the Brazilian soul. The wounds and the disappearance of the young Lindonéia of the suburbs are metaphors for this national tragedy. At the same time, the elements brought together in the song – requested by Nara Leão – show the unifying capacity of the references and innovations proposed by Tropicalism. Christopher Dunn talks of the only Tom Zé song on the record, “Parque industrial” (Industrial Park) showing how skepticism and the composer’s critical irony are able to demonstrate a complex picture of industrial urbanization in the Brazil of the late sixties. Tom Zé’s “industrial park” distributes happiness in bottled smiles, but bills the cost in bloodied notebooks, ready to leaf through and use. Christopher’s article shows that, ever since the Tropicalist era, Tom Zé has appropriately kept a sharp but distant eye on capitalist modernity and its consequences for mass societies. Here, Bené Fonteles does not take Tropicalism exactly as an object of study. He takes a more confessional tone and mixes his own experience upon listening to “Geléia geral” (General jelly) for the first time with personal impressions of the Tropicalist movement and its impact on Brazilian culture. His report passes through a broad panorama of our cultural chronicle – from João Cabral to Ary Barroso, from Nara Leão to Castro Alves, from Ney Matogrosso to Oswald de Andrade – and, lastly, underscores the poet as a pioneering figure in the movement, whose dignified role it was to unfurl the flag. Gil’s music and Torquato Neto’s long verses are, from Bené’s viewpoint “a poetic petard” of great Teluric force. Opening the record’s B side, Frederico Coelho gives us an interesti9ng interpretation of “Baby”, one of the album’s most well-known tracks. The fact of having been composed by Caetano Veloso and interpreted by Gal Costa inspired Frederico to situate the character of Baby in a space of undefined gender, linking
the declaration of love in the last verse (I love you) with the requirement to live in the present. The text also contains a kind of imaginary conversation between Baby and other solitary characters of the period in Brazilian song lyrics: Carolina, by Chico Buarque, and Lindonéia, also by Caetano. If the urban present requires Baby to go outside, understand gasoline and have an ice-cream in the diner, the nostalgia and delicacy of Caetano’s melody – enriched by Gal’s interpretation – reminds us that this beautiful song is, above all, a declaration of love. In the following article, Manuel da Costa Pinto interprets “Três caravelas” (Three caravels), by Algueró Jr and Moreu, based on the Tropicalist practice of working both extremes of the archaic and the modern in the same cultural logic. According to Manuel, this Cuban rumba, recorded in the Brazilian version by João de Barro, or Braguinha, establishes a dialog with another of the record’s songs: “Coração materno” (Maternal heart). In these two re-recordings there is a selfcriticism of Tropicalist songs in terms of what was understood at the time to be Brazilian culture. Both the kitsch and our own – frequently ignored – Latin American facet appear as discursive limits of the revolutionary and anthropophagic dialectic of Tropicália. To analyse “Enquanto seu lobo não vem” (While Mr. Wolf is gone), by Caetano Veloso, Newton Cannito concentrates on the composer’s work, placing it, as well as the song, in historical perspective. First, he compares “Enquanto seu lobo não vem” with successful songs of the time that dealt with the theme of the “stroll”: “A banda” (The band), by Chico Buarque, and “Caminhando - Pra não dizer que não falei das flores” (“Walking - Not to say that I didn’t talk of the flowers”), by Geraldo Vandré. Then, by showing the specificity of the Bahian composer in terms of his contemporaries, Newton situates “Enquanto seu lobo não vem” in relation to the rest of Caetano’s work. The idea is to show how this song marks Caetano’s taking up a radical political position. Going further, Newton elaborates a theory on this artistic person, proposing, in his words, the understanding of Caetano’s work as being between “Paulista pessimism” and “Tupiniquim optimism” which, in the end, is what prevails in his analysis. In the article dedicated to “Mamãe coragem” (Mother courage), by Caetano Veloso and Torquato Neto, Bráulio Tavares visits the various art forms – literature, cinema, theater and popular music – in which the separation between parents and their children appears as a theme and a motto. Whether in the dialog with other songs from the sixties (such as those of Bob Dylan and the Beatles), or in the permanence of this theme in the work of the authors themselves, Bráulio points out the two basic impulses of the Tropicalist esthetic: the affective impulse in the criticism of customs and the intellectual impulse in the criticism of the language. The mention of dime novels in “Mamãe coragem” underlines the Tropicalists’ appreciation of representatives of a past that was marginal to Brazilian culture, such as these popular dramas of the 19th century, with their chicanery and monstrous perfidy. This esthetic of the ecstasy of the passions was benevolently
assimilated by the Tropicalists who, according to Bráulio, “were able to be moved by something and yet at the same time laugh at it.” Antonio Risério unravels the complex montage of signs and representations in the intricate “Batmakumba”, by Caetano Veloso and Gilberto Gil. For Risério, it is one of the most innovative pieces in the Tropicalist repertory, with its hypnotic beat and “bi(tri)língual” lyric in which a verbal expression is deconstructed only to be then restored. Disassembling and re-assembling its parts – bat, macumba, Batman, yeah-yeah-yeah, Obá –, the critic reveals all the elements projected in the lyric, beginning with mass culture, in the figure of the comic book hero (Batman) and of pop at the time (yeah-yeah-yeah). He then tells us about the symbolisms of African Diaspora culture (macumba, Obá) and of the definitive exchange between the Tropicalist composers and Paulista concrete poetry. In this way Risério suggests that in “Batmakumba”, pop and the ancestral are synthesized by the conjunction of Brazil, Africa, American mass culture, concrete poetry and pop music. Lastly, closing the album – and the book – we have the “Hymn of Our Lord of the Happy Ending”, an ode to the history of the Bahian people’s struggle against the colonial empire. Here the “the immortal guardianship of Bahia” is surrendered to the Redeemer, and people cry for justice and harmony. Jorge Mautner poetically throws light on this final piece of Tropicália ou Panis et circencis. With a veritable article-manifesto, Mautner takes us on a journey through Brazilian history, from times immemorial, before the arrival of the Portuguese, to the Tropicalist moment and the decision to include a religious hymn on the record. José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Saint Paul, Pedro Álvares Cabral, the Knights Templar, Walt Whitman and Noel Rosa are some of the characters helping to weave together this immense historical tapestry that ends in the “Hymn to Our Lord of the Happy Ending”. The articulation of his ideas suggests that this choice, in addition to the obvious reference to the land “where it all began”, represents the ambitious Tropicalist project of placing in critical and esthetic perspective all of Brazilian cultural history and its links with universal history. Mautner offers us a grandiose mural that closes our sincere tribute to this no less grandiose record of Brazilian popular music. *** “And all praise be to that Force that, emphatically and infallibly, pronounced: “I organize the movement, I guide the carnival.”
Ana de Oliveira is a researcher, and author of the site Tropicália (www.tropicalia.com.br).
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MISERERE NOBIS
Miserere nobis Hermano Vianna
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Tudo começa com um órgão solene e sagrado. O clima de igreja é subitamente profanado por um sino de bicicleta. Logo em seguida ouvimos o grave de um baixo, uma batida marcial e entra o riff antológico de violão, bem alegre, mas urgente, como uma convocação militar. Quando aparece a voz de Gilberto Gil, já estamos bem acordados esperando outra surpresa, mesmo um canto em latim que ‑ traduzido ‑ pede piedade e orações para todos nós. Muita gente já comentou a estranheza do disco-manifesto da Tropicália começar e terminar (a faixa de encerramento é o “Hino do Senhor do Bonfim”) com canções de forte cunho religioso. Nada me parece tão estranho assim. Se, como afirmou Caetano Veloso no seu livro Verdade tropical, os tropicalistas buscavam “pôr as entranhas do Brasil para fora”1, é até coerente que a cirurgia tenha início com uma reza, enfrentando o espírito católico que ocupa local de tanto destaque e centralidade em nossa identidade nacional ‑ mesmo que a reza fosse o primeiro passo, como também indica Caetano, para “uma descida aos infernos”2 (com aspas mesmo no original). Quem reza, na ida e na volta, pode ir para o inferno (que tudo mais vá para o inferno?) sem ganhar arranhão ou queimadura? O Orfeu da Tropicália (Orfeu mulato?) pode até olhar para trás, sem que sua Eurídice desapareça, já que foi benzido pelo poder da oração e da piedade? E o que seria o inferno, para um tropicalista? O inferno são as ambiguidades, não apenas dos outros brasileiros, mas ‑ afetuosamente ‑ dos próprios tropicalistas, que fazem tudo isso como brasileiros comuns, apesar de não terem (ou justamente por não terem) lenços nem documentos? Entramos aqui, já assim de supetão, na areia movediça da libido verdadeiramente tropical. Capinan, na entrevista para o site Tropicália, comentando a escolha de “Coração materno” ‑ de Vicente Celestino ‑ para o repertório desse disco, sintetiza tudo o que estava em jogo na ambiguidade de um
1
Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 199.
2
Ibidem.
movimento que nunca quis ser realmente um movimento: “Não é paródia nem rejeição. Somos filhos disso tudo, e não somos melhores, apenas discordamos disso com afeto”3. Caetano acrescentou, complexificando ainda mais (ou tornando ambíguo ainda mais), em entrevista recente para a revista norte-americana Fader: “nós nunca faríamos paródia ou chacota de algo que não pudéssemos amar”4. Até onde vai o amor tropicalista? Até o inferno? O tropicalista ama mesmo o que é infernal? Ama ‑ como um cristão exemplar, como um santo ‑ o inimigo? E quais seriam os inimigos do tropicalismo? Quem não vê ambiguidade no mundo? Quem não pode amar tudo? Muitas vezes, a canção de protesto é apontada como uma das coisas que um tropicalista não ama, aquilo que quer superar ou até exterminar, já que representa um pensamento que foge de ambiguidades e não-linearidades, ou revela apenas ingenuidades. Em 1968, Augusto de Campos, no artigo “É proibido proibir os Baianos”, desdenhava dos “protestistas ostensivos, logo assimilados pelo Sistema”5. Então a “descida aos infernos”, além de começar com uma reza, faz uma oração que muita gente também já pensou ser uma canção de protesto ou o que mais se assemelha/aproxima do protesto entre as canções tropicalistas. Um protesto que tem início com órgão de igreja, mas termina com tiros de canhão, numa versão embrião radical de algo que ficaria popular anos depois na Teologia da Libertação ‑ só que aqui uma libertação, aparentemente ateia, ou piedosamente carnavalizante, sugerindo algo que vai ficar explícito décadas depois em outra canção: “Zera a reza” (de Caetano, a abertura do disco Noites do Norte, que traz o verso “chão é céu”). Capinan, na entrevista já citada, revela que algumas pessoas naquele tempo ouviram “Miserere nobis” literalmente como protesto revolucionário: “Na agência em que eu trabalhava, um guerrilheiro chegou a me procurar pra que eu me incorporasse à guerrilha. Respondi que, apesar da minha admiração, não conseguiria atirar em ninguém”. Por outro lado, retrospectivamente, Caetano identificou nessa canção os antecedentes de outra novidade cultural da década seguinte, e ao mesmo tempo não tão distante 3
Entrevista para o site Tropicália: www.tropicalia.com.br.
4
“Lost in Translation”. Fader, n° 23, agosto 2004, p. 105.
5
Campos, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 262. Também disponível no site Tropicália: www.tropicalia.com.br.
de um catolicismo de esquerda: “reconheço o embrião da poética mineira dos anos 1970: as referências católicas, as imagens nobres envolvendo um compromisso político mais pressuposto que explicitado, a dicção solene. Num nível sempre extraordinariamente mais alto do que seus seguidores, Capinan prefigurou toda a lírica ‘participante’ pós-tropicalista”6. Interessante o papel de ponte que Capinan desempenha entre vários estilos musicais pré e pós tropicalistas. Sua formação política, nos quadros do Centro Popular de Cultura (CPC) e do Partido Comunista Brasileiro, foi surpreendentemente (ou nada surpreendentemente já que era desenvolvida numa Salvador que já tinha gerado o marxismo moreno de Jorge Amado?) pouco ortodoxa, processada sob o efeito de um período libertariamente vanguardista na Universidade da Bahia, com abertura para todo tipo de experiências artísticas. Essa bagagem levou-o para bem além do “popular” anti-pop advogado pelas cartilhas do CPC, tornando muito fácil se vincular às propostas diferentes de Caetano, Gil, Tom Zé, Edu Lobo (com quem compôs “Ponteio”), Paulinho da Viola, isso antes da explosão tropicalista. Depois, foi também parceiro de Fagner, Geraldo Azevedo, João Bosco etc. Em “Miserere nobis”, Brasil rima com fuzil, palavras soletradas ao modo dos cantadores do sertão nordestino (“zê-i-lê, zil”). Imagens como vinho e sangue no linho da mesa são justapostas a banana e feijão, além de espinhas de peixe que voltam para o mar. Santa, violenta e psicodélica ceia? Nada é tão pão-pão-queijo-queijo ou fácil assim. A canção dava um passo além num exercício que, conscientemente, Gilberto Gil já praticava há anos. No livro Todas as letras, comentando “A luta contra a lata ou A falência do café”, Gil nos ensina: “Essa canção desdobra a lógica da música de protesto que vinha da fase pré-tropicalista, incluindo signos de composição, a decupagem de edição, típicos da fase tropicalista”7. Portanto: interessava mais o cut-up, e o mash-up, do que a história contada com começo, meio, fim e mensagem do futuro radioso de “quem sabe faz a hora”. Como mostrou Flora Süssekind, no seu excelente ensaio “Coro, contrários, massa: A experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60”, que integra o catálogo da exposição Tropicália: Uma revolução na 6
Veloso, Caetano. Op. cit., p. 295.
7
Gil, Gilberto. Todas as letras. Organização de Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 102.
cultura brasileira, o coro das multidões que acompanhavam os sucessos da canção de protesto brasileira queria ser “uma só voz”, reproduzindo em shows, festivais e passeatas a homogeneidade de um pensamento maniqueísta, onde era fácil identificar a fronteira que separava mocinhos e bandidos, céu e chão (ou inferno). Já o coro tropicalista queria expor “cisões, sublinhando disparidades, descompassos, trabalhando com uma multiplicidade descontínua de dicções, materiais, com imagens que se desdobram, que se contrariam mutuamente e potencializam tensões”8. Em “Miserere nobis”, a voz de Gil canta todas as descompassadas palavras de ordem na primeira pessoa do plural (“derramemos o vinho sobre o linho da mesa”), mas insistentemente solo, como se estivesse sozinho no mundo (para mudar o mundo). Quem faz a vez de coro são flautas, fagotes ou vozes que parecem vir de um coral de anjos barrocos amalucados (saídos de Smile, disco inacabado dos Beach Boys?), que nunca repetem o “sentido” do que é dito por Gil mas parecem estar ali para confundir, rir, dispersar, propor linhas de fuga, contradizendo o que pode restar de certeza no canto principal. No “Hino do Senhor do Bonfim”, há um coro mais tradicional, que clama por concórdia, mas que ‑ no momento final do disco ‑ se desintegra dissonante e angustiadamente (parecem vozes de almas penadas, recém-chegadas no ou do inferno) para dar lugar ao silêncio apenas interrompido por novos tiros de canhão. O que nos leva a precisar novamente de piedade, como se a primeira faixa do disco fosse o posfácio da última, e tudo funcionasse como um círculo vicioso que seria apenas infernal, sem saída alguma, se não houvesse tal ironia amorosa em tudo que ali dentro, e nas bordas, e contaminando o que está fora, é tocado e cantado. Só no perigo e no sufoco reside a salvação? Já houve quem dissesse que o Tropicalismo teria apresentado uma visão acrítica da realidade cultural e social brasileira (já que a verdadeira crítica, nada tropical, só poderia ser “protestista”). Ao reescutar, em 2010, “Miserere nobis” e as outras faixas de Tropicália ou Panis et circencis, me deparo com uma visão essencialmente trágica do mundo. Trágica e alegre ‑ por que não? Mas durma-se com uma alegria, alegria dessas.
8
Süssekind, Flora. “Coro, contrários, massa: A experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60”. Em Basualdo, Carlos (org.). Tropicália: Uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 47.
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Miserere nobis
Gilberto Gil e Capinan
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Miserere-re nobis
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
É no sempre, sempre serão
Já não somos como na chegada
Já não somos como na chegada
Calados e magros, esperando o jantar
O sol já é claro nas águas quietas do mangue
Na borda do prato se limita a janta
Derramemos vinho no linho da mesa
As espinhas do peixe de volta pro mar
Molhada de vinho e manchada de sangue
Miserere-re nobis
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
É no sempre, sempre serão
Tomara que um dia de um dia seja
Bê, rê, a - Bra
Para todos e sempre a mesma cerveja
Zê, i, lê - zil
Tomara que um dia de um dia não
Fê, u - fu
Para todos e sempre metade do pão
Zê, i, lê - zil Cê, a - ca
Tomara que um dia de um dia seja
Nê, agá, a, o, til - ão
Que seja de linho a toalha da mesa Tomara que um dia de um dia não
Ora pro nobis
Na mesa da gente tem banana e feijão
Copyright (1968) by Musiclave Editora Musical Ltda / Gege Edições Musicais Ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo). Todos os direitos reservados.
Miserere nobis
Gilberto Gil and Capinan Miserere-re nobis Ora, ora pro nobis It will always be, oh yaya It will always always be We’re no longer as we were on arrival
Miserere-re nobis
Silent and skinny, waiting for dinner
Ora, ora pro nobis
Dinner is limited to the leftovers
It will always be, oh yaya
The fish bones returned to the sea
It will always always be
Miserere-re nobis
We’re no longer as we were on arrival
Ora, ora pro nobis
The sun shines on the calm waters of the swamp
It will always be, oh yaya
We spill wine on the table linen
It will always always be
Soaked in wine and stained with blood
Hoping that one day one day
B, R, A – bra
Always and for all the same beer
Z, I, L – zil
Hoping that every other day
F, U - fu
Always and for all half of the bread
Z, I, L – zil* C, a – ca
Hoping that one day one day
N, H, A, O, tilde – nhão**
The tablecloth may be of linen Hoping that every other day We have bananas and beans on the table
Ora pro nobis *Fuzil= gun **Canhão= canon
Copyright (1968) by Musiclave Editora Musical Ltda / Gege Edições Musicais Ltda (Brazil and South America) / Preta Music (rest of the world). All rights reserved.
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Miserere nobis Hermano Vianna
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It all begins with a solemn and sacred organ. The church atmosphere is suddenly profaned by a bicycle bell. Soon after this we hear the tones of a bass guitar, a martial drumbeat and a classic guitar riff, joyful, but urgent, like a military call. When Gilberto Gil’s voice appears, we are already well awake, waiting for another surprise, even the chant in Latin which, in translation, asks for mercy and prayers for us all. Many people have commented on the strangeness of the fact that the manifesto-record of the Tropicalia Movement begins and ends (the closing track is the “Hymn to Our Lord of Good End”) with songs of a strongly religious nature. It isn’t so strange to me. If, as Caetano Veloso said in his book Verdade tropical, the Tropicalistas sought “to turn Brazil inside out”1, it makes sense that the surgical intervention should begin with a prayer, facing up to the Catholic spirit that holds such an exalted and central place in our national identity – even though the prayer is the first step, as Caetano also points out, to a “descent into hell”2 (with quotation marks in the original too). Can those who pray, both coming and going, go to hell (and everything else goes to hell?) without getting a scratch or a burn? Can the Orpheus of Tropicalia (Brown Orpheus?) look back, without Eurydice disappearing, because he has been blessed by the power of prayer and mercy? And what would hell be for a Tropicalista? Hell is the ambiguity, not only of other Brazilians, but, affectionately, of the Tropicalistas themselves, who do all this like ordinary Brazilians, despite not having (or precisely for not having) either handkerchief or documents? We enter here, all of a sudden, into the quicksand of the truly tropical libido. Capinan, in his interview for the Tropicália site, commenting on the choice of “Coração materno” by Vicente Celestino – for the repertoire of the record, summarises all that was at stake in the ambiguity of a movement that never really wanted to be a movement: “It’s neither parody nor rejection. 1
Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 199.
2
Ibidem.
We are children of all of this, and we aren’t better, we just wanted to disagree, affectionately”3. Caetano added, with even more complexity (or even more ambiguity), in a recent interview for U.S. magazine Fader: “we never made a parody or mockery of anything we couldn’t love”4. How far does Tropicalista love go? As far as hell? Does the Tropicalista love even that which is infernal? Does he love, like an exemplary Christian, like a saint… the enemy? And who would the enemies of Tropicalism be? Those who don’t see ambiguity in the world - those who can’t love everything? Often, the protest song is pointed out as one of the things a Tropicalista doesn’t love, that which wants to overcome or even exterminate, given that it represents a thought that flees ambiguities and non-linearities, or reveals only ingenuities. In 1968, Augusto de Campos, in the article “It is prohibited to prohibit the Bahians”, spurned “ostensive protesters, soon assimilated by the System”5. So the “descent into the infernal”, besides starting with a prayer, makes a prayer that many people also thought was a protest song or what seemed/came closest to protest in the Tropicalist songs. A protest that has its beginning with a church organ, but ends with cannon shots, in a radical embryonic version of something that would become popular years later in Liberation Theology – except here it is a liberation, apparently atheist, or piously carnivalizing, which suggests something that is going to become explicit decades later in another song: “Zera a reza” (by Caetano, the opening of the record Noites do Norte, which includes the verse “chão é céu” (“earth is heaven”). Capinan, in the above-mentioned interview, reveals that some people at the time thought “Miserere nobis” literally a revolutionary protest: “At the agency where I worked, a guerilla even sought me out to become part of the guerilla fighters. I replied that, despite my admiration, I wouldn’t be capable of shooting anyone”. At the same time, in retrospect Caetano identified in this song the antecedents of another cultural novelty of the following decade, and at the same time, not so far removed from a Catholicism of the left: “I recognise the embryo of the Minas Gerais poetry of the 1970s: the Catholic references, the noble images involving a political commitment more presupposed than explicit, the solemn diction. On a level always higher than his followers, Capinan prefigured the whole post-Tropicalist participatory lyric “6. It is interesting the role of bridge that Capinan plays between various preand post-Tropicalist styles. His political education, in the cadres of the Centro Popular de Cultura - Popular Culture Center (CPC) and the Brazilian Communist Party, was surprising (or perhaps not surprising at all given that it had developed in a Salvador that had already produced the dusky Marxism of Jorge Amado?) unorthodox, processed under the effect of a libertarian revolutionary period at the University of Bahia, open to all kinds of artistic experiments. This baggage led him far beyond the “popular” anti-pop advocated by the leaflets of the CPC, making it very easy for him to link up with the different proposals of Caetano, Gil, Tom Zé, Edu Lobo (with whom he composed “Ponteio”) and Paulinho da Viola, this before the Tropicalist explosion. Later, he also composed with Fagner, Geraldo Azevedo, João Bosco etc. In “Miserere nobis”, Brazil rhymes with fuzil (rifle), words spelt in the way of the singers of the Brazilian sertão of the Northeast (“zê-i-lê, zil”). Images such as wine and blood on the table linen are juxtaposed with banana and beans, as well as fish
bones that return to the sea. A holy, violent and psychedelic last supper? Nothing is that bread-and-butter or easy. The song went a step beyond, in an exercise that Gilberto Gil had been consciously practicing for years. In the book Todas as letras, commenting on “A luta contra a lata ou A falência do café” (“The fight against the can, or The bankruptcy of coffee”), Gil teaches us: “This song breaks down the logic of the protest song coming from before the time of Tropicalism, including the signs of composition, the decoupage of the editing, typical of the Tropicalist phase”7. Therefore: the cut-up, and the mash-up, was more interesting than the story told with a beginning, a middle and an end and a message of a radiant future like in “quem sabe faz a hora” (“who knows, makes it happen”) . As Flora Süssekind shows, in her excellent paper “Coro, contrários, massa: A experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60” (“Chorus, those contrary, mass - The Tropicalist experience and Brazil in the Sixties”) which is part of the catalogue of the exhibition Tropicália: Uma revolução na cultura brasileira, (Tropicalia: A revolution in Brazilian culture), the chorus of the multitudes that followed the hits of the Brazilian protest song wanted to be “one voice”, reproducing in shows, festivals and marches the homogeneity of Manichean thinking, where it was easy to identify the border separating good guys and bad guys, heaven and earth (or hell). The Tropicalist chorus, however, wanted to exhibit “cisions, underline disparities, be out-of-step, working with a discontinuous multiplicity of dictions, materials, with images that unfolded, mutually contradicting each other and giving full potential to tensions”8. In “Miserere nobis”, the voice of Gil sings all the out-of-step key words in the first person plural (“derramemos o vinho sobre o linho da mesa” “we will spill the wine on the table linen”), but insistently solo, as if alone in the world (to change the world). What takes the part of the chorus are flutes, bassoons or voices that appear to come from a choir of mad baroque angels (perhaps from Smile, the unfinished Beach Boys record?), which never repeat the “sense” of what is said by Gil but appear to be there to confuse, laugh, disperse, suggest escape routes, contradicting what might otherwise be certain in the melody. On the “Hino do Senhor do Bonfim” “Hymn to Our Lord of Good End”, there is a more traditional chorus, which clamours for harmony, but which, at the record’s last moment, disintegrates into dissonance and anguish (they sound like the voices of lost souls, recently arrived in, or from, hell), to give way to silence interrupted only by more cannon shots. Which leads us again to crave mercy, as if the first track of the record were the postscript of the last, and everything was like a vicious circle that would be merely infernal, with absolutely no way out, if it weren’t for that loving irony with which everything here inside, and on the edges, and contaminating what’s outside, is played and sung. Can salvation only be found in danger and difficulty? There have been those who have said that Tropicalism presented an acritical view of Brazilian cultural and social reality (given that the really critical, not tropical by any measure, could only be “protestista”). Upon again listening, in 2010, to “Miserere nobis” and the other tracks on Tropicália ou Panis et circencis, I came upon an essentially tragic view of the world. Tragic and joyful – why not? But sleep with alegria, alegria (joy, joy) like this.
3
Interview for the site Tropicália: www.tropicalia.com.br.
4
“Lost in Translation”. Fader, n° 23, August 2004, p. 105.
7
Gil, Gilberto. Todas as letras. Organization by Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 102.
5
Campos, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 262. Also available on the site Tropicália: www.tropicalia.com.br
8
6
Veloso, Caetano. Op. cit., p. 295.
Süssekind, Flora. “Coro, contrários, massa: A experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60”. In Basualdo, Carlos (org.). Tropicália: Uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 47.
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Coração materno Aguilar Diálogo entre professor e aluno sobre cultura brasileira no ano de 2175 Aluno: A música “Coração materno” é de Vicente Celestino e Jorge Luis Borges? Professor: Não, não tem nada a ver. Aluno: Não poderia ser de Vicente Celestino e de Caetano Veloso? Professor: Sim, poderia. Mas com Caetano fazendo o papel de tradutor-transcriador, uma espécie de Haroldo-Augusto de Campos, retraduzindo uma época e a interiorizando como uma testemunha e não como uma conclamação moral embutida na entonação de Vicente Celestino. Aluno: Então é de Vicente Celestino e de Nicolai Gogol, o escritor russo? Professor: Poderia ser. Existe um conto de Gogol em que o nariz se individualiza do corpo outrora pertencente e vai viver sua nova personalidade. Aqui um coração materno faz a mesma coisa, só que induzido. Mas há uma defasagem de tempo, digamos cem anos, entre Gogol e Vicente Celestino. Mas é um bom paralelismo. A importância dessa música é ser a força motriz da mudança que vem primeiro como símbolo, ou seja, como arte, para depois interagir na realidade. O nariz de Gogol está para a Revolução Russa como a obra do marquês de Sade está para a Revolução Francesa. Aluno: Como uma canção sozinha pode fazer tal mudança? Professor: Sozinha não. Para isso foi necessária a tradução de Caetano Veloso dentro de uma obra geral que foi a Tropicália e o disco Tropicália ou Panis et circencis, que instalou uma nova pele de sensibilidade e mudou a cultura e o comportamento do Brasil. Aluno: Mas qual tradução de uma música supostamente cafona e kitsch poderia acarretar esse fluxo de mudança? Professor: Essa música, como você a define, cafona e kitsch, é tão cafona e kitsch como as tragédias gregas de Eurípides, as óperas de Wagner e as pinturas de Andy Warhol. O leitmotiv da canção gira entre o amor incondicional e a paixão. A paixão é destrutiva, é o Eros em espiral
direcionada para Tanatos, a Morte, nesse caso o gozo final. Agora, o amor incondicional é transformador e é muito difícil de receber. Se você recebe amor incondicional, você se transforma, não tem mais causa e efeito, crime e castigo, não tem mais culpa e não tem mais ego. É muito difícil de receber porque você perde a individualidade e fica uno com o universo. Daí o grande potencial revolucionário e transformador dessa canção magnificamente traduzida por Caetano. E o amor incondicional se apresenta na forma de um coração falante de mãe. Aluno: Desculpe, professor, mas tem uma coisa que eu não entendo. Na nossa época não existe mãe-motriz. Todas as concepções são laboratoriais. Se hoje há concepção entre o esperma do doador e o óvulo da receptora, com o crescimento dentro do corpo da mulher, representa menos do que 0,1 % dos casos, e mesmo assim é considerado quase um desvio de personalidade. Não consigo compreender o apego de uma mãe para com seu filho. Professor: Para compreender esse sentimento você deveria fazer uma imersão sensorial num tubo de tempo para que toda uma série de neurônios carregados com a herança cultural-temporal daquele momento fosse implantada no seu cérebro. Na época da canção de Celestino, a sociedade era patriarcal-apolínea, repleta de leis regulamentando a propriedade individual cujo epicentro era a família regida pelo Estado. Hoje, não existe Estado, nem sociedade patriarcal, e a família é a humanidade. Hoje, uma mulher pode ser doadora de óvulos e, com outros doadores de esperma, pode gerar fetos in vitro que são desenvolvidos nos úteros de mães-mecânicas. Os recém-nascidos são criados pela comunidade. Uma mulher pode ser mãe de 10 mil filhos e não conhecer nenhum. Aluno: Mas professor, o senhor não poderia me explicar o que é ter mãe para eu compreender o contexto da canção? Professor: Imagine uma sociedade hostil na qual você só poderia sobreviver competindo e ganhando de outras pessoas. Todos contra você. Amor e empatia com os outros: zero. Mas você não está sozinho. Tem uma família. Pai que gerou filhos na sua mãe, um, dois, quatro, cinco, não importa. Você tem que competir com seu pai e seus irmãos para manter sua individualidade, mais competição. Mas existe um só lugar para descansar: o amor incondicional da mãe geradora. É a única força regenerativa que te permite continuar na competição. E com esse exemplo primeiro você vai replicar esse sentimento para com outras mulheres, até eleger sua companheira e ter filhos com ela e o ciclo todo se repete.
Aluno: Agora compreendo. Todo mundo contra você e uma pessoa só no mundo a seu favor: a mãe. A namorada do campônio pediu o sacrifício máximo, tornando-se ela mesma a mãe e a amante. Mas e quando a mãe não era a favor de um filho, o que acontecia? Professor: Na época surgiram muitos feiticeiros para contrabalançar a falta de amor materno. Esses feiticeiros se chamavam psicanalistas. Aluno: Mas por que as pessoas achavam kitsch, de mau gosto, essa canção tão profunda? Professor: A verdade incomoda. Mas não esqueça: quem achava a canção de mau gosto era a geração dos anos 1960, embalada pela Bossa Nova e filha da recente industrialização brasileira. Uma mentalidade menos feudal e patriarcal do que a sociedade rural de onde saiu Vicente Celestino. Mas só a genialidade de Caetano Veloso, originário da cultura baiana com forte tendência matriarcal, poderia fazer essa tradução-transcriação de um modo tão terno, doce e existencial. Aluno: Estou atônito, professor. Que fantástico foi o século XX no Brasil. E depois se espalhou pelo mundo. A cordialidade, criatividade e ginga motivaram uma cultura de paz mundial. Professor: Mas não foi sempre assim. Por isto que o disco Tropicália ou Panis et circencis foi o marco desta transformação. Não se esqueça dos golpes militares e da repressão. Esse disco, ou movimento, nasceu desse seio. Mas quebrou a dualidade de pensamento, a dualidade de ação. Todas as músicas refletem não uma aceitação, mas a criação de uma nova epiderme sensorial em que a mutação sofrimento-prazer era instantânea. Foi o primeiro exemplo de tradução visceral onde transformação = tradução e criatividade. Esses gênios da Tropicália do século XX, Gilberto Gil, Caetano, Rogério Duprat, Gal Costa, Os Mutantes, Capinan, Tom Zé, Torquato Neto, mais Jorge Mautner, Luis Melodia, Jorge Ben Jor, Tim Maia, Helio Oiticica, Glauber Rocha e muitos outros, todos formaram uma nova tessitura epidérmica da paz. Por isto que o disco é considerado hoje, ano de 2175, junto com a obra de Guimarães Rosa, os maiores marcos da cultura brasileira. EI, ALUNO, você que estava em êxtase pela Tropicália, agora está dormindo, cochilando. ACORDE. Aluno: Eu estava sonhando com um enorme coração materno de cinco metros de altura e gritando: Venha buscar-me, filho meu, que ainda sou teu, sou teu, sou teu…
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Coração materno Vicente Celestino
Disse um campônio à sua amada: "Minha idolatrada, diga o que quer Por ti vou matar, vou roubar, embora tristezas me causes mulher Provar quero eu que te quero, venero teus olhos, teu porte, teu ser Mas diga, tua ordem espero, por ti não importa matar ou morrer" E ela disse ao campônio, a brincar: "Se é verdade tua louca paixão Parte já e pra mim vá buscar de tua mãe inteiro o coração" E a correr o campônio partiu, como um raio na estrada sumiu E sua amada qual louca ficou, a chorar na estrada tombou Chega à choupana o campônio 26
Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar Rasga-lhe o peito o demônio Tombando a velhinha aos pés do altar Tira do peito sangrando da velha mãezinha o pobre coração E volta à correr proclamando: "Vitória, vitória, tens minha paixão" Mas em meio da estrada caiu, e na queda uma perna partiu E à distância saltou-lhe da mão sobre a terra o pobre coração Nesse instante uma voz ecoou: "Magoou-se, pobre filho meu? Vem buscar-me filho, aqui estou, vem buscar-me que ainda sou teu!"
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Maternal heart Vicente Celestino
A peasant said to his true love: “my darling, tell me what you want For you I’ll kill, I’ll rob, although you make me sad, woman To prove that I love you, that I venerate your eyes, your gait, your being. But tell me, I await your orders, for me it makes no difference to kill or die” And she said to the peasant, in jest: “If your mad passion is true Take leave from me now and bring me your mother’s entire heart.” The peasant rushed off, like a bolt down the road, he was gone His loved one went crazy, falling in tears on the road The peasant arrives at the cabin And finds his dear mother on her knees in prayer The demon rips open her chest The old woman slumps to the foot of the altar He rips the poor heart from the bloody chest of his old mother And runs home proclaiming: “Victory, victory, my passion is all yours” But in the middle of the road he fell down and broke his leg And the poor heart flew out of his hands over the land At that moment a voice echoed: “Were you hurt, my poor son? Come and get me, child, here I am, come and get me because I’m still yours!”
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Student: Is the song “Coração materno” by Vicente Celestino and Jorge Luis Borges? Teacher: No, of course not. Student: Could it be by Vicente Celestino and Caetano Veloso? Teacher: Yes, it could. But with Caetano playing the role of translator-transcreator, a kind of Haroldo-Augusto de Campos, retranslating an era and interiorizing it as a testament and not as a moral convocation built into the intonation of Vicente Celestino. Student: So is it by Vicente Celestino and Nicolai Gogol, the Russian writer? Teacher: Could be. There’s a story by Gogol in which the nose separates itself from the body of which it was part and gets its own personality. Here a maternal heart does the same thing, except induced. But there’s a discrepancy in the timeline, of around one hundred years, between Gogol and Vicente Celestino. But it’s a good parallel. The importance of this song is as a driving force behind change, which comes first as a symbol - that is, as art, then as an interaction with reality. Gogol’s nose is to the Russian revolution what the work of the Marquis de Sade is to the French Revolution. Student: How can one song alone make such a change? Teacher: Not alone. For this there had to be Caetano Veloso’s translation within a general work which was Tropicália and the record Tropicália ou Panis et circencis, which gave a new skin of sensitivity to Brazil and changed its culture and behaviour. Student: But how can the translation of a supposedly tacky and kitsch song bring about such a rush of change? Teacher: This song, tacky and kitsch as you call it, is as tacky and kitsch as Eurypides’ Greek tragedies, Wagner’s operas or the paintings of Andy Warhol. The song’s leitmotiv revolves around unconditional love and passion. Passion is destructive: it is Eros in a spiral pointing toward Thanatos, Death, in this case the final orgasm. Unconditional love, however, is transforming and is very difficult to receive. If you receive unconditional love, you are transformed; there is no more cause and effect, crime and punishment, no more blame and no more ego. It is very difficult to receive because you lose your individuality and become one with the universe. Hence the great transforming and revolutionary potential of this song magnificently translated by Caetano. And unconditional love presents itself in the form of a mother’s speaking heart. Student: I’m sorry, sir, but there’s something I don’t understand. In our era there is no mother-force. Everyone is conceived in a laboratory. If nowadays there is conception between the sperm of the donor and the egg of the receptor, with growth occurring within the body of the woman, it accounts for less than 0.1 % of cases, and even then it’s considered as almost a personality disorder. I can’t understand this bond between a mother and her child. Teacher: To understand this feeling you must undergo sensorial immersion in a time tube so that a whole set of neurons charged with the cultural-temporal heritage of that time can be implanted in your brain. At the time of Celestino’s song, society
was patriarchal-apollonian - full of laws concerning personal property, the epicentre of which was the family governed by the state. Nowadays there is no longer any state, nor patriarchal society, and the family is all of humanity. Today, a woman can donate her eggs, which with other donors of sperm, whether acquainted with the woman or not, can produce foetuses in vitro which are then developed in the uteruses of mechanical mothers. And the newborn are reared by the community. A woman can produce 10,000 children and not know any of them. Student: But sir, can’t you explain to me what it is like to have a mother so I can understand the context of the song? Teacher: Imagine a society so hostile that to survive you must compete and take from other people. Everyone is against you. Love and empathy with others: zero. But you are not alone. You have a family. A father who produced children in your mother, one, two, three, four, five, it doesn’t matter. You have to compete with your father and your siblings to maintain your individuality, more competition. But there is just one place where you can rest: in the unconditional love of your biological mother. It is the only regenerative force that allows you to continue the race. And from this first example you will reproduce this sentiment with other women, until you choose your companion and have children with her and the whole cycle is repeated. Student: Sir, now I understand. Everyone against you and just one person in the world in your favour: your mother. And the sacrifice that the peasant’s girlfriend asked for was the ultimate sacrifice, so that she herself could become both mother and lover. But sir, when a mother was not on her child’s side, what happened? Teacher: At the time there were many witches and wizards that arose to counterbalance the absence of mother-love. They were called psychoanalysts. Student: But why did people think such a profound song to be in bad taste? Teacher: The truth hurts. But don’t forget: those who thought the song to be in bad taste were the generation of the 1960s, high on Bossa Nova and the progeny of recent Brazilian industrialisation. A mentality that was less feudal and patriarchal than the rural society from which Vicente Celestino came. But only the genius of Caetano Veloso, whose roots were in the strongly matriarchal society of Bahia, could achieve this translation-transcreation in such a tender, sweet and existential way. Student: I’m amazed, sir. How fantastic the 20th century in Brazil must have been. And afterwards it spread around the world. Their friendliness, creativity and easy ways were the reasons for the birth of an entire culture of world peace. Teacher: But it hadn’t always been like that. That’s why the record Tropicália ou Panis et circencis was a milestone in this transformation. Don’t forget the military coups and the repression. This record, or movement, was born of this maternal heart. But it broke the duality of thought, the duality of action. All the songs reflect not only an acceptance, but the creation of a new sensory epidermis in which the suffering-pleasure mutation was instantaneous. It was the first example of visceral translation where transformation equals translation and creativity. These geniuses of 20th century Tropicalia: Gilberto Gil, Caetano, Rogério Duprat, Gal Costa, Os Mutantes, Capinam, Tom Zé, Torquato Neto, plus Jorge Mautner, Luis Melodia, Jorge Ben Jor, Tim Maia, Helio Oiticica, Glauber Rocha and many others, all of them formed a new epidermal texture of peace. And it is for this reason that the record is today, in 2175, considered together with the works of Guimarães Rosa, the greatest milestones of Brazilian culture. HEY, STUDENT, you were in ecstasy over Tropicalia, and now you’re sleeping, having a snooze. WAKE UP. Student: I was dreaming about an enormous maternal heart five metres high: Come and find me, my child, I’m still yours, I’m yours, I’m yours…
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O título da canção “Panis et circencis” parte de um lapso. Ou de dois, melhor dizendo. Caetano Veloso, no seu livro Verdade tropical, diz que se lembrava da expressão com “i” - circencis, quando na realidade, o correto é com “se”- circenses. Ele também pensava que a expressão queria dizer algo como “do pão e do circo”, quando, na verdade, seu significado é “do pão e das coisas do circo”. É muito significativo que o título dessa canção, que é também o subtítulo desse disco-manifesto - Tropicália ou Panis et circencis –, tenha derivado de um lapso. O lapso não é exatamente um erro. É, na etimologia, um escorregão da memória. E colapso, poderíamos deduzir, meio poética e meio cientificamente, seria então um lapso coletivo da memória. Freud interpretou o lapso como um momento axial do processo psicanalítico, porque nele é possível vislumbrar aquilo que o paciente procura reprimir pelo discurso consciente. Como se fosse uma falha, um escorregão mais representativo do que a fala controlada, manipulada pelo emissor. Pois foi o que aconteceu. Caetano assumiu seu lapso de forma até algo orgulhosa: “Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação de informações, e faço questão de tratar com naturalidade a assimilação de cultura, retendo dos livros, das aulas, das canções, somente o que me for congenial, e transmitindo somente o que já estiver em mim incorporado. Uma vez disse a Maria Ester Stockler, a propósito das referências presentes no filme que dirigi já nos anos 1980 (O cinema falado): ‘Só tem ali o que sai na urina’”. Talvez não seja mesmo tão importante a diferença entre “do circo” e “das coisas do circo”, e sim o fato de ter ocorrido o escorregão. Afinal, hoje, pode-se dizer que um dos procedimentos discursivos básicos do Tropicalismo tenha sido justamente colapsar o discurso convencional. Fazê-lo escorregar, deixar que escape a urina junto com o tiro certeiro, a água do banho e o bebê. Permitir a saturação, o excesso e o desperdício, porque a economia e o controle lógicos, a essa altura do campeonato, estavam muito mais
localizados na “sala de jantar”, no mundo da produtividade e da funcionalidade. Ou, mais sinteticamente, da caretice. Pois não é algo como um colapso da lógica dizer “sobre a cabeça os aviões/ sob os meus pés os caminhões/aponta contra os chapadões meu nariz?”. E, mesmo assim, esse processo de recorte e colagem monta um retrato do Brasil feito de cacos, o que tantas vezes é bem mais realista do que um Brasil onde as coisas ficam falsamente em seus devidos lugares, ou mesmo em lugares onde gostaríamos que elas estivessem. Na canção “Panis et circenses”, interpretada pelos Mutantes, o mesmo escorregão lógico-linguístico acontece. Nascer e morrer, que poderiam ser a própria representação da vida, passam a ser, ao contrário, as ocupações centrais das pessoas na sala de jantar, aqueles preocupados com o pão e com as coisas do circo. John Lennon já dizia que “a vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos”. Pois é. As pessoas na sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer, são as que estão fazendo planos e mais planos. É preciso lembrar que a expressão panis et circenses foi usada por um imperador romano e que, àquela época, o circo nada tinha da conotação espontânea que adquiriu na Idade Média e também no século XX, tendo sido, inclusive, revalorizado pelo movimento modernista de 1922. O circo, em Roma, era uma apresentação institucionalizada, controlada e expressamente planejada pelo Império para manter o povo distante de qualquer ideia de mobilização política e social, constituindo-se, principalmente, de corridas de cavalos e disputas corporais. Era algo como o correspondente do pão ‑ alimento básico e mínimo (e que era distribuído gratuitamente) ‑ em termos de cultura e entretenimento. Pois “nascer e morrer”, aqui, são exatamente o básico e o mínimo. Como se nascer e morrer, vividos dessa maneira, fossem coisas equivalentes, como continuar a fazer indefinidamente o que se espera que seja feito. Na letra da canção, um “eu”, que quis cantar, soltar os tigres, que mandou fazer um punhal de puro aço luminoso e que quis plantar folhas de sonho nos jardins dos solares, contrapõe-se à terceira pessoa do plural “eles” ou “as pessoas”. “Eu” é mesmo todo aquele que, num lapso existencial, escorrega para fora da sala da jantar e da vida mínima e atende ao chamado do erro. Em O livro do desassossego, Bernardo Soares ‑ um dos heterônimos do poeta
cheio de lapsos, Fernando Pessoa ‑ diz o seguinte: “Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também”1. São as pessoas na sala de jantar que faltam até ao sonho que não têm; nem chegaram a ser um “eu”, quanto mais a ter um grande sonho. Quarenta e dois anos depois de feita a canção e o disco-manifesto, é o caso de se pensar: e será que essa letra e o arranjo antropófago de Rogério Duprat ainda fazem sentido? Diria que fazem muito sentido, sim. Talvez as pessoas da sala de jantar já não sejam as mesmas, nem estejam fazendo as mesmas coisas, nem tampouco o “eu” precise ir tanto atrás de luz: de uma “canção iluminada de sol”, de um “luminoso punhal”, e de “folhas que sabem procurar pela luz”. Há realmente mais luz agora e os “eus” não precisam ser como raízes que sabem “procurar, procurar”, pois tantos deles já vieram à superfície da terra. Mas, para além da lembrança ainda legítima e viva da canção, penso que aumentou a quantidade das pessoas na sala de jantar, como aumentou tudo no mundo. E não só a quantidade, mas a qualidade dos gestos da sala de jantar também mudou. Mesmo assim, não é preciso dizer o que fazem agora as pessoas da sala de jantar. Não é difícil reconhecê-las, elas estão em toda parte. No filme O fantasma da liberdade há uma cena em que Buñuel mostra uma família e seus convidados em torno de uma mesa, numa espécie de jantar formal, e aos poucos vamos percebendo que, ao invés de estarem sentados em cadeiras, todos eles se sentam sobre vasos sanitários e que a atividade principal desse suposto jantar é mesmo cagar. Num determinado momento, uma criança cochicha algo ao ouvido da mãe, que se constrange, e, discretamente, leva o menino a um recinto fechado e pequeno, onde ele, sozinho, se tranca e se dedica então ao ato de comer. Buñuel inverte as atividades de comer e defecar e, nesse processo de inversão escancarada, as identifica, muito em função do ambiente envergonhado e formal em que tudo ocorre. Como se não fizesse diferença comer ou cagar, porque o que importa é o revestimento que recobre o orgânico, o disfarce, o discurso controlado. É por isso que
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Pessoa, Fernando, O Livro do desassossego. Organização de Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 163.
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não cabe jamais perguntar, e muito menos responder, porque, na canção interpretada pelos Mutantes, o amor foi morto às cinco horas na avenida Central. Porque o que conta aqui é justamente o descontrole, o processo claro de inversão, de avessamento, de começar o jantar pelo meio, de dispensar as cerimônias de nascer e de morrer e errar o rumo dado, o que, no caso, é viver, o gesto livre e propenso ao erro, que costuma acontecer entre o nascimento e a morte. Como suportes complementares desse processo de inversão que ocorre na letra da música, estão o arranjo de Rogério Duprat e a interpretação propositalmente singela de Rita Lee. A canção é introduzida pela melodia ícone do Repórter Esso, uma espécie de Jornal Nacional da época, em torno do qual a família de classe média típica se reunia logo após o jantar. Ao invés de notícias, Rita Lee canta: “eu quis fazer minha canção iluminada de sol”, embalada por um trompete entre renascentista e a la Sgt. Pepper’s (lembrando o trompete de “Penny Lane”).Ou seja, o arranjo oscila entre a caretice e o gesto libertário, ou mesmo aguça a força libertária quando se contrapõe tão frontalmente à letra. A melodia segue simples, repetitiva e ingênua, quase como uma canção de roda infantil, até o momento em que sofre algum tipo de falência generalizada e fenece antes de terminar, como se os Mutantes não suportassem mais as pessoas na sala de jantar, espécie de refrão que se repete ad infinitum. Não se pode esquecer que “essas” pessoas na sala de jantar são introduzidas pela conjunção adversativa “mas”, constituindo-se, por causa dela, como uma anteposição à ação libertária desse “eu”, que como o grupo que o interpreta, é “mutante”. O fenecimento da melodia é como uma confissão de “saco cheio” geral. Como se Rita Lee e os outros membros do grupo dissessem: “Assim não dá!”. Logo em seguida, começa a imitação dos ruídos de uma sala de jantar, acompanhada ao fundo pela melodia da valsa das valsas: “Danúbio azul”. E as pessoas da sala de jantar, então, pronunciam seus profundos pareceres: “Passa a salada”, “Me dá mais um pedacinho”. Definitivamente, nascer e morrer nunca foram tão chatos. Atualmente, pode-se dizer que pão e circo não são mais suficientes para calar as “pessoas na sala de jantar”. Nem o poder mais quer tanto calá-las, nem elas são mais tão facilmente caláveis. É até mais difícil fixá-las em tipos únicos. Elas se espalharam mais, estão distribuídas por todas as classes e lugares e muitos dos frequentadores das salas de jantar de antigamente já abandonaram seus postos. Outros foram para lá e alguns, tendo saído, acabaram voltando. Mas a canção “Panis et circencis” se sustenta vivamente como lembrança e como possibilidade. Infelizmente, não faltam novas “salas de jantar”. Felizmente também, não faltarão pessoas e canções, que, como essa, são iluminadas de sol.
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Gilberto Gil e Caetano Veloso Eu quis cantar Minha canção iluminada de sol Soltei os panos, sobre os mastros no ar Soltei os tigres e os leões, nos quintais Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer e morrer Mandei fazer De puro aço luminoso um punhal Para matar o meu amor, e matei 36
Às cinco horas na Avenida Central Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer e morrer Mandei plantar Folhas de sonho no jardim do solar As folhas sabem procurar pelo sol E as raízes procurar, procurar Mas as pessoas na sala de jantar Essas pessoas da sala de jantar São as pessoas da sala de jantar Mas as pessoas na sala de jantar São ocupadas em nascer e em morrer
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Panis et circencis
Gilberto Gil and Caetano Veloso I wanted to sing My sunlit song I released the sails over the masts in the air I released tigers and lions in the backyard But the people in the dining room Are busy being born and dying I had made A shiny dagger of pure steel To kill my love and I killed At five o’clock on Central Avenue But the people in the dining room Are busy being born and dying I had planted Leaves of dreams in the manor garden The leaves know to seek the sun And the roots to search, to search But the people in the dining room These people in the dining room Are people in the dining room But the people in the dining room Are busy being born and dying
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The title of the song “Panis et circencis” was the result of a lapse, or rather, of two. Caetano Veloso, in his book Verdade tropical (Tropical truth), says that he remembered the expression as having an “i” in circencis, when in fact, the correct form is with “e” circenses. He also thought that the expression meant something like “of bread and of the circus”, when in fact its meaning is “of bread and the things of the circus”. The name of the song was corrected, but in the record’s subtitle, the lapse remained. That the subtitle of this record-manifesto -Tropicália ou Panis et circencis - should derive from a lapse is not without significance. The lapse is not exactly a mistake. Etymologically speaking it is a slip of the memory. And collapse, we can deduce, half poetically and half scientifically-speaking, would therefore be a collective lapse of memory. Freud interpreted lapse as an axial moment of the psychoanalytical process, as in it, we can glimpse what the patient is trying to repress in his conscious speech. It is like a fault, a slip that reveals more than does controlled speech, manipulated by the speaker. And that’s what had happened. Caetano admitted his lapse with a certain pride: “I always believed in a sort of organicness in the assimilation of information, and I make a point of treating the assimilation of culture naturally, retaining from books, classes and songs only that which to me is essential, and transmitting only that which I have incorporated. I once said to Maria Ester Stockler, regarding the references in the film I directed in the 80s (O cinema falado - talking movies): ‘There is here only that which has been passed through my urine’”. Perhaps the difference between “of the circus” and “of the things of the circus” is not really so important, but rather it is the fact that a lapse has occurred. After all, nowadays we can say that one of Tropicalism’s basic discursive procedures was precisely to collapse conventional discourse. To make it slip, let the urine escape together with a direct hit, the bathwater and the baby. To allow saturation, excess and waste, because logical economy and control, at this stage of the game, were much more localized in the “dining room”, in the world of productivity and functionality, or, more succinctly, in the “straight” world. Because isn’t it something like a collapse of logic, to say “overhead the planes/ under my feet the trucks/take aim at the plateaus, my nose?”. And, even so, this process of cutting and collage assembles a portrait of Brazil made of fragments, which is often a lot more realistic than a Brazil where things falsely remain in their proper places, or at least in the places where we would like them to be. In the song “Panis et circencis”, performed by the group The Mutantes, the same logical-linguistic slip occurs. Being born and dying, which could be the actual representation of life, becomes, on the contrary, the central concerns of the people in the dining room, those concerned with the bread and the things of the circus. John Lennon has already said that “life is what happens when you’re busy making other plans”. Exactly. The people in the dining room, busy being born and dying, are those that are making more and more plans. We should remember that the expression panis et circencis was used by a Roman emperor and that, at the time, the circus had nothing of the connotation of spontaneity that it acquired in the Middle Ages and also in the 20th century, after being revalorized by the modernist movement of 1922. In ancient Rome, the circus was an institutionalized presentation, controlled and expressly planned by the Empire to keep the people occupied and far from any idea of political and social mobilization, mainly comprising horse races and hand-to-hand combat. It corresponded roughly to bread – a basic and minimal food (and that was distributed free) – in terms of culture and entertainment. Since here, “being born and dying”, is precisely the basic and the minimum. As if being born and dying, lived out in this way, were equivalent things, like continuing to do indefinitely what is expected to be done. In the lyrics of the
song, an “I”, who wanted to sing, set free the tigers, who had ordered a shiny dagger of pure steel to be made and who wanted to plant leaves of dreams in the manor gardens, is in opposition to the third person plural “they” or “people”. “I” really is all that, in an existential lapse, slips outside the dining room and the minimal life and answers the call of error. In O livro do desassossego (The book of disquiet), Bernardo Soares – one of the pen-names of that poet full of lapses, Fernando Pessoa – says the following: “Some people have a great dream in life and are absent from this dream. Others do not have any dream in life, and are absent from that as well”1. They are the people in the dining room who are absent even from the dream they don’t have; they don’t even get to be an “I”, much less have a great dream. Forty-two years after the writing of the song and the recording of the record-manifesto, we can now ask ourselves: do the lyrics and Rogério Duprat anthrophagite arrangement still make sense? I would say that they indeed do make a lot of sense. Perhaps the people in the dining room are no longer the same, neither are they doing the same things, nor does the “I” need to seek so much after the light: of a “song illuminated by the sun”, of a “shiny dagger”, and of “leaves that know how to seek the sun”. There really is more light now and the “I’s” don’t need to be like roots that know how to “search, search”, as so many of them have already reached the earth’s surface. But, beyond the still legitimate and living memory of the song, I think that the number of people in the dining room has increased, as they have increased in the world. And not only the number, but the quality of the gestures in the dining room has also changed. Even so, we don’t have to say what the people in the dining room are doing now. It isn’t difficult to recognize them, they are everywhere. In the film The phantom of liberty there is a scene in which Buñuel shows a family and their guests sat around a table, in a sort of formal dinner, and we slowly realize that, instead of sitting on chairs, they are all sitting on toilet bowls, and the main activity of this supposed dinner is in fact shitting. At a certain point, a child whispers something into his mother’s ear, who becomes embarrassed, and, discreetly, takes the boy to a small, closed room, where, once alone, he locks himself inside and proceeds to eat. Buñuel inverts the activities of eating and defecating and, in this obvious process of inversion, identifies them as a function of the embarrassed and formal atmosphere in which everything happens. As if it made no difference whether they were eating or shitting, because what’s important is the covering obscuring the organic, the disguise, the controlled discourse. And that’s the reason it’s not fitting to ask, and much less answer, why in the song recorded by the Mutantes, love died at five o’clock on Central Avenue. Because what matters here is exactly the lack of control, the clear process of inversion, of reversal, of starting the dinner in the middle, of dispensing with the ceremonies of being born and dying and erring in the given path, which, in this case, is living, free in gesture and ready to err, which is what usually happens between birth and death. As complementary supports to the song’s process of inversion are Rogério Duprat’s arrangement and Rita Lee’s purposefully simple interpretation. The song is introduced by the iconic tune of the Repórter Esso show, a kind of National News of the time, around which the typical middle class family gathered soon after the evening meal. Instead of the news, Rita Lee sings: “I wanted to sing my sunlit song”, driven by a trumpet somewhere between the Renaissance and Sgt. Pepper’s (reminiscent of the trumpet in “Penny Lane”). In other words, the arrangement wavers between being very “unhip” and the liberating gesture, or even emphasizes 1
Pessoa, Fernando, O Livro do Desassossego. Organization by Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 163.
the liberating force when opposing the lyrics so head-on. The melody continues in simple fashion, repetitive and naive, almost like a children’s song, until the moment it suffers some kind of generalized breakdown and dies before ending, as if the Mutantes couldn’t put up with the people in the dining room any longer, a kind of refrain that is repeated ad infinitum. We cannot forget that “these” people in the dining room are introduced by the adversative conjunction “but”, constituting, because of this, a contraposition to the liberating action of this “I”, which like the group performing, is “mutant”. The ending of the melody is like a confession of being “fed up” in general. As if Rita Lee and the other members of the band were saying: “No way!” Soon after this, we hear an imitation of noises in a dining room, accompanied in the background by the melody of that waltz of all waltzes: the “Blue Danube”. And the people in the dining room then pronounce their profound opinions: “Pass the salad”, “give me just a little bit more”. Definitely, being born and dying has never been so tedious. Nowadays, one could say that bread and circuses are no longer enough to silence the “people in the dining room”. Neither are the powers-that-be so intent on silencing them, nor are they so easily silenced. It is also more difficult to pin them down to particular groups. They have spread further, throughout social classes and places and many of those who frequented the dining rooms of old have abandoned their posts. Some have gone there, and others, that had left, have returned. But the song “Panis et circencis” keeps itself alive as a memory and as a possibility. Unfortunately, there is no lack of new “dining rooms”. But fortunately, neither is there any lack of people and songs which, like this one, are illuminated by the sun. 39
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LINDONÉIA
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Lindonéia Viviane Mosé
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I O movimento tropicalista arriscou uma voz totalmente própria, incorporando elementos muito distintos, nas composições, no estilo, no comportamento, da vanguarda europeia ao pop internacional, passando pelo candomblé, pelo samba de raiz, pela Bossa Nova ‑ e daí fez nascer uma bem sucedida síntese. Sem se submeter aos limites da arte culta, da tradicional cultura europeia, muito distante do nosso passado tupiniquim, mas também sem os limites puristas e xenófobos, dos que cultuam somente o primitivo, os tropicalistas deram à luz uma voz brasileira, que na verdade já existia, mas que não sabia ainda muito de si. A ousadia brasileira, a coragem de abrir a boca e lançar os dardos do nosso subdesenvolvimento, foi afirmada por uma geração. O Tropicalismo não foi apenas um movimento de vanguarda, ele atingiu, e essa é uma de suas grandes contribuições, a grande massa. E a década de 1980 teve esse patrimônio como herança. O movimento tropicalista, diz Rogério Duarte, é um momento de um movimento maior que vinha com a semana de arte moderna de 1922, com Oswald de Andrade e o movimento antropofágico, mas também com Lina Bo Bardi, Villa-Lobos, Glauber Rocha, Oscar Niemeyer, Zé Celso, artistas que já se articulavam em torno de uma revolução estética, que teria por fim afirmar uma arte propriamente brasileira. A grande força dos tropicalistas foi a coragem, a audácia de falarem por si mesmos, de se afirmarem. Essa atitude tropicalista foi vivida por artistas como Hélio Oiticica, por exemplo, mas também por pessoas comuns que passaram a se ver refletidas nessa trupe da inventividade moderna. Essa autoestima brasileira, essa crença em si mesma, foi intensificada e incorporada como um patrimônio de todos, na cultura, no cotidiano. Não precisamos nos referenciar a ninguém, podemos falar, criar, construir, a partir do que temos. Podemos ser nosso próprio ponto de partida, desde que sejamos capazes de engolir e digerir nossa própria contradição. A década de 1980 já não tinha dúvidas a respeito dessa voz, que veio do gesto antropofágico de assumirmos nossa mistura, e que pode
ser qualquer voz, do sertanejo ao erudito, do popular... O samba do crioulo doido da contraditória e multifacetada cultura brasileira, como diz Rogério Duarte, agora se orgulhava de si, e se configurava em um movimento único; o Brasil das contradições afirmadas em uma síntese mulata aprendeu que o seu subdesenvolvimento é o terreno de onde brota sua força. Brasil que, como o samba, é “filho da dor e pai do prazer”; Brasil trágico, de onde brota uma gente transbordante e insistente. Caetano não foi o inventor, mas foi o ícone dessa audácia brasileira, nas rádios, nos jornais e revistas, nos programas de TV, invadiu com sua trupe as casas brasileiras, dos bairros nobres aos subúrbios, do Oiapoque ao Chuí. O Tropicalismo foi a liga que faltava para dar unidade à grande e exuberante miscelânea brasileira. II “Ver com olhos livres”, dizia Oswald de Andrade, e isso é o que parece fazer Rubens Gerchman, no quadro que inspirou a música “Lindonéia”, de Caetano e Gil. Gerchman vê a massacrada cultura brasileira, e a coloca no centro. Mais do que uma tragédia brasileira, Lindonéia parece representar a tragédia brasileira, especialmente diante do regime militar. Em um suporte de papel cartão alaranjado, como se fosse uma página de jornal sensacionalista, um título: “UM AMOR IMPOSSÍVEL”. Abaixo, um espelho que tem no centro a imagem desenhada de uma mulher. Lindonéia, a Gioconda do subúrbio, é uma jovem comum, não é bonita nem feia, como a própria Gioconda, e está machucada. Seu rosto tem marcas embaixo do olho esquerdo, ao lado do nariz e na boca. Está desenhada em um estilo pop, em cores alaranjado e preto, e lembra uma serigrafia, uma fotografia 3X4. Como o desenho está colado a um espelho, e faz refletir quem olha, faz parecer que somos a Lindonéia, nós, que a olhamos. Abaixo do espelho a frase: “A BELA LINDONÉIA DE 18 ANOS MORREU INSTANTANEAMENTE”. A vida desperdiçada de Lindonéia pode ser a de todos os jovens oprimidos por um regime que temia o exercício da liberdade de pensamento e de ação. Mortes, pessoas desaparecidas, uma cultura massacrada pelo medo, e pelo preconceito; Lindonéia parece retratar a impossibilidade de expressão, o medo, a morte da cultura. Nem bonita nem
feia, nossa Gioconda do subúrbio, nossa cultura, nossa gente, apanha e se cala. E morre tão jovem. Mas ela não morre, a cultura do brega, do pop, da Bossa Nova, do samba, porque renasce impressa no jornal, e no quadro, e perdura como imagem. Então, aquele quadro parece dizer, “vamos nos apropriar da cultura, sem medo dos puristas nem dos elitistas, sem medo de ser brega”. Essa estética afirmativa, corajosa, que mistura várias referências, e aparece em uma síntese inovadora e vivaz, encantou Nara Leão ‑ eu imagino, devido a essa contradição entre a temática da dor e do silêncio, presentes no quadro, em contraste com a estética vigorosa e afirmativa, que ignora antigas fronteiras e dogmas. Popularizado na música dos tropicalistas, esse trabalho se tornou o símbolo de uma geração. Nara Leão ficou impressionada com o quadro e pediu a Caetano e Gil que fizessem uma canção. Na canção, Lindonéia não está explicitamente morta, mas desaparecida. Na frente do espelho Sem que ninguém a visse Miss Linda, feia Lindonéia desaparecida O desaparecimento de pessoas e a impossibilidade de falar abertamente sobre isso transparecem na tristeza presente nesta música. A palavra desaparecida, que se repete várias vezes, como um mantra, introduz uma angústia que não está presente no quadro: lá, Lindonéia foi assassinada, e a dor é explícita; na canção ela está desaparecida. O desaparecimento, o desconhecimento, produz um vazio, uma ferida sem corpo, que não cicatriza, uma dor aberta, sangrando. Despedaçados Atropelados Cachorros mortos nas ruas Policiais vigiando O sol batendo nas frutas Sangrando
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O bolero, com um arranjo kitsch, cantado com a suavíssima e afinada voz da Nara, contrastam com a angústia do desaparecimento, e aumentam essa sensação de vazio, de não saber o que está acontecendo, em uma sociedade cheia de porões. As ruas eram duras. Pessoas desaparecidas. Tudo sangrando. Lindonéia, cor parda Fruta na feira Lindonéia solteira Lindonéia, domingo Segunda-feira E ela, uma mulher brasileira, comum, corriqueira, vive sua tragédia pessoal. Ela olha no espelho e sonha com o que não vem. Sem o altar, sem o prazer, sem conhecer o progresso, tão anunciado na época, sem o sucesso, Lindonéia desaparece. Tão nova. E lembra a espera dos desaparecidos, mas lembra também os sonhos desperdiçados, a ilusão de um futuro e de um progresso que não chegará, ao menos não para todos.
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Lindonéia desaparecida Na igreja, no andor Lindonéia desaparecida Na preguiça, no progresso Lindonéia desaparecida Nas paradas de sucesso Mas Lindonéia agora retorna, viva, no quadro. Do outro lado do espelho, na página policial, ela retorna como imagem, morta. E aqui a arte fala de si mesma, fala da possibilidade de criar, de refletir, como no espelho, e da vontade de interferir, recriando a realidade. E por aqui, nas ruas, parece dizer o poeta, pessoas desaparecidas, outras com medo, tudo sangrando, e eu assistindo a tudo, sozinho. O poeta interfere, assumindo seu olhar, se desdobrando. E em uma cadeia de desdobramentos, a tragédia brasileira é passada em revista: Lindonéia moça é assassinada, mas renasce como imagem impressa no jornal (que na verdade é um desenho), e se desdobra como quadro, posta sobre o espelho e enquadrada na moldura, que, por sua vez se desdobra na voz do poeta que vê o quadro, vê o mundo, se vê. Lindonéia é um símbolo, produto do acúmulo de várias camadas de sentido, que conversam entre si e mantém viva a capacidade comunicativa e interpretativa desta imagem. No avesso do espelho Mas desaparecida Ela aparece na fotografia Do outro lado da vida Despedaçados, atropelados
Cachorros mortos nas ruas Policiais vigiando O sol batendo nas frutas Sangrando Oh, meu amor A solidão vai me matar de dor Vai me matar Vai me matar de dor Lindonéia é um fragmento da paisagem urbana, impressa em uma foto de jornal, um pedaço de papel, um pedaço da cidade, uma vida arrancada do anonimato pela tragédia. Mas todos somos Lindonéia, somos mais um nessa sociedade massificada, somos ninguém, até que a arte nos ressalte, ou a morte nos assalte, em imagem. Lindonéia é uma excelente representação da miscelânea crítico-afirmativa que marcou a Tropicália. Um bolero, cantado pela musa da Bossa Nova; inspirado no universo das artes plásticas, no trabalho de um artista que mistura o bom e o mau gosto, o novo e o antigo; com uma letra nada convencional, fragmentada, parece ser uma reflexão sobre as feridas brasileiras, sobre sua autoestima, e também sobre o massacre da cultura brasileira, pela pobreza, pelo regime militar. Ao mesmo tempo é uma afirmação estética, uma transgressão, essa Gioconda do subúrbio, porque alegra, ironiza, brinca com as possibilidades, amplia os limites, estimula o pensamento e a criação, nos redime como terceiro mundistas, como artistas, como cidadãos, ao mesmo tempo ferida, machucada, ao mesmo tempo honrada em uma moldura. Representa, com sua tragédia pessoal, a cotidiana tragédia do país, massacrado pelos grandes e pelos pequenos poderes, o Brasil dos eternos contrastes e desigualdades, das riquezas e possibilidades. As duas Lindonéias, tanto a do quadro como a da canção, em suas diversidades como potência interpretativa, parecem, no entanto, ter em comum uma louvação às Giocondas do subúrbio, à cultura e à arte brasileiras. Gosto muito do modo como Rogério Duarte pensa. O samba do crioulo doido amadureceu com o Tropicalismo e se configurou em uma nova forma de pensamento, que não pôde ser absorvida nem pela direita nem pela esquerda. Mais do que defender uma posição política, o Tropicalismo plantou uma nova atitude: afrontar a realidade brasileira por meio de uma perspectiva crítica e ao mesmo tempo afirmativa. A síntese tropicalista, feita a partir de elementos tão díspares quanto profícuos, resultou em uma totalidade, em uma capacidade de agregar, ou, em uma palavra deste século, de conectar, que pode servir de referência para novas e audaciosas possibilidades, não somente para o Brasil, mas para o mundo. Eu concordo, e faço coro com os que acreditam que o Brasil, não apenas por ser miscigenado, mas por já ser uma síntese muito bem sucedida dessa mistura, dessa miscigenação, possa ser a resposta mais universal e agregadora para um mundo que se desintegra.
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Lindonéia
Gilberto Gil e Caetano Veloso Na frente do espelho
Lindonéia desaparecida
Sem que ninguém a visse
Na igreja, no andor
Miss
Lindonéia desaparecida
Linda, feia
Na preguiça, no progresso
Lindonéia desaparecida
Lindonéia desaparecida Nas paradas de sucesso
Despedaçados
Ah, meu amor
Atropelados
A solidão vai me matar de dor
Cachorros mortos nas ruas
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Policiais vigiando
No avesso do espelho
O sol batendo nas frutas
Mas desaparecida
Sangrando
Ela aparece na fotografia
Oh, meu amor
Do outro lado da vida
A solidão vai me matar de dor
Despedaçados, atropelados Cachorros mortos nas ruas
Lindonéia, cor parda
Policiais vigiando
Fruta na feira
O sol batendo nas frutas
Lindonéia solteira
Sangrando
Lindonéia, domingo Segunda-feira
Oh, meu amor A solidão vai me matar de dor Vai me matar Vai me matar de dor
Copyright (1968) by Musiclave Editora Musical Ltda / Gege Edições Musicais Ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo). Todos os direitos reservados.
Lindonéia
Gilberto Gil and Caetano Veloso In front of the mirror
Lindonéia has disappeared
Nobody around to see her
In the church, on the bier
Miss
Lindonéia has disappeared
Pretty, ugly
In the sloth, in the progress
Lindonéia disappeared
Lindonéia has disappeared In the hit parade
Ripped to pieces
Ah, my love
Run over
The loneliness will kill me from pain
Dead dogs in the streets Policemen surveiling
On the mirror’s other side
The sun beating down on the fruit
But disappeared
Bleeding
She appears in the photograph
Oh, my love
From the other side of life
The loneliness will kill me from pain
Ripped to pieces, run over Dead dogs in the street
Lindonéia, color brown
Police surveilling
Fruit at the market
The sun beating down on the fruit
Lindonéia, single
Bleeding
Lindonéia, Sunday Monday
Oh, my love The loneliness will kill me from pain Will kill me Will kill me from pain
Copyright (1968) by Musiclave Editora Musical Ltda / Gege Edições Musicais Ltda (Brazil and South America) / Preta Music (rest of the world). All rights reserved.
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Lindonéia Viviane Mosé
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I The Tropicalist movement risked speaking with its own voice, incorporating very different elements, in the compositions, the style, the behaviour, from the European vanguard to international pop, on the way taking in candomblé, the roots of samba, Bossa Nova – and from it producing a successful synthesis. Without submitting to the limits of cultured art, of traditional European culture, very distant from our Tupiniquim past, but also without the purist and xenophobic limitations of those who only cultivate the primitive, the Tropicalists gave birth to a Brazilian voice, which in fact already existed, but which didn’t yet know much about itself. Brazilian audacity, the courage to open one’s mouth and spit out the darts of our underdevelopment, was declared for a generation. Tropicalism was not just a movement of the vanguard, it reached the masses, and this is one of its great contributions. The decade of the 1980s had this wealth as its inheritance. The Tropicalist movement, says Rogério Duarte, was a moment of a greater movement that began with the modern art week of 1922, with Oswald de Andrade and the anthropophagic movement , but also with Lina Bo Bardi, Villa-Lobos, Glauber Rocha, Oscar Niemeyer, Zé Celso, artists that were already involved in an aesthetic revolution, which would end up as the statement of an art that was properly Brazilian. The great strength of the Tropicalists was the courage, the audacity to speak for themselves, to affirm themselves. This Tropicalist attitude was experienced by artists such as Hélio Oiticica, for example, but also by common people who came to see themselves reflected in this troupe of modern inventiveness. This Brazilian self-esteem, this belief in oneself, was intensified and incorporated as a heritage that belonged to all, in the culture, in daily life. We didn’t need to seek references from anybody else, we could speak, create, build, from what we already had. We could be our own point of departure, as long as we were able to swallow and digest our own contradictions. The decade of the 1980s no longer had any doubts regarding this voice, which came from the anthropophagic gesture of accepting our mixture, and which could be any voice, from the sertanejo to the erudite, the popular... the “samba do crioulo doido”, of Brazil’s contradictory and multifaceted culture, as Rogério Duarte says, was now proud of itself, and formed a unique movement; the Brazil of declared contradictions in a mixture of races learned that its underdevelopment was the ground from which its strength had sprung. Brazil which, like samba, is the ”child of pain and the father of pleasure”; tragic Brazil, from which springs an overflowing and insistent people . Caetano was not the inventor, but he was the icon of this Brazilian audacity, on the radio, in the papers and magazines, on TV programs, he invaded Brazilian homes with his troupe, from wealthy neighbourhoods to city fringes, from Oiapoque to Chuí. Tropicalism was the alloy that had been missing to bring unity to the great and exuberant Brazilian miscellany.
II “Seeing with open eyes”, said Oswald de Andrade, and this it seems is what Rubens Gerchman does in the painting that inspired the song “Lindonéia”, by Caetano and Gil. Gerchman sees the Brazilian culture crushed, and places it in the centre. More than a Brazilian tragedy, Lindonéia seems to represent the Brazilian tragedy, especially when faced with the military regime. In a frame of orange cardboard, as if it were a page from a sensationalist newspaper, with the title: “AN IMPOSSIBLE LOVE”. Below, a mirror which in its centre has the drawn image of a woman: Lindonéia, the Mona Lisa of the city fringes, is an ordinary young woman, neither pretty nor ugly, like Mona Lisa herself, and she’s been abused. Her face has marks below the left eye, by the side of the nose and on her mouth. She’s drawn in a pop style, in orange and black, looking like a silkscreen, a 3X4 photograph. Since the drawing is stuck to the mirror, and reflects those who are looking, it appears that it is we who are Lindonéia, we who are looking at her. Below the mirror is the sentence: “BEAUTIFUL LINDONÉIA, 18 YEARS OLD, DIED INSTANTLY”. The wasted life of Lindonéia could be that of all the young people oppressed by a regime that feared the expression of free thinking and action. Deaths, disappeared people, a culture crushed by fear and by prejudice; Lindonéia seems to portray the impossibility of expression, fear, the death of culture. Neither pretty nor ugly, our Mona Lisa of the city fringes, our culture, our people, gets beaten and keeps quiet. And dies so young. But it doesn’t die, this culture of tackiness, of pop, of bossa nova, of samba, because it is reborn printed in the press, and in the picture, lasting as an image. The picture therefore seems to be saying, “lets take over culture, without fear of the purists or the elitists, without fear of seeming tacky”. This declaratory aesthetic, courageously mixing together different references in an innovative and lively synthesis, captivated Nara Leão – I imagine, due to the contradiction between the theme of pain and silence, present in the picture, contrasting with the vigorous and declaratory aesthetic, ignoring old divisions and dogmas. Popularized in the music of the Tropicalists, the picture became the symbol of a generation. The picture left an impression on singer Nara Leão and she asked Caetano and Gil to compose a song. In the song, Lindonéia is not explicitly dead, but “disappeared”. In front of the mirror Nobody around to see her Miss Pretty, ugly Lindonéia disappeared The disappearance of people and the impossibility of talking openly about it is apparent in the sadness in this song. The word disappeared, repeated various times, like a mantra, introduces an anguish that isn’t present in the picture: there, Lindonéia has been murdered, and the pain is explicit; in the song she has disappeared. The disappearance, the lack of knowing, produces an emptiness, a disembodied wound, which doesn’t heal, an open pain, bleeding.
Ripped to pieces Run over Dead dogs in the streets Police surveiling The sun hitting the fruit Bleeding The bolero, with a kitsch arrangement, sung in Nara’s very soft finely-tuned voice, contrasts with the anguish of the disappearance, and increases the feeling of emptiness, of not knowing what is happening, in a society full of basements. The streets were hard. People “disappeared”. Everything was bleeding. Lindonéia, color brown Fruit at the market Lindonéia, single Lindonéia, Sunday Monday And she, an ordinary, everyday Brazilian woman, lives out her personal tragedy. She looks in the mirror and dreams of what doesn’t come. Without the altar, without the pleasure, without knowing the progress so spoken of at the time, without the success, Lindonéia disappears. So young. She reminds us of waiting for the disappeared, but also reminds us of the wasted dreams, the illusion of a future and of a progress that would never come, at least not for all. Lindonéia has disappeared In the church, on the bier Lindonéia has disappeared In the sloth, in the progress Lindonéia has disappeared In the hit parade But Lindonéia now returns, alive, in the picture. From the other side of the mirror, on the crime page, she returns as an image, dead. And here art speaks of itself, speaks of the possibility of creating, of reflecting, like the mirror, and makes us want to interfere, recreating reality. And here, in the streets, the poet seems to say, people disappeared, others feel the fear, everything bleeding, and I’m seeing it all, alone. The poet interferes, assuming responsibility for his gaze, unfolding. And in a chain of metamorphoses, the Brazilian tragedy is revisited: Lindonéia is murdered as a young woman, but is reborn as an image in a newspaper (which in reality is a drawing), and metamorphoses into a picture, stuck on a mirror and enclosed in a frame, which in turn, metamorphoses into the voice of the poet who sees the picture, sees the world, sees himself. Lindonéia is a symbol, a product of the accumulation of various layers of feeling, which dialogue with each other and keep alive the communicative and interpretative capacity of this image.
On the mirror’s other side But disappeared She appears in the photograph From the other side of life Ripped to pieces, run over Dead dogs in the street Police surveilling The sun beating down on the fruit Bleeding Oh, my love The loneliness will kill me from pain Will kill me Will kill me from pain Lindonéia is a fragment of the urban landscape, printed as a newspaper photograph, a piece of paper, a piece of the city, a life snatched out of anonymity by tragedy. But we are all Lindonéia, we are one more in this massified society, we are no-one, until art makes us stand out or death assaults us, in an image. Lindonéia is an excellent representation of the critical-declaratory miscellany that marked Tropicália. A bolero, sung by the muse of Bossa Nova; inspired by the universe of the visual arts, by the work of an artist who mixes good and bad taste, the new and the old; with very unconventional fragmented lyrics, it seems to be a reflection on Brazil’s wounds, on its self-esteem and also on the massacre of Brazilian culture, by poverty, by the military regime. At the same time it is an aesthetic declaration, a transgression, this Mona Lisa of the city fringes, as it ironically makes us happy, playing with the possibilities, expanding the limits, encouraging thought and creativity, redeeming us as people of the third world, as artists, as citizens, at the same time wounded, hurt, but honoured in a frame. It represents, with its personal tragedy, the everyday tragedy of the country, massacred by large and small powers, the Brazil of eternal contrast and inequality, of riches and possibilities. The two Lindonéias, both that of the picture and that of the song, in their diversities as an interpretive power, seem, nevertheless, to praise the Mona Lisas of the city fringes, Brazilian culture and arts. I very much like how Rogério Duarte thinks. The samba “do crioulo doido” (literally, the crazy black guy’s samba) matured with Tropicalism and formed a new way of thinking, that couldn’t be assimilated by either the right or the left. More than defending a political position, Tropicalism implanted a new attitude: facing Brazilian reality from a critical, yet at the same time affirmative, perspective. The Tropicalist synthesis, made from elements as disparate as they were useful, resulted in a totality, in an ability to bring together, or, in a word from this century, to connect, that can serve as a reference for new and audacious possibilities, not only for Brazil, but for the world. I agree, and join voices with those who believe that Brazil, not only for being racially mixed, but for being a successful example of this mixture, could be the most universal and unifying answer for a world in disintegration.
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PARQUE
INDUSTRIAL
Parque industrial Christopher Dunn
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A Tropicália pode ser entendida como a lógica cultural da modernização conservadora (modernização que, por sua vez, pode ser definida como o processo de desenvolvimento desigual e autoritário promovido pelo regime militar). Tal observação pode parecer um disparate leviano à primeira vista, uma vez que os tropicalistas sempre se posicionaram radicalmente contra a ditadura, suas bases ideológicas e o estado de segurança nacional que implantou. Esse mesmo regime prendeu Caetano e Gil para depois exilá-los e, mais tarde, chegou a torturar Zé Celso, o grande diretor do Teatro Oficina. Mas não foi à toa que os tropicalistas foram atacados em 1968 também por setores da esquerda, que viam com desconfiança suas experiências sonoras com guitarras elétricas, sua aproximação com o rock internacional e suas complexas alegorias da modernidade brasileira. Daí a ambiguidade das canções tropicalistas, que exibiam evidente fascinação com a cidade em transformação, a expansão da mídia e a criação de novos mitos massificados, sem abrir mão de um olhar crítico sobre essas mudanças profundas. Entender a Tropicália como lógica cultural da modernização conservadora, portanto, não quer dizer que os tropicalistas endossassem esse modelo de desenvolvimento. É dizer, simplesmente, que tomaram esse contexto como ponto de partida para uma reflexão crítica sobre o Brasil contemporâneo e inspiraram-se nele para criar novos procedimentos formais, radicalmente híbridos e injetados com uma dose de ironia, ora alegre, ora corrosiva. A primeira estrofe de “Parque industrial”, a única composição de Tom Zé do disco-manifesto, Tropicália, ou Panis et circencis, capta bem a ironia tropicalista perante a modernização dos generais. Com os arranjos e cadência de uma banda militar, a canção evoca um desfile cívico, abrindo com uma das letras mais cortantes da música tropicalista: Retocai o céu de anil Bandeirolas no cordão Grande festa em toda a nação Despertai com orações O avanço industrial Vem trazer nossa redenção. O emprego da segunda pessoa do plural do imperativo afirmativo anuncia a “Voz do Vós”, a palavra de Deus na boca do padre ou a palavra do Estado na boca de um político exaltado. O vós imperativo sustenta o verbo que exorta, interpela e seduz como no famoso samba-exaltação de Assis Valente: “Brasil, esquentai vossos pandeiros,/ iluminai os terreiros que nós queremos sambar”. Esse modo, que há muito tempo caiu em desuso coloquial, anuncia aquilo que é transcendente — os mitos religiosos,
os símbolos nacionais e a própria natureza. A primeira frase de “Parque industrial” desconstrói tudo isso. O famoso “céu de anil”, bordão querido dos ufanistas novecentistas citado no hino oficial da Marinha Brasileira, não é eterno e transcendente: precisa ser retocado. De imediato, a canção estabelece uma relação imanente com a natureza, revelando seus usos ideológicos pelo regime durante a época do “Brasil grande”. Há ainda uma segunda ironia, que passa pela crítica propriamente ecológica: o avanço industrial trouxe também a poluição ambiental que paira sobre São Paulo, fazendo com que o céu da cidade precise de uns “retoques”. A Tropicália foi um movimento que, de modo geral, abraçou a indústria cultural e a cultura de massa que tanto incomodavam outros artistas de esquerda naquela época. O ambiente urbano-industrial de São Paulo, que então suplantava o Rio como polo central de entretenimento de massa, da publicidade e da produção cultural, foi importante para o projeto tropicalista. De todos os tropicalistas, Tom Zé se mostrava o mais fascinado com a experiência existencial na cidade grande, o tema central de seu primeiro disco solo, lançado pelo selo Rosenblit em 1968, que apresenta outra versão de “Parque industrial”, com arranjos de Damiano Cozzela. Esse LP chega a ser um verdadeiro disco conceitual sobre a vida urbana, a indústria pesada, o trânsito, a propaganda de massa, o consumo desenfreado em canções cujos títulos dizem tudo — “Catecismo, creme dental e eu”, “Não buzine que estou paquerando”, “Sem entrada, sem mais nada” e o famoso hino a sua cidade adotada, “São São Paulo”, que ganhou o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record em 1968. Entre os tropicalistas, Tom Zé também foi o mais crítico e cético em relação à modernidade capitalista da cidade grande. Uma chave para entender “Parque industrial” é seu texto para a contracapa de seu disco solo em que declara que “Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade”. A felicidade chega a ser um fardo para o cidadão urbano, seduzido pelas promessas do consumo estimulado pela propaganda, mas rodeado por miséria e desigualdade social: “Hoje, industrializado, procurado, fotografado, caro (às vezes), o sorriso vende. Vende creme dental, passagens, analgésicos, fraldas, etc. E como a realidade sempre se confundiu com os gestos, a televisão prova diariamente, que ninguém mais pode ser infeliz”. Tom Zé flagra aqui a defasagem entre a promessa da felicidade da propaganda moderna e a realidade social que excluía milhões de cidadãos sem o poder aquisitivo para desfrutar desses produtos. Daí a ironia mordaz da segunda estrofe: Tem garota propaganda Aeromoça e ternura no cartaz Basta olhar na parede
Minha alegria num instante se refaz Pois temos o sorriso engarrafado Já vem pronto e tabelado É somente folhear e usar. O próprio signo corporal e expressivo da alegria — o sorriso — torna-se mais um produto embalado para vender. Além de ser um produto vendável, a canção sugere que a alegria é escassa, talvez fora do alcance para aqueles que não têm recursos suficientes. Estamos longe da espontaneidade despreocupada de “Alegria, alegria”. No disco Tropicália ou Panis et circencis, “Parque industrial” é cantado em coro com destaque para as vozes de Gil e Caetano. Tom Zé canta uma única estrofe que faz uma referência à imprensa popular que então crescia nas cidades grandes: A revista moralista Traz uma lista dos pecados da vedete E tem jornal popular que Nunca se espreme Porque pode derramar Outra imagem surrealista: o jornal literalmente derrama com fofocas e boatos. A estrofe final cantada por Gil, completa a ideia, lembrando ainda que a imprensa popular também traz notícias sensacionalistas de violência urbana:
É um banco de sangue encadernado Já vem pronto e tabelado É somente folhear e usar Imagino que tenham sido essas imagens que tanto assustaram o animador de televisão, Flávio Cavalcanti, que certa vez declarou furioso que “Parque industrial” não era música! A primeira vez que encontrei Tom Zé, uns vinte anos atrás, falamos sobre “Parque industrial” e ele me disse que a canção “fazia uma gozação com o tipo de político que dizia que o parque industrial ia salvar-nos de tudo. Se não tiver uma alma criadora, uma alma que seja capaz de concepções, o próprio parque industrial falirá dentro de pouco tempo”. Sem dúvida, a canção permanece como uma das grandes sátiras do sonho desenvolvimentista, mas, ao mesmo tempo, não defende uma visão bucólica da economia nacional. Na mesma ocasião, ele me disse que “nós tínhamos paixão pelo parque industrial”. Até hoje, quando canta essa música ao vivo, Tom Zé gosta de contar uma cena de sua infância no interior da Bahia: ao sentar no vaso sanitário e reparar a frase Made in England escrita na porcelana, passou pela sua cabeça que “estava cagando no Reino Unido”. Foi essa lembrança que inspirou o famoso refrão da canção: “Porque é made, made, made/, made in Brazil.” Em 1968, o Brasil já estava produzindo seus próprios carros, enlatados, eletrodomésticos e, é claro, vasos sanitários. E toda esta produção industrial foi motivo de certo orgulho, sugerido pela frase Made in Brazil. Mas sem o que ele chama de “alma criadora”, então reprimida pelo regime militar, essa produção sai desperdiçada, “pelo buraco”.
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Parque industrial Tom Zé
Retocai o céu de anil
A revista moralista
Bandeirolas no cordão
Traz uma lista dos pecados da vedete
Grande festa em toda a nação.
E tem jornal popular que
Despertai com orações
Nunca se espreme
O avanço industrial
Porque pode derramar.
Vem trazer nossa redenção. É um banco de sangue encadernado Tem garota-propaganda
Já vem pronto e tabelado,
Aeromoça e ternura no cartaz,
É somente folhear e usar,
Basta olhar na parede,
É somente folhear e usar.
Minha alegria Num instante se refaz Copyright (1968) by Musiclave Editora Musical Ltda. Todos os direitos reservados.
Pois temos o sorriso engarrafado Já vem pronto e tabelado É somente requentar E usar, 54
É somente requentar E usar, Porque é made, made, made, made in Brazil. Porque é made, made, made, made in Brazil. Retocai o céu de anil Bandeirolas no cordão Grande festa em toda a nação. Despertai com orações O avanço industrial Vem trazer nossa redenção.
Industrial park Tom Zé
Retouch ye the blue sky
We have the bottled smile
Banners on the string
It comes ready and priced
Great festivities across the nation.
Just reheat
Awaken ye with prayers
And use
Industrial progress
Just reheat
Has come to redeem us.
And use Because it’s made, made, made, made in Brazil
There are cover girls
Because it’s made, made, made, made in Brazil
Airline stewardesses and tenderness on the billboard Just by looking at the wall
Retouch ye the blue sky
My joy instantly returns
Banners on the string Great festivities across the nation. Awaken ye with prayers Industrial progress Has come to redeem us. The moralizing magazine Presents a list of the starlet’s sins And there’s the tabloid journal that You must not squeeze Because it can spill It’s a blood bank in print It comes ready and priced, Just browse and use, Just browse and use.
Copyright (1968) by Musiclave Editora Musical Ltda. Todos os direitos reservados.
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Retouch ye the blue sky Banners on the string Great festivities across the nation. Awaken ye with prayers Industrial progress Has come to redeem us. The use of the second person plural of the imperative affirmative announces the “Voice of Ye”, the word of God in the mouth of a priest or the word of the State in the mouth of an exalted politician. The imperative ye sustains the verb which exhorts, challenges and seduces as in the famous samba-exaltation of Assis Valente: “Brazil, warm-ye thy tambourines/ illuminate the yards as we wish to dance samba”. This way of speaking, which fell into colloquial disuse a long time ago, announces that which is transcendental — the religious myths, the national symbols and nature itself. The first line in “Parque Industrial” deconstructs all this. The famous “indigo sky”, the catchphrase beloved of 19th century nationalists cited in the official anthem of the Brazilian Navy, is not eternal and transcendental: it needs to be retouched. Immediately, the song establishes an inherent relationship with nature, revealing its ideological usage by the regime during the time of “Great Brazil”. There is also a second irony, which has to do with real environmental criticism: industrial progress has also brought the environmental pollution that hangs over São Paulo, causing the city’s skies to be in need of “retouching”. Tropicália was a movement which, in a general way, embraced the industrial culture and mass culture that so upset other artists of the left at the time. The urban-industrial environment of São Paulo, which was then supplanting Rio as the hub for mass entertainment, advertising and cultural production, was important for the Tropicalist project. Of all the Tropicalists, Tom Zé was the most fascinated by the existential experience in the big city, the central theme of his first solo record, released on the Rosenblit record label in 1968, which has a different ver-
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Industrial Park Christopher Dunn Tropicália can be understood as the cultural logic of the conservative modernization of Brazil (a modernization, which, in turn, can be defined as the unequal and authoritarian development process promoted by the military regime). Such an observation could be considered nonsense at first sight, given that the Tropicalists always positioned themselves as radically against the dictatorship, its ideological foundations and the state of national emergency that they implemented. This same regime arrested Caetano and Gil and then sent them into exile, and later, even tortured Zé Celso, the great director of the Teatro Oficina. But it wasn’t an accident that the Tropicalists were attacked in 1968 also by sectors of the left, who viewed with mistrust their musical experiments with electric guitars, their relationship with international rock and their complex allegories of Brazilian modernity. Hence the ambiguity of the Tropicalist songs, which exhibited an evident fascination with the city in transformation, the expansion of the media and the creation of new massified myths, without letting go of their critical view of these profound changes. Understanding Tropicália as the cultural logic of conservative modernization, therefore, does not mean that the Tropicalists endorsed this development model. It simply means that they took this context as a starting point for a critical reflection on contemporary Brazil and inspired themselves with it to create new formal procedures, radically hybrid and injected them with a dose of irony, at times joyful, at times corrosive The first verse of “Parque industrial”, the only composition by Tom Zé on the record-manifesto, Tropicália, ou Panis et circencis, captures well the Tropicalist irony when faced with the generals’ modernization. With the arrangements and cadence of a marching band, the song is evocative of a civic parade, opening with one of the most cutting lyrics in Tropicalist music:
endorse the promise of happiness through consumerism for an upwardly mobile urban middle class. The urbane flaneur who walks “against the wind, with neither handkerchief nor identification” in the famous song by Caetano Veloso feels joy in the mere act of observing the visual feast that is city life. Without totally denying this promise, “Parque industrial” suggests that it is limited and even surreal, as shown by the next verse: We have the bottled smile It comes ready and priced Just reheat And use The actual corporal sign that expresses happiness — the smile — becomes just another product packaged for consumption. Besides being a sellable item, the song suggests that happiness is a scarce commodity, perhaps out of reach for those who don’t have sufficient money. We are far from the carefree spontaneity of “Alegria, alegria”. On the record Tropicália, ou Panis et circencis, “Parque industrial” is sung by a chorus , with the voices of Gil and Caetano standing out. Tom Zé sings just one verse that makes reference to the popular press growing in big cities at the time:
sion of “Parque industrial”, arranged by Damiano Cozzela. This LP actually is a concept record on urban living, the heavy industry, the traffic, the advertising for the masses, the unchecked consumerism in songs whose titles say it all — “Catechism, toothpaste and me”, “Don’t honk, I’m flirting”, “Without entrance, without anything” and the famous hymn to his adopted city, “São São Paulo”, which won TV Record’s Brazilian Popular Music Festival in 1968. Of the Tropicalists, it was also Tom Zé who was the most critical and sceptical about the capitalist modernity of the big city. A key to understanding “Parque industrial” is the text for the liner notes of his solo record in which he declares that “We are an unhappy people, bombarded by happiness”. The happiness is even a burden for the urban citizen, seduced by the promises of consumerism stimulated by advertising, but surrounded by poverty and social inequality: “Nowadays, industrialized, sought after, photographed, expensive (sometimes), the smile sells. Sells like toothpaste, travel tickets, pain killers, diapers, etc. And since reality has always been confused with gestures, television is daily proof that nobody can be unhappy any longer ”. Tom Zé here exposes the gap between the promise of happiness offered by modern advertising and the social reality that excludes millions of citizens without the purchasing power to enjoy these products. Hence the irony of the second verse: There are cover girls Airline stewardesses and tenderness on the billboard Just by looking at the wall My joy instantly returns How many Brazilians in 1968 had the money to travel by plane? Could it be that the mere idea of traveling by plane and being welcomed by an air stewardess could bring happiness to someone who could only dream of such mobility and comfort? Or is it an illusion that ends in frustration? Various Tropicalist songs
The moralizing magazine Presents a list of the starlet’s sins And there’s the tabloid journal that You must not squeeze Because it can spill Another surreal image: the newspaper literally spilling gossip and rumors. The last verse, sung by Gil, completes the idea, reminding us further that the tabloid press also brings us sensationalist news of city violence: It’s a blood bank in print It comes ready and priced Just browse and use, Just browse and use. I imagine it must have been these images that so scared the TV host, Flávio Cavalcanti, who once declared in fury that “Parque industrial” wasn’t music! The first time I met Tom Zé, some twenty years ago, we spoke about “Parque industrial” and he told me that the song “was a send-up of the kind of politician who said that industrialization was going to save us all. If we don’t have a creative soul, a soul able to conceive, industry itself will quickly collapse”. Without a doubt, the song remains as one of the great satires on the developmental dream, but, at the same time, it doesn’t support a bucolic view of the Brazilian economy. On the same occasion, he said to me “we had a passion for industrialization”. Even today, when he performs this song live, Tom Zé likes to tell a story of when he was a child in the interior of Bahia: upon sitting on the toilet bowl and seeing the phrase Made in England written on the porcelain, it flashed through his mind that he was “shitting on the United Kingdom”. It was this memory that inspired him to write the song’s famous chorus: “Because it’s made, made, made/ Made in Brazil.” In 1968, Brazil was already producing its own cars, canned products, household electronics, and, of course, toilet bowls. And all this industrial production was the motive for a certain pride, suggested in the phrase “Made in Brazil”. But without what he calls the “creative soul”, at the time repressed by the military regime, this production is wasted, “down the toilet”.
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GELEIA
GERAL
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Geleia geral Bené Fonteles
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O disco Tropicália teve para mim, de imediato, a mesma força de revolução musical que o disco Chega de saudade de João Gilberto havia tido, uma década antes, para a geração de Chico, Caetano, Gil, Milton Nascimento, Gal Costa, Edu Lobo e uma infinidade e outros. A força fundadora com um alumbramento, uma nova medida com uma nova batida rítmica, gerando outras sonoridades e um estranho conceito de canto em paz e em quase sussurro, naturalidade nativa para se propor uma música popular que haveria de se chamar Bossa Nova. Mas eu começava a viver em 1970 o tempo do desbunde, pois havia ouvido e me apaixonado pelo disco Cheap thrills de Janes Joplin - com aquela capa maluca e udigrudi de Robert Crumb - que me tirara do sério, me chamara mais para a poesia e para a arte e me fizera, também, abandonar a escola dos normais para sempre. Assim, fiquei ainda mais desbundado quando ouvi aquele provocante disco estandarte de um movimento cuja face A - não havia lado para eles - acabava com uma música arrasadora portando uma potencia energética e imagética até então por mim desconhecida. Essa última canção era “Geleia geral” de Gilberto Gil e Torquato Neto. Quando a ouvia, todo meu corpo lúdico era acionado, potencializado, dançava sem freios e em transe, lançava os braços para cima para descarregar toda energia que parecia vir do centro da Terra e almejava a efemeridade das nuvens. Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplandente, cadente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geleia geral brasileira Que o Jornal do Brasil anuncia
Os versos de Torquato musicados por Gil eram o retrato do poeta entusiasmado, alegre, tropical e resplandecente que sempre eu quis ser e para qual projeto de sonho, almejo até hoje. Aliás, o sonho ainda não acabou! O poderoso refrão da música evoca a força da raiz popular com o mantra bumba-iê-iê-boi que era também muito contemporâneo, estava no meio do nome popular da dança sujeito ao pop dos repentes e grito de guerra dos Beatles: yeah-yeah-yeah!!!, os quatro cavalheiros do após calipso que os tropicalistas tanto amavam. Tudo isso posto em consonância com a mesma dança tribal, em transe e em trânsito, por todas as etnias da Nigéria a Salvador, da Ilha de Wight a Woodstock. A alegria é a prova dos nove E a tristeza é teu porto seguro Minha terra é onde o Sol é mais limpo E Mangueira é onde o samba é mais puro Tumbadora na selva selvagem Pindorama, país do futuro Nessa alegria, prova dos nove, Torquato visita o antropófago Oswald de Andrade, tão caro aos tropicalistas pela poesia e prosa irreverente e indiscreta. Gil disse: “Oswald estava muito presente na época; nós estávamos descobrindo a sua obra e nos encantando com o poder de premonição que ela tem. A ideia de reunir o antigo e o moderno, o primitivo e o tecnológico, era preconizada em sua filosofia”1. A letra projeta essa alegria instantânea junto a uma tristeza tacanha e brasileira, em um porto seguro que persegue de melancolia a solitude dos poetas. Mas, para ela, doa-se uma terra solar, com o mais limpo dos sóis. Põe-nos à sombra de uma verdadeira escola: a Mangueira onde o samba é mais ritmo e mais puro. Toca os tambores contagiantes na selva selvagem, a Pindorama de um país do futuro que Caetano ironiza no texto/roteiro da contracapa do disco: “Esse gênero está caindo de moda”, e Capinan completa: “No Brasil e lá fora: nem ideologia nem futuro”. E o futuro imediato não apontava boas coisas para a geleia geral dos tropicalistas e a ditadura não via com bons olhos o programa Divino maravilhoso (posteriormente, viria o exílio em Londres). Mas muito de uma ideologia libertária, criativa e anárquica, ficou e persiste no ambiente musical do país até hoje, retumbando na selva selvagem de todos os ambientes nos usos e costumes da sociedade brasileira. O Tropicalismo e o comportamento de Caetano e Gil depois da chegada do exílio ajudaram a desreprimir o país, artística e sexualmente. Ney Matogrosso admite, é grato, e é a prova total dessa afirmação vivida a duras penas em meio à ditadura dos anos 1970. 1
Gil, Gilberto. Todas as letras. Organização de Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 98.
Gil discursa, quase rap, para essa sociedade ainda tão reprimida e alienada: É a mesma dança na sala No Canecão, na TV E quem não dança não fala Assiste a tudo e se cala Não vê no meio da sala As relíquias do Brasil: Doce mulata malvada Um LP de Sinatra Maracujá, mês de abril Santo barroco baiano Superpoder de paisano Formiplac e céu de anil Três destaques da Portela Carne seca na janela Alguém que chora por mim Um carnaval de verdade Hospitaleira amizade Brutalidade jardim Torquato usa de um simbolismo cru e sincero para falar sobre... “quem não dança não fala/ assiste a tudo e se cala/ não vê no meio da sala...” e os põe à nu com pluralidade antropófaga para falar das suas relíquias de Brasil. O país que come de tudo dos caraíbas, o LP de Sinatra, e mistura ao angu a nossa força de ancestralidade afro-indígena-barroca. A tal mulata malvada, com maracujá e céu de anil, e mais, o santo barroco baiano com o superpoder de paisano tudo tão à vontade, como eles, pela inútil paisagem triste-alegre trópica. Em “Geleia geral”, está tudo bem mastigado ao som do arranjo inovador de Rogério Duprat, de dissonâncias e ousadias ainda não ouvidas na MPB, ou, só enunciadas em “Domingo no parque” de Gil, arranjo orquestral feito pelo mesmo maestro para o Festival da Record em 1967. Gil declara ressonâncias de todas as latitudes e influências culturais que fazem o Brasil, Brasil, e declama consonâncias de todas as altitudes da verve de Gregório de Matos a Castro Alves e deles a Manuel Bandeira, Drummond e João Cabral. O poema quase cantado se dá entre efeitos sonoros que mesclam os timbres dos instrumentos tradicionais da orquestra alternados pelos ritmos e repiques de uma escola de samba. A Portela? Anuncia entusiasmado um carnaval de verdade, além do oficial da avenida, a hospitaleira amizade, além da generosidade habitual dos brasileiros recôncavos. Mas não esquece a brutalidade jardim vivida em meio à natureza exuberante do paraíso da delicadeza infelizmente perdida. E Gil e Caetano vão experienciar essa falta de fino trato do país para com seus artistas, na prisão no Brasil e no exílio na Inglaterra.
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Plurialva, contente e brejeira Miss linda Brasil diz “bom dia” E outra moça também Carolina Da janela examina a folia Salve o lindo pendão dos seus olhos E a saúde que o olhar irradia
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O poeta ainda enxerga a brejeira, par do inzoneiro mulato de Ary Barroso de “Aquarela do Brasil”; mas ela, a moça plurialva que contente ilumina como uma Miss linda que ao Brasil dá graça e “bom dia”, é também a citada Carolina com seus olhos fundos da canção de Chico Buarque; que da janela, fica a imaginar as folias brasileiras; tem ainda um lindo pendão de esperança - como no hino da bandeira - e de seus olhos irradiam uma saúde cabocla que não é só estética, mas, de uma esfuziante poética que nunca foi só da capital ou do caipira. E não foi só ela que a tudo viu e passou na janela. O país assistiu pasmo quase tudo da sala e na TV, e por omissão, se calou... Um poeta desfolha a bandeira E eu me sinto melhor colorido Pego um jato, viajo, arrebento Com o roteiro dos cinco sentidos Voz do morro, pilão de concreto Tropicália, bananas ao vento O verso é a culminância retumbante de um brado forte que Gil reveste e veste, o poema transversal de Torquato com uma música de notável força telúrica. É o poeta que desfolha a bandeira de um movimento pintado de todas as cores, ungido de todas as formas de pertencimento aos sentimentos de uma nação tão rica e plural. Encarna o ”ser Brasil” tão profano e tão contraditório, tão divino e tão imensamente humano na sua singularidade mestiça. Quer-se melhor colorido com o similar às roupas dos passistas das escolas de samba ou dos brincantes do
bumba-meu-boi. Outros Parangolés que Helio Oiticica vai vestir artistas, gente do morro, passistas das escolas de samba e a si próprio. Foram os tropicalistas os transgressores sagazes e capazes de pegar o jato e de viajar por dimensões ainda nem sonhadas, arrebentar de vez com as convenções. O roteiro era apenas a coragem de provar as delicias e os delírios dos cinco sentidos. Era a prova dos nove: Alegria, alegria! Nada mais que isso. E era também, ouvir com mais respeito e acuidade a voz do morro, ela mesmo sim senhor, como Nara Leão havia sentido e assimilado em seu primeiro disco de 1964. Nara bateu também no pilão da tradição ao gravar Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti - pilão que para os tropicalistas era também de concreto, ou de preferência feito da poesia dos poetas concretos paulistas. Estes souberam primeiro ver-nos mais novos baianos, depois de Caymmi e João, a mesma força da coragem e da ousadia de se desconstruírem com gestos e palavras gráficas ao trilhar a senda da inovação. Um exemplo: Batmakumba. Para eles concretos e neos, para todas as concretudes, Torquato e Gil hasteiam a ousada bandeira da Tropicália bananas ao vento. Hasteiam uma bandeira para todos os antropófagos de plantão, para refundar outros e novos baianos que nasceriam em seguida, quase babys, num verão com carne de carnaval em Salvador no final dos anos 60. Hastearam ainda uma bandeira sólida e solidária para cair nas estradas e perigar ver o que ainda não havia sido avistado em nenhum porto inseguro naquele maio inesquecível de 1968 no estúdio de gravação da RGE em plena São Paulo, a cidade que os entendeu e os abrigou em primeira mão. A mesma urbe que há quase cinco décadas havia gerado uma semana para nos tornar mais modernos sem esquecer que éramos também brasileiros universais, essencialmente índios, felizmente negros e exageradamente barrocos. É “Geleia geral”, o mais potente petardo poético lançado ao vento para vestir o corpo do país do presente futuro. Mais do que uma canção anárquica, “Geleia geral” às vezes, é até solene no tom com que se impõe como hino/manifesto de uma nova nação tupizumbiafroíndiacaraíbacibernética: ParangoléMúsica.
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Geleia geral Gilberto Gil e Torquato Neto
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Um poeta desfolha a bandeira
Três destaques da Portela
E a manhã tropical se inicia
Carne-seca na janela
Resplandente, cadente, fagueira
Alguém que chora por mim
Num calor girassol com alegria
Um carnaval de verdade
Na geleia geral brasileira
Hospitaleira amizade
Que o Jornal do Brasil anuncia
Brutalidade jardim
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança, meu boi
A alegria é a prova dos nove
Plurialva, contente e brejeira
E a tristeza é teu porto seguro
Miss linda Brasil diz “bom dia”
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E outra moça também, Carolina
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Da janela examina a folia
Tumbadora na selva-selvagem
Salve o lindo pendão dos seus olhos
Pindorama, país do futuro
E a saúde que o olhar irradia
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança na sala
Um poeta desfolha a bandeira
No Canecão, na TV
E eu me sinto melhor colorido
E quem não dança não fala
Pego um jato, viajo, arrebento
Assiste a tudo e se cala
Com o roteiro do sexto sentido
Não vê no meio da sala
Voz do morro, pilão de concreto
As relíquias do Brasil:
Tropicália, bananas ao vento
Doce mulata malvada Um LP de Sinatra
Ê, bumba-yê-yê-boi
Maracujá, mês de abril
Ano que vem, mês que foi
Santo barroco baiano
Ê, bumba-yê-yê-yê
Superpoder de paisano
É a mesma dança, meu boi
Formiplac e céu de anil
Copyright Gege Edições Musicais Ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo) / Warner Chappell Edições Musicais Ltda. Todos os direitos reservados.
General jelly Gilberto Gil and Torquato Neto A poet unfurls the flag
Three highlights of Portela,
And the tropical morning begins
Dried meat in the window,
Resplendent, refulgent, radiant
Someone who cries for me
In joyous sunflower heat
A true carnival,
In the general jelly of Brazil
Hospitable friendship,
That the Jornal do Brasil announces
Brutality garden
Yeah, beat-rock-bull,
Yeah, beat-rock-bull,
Year to come, month ago
Year to come, month ago
Yeah, beat-rock’n’roll,
Yeah, beat-rock’n’roll,
It’s the same dance, my bull
It’s the same dance, my bull
Joy is the proof of nines
Superbleached, content, and playful
And sadness your safe port
Miss pretty Brazil says “good morning”
My land is where the sun is clearest
Another girl, Carolina,
And Mangueira is where samba is purest
Observes the festivities from the window
Drums in the savage jungle,
Praise the beautiful banner of her eyes
Pindorama, country of the future
And the health that her glance radiates
Yeah, beat-rock-bull,
Yeah, beat-rock-bull,
Year to come, month ago
Year to come, month ago
Yeah, beat-rock’n’roll,
Yeah, beat-rock’n’roll,
It’s the same dance, my bull
It’s the same dance, my bull
It’s the same dance in the hall,
A poet unfurls the flag
In the Canecão, on TV
And I feel better in color
And whoever doesn’t dance, doesn’t speak,
I take a jet, travel, and explode
Watch everything and shut up
The route of the sixth sense
Can’t see in the center
Voice of the slums,
Of the hall the relics of Brazil:
Concrete pestle,
Sweet wicked mulata,
Tropicália, bananas in the wind
An LP of Sinatra, Passion fruit, the month of April
Yeah, beat-rock-bull,
Baroque Bahian saint,
Year to come, month ago
Superpower of the patriot,
Yeah, beat-rock’n’roll,
Formica and blue sky
It’s the same dance, my bull
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General Jelly Bené Fonteles The record Tropicália immediately had the same impact of musical revolution for me as the record Chega de saudade by João Gilberto had had, a decade before, for the generation of Chico, Caetano, Gil, Milton Nascimento, Gal Costa, Edu Lobo and an infinite number of others. It had been a founding force of inspiration, a new standard with a new rhythm, generating other sounds and a strange concept of peaceful, almost whispered singing, an inborn naturalness for a popular music which could only have been called Bossa Nova. But in 1970 I had begun to trip out, as I had heard and fallen in love with the record Cheap thrills by Janes Joplin – with that weird cover with Robert Crumb’s underground comic character – that would knock me out, and attract me more to poetry and art and would make me abandon normal school forever. I therefore freaked even more when I heard that provocative record, the standard of a movement, whose Face A – there was no Side for them – ended with a devastating song with a powerful energy and imagery until then unknown to me. This last song was “Geleia geral” – (General jelly) by Gilberto Gil and Torquato Neto. When I heard it, my whole body was switched on, given its full potential and I danced uninhibitedly, in a trance, throwing my arms up in the air to discharge all the energy that seemed to come from the Earth’s center and reach for the ephemerality of the clouds. A poet unfurls the flag and the tropical morning begins Resplendent, refulgent, radiant In joyous sunflower heat In the general jelly of Brazil That the Jornal do Brasil announces
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The lyrics by Torquato, set to music by Gil, were the picture of the enthused, joyful, tropical and resplendent poet that I had always wanted to be and which continues to be my dream even today. In fact, the dream is not over! The song’s powerful chorus evokes the force of popular roots with the mantra bumba-iê-iê-boi, which was also highly contemporary, as in the popular name of the dance from north-eastern Brazil (bumba-meu-boi), mixed in the middle with the yeah-yeah-yeah!!! war cry of the Beatles: the four riders of the post-calypso that the Tropicalists so adored - all this together with the same trance-like tribal dance of all ethnicities from Nigeria to Salvador, the Isle of Wight to Woodstock. Joy is the proof of nines And sadness your safe port My land is where the sun is clearest And Mangueira is where samba is purest Drums in the savage jungle Pindorama, country of the future In this joy, proof of nines, Torquato pays tribute to the anthropophagy poet Oswald de Andrade, so dear to the Tropicalists for his irreverent and indiscreet poetry and prose. Gil said: “Oswald was extremely present at the time; we were discovering his work and were delighted with the power of premonition that he has. The idea of bringing together the old and the modern, the primitive and the technological, was extolled in his philosophy”1. 1
Gil, Gilberto. Todas as letras. Organization by Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 98.
The lyrics project this instant joy together with a narrow-minded Brazilian sadness, and a safe port which the solitude of poets pursues with melancholy. But, to this melancholy a sunny land has been given, with the clearest of suns. We are placed in the shade of a real school: Mangueira where samba is the purest rhythm. The infectious drums play in the wild jungle, the Pindorama of a country in the future which Caetano satirizes in the text/script on the record’s liner notes: “This model is falling out of fashion”, and Capinan concludes: “In Brazil and outside: neither ideology nor future”. The immediate future did not bode well for the Tropicalists’ general jelly and the dictatorship didn’t exactly approve of the Divino maravilhoso (Marvellous Divine) program (exile in London would come later). However, much of the libertarian, creative and anarchical ideology continued and persists in the country’s music today, echoing in the wild jungle of all environments, in the habits and customs of Brazilian society. Tropicalism and the behavior of Caetano and Gil after their return from exile helped to de-repress the country, artistically and sexually. Ney Matogrosso admits this, and is grateful, and is total proof of this affirmation experienced at such a cost during the dictatorship of the 1970s. Gil discourses, almost in a rap, to this then so repressed and alienated society: It’s the same dance in the hall In the Canecão, on TV And whoever doesn’t dance, doesn’t speak Watch everything and shut up Can’t see in the center Of the hall the relics of Brazil: Sweet wicked mulata An LP of Sinatra Passion fruit, the month of April Baroque Bahian saint Superpower of the patriot, Formica and blue sky Three highlights from Portela Dried meat in the window Someone who cries for me A true Carnival Hospitable friendship Brutality garden Torquato uses a crude and sincere symbolism when he says ... “And whoever doesn’t dance, doesn’t speak/watches everything in silence/doesn’t see in the center of the hall...” and strips it bare with anthropophagous plurality to speak of their relics of Brazil. The country that eats everything from the Caribs to the LP by Sinatra, mixes into the pot the strength of our Afro-indigenous-baroque ancestry. The wicked mulata, with passion-fruit and indigo skies, plus, the baroque Bahian saint with the plainclothes superpower everything so relaxed, like them, in the useless landscape of the sad-joyful tropics. In “General Jelly”, it’s all well-digested in the innovative arrangement by Rogério Duprat, with a dissonance and audacity as yet unheard of in Brazilian Popular Music at the time, or only presaged in Gil’s “Domingo no Parque”, with orchestral arrangement by the same maestro, for the TV Record Festival in 1967. Gil declares it is resonances from all latitudes and cultural influences that make Brazil, Brazil, and recites consonances from all altitudes for the verve of Gregório de Matos to Castro Alves and from them to Manoel Bandeira, Drummond and João Cabral. The poem is almost chanted between sound effects that mix the timbres of a traditional orchestra’s instruments alternating with the rhythms and small
drums of a samba school. Portela? Announces enthusiastically a real carnival, as well as the official one on the streets, the hospitable friendship, in addition to the habitual generosity of the Brazilians of the Recôncavo. But doesn’t forget the brutality garden experienced in the midst of the exotic nature of a paradise with an unfortunately lost delicacy. And Gil and Caetano are going to experience this lack of Brazil’s fine treatment of its artists, in prison and exile in England. Superbleached, content, and playful Miss pretty Brazil says “good morning” Another girl, Carolina, Observes the festivities from the window Praise the beautiful banner of her eyes And the health that her glance radiates The poet even sees her as brejeira (playful), the pair of Ary Barroso’s inzoneiro (deceitful) mulatto in “Aquarela do Brasil”; but she, the superbleached girl who shines in contentment like a Miss Pretty, giving Brazil her grace and a “good morning”, is also the already mentioned Carolina with her deep eyes from the song by Chico Buarque; who from her window imagines the Brazilian follies; there’s also the beautiful banner of hope – as in the national anthem (hymn to the flag) – and from her eyes radiates an indigenous health which is not only esthetic but also of an irrepressible poetry that was never just from the city or the provinces. And it was not just her that saw everything pass by from her window. The country watched almost everything in amazement in the living room and on TV, and, through omission, remained silent... A poet unfurls the flag And I feel better in color I take a jet, travel, and explode The route of the sixth sense Voice of the slums, Concrete pestle, Tropicália, bananas in the wind The verse is a resounding culmination of the loud shout which Gil coats with music and wears as a badge - Torquato’s transversal poem is set to music with remarkable earthly force. He is the poet who unfurls the flag of a movement painted in every color, anointed with all the forms of belonging to the sentiments of such a rich and pluralistic nation. It incarnates ”being Brazil”, so profane and so contradictory, so divine and so immensely human in its mixed-race singularity. People want to feel better in color with the costumes of the samba parade dancers or the revelers of the bumba-meu-boi. More Parangolés (costumes) with which Helio Oiticica can clothe artists, people from the slums, samba dancers and himself. It was the Tropicalists, the shrewd transgressors, who were able to catch a jet and travel to dimensions as yet undreamed of, breaking with convention once and for all. The script was only the courage to try the delicacies and deliriums of the five senses. It was the proof of nine (the acid test): Alegria, alegria (joy, joy)! Nothing more than this. It was also to listen with more respect and acuity to the voice of the slums, (yes, those - yes sir), as Nara Leão had felt and assimilated on her first record in 1964. Nara also beat the drum of tradition by recording Cartola, Nelson Cavaquinho and Zé Kéti -, a drum that for the Tropicalists was also of concrete, or preferably made of the poetry of the concrete poets from São Paulo. They were the first to see the Tropicalists as more New Bahians, coming after Caymmi and João Gilberto, the same strength of courage and daring to deconstruct themselves with gestures and graphic words by taking the path of innovation. An example: Batmakumba.
For the concretes and the neos, for all things concrete, Torquato and Gil raised the audacious banner of Tropicália bananas in the wind. They raised a standard for all the night-shift anthropophagites, to re-found other and new Bahians who would be born afterwards, almost babys, in a summer with carnival meat in Salvador at the end of the 1960s. They also raised a solid and caring flag to take on the road and risk seeing what had yet to be seen in any unsafe port in that unforgettable May of 1968 in the RGE recording studio in São Paulo, the city that understood them and gave them shelter at first hand. The same city that almost five decades before had produced a week that had modernized us without forgetting that we were also universal Brazilians, indigenous in essence, happily black and exaggeratedly baroque. It is “General Jelly”, the most potent poetic petard launched into the wind to clothe the body of the future-present country. More than an anarchic song, “General Jelly” is sometimes even solemn in the tone with which it imposes itself as a hymn/manifesto of a new nation. tupizumbiafroindiacaribecybernetic: ParangoléMusic.
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BABY
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Baby Frederico Coelho
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I Apesar de a história ser famosa, Baby é um mistério. Sabemos o fato: uma cantora observou seus passos e soprou precisamente ao irmão compositor o que ele deveria falar sobre Baby. O compositor entendeu a história que sua irmã lhe contou e escreveu a canção – uma conversa direta entre quem canta e seu ouvinte especial: Baby. A música tranquila, seu formato suave, seu arranjo tão belo, tudo faz com que Baby viva no imaginário popular como um dos rostos do Tropicalismo. Mesmo que, ao contrário do rosto amarelo e roxo de Lindonéia, nunca tenhamos visto mais remoto traço seu. Por saber essa história factual da canção, talvez nós soubéssemos quem é Baby e, mais do que isso, nós soubéssemos quem fala com ela. Mas a tarefa não é tão simples. Não sabemos nem mesmo se Baby é ela ou ele. Baby, no seu uso popular, é uma gíria e um carinho. É uma forma de chamar baixinho o mais íntimo e berrar na rua para qualquer um. Cantar sua canção faz de Baby uma personagem íntima de todos. Ao mesmo tempo, ouvir o que dizem a ela faz de Baby qualquer jovem perplexo de seu tempo. Baby é nossa e de ninguém. Lembremos: na gravação clássica dos tempos tropicalistas quem escreve a canção é um rapaz, mas quem a canta é uma moça. Ambos, tão jovens, nos seus vinte e poucos anos, assertivos e iconoclastas, são os que afirmam e avisam Baby enfaticamente: eu sei que é assim. Estamos em 1968, explodindo o sol dos cinco sentidos na melhor cidade da América do Sul. Nada mais e nada menos do que isso. O que narram a Baby é a constatação de que estávamos, finalmente, sendo parte do mundo todo. E esse mundo, em plena convulsão, exige o novo. Quem conversa com Baby sabe disso. Ela, não. Pois quem conversa com Baby é uma pessoa exigente. Baby precisa saber de tudo, estar por dentro e andar com eles. Mesmo que com ela esteja tudo em paz, não podem deixar Baby viver fora das modas e das gírias. Andar com eles era frequentar cinemas e teatros, participar de debates e festivais. Eles eram coloridos, eles eram transgressores, eles estavam conquistando as casas e as rádios. Eram os primeiros frutos de
uma modernidade urbana brasileira, ouvintes dos heróis da Bossa Nova, leitores dos poetas concretos e dos cronistas da revista Senhor, amigos de Hélio Oiticica e Jorge Ben. Baby tinha que entender: se a vida nas grandes metrópoles do terceiro mundo era dura, o sorvete na lanchonete garantia ao menos um segundo de felicidade. Baby precisava deles já que, andando ao seu lado, estava tudo azul. Mas a época de Baby também exige sacrifícios. São tempos em que sair de casa para andar com eles é se arriscar. Eles vivem dentro da noite veloz de um país que se bifurca entre a abertura plena aos fatos e fotos do mundo e o beco escuro de mortes e censuras. A televisão exibe guerras, novelas e pernas de fora nas minissaias da Jovem Guarda. Rogério Duarte e seu irmão são presos no dia da missa de sétimo dia de Edson Luis, em plena praça da Candelária. E são torturados enquanto se estabelece a Lei de Segurança Nacional. Embaixadores são sequestrados enquanto Chacrinha aplaude os Golden Boys no palco do seu cassino. Nossas misérias tropicais e riquezas urbanas são transmitidas via satélite para todo o Brasil. E Baby permanecia em casa, no máximo indo até a quitanda e voltando em passo apressado para sua quieta inadequação. Será que Baby não via os noticiários na tevê? É por isso o tom impositivo, mesmo carinhoso, da canção: em uma vida com tantas transformações, com tantas possibilidades, com tantas demandas, a voz que lhe provoca não entende como ficar alheio aos dias mutantes, sem entender o que está acontecendo lá fora. Não entende e não aceita. Essa omissão em relação à contemporaneidade faz com que Baby pague um preço alto. Quem canta para ela não admite sua cândida inércia, sua ingênua ignorância. Não é à toa que exigem de Baby sua total atualidade, seu deslocamento imediato do silêncio do atraso para a balbúrdia do presente. Baby tem que ser o retrato de seu tempo em expansão. Afinal, ela vive no tempo fútil e farto da piscina, da margarina e da gasolina. Quem conversa com Baby diz que todos precisam viver nas ruas, de olho no sol nas bancas de revista, abraçados ao ritmo vertiginoso da geleia geral e ligados nas novas eletricidades daqueles dias. Baby, que anda sozinha e vê de longe, precisa abrir os olhos, os ouvidos e os sentidos. Por que será que Baby não sabe o que está acontecendo ao seu redor? Os dias de fúria nas capitais da Europa, os dias de luta e de amor livre nas cidades norte-americanas, a banda solitária do sargento pimenta, a terra das moças elétricas, a música africana e o canto revolucionário
dos negros da Motown, as novas nuvens lisérgicas dos ácidos, das ervas, das cores do pop, o sangue que jorra nas ruas do seu país? É justamente por isso, por ter tanto para ver e saber, para dizer e experimentar, que pedem a Baby para saber o que sabem e o que não sabem mais. São dias de afirmar ideias mesmo que, como quem fala com Baby, não saiba muito bem sobre tudo o que se fala. Pois a mesma pessoa que confessa francamente não saber, é a que afirma sem titubear por toda letra o que Baby deve fazer. Curiosa convicção. Por exemplo, Baby entende que ela precisa saber inglês? Nessa hora da conversa, quem sabe, Baby rompa seu silêncio e diga a eles: para que saber inglês se as novelas, as revistas de corte e costura, as crônicas de Nelson Rodrigues, os livros de Cassandra Rios, até mesmo aquela canção Roberto e a Carolina, tudo isso eu entendo em bom português? II E Baby pode ainda perguntar: saber o que de Carolina? Que um ano antes (1967), outro jovem compositor apresentava ao país mais uma moça muda, triste e distante? Que Carolina vivia como Baby, dentro de casa, dentro da casca de seu tempo parado? Baby conhecia a história de Carolina muito bem. Como se fosse uma espécie de cúmplice, a moça da canção triste perdia o mundo que passava lá fora em outra velocidade. O mundo que Carolina não via era um mundo de rosas abertas, de estrelas caídas e barcos partindo. Mas, ao contrário do que seu compositor inconformado diz, não era só ela que não via esse mundo. Baby também não. Só que, assim como Baby, não era Carolina que lamentava por isso. Os lamentos eram dos outros ao seu redor. Baby e Carolina, talvez, fossem felizes do seu jeito. Uma felicidade velha, que exasperava quem tinha necessidade de futuro. Baby e Carolina tinham alguma amizade? Baby ouviu pacientemente os tristes dias de quem guarda a dor de todo esse mundo? Ou, como diz sua canção, Baby nunca ouviu falar da outra? Talvez Baby saiba quem é Carolina, mas dentro de seu silêncio não ouviu sua música. Mesmo que ela tenha se tornado um sucesso nacional, um sucesso no peito apertado das mães dos presos políticos e nas festas funerárias das esposas dos generais, Baby pode não ter ouvido nada sobre sua amiga e, pensando bem, provavelmente não a conheceu pessoalmente. É porque seus mundos, apesar de ausentes e passivos, são diferentes. O que exigem de Baby é uma convocação ao seu tempo urbano, elétrico e
bilíngue. Já à Carolina, a única coisa que pedem dela é que enxergue o tempo lá fora, que passa veloz pela sua janela. Baby e Carolina podem ser, quem sabe, moradores vizinhos que não se encontram por não saírem de casa. Suspeitam, e até se confortam em saber, que existam outros que vivam do seu jeito nulo, mas não precisam conhecer os outros — ou do mundo. Baby e Carolina podem até mesmo viver no prédio da outra canção, aquele em que mora uma gente que não se entende e que não entende o que se passou (o prédio de Maria Amélia, que passou da idade e não se casou). Ou então Baby e Carolina podem viver dentre o mofo dormido da casa, inertes na sala de jantar, ocupados em nascer e morrer. III Mas, apesar disso tudo, apesar dessa negação do tempo presente e de sua juventude, quem conversa com Baby, no fundo, está apaixonado. Toda irritação com sua inadequação ao estilo de vida do jovem urbano do seu tempo é um ardil para que ela se convença do valor desse amor. Toda tentativa de sugerir gratuitamente as informações sobre tanta novidade é para que Baby se aproxime e entenda sua camisa. Tudo o que Baby precisa aprender é um pré-requisito para que viva ao lado da pessoa que lhe ama. Baby precisa “saber de mim”. Baby precisa “andar com a gente”, mas apenas para “me ver de perto”. Enfim, Baby precisa saber inglês apenas para ler na sua camisa a única declaração possível de seu tempo: Baby, I love you. Para que tudo isso aconteça, Baby tem que largar sua vida em solidão e embarcar em uma nova aventura, em uma nova cidade, ao lado de quem lhe chama rumo à modernidade tropical. Essa demanda amorosa pela nova vida de Baby é atravessada por referências românticas, do sorvete na lanchonete ao hit de Roberto Carlos (em 1968 ele cantava sobre “as canções que você fez pra mim”). A camiseta declarando “eu te amo” fecha e, ao mesmo tempo, abre a proposta de um amor público, em letras impressas e carregado no peito aberto. Um amor de jovens para jovens, um amor que é fruto dos tempos em que moças como Carolina ficam sozinhas (“eu bem que mostrei a ela...”), olhando para trás. E Baby, talvez, perceba que os dias são outros e que a chance de se libertar da sua inércia seja essa. Assim, quem sabe, ela abrace o pedido de ver de perto seu destino, junte suas mãos com seu tempo e retribua feliz, finalmente, também dizendo para a vida: I love you.
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Baby
Caetano Veloso
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Você precisa saber da piscina
Você precisa aprender inglês
Da margarina
Precisa aprender o que eu sei
Da Carolina
E o que eu não sei mais
Da gasolina
E o que eu não sei mais
Você precisa saber de mim Não sei, comigo vai tudo azul Baby baby
Contigo vai tudo em paz
Eu sei que é assim
Vivemos na melhor cidade Da América do Sul
Você precisa tomar um sorvete
Da América do Sul
Na lanchonete Andar com a gente
Você precisa
Me ver de perto
Você precisa
Ouvir aquela canção do Roberto
Não sei Leia na minha camisa
Baby baby Há quanto tempo
Baby baby I love you
Copyright by Warner Chappell Edições Musicais Ltda. Todos os direitos reservados.
Baby
Caetano Veloso You need to know about the swimming pool
You need to learn English
About margarine
You need to learn what I know
About Carolina
And what I don’t know any more
About gasoline
And what I don’t know any more
You need to know about me I don’t know, all is cool with me Baby baby
With you all is swell
I know it’s like this
We live in the best city Of South America
You need to get ice cream
Of South America
At the diner Hang out with us
You need
Look at me up close
You need
Listen to that song by Roberto
I don’t know Read my t-shirt
Baby baby How long it’s been
Baby baby I love you
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Baby 74
Frederico Coelho
I Despite the story being famous, Baby is still a mystery. We know the facts: a singer observed her moves and whispered to her composer brother precisely what he should say about Baby. The composer understood the story that his sister had told him and wrote the song. A song whose conversation is directly between the person singing and his special audience: Baby. The calm song, its soft style, its beautiful arrangement, everything conspires to make Baby come alive in the popular imagination as one of the faces of Tropicalism. Even though, unlike the yellow and purple face of Lindonéia, we have never seen the remotest trace of hers. By knowing the song’s factual history, perhaps we think we know who Baby is and, more than this, that we know who’s talking to her. But the task is not that simple. We don’t even know if Baby is a she or a he. Baby, in popular usage, is a slang word and an endearment. It’s a way of softly saying intimacies, and also of shouting out in the street to anyone. Singing her song makes Baby intimate to everyone. At the same time, hearing what someone says to her makes Baby any perplexed young woman of her time. Baby belongs to us and to no-one. We should remember: in the classic recording at the time of the Tropicalists, who wrote the song is a young man, but who sings it is a young woman. Both of them, so young, in their early twenties, assertive and iconoclastic, are those who emphatically declare and tell Baby: “I know it’s like this”. We are in 1968, the sun exploding from all five senses in “the best city of South America”. Nothing more and nothing less. What they are saying to Baby is that we were, finally, becoming part of the whole world. And this world, in the midst of a great convulsion, de-
mands the new. Who is speaking to Baby knows this, Baby doesn’t. Because the person speaking to Baby is demanding. Baby needs to know about everything, be with the in-crowd and hang out with them. Even if she’s cool, she can’t be left to live in ignorance of the latest fashions and slang. Hanging with them meant going to movies and the theatre, taking part in debates and festivals. They were colourful, they were transgressors, they were conquering homes and the radio. They were the first fruit of a modern urban Brazil, listening to the heroes of Bossa Nova, reading concrete poetry and the writers of Senhor magazine, friends with Hélio Oiticica and Jorge Ben. Baby had to understand: if life was hard in the great metropolises of the third world, the ice-cream at the diner ensured at least a second of joy. Baby needed them as stepping out with them made everything cool. But Baby’s times also demand sacrifices. These are times when to step out and hang with them is to put oneself at risk. They live in the fast night of a country which is bifurcating between a full opening to the facts and photos of the world and the dark dead-end of deaths and censorship. The TV shows wars, soaps and legs revealed by the miniskirts of the Jovem Guarda. Rogério Duarte and his brother are arrested on the day of the seventh-day mass of Edson Luis, right in front of Candelária Cathedral. And they are tortured while the National Security Law is being enacted. Ambassadors are being kidnapped while Chacrinha applauds the Golden Boys on the stage of his TV casino. Our tropical miseries and urban riches are broadcast via satellite all over Brazil. And Baby stays at home, at most going to the grocery store and returning in a hurry to her quiet inadequacy. Can Baby not have seen the news on TV? This is why the imperative, even if affectionate tone of the song: in a life with so many changes, so many possibilities, so many demands, the voice of the person tempting her cannot understand how she can remain unaware of the changing times, uncomprehending of what is going on out there. The voice cannot understand and will not accept it. This omission regarding contemporaneity means Baby must pay a high price. The person singing to her cannot allow her innocent inertia, her naïve ignorance. It’s not for nothing that they demand of Baby a total upgrade, her immediate dislocation from the silence of backwardness to the uproar of the present. Baby has to be the face of her expanding times. After all, she lives in the futile and abundant times of “the swimming pool, of margarine and gasoline”. The person conversing with Baby says that everyone needs to live in the streets, watching the sun play on the magazine stands, embracing the frenetic rhythm of the “general jam” and plugged into the new electricity of the day. Baby, who stays alone and watches from a distance, needs to open her eyes, ears and senses. And why is it that Baby doesn’t know what’s happening around her? The days of fury in European capitals, the days of struggle and free love in the cities of America, the lonely band of Sergeant Pepper, the land of electric ladies, African music and the revolutionary songs of Motown’s African-Americans, the new lysergic clouds of acid, of weed, of pop colors, the blood flowing in the streets of her own country? It’s for this very reason, for having so much to see and know, to say and experiment that they ask Baby “to know what they know and to know what they don’t know any more”. These are times for stating ideas even when, like the person talking to Baby, you don’t really know that well what everyone is talking about. Because the same person that frankly confesses he doesn’t know, is the same that categorically states everything that Baby has to do. A curious conviction. For example, does Baby understand that she needs to know English? Who knows, perhaps it is at this stage in the conversation that Baby breaks her silence and says: why should I need to know English if the soaps, the dress-making magazines, the stories of Nelson Rodrigues, the books of Cassandra Rios, even “that song by Roberto”, and “Carolina”, all this I can understand perfectly well in Portuguese?
II And Baby could also ask: know what about Carolina? That a year earlier (1967), another young composer had introduced another silent, sad and distant young woman to the country? That Carolina lived like Baby, inside her house, inside the shell of a time that stood still? Baby knew perfectly well about Carolina. As if she were a sort of accomplice, the young woman in the sad song had missed the world that passed by outside at another speed. The world that Carolina didn’t see was a world of blossoming roses, of falling stars and departing ships. But, contrary to what its unreconciled composer says, it was not only she that didn’t see this world. Baby didn’t either. Except that, like Baby, it wasn’t Carolina that complained about it. The complaints were from those around her. Baby and Carolina were perhaps happy in their own way: an old happiness that exasperated those who had need of the future. Did Baby and Carolina share some kind of friendship? Did Baby listen patiently to the sad days of someone who carries the troubles of the whole world? Or, as her song says, had Baby never heard of the other woman? Maybe Baby knows who Carolina is, but inside her silence had never heard her song. Even though she, Carolina, had become a national hit, a hit in the tightened chests of the mothers of political prisoners and at the funeral wakes of generals’ wives, Baby might perhaps not have heard anything about her friend and, when you think about it, she probably didn’t know her personally, because their worlds, despite being absent and passive, are different. What is demanded of Baby is that she join her urban, electric and bilingual times. From Carolina, however, the only thing asked is that she see the time out there, passing quickly by her window. Baby and Carolina could be, who knows, neighbors that haven’t met because they spend so much time inside. They suspect, and even take comfort in knowing that that there are others living their empty way, but they don’t need to know the others — or the world. Baby and Carolina could even live in the same apartment block as in the other song, the one in which live people who don’t get on with each other and don’t understand what has happened (the building of Maria Amélia, who’s too old to marry). Or else Baby and Carolina could be living among the house’s sleeping mould, inert in the dining room, busy being born and dying. III But, despite all this, despite this negation of the present time and her youth, the person talking to Baby is, deep down, in love. All the irritation with her lifestyle on the part of this young urbanite of his time is a ruse to convince her of the worth of his love. Every attempt at gratuitously offering information about so many new things is for Baby to get closer and see what he really wants. All that Baby needs to learn is a pre-requisite for her to live at the side of the person who loves her. Baby needs to “know about me”. Baby needs to “hang out with us”, but only to “look at me up close”. And Baby needs to know English so that she can read on his T-shirt the only declaration possible in his time: Baby, I love you. For all this to happen, Baby has to let go of her solitary life and embark on a new adventure, in a new city, at the side of the one who can lead her to modern tropical times. This amorous demand for Baby to live a new life is littered with romantic references, from ice-cream at the diner to the hit by Roberto Carlos (in 1968 he sung about “the songs that you wrote for me”). The T-shirt saying “I love you” closes and, at the same time, opens the proposal for public love, in printed words and carried on an open chest. A love of youth for youth, a love that is the fruit of the times in which girls like Carolina remain alone (“It’s not as if I didn’t show her...”), looking back. And Baby, perhaps, sees that the times are changing and that this is her chance to free herself from her inertia. And so, perhaps she embraces the demand to see her fate up close, finally joins hands with that of her times in happy retribution, also telling life: I love you.
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TRÊS CARAVELAS
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Três caravelas Manuel da Costa Pinto
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“Três caravelas” é o momento em que a devoração antropofágica de Tropicália ou Panis et circencis sai das “relíquias do Brasil” inventariadas por “Geleia geral” para também incorporar o relicário latino-americano. A inserção dessa rumba cubana de Algueró Jr. e Moreu soa tão estranha quanto a inclusão de “Coração materno”, de Vicente Celestino. Mas ambas ocupam um lugar estratégico nesse disco-objeto, montagem alegórica e contraponto musical de Tropicália, o penetrável de Hélio Oiticica que batizou o movimento. O dramalhão de Celestino, segunda faixa do LP, vem logo depois de uma pseudo-canção de protesto, “Miserere nobis”, e antes da eufórica “Panis et circencis”. No lado B, “Três caravelas” é também a segunda faixa: vem logo depois de “Baby” e antes de “Enquanto seu lobo não vem”. Esses dois conjuntos compõem uma geleia dialética, porém com sinais trocados. A primeira sequência parte do Brasil arcaico da primeira missa (celebrada no litoral baiano) e de um cancioneiro que codifica e perpetua uma visão idílico-grotesca do mundo rural, para desembocar no hedonismo moderno de uma “canção iluminada de sol”. Na segunda sequência, esse hedonismo vem associado a uma “antologia de estereótipos de consumo” (nas palavras de Celso Favaretto sobre “Baby”, no livro Tropicália: alegoria, alegria1) e a uma contracultura que é válvula de escape, que se opõe na surdina aos obstáculos oferecidos pelo Brasil oficial, o país militarizado do regime militar. Entre as duas canções, aparece “Três caravelas”, que é uma espécie de ponto de fuga, ao mesmo tempo uma mirada irônica, autocrítica, para o desbunde tropicalista e materialização de suas fusões entre arcai1
Favatetto, Celso F. Tropicália: alegoria, alegria. 2ª edição revista. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996.
co e moderno – ou do cancelamento pós-moderno entre o popularesco e uma tradição popular “autêntica”. A canção de Algueró Jr. e Moreu trata da chegada de Colombo a Cuba – um exagero histórico, já que o navegador genovês só costeou a ilha. A retomada do evento pelos tropicalistas poderia ser vista, portanto, como uma forçação de barra, tentativa de reler a história do continente à luz da revolução cubana de 1959 – impressão que poderia ser reforçada por músicas posteriores como “Soy loco por ti América”, composta por Capinan, Gil e Torquato Neto quando da morte de Che Guevara, e “Quero ir a Cuba”, de Caetano (se bem que esta última termine como os versos “Mamãe eu quero ir a Cuba/ e quero voltar”, numa possível referência ao fechamento das portas da ilha pelo regime de Fidel...). Mas “Três carvelas”, é bom lembrar, aparece aqui na versão de João de Barro (Braguinha). A rumba cubana vem deglutida em versos gaiatos de marchinha de carnaval, o Colombo épico está mais para Chiquita Bacana do que para guerrilheiro fardado. Muita coisa sucedeu Daquele tempo pra cá O Brasil aconteceu É o maior, que que há Crônica do descobrimento e da viagem de Colombo nas naus Pinta, Niña e Santa Maria, a música faz uma ponte com o ideário latinoamericano, absorve um ritmo cubano para reaproximar o Brasil da América e para, num movimento inverso, devolver às possessões maravilhosas do Novo Mundo (na expressão do ensaísta norte-americano Stephen Greenblatt) o “divino maravilhoso” dos tropicalistas. A exemplo de “Coração materno”, letra e música de “Três caravelas” têm em si pouca relação com os ritmos e com a poesia tropicalistas. O que interessa é o gesto de incluir a canção em Tropicália ou Panis et circencis como um corpo estranho, porém com uma organicidade notável e uma igualmente clara consciência da narrativa do Brasil proposta no
disco-manifesto – que, com “Três caravelas”, passa a ser também uma narrativa da América. Mas não de todo o Brasil, nem de toda a América. O Tropicalismo surge na esteira de um cancioneiro que ora coagula idealizações do país (como o samba-canção), ora procura dele se emancipar – seja pela modernização promovida pela Bossa Nova (com seu viés urbano e internacionalizante), seja pela politização de um “Brasil profundo” (supostamente mais autêntico do que aquele veiculado nas ondas da era de ouro do rádio) pelo nacionalismo dos teatros populares e dos movimentos estudantis de arte participante (como o Centro Popular de Cultura da UNE), Nesses dois momentos, ambos carregados de utopias, há um resto que não se encaixa, algo que permanece esquecido – ou melhor, recalcado. Grande operação de desrecalque de um período pós-utópico, em que a reação ao Brasil arcaico desaguou no colapso da modernização autoritária, o Tropicalismo exuma cadáveres, escava ruínas, coloca tudo ludicamente lado a lado, perfaz uma alegoria que desentranha o passado e cancela distinções estéticas entre alta e baixa cultura, libertando-se também das determinações históricas que esmagam o imaginário nacional (vestindo nele a camisa de força do nacionalismo ou a ele reagindo com afetação cosmopolita). Se, de alguma forma, Tropicália ou Panis et circencis retoma os procedimentos modernistas de Oswald de Andrade, três níveis da antropofagia oswaldiana aparecem na apropriação de “Três caravelas”. Em primeiro lugar, a carnavalização da canção original por João de Barro, gravada por Emilinha Borba e, aqui, com a parte em espanhol cantada por Caetano e a parte em português por Gil. Depois, o efeito de deslocamento, a inserção de uma quinquilharia tradicional, até certo ponto cafona e passadista (ou que se tornou kitsch por efeito do tempo), num álbum experimental – resgatando aqueles conteúdos reprimidos pelo senso comum do gosto dominante (marcadamente urbano) e do engajamento estético (marcadamente historicista). Num terceiro momento, por fim, o Brasil mira na Cuba do Che, como um idílio político momentâneo, sintonizado com as tensões da América Latina dos anos 60, mas acerta nessa América barroca, nesse Eldorado a-histórico da miscigenação estética e linguística que o Tropicalismo nos propõe.
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Três caravelas (Las tres carabelas)
A. Algueró Jr. e G. Moreu - versão: João de Barro
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Un navegante atrevido
Em terras americanas
Salió de Palos un día
Saltou feliz certo dia
Iba con tres carabelas
Vinha com três caravelas
La Pinta, la Niña y la Santa María
A Pinta, a Nina e a Santa Maria
Hacia la tierra cubana
Mira, tu, que cosas pasan
Con toda sua valentía
Que algunos años después
Fue con las tres carabelas
En esta tierra cubana
La Pinta, la Niña y la Santa María
Yo encontré a mí querer
Muita cousa sucedeu
Viva el señor don Cristóban
Daquele tempo pra cá
Que viva la patria mía
O Brasil aconteceu
Vivan las tres carabelas
É o maior
La Pinta, la Niña y la Santa María
Que que há?! Viva Cristóvão Colombo Um navegante atrevido
Que para nossa alegria
Saiu de Palos um dia
Veio com três caravelas
Vinha com três caravelas
A Pinta, a Nina e a Santa Maria
A Pinta, a Nina e a Santa Maria
(La Pinta, la Niña y la Santa María)
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Three caravels
A. Algueró Jr. and G. Moreu - version: João de Barro A daring navigator Left Palos one day With three caravels The Pinta, the Niña and the Santa Maria Toward Cuban soil With all his courage He went with three caravels The Pinta, the Niña and the Santa Maria A lot has happened Since that time Brazil emerged It’s the greatest There is! A daring navegator Left Palos one day With three caravels The Pinta, the Niña and the Santa Maria
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Three caravels Manuel da Costa Pinto “Three caravels” marks the moment when the cannibalistic feasting of Tropicália ou Panis et circencis is extended from the “Brazilian reliquaries” listed in “General Jelly”, to incorporate the Latin-American reliquary. The inclusion of this Cuban rumba by Algueró Jr. and Moreu feels as strange as the inclusion of Vicente Celestino’s “Maternal Heart”. But both are placed in strategic order on this record-object, which is both an allegorical montage and musical counterpoint of Tropicália, Hélio Oiticica’s ‘penetrable’ that gave the movement its name. Celestino’s melodrama, the second track on the LP, comes after “Miserere nobis”, a pseudo protest song, and before the euphoric “Panis et circencis”. On the B side, “Three caravels” is also located in second place: between “Baby” and “While Mr. Wolf is gone”. These two sets of songs comprise a dialectic mish-mash, but one with opposite signals. The first sequence starts out with the archaic Brazil of the first mass (celebrated on the Bahian coast) and a school of songs which codifies and perpetuates an idyllic-grotesque vision of the rural world, and ends up with the modern hedonism of a “song illuminated by sun”. In the second sequence, this hedonism comes associated with an “anthology of stereotypes of consumerism” (in the words of Celso Favaretto about “Baby”, in the book Tropicália, Allegory, Joy1) and a counterculture which is an escape valve, that slyly opposes the obstacles erected by official Brazil, the militarized country of the military regime. In between these two songs, “Three caravels” makes its appearance, as a kind of point of escape, an ironic, self-critical overview of the let-it-all-hang-out Tropicalism and the materialization of its fusions between ancient and modern – or the post-modern canceling out of the pseudo-popular and an ‘authentic’ popular tradition. Algueró Jr. and Moreu’s song is about the arrival of Columbus in Cuba – a historical exaggeration, given that the Genoese navigator only sailed around the island. The fact that the Tropicalists took up the event can be seen, however, as forcing the issue, an attempt to revise the history of the continent in the light of the 1959 Cuban revolution – an impression which is reinforced by subsequent songs such as “Soy loco por ti América” - “I’m crazy for you, America”, composed by Capinam, Gil and Torquato Neto on the occasion of Che Guevara’s death, and Caetano’s “Quero ir a Cuba” - “I want to go to Cuba”, (even if the latter ends with the lines “Mommy I want to go to Cuba/ And want to come back”, possibly referring to the closing of Cuba’s ports during the Fidel regime....). But it is worth noting that this “Three caravels” is the version written by João de Barro (Braguinha). The Cuban rumba is swallowed up by the mischievous lines of a carnival march, the Columbus epic becoming more Chiquita Bacana than uniformed guerrilla.
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Favatetto, Celso F. Tropicália: alegoria, alegria. 2nd edition magazine. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996.
A lot has happened Since that time Brazil emerged It’s the greatest There is! A story of the discovery, and of Columbus’ voyage in the caravels Pinta, Niña and Santa Maria, the song makes a bridge between Latin American idea systems, absorbing a Cuban rhythm in order to bring Brazil closer to the Americas and, in the opposite direction, to bring the marvelous possessions of the New World (in the phrase of the American essayist Stephen Greenblatt) to the “marvelous divine” of the Tropicalists. As with the example of “Maternal Heart”, the lyrics and melody of “Three caravels” has in itself little relation to Tropicalist rhythms and poetry. What concerns us is the gesture of including this song in Tropicália ou Panis et circencis as a foreign body, although with a notable coherence and an equally clear idea of the Brazilian narrative proposed by this record-manifesto – with “Three caravels”, the record also becomes the narrative of the Americas. Tropicalism arose in the wake of a song tradition that sometimes coagulates idealizations of the country (such as the samba-ballad), and sometimes attempts to emancipate itself from them – whether by the modernization promoted by Bossa Nova (with its urban and international bias), or by the politicization of a “profound Brazil”, (supposedly more authentic than that broadcast during the ‘golden era’ of radio) , or by the nationalism of the popular theaters and the student movements of participatory art (such as UNE’s Center for Popular Culture). In these two moments, both heavy with utopias, there is a remnant that doesn’t fit in with the rest, something that remains forgotten – or, better still, repressed. Tropicalism can be seen as a great operation of ‘de-repressing’ the post-utopian period, in which the reaction to archaic Brazil flowed out into the collapse of authoritarian modernism, exhuming corpses, digging up ruins, putting everything playfully side by side on the table, completing an allegory that disembowels the past and cancels the esthetic distinctions between high and low culture, equally freeing itself from the historical determinations that crushed the national imagination (either by putting on the straightjacket of nationalism or reacting to this with cosmopolitan affectation). If, to a certain extent, Tropicália ou Panis et circencis returns to the modernist procedures of Oswald de Andrade, three levels of Oswaldian cannibalism can be perceived in this appropriation of “Three caravels”. Firstly, João de Barro’s ‘carnavalization’ of the original song, recorded by Emilinha Borba. Here the Spanish sections are sung by Caetano and the parts in Portuguese by Gil. Secondly, the effect of dislocation, the insertion of traditional knick-knacks, somewhat cheesy and rooted in the past (or which have been turned into kitsch by the effects of time) into an experimental album – rescuing those contents repressed by the commonly accepted dominant taste (markedly urban) and esthetic engagement (markedly historical). In the third and last, Brazil takes aim at the Cuba of Che, as a transient political idyll, synchronized with the Latin American tension of the 1960s, but ends up hitting this baroque America, this a-historical Eldorado of esthetic and linguistic miscegenation that Tropicalism proposes.
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Enquanto seu lobo n達o vem 85
Enquanto seu lobo não vem Newton Cannito
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“Enquanto seu lobo não vem” é uma música atípica no repertório de Caetano Veloso. Lançada em 1968 – durante o recrudescimento da repressão militar, antes da prisão e exílio, e quando os militantes esquerdistas o acusavam de alienação –, é uma das mais explicitamente engajadas e provocativas de seu repertório. “Enquanto seu lobo não vem” é, de todas as suas composições, uma das que mais revela consciência política e dialoga diretamente com Terra em transe, de Glauber Rocha. É também uma música que nos permite conhecer um Caetano Veloso engajado e pessimista que, aparentemente, é muito diferente do atual, costumeiramente acusado de um adesismo à ordem política e de exacerbado otimismo tropical. Na análise dessa música percebemos os paradoxos da obra de Caetano, sempre oscilando entre consciência política e alienação consciente, entre pessimismo existencial e otimismo militante, entre critica e identificação com o objeto criticado, entre alegria e tristeza. Mesmo engajada, a música tropicalista era diferente da música de protesto da época. “Enquanto seu lobo não vem” é uma espécie de versão tropicalista de “A banda”, de Chico Buarque. A canção de Chico constrói um narrador unificado, que se conscientiza do clima sombrio da ditadura ao ver o desfile de uma banda. A elaborada melodia cria um clima melancólico, cheio de lembranças de tempos melhores. “Enquanto seu lobo não vem” não tem espaço para a melancolia consoladora de Chico. Ao contrário, desperta a consciência pelo choque. Começa como uma fábula infantil de Chapeuzinho vermelho (“Vamos passear na floresta escondida, meu amor”). Mas, de repente, entram instrumentos de sopro, percussão e uma contravoz, construindo
um ambiente sonoro dissonante, típico do Tropicalismo. O desfile militar se mistura com o desfile carnavalesco e a mistura prossegue na mixagem de vários sons e letras, incluindo acordes do “Hino da internacional comunista”, um trecho de “Dora”, de Dorival Caymmi (“os clarins da banda militar”), um acorde do “Hino a Bandeira” e referências ao slogan estudantil dos parisienses de 68 (Sous les pavés, la plage; Debaixo dos paralelepípedos, a praia), até terminar “debaixo da cama”. É como se o tom militar fosse misturado a inúmeras outras linhas musicais e poéticas, construindo um caldeirão (ou uma “geleia geral”) tipicamente tropicalista. “A banda” remete ao culto do primitivo, do cinema de narrativa clássica que já não cabia mais no país da ditadura e do AI-5. “Enquanto seu lobo não vem” remete a alegorias do cinema moderno, como O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, que revela um país nonsense e sem saída. A tradição das fabulas distópicas A comparação com “Alegria, alegria”, outro clássico de Caetano, também ajuda a entender as especificidades de “Enquanto seu lobo não vem”. “Alegria, alegria” demonstra a capacidade antropofágica do compositor de recriar as canções de protesto em tom de arte pop. As “caminhadas” de transformação, recorrentes na música de Geraldo Vandré (como em “Pra não dizer que não falei das flores”), transformam-se numa “caminhada” sem rumo, mas de quem curte o instante. A “caminhada” de “Enquanto seu lobo não vem” constrói outro sentido. Ao invés de explicitar uma passeata, a música se refere ao passeio e ao desfile! Embaralha o ponto de vista do narrador, e fica difícil definir se fala do ponto de vista do jovem de esquerda, ou do senhor de direita. E tal como as alegorias do cinema marginal e de Terra em transe, a caminhada aqui é cíclica, construindo um exasperado mundo de insatisfação. Enquanto a música de Vandré lembra a otimista corrida final do herói
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rumo ao mar em Deus e o diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha, a música de Caetano remete à estrada vazia do final de O anjo nasceu, de Júlio Bressane. “Enquanto seu lobo não vem” mostra que seu autor também sabe construir distopias que revelam o non-sense tupiniquim. Essa linha da fábula política satírica é, no entanto, pouco desenvolvida na obra posterior de Caetano. Outro exemplo de música mais “engajada” é “Haiti” do disco Tropicália 2 (com Gil). Mas, comparada a “Enquanto seu lobo não vem”, “Haiti” é uma música mais didática e, mesmo usando os já tradicionais procedimentos da poesia concreta, com feição mais “realista”. Tal como um Vertov musical, ou um Maiakoski brasileiro, em “Haiti” Caetano recolhe “fatos-vida” e os remonta em livres procedimentos poéticos. Mas o autor não tem dúvidas da importância de sua denuncia e da seriedade da situação. Ou seja, não há em “Haiti” o tom de paródia que “Enquanto seu lobo não vem” possui, e que desperta o incômodo critico no ouvinte.
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Será que Caetano virou um músico alegre? Fica a pergunta: por que será que “Enquanto seu lobo não vem” é uma composição atípica no repertório de Caetano? Por que essa linha foi abandonada? Parece que Caetano luta para abandonar seu natural “pessimismo paulista” e para alcançar o “otimismo tupiniquim”. Ele parece se esforçar para superar seu natural intelectualismo, sua natural consciência política. Ele passou a vida tentando superar a tristeza do exílio para voltar à alegria do instante. Em entrevistas, Caetano descreve seu caminho pessoal como uma progressiva conquista da técnica musical. Essa opção existencial tem a ver com um projeto estético de elevar a música popular brega ao refinamento da Bossa Nova, tal como ele fez em suas regravações das músicas de, entre outros, Peninha (por exemplo, na canção “Sozinho”1). Caetano foi deixando de ser apolíneo para se tornar dionisíaco, foi deixando de ser formiga para se tornar cigarra. Ou foi – na linguagem dos intelectuais mais politizados – se alienando. Ou ainda: foi se alienando da política para se conscientizar da música. Sua autoconsciente alienação tem chocado os alienados intelectuais “conscientes”. Uma de suas polêmicas mais famosas foi quando defendeu o grupo É o Tchan (de Carla Perez e da dança da boquinha da garrafa). Polêmicas como essa são constantes em sua carreira e são, antes de tudo, happenings de intervenção artística. Em Verdade tropical, Caetano revela que planejou detalhadamente sua atuação no III Festival de Música Popular Brasileira onde polemizou com “É proibido proibir”. Tal como um intelectual orgânico, atua como um guerrilheiro no campo minado da indústria cultural. Do ponto de vista de intelectuais clássicos, e ciosos de uma suposta verdade absoluta, sua postura é um “pecado 1
Entrevista para o site Trópico. Acessado em 15/03/2010 em: http://pphp.uol.com.br/tropico/ html/textos/1281,1.shl.
inadmissível”. Mas do ponto de vista de um militante contemporâneo, que joga com o processo e acredita que o artista deve ser movido por uma permanente verdade mutante, suas polêmicas ganham outro sentido. Um único exemplo: foi ao enfrentar o publico de estudantes de esquerda que Caetano rompeu a fronteira entre Bossa Nova e Jovem Guarda. É a intervenção no instante que gera o movimento contínuo. É o que muito mais tarde o militante Hakim Bey chama de T.A.Z., Zona Autônoma Temporária. É por isso que – por contraditório que seja - a defesa da indústria do axé e da música brega é o lado mais racional de Caetano. É defendendo a alienação que Caetano se revela consciente. Sua alegria é uma postura consciente e faz parte de um projeto político, de dissolver as contradições do país pela alegria. Mas se Caetano fosse só isso, seria apenas um poeta alienado e/ ou um bobo alegre otimista. Mas ele é mais que isso. Em músicas como “Enquanto seu lobo não vem”, o poeta revela seu lado sombrio, mais soturno. Uma análise mais atenta de sua obra mostra que Caetano “flerta” com o “pessimismo paulista” que tanto odeia e está presente em filmes como Cronicamente inviável, de Sérgio Bianchi, (que ele próprio chamou de “uma porcaria, um abacaxi de caroço”2). Se Caetano fosse apenas alegre, não seria um grande poeta. Sua tristeza e seu pessimismo lhe dão subsídios para que supere a alegria alienada dos antidepressivos. Ou, como diz Vinicius de Moraes, em ”Samba da benção”: É melhor ser alegre que ser triste Alegria é a melhor coisa que existe É assim como a luz no coração Mas para fazer um samba com beleza É preciso um bocado de tristeza É preciso um bocado de tristeza Senão, não se faz um samba não Para concluir, podemos dizer que Caetano poderia ter sido um pessimista distópico tão talentoso quanto qualquer paulista pessimista. Mas vem optando conscientemente pela alegria. O que para alguns é alienação, para mim é outro tipo de consciência política. E também, de saída existencial. E de novo lembrando Vinicius: Porque o samba é a tristeza que balança E a tristeza tem sempre uma esperança A tristeza tem sempre uma esperança De um dia não ser mais triste não
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Função da arte não é fazer política, diz Ferreira Gullar. Folha de S. Paulo. Acessado em 17/03/2010: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u477423.shtml
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Enquanto seu lobo não vem Caetano Veloso
Vamos passear na floresta escondida, meu amor Vamos passear na avenida Vamos passear nas veredas, no alto meu amor Há uma cordilheira sob o asfalto 90
(Os clarins da banda militar…) A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
(Os clarins da banda militar…)
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das bombas, das bandeiras
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das botas
Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar…)
(Os clarins da banda militar…)
Debaixo das rosas, dos jardins
Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
(Os clarins da banda militar…)
Vamos passear escondidos
Debaixo da lama
Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
(Os clarins da banda militar…)
Vamos por debaixo das ruas
Debaixo da cama
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While mr. wolf is gone Caetano Veloso
Let’s stroll through the forest and hide, my love Let’s stroll down the avenue Let’s stroll the paths up high, my love There is a mountain over the asphalt (The horns of a military band)
(The horns of a military band)
Station One of Mangueira marches down wide streets
Under the bombs, the flags
(The horns of a military band)
(The horns of a military band)
It marches under President Vargas Avenue
Under the boots
(The horns of a military band)
(The horns of a military band) Under the roses, under the gardens
Let’s travel through the United States of Brazil
(The horns of a military band)
Let’s travel out of sight
Under the mud
Let’s parade down the street where Mangueira passed by
(The horns of a military band)
Let’s go underneath the streets
Under the bed 91
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While Mr. Wolf is gone Newton Cannito
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“While Mr. Wolf is gone” is an atypical song within Caetano Veloso’s repertoire. Released in 1968 - a time when military repression was intensifying, yet before Caetano’s imprisonment and exile, when the left-wing militants were accusing him of political alienation – it is one of the most explicitly political and provocative of all his compositions, “While Mr. Wolf is gone” is one of those that most reveals his political awareness and directly dialogues with Glauber Rocha’s film Terra em Transe - A Land in Trance. It is also a track which shows us an involved and pessimistic Caetano Veloso, apparently very different from the current Caetano, who is frequently accused of being comfortable with the political status quo and of exaggerated tropical optimism. In the analysis of this song we see the paradoxes in Caetano’s positioning, constantly oscillating between political consciousness and conscientious alienation, existential pessimism and militant optimism, between criticising and identifying with the object of his criticism, between joy and sadness. Even when politically engaged, Tropicalist MPB was different from the protest songs of the time. “While Mr. Wolf is gone” is in some respects the Tropicalist version of Chico Buarque’s “The Band”. Chico constructs a consistent narrator, who gradually becomes aware of the dark nature of the dictatorship as he watches a brass band go by on parade. The elaborate melody creates a climate of melancholy, full of the memories of better times. “While Mr. Wolf is gone” does not permit the consoling melancholy of Chico. The opposite, in fact: it jerks you into consciousness. It starts with echoes of Little Red Riding Hood (“Let’s stroll through the forest and hide, my love”). Then, suddenly, wind instruments, percussion and a second voice come in, building a dissonant environment of sound, typical of Tropicália. The military parade gets tangled up with the carnival parade and the mixing proceeds, adding in various sounds and lyrics, including snatches of the communist anthem “The Internationale”, a quotation from “Dora”, by Dorival Caymmi (“the bugles of the military band”), a line of melody from the Brazilian national anthem, and references to the 1968 Parisian students’ slogan (Sous les pavés, la plage; Beneath the paving stones, the beach), until it ends, “under the bed”. It is as if the military tone becomes mixed with innumerable other musical and political lines, building to a typically Tropicalist mixing pot (or “general jelly”). “The Band” harks back to the cult of the folkloric and to classically narrated cinema, which no longer fitted with the Brazil of the dictatorship and the AI-5 national security law. “While Mr. Wolf is gone” draws on the allegories of modern cinema, such as Rogério Sganzerla’s O bandido da luz vermelha - The Red Light Bandit, which portrays a hopeless, nonsense land. The tradition of dystopic fables Comparison with the other Caetano classic, “Alegria, alegria” – “Joy, Joy”, also helps us understand the specificity of “While Mr. Wolf is gone”. “Joy, Joy” demonstrates the composer’s cannibal-like capacity of recreating protest songs in the tone of pop art. The transforming “marches” which recur in Geraldo Van-
dré’s compositions (such as “Pra não dizer que não falei das flores” - “So as not to say I didn’t speak of flowers”), are turned into a “walk” without destination, by protagonists who are enjoying the moment. The “stroll” in “While Mr. Wolf is gone” builds another meaning. Rather than being a protest march, the lyrics refer to a stroll and to a parade! This confuses the narrator’s point of view, and it is difficult to define if it speaks from the point of view of the young leftist militant or from the adult man of the right. It is like the allegories of marginal cinema and “Terra em transe” – “Land in a Trance” - the walking is cyclic, building an exasperating world of dissatisfaction. While Vandré’s song recalls the optimistic final run of the hero towards the sea in Glauber Rocha’s “Deus e o diabo na terra do Sol “- “God and the Devil in the Land of the Sun”, Caetano’s song recalls the empty highway at the end of Júlio Bressane’s The Angel is Born. “While Mr. Wolf is gone” shows that its author is also able to build dystopias of tupiniquim nonsense. However, Caetano has developed little of this line of satirical political fable in his subsequent work. A second example of his more “engaged” work is “Haiti” on the Tropicália 2 LP (with Gil). But compared to “While Mr. Wolf is gone“, “Haiti” is more didactic and even though he uses the same traditional resources of concrete poetry, it presents a more “realistic” face. Rather like a Vertov musical, or a Brazilian Mayakovsky, in “Haiti” Caetano gathers “life-facts” and resets them in free poetic style. But the author has no doubt of the importance of his denouncement and the gravity of the situation. In other words, “Haiti” does not have the parodic tone of “While Mr. Wolf is gone”, which stirs the discomforted critic in the listener. Has Caetano turned into a joyful musician? The question remains, why is it that “While Mr. Wolf is gone“ is an atypical composition in Caetano’s repertoire? Why did he give up this style? It seems that Caetano struggles to get away from his natural “São Paulo pessimism” in order to attain a “tupiniquim optimism”. He appears to have to make an effort to overcome his natural intellectualism, his natural political consciousness. He has spent his life trying to overcome the sadness of exile in order to return to the joyfulness of the ‘now’. In interviews, Caetano describes his personal journey as a progressive mastering of musical technique. This existential option is related to an esthetic life project of raising low-brow popular music to the refinement of Bossa Nova, such as he has done in his cover versions of songs by, among others, Peninha (for example, the ballad “Sozinho”1). Caetano has been becoming less Apollonian and more Dionysian, becoming less ant-like and more of a grasshopper. Or – in the language of the more politicized intellectuals - has been becoming more alienated. Or, again, has been alienating himself from politics in order to become musically conscious. His selfconscious alienation has come up against the “conscious” alienated intellectuals. One of his most notorious polemics was when he defended the group É o Tchan (with Carla Perez and the dance of the bottle neck). Such polemics have become a constant in his career and are, first and fore1
Interview for the site Trópico. Accessed on 15/03/2010 in: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/ textos/1281,1.shl.
most, happenings of artistic intervention. In his autobiography Verdade Tropical Tropical Truth, Caetano reveals that he planned his actions at the III Festival of Brazilian Popular Music in detail, achieving the maximum provocation with “É proibido proibir” - “It’s forbidden to forbid”. As an organic intellectual, he acts as a guerrilla in the minefield of the cultural industry. From the point of view of classical intellectuals, who claim a supposed absolute truth, his position is the “cardinal sin”. But from the point of view of a contemporary militant, who plays with the process and believes that the artist must be motivated by the ever-changing truth, his polemics take on another meaning. A single example: it was by confronting the left-wing student public that Caetano broke down the divide between Bossa Nova and Jovem Guarda. It is the instant intervention that produces continual movement. Only much later did the militant Hakim Bey coin the term T.A.Z., Temporary Autonomous Zone. And it is for this reason that – as contradictory as it appears – his defence of the Axé and low-brow music industries shows the most rational side of Caetano. By defending alienation, Caetano reveals himself to be aware. His joyfulness is a conscientious position and is part of a political strategy to dissolve the contradictions in the country through joy. But if Caetano was just this, he would be merely an alienated poet and/or a happy, optimistic fool. But he is more than this. In songs such as “While Mr. Wolf is gone”, the poet reveals a darker, more sullen side. A more profound analysis of his work shows that Caetano “flirts” with the “São Paulo pessimism” which he so detests and which is present in films such as Sérgio Bianchi’s Cronicamente inviável - Chronically unviable (which he himself described as “garbage, really irritating”2). If Caetano was always happy he wouldn’t be a great poet. His sadness and pessimism give him the necessary supports to overcome the alienated joyfulness of the anti-depressives. Or, as Vinicius de Moraes sings in “Samba da benção” “The Blessing Samba”: Better to be happy than sad Joy is the best thing in the world It’s like a light in the heart But to write a samba of beauty You need a little sadness You need a little sadness Or you cannot write a samba In conclusion, we could say that Caetano might have been a dystopic pessimist as talented as any other pessimistic Paulista. But he has been consciously opting for joy. While for some this might be alienation, for me it is a different type of political consciousness. And it is also an existential solution. Again, remembering Vinicius: Because samba is the sadness that dances It’s the sadness that always has hope The sadness that always has hope That one day it will no longer be sad 2
Função da arte não é fazer política, diz Ferreira Gullar. Folha de S. Paulo. Accessed on 17/03/2010: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u477423.shtml
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MAMテウ CORAGEM
Mamãe coragem Braulio Tavares A luta de gerações dos anos 1960 foi em muitos casos um mero divórcio entre pais e filhos, uma separação, às vezes amigável, às vezes litigiosa. Duas vidas que caminham juntas até que uma delas, para desespero da outra, decide seguir noutra direção. Diminuiu o número de pais que expulsavam de casa os filhos rebeldes, e aumentou o de filhos que tomavam a iniciativa de ir embora. O tom dessa separação foi dado em 1963 por Bob Dylan (“The times they are a-changin”):
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Venham, pais e mães de todos os lugares, e não critiquem o que não conseguem entender. Seus filhos e filhas não obedecem mais seu comando, sua velha estrada está ficando cada vez mais velha; desocupem a estrada nova, já que não querem ajudar, porque os tempos estão mudando. A canção emblemática da separação entre pais e filhos foi “She’s leaving home”, que os Beatles lançaram em 1967 no disco Sgt. Pepper’s. É uma canção narrativa; um curta-metragem em que uma garota, ao amanhecer, sai silenciosamente do quarto e desce as escadas, com direito a planos de detalhe (“clutching her handkerchief”, “turning the backdoor key”); na segunda sequência, a mãe encontra o bilhete de despedida: O pai ronca, enquanto a mãe veste o roupão e encontra a carta largada ali. Parada, sozinha no topo da escada ela começa a chorar e grita para o marido: Pai, nossa filhinha foi embora! Por que ela nos tratou de um jeito tão impensado? Como pôde fazer isso comigo? A melodia é tipicamente Paul McCartney, com um arranjo de cordas e harpas; mesmo sendo uma canção que exprime a ideologia drop out dos anos 1960, “She’s leaving home” não é um rock, não tem guitarras, não tem nada de agressivo. Capta a angústia e a nostalgia de quem se descobre subitamente abandonado, e também a saudade antecipada de quem deixa para trás pessoas que ama, mas com as quais não consegue mais conviver. É uma canção de separação, canção doída sobre um
amor que não deu certo (assim como o são “Girl”, “For no one”, “The long and winding road”). Só que no caso de “She’s leaving home” o amor que não deu certo é o amor entre pais e filhos. Os pais imaginavam para eles um futuro que refletisse seu passado: trabalhar para ganhar, e ganhar para consumir. Os filhos não viam sentido nisso: queriam divertir-se (“fun is the one thing that money can’t buy”). “Mamãe coragem” é um comentário e uma expansão dessas canções. Torquato Neto e Caetano Veloso imaginam uma carta enviada pela garota para sua mãe, já algum tempo depois da fuga. É um gesto de carinho de quem se preocupa com aquelas pessoas com quem não conseguia mais conviver. O título (uma citação irônica à peça Mãe coragem e seus filhos de Bertolt Brecht) significa na verdade: “Coragem, mamãe!”. Na canção dos Beatles, o personagem que foge de casa é uma moça; na de Torquato e Caetano, o seu sexo só é sugerido pelo fato de ser Gal Costa a intérprete escolhida. É uma conversa entre duas mulheres, filha e mãe, à sombra do Titanic, de onde uma está fugindo e onde a outra permanece por fidelidade à própria história. Uma das coisas mais curiosas dos ideais da contracultura é a infinita plasticidade que os adaptava a ambientes diversos, fazendo com que o lamento de jovens oriundos das classes operárias britânicas fosse endossado por jovens da afluente e ensolarada Califórnia ou por jovens de um Brasil heterogêneo: carioca, paulistano ou nordestino. “Mamãe coragem” exprime esse quebra-cabeça cultural em que temas poéticos do “som universal” da época são postos em movimento pela emoção comprimida de um piauiense e um baiano. O mesmo Torquato que escreveu: “Adeus, vou pra não voltar, e onde quer que eu vá sei que vou sozinho”; e o mesmo Caetano que cantou “No dia em que eu vim-me embora minha mãe chorava em ai, minha irmã chorava em ui e eu nem olhava pra trás”. O recado agora insiste: Mamãe, mamãe, não chore A vida é assim mesmo Eu fui embora Mamãe, mamãe, não chore Eu nunca mais vou voltar por aí Mamãe, mamãe, não chore A vida é assim mesmo eu quero mesmo é isto aqui Era preciso reafirmar, repetir, dizer mais uma e mais outra vez aos pais: está tudo bem, o mundo não está se acabando, ninguém está me forçando a isto, eu quero mesmo é isto aqui. “De vez em quando brinco Carnaval”, o que descreve bem o dia-a-dia dos jovens da contracultura,
capazes de criar um carnaval particular independente do calendário, com apenas uma dúzia de pessoas, na hora que lhes desse na telha. A imensa submissão dos filhos antigos é substituída por um orgulhoso “eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz – mamãe, seja feliz”. O Tropicalismo tinha um impulso afetivo de crítica aos costumes e um impulso intelectual de crítica à linguagem. Essa última crítica tem dois grandes momentos nessa canção. O primeiro é a desconstrução do (ou intervenção poética no) clássico soneto de Coelho Neto, dizendo: “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração... dos filhos”. Esse verso ecoa a presença do “Coração materno” de Vicente Celestino, serve como uma irônica nota de pé de página ao dramalhão surreal dessa canção que fez chorar circos inteiros. É típico do Tropicalismo esse gesto simultâneo de afeto e de crítica, de zombar de algo que nos comove, de ridicularizar o kitsch assumindo-o. O segundo momento é a citação de dois romances do universo do folhetim: Pegue uns panos pra lavar Leia um romance Leia Alzira morta virgem O grande industrial O primeiro é uma obra publicada no Rio de Janeiro em 1883 por Pedro Ribeiro Vianna, e conta a história da moça (Alzira, muitas vezes citada como “Elvira” ou “Elzira”) que morre por não poder casar com o homem que amava, por oposição dos pais; o segundo, Le maître de forges, é um romance de Georges Ohnet publicado em 1881 e levado ao teatro em Paris em 1883, e é a obra mais famosa desse escritor cujo ciclo romanesco Les batailles de la vie se opunha ao naturalismo dos Rougon-Macquart de Zola. Livros que são, nessa letra de música, a ponta de um iceberg cultural gigantesco e invisível, os romances-folhetim que forjaram o imaginário sentimental e os decálogos de valores morais de gerações de brasileiros interioranos, às quais certamente pertenciam os pais de Torquato Neto e de Caetano Veloso, assim como pertenceram os meus próprios pais. Melodramas em prosa repletos de intrigas maquiavélicas, paixões impossíveis, traições monstruosas, ambições desmedidas e todos os elementos capazes de serem elevados ao quadrado por um adjetivo bombástico. Autores estrangeiros como Xavier de Montepin (Os fantoches de madame Diabo), Michel Zevaco (Os Pardaillans), Émile de Richebourg (A toutinegra do moinho), Enrique Perez Escrich (O mártir do Gólgota), Ponson du Terrail (Rocambole), ou autores nacionais como Carneiro Vilela (A emparedada da rua Nova) e tantos outros.
Mães e pais liam, em seus serões domésticos, numa época em que até o rádio era novidade, esses romances caudalosos que acabaram, por vias transversas, contaminando a própria literatura de cordel produzida nas cidades para consumo no campo, pois há notícia de adaptações de Elzira em folhetos de João Martins de Athayde, Firmino Teixeira do Amaral e Luiz Gomes de Albuquerque. E que contaminou também a música popular brasileira das primeiras décadas do século 20, com suas canções tonitruantes e suas crônicas lacrimosas de paixões mal sucedidas. (Contaminou também a telenovela, é claro – mas aí já é outra história.) O folhetim era a face literária e Vicente Celestino era a face musical dessa estética inflada, ornamental, em que veemência era um sinônimo de talento, e paroxismo emotivo era tido como prova de sinceridade. Uma estética que começou a ser negada pela voz de João Gilberto e seus seguidores. O Tropicalismo é visto por muita gente como um culto ao exagero, mas foi igualmente importante seu culto ao minimalismo, sua maneira de chegar dizendo “menos, pessoal... menos...” num ambiente poético e musical com gosto pelo beletrismo, pelo dramalhão rasgado, pela emotividade tão intensa que começava a parecer mero teatro. Essa estética do melodrama na canção começou a ser negada, esvaziada e neutralizada pelo distanciamento brechtiano trazido por esses jovens cantores e compositores, cujo grupo veio propor leveza onde havia dramaticidade, franqueza onde existiam segredos inconfessáveis, bom humor e lucidez num ambiente que cortejava a tragédia convulsa. “Mamãe coragem” mostra essa ambivalência positiva; não se trata de destruir o mundo velho, mas simplesmente mudar-se para o mundo ao lado e recomeçar. Os tropicalistas eram capazes de comover-se com uma coisa e rir dela ao mesmo tempo, o que parecia impossível para as gerações anteriores. No período tropicalista e pós-tropicalista, o tema “matar a família” (já presente, por certo, no próprio “Coração materno”) pipocava aqui e ali a todo instante, na música, na literatura, no cinema, no teatro. Artistas tão diferentes quanto Jim Morrison (“The end”), Julio Bressane (Matou a família e foi ao cinema), Peter Bogdanovich (Targets) atravessaram esse pesadelo movediço, deram asas a essa cobra mental que Freud explica. Muitos se deixaram desafiar por essa necessidade, que talvez seja mais da espécie do que do indivíduo, de destruir para poder criar, ou de extinguir o passado para não ceder à tentação de nunca ir embora dele. “Mamãe coragem” é a versão benigna desse rompimento: uma separação que não exclui o afeto, uma despedida de quem não volta mais, mas não quer ver ninguém sofrendo mais que o inevitável. Mais ou menos o que o Tropicalismo tentava fazer, romper com toda uma tradição poética e musical ao mesmo tempo em que reconhecia ser parte viva e consequência dela.
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Mamãe coragem
Caetano Veloso e Torquato Neto
Mamãe, mamãe, não chore Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz Mamãe, seja feliz
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Mamãe, mamãe, não chore
Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Não chore nunca mais, não adianta
Eu fui embora
Eu tenho um beijo preso na garganta
Mamãe, mamãe, não chore Eu nunca mais vou voltar por aí
Eu tenho um jeito de quem não se espanta
Mamãe, mamãe, não chore
(Braço de ouro vale 10 milhões)
A vida é assim mesmo
Eu tenho corações fora peito
Eu quero mesmo é isto aqui
Mamãe, não chore Não tem jeito
Mamãe, mamãe, não chore
Pegue uns panos pra lavar
Pegue uns panos pra lavar
Leia um romance
Leia um romance
Leia Alzira morta virgem
Veja as contas do mercado
O grande industrial
Pague as prestações
Eu por aqui vou indo muito bem
Ser mãe
De vez em quando brinco Carnaval
É desdobrar fibra por fibra Os corações dos filhos
E vou vivendo assim: felicidade
Seja feliz
Na cidade que eu plantei pra mim
Seja feliz
E que não tem mais fim Não tem mais fim Não tem mais fim
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Mother courage
Caetano Veloso and Torquato Neto
Mommy, mommy, don’t cry I want, I can, I wanted, I did it Mommy, be happy
Mommy, mommy, don’t cry
Mommy, mommy, don’t cry
Life is like this
Don’t cry ever again, it’s no use
I went away
I have a kiss stuck in my throat
Mommy, mommy, don’t cry I will never return home
I’m not one to get scared
Mommy, mommy, don’t cry
(Arm of gold is worth 10 million)
Life is like this
I have hearts outside my chest
I want what I have here
Mommy, mommy, don’t cry It’s no use
Mommy, mommy, don’t cry
Get some washcloths
Get some washcloths
Read a novel
Read a novel
Read “Alzira Dead Virgin”
Review the grocery bill
“The ironmaster”
Pay the installments
I’m doing fine over here
To be a mother
Now and again I revel in carnival
Is to unravel fiber by fiber Her children’s hearts
And I go on living this way: happiness
Be happy
In this city that I planted for me
Be happy
And that has no end It has no end It has no end
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Mother Courage Braulio Tavares
The struggle between generations in the 1960s was in many cases merely a divorce between parents and their children, a separation, sometimes amicable, sometimes not. Two lives traveling together until one of them, to the despair of the other, decides to follow another direction. The number of parents expelling their rebellious children from home diminished, and the number of children making their own decision to leave increased. The tone of this separation was given in 1963 by Bob Dylan (“The times they are a-changin”):
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Come mothers and fathers Throughout the land And don’t criticize What you can’t understand Your sons and your daughters Are beyond your command Your old road is Rapidly agin’. Please get out of the new one If you can’t lend your hand For the times they are a-changin’ The iconic song of separation between parents and their children was “She’s leaving home”, which the Beatles released in 1967 on the record Sgt. Pepper’s. The song is a narrative; like a short film in which a girl, at dawn, silently leaves her room and goes down the staircase, with detailed cinematographic takes (“clutching her handkerchief”, “turning the backdoor key”); in the second sequence, her mother finds the goodbye note: Father snores as his wife gets into Her dressing gown Picks up the letter that’s lying there Standing alone at the top of the stairs She breaks down and cries to her husband “daddy, our baby is gone” Why would she treat us so thoughtlessly? How could she do this to me? The melody is typically Paul McCartney, with a string arrangement and harps; even though it is a song expressing the 60s ideology of dropping out, “She’s leaving home” is not a rock song, there are no guitars, nothing aggressive. It captures the nostalgia of one who suddenly discovers herself abandoned, and also the anticipation of homesickness of one who’s leaving behind the people she loves. It’s a song of separation, a painful song about a love that hasn’t worked out (as are “Girl”, “For no one”, “The long and winding road”). Except in the case of “She’s
leaving home” the love that didn’t work out is the love between parents and children. The parents imagined a future for themselves that reflected their past: working to earn, and earning to consume. Their children didn’t see the point in this: they wanted to have fun (“fun is the one thing that money can’t buy”). “Mother Courage” is a comment and an expansion on these songs. Torquato Neto and Caetano Veloso imagine a letter sent by a girl to her mother, already some time after her leaving. It is a gesture of affection and worry for the people she was unable to continue living with. The title (an ironic reference to the play Mother courage and her children by Bertolt Brecht) in fact means: “Courage, mother!”. In the Beatles song, the character who leaves home is a girl; in that of Torquato and Caetano, the sex is only suggested by the fact that Gal Costa was chosen to sing it. It is a conversation between two women, daughter and mother, in the shadow of the Titanic, from which one is escaping and on which the other remains through loyalty to her fate. One of the most curious ideals of the counterculture is the infinite plasticity which adapts them to different environments, so that the laments of young men from the British working class were endorsed by young people from affluent and sunny California or by the young of heterogeneous Brazil: from Rio, São Paulo or the northeast. “Mother courage” expresses this cultural puzzle in which poetic themes from the “universal sound” of the time are set in motion by the compressed emotion of a man from the Brazilian state of Piaui and another from Bahia. The very Torquato who wrote: “Goodbye, I’m leaving to never return, and wherever I go I know I’ll go alone”; and the very Caetano who sang “On the day that I left my mother cried ay, my sister cried ooh and I didn’t even look back”. The message now insists: Mommy, mommy, don’t cry Life is like this I went away Mommy, mommy, don’t cry I will never return home Mommy, mommy, don’t cry Life is like this I want what I have here It had to be restated, repeated once again, and then again, to the parents: it’s ok, the world isn’t ending, nobody’s forcing me to this, what I want is this. “Sometimes I revel in Carnival”, describes well the day-to-day of counterculture youth, able to create a private carnival independently of the calendar, with just a dozen people, whenever they feel like. The total submission of the children of yesteryear is replaced by a proud “I want, I can, I wanted, I did it – Mommy, be happy”. Tropicalism had an emotional urge to criticize customs and an intellectual urge to criticize language. This last criticism has two great moments in this song. The first is the deconstruction of (or poetic intervention in) the classic sonnet of Coelho Neto, that says: “To be a mother is to unravel fiber by fiber, her children’s hearts ...”. This verse echoes the presence of “Maternal Heart” by Vicente Celestino, serves as an ironic footnote to the surreal melodrama of this song that makes whole circuses cry. This simultaneous gesture of affection and criticism, of making fun of something that moves us, of ridiculing kitsch by being more so, is typical of Tropicalism. The second moment is the quoting of two romances from the world of the dime novel (or “penny dreadful” as they were known in Britain): Get some washcloths Read a novel Read “Alzira dead virgin” “The ironmaster”
The first is a book published in Rio de Janeiro in 1883 by Pedro Ribeiro Vianna, and tells the story of a young woman (Alzira, often cited as “Elvira” or “Elzira”) who dies because she cannot marry the man she loves due to her parents’ objections; the second, Le maître de forges, is a novel by Georges Ohnet published in 1881 and adapted for the Parisian stage in 1883, and is the most famous work by the writer, whose Romanesque series Les batailles de la vie opposed the naturalism of Rougon-Macquart by Zola. These books in the lyrics of the song, are the tip of a gigantic, invisible cultural iceberg: the pulp fiction that forged the sentimental imagination and moral values for generations of Brazilians in the provinces, to which certainly the parents of Torquato Neto and Caetano Veloso belonged, as did my own. Prose melodramas full of Machiavellian intrigue, impossible passions, monstrous betrayals, excessive ambitions and all the elements capable of being elevated by a pompous adjective. Foreign authors such as Xavier de Montepin (Les Pantins de madame le Diable), Michel Zevaco (Les Pardaillan), Émile de Richebourg (La Fauvette du Moulin), Enrique Perez Escrich (El mártir del Gólgota), Ponson du Terrail (Rocambole), or Brazilian authors such as Carneiro Vilela (A emparedada da rua Nova) and many others. Mothers and fathers read, in their domestic gatherings at a time when even the radio was a novelty, these torrential novels that ended up, by parallel routes, contaminating the popular literature produced in the cities for rural consumption, because there is evidence of adaptations of Alzira in pamphlets by João Martins de Athayde, Firmino Teixeira do Amaral and Luiz Gomes de Albuquerque. And which also contaminated Brazilian popular music in the early decades of the 20th century, with its deafening songs and tear jerking stories of ill-fated passions. (It also contaminated the TV soap opera, of course – but that’s another story.) Pulp fiction was the literary, and Vicente Celestino the musical face of this inflated ornamental esthetic, in which vehemence was synonymous with talent and emotional paroxysm proof of sincerity; an esthetic that began to be rejected by the voice of João Gilberto and his followers. Tropicalism is seen by many as a cult of exaggeration, but it was just as important for its cult of minimalism, its manner of arrival, saying “less, guys... less ...” in a poetic and musical environment with a taste for intellectualism, for effusive melodrama, for an emotionalism so intense that it began to appear merely theatrical. This esthetic of melodrama in songs began to be rejected, frustrated and neutralized by the Brechtian distancing brought by these young singers and composers, whose group arrived proposing levity where there had been drama, frankness where there were unconfessable secrets, good humor and lucidity in an environment that courted convulsive tragedy . “Mother courage” shows this positive ambivalence; it’s not to do with destroying the old world, but of simply moving to a parallel world and recommencing. The Tropicalists were capable of being moved by something and laughing at it at the same time, which appeared impossible to previous generations. In the Tropicalist and post-Tropicalist periods, the theme “killing the family” (certainly already present in “Coração materno – Maternal Heart”) sprung up here and there all the time, in music, literature, the movies and theater. Artists as different as Jim Morrison (“The end”), Julio Bressane (Matou a família e foi ao cinema – “He killed the family and went to the movies”), Peter Bogdanovich (Targets) traversed this shifting nightmare, gave wings to this mental snake that only Freud could explain. Many let themselves be challenged by this need, which perhaps is more of the species than the individual, of destroying in order to create, or extinguishing the past so as not to give in to the temptation of never leaving it. “Mother courage” is the benign version of this rupture: a separation that doesn’t exclude affection, a farewell from someone who will not return, but doesn’t want to see anyone suffer more than they have to. More or less what Tropicalism tried to do, break with a whole poetical and musical tradition at the same time as recognizing that it was a living part and consequence of it.
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BATMAKUMBA 102
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Batmakumba Antonio Risério
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O movimento tropicalista se configurou com uma estratégia e uma tática. Na estratégia, a retomada da “linha evolutiva” de João Gilberto e do movimento “antropofágico” de Oswald de Andrade. No plano tático, principalmente, o rock internacional (Beatles à frente), a Jovem Guarda, a poesia concreta, a arte pop, a vanguarda musical concreto-eletrônica à Stockhausen, via Rogério Duprat. Foi a partir desse repertório estético-intelectual que os tropicalistas abordaram as realidades brasileiras, com seus muitos desequilíbrios, descompassos e até, para lembrar uma expressão de Serge Gruzinski, suas “dialéticas do mal-entendido”. Na criação estética tropicalista encontramos, tematizada programaticamente, a desconcertante superposição de estratos históricos brasileiros. Nossa heterocronia de país tropical subdesenvolvido da década de 1960 — e não, ainda, do país “emergente”, de que hoje tanto se fala, aqui e em todo o planeta. Em tela, o mosaico brasileiro, panorama de uma nação em cujas cidades e campos coexistiam signos e práticas da modernidade tecnológica, da cultura de massa, e de um mundo arcaico, com técnicas e fazeres primitivos, saberes ancestrais, milenares até. Era o país do pastoreio mais rústico e da indústria automobilística, da pesca artesanal com técnicas ainda indígenas e das emissoras de televisão,
de aldeias perdidas no meio do mato e de núcleos urbanos reluzentes e cosmopolitas, de jacarés e metralhadoras. Ou o Brasil de Maracangalha e Brasília — e de maracangalhas em brasílias —, para recordar o título de um texto de Mário Pedrosa. “Batmakumba” é exemplar, no campo dessa tematização estética da multiplicidade da vida brasileira. Interessante, por isso mesmo, ver como ela se constrói. A ideia de que é possível fazer uma poesia rica com um mínimo de palavras — na tradição (muito mais que na prática) poundiana do dichten = condensare — deu a Augusto de Campos o título de uma coletânea de poemas coloridos — Poetamenos. Poemas inspirados na melodia de timbres ou klangfarbenmelodie de Anton Webern, cultivando a sintaxe espacial numa visualidade à Cummings, que abririam caminho para a fase mais ortodoxa da poesia concreta, centrada na “matemática da composição”. E é justamente a essa “matemática inspirada”, para lembrar outra formulação poundiana, que se filia, em seu procedimento construtivo verbal, a composição “Batmakumba”, parceria de Gilberto Gil e Caetano Veloso. “Talvez, a [letra tropicalista] que mais se aproxime de um poema concreto, como estrutura, seja ‘Batmakumba’, de Gil e Caetano. Em vez da ‘macumba para turistas’ dos nacionalóides que Oswald condenava, parece que os baianos resolveram criar uma ‘batmakumba para futuristas’”, escreveu o próprio Augusto de Campos, em Balanço da Bossa e outras bossas1. De fato, a letra de “Batmakumba” nasce diretamente do momento mais “clássico” da estética concretista. E logo nos traz à mente um poema como “velocidade”, de Ronaldo Azeredo, por exemplo. No texto verbal, a riqueza semântica é alcançada com um repertório reduzido de vocábulos. O máximo no mínimo. Temos a palavra-montagem à James Joyce, batmakumba, seguida alternadamente por um “iê-iê” e um “obá” (bem mais que um simples “oba”). Na palavra portmanteau, o que soa é uma montagem verbal trilíngue. Ouvimos aí bat, a palavra inglesa para “morcego”, que remete a Batman, o homem-morcego das histórias em quadrinhos (e há um momento da letra onde seu nome aparece inteiro), cujo sinal um farol projeta nas noites de Gotham City. Esse herói dos quadrinhos e sua cidade, de resto, gravaram-se na música brasileira — em “Batmakumba”, mas também na “Gotham City” de Macalé e Capinan. Mas a palavra bat- é também um sintagma da língua portuguesa, um semantema ou raiz, anunciando o verbo “bater” — “bate macumba iê-iê”. Palavra que se acopla, morcego e atabaque, ao vocábulo macumba, que integra o léxico da língua portuguesa sincrética que falamos e escrevemos no Brasil, mas é de origem africana. Uma palavra que nos veio com os povos bantos, que durante séculos fizeram a travessia atlântica compulsória, a bordo dos navios negreiros. Ou seja: fundem-se aí um signo pop e uma expressão ancestral, de cunho religioso. De acordo com Yeda Pessoa de Castro, em Falares africanos na Bahia2, “macumba” vem de makuba, palavra que, em quicongo e 1
Campos, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 287.
2
Castro, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras-Topbooks, 2001, p. 270.
quimbundo, significa “reza, invocação”. E, no Brasil, se converteu em designação genérica de manifestações religiosas sincréticas de base “congo-angola”, às quais não faltam ingredientes católico-kardecistas. A expressão batmakumba surge, assim, como um pequeno ideograma de uma noite no mundo urbano-industrial brasileiro, onde temos a projeção de um elemento pop, mass culture, em meio aos tambores de um terreiro de umbanda ou candomblé. Prosseguindo, temos a alternância de “iê-iê” e “obá”. E aqui a estruturação bi(tri)língue do texto, assim como a aproximação direta do moderno e do milenar, é reforçada. É mais um caso de mescla linguística, passando pelo português do Brasil, mas remetendo ao inglês e ao iorubá. No primeiro caso, “iê” é versão abrasileirada, “jovem guarda”, de yeah, partícula tão característica do rock, da música jovem internacional, que foi adotada pelo rock brasileiro e chegou aos compositores da Tropicália. Não nos esqueçamos, aliás, de que, em sua versão brasileira, o primeiro e belo filme dos Beatles, A hard day’s night, circulou com o título Os reis do iê, iê, iê! “Obá”, por sua vez, é palavra de origem iorubana. Designa a deusa Obá, orixá guerreira, umas das três mulheres de Xangô, dançando com sua espada de cobre, colorindo-se de vermelho e amarelo. Significa, também, rei, senhor ou chefe; e aponta para cargos no terreiro de candomblé — no Axé do Opô Afonjá: o grupo de ministros ou obás de Xangô. Vale dizer, temos mais uma vez o pop e o ancestral, atualizados de chofre na paisagem cultural urbana do Brasil. Lembre-se, ainda, que, em outra faixa de Panis et circencis, “Geleia geral”, também musicada por Gilberto Gil, o poeta Torquato Neto recorreu igualmente à fórmula “iê-iê-iê”. E também para fazer uma aproximação direta, imediata, de uma manifestação típica da cultura de massa e de uma manifestação da cultura popular nordestina — o rock e o bumba-meu-boi —, pondo lado a lado, como disse Caetano Veloso, em Verdade tropical, “o folclore tradicional brasileiro e o folclore urbano internacional”3. Torquato: “ê bumba iê-iê boi... ê bumba iê-iê-iê”. E “Geleia geral” é uma das criações poéticas mais caracteristicamente tropicalistas, misturando bananas e Jornal do Brasil, citando o “Manifesto Antropófago” de Oswald (“a alegria é a prova dos nove”) e um texto de Décio Pignatari estampado em Invenção, revista do movimento da poesia concreta: “Na geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e de osso”4. É certo que a expressão “iê-iê-iê” aparece ainda em outras canções compostas ou gravadas pelos tropicalistas, a exemplo de “Marcianita” e “Não identificado”, cantadas por Caetano. Mas é em “Batmakumba” e “Geleia geral” que a vemos em estruturações muito próximas, tanto do ponto de vista sintático quanto na dimensão semântica. Sintaticamente, é a justaposição direta de palavras, sem o emprego de conectivos. Semanticamente, é a justaposição de uma forma da cultura tradicional brasileira e de uma forma da cultura de massa, dentro da estratégia geral da poética tropicalista.
3
Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 296.
4
Invenção, nº 5, ano 6. São Paulo: Edições Invenção, Dez. 1966 - Jan. 1967.
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E há uma correspondência rigorosa, uma solidariedade inquestionável, entre a letra e a música, batuque allegro, em “Batmakumba”. Respondendo a uma pergunta minha, o compositor Tuzé de Abreu fez observações muito interessantes a este respeito: “Trata-se de uma composição quaternária e anacrústica, com a melodia iniciando no segundo tempo (‘batmakumba iê-iê’) e o tempo forte ficando sempre em pausa. O quaternário fica bem claro pelas frases de um bongô e de um contrabaixo. A levada lembra simultaneamente um arremedo de samba ‘funkeado’ (Brasil-Estados Unidos) e do ritmo afro ‘congo’, de origem angolana, usado nos candomblés de caboclo (para entidades como Boiadeiro e Marujo, entre outras), mas também nos candomblés de orixá e inquice, sobretudo nos de [‘nação’] Angola. Parte dessas informações me foi fornecida por dois percussionistas — um deles, Bira Monteiro, especialista em candomblé. Na gravação, temos ainda uma viola, craviola ou similar, fazendo um contraponto livre, que lembra simultaneamente a música modal nordestina e a música tradicional tocada pelo citar da Índia. Por esta via, o som nos remete ainda aos Beatles e aos hippies”. Samba funkeado e referência congo-caboclo, numa composição experimental, pop. Em letra e música. Gilberto Gil e Os Mutantes — o que havia então de mais criativo no rock brasileiro, com Rita Lee e os irmãos Sérgio e Arnaldo Baptista — também justapõem o pop e o ancestral. E o arranjo de Duprat vem mais do que a calhar. É perfeito. Joga misturando batuque e guitarra elétrica. E, aqui chegando, penso que, em resumo, podemos dizer o seguinte: o resultado final e global da composição, em letra e música, é forte, marcante, preciso, construído com rigor e brilho. Ouvindo-a, percebemos seu isomorfismo radical e integral, para empregar a expressão tão cara ao concretismo: cristalização de forma e conteúdo em um único e mesmo estado. Para nos dar o flash precioso de um momento-aspecto do processo histórico-cultural brasileiro, com centros urbanos que tanto experimentavam o influxo da cultura de massa quanto faziam girar orixás, caboclos e pretos velhos. “Batmakumba” é, por isso mesmo e por suas virtudes intrínsecas, uma das mais expressivas e inovadoras peças da produção poético-musical tropicalista.
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Batmakumba
Batmakumba
Batmakumbayêyê batmakumbaobá
Batmakumbayêyê batmakumbaobá
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
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Batmakumbayêyê
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Batmakumba
Batmakumba
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Batman
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Batmakum
Batmakumba
Batmakumba
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Gilberto Gil e Caetano Veloso
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Gilberto Gil and Caetano Veloso
Macumba: Afro-Brazilian religion Yê-yê-yê: Brazilian rock’n’roll Obá: Yoruba deity
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BATMAKUMBA Antonio Risério
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The Tropicalist movement came together with both a strategy and tactics. The strategy was a return to the "evolutionary line" represented by João Gilberto and the “anthropophagic movement” of Oswald de Andrade. The principal influences on the tactical level were international pop music (especially the Beatles), the Jovem Guarda, concrete poetry, pop art, and the pioneers of concrete electronic music to Stockhausen via Rogério Duprat. With these as their esthetic and intellectual points of reference, the Tropicalists confronted the reality of Brazil, with its numerous inequalities and inconsistencies, and in the words of Serge Gruzinski, its “dialectics of misunderstanding”. Esthetically speaking, the work of the Tropicalists includes a disconcerting superimposition of Brazilian historical strata, reflecting the historical anomaly of Brazil as an undeveloped tropical country in the 1960s, and not yet even an "emerging" or developing country, to use the currently preferred terminology. These portray the mosaic which is Brazil, an overview of a nation in which, both in the towns and in the countryside, modern technology and mass culture exist side by side with archaic structures, primitive habits and ancestral, even millennial, popular wisdom, from another age. This was the most rustic, pastoral country, yet with an automobile industry; a country of artisan fishermen employing the same techniques traditionally used by the indigenous population, and of television stations; and of isolated villages in the middle of nowhere and of sparkling cosmopolitan urban conglomerations. In other words, the Brazil of Maracangalha, the prototype fishing village, and Brasília, the custom-made capital — and of maracangalhas within brasilias —, to echo a text by Mário Pedrosa. “Batmakumba” is an example of this esthetic thematization of the multiplicity of Brazilian life. For this reason, it is interesting to look at its construction. The idea that it is possible to produce rich poetry with a minimum of words — in Pound's dichten = condensare tradition (much less so in practice) — provided Augusto de Campos with the title of a collection of colorful poetry — Poetamenos: poems inspired by the tones of the melody, or Klangfarbenmelodie, of Anton Webern, cultivating the spatial syntax in a Cummings-type visual presentation, which would open the way to a more orthodox phase of concrete poetry, centered on the “mathematics of composition”. And it is exactly this “inspired mathematics”, to quote another of Pound’s formulations, which is used, in the process of its verbal construction, in the composition of “Batmakumba” by Gilberto Gil in partnership with Caetano Veloso. “Perhaps, the Tropicalist lyric which comes closest to being concrete poetry, as a structure, is ‘Batmakumba’, by Gil and Caetano. Instead of the ‘macumba for tourists’ of the pseudo-nationalists so condemned by Oswaldo, it would appear that the pair from Bahia decided to create a ‘batmakumba for futurists’”, as Augusto de Campos wrote in “Balanço da Bossa e outras bossas”1. It is true the lyrics for “Batmakumba” emerged directly from the most “classic moment” of concretist esthetics. And they immediately remind us of a poem such as
“velocidade”, by Ronaldo Azeredo, for example. In the verbal text, semantic richness is achieved with a reduced number of words. The maximum in the minimum. A verbal construct à la James Joyce, batmakumba, is followed alternately by a “iê-iê” and an “obá” (much more than a simple “oba”). The sound of the portmanteau word is of a trilingual verbal construct. We hear the English word bat, reminiscent of Batman, the comic strip hero (and at one point in the lyrics the name appears in its entirety), the image of which is projected by a searchlight into the Gotham City night. This comic strip hero and his town is celebrated in Brazilian popular music, not only in “Batmakumba” but also in “Gotham City” by Macalé and Capinan. But the word bat is also a Portuguese syntagm, a semanteme or root indicating the verb “bater” [to beat”] — “beat out macumba yeah yeah”. An association between the word, bat and beat, and the word macumba, which has become part of the vocabulary of the syncretic Portuguese spoken and written in Brazil but is of African origin. The word was brought to Brazil by the Bantu people, who for centuries made the compulsory crossing of the Atlantic aboard the slave ships. In other words, here we have the fusion of a pop symbol and an ancestral expression of religious significance. According to Yeda Pessoa de Castro, in Falares africanos na Bahia (African speech in Bahia)2, “macumba” comes from makuba, which in the Kicongo and Kimbundo languages means “prayer, invocation”. In Brazil, it has become a general term for syncretic religious manifestations of “Congolese-Angolan” origin, but also with elements of Roman Catholicism and Kardecist spiritism. The expression batmakumba thus emerges like a tiny ideogram in the night of urban industrial Brazil, the projection of a pop symbol of mass culture in the middle of the drums in a voodoo umbanda or candomblé temple. Following on from this, we have the alternating “iê-iê” and “obá”. Here the bi(tri)lingual structure of the text, as well as the direct approximation of the modern and the ancient, is reinforced. It is another case of a linguistic blend, Brazilian Portuguese with reference to English and Yoruba, respectively. In the first case, “iê” is the Brazilian “jovem guarda” version of yeah, the interjection so characteristic of rock, of the international music of the younger generation, which was adopted by Brazilian rock and appropriated by the composers of the Tropicália movement. In this connection, it should be remembered that the first Beatles’ film “A hard day’s night”, was given the Brazilian title “Os reis do iê, iê, iê!” [The kings of yeah, yeah, yeah] “Obá”, on the other hand, is a word which comes from Yoruba. The warrior goddess Obá is one of the three wives of Xango, dancing with her copper sword and dressed in red and yellow. It also means king, lord or chief; and it also designates roles within the candomblé temple — in the Axé of Opô Afonjá: the group of ministers or obás of Xangô. In other words, once again we have the pop and the ancestral, contextualized within the urban cultural landscape of Brazil. We should also remember that in another track of Panis et circencis, “Geleia geral” (General jelly), which was also set to music by Gilberto Gil, the poet Torquato Neto also used the formula “iê-iê-iê”, also to make a direct and immediate approximation of a typical manifestation of mass culture and of a manifestation of popular culture from Northeastern Brazil — rock and bumba-meu-boi —, placing side-by-side, in the words of Caetano Veloso in Verdade tropical, “traditional
2 1
Campos, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 287.
Castro, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras-Topbooks, 2001, p. 270.
Brazilian folklore and international urban folklore”3. Torquato: “ê bumba iê-iê boi... ê bumba iê-iê-iê”. And “Geleia geral” is one of the most characteristically Tropicalist poetic creations, mixing bananas and the newspaper Jornal do Brasil, citing Oswaldo de Andrade’s “Anthropophagite Manifesto” (“joy is the acid test”) and a text by Décio Pignatari printed in Invenção, the publication of the concrete poetry movement: “In the overall jelly [geleia geral] which is Brazil, someone has to have the functions of marrow and bone”4. Of course, the expression “iê-iêiê” also appears in other songs composed or recorded by the Tropicalists, such as “Marcianita” and “Não identificado”, sung by Caetano. But in “Batmakumba” and “Geleia geral” we see it in very similar structural contexts, both syntactically and semantically. Syntactically in as much as the words are directly juxtaposed without employing conjunctions, and semantically in the juxtaposition of a form of Brazilian traditional culture and a form of mass culture, within the overall strategy of Tropicalist poetry. There is also a rigorous correspondence, an unquestionable solidarity, between the lyrics and the music, allegro beat, in “Batmakumba”. When I asked the composer Tuzé de Abreu about this, he made the following interesting observation: “It is a quaternary, anacrustic composition, with the melody starting on the downbeat (‘batmakumba iê-iê’) and the upbeat always remaining in pause. The quaternary is clear in the phrasing of the bongo and the bass. The rhythm is simultaneously reminiscent of a "funky" samba (Brazil-USA) and the African ‘congo’ rhythm of Angola, used in caboclo (Afro-indigenous) candomblé rites (with entities such as the cowboy and sailor, etc.), in the candomblés of the orixa (African gods) and iniquice (guardian spirits), and above all in those of the [‘nation’] Angola. I owe some of this information to two percussionists — one of them, Bira Monteiro, is a specialist in candomblé. In the recording there is also a viola, craviola or the like, playing a free counterpoint, which is simultaneously reminiscent of the modal music of Northeast Brazil and traditional music played by the Indian sitar. In this sense, the sound reminds us again of the Beatles and the hippies”. Funky samba and the congo-caboclo reference in an experimental pop composition. In music and lyrics. Gilberto Gil and the Mutantes — the most creative players on the Brazilian music scene of the time, with Rita Lee and the brothers Sergio and Arnaldo Baptista — also juxtaposed the popular and ancestral. And Duprat's arrangement is more than just suitable - it is perfect. It plays with mixing Brazilian batuque drums and electric guitars. And at this point I think that, in summary, we can say that the final and overall result of the composition, music and lyrics, is strong, impactful and precise, rigorously and brilliantly constructed. Listening to it we perceive its radical and integral isomorphism - crystallization of form and content in a single same state, to use an expression beloved of concretism - to give us the precious flash of an aspect-moment of the Brazilian historicalcultural process, with urban centers which both testify to the influx of mass culture and also the whirling of African gods and spirits of dead indigenous people and slaves. For this reason, and for its intrinsic virtues, “Batmakumba” is one of the most expressive and innovative products of Tropicalist musical poetry.
3
Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 296.
4
Invenção, nº 5, ano 6. São Paulo: Edições Invenção, Dez. 1966 - Jan. 1967.
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Hino do Senhor do Bonfin
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Hino do Senhor do Bonfim Jorge Mautner
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A independência do Brasil, como se sabe, foi de maneira geral uma transição quase pacífica. No entanto na Bahia tivemos batalhas para obter nossa liberdade. Para celebrar as vitórias contra a frota portuguesa, cem anos mais tarde foi composto esse hino sublime! Carinhosamente na letra são citados os “nossos pais que nos conduziram à vitória”. O que mais me enternece e me faz estremecer de emoção é que esse hino apregoa simultaneamente a paz, a comunhão, e emana de tudo isto uma sensação do sagrado. É sagrada a colina, e mais sagrado ainda é o ato de perdão implícito, de orgulho por algo maior, e tudo isto diretamente ligado ao Nosso Senhor do Bonfim. Noel Rosa compôs um samba sobre a Bahia, que começa dizendo: “Aonde é que Jesus pregou a sua filosofia?/ Na Bahia, na Bahia”. No hino exalta-se o sincretismo que é, nas palavras de José Bonifácio de Andrada e Silva, a Amálgama. Essa Amálgama, ou esse Amálgama, tão imensa é sua abrangência que pode ser masculina ou feminina, esse ou essa Amálgama. Em 1823, José Bonifácio afirma que essa Amálgama é fundamental característica da essência do Brasil, e que nenhum outro povo ou cultura a possui em tamanha plenitude! Acrescenta José Bonifácio que essa Amálgama, tão difícil de ser feita, é nossa imensa originalidade. Ela é mistura, mas é mais do que isso, é miscigenação, mas é também mais do que isso, é uma combinação alquímica flutuante, é aquilo que faz com que o brasileiro e a brasileira reinterpretarem tudo, todos os fenômenos, em um milionésimo de segundo e mais ainda, absorvendo e incluindo pensamentos contrários e opostos alcançando o caminho do meio, a sabedoria do equilíbrio instantâneo, a meta de Aristóteles, Lao-Tse, Buda e Heráclito. O sonho da Humanidade! A Amálgama é esse ponto de equilíbrio sempre em mutação, que é o jogo de cintura em termos populares. Essa Amálgama é a esperança da sobrevivência da espécie humana. Por essa razão é que o Brasil no século XXI vem concretizar vaticínios
de muitos profetas e poetas e pensadores, entre os quais Walt Whitman, o poeta fundamental dos Estados Unidos, que exalta seu país e a sua democracia, mas ao mesmo tempo adverte: “No entanto, o vértice da Humanidade será o Brasil!”. Ariano Suassuna me disse que o grande pensador Jacques Maritain também falou a respeito: “O único país em que a justiça e a liberdade poderão aflorar juntas é o Brasil”. O “Hino do Senhor do Bonfim” é tudo isso! É sagrada a cidade de Salvador, “mansão da misericórdia”. “És a guarda imortal da Bahia”! É um hino que nos convoca a celebrar a paz e a concórdia ao mesmo tempo em que celebra a vitória em batalhas. É uma emoção-sensação de suprema simultaneidade e ênfase no amor e na misericórdia, é também a simultaneidade do profano com o sagrado. É Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé. Sim, porque é nas escadarias da igreja do Senhor do Bonfim que as Mães de Santo vêm cantar e lavar as impurezas e proclamar o amor universal e a mensagem de Xangô Menino para todo o planeta terra! Esse hino magistral ainda inclui, ao lado da Amálgama, a mensagem também eterna de Joaquim Nabuco, que prega a Segunda Abolição, sempre uma tarefa nova que todas as gerações têm que concretizar. É como diz a Bíblia: cada geração tem que reconquistar a sua liberdade! Mas, por mais que eu tente explicar a emoção que me causa esse hino, ele sempre ocultará um mistério, um dom de Graça Divina e de batuques nos convocando para a alegria que anseia o infinito e a felicidade. Sempre que o escuto lembro-me das palavras de são Paulo: “Mesmo quando não houver mais nem fé nem esperança, o amor continuará a resplandecer no Universo”. Porque os mestres do Tropicalismo decidiram colocar esse hino no seu disco? Ora, a resposta parece emergir de imediato: porque foi na Bahia onde tudo começou e onde a essência dessa Amálgama foi forjada. E o Senhor do Bonfim simboliza tudo isso. Sua audição me traz à memória o surgimento da língua portuguesa, e que ela foi inventada pelos menestréis em canções para o rei ou em canções de amigo, para os demais nobres da corte. Quando Portugal realiza a façanha de acolher os Templários ‑ que estavam sendo queimados em praça pública em frente às igrejas, pois
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haviam caído em desgraça com os novos poderes emergentes da Idade Média ‑ faz um pequeno truque, e muda os nomes de Templários para Cavaleiros de Cristo. Henrique de Sagres é Cavaleiro de Cristo, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhães, todos são Cavaleiros de Cristo. Ao acolher os Templários, Portugal dá um salto cutural-econômico-científico, pois com eles chegam os conhecimentos de antigas civilizações, técnicas de navegação, pontos de contato na África e na Ásia e principalmente um espírito aberto e curioso, sem preconceitos em relação aos costumes de outras nações e povos. Portugal já havia se acostumado a viver pacificamente com os enclaves muçulmanos, e agora, com a chegada e a acolhida dos Cavaleiros de Cristo, inaugura a era das gloriosas navegações. Inaugura também uma postura e filosofia ecumênica, de abertura para as diferenças e diversidades. O Brasil descoberto por Cabral ‑ que na verdade se apossa das terras brasileiras, mas que nelas permanece poucos dias, pois sua missão é militar: esmagar a rebelião contra os portugueses na Índia, em Calicut ‑ é habitado pelos nossos índios.
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Esses índios vieram, em tempos longínquos, da Ásia trazendo a proto-cultura, ou pré-cultura, que posteriormente vai resultar no Taoísmo, e em todo o Hinduísmo. Nossos ancestrais indígenas, segundo descobertas recentes, não apenas nos legaram sua genial arte plumária, seus mitos (que até hoje vivem em nossos neurônios, influenciando-nos) e a prática de acupuntura com espinhas de peixe no rio da Prata. No passado não muito distante nossos indígenas eram descritos preconceituosamente como preguiçosos, mas isso que fora, com visão superficial e racista, rotulado de preguiça, é atualmente reconhecido como a suprema meditação sobre as coisas, um devaneio metafísico permanente: o wu-wei do Taoísmo, isto é, a ação da não ação. Profundidade do Pensar e do estar-aí. Uns 150 anos antes da chegada de Cabral, nossos ancestrais indígenas foram expulsos do litoral por uma expedição de novas culturas e etnias indígenas, os tupi-guaranis, que procuravam a Terra sem Males. Na Mitologia desses invasores tupis tudo era mistério, e o próprio mistério havia criado os tupis-guaranis para que por eles fosse desvendado! Vinham os tupis com a visão de que na Terra sem Males encontrariam uma misteriosa palmeira azul. Descobertas recentes confirmam que, além de ser fruto do cerrado, a floresta amazônica é um jardim plantado por nossos ancestrais indígenas. Há pouco mais de um ano, índios do Xingu mostraram a antropólogos boquiabertos o leito seco de canais de irrigação e de navegação que se estendiam por milhares de quilômetros floresta adentro. Descobriu-se também que nossos ancestrais indígenas já haviam inventado uma forma de samba tocado em chocalhos, que depois sincretizou-se com o Zemba, ou samba africano trazidos pelos escravos. Eduardo Viveiros de Castro é o antropólogo que com mais profundidade tem
analisado e mostrado estes fatos e pensamentos profundos da fenomenologia de nossos ancestrais e sua importância absoluta para os dias atuais. Dos guerreiros africanos trazidos como escravos, recebemos a incrível cultura do Candomblé. No Maranhão há o Tambor de Mina e o Tambor de Crioula, onde uma Pitonisa (como em Delfos) entra em transe e profetiza augúrios. Até o Candomblé da Bahia inventou os arquétipos muito antes de Carl Gustav Jung, pois os Orixás lá na África eram imanentistas e geograficamente, associados a determinados objetos ou regiões – por exemplo: Oxossim era de um determinado lugar da floresta, Oxum era o Orixá de um rio específico – chegando aqui o Candomblé foi reinterpretado e todas as matas e florestas são de Oxossim, e todos os rios são de Oxum. Ao jogar os búzios, temos em ação o acaso dos dados e o tremor das mãos, o que evidencia a inclusão da emoção à consulta do destino. Além disso, temos a sofisticação suprema de praticar o Ifá, que é o I-Ching africano, também jogado com varetas. E mais: cada um de nós é dotado de no mínimo três cabeças, a da frente e mais uma de cada lado. Isso é confirmado pelas últimas descobertas da neurociência, que afirma que, como no candomblé, temos várias personalidades fingindo ser uma só, e em simultaneidade de conexões. Do Candomblé nasce, sincretizando-se com o espiritismo, a Umbanda; e em São Paulo, devido à imigração japonesa, foi criado na Umbanda um Orixá Samurai! Nasci logo que meus pais, refugiados do Holocausto, chegaram ao Brasil. Fui educado durante meus primeiros sete anos de vida por minha babá, que era filha de santo de um candomblé no Rio de Janeiro. Por causa da dor dos terrores do holocausto minha mãe passou esses sete anos paralisada, e assim fiquei totalmente nas mãos da doçura de minha babá Lucia. E três dias por semana eu ia com ela para o terreiro do Candomblé. Ela se trocava e reaparecia como uma princesa resplandecente, já com as roupas cerimoniais. Pegava-me no colo e dizia, alisando e acariciando meus cabelos: “Seus pais vieram de um lugar de gente muita má e ruim, mas aqui, você vai encontrar seus amigos, suas amigas, e eu vou sempre lhe proteger”. Eu adormecia em seus braços enquanto os tambores começavam a bater. Acordava na Camarinha, onde filhas de santo rindo me davam guloseimas e eu sentia a felicidade resplandecendo. O momento de maior emoção da minha vida foi receber o titulo de cidadão Soteropolitano. Minha babá está sempre me protegendo e, como foi profetizado por ela quando eu era ainda criança, meus dois amigos profundos surgiram, meus anjos da guarda, meus irmãos para sempre: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Obrigado Brasil, obrigado Bahia, por terem me feito existir mergulhado em felicidade e ao som dos tambores, é por isto que eu choro quando ouço ou canto o “Hino do Senhor do Bonfim”.
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Hino do Senhor do Bonfim João Antonio Wanderley Glória a ti neste dia de glória Glória a ti redentor que há cem anos Nossos pais conduziste à vitória Pelos mares e campos baianos Desta sagrada colina Mansão da misericórdia Dai-nos a graça divina Da justiça e da concórdia 118
Glória a ti nessa altura sagrada És o eterno farol, és o guia És, senhor, sentinela avançada És a guardo imortal da Bahia. Dessa sagrada colina Mansão da misericórdia Dai-nos a graça divina Da justiça e da concórdia Aos teus pés que nos deste o direito Aos teus pés que nos deste a verdade Trata e exulta num férvido preito A alma em festa da nossa cidade Desta sagrada colina Mansão da misericórdia Dai-nos a graça divina Da justiça e da concórdia
Copyright Direto
The Hymn of Our Lord of the Good Ending Jo達o Antonio Wanderley
Glory to you on this day of glory Glory to you redeemer who a hundred years ago Our forefathers led to victory Across the seas and lands of Bahia From this sacred hill Mansion of mercy Grant us the Divine Grace Of Justice and of Harmony 119
Glory to you on this sacred mound You are the eternal light, you are the guide You are, Lord, the advanced sentinel You are the immortal guard of Bahia From this sacred hill Mansion of mercy Grant us the Divine Grace Of Justice and of Harmony At your feet you gave us Law At your feet you gave us Truth Celebrate in fervid homage The festive soul of our city From this sacred hill Mansion of mercy Grant us the Divine Grace Of Justice and Harmony
Copyright Direct
Hymn of Our Lord of the Good Ending Jorge Mautner
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The independence of Brazil, was, as we know, in general a peaceful transition. In Bahia, however, battles had to be fought to win our freedom. One hundred years later, this sublime hymn was composed to commemorate the victories over the Portuguese fleet! The words mention “our forefathers led [us] to victory”. What moves me most and makes me tremble with emotion is that this hymn simultaneously preaches peace and communion, and all this in an atmosphere of the sacred. The mound is sacred, and even more sacred is the implicit act of forgiveness, of pride in something greater, all directly linked to Our Father of the Good Ending. Noel Rosa wrote a samba about Bahia, which begins by saying: “Where is it that Jesus preached his philosophy?/ In Bahia, in Bahia”. The hymn exalts syncretism which is, in the words of José Bonifácio de Andrada e Silva, the Amalgam. This Amalgam could be either masculine or feminine, so great is its reach. In 1823, José Bonifácio declared that this Amalgam is a fundamental characteristic of the essence of Brazil, and that no other people or culture has it in such plenitude! José Bonifácio added that this Amalgam, which is so difficult to achieve, is our great originality. It means mixture, but it is more than that, it’s the mixture of races, but it’s also more than that, it is a combination of floating alchemy, it is this that makes Brazilian men and women reinterpret everything, all the phenomena, in a millionth of a second and more than that, absorbing and including contrary and opposing thoughts to attain the middle ground, the wisdom of instant equilibrium, the target of Aristotle, Lao-Tse, Buddha and Heraclites. The dream of Humanity! The Amalgam is this always mutating point of equilibrium, which in popular Brazilian terms is having “jogo de cintura”, or flexibility. This Amalgam is the hope for the survival of the human species. This is the reason that in the 21st century Brazil will fulfill the prophecies of many prophets, poets and philosophers, among them Walt Whitman, the fundamental poet of the United States, who exalted his own country and its democracy, but also predicted: “The apex of Humanity, however, will be Brazil!”. Ariano Suassuna told me that the great philosopher Jacques Maritain also spoke of this: “The only country in which justice and freedom will be able to blossom together is Brazil”. The “Hymn to Our Lord of the Good Ending” is all of this! The city of Salvador is sacred, “the mansion of mercy”. “You are the immortal guard of Bahia”! It is a hymn that calls us to celebrate peace and harmony at the same time in which it commemorates victory in battle. It is an emotion/feeling of supreme simultaneity with the emphasis on love and mercy, and also the simultaneity of the profane and the sacred. It is Jesus of Nazareth to the beat of Candomblé drums. Yes, because it is on the steps of the Church of Our Lord of the Good Ending that the Mães de Santo (Candomblé acolytes, or priestesses, literally Mothers of Saints) come to sing and cleanse impurities and proclaim universal love and the message of the Infant Xangô to all of Planet Earth! This magisterial hymn also includes, alongside the Amalgam, the also eternal message of Joaquim Nabuco, who preaches the Second Abolition, which is a new task that every new generation must always perform. As the Bible says: each new generation must regain its freedom! However, as much as I try to explain the emotion I feel when I hear this hymn, it always keeps a mystery hidden, a gift from the Divine Grace and the drums calling us to the joy that yearns for the infinite and for happiness. Whenever I hear it I am reminded of the words of Saint Paul: “Even when there is neither faith nor hope, love will continue to shine throughout the Universe “. Why did the maestros of Tropicalism decide to include this hymn on their record? Well, the answer seems to emerge immediately: because it was in Bahia
that it all started and where the essence of this amalgam was forged. And Our Lord of the Good Ending symbolizes all this. Listening to it puts me in mind of the appearance of the Portuguese language, and that it was invented by minstrels in songs for the king or in songs for friends, or the other nobles at court. When Portugal undertakes the deed of welcoming the Templars – who were being burned at the stake in public squares in front of churches, after having fallen from grace with the new powers emerging in the Middle Ages – the country performs a sleight of hand by renaming the Templars, The Knights of Christ . Henrique of Sagres is a Knight of Christ, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhães, all are Knights of Christ. By welcoming the Templars, Portugal makes a cultural/economic/scientific leap forward, because with them knowledge of ancient civilizations arrives, as well as navigational techniques, points of contact in Africa and Asia and mainly a spirit of open curiosity, free of prejudice in relation to the customs of other nations and peoples. Portugal was already accustomed to living at peace with the Moslem enclaves, and now, with the arrival and welcoming of the Knights of Christ, she inaugurates the Age of the Glorious Navigators. An ecumenical posture and philosophy is also inaugurated, of opening up to differences and diversity. The Brazil discovered by Cabral – who in fact took possession of the lands of Brazil, but only stayed a short while, as his mission was military: to crush a rebellion against the Portuguese in India, in Calicut – is inhabited by our Indians. These Indians came many thousands of years ago from Asia, bringing the proto- or pre-culture that in Asia would later develop into Taoism and Hinduism. Our indigenous ancestors, according to recent discoveries, not only bequeathed us their artwork with feathers, their myths (which live on in our neurons, and still influence us) but also the practice of acupuncture using fish bones in the River Plate. In the not so distant past, they were pejoratively labeled as lazy, but what was called lazy in the superficial and racist view of outsiders, is now recognized as a supreme meditation on things, a permanent metaphysical daydream: the wu-wei of Taoísm, that is, the action of non-action, Profundity of Thinking and of being-here. Some 150 years before the arrival of Cabral, our indigenous ancestors were driven from the coast by an expedition of new indigenous cultures and ethnicities, the TupiGuarani, who were looking for the Land without Evil. In their mythology, to these Tupi invaders everything was a mystery and the mystery itself had created the Tupi-Guarani so they could reveal it! The Tupis came with the vision that in the Land without Evil they would find the mysterious blue palm. Recent discoveries confirm that, as well as being the fruit of the Cerrado, the Amazon forest is a garden planted by our indigenous ancestors. A little over a year ago, Indians from the Xingu showed astonished anthropologists the dry beds of irrigation and navigation channels that stretch for thousands of kilometers inside the forest. It was also discovered that our indigenous ancestors had invented a sort of samba played with rattles, which then syncretized with the Zemba, or African samba brought over by the slaves. Eduardo Viveiros de Castro is an anthropologist who has most analysed and revealed these facts and profound thoughts of the phenomenology of our ancestors and their absolute importance to today’s times. From the African warriors brought as slaves, we received the incredible culture of Candomblé. In Maranhão there is the Tambor de Mina (Drum of the Mine) and the Tambor de Crioula (Black Woman’s Drum), where a fortune-teller (as in Delphi) falls into a trance and prophesies the auguries. The Candomblé of Bahia even invented archetypes long before Carl Gustav Jung, as the Orixás in Africa were immanentists and geographically associated to certain objects or regions – for example: Oxossim was of a certain place in the forest, Oxum was the Orixá of a specific river – arriving here, Candomblé was reinterpreted and all woods and
forests are of Oxossim, and all the rivers are of Oxum. When throwing the búzios (small sea shells), the luck of the dice and the shake of the hands are in play, evidence of the inclusion of emotion in consulting our fate. In addition, we have the supreme sophistication of practicing Ifá, which is the African I-Ching, also divined with sticks. And more: each of us is endowed with at least three heads, one in front, and one on each side. This is confirmed by the latest discoveries of neuroscience, which state that, as in Candomblé, we have various personalities pretending to be just one, and in simultaneous connection. And Umbanda was born from Candomblé, in sincretism with spiritism; and in São Paulo, due to Japanese immigration, in Umbanda a Samurai Orixá was created! I was born soon after my parents, refugees from the Holocaust, arrived in Brazil. I was educated for my first seven years by my nanny, who was an acolyte of Candomblé from Rio de Janeiro. Due to her suffering from the horrors of the Holocaust, my mother spent these seven years in a state of paralysis, and I was therefore left completely in the kind hands of my nanny, Lucia. And three days a week I would go with her to the Candomblé shrine. She would change clothes and reappear as a resplendent princess, with her ceremonial clothes. She would place me in her lap and say, smoothing and stroking my hair: “Your parents came from a place where there were many bad people, but here, you are going to find your fiends, and I will always protect you.” I would sleep in her arms as the drumming began. I would wake up in the dressing room, where laughing young acolytes would give me sweets and I felt illuminated by their happiness. The moment of greatest emotion in my life was when I received the title of citizen of Salvador. My nanny is still protecting me and, as was prophesied by her when I was still a child, my two closest friends appeared, my guardian angels, my eternal brothers: Caetano Veloso and Gilberto Gil. I give my thanks to Brazil and to Bahia for enabling me to live immersed in happiness and the sound of the drums, and it is for this reason that every time I hear or sing the “Hymn of Our Lord of the Good Ending”, I weep.
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ENSAÍSTAS
DESIGNERS E ARTISTAS VISUAIS
Antonio Risério poeta e antropólogo, é autor de A utopia brasileira e os movimentos negros (Editora 34, 2007).
Adriana Ferla é artista visual, seu último trabalho, da série Intimidades, foi exposto no SESC-SP, 2010.
Aguilar é artista plástico, músico e escritor, autor de Hércules pastiche (Iluminuras, 1994).
Ailton Krenak é artista plástico, líder indígena e fundador do Núcleo de Cultura Indígena.
Bené Fonteles artista plástico, poeta e compositor, é autor de GiLuminoso, a po.ética do ser (UnB/Imprensa Oficial SP/SESC, 1999). Bráulio Tavares é escritor, poeta e compositor, autor de ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007). Christopher Dunn professor da Tulane University, em Nova Orleans, é autor de Brutalidade jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (Unesp, 2009).
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André Vallias poeta, designer e produtor de mídia interativa, é criador e editor da revista online Errática (www.erratica.com.br). assume vivid astro focus é um coletivo artístico fundado em 2000, sediado em Nova York e Paris. Ernane Cortat é pintor e um dos principais nomes da arte naïf brasileira. Gringo Cardia é artista multimídia, artista gráfico, cenógrafo e diretor de arte.
Frederido Coelho pesquisador, é autor de Tropicalia (Série Encontros, Azougue, 2008).
Guto Lacaz é arquiteto e artista plástico.
Hermano Vianna é antropólogo, autor de O mistério do samba (Jorge Zahar/UFRJ, 1995) e co-criador do site Overmundo (www.overmundo.com.br).
Leandro Feigenblatt é artista gráfico e está finalizando a sua primeira história em quadrinhos.
Jorge Mautner músico e escritor, é autor de Mitologia do Kaos (Azougue, 2002).
Lenora de Barros é poeta e artista visual, criou a instalação Só por es-tar, na Galeria Millan, São Paulo-SP, 2009.
Manuel da Costa Pinto crítico literário, é autor de Literatura brasileira hoje (Publifolha, 2004).
Nelson Provazi é artista plástico, designer, além de escritor e ilustrador de livros.
Newton Cannito é cineasta, diretor do documentário Jesus no mundo maravilha e roteirista da série de televisão 9mm (Fox).
Ray Vianna é artista plástico, cenógrafo e designer, criador das pinturas de corpo do grupo Timbalada.
Noemi Jaffe é escritora, professora de literatura e autora de Todas as coisas pequenas (Hedra, 2005).
Rico Lins é designer, diretor de arte e autor do projeto gráfico deste livro. Como educador, ministra cursos, palestras e oficinas no Brasil e exterior.
Viviane Mosé filósofa, poeta e psicanalista, é autora de Pensamento chão (Record, 2006).
WRITERS
DESIGNERS AND VISUAL ARTISTS
Antonio Risério poet and anthropologist, is the author of A utopia brasileira e os movimentos negros (Editora 34, 2007).
Adriana Ferla is a visual artist, her most recent work, from the Intimidades series, was exhibited at SESC-SP, 2010.
Aguilar is a plastic artist, musician and writer, and author of Hércules pastiche (Iluminuras, 1994).
Ailton Krenak is a plastic artist, indigenous leader and the founder of the Núcleo de Cultura Indígena.
Bené Fonteles plastic artist, poet and songwriter is the author of GiLuminoso, a po.ética do ser (UnB/Imprensa Oficial SP/SESC, 1999).
André Vallias poet, designer and producer of interactive media, is the creator and editor of the online magazine Errática (www.erratica.com.br).
Bráulio Tavares is a writer, poet and songwriter, author of ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007).
assume vivid astro focus is an artist collective founded in 2000, with headquarters in New York and Paris.
Christopher Dunn professor at Tulane University in New Orleans, is the author of Brutalidade jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (Unesp, 2009).
Ernane Cortat is a painter and one of the principal names of Brazilian naive art.
Frederido Coelho researcher, is the author of Tropicalia (Série Encontros, Azougue, 2008). Hermano Vianna is an anthropologist, author of O mistério do samba (Jorge Zahar/UFRJ, 1995) and co-creator of the site Overmundo (www.overmundo.com.br).
Gringo Cardia is a multimedia artist, graphic artist, stage set designer and art director. Guto Lacaz is an architect and plastic artist. Leandro Feigenblatt is a graphic artist and is finishing his first comic–strip.
Jorge Mautner musician and writer, is the author of Mitologia do Kaos (Azougue, 2002).
Lenora de Barros is a poet and visual artist, and created the installation Só por es-tar, at the Galeria Millan, São Paulo-SP, 2009.
Manuel da Costa Pinto, is a literary critic, and author of Literatura brasileira hoje (Publifolha, 2004).
Nelson Provazi is a plastic artist, designer, writer and book illustrator.
Newton Cannito is a filmmaker, director of the documentary Jesus no mundo maravilha and scriptwriter for the TV series 9mm (Fox).
Ray Vianna is a plastic artist, stage-set designer, and creator of the body painting for the group Timbalada.
Noemi Jaffe is a writer, literature professor and the author of Todas as coisas pequenas (Hedra, 2005).
Rico Lins is a designer, art director and author of the graphic design of this book. As an educator, he gives courses, lectures and workshops in Brazil and abroad.
Viviane Mosé philosopher, poet and psychoanalyst, and author of Pensamento chão (Record, 2006).
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AGRADECIMENTOS
ACKNOWLEDGEMENTS
A ideia deste livro remete a 2007, quando estávamos intensamente mobilizados na reformulação do site Tropicália e já pensávamos em novas formas de abordar o tema. Sou imensamente grata às colaborações solícitas e preciosas que chegaram nos momentos iniciais dessa missão. Hermano Vianna, a quem respeito e admiro por suas ações político-culturais, teve um gesto simples e decisivo me aproximando de Alfredo Manevy. Essa aproximação foi fundamental não só para a reformulação do site como para a publicação deste livro, pois Alfredo, sempre sensível no reconhecimento de méritos culturais os mais diversos, foi um grande incentivador da iniciativa. Agradeço a Arnaldo Antunes pelas diamantinas palavras da quarta capa e a André Vallias pela colaboração sempre pronta e gentil. Quero expressar minha gratidão a todos os ensaístas, designers e artistas visuais, cujos trabalhos tão inspirados iluminaram esse projeto. Muito especialmente, agradeço à equipe que, com amor, determinação e competência, participou assertivamente dessa realização: Viviana Pereira, Aluizio Leite, Rico Lins, Peter Musson, Fátima Secches, Leila Schöntag, Amanda Dafoe, Fernanda Thompson, Caio Mariano, Caio Fujiyama e Hitoshi Nizhimoto. Cabe-me agradecer também a Heloisa Vasconcellos pelo apoio nas questões burocráticas. Gostaria, ainda, de me reportar a um momento longínquo, entre 1997 e 1998, quando os professores baianos Marcelo Dantas e Paulo Miguez me ajudaram a trilhar os primeiros caminhos da pesquisa e estimularam meu interesse pelo Tropicalismo. Pela força e delicadeza da amizade, muito obrigada a Gilmara Somensari, Yone Sobral, Fábio Vianna, Denilde Reis e Newton Cannito. É mais do que justo enfatizar que este projeto não seria concretizado sem o patrocínio da Petrobras e do Ministério da Cultura. Por fim, resta-me agradecer aos responsáveis pela invenção tropicalista do disco-manifesto que, afinal, ensejou esse trabalho, os “eubioticamente atraídos” Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rita Lee, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias, Nara Leão, Capinan, Torquato Neto e Rogério Duprat. E a minha gratidão imensa a esse arauto da nova música, da nova política e da nova era: Gilberto Passos Gil Moreira.
The idea for this book began in 2007, when we were deeply involved in reformulating the Tropicália site and already thinking of new ways to approach the subject. I am extremely grateful for the valuable collaboration that arrived during the initial moments of this mission. Hermano Vianna, whom I admire for his political and cultural actions, was responsible for a simple but decisive gesture in putting me in touch with Alfredo Manevy. This approximation was fundamental not only for the reformulation of the site but also for the publication of this book, as Alfredo, always sensitive in recognizing the most varied cultural achievements, offered tremendous encouragement in getting the project started. I would like to thank Arnaldo Antunes for his gem-like words on the back cover and André Vallias for his always quick and kind assistance. I would like to express my gratitude to all the authors of the articles, the designers and visual artists, whose inspired work illuminated the project. And I offer my special thanks to the team which with love, determination and skill took part in its production: Viviana Pereira, Aluizio Leite, Rico Lins, Peter Musson, Fátima Secches, Leila Schöntag, Amanda Dafoe, Fernanda Thompson, Caio Mariano, Caio Fujiyama and Hitoshi Nizhimoto. I would also like to thank Heloisa Vasconcellos for her support in questions of bureaucracy. I would also like to take myself back to a faraway moment, between 1997 and 1998, when Bahian teachers Marcelo Dantas and Paulo Miguez helped me to plan my first research and encouraged my interest in Tropicalism. For their help and sweet friendship, my thanks to Gilmara Somensari, Yone Sobral, Fábio Vianna, Denilde Reis and Newton Cannito. It is more than fair to emphasize that this project would not have happened without the support of Petrobras and the Ministry of Culture. And lastly, I must of course thank those responsible for the Tropicalist invention of the record-manifesto which, after all, provided the opportunity for this work, the “eubiotically attracted” Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rita Lee, Arnaldo Baptista, Sérgio Dias, Nara Leão, Capinan, Torquato Neto and Rogério Duprat. And my enormous gratitude to that herald of the new music, the new politics and the new era: Gilberto Passos Gil Moreira.
Ana de Oliveira, setembro de 2010.
Ana de Oliveira, September, 2010.
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Créditos
Credits
Idealização, curadoria e edição: Ana de Oliveira Direção de arte: Rico Lins e Amanda Dafoe Design: Leila Schöntag Assistente de arte: Alejandra Adeikalam Tradução (textos): Peter Musson Tradução (letras): Christopher Dunn Preparação e revisão: Aluizio Leite Coordenação de produção: Viviana Pereira Produção gráfica: Fátima Secches Assessoria de imprensa: Fernanda Thompson Assistência jurídica: Caio Mariano Assessoria contábil: Hitoshi Nizhimoto Realização: Iyá Omin Produções
Idealization, curator and editor: Ana de Oliveira Art director: Rico Lins and Amanda Dafoe Design: Leila Schöntag Art assistant: Alejandra Adeikalam Translation (texts): Peter Musson Translation (lyrics): Christopher Dunn Preparation and review: Aluizio Leite Production coordination: Viviana Pereira Graphic production: Fátima Secches Press agent: Fernanda Thompson Legal assistance: Caio Mariano Accountancy: Hitoshi Nizhimoto Production: Iyá Omin Produções
Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores das obras musicais e imagens publicadas neste livro. No caso de dúvida quanto uso de alguma obra, a Iyá Omin Produções, expressando seu pesar por qualquer erro inadvertidamente cometido, ficará contente em poder fazer as necessárias correções nas futuras edições.
Every effort has been taken to locate the copyright owners of the musical works and images published in this book. In the case of any doubt over the use of any work, Iyá Omin Produções, expressing their regret for any error inadvertently made, will be happy to make the necessary corrections in future editions.
Este livro foi composto em Futura Black, Grotesque MT Std e Helvetica Neue e impresso sobre papel Couche 150 g/m2, com tiragem de 3000 exemplares, em setembro de 2010