Armando Begossi Ligia Junqueira Begossi
Organização Romana Begossi e Alpina Begossi
2021
Direitos autorais de Romana Begossi, Alpina Begossi e descendentes diretos (filhas e filhos, netas e netos, a seguir). Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transformação dessa obra e das imagens contidas nessa obra só poderá ser realizada com a autorização expressa de suas autoras ou titulares. Caso seja necessário reproduzir algum trecho dessa obra, seja por fotocópia, transcrição ou digitalização, entrar em contato com autoras ou titulares. Arte das páginas do livro: Romana Begossi (desenhos) e Ligia Begossi (pinturas, desenhos e xilogravuras). Capa: Arte de Romana Begossi.
B417o
Begossi, Armando Otto novelle – oito contos / Armando Begossi e Ligia Junqueira Begossi. Organizado por Romana Begossi e Alpina Begossi – São Carlos: RiMa Editora, 2021. 310 p. il. ISBN: 978-65-88549-21-6 1. contos. 2. ficção policial. 3. histórias de Natal. I. Autores. II. Título.
Rua Virgílio Pozzi, 81 – Santa Paula 13564-040 – São Carlos, SP Fone/Fax: (16) 988064652
Prefazione Prefácio
Esta série de oito contos, Otto Novelle, é de autoria de Armando
Begossi e de Ligia Junqueira Begossi. Estes contos foram encontrados em baús, alguns após permanecerem mais de 30 anos no nosso escritório, repleto de estantes em madeira, abalroadas de livros, em nossa casa na Rua Sousa Lima. Sousa Lima. Nosso apartamento em frente ao mar, no Ed. Begossi, edifício este construído pelo nosso avô, Giuseppe (depois José) Begossi. Alguns dos textos ou contos foram redigidos por Armando Begossi (revisados por Ligia Begossi) ou redigidos por Ligia Begossi (revisados por Armando Begossi), com exceção de “Fragmentos da Infância”, o primeiro conto (Novella Uno), que é o título que demos a algumas memórias de Ligia Begossi. Formavam um casal peculiar e interessante. Casaram-se em 1954 na Itália, nos Alpes, em trajes de excursão (quando então percorreram inúmeros refúgios alpinos). Ambos cultos, a casa era rica em ideias e polêmicas. Armando, pela ordem. Ligia, pela liberdade. Este livro revela trabalhos ricos, interativos e prazerosos do casal. Aproveitamos, então, para compartilhá-los: são contos e histórias intrigantes e interessantes! Alpina Begossi e Romana Begossi 28/12/2020
Sommario Sumário Novella Uno – Conto Um Fragmentos da Infância 1 Novella Due – Conto Dois A Canção de Itatiaia (Um conto da Mantiqueira) Novella Tre – Conto Três A Maça de Newton Um caso dos arquivos da advogada Telê
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Novella Quattro – Conto Quatro A Coroa da Rainha de Sabá e o Sceptro do Rei Salomão (A Gruta Encantada)
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Novella Cinque – Conto Cinco O Turbante – “O Velho de Jerusalém ou O Velho da Capa de Seda” (A Gruta Encantada) Novella Sei – Conto Seis O Fantasma do Senhor de Narbona Novella Sette – Conto Sete
O Fazendeiro
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Novella Otto – Conto Oito
Fazenda dos Tangarás 299
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Novella Uno Conto Um
Fragmentos da Infância Extraídos de manuscritos encontrados de Ligia Junqueira Begossi
Desenho de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 303.
Vivi! Ligia Begossi
Na folha branca escrevi. Na tela lisa pintei. A dura taboa entalhei. Na terra macia plantei. No mar tranquilo nadei. Nas ondas mansas voguei. Tudo que pude, aprendi. Tudo que soube, ensinei. Ao perdedor aplaudi. Violência condenei. No meu ventre concebi. E duas filhas criei. Se alguma coisa perdi. Tive mais do que esperei!!!
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São Paulo
Dessa época, as melhores lembranças são os passeios ao Jardim da Luz
com meu avô e com meus pais e irmãos: o pavão com sua cauda em leque, bem aberta, coloridíssima; os imponentes cisnes brancos nadando no lago; o guaraná tomado em mesinhas da Antártica; o fotógrafo lambe-lambe (ficaram-me muitas fotos desse tempo). Também me lembro do Jardim da Infância que frequentei no Instituto de Educação Caetano de Campos. Parece que não me adaptei. Chorava todos os dias na hora de ir para o colégio. Quanto ao que lá aprendi: recortes e dobraduras de papel colorido e brilhante, cantigas de roda (“atirei o pau no gato...”).
Paracambi (que naquela época se escrevia Paracamby) Paracamby — assim mesmo, com y — foi uma das melhores fases da minha vida. Éramos felizes. “Como são belos os dias no despontar da existência...” mas não vou aqui repetir toda a poesia de Casimiro de Abreu (“Meus oito anos”) que descreve as alegrias da infância “campestre” que foram também as minhas alegrias. De São Paulo fomos para Paracambi, onde meu pai foi ser gerente da fábrica de tecidos da Cia. Brasil Industrial. Não me lembro da viagem de trem, mas recordo meu pai comentando: — A cozinheira encheu a geladeira de “doce de abóbora”. Eu não tinha bem ideia do que seria “uma geladeira cheia de doce” mas pensei que devia ser muita quantidade de doce. A viagem foi de trem, como eram as daquela época entre São Paulo e Rio, e de dia. Chegamos à noite. Não esqueci, porém, a primeira visão do bondinho, puxado a burro, que nos levou até a ladeira, pavimentada em paralelepípedos; subia a colina até a casa onde moraríamos por muitos anos.
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O Juca, o condutor, era um homem alto, moreno, de cabelos lisos; usava um chapéu de feltro de abas largas, como o dos gaúchos. Quatro lanternas de acetileno, uma em cada canto no alto das colunas de madeira torneada, que sustentavam a cobertura, iluminavam o bondinho, e os seus quatro bancos. Ouvia-se o chiado característico do acetileno, que desprendia um cheiro peculiar. *** A casa ampla me agradou à primeira vista (ainda não tinha visto o belo jardim!). Meu pai nos mostrou os cômodos. A luz elétrica não era muito boa. Impressionou-me a escada que descia para a cozinha situada em plano mais baixo. Uma frase de meu pai me ficou: — Aqui é a adega, é muito fresca e tem algumas garrafas de vinho. A porta baixa dessa adega ficava à meia altura da escada que ia à cozinha, partindo da sala de almoço. A escada comunicava a sala de almoço com a cozinha, muito ampla, com uma grande mesa de madeira no centro e um fogão de ferro, de oito bocas e dois fornos, sendo que no maior assava-se um leitão inteiro. Pouca coisa pude observar na noite da chegada. Estávamos todos cansados da longa viagem e eu ansiosa que chegasse logo o dia seguinte para brincar no jardim que meu pai descrevera como grande e lindo!
O varandão Do lado oposto à entrada da casa, havia uma enorme varanda que se repetia igualzinha em cima e no pavimento correspondente ao porão. A varanda de baixo — como a chamávamos — dava para a porta da estrada pavimentada em paralelepípedos, que comunicava as duas ladeiras que subiam a colina até nossa casa: a mais íngreme usávamos para tomar o bondinho; a mais suave levava à Fábrica — pouco menos de um quilômetro. Esse era o caminho que fazia meu pai - a pé quatro vezes por dia (almoçava em casa), de terno branco impecável e guardasol branco com forro verde por dentro. //
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Depois do jardim era o varandão o local da casa em que mais vivíamos. Nos dias de chuva lá brincávamos e também nas horas em que o sol estava muito forte para se ficar no jardim. Não fomos muito de brincar com bonecas, só às vezes incidentalmente. No varandão, preferíamos jogos, como o “críquette” (uma espécie de golfinho com arcos), e jogos de cartas, infantis: rouba-montinho, escopa, batalha (as intermináveis batalhas!).
O jardim e a horta Seu Ramos era o hortelão e jardineiro. Com ele tínhamos uma convivência constante, já que o jardim era o nosso domínio e à horta íamos frequentemente na época das romãs e dos morangos ou para tentar curar algum corte, resultante das brincadeiras, com a seiva de um arbusto de bálsamo. A cicatrização era imediata. O jardim era imenso, quadrado, com canteiros altos nos quatro cantos e dois canteiros mais baixos no centro em semicírculo, em torno do tanque redondo com chafariz. Quando chegamos a Paracambi, havia nesse tanque peixinhos vermelhos. Gostávamos de vê-los movendo-se rapidamente para apanhar as migalhas de pão que lhes lançávamos. Púnhamos barquinhos na água e as ondas provocadas pelo esguicho do chafariz os empurravam para as margens. Em torno desse laguinho os canteiros tinham um gramado verde-claro e muitas rosas. Já os grandes canteiros altos eram bordeados por uma larga faixa de grama verde-escuro (cabelo ou pelo de urso). Seu Ramos nos fazia respeitar os gramados e na grama alta havia perigo, pois que às vezes lá se escondiam cobras vindas das matas que ficavam muito perto.
A horta Tínhamos uma boa horta, com todas as verduras e legumes, e até uma arvorezinha de bálsamo-do-peru, cuja seiva curava qualquer feridinha ou arranhão. Toda cercada por uma rede de arame (apoiada em colunas de ferro) lá não íamos com tanta desenvoltura quanto ao jardim. Situada mais perto //
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“O jardim […] do tanque redondo com chafariz.”
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da mata, era maior o perigo de encontrarmos cobras, que as havia — e muitas... Para ir à mata, passava-se um portão, que respeitávamos. Além disso, bem longe da casa, na horta, havia uma esterqueira, que recolhia o estrume do gado. Este, depois de bem “curado” se usava como adubo para as plantações (da horta, do jardim e do pomar). Era carregado no carrinho de mão. Não tínhamos permissão de nos aproximar da esterqueira.
Morangos Quando chegava a época dos morangos, não resistíamos e entrávamos na horta. Tirávamos alguns, lavando-os muito bem na torneira de regar os canteiros (nossa água vinha, puríssima, de nascente no alto da serra). Que eu me lembre, era a única fruta que dava na horta. As framboesas, nós as colhíamos na mata, quando encontrávamos maduras, em nossos passeios.
Verduras e legumes — mangaritos! Seu Ramos era um bom hortelão. Plantava grande variedade: repolho, couve, alface, espinafre, bertalha, tomate, pimentão, couve-flor e até mangaritos. Alguém sabe o que são “mangaritos”? São batatinhas que nascem em raízes ramificadas. Depois de cozidas, eram servidas com melado, como sobremesa, que todos apreciavam. *** Separando os gramados das flores, em toda volta dos canteiros, havia tinhorões — uma bonita coleção, muitas espécies de cores e formatos variadíssimos. Na parte central dos canteiros eram plantadas flores. Lembrome das rosas, manacás, margaridas, zínias, cravos, cravinas, jacintos.
Seu Ramos Aqui e ali — e também nos cantos dos gramados — destacava-se um arbusto. Dentre eles vários crótons: amarelo e verde de folhas finas, vermelhos com forma de setas largas, multicores e enroladas como chifre de carneiro e //
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“[…] havia tinhorões…”
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muito mais. Não me recordo de ter visto em outros jardins tão grande variedade de crótons como no nosso. Lembro-me, também, de um pinheirinho que todos os anos era transplantado para uma lata e servia de árvore de Natal. Depois voltava para seu lugar num ângulo de canteiro. *** Além de ótimo jardineiro e hortelão (tínhamos sempre verduras frescas e muitas flores) Seu Ramos também fazia gaiolas e alçapões para passarinhos. Com ele aprendemos a torcer o arame fino, com ajuda de duas varinhas de madeira, uma de cada lado. Ele, às vezes, se impacientava e recusava a nossa colaboração. Não gostava que entrássemos no depósito de ferramentas e que as apanhássemos. Tinha delas um ciúme de proprietário exclusivo. *** Português, o nosso jardineiro apresentava no Carnaval o seu bloco, o Verde e Branco. Havia muito dos viras e das marchinhas portuguesas nas músicas do bloco do Seu Ramos. Achávamos lindo. No dia da apresentação o bloco vinha primeiro evoluir em frente ao nosso jardim, no grande pátio ao lado da igreja, que a copa de uma imensa mangueira (cerca de 60 metros) cobria totalmente. Depois da apresentação, com músicas, cantos e danças, minha mãe oferecia laranjada, vinho e bolo para todos, e meu pai dava uma contribuição em dinheiro para o bloco, que agradecia cantando. Dentre os figurantes, os que mais admirávamos eram as pastorinhas: vestidas de verde e branco, com saias compridas e muito rodadas, corpete de cetim preto amarrado na frente com cadarço cruzado; tinham na mão um cajado branco, enfeitado com flores e fitas multicores.
Juca do Bonde Foi ele a primeira personagem (das várias, maravilhosas, que nos acompanhariam na infância) que conhecemos ao chegar. O bonde era da Fábrica e servia a nós, da Gerência (como era chamada a nossa casa) //
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e à família do médico. Quando tínhamos que ir à estação era só telefonar para a guarita da Fábrica e pedir que mandassem o bonde. Na hora combinada, lá vinha ele com o seu rodar rumoroso sobre os trilhos de aço. Uma vez ou outra também o pedíamos para fazer compras na vila, perto da estação, mas tínhamos que ter autorização de papai, antes. Quando viajávamos para o Rio, ou quando esperávamos visitas, era só avisar o Juca, dizer-lhe o horário escolhido para tomar o trem, ou esperar o dito, e ele nos vinha apanhar em casa, sempre a nos apressar: — Está na hora, se demorarem a se vestir vão perder o trem. Era pontual e nunca perdemos trem por causa dele. *** O Juca do Bonde era um tipo. Vestia roupa cáqui e usava chapéu de feltro de abas caídas, moles. Tinha a pele tostada e cabelos pretos e lisos. Me vem a ideia de que poderia ser meio índio. Não nos deixava andar no estribo. Ficávamos felizes, porém, quando nos permitia dirigir o bondinho, segurando as rédeas e o chicote (para apressar o animal, quando necessário). *** Era um privilégio ter um bondinho particular para nos levar à estação numa vila que não possuía automóveis nem outra condução a não ser cavalos e bicicletas. A linha do bonde era uma continuação da via férrea e terminava na Fábrica. O trem de carga usava essa extensão para carga e descarga de mercadorias diretamente nos armazéns da Cia. Levava tecidos em grandes caixotes de madeira e trazia algodão, produtos químicos e máquinas. Esse acesso direto aos armazéns era um serviço prestado pela Estrada de Ferro Central do Brasil e mais tarde foi eliminado, por uma questão administrativa, penso eu. Passou a ser usado um trole de carga para essa finalidade, quando os vagões não mais chegavam à Fábrica, até que — com o advento do progresso — a Fábrica comprou seu primeiro caminhão e meu pai um automóvel. O bondinho — e o Juca — //
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continuaram, porém, a nos atender ainda por muito tempo, provocando a curiosidade e admiração de amigos que nos vinham visitar usando o trem como transporte.
Custodão O dia não nascera ainda completamente e eu acordava – certas madrugadas – com um grito lancinante vindo de longe, do pátio atrás da cozinha: — Coín... coín... coín... Estavam matando um porco. Penetrava-me uma onda de sofrimento e ansiedade. Não, não era pena do porco! Sabia eu que se sucederiam vários dias de atrito com meu pai, na hora do almoço. Eu não suportava carne de porco, linguiça, toucinho e outros derivados suínos. Simplesmente não conseguia engoli-los, tinha asco. Vomitava. Um lombinho muito magro ainda aceitava, se fosse servido com muito limão, ou um torresmo muito seco, bem crocante. Nada mais que isso. Meu pai se zangava, às vezes me dava palmadas ou punha de castigo atrás da porta do corredor. Porém não conseguia — nem com a autoridade, nem com a força — me fazer engolir um pedacinho sequer de linguiça ou costeleta. Até hoje não como carne de porco nem nada que seja produto de suínos. *** Por que essa repulsa? Atavismo? Quando nosso primeiro antepassado português aqui aportou, em 17501, mudou seu nome pelo de sua aldeia de origem: Junqueira. Nessa época as prisões da aldeia de Junqueira estavam repletas de judeus e cristãos novos lá encerrados pela Inquisição.2 Seria ele um deles? Um perseguido? A verdade é que trouxe bens, 1. N. O.: SANTOS, A. C. M. 178º aniversário da tragédia que abalou a família Junqueira. 2011. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/133456/178—aniversario-da-tragediaque-abalou-a-familia-Junqueira. 2. N. O.: Sobre as prisões de judeus na aldeia de Junqueira, em Portugal, veja Camilo Castelo Branco, nas últimas páginas de seu livro Os judeus. //
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pois que não tardou a ter uma grande extensão de terras no Sul de Minas, com muitas fazendas, onde se formou a família Junqueira. Teria eu no sangue essa ojeriza pela carne de porco e derivados? *** Quem matava os porcos era o Custodão. O aumentativo lhe foi posto pela aparência: grande, corpulento, com jeito de gaúcho (usava botas e chapéu de feltro de abas largas). Não o conheci muito de perto. Nós, crianças, fugíamos de sua presença. Devo tê-lo amaldiçoado por todos os porcos que matou. Custodão era uma espécie de capataz que atuava em certos serviços, como limpeza das matas e dos açudes da Fábrica. Também cuidava das vacas e dava uma olhada nos porcos. Era chamado em casa para ajudar o cozinheiro, Benedito, a matar e retalhar porco. Aparecia também para fazer sabão, sob as ordens de minha mãe. Entre a cozinha e a horta havia o pátio, com um galpão. O sabão era posto a ferver num grande tacho de cobre sobre uma fogueira de lenha armada sobre a terra batida. Também aí eram preparadas as tachadas de goiabada. Sabão ou goiabada eram despejados em caixetas de madeira, preparadas na carpintaria da Fábrica. No pátio era, ainda, torrado e moído o café e espremida a garapa, na época da cana. O moinho de cana ficava sob o galpão. Mais tarde, com a reforma da casa, foi transferido para um telheiro ao lado do jardim. Quem torrava e moía o café e preparava a garapa era o Zeca.
Zeca Magro, com aparência de sertanejo, o Zeca era uma espécie de faxineiro “faz-tudo”. Era ele quem ia buscar o pão na padaria e a carne no açougue; o querosene, a gasolina, o álcool, a terebentina e outros produtos de limpeza no almoxarifado da Fábrica; os remédios na farmácia. Quando precisávamos de alguma compra no comércio, como cadernos, lápis, carretéis de linha, alfinetes e outras miudezas, lá ia ele, quilômetro e meio, //
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até os armarinhos que ficavam perto da estação. Também era ele quem, às vezes, levava um doce ou uma “rosca da rainha”, preparados por minha mãe, para D. Eulália (a senhora do médico), ou, vice-versa ia lá apanhar alguma coisa para minha mãe (as duas eram muito amigas e trocavam ideias, receitas, iguarias e moldes de costura). *** Graças ao Zeca a casa vivia sempre impecavelmente limpa e encerada. Lembro-me muito bem. Primeiro era passada a palha de aço, com os pés. Depois a vassoura e a seguir aguarrás (daquela antiga, vegetal, com cheiro de terebentina). Seca a aguarrás, a cera era espalhada cuidadosamente. Seca a cera, o brilho era dado com o pesado escovão manual — primeiro com a escova, depois com a flanela. Ainda não existia enceradeira elétrica. O trabalho do Zeca era perfeito e deixava o chão da casa como um espelho e com um agradável aroma de cera e terebentina. Com o mesmo cuidado limpava janelas, banheiros e tudo o mais.
Dona Aracy “As crianças precisavam estudar”. Esse era o problema de meus pais. Acontece que morávamos num conglomerado humano sui generis. À nossa volta, eram todos operários. Os habitantes da vila, perto da estação, eram comerciantes locais, gente humilde, ainda que de algumas posses. No mesmo nível social só havia a família do médico: Dr. Raymundo, D. Eulália e o filho, Marcelo. D. Eulália era prima do meu pai e Marcelo foi nosso companheiro de brincadeiras e passeios a cavalo (hoje é ele oculista de fama). *** Havia uma escola na fábrica e duas na vila. Não iríamos para nenhuma delas. Nível social era naquela época algo muito mais importante do que hoje, e muito mais sério do que o atual status. A solução encontrada foi chamar a professora em casa. D. Aracy era uma mulher pequenina, magra, de cabelos louros e ondeados. Era míope, usava óculos de grau muito forte. O local de aula //
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foi preparado na sala grande do porão: uma mesa em madeira clara, envernizada, bastante ampla (devia ter cerca de 1,80 por 1,20 m); em volta, três cadeiras austríacas, sem braços, também claras, para mim, Alaôr e a professora (mais tarde foi acrescentada uma quarta para Nete); na parede um quadro-negro bem grande com moldura larga de madeira clara, feito na carpintaria da fábrica. No mesmo tom de madeira, um cabide de galhos roliços onde D. Aracy pendurava a bolsa e o chapéu. A iluminação era ótima, pois uma porta larga se abria para a varanda de baixo. *** Foi combinado que o bondinho apanharia D. Aracy e a traria até nós, no horário das aulas, pois a sua casa ficava perto da estação (cerca de um quilômetro e meio da nossa). No primeiro dia de aula eu e Alaôr resolvemos não aparecer. Assim que ouvimos o rodar do bonde lá embaixo, nos escondemos perto dos coqueiros, no pátio da igreja que confinava com o jardim. Evidentemente, era melhor brincar que estudar. Fomos encontrados. Não me lembro do que aconteceu a seguir, mas acredito que recebemos algumas palmadas de minha mãe, com o inevitável: “Vou contar a seu pai quando ele chegar”, e tivemos que pedir desculpas a D. Aracy por não estarmos a postos. *** D. Aracy era professora bondosa e competente. Rapidamente nos alfabetizou e com ela fizemos todo o primário. Além de leitura, cálculo e outras matérias do programa ela gostava, também, de nos fazer desenhar. Tínhamos um caderno quadriculado em que traçávamos páginas e páginas com gregas, frisos e florões geométricos, em retas e curvas, tendo como apoio o quadriculado do caderno. Depois, pintávamos com lápis de cor, em cores lisas ou esbatidas. Eu achava uma beleza. Aprendemos a ler numa cartilha que, depois do v-a-va, v-e-ve etc., terminava com uma pequena antologia, apresentando histórias e poesias. De uma delas ainda me lembro, incompleta: //
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“Já no horizonte surge a manhã, é dia, vamos, ó minha irmã...” E continuava falando sobre a ida matinal à escola. D. Aracy a lia com vibrante entonação. Também me lembro de uma outra história que terminava com os versos: “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento...” Ou “Por dentro cravos e rosas, por fora manjericão.” *** Mesmo depois que fomos para o colégio D. Aracy manteve o contato conosco. Quando vínhamos para casa, de férias, ela às vezes aparecia para nos visitar ou íamos a sua casa. Geralmente isso acontecia quando a missa dominical não era rezada na igreja da Fábrica, mas na da vila. D. Aracy morava ao lado dessa igreja. Ela nos oferecia balas e biscoitos, sempre acompanhados de um sorriso gentil e um pouco tímido. Nunca deixava de indagar sobre nossos estudos. *** A escolha de D. Aracy para nossa mestra — entre outras causas de competição profissional — deixou enciumada a outra professora da vila, D. Hortência. A realidade é que as duas nunca viveram em paz e D. Hortência procurou prejudicar a nossa professora em suas promoções no ensino público, durante muitos anos.
Animais domésticos Papai não gostava de animais domésticos dentro de casa; por isso nunca tivemos gatos nem cachorros. A única exceção eram os passarinhos; //
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mineiro não vive sem passarinho em casa. As gaiolas eram penduradas nas colunas do varandão — duas em cada coluna, uma de um lado e outra do outro. Assim os passarinhos se viam e se faziam um pouco de companhia. Como cantavam! Eram curiós, assanhaços, coleirinhos, tiêssangue, canários da terra... e outros muitos de que não me lembro. O entendido em pássaros na família é o Alaôr, que os conhece de longe, e de meu pai herdou o amor pelas avezinhas. Isso dentro de casa, porque fora havia galinhas, perus, vacas e porcos. Tínhamos um galinheiro com muitas galinhas (50? 100?) de raça carijó (pintadinhas de preto e branco). Criados juntos com elas, perus e galinhas d’angola. Gostávamos de dar milho para as aves. Tínhamos um pouco de receio dos perus quando chegavam perto de nós fazendo glu-glu, em altos brados, em passos decididos, como soldados avançando. Eram criados para as festas, principalmente o Natal. As galinhas d’angola às vezes fugiam para o mato, onde iam pôr seus ovos, muito escondidos. As carijós eram lindas e todas as manhãs acordávamos com o cantar do galo. O gado também estava perto de nós, pela manhã e à tarde quando os animais chegavam do pasto para serem tratados e as vacas ordenhadas. Às vezes levantávamos bem cedinho e íamos tomar o leite tirado diretamente dentro de nossos copos altos, com açúcar e conhaque francês no fundo. Não era um luxo conhaque francês. Naquele tempo em nosso país, era artigo de uso diário em qualquer família burguesa e creio que nem existia conhaque brasileiro de qualidade passável. Das vacas, só me recordo um nome, a vaca “Vega”, que tinha uma estrela na testa, justificando o nome. Viveu muitos anos, fornecendo-nos ótimo leite e morreu de acidente: caiu num buraco no pasto e foi impossível tirá-la, tendo que ser sacrificada. Sua carne foi distribuída entre os empregados. Outros animais que foram nossos companheiros por muito tempo: os cavalos, que nos levavam a passear. Um dos melhores era o Pouso Alto, meu preferido, de ótima andadura. Era um manga-larga vindo de Minas, da cidade que lhe deu o nome. Todo branco, era imponente. Mas, antes dele, houve outros em que aprendemos a cavalgar: o Tupi, muito manso, de passo macio, obediente ao menor sinal do cabresto ou da rédea. Depois que o Tupi morreu, houve outro de temperamento semelhante,
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o Guarani. Mas, já mais crescidos e cavalgando com segurança, achávamos o Guarani um cavalo lento e preguiçoso. Ninguém queria montá-lo. Mais tarde tivemos o Baio, cavalo impaciente, de ótimo galope e que faleceu “aguado” depois de uma galopada até Rodeio (hoje Paulo de Frontin), no alto da serra, em passeio de Alaôr e Totonio. Meu pai ficou “bravo” com os dois, pois sempre nos dizia para não forçarmos os cavalos em galopes desenfreados. O cavalo mais bonito de todos era o de papai. Meio árabe, imponente, alto, de pernas esguias e irrequietas, de um belo pelo lustroso e avermelhado. Era o Kaiser. Ninguém tinha licença de montá-lo. Era o único cavalo que ficava, às vezes, no curral, perto da casa. Os outros, depois de nos levarem a passear, voltavam sempre para o seu lugar na cavalariça da Fábrica. O tratador era o Raimundo. Havia disputa na escolha dos cavalos para o passeio. Também discutíamos para ter a melhor sela, pois que todas não eram iguais. Havia as mais confortáveis e as menos. Algumas tinham mantas de pelo, outras de lã, e outras de algodão. Também os estribos eram de diversos tipos, uns mais fechados e ajaezados e outros mais simples, como os das selas inglesas. As selas inglesas não tinham o “santo-Antônio” e davam menos segurança. Ninguém segurava no”santo-Antônio”, com medo da caçoada dos demais: — Tira a mão do santo-Antônio!! O apoio tinha que ser conseguido com os joelhos, firmemente apoiados no cabeçote da sela. Belos passeios eram os nossos pelas encostas da Serra do Mar, com suas estradas de terra e suas matas!
Raimundo Aprendemos a cavalgar ainda crianças. A Fábrica tinha bons cavalos à nossa disposição. Pelas matas — que pertenciam à Cia. — havia muitos caminhos, estradas e bonitos locais para passeios ensombreados, os preferidos no verão quando o sol estava forte.
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Inicialmente, as nossas cavalgadas eram curtas: ao açude da Cascata, à Caixa d’Água, à Fábrica da Cascata (de outra Cia., a Maria Cândida, também de tecidos), ao Quilombo. Depois íamos mais longe: ao Açude do Engenho da Serra (na estrada que vai a Eng. Paulo de Frontin, naquela época chamada de Rodeio); às belas e cristalinas nascentes da Água de Beber, um fio de água que corria sobre areia claríssima, sob uma abóboda de altas e copadas árvores, onde nos divertíamos a apanhar pitus cor-de-rosa junto à pequena barragem. Nos passeios a Água de Beber levávamos sempre um lanche para ser saboreado sob a fresca sombra das árvores e bebíamos a água puríssima. Havia outros passeios: à fazenda do Coronel Coutinho, com sua filha Débora e o seu suco de maracujá; para os lados da estrada Rio-São Paulo, aproximadamente a meio caminho, ficavam as ruínas de São Pedro e São Paulo, com uma velha igreja a cair e um cemitério cercado por grade de ferro trabalhado. *** Quem nos acompanhava era o Raimundo, empregado de toda confiança e tratador dos cavalos. Alto e preto retinto, tinha uma bela alma e cuidava de nós com carinho. Era ele quem arreava os cavalos, tomando cuidado para que tudo estivesse firme. Depois que montávamos acertava o comprimento dos estribos de acordo com nossas pernas. Verificava se o freio estava bem colocado na boca do animal. Entregava-nos um chicote ou uma varinha de bambu, recomendando que não batêssemos nos cavalos a não ser de leve e quando necessário. *** Dávamos adeus à nossa mãe, que observava a partida “das crianças”, e lá íamos, depois de ouvir as recomendações: — Obedeçam ao Raimundo! — Não galopem! — Não voltem tarde, que o sol está forte; ponham os chapéus! E outras do mesmo gênero. Não nos afastávamos muito do Raimundo. Se algum de nós o fazia voltava logo, diante do argumento: //
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— Vou contar ao Dr. Junqueira que vocês não estão me obedecendo. O castigo seria ficar em casa no próximo passeio. O que nunca aconteceu. *** Nas estradas e nas matas por onde passávamos havia muitas flores nas árvores e nos barrancos. Raimundo nunca se esquecia de apanhar flores para que as levássemos à nossa mãe. As flores eram lindas: lírios-do-brejo, estifias amarelas, manacás, jasmins e tantas outras das quais nunca soube o nome!... Com a ajuda do Raimundo, conseguíamos chegar às mais altas e ele se encarregava de apanhar as menos acessíveis. Voltávamos do passeio com buquês coloridos de belas flores silvestres, para enfeitar a casa. *** Raimundo nos acompanhou durante muitos anos em nossos passeios a cavalo. Até que — já estávamos no colégio — ao voltarmos para as férias, não encontramos mais o nosso anjo da guarda. Soube – pelo Marcelo – que morrera devido a complicações surgidas após um coice de cavalo. Daí por diante os passeios não foram mais a mesma coisa. Ele, Raimundo, deve estar no céu, num cavalo alado, colhendo flores para mamãe.
O piano de minha mãe No início do Século Vinte, eram muito rudimentares os sistemas de reprodução de músicas. Existiam o realejo, a pianola e algumas vitrolas já haviam sido inventadas. As primeiras com a música impressa em rolos e, logo depois, em discos. O som reproduzido não era límpido como o das vozes e/ou dos instrumentos originais. Por isso, a boa música tinha que ser obrigatoriamente ouvida “ao vivo”: nas salas de concertos, nos teatros, nos “cafés–concertos” e nas residências das pessoas mais abastadas, que apreciavam essa arte. Meu avô materno, Dr. Josino, além de advogado, tinha grande extensão de terras no Estado de São Paulo, em Itápolis e arredores. A lavoura de //
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café estava dando grandes lucros e ele vivia muito bem, com seus muitos filhos. Teve ao todo onze, que criou e educou da melhor forma. Todas as sete moças estudaram. As mais velhas, incluindo minha mãe, no Colégio Sant’Anna, de freiras. Todas aprenderam a tocar piano e algumas nisso se sobressaíram na família e até fora dela. Tia Anita, além do piano tocava bandolim. Quando ficou noiva do médico José (Petit), ele vinha à casa de meus avós e — exímio violinista — gostava de tocar acompanhado ao piano por minha mãe, que naquela época todos chamavam de Maria (o apelido de Zae lhe foi posto pelos sobrinhos que viriam). Tia Anita morria de ciúmes e dizia à irmã: — Lembre-se que ele é meu (essa história me foi contada pela própria tia Anita, quando com ela estive aqui no Rio de Janeiro, e ela já tinha bastante idade). Tia Anita casou-se com tio Petit e foram morar em Poços de Caldas... mas essa é outra história. Quem mais sucesso fez como pianista, no entanto, foi minha tia mais moça, Lavínia, que recebeu prêmios e deu alguns concertos ainda muito jovem. Tendo se casado e ido morar em Santa Catarina e, a seguir, no Estado do Rio, mamãe ficou sem piano. Deve ter sido um grande sacrifício para ela ver-se privada de suas músicas. Dentre os clássicos, lembro-me de que tocava maravilhosamente bem Chopin. Creio que era o seu compositor preferido (sempre que ouço os “Noturnos” ela me vem à memória e me comovo). Mas não desprezava os muitos compositores brasileiros da época, com suas valsas, polcas, mazurcas, schotishs, canções sertanejas, cateretês e toda a variada musicalidade daqueles primeiros anos do século XX. Muito mais eu poderia escrever sobre as composições musicais daquela época, pois que, não sei por quais circunstâncias, vieram parar às minhas mãos as partituras da família. Algumas com interessantes dedicatórias para minha mãe, outras para tia Anita e até para a vovó Alice.
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Foi somente em 1933 que mamãe ganhou um piano — novinho — de presente, dado por meu pai. Eu estava no colégio, mas posso imaginar como deve ter ficado alegre. Não devia estar completamente destreinada, porque todos os anos passávamos as férias grandes em São Paulo, na casa de vovó Alice. Lá continuava o piano familiar. Aconteceu que foi contratado para chefe da tinturaria da fábrica, Cia. Brasil Industrial, um italiano, Seu Rizzo, que também era um ótimo pianista e professor de piano. Ele se prontificou a lhe dar algumas aulas de recuperação e treinamento. Ela logo se pôs em forma. Quando viemos para casa em férias, eu me deliciava ouvindo-a tocar a “Serenata de Braga”, a “Serenata de Schubert” e uma belíssima marcha que nunca mais ouvi, cujo nome era em alemão e em português seria “Marcha dos Hússaros”. No final de 1933 mamãe nos preparou uma festa de fim de ano. Houve até teatrinho, com palco e tudo. Marcelo e minha irmã Nete fizeram sucesso cantando “Boneca de Pixe”. Eu recitei uma poesia, “A flor do aguapé”, que terminava assim: “deixa-me, deixa-me fonte/dizia a flor a chorar/ eu fui nascida no monte/não me leves para o mar. E a fonte, sonora e fria/com sorriso zombador/ por sobre a areia corria/corria levando a flor... Não me lembro de outros detalhes da festa nem de toda a poesia. *** Nunca poderia imaginar que essas seriam as últimas festas de fim de ano que passaríamos com mamãe. Ela estava muito feliz. Acompanhou as nossas representações com música, em seu piano novo. *** Mamãe faleceu em 28 de maio de 1934. Eu tinha 13 anos. Daí por diante Natal e Ano Novo sempre tiveram para mim uma grande parte de tristeza. Nunca mais a alegria foi completa. //
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Desenho de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 187.
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Novella Due Conto Dois
A Canção de Itatiaia
(Um conto da Mantiqueira) Ligia Junqueira Begossi e Armando Begossi
Desenho de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 158.
Mãos de espíritos invisíveis dedilham as cordas Do misterioso instrumento, a Alma, E tocam o prelúdio do Destino. *** “Hands of invisible spirits touch the strings Of the misterious instrument, the Soul, And play the prelude of Fate” Longfellow
A
história que vou contar é muito, muito antiga. Passou-se numa época em que não existia o Parque Nacional do Itatiaia e antes mesmo da doação daquelas terras, em 1922, pelo governo, a um grupo de agricultores, imigrantes europeus. Na década de cincoenta, quem passasse pela estreita estrada que do Repouso Itatiaia (antigo Hotel Donati) leva ao rio Taquaral e à sua cachoeira, veria as ruínas de uma casa num terreno descampado. Só restavam os alicerces de pedra. O restante fora levado pelas intempéries ou retirado por moradores da região já que a casa estivera abandonada. À noite todos evitavam aquele caminho, pois o local era considerado mal-assombrado. Contam que na lua cheia aparecia um lobisomem... Mas essa é outra história. *** Foi no ano de mil novecentos e cincoenta e cinco que uma velha senhora, descendente de italianos e nossa anfitriã, narrou o que vou procurar reproduzir de memória. Ela a ouvira, ainda mocinha, relatada por sua avó.
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Havíamos acabado de jantar e os jovens tocavam ao violão a tradicional canção de Itatiaia1: Aqui no alto vivemos felizes a gozar este sol, este ar, nestas águas que descem em cascatas é um prazer sem igual mergulhar. Quando o sol nasce atrás da serra, passarinhos nos vêm despertar e quando a noite desce serena mil grilinhos se põem a cantar. Sobem nuvens ligeiras do vale, denso véu sobre a mata a espalhar, Belos tempos de felicidade nevoa branca nos faz recordar. *** A nossa simpática hospedeira foi quem entrou no assunto: — Sabem quem compôs essa canção? — ?...
1. N.O.: Refere-se à letra adaptada à melodia “Red River Valley”. Não se sabe muito sobre a origem dessa melodia, parece ter origem gaélica (diferentes gaitas e o violino). Referências antigas encontram-se no Vale do Rio Vermelho do Norte – de Dakota e Minnesota (Estados Unidos) a Manitoba (Canadá), desaguando no Lago Winnipeg. Antigas referências sobre a melodia, nessa região, incluem: Rebelião do Rio Vermelho, 1870; Iowa, 1879; Canadá (cinco províncias), 1896. “Red River Valley” foi gravada em 1925 como uma canção cowboy por Carl Sprague; outra gravação, de 1927, por H. Cross e R. Pucket, obteve grande sucesso. Entretanto, essas gravações referem-se ao Vale do Rio Vermelho localizado entre Arkansas e Texas (EUA). Nystrom, J. James. Manitoba History: The True Story of the Song “Red River Valley (n. 72, Spring-Summer, 2013) (Manitoba Historical Society). Disponível em: http://www.mhs.mb.ca/docs/mb_history/72/ redrivervalley.shtml. Acesso em: 21/12/20. //
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“...nessas águas que descem em cascatas, é um prazer sem igual mergulhar”.
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— Um casal que viveu aqui na Serra uma comovente história de amor, desencontro e reencontro. Ela italiana, ele paulista. Nessa história entra uma curiosa lenda veneziana. Querem que conte? Um coro de vozes respondeu: — Queremos! — Pois, então, ouçam. *** “A italiana à qual me referi aqui chegou menina. Era filha de um rico negociante veneziano. No dia em que nasceu, a mãe pressentiu que morreria. Pela janela aberta que àquela hora estava iluminada pela luz dourada da tarde de verão, olhou a água imóvel da laguna veneziana. Seu olhar se deteve em um ponto muito além do horizonte. Com voz entrecortada, a jovem senhora disse para o marido: — Estou vendo o castelo marinho! O Castelo do Peixe!... O marido estremeceu. Para os venezianos, é um mau presságio quando o Castelo do Peixe aparece sobre as águas. Ela compreendeu que seu fim estava chegando e continuou, muito triste: — O Castelo está lá ao longe. O Peixe apareceu na torre... desenrolou um pergaminho; nele está escrito o Destino de nossa filha. Pobrezinha! Terá uma vida vazia e não será feliz... — Vai ficar pobre? – perguntou o marido que, como bom comerciante, era apegado à riqueza. A mulher juntou as últimas forças que lhe restavam e olhou fixamente o horizonte luminoso. Respondendo ao marido, disse: — Não. Não ficará na miséria... Mas vai doar quase tudo o que possuir. Vejoa em terra estranha, numa cabana erguida numa várzea muito verde junto a um riacho que corre sobre lisas pedras. Ao fundo há uma montanha de rochas verticais, como agulhas contíguas. Nas margens do regato estão muitas flores silvestres. Esse será o momento feliz de nossa filha. //
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— E depois? — perguntou o negociante, inquieto e assustado. Ele conhecia a tradição veneziana: “quando a mãe que acaba de ter um bebê vê o Castelo do Peixe, é sinal de que ela vai morrer... E nesse momento prevê o Destino da criança”. — Não sei... — murmurou a esposa; fez um esforço e continuou — Não consigo ler mais nada, o Peixe tornou a enrolar o pergaminho. Agora o Castelo está afundando no mar e... desapareceu... O marido, os médicos, as enfermeiras, todos, desesperadamente tentaram salvar a doente. Em vão. A jovem mãe morreu ao cair da tarde. *** Sozinho com o bebê, o desconsolado viúvo rememorou a morte da esposa e pensou na profecia. “Minha filha vai doar os seus bens, tudo que juntei com trabalho e sacrifício e guardei zelosamente. Com esforço e sabedoria consegui aumentar, o mais que pude, a minha riqueza, que vai acabar em mãos estranhas! Esse pensamento me é insuportável, mas farei o possível, vencendo o Destino, para que isso nunca aconteça. Educarei essa menina no respeito e amor à riqueza que eu, seu pai, lhe legarei. Deve-se ao dinheiro o que se deve à mulher: ‘amá-lo, respeitá-lo e defendê-lo!’”. Pensou, repensou e se pôs a imaginar o que poderia suceder de pior: “Ela será rica, porque herdará o que tenho. Terá muitos pretendentes, e a maioria não será desinteressada. Pode acontecer que um homem perdulário consiga sua mão e, com ela, as suas riquezas. Tenho que evitar isso, a todo custo. Superados os primeiros dias de tristeza, o veneziano, preocupado, consultou uma feiticeira famosa. Ela aconselhou-o: — Em primeiro lugar, não ponha o seu sobrenome na menina. Dê-lhe o da mãe. Esse é um ótimo truque para defendê-la dos pretendentes indesejáveis. Depois saia de Veneza e vá morar onde ninguém o conheça. Sua filha estará mais segura. Por que não muda de país? Um bom negociante encontra o que fazer para ganhar dinheiro em qualquer parte do mundo. //
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O comerciante seguiu esses conselhos. Deixou Veneza. Embarcou num navio e veio com a filha para o Brasil. Foi primeiro para São Paulo. À medida que crescia, a menina se tornava mais bonita. O pai achou que a cidade estava ficando grande, tinha muita gente e principalmente inúmeros italianos que sabiam ser ele bem rico. Resolveu procurar um lugar mais retirado para viver. As montanhas de Itatiaia, com suas matas verdes bastante isoladas e longe do movimento urbano, lhe pareceram ideais. Era o que queria. Mandou construir uma casa, exatamente aquela de que agora só existem os alicerces na entrada do Taquaral. *** Ainda que se mantivesse afastado dos moradores da região, o comerciante não tinha uma vida aborrecida. Homens como ele, em qualquer lugar, arranjam o que fazer, como dissera a feiticeira, em Veneza. Frequentemente subia a montanha até o Planalto, a pé ou montado num burro, o Oscar, que aguentava muito peso sem protestar. Carregado voltava ele, com sacos de cristais de rocha e pedras semipreciosas, às vezes encaixados em grandes e vistosos geôdos. Onde os encontrava? Nunca ninguém soube. Naquele tempo, o Parque Nacional não existia e, portanto, não havia proibição de retirar plantas ou pedras. Poucos se atreviam a enfrentar a íngreme caminhada até o alto da serra. *** Quando a menina completou sete anos já ajudava o pai a selecionar, separar e pesar as pedras. Fazia isso com seriedade, como se fosse adulta. O comerciante se orgulhava da filha e do amor que ela manifestava por ele e pelas preciosas gemas. Pensava: “Não creio que algum dia ela venha a esbanjar a riqueza que lhe deixarei com a minha morte. Gosta do que é bonito e valioso. E, principalmente, obedece sempre aos meus conselhos paternos...”. Quando encontrava uma pedra mais cintilante, com reflexos raros, a menina exclamava: //
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“As montanhas de Itatiaia, com suas matas verdes [...]. Era o que queria. Mandou construir uma casa ...”
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— Veja, papai, que maravilha! Como flameja! É bonita como você! O negociante passou a chamar a filha de FLAMINIA (nome que vem de flama, o mesmo que chama), apelido pelo qual ficou conhecida. *** O tempo corria e o comerciante sentia a velhice chegar. Foi obrigado a renunciar às excursões aos montes. O único interesse de sua vida, além da filha, passou a ser a sua riqueza. Era também a sua principal alegria e, paradoxalmente, o seu tormento. Temia que algum dia tudo o que juntara fosse desperdiçado pelas mãos inexperientes da jovem. “Saberia ela cuidar de seus haveres?” — perguntava a si mesmo. Aproveitou os últimos anos para intensificar as instruções à filha, pondoa em guarda contra os perigos que a pudessem ameaçar: estelionatários, vigaristas, aventureiros e pretendentes mal intencionados. Principalmente desses últimos ela devia desconfiar. Explicava ele a Flaminia: — São sempre homens bonitos e insinuantes, porém sem escrúpulos. Procuram ricas herdeiras para pôr a mão no que possuem. Elas acabam na miséria, decepcionadas e infelizes. A mocinha confiava plenamente nas palavras do pai. Como poderia duvidar? Sempre vivera a seu lado. Ele lhe ensinara a ler, escrever e a amar os livros, que lhe comprava sempre. Pouco a pouco em sua mente se concretizou o propósito de nunca se casar. Mais um problema preocupava o negociante; quando ele morresse Flaminia ficaria sozinha. Procurou uma governanta que com eles morasse, cuidasse da casa e da filha. Encontrou nos arredores uma viúva que não se fez de rogada. Era ainda jovem, com alguma instrução e calculista. Imaginava que, entre os pretendentes numerosos da mocinha, acabaria sobrando um marido para ela. Aceitou o emprego sem pestanejar e sem fazer exigências. Logo no início encheu a cabeça da jovem, com histórias de arrepiar os cabelos, sobre a avidez e a falsidade dos homens que procuram uma noiva. O pai escutava essas conversas com satisfação e concluía que melhor companhia para a filha não poderia ter encontrado. Além do mais, a //
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governanta aceitara o ordenado oferecido, sem tentar aumentá-lo, apesar de modesto. Ele tinha, pois, conseguido o máximo de proveito com o mínimo de despesa. *** Quando sentiu que o fim se aproximava, o velho fez testamento nomeando Flaminia sua única herdeira, mas impondo condições que – assim acreditava— lhe dariam a maior segurança possível. Acrescentou ao documento a recomendação para que a filha não voltasse a morar em São Paulo e nunca fosse habitar Veneza, apesar de lá ter nascido. Deveria ficar em Itatiaia. Ele morreu no ano seguinte. Sem perder tempo, a governanta sugeriu à mocinha a volta à Veneza, contrariando as recomendações póstumas do pai. Pensou ela em si própria, pois sempre tivera vontade de conhecer outros países, o que suas posses nunca poderiam permitir: e...... quem sabe... lá poderia encontrar um italiano bonitão, que a quisesse? Flaminia sempre respeitara muito o pai e confiava nos seus conselhos, assim, não podia deixar de cumprir as suas últimas vontades. Ficaria em Itatiaia. Era também o que queria. Essa decisão foi recebida pela governanta com grande desespero; sonhara sair “daquele mato”, como repetia. Mas Flaminia não lhe dava ouvidos. As duas continuaram na solitária casa da floresta. Ocupavam-se do jardim, dos vasos de plantas, dos afazeres domésticos. Flaminia lia muito e raramente ia à vila. O pai lhe deixara uma imensa biblioteca, com livros italianos e franceses, além dos brasileiros. Ele próprio lhe ensinara essas línguas, que dominava perfeitamente. Habituada a esse gênero de vida ela nada mais desejava. Todas as manhãs descia até o rio Campo-Belo pela picada aberta na mata. No fundo do vale a água límpida, frequentemente gelada, corria e cantava em cascatas estupendas. Quando a temperatura o permitia, ela dava um rápido mergulho. Sentia-se feliz. //
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Ao contrário, a governanta procurava tornar mais curtas as suas monótonas jornadas. Dormia até meio-dia. *** Ora, aconteceu que quase todas as manhãs um jovem também gostava de caminhar, até o rio. Quando avistava Flaminia cumprimentava-a com cortesia, mas não a abordava. A moça sentia um prazer diferente nesses fugazes encontros; sensação que não sabia explicar. Um dia, ao voltar de um de seus passeios matinais, falou do jovem desconhecido com a governanta. Esta, com muito esforço conseguiu esconder seu descontentamento e naquele mesmo dia achou um pretexto para ir até a vila. Lá se informou sobre o rapaz. Soube que pertencia a uma rica família paulista, mas como tinha oito irmãos e era o mais moço não possuía um tostão de seu. O pai lhe arranjara um emprego no comércio, mas ele fugira para as montanhas. Preferia vagar pelas matas. Essa era a sua ocupação. Eventualmente recebia algum dinheiro, acompanhando, como guia, excursionistas que iam escalar os Picos do Maciço de Itatiaia: Agulhas, Prateleiras, Pedra Sentada, Pedra Selada e os outros. Conhecia-os todos, palmo a palmo. Tendo ouvido essas informações, a governanta concluiu que se Flaminia casasse com aquele jovem meio selvagem nunca mais voltaria à civilização, nem a São Paulo; muito menos, à Veneza. E... adeus viagens... Decidiu, por isso, que daria um jeito de impedir o prosseguimento do namoro que se iniciava timidamente. Um dia em que ela estava sozinha, a caminhar por uma picada, encontrou o jovem. Aproximou-se e falou-lhe, fingindo ter sido mandada por Flaminia. Disse-lhe que a mocinha se dera conta de suas pretensões, mas mandava dizer que não se iludisse, porque não queria saber dele. Evidentemente a pobre Flaminia nunca soube, nem suspeitou sequer da trama urdida pela governanta. Aliás nenhum pensamento sobre uma possível união ou compromisso com o rapaz havia aflorado ainda em sua mente ingênua. Apenas sentia-se feliz quando o avistava, ele a cumprimentava e lhe dizia algo. Ficou surpresa quando não mais o viu. //
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Muitas vezes, ao caminhar pela mata, parecia-lhe ouvir passos. Sentavase, então, sobre uma pedra ou um tronco de árvore e esperava. Mas ninguém aparecia. O jovem decidira não mais passar por aqueles lados. Apesar da beleza da floresta e das cachoeiras, do canto dos pássaros e do sibilar do vento, a solidão começou a lhe pesar. A esperta governanta percebeu com prazer esse novo estado de espírito da jovem. Não teve paz enquanto não conseguiu que ela se dispusesse a conhecer a cidade onde nascera: Veneza. Naquela época era longa a viagem de navio. Chegaram a Gênova e lá tomaram um carro até Veneza. Ao primeiro contato a Cidade dos Doges não entusiasmou a triste Flaminia; porém, pouco a pouco, habituou-se àquela vida tão diferente. Atraiu logo muitos jovens que aspiravam à mão de tão bonita e rica mocinha. Acolhia a todos com desconfiança, pois os conselhos do pai estavam gravados em sua mente. Em cada pretendente via um homem ávido, desejoso de suas riquezas. A governanta lhe dava razão e, mais ainda, exortava-a a desconfiar. Até que um dia esta última encontrou marido. Flaminia ficou sozinha na grande cidade. Depois de algum tempo de vida urbana ela se sentia ainda mais só e se aborrecia na alegre Veneza, o que nunca lhe acontecera na solidão de Itatiaia. Tinha tudo o que pudesse desejar, mas mostrava-se sempre menos interessada no que se passava a seu redor. Ao voltar das brilhantes festas nos palácios venezianos, para as quais era convidada, sonhava muitas vezes com a sua pequena casa na mata. Nos sonhos via o rio no seu leito pedregoso, espumando em rápidos e cachoeiras. Via também um jovem que, como ela, passava pelas picadas sombreadas. Acordava infeliz com uma dor aguda no peito. *** Passaram-se os anos. Flaminia sempre sozinha no meio de tanta gente, sempre insatisfeita entre riquezas e divertimentos, azedava o seu carácter, tornava-se altiva e caprichosa. Novos pretendentes apareciam e ela tinha que se esforçar para esconder o desprezo que sentia por cada um. //
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Com uma vontade imensa de desabafar um dia contou sua história a uma velha senhora que sempre lhe demonstrava bondade e simpatia. Depois de pensar um pouco, esta lhe deu um conselho bastante curioso: — O seu caso é muito difícil, minha menina, mas acho que entendi. Aquele jovem de Itatiaia estava destinado pelos Fados a ser seu marido. Porém, vocês foram separados por motivo que não sabemos qual foi. O seu coração chora por ele. Deve, pois, tentar encontrá-lo. Volte para o Brasil. Vá para uma grande cidade; para São Paulo, onde, como me contou, está a maior parte de sua fortuna. Procure frequentar festas, pessoas da sociedade, o que não lhe será difícil. Um belo dia, dê-se por doente e... faça com que anunciem sua morte. Antes, porém, compre um túmulo no cemitério mais conhecido e nesse túmulo mande gravar seu nome. Ponha a comunicação da sua morte nos principais jornais das maiores cidades daquele país. Nesse anúncio inclua um aviso mais ou menos assim: “todas as vezes que alguém apanhar flores no Planalto de Itatiaia e depositar no túmulo da falecida, será dada aos pobres ou a uma obra de caridade uma boa soma em dinheiro”. Quem lhe trouxer as flores do Planalto será somente pela lembrança daqueles encontros da juventude, pois não terá com isso nenhuma vantagem própria, apenas o consolo de estar cumprindo o seu último desejo. Dessa forma você terá certeza de que ele a amava. Deixe uma pessoa de sua confiança junto ao túmulo, permanentemente. Essa pessoa deverá pedir o endereço de quem levar as flores. Com essa pista, será fácil encontrá-lo. Essa ideia MALUCA agradou à caprichosa Flaminia. Seria um meio de encontrar quem a tinha amado realmente e não ao seu dinheiro. *** Voltou ao Brasil. Procedeu como a velha amiga sugerira. Somente dois fiéis e discretos servidores, que participaram dos detalhes da trama, sabiam que ela não morrera. Mas, a desilusão foi cruel. Os seus amigos ricos levaram muitas coroas e buquês de flores ao seu túmulo, mas nenhum deles foi colher flores no Planalto de Itatiaia, para satisfazer o seu último capricho. O único //
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homem que talvez a tenha amado não apareceu. O resultado dessa farsa, executada não sem dificuldade, foi uma grande amargura. Teve que deixar São Paulo; não poderia mais aparecer, depois de sua morte anunciada. Viajou, conheceu outros países, tentou viver em outras cidades. Em nenhum lugar sentia-se com a alma em paz. Tornava a procurar outras paragens. Um dia, teve que se deter à margem de um riacho e pôs-se a olhar as suas águas, tumultuosas e límpidas como as do rio Campo Belo junto à ponte do Maromba. Lembrou-se da infância, do pai, do jovem namorado e repentinamente sentiu-se tomada de uma imensa saudade daqueles tempos idos, quando pouca coisa conhecia além de Itatiaia, suas matas, rios, cachoeiras e o Planalto com as imponentes Agulhas de sienito. Foi nesse momento que decidiu voltar. Imediatamente. Como era possível não ter pensado antes? *** Retornou às suas montanhas no inverno. O tempo estava seco e o perfil dos montes se desenhava no céu azul. O coração de Flaminia se encheu de alegria. Subiu a pé, a partir da estrada, a picada que levava à sua casa. Percorreu o estreito caminho de terra batida que trilhara muitas vezes na adolescência. Teve um choque! Perdeu as forças, fechou os olhos para não ver... não queria mais abri-los para conservar a ilusão de que tudo continuava lá. Não, não se enganara. Teve que enfrentar a realidade. A sua casa, branquinha e com janelas verdes onde estavam pintados corações vermelhos, se transformara em ruínas enfumaçadas. Indagou dos habitantes do local e contaram-lhe que um raio atingira a construção e a incendiara. Não sabiam precisar quando fora isso. Já se passara muito tempo. Flaminia sentiu-se mal. O golpe era forte demais para sua alma cansada. Agora estava sozinha no mundo, sem parentes, sem amigos e sem um lar. A desilusão foi grande. //
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“Não construirei outra casa no mesmo lugar”, decidiu. Irei morar mais no alto, bem mais no alto, lá em cima da montanha, longe de tudo e de todos”. No tempo em que o comerciante vivia, ela ia com ele lá em cima, onde havia várzeas verdes e muitas flores. Era um lugar incomparável pela beleza e tranquilidade. Decidiu morar o mais perto possível daquele paraíso. Assim – quem sabe? – esqueceria a tristeza e a inutilidade de seu viver. “O beata solitudo, o sola beatitudo” (Ó feliz solidão, ó única felicidade!”) Quase sem perceber, repetia uma das frases prediletas do pai. Mandou levantar uma pequena casa de madeira, não muito longe do Planalto. A natureza calma daquelas alturas haveria de curar as feridas de seu coração. Flaminia passeava todas as manhãs pelas várzeas floridas, voltando a seu hábito antigo. Meditava ao longo dos riachos que corriam velozes pelas lisas pedras. Retornou à vida simples, quase primitiva. Sentiu que, aos poucos, recuperava o ânimo sereno e despreocupado de sua juventude. Um dia, estava sentada junto a um regato de águas claríssimas, , a contemplá-lo, absorta em seus pensamentos. Eis que vê surgir, do outro lado do pequeno córrego, um homem acompanhado por um cão. Este foi até a água e bebeu. O seu dono se deteve um pouco, a esperá-lo, sem ver a mulher que estava na outra margem. Flaminia o reconheceu ao primeiro olhar: era o caminhante que há muitos anos comovera, com os seus cumprimentos cordiais e breves palavras, o seu coração de menina. Como mudara! Flaminia olhava-o enquanto ele se ia pela trilha estreita, seguido do cão. Pouco se parecia com o garboso jovem cuja imagem persistia intacta em sua lembrança. Tornara-se mais pesado, um pouco gordo, tinha a barba inculta, o que lhe dava um aspecto selvagem. Quase vinte anos haviam passado desde que o vira pela última vez junto ao rio Campo-Belo. Nesse longo correr do tempo, provavelmente ele havia continuado nas montanhas, enquanto ela vagara pelo mundo, irrequieta e sempre triste. Tudo isso passou rapidamente pela mente de Flaminia e ela se abandonou, sem resistência, à nostálgica melancolia das recordações. Alguns dias transcorreram e o mesmo encontro se repetiu. Dessa vez ele a viu e cumprimentou-a. Após tantos anos de vida selvagem — pensou //
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ela — o seu cumprimento ainda é cheio de elegância e dignidade, apesar de não ser tão galante quanto aqueles que lhe ficaram na memória. Percebeu, porém, que não a reconhecera. Tornaram-se bons amigos. A partir daquele dia se encontraram muitas vezes e muito se falaram. Flaminia observou que toda a selvageria de sua aparência desaparecia quando ele conversava. Tinha o olhar suave e profundo; a voz acalmava e inspirava confiança. Era um homem sereno. Flaminia, pelo contrário, de vez em quando deixava escapar expressões que punham à mostra o descontentamento íntimo e o vazio de sua vida. Mostrava-se às vezes irritada e repetia que queria voltar para a cidade. Mas eram só palavras. Na verdade, não tinha coragem nem ânimo para se afastar das montanhas. *** Uma tarde, ela comentou com o amigo o quanto era rica. Ficou surpresa com o que ele lhe disse: — Eu já havia desconfiado que o dinheiro foi a causa da sua infelicidade. Para dele se livrar, deve doar o que lhe é supérfluo, dispensar os empregados que mantém inutilmente na cidade e permanecer aqui, em sua pequena casa. Foi isso que fiz. Renunciei, não às riquezas que não tive, mas à vida citadina e aos confortos desnecessários. Assim, em duas ocasiões recuperei a paz. A primeira vez que voltei à cidade tive uma saudade imensa da montanha. Retornei a ela e me curei. Não a teria deixado nunca mais, porém um fato doloroso me empurrou de novo para a civilização. Isso aconteceu há cerca de vinte anos. Mas compreendi que a vida urbana só me fazia mal. Mais uma vez a paz das montanhas me curou. Porém, essa paz só pode ser apreciada na sua totalidade quando se renuncia ao excesso de bens que se possui. Flaminia ouvia e se calava. Pensava: “que conselho estranho!”. Um certo pressentimento lhe dizia, porém, que ela nunca mais voltaria a viver longe dali. Uma voz interior lhe falava, sempre mais firme, à medida que essa ideia se transformava em certeza, Flaminia se convencia de que sua imensa riqueza não lhe serviria para muita coisa. Nela se enraizou, //
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aos poucos, a decisão de seguir o conselho do homem que, cada dia mais, se tornava um amigo fiel e dedicado. *** A grande ocasião se concretizou em seu pensamento uma manhã, diante da cascata das Antas, cujas águas cantavam alegremente, formando um arco-íris. O dia estava lindo, o ar frio e o sol tudo iluminava com sua luz dourada. A natureza respirava uma doçura infinita. Foi então que decidiu NUNCA MAIS deixar aquela região. Determinou aos seus procuradores em São Paulo que distribuíssem grande parte do que possuía entre as pessoas que a haviam servido. Despediu-se dos poucos amigos que conservara, em cartas comoventes. A partir daí, sentiu-se como uma Eremita, sozinha, sem mais nada que a prendesse às coisas desta terra, identificada com a natureza. Conseguira o que procurava. O amigo vinha sempre visitá-la. Trazia-lhe flores e amoras que colhia nos barrancos, peras e pêssegos das árvores que ele plantara há muitos anos com suas mãos. Nem uma vez se referiu à longínqua época em que a vira pela primeira vez, junto ao rio. No entanto, era exatamente da juventude de ambos que Flaminia queria que ele falasse. Com crescente impaciência esperava o dia em que a reconhecesse. Isso lhe turbava um pouco a tranquilidade que as montanhas lhe proporcionavam. Seu pensamento retornava sempre ao mesmo tema: imaginava ir pela picada até a margem do rio encachoeirado, percorria o tempo para trás, até à serenidade da juventude... e lá estava ele a cumprimentá-la. Os dias passavam e a situação não mudava. Flaminia sofria porque o amigo não a tinha reconhecido. A tristeza se imprimia em seu rosto e em seu coração. Ela própria não sabia por que motivo dava tanta importância a isso... mas como podia ele não ter curiosidade em saber quem ela era? Porque ele resolvera viver a sua solidão nas montanhas? Será que esquecera mesmo, completamente, a jovem do rio Campo-Belo? Agora, ele vinha sempre. Passavam horas sentados à margem do regato, ao pé das Agulhas Negras. Depois, cada um retornava a sua casa. Ele continuava a ignorar quem ela era. //
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Numa tarde de verão Flaminia não se sentiu bem e ficou na cabana. O amigo veio encontrá-la, como todos os dias, e compreendeu que ela estava doente, seriamente doente. Tinhas as faces avermelhadas e o olhar baço. Ele quis ser útil, fazer alguma coisa. Não sabendo como agir, foi buscar um cântaro de água fresca no regato. Mergulhou o jarro e, quando levantou a cabeça, teve a impressão de uma grande beleza na atmosfera que se mostrava esplendorosa. Sobre o cimo dos montes por detrás dos quais o sol começava a despencar, havia uma luz quase sobrenatural. — “Nunca vi uma tarde tão bonita” – pensou ele – e logo hoje minha amiga não pode sair de casa. Quando voltou com a água teve uma surpresa. O rosto de Flaminia estava transfigurado. Ele tomou-lhe as mãos e pareceu-lhe que os seus olhos se acendessem, em reflexos luminosos. Tornara-se extremamente bonita. A mente do homem foi atravessada, repentinamente, por uma lembrança imprevista, porém muito forte, e ele disse: — Agora eu a reconheço. Sei quem és. A mocinha do rio Campo-Belo. Meu coração sempre te chamou e eu te procurei por toda parte! — De toda minha vida, este é o momento mais belo! Pudesse eu parar para sempre este instante – ela falou suavemente. Seus olhos aos poucos se fecharam. Pareciam dormir e sonhar. Nunca fora tão bela. Nunca ele vira em seu rosto felicidade tão grande. Essa felicidade ecoou na alma do rapaz. Ele sentiu por ela o que jamais sentira por outra mulher. E assim, em silêncio, envolveu-a carinhosamente em seus braços, selando com seus lábios os dela. A doença de Flaminia e os consequentes cuidados do amigo foram breves; não porém o sentimento que os envolveu. Juntos ficaram, e juntos compuseram a canção que vocês, felizes, acabaram de cantar, sem nem de longe imaginar de onde provinha e o que significava. Agora já sabem. É fruto de um verdadeiro amor”. *** //
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Um dos rapazes perguntou: — Mas, vovó, e a profecia do Peixe? Não se concretizou? — Uma parte sim. Ela doou quase tudo que tinha. Mas o amor mudou o seu Destino. Teve muitos e muitos dias de felicidade; ou quem sabe... — concluiu com olhar matreiro — esse final já estaria escrito no pergaminho que o Peixe enrolou e a mãe não pôde ler todo? *** Essa foi a história que a velha senhora contou. Alguns anos após, ao passar pelo local, não vimos mais as ruínas da velha casa onde morara Flaminia quando era menina com seu pai. A vegetação crescera e tudo cobrira.
Desenho de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 163.
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Novella Tre Conto Três
A Maça de Newton Um caso dos arquivos da advogada Telê Armando Begossi e Ligia Junqueira Begossi* A “Joaninha” que na sua mocidade se parecia com Telê.
Desenho/colagem de Ligia Begossi.
* Pensaram em usar o pseudônimo Piero Giacomini.
I
Sentada diante da mesa de jacarandá, Teresa Lemos (a quem os amigos
e colegas chamam de Telê, doutora Telê ou dona Telê) lia a sentença de um dos últimos processos, proveniente de Brasília, do Supremo Tribunal Federal. Uma demanda, questão de herança, que vencera para um cliente. Entretida, não ouviu quando seu secretário Delio entrou e silenciosamente depôs sobre a mesa um pequeno embrulho luxuosamente envolto em papel dourado com etiqueta de famosa butique. Continuaria a ler absorta se o secretário não lhe dirigisse a palavra: — Desculpe, dona Telê, mas um cliente me pediu para que lhe entregasse este... seu bilhete de visita... e... Teresa ergueu a cabeça e só então viu o embrulho que Delio acabara de trazer. Levantou de forma interrogativa a sobrancelha bem delineada. — Um novo cliente – continuou Delio. – Ele se apresentou com este embrulho, diz que é o seu cartão de visita. — Que aparência tem esse senhor? – perguntou Teresa. — Uma chaminé ambulante. Está andando sem parar na sala de entrada e em cinco minutos já fumou três cigarros. — Pode ser um desses contrabandistas – pensou alto Teresa – e está nervoso. Há de querer que o ajude a livrar de confisco alguma mercadoria preciosa. Abriu o pacote e se espantou: um belíssimo vidro de perfume francês saiu de uma caixa elegante. Tudo de muito bom gosto. — Narcise Bleu – leu alto. – Pelo visto galanteador. Esses contrabandistas de hoje ainda não entenderam que o seu destino é a cadeia. Querem que arranjemos sempre um jeito de evitar que isso aconteça. Diga-lhe... — Mas... Não pode ser um contrabandista! – observou Delio – tem uma aparência distinta, é queimado de sol, um tipo esportivo. Aposto que //
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“Abriu o pacote e se espantou: um belíssimo vidro de perfume...”
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tem um barco à vela para outros contrabandos. É isso! Já vi fotografias dele e agora estou me lembrando... Li sobre suas façanhas. Se não me engano, atravessou com apenas um companheiro toda a Floresta Amazônica, viajando pelo maior rio do mundo num pequeno mas bem equipado iate. — Também me lembro de ter lido alguma coisa a respeito – disse Teresa, interrompendo-o – ganhou uma medalha do governo ou coisa parecida. Casou-se na Suíça com uma moça muito bonita e deu uma festa para um grupo de amigos à qual compareceu a melhor sociedade. — Isso mesmo. O casamento aconteceu há menos de um ano – completou Delio – vi as fotos numa revista, em coluna social. A reportagem dizia que ele mora numa grande fazenda, cercado de todo conforto. Gosta de cavalgar. Tem bonitos cavalos: um plantel de purossangues árabes. Fez construir em suas terras pistas de obstáculos e campo de polo. Plantou belos bosques onde pode passear... Um felizardo – arrematou o secretário. — Faça-o entrar – ordenou Teresa – porém antes lhe diga que o reconheceu, que já leu sobre sua fazenda, sobre seu casamento. Só depois tragao a mim. Dessa forma economizaremos tempo... que é precioso. *** Narciso, assim se chamava o fazendeiro, acompanhou o secretário. Estava nervoso, o que não conseguia disfarçar. A excitação e a angústia apareciam claramente no rosto bronzeado. Nem mesmo a fina educação encobria o seu estado emotivo. — Doutora, advogada, dona Teresa, peço que me desculpe, teria preferido que ninguém me reconhecesse, mas seu secretário disse que viu minha fotografia e que leu tudo o que foi publicado por ocasião de meu casamento. Aliás, é sobre isso... Minha mulher desapareceu. Preciso de ajuda. Acho que está em dificuldades. — Conte-me tudo o que sabe – pediu Teresa. Narciso abriu uma pequena pasta de couro castanho e dela tirou uma folha de papel dobrada. Deu-a a Teresa, que leu: //
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“Meu querido. Acho-me numa situação embaraçosa e não quero envolvê-lo. Pensei em resolver tudo facilmente, mas as coisas se complicaram. Conhecê-lo foi uma felicidade sem igual. Porém, tudo que é belo e bom dura pouco. Não se preocupe comigo. Sou responsável por mim mesma... Um dia contarei o que aconteceu; quando tudo estiver esclarecido. O destino nos arma cada uma... Adeus, meu amor. Maria P.S. Continuarei amando-o, sempre.”
— Que quer dizer sua mulher com a frase: “Sou responsável por mim mesma”? E essa outra: “Não permitirei que seja atingido pelo que me está acontecendo”? Tem alguma ideia sobre isso? Narciso não estava à vontade. — Não... Só posso dizer que meu casamento não correspondeu aos anseios e projetos de minha mãe – disse ele. — Não lhe dei ouvidos e quando resolvi me casar procedi como achei melhor para mim. — Chegou a falar com sua mulher sobre os sentimentos da sua mãe? — Não. Não toquei no assunto com ela. — Mas ela estava ao corrente das ideias e ideais da sogra? — A senhora, como mulher, sabe que as mulheres têm uma grande intuição, doutora Teresa. Peço-lhe, suplico-lhe que encontre Maria e traga-a de volta, resolvendo, também, o problema que a aflige. — Depois, tenho de lhe mandar um relatório descrevendo tudo? — Gostaria. A advogada sacudiu a cabeça, indecisa. — Não espere de mim que lhe conte algo que possa prejudicar sua esposa... ou, quem sabe, o conceito que o senhor tem dela... Houve um silêncio constrangedor só quebrado pelo leve rumor da rua e a respiração ansiosa de Narciso. //
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— Quero minha esposa de volta. Amo-a. Nada poderia prejudicar o bom conceito que tenho dela. Por favor, me ajude. Não recuse. *** — Está bem, está bem. Então vamos ao assunto – disse Teresa – Quando e como desapareceu a sua esposa? — Há dois dias. Achei esta carta sobre a mesinha de cabeceira. Já estava desesperado e pensava em procurar a Polícia, os hospitais... sei lá eu o que mais. A carta não esclarece nada, ao contrário. Porém, pelo menos sei que está viva. — Há possibilidade de sua mulher estar envolvida em algo fora da lei? — Não. Pelo que conheço dela, de forma nenhuma. — Nem de ter sido alvo de uma chantagem? — Não vejo como. — Então – insistiu Teresa – por que ela não se sentiu bastante confiante para lhe expor seus problemas? — Não sei. Talvez tivesse receio de minha mãe. — Por quê? — Mamãe é uma mulher estranha. Quando meu pai morreu, há vinte anos, tomou a direção da família. Porém, fossilizou-se nas suas ideias, que estão fora de nossa época. — Sua mãe é convencional? Ou preconceituosa? — Não muito, mas apega-se às diferenças entre classes sociais. Dá muita importância ao dinheiro e só valoriza as pessoas que o têm em abundância. Ela teria ficado mais contente se me tivesse casado com uma mulher do nosso ambiente. — Alguém em particular? — Não – respondeu Narciso – não me refiro a ninguém em especial. — Entendi, mas pense um pouco... há alguém que possa ter se sentido prejudicado com seu casamento? //
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— Talvez Jacinto, meu irmão. Mas ele, para mim, está fora de qualquer suspeita. — Pode sua mãe ter influído no desaparecimento ou partida de sua esposa? — Não, absolutamente não. Minha mãe já aceitara Maria na família. Considera-a como parte integrante, como um de nós... Uma Tourinho Palmeira. De outro lado, Maria seria capaz de qualquer coisa para não se expor a falatório público, pois conhece os sentimentos de minha mãe. Moramos numa grande fazenda situada em região tradicional da Mantiqueira. Nossa propriedade é toda murada ou cercada. Temos nossas estradas e caminhos particulares para cavalgar. Os portões ficam fechados à chave e há tabuletas em que se lê: PROIBIDA A ENTRADA – PROPRIEDADE PARTICULAR. Minha mãe gosta de se isolar de um mundo que não compreende e que está muito distante da sua vida. — Doutor Narciso, diga-me: aconteceu ultimamente algo que pudesse fornecer uma pista? Algo fora da rotina? *** — Há uma semana entrou um ladrão pelo balcão de nosso quarto. Roubou as joias de minha mulher, além de peças de prata que também a ela pertenciam. — Tudo muito valioso? — Vamos supor... uns trezentos mil dólares ao todo. Mas o ladrão não conseguirá vender nem pela décima parte desse preço. São objetos antigos, de estimação, mas fora de moda. — Estavam no seguro? — Ainda não. Era intenção de minha esposa segurá-los ou deixá-los no cofre de um banco. Não se pode andar por aí com joias. Conservaria consigo apenas algumas poucas, dentre as de que mais gosta, para usar quando necessário. — E o senhor vê alguma ligação entre o roubo das joias e o desaparecimento de sua esposa? //
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— Tenho certeza de que uma coisa tem a ver com a outra – respondeu sem vacilar o fazendeiro. — Quando Maria se casou comigo, trouxe as joias que antes guardava em um banco. — Por que não avisou à Polícia do roubo? — Como sabe que não avisei? — Pela expressão em seu rosto, doutor Narciso – respondeu docemente a advogada. — Não poderia avisar à Polícia. Minha mãe teria aborrecimentos. Ela nem sabe que as joias foram roubadas. Haveria publicidade, a imprensa... — Conte-me detalhes do roubo, doutor Narciso. O fazendeiro pôs-se a falar, escolhendo as palavras como quem tem medo de se expor. — Há uma semana eu estava descansando depois do almoço. Lia um livro, sentado na cadeira de balanço, na saleta junto ao meu quarto. Minha mulher dormia, pois tem o hábito de fazer a sesta. Num certo momento, deixei-me dominar pela sonolência. Acordei sobressaltado com um grito de Maria. — Que horas eram? – indagou Teresa. — Aproximadamente três horas da tarde. — Lembra-se de mais algum detalhe? — Vagamente. Pareceu-me ter ouvido minha gata, Fufi, miar. Isso deve ter sido um pouco antes do grito de minha mulher. Talvez mesmo eu tivesse acordado com o miado da gata. Não tenho certeza. — Onde estava a Fufi? — Não me preocupei em saber. Geralmente dorme dentro do armário do quarto. Por isso deixamos sempre a porta entre-aberta. Naquele momento este fato não me pareceu importante. — Gatos gostam de armários, de cestos, de cantos... – disse Teresa. — Isso é comum. De que raça é a gata?
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— Um quarto Angorá, três quartos vira-lata. Foi me dada por uma velha amiga e estou muito afeiçoado a essa criatura. Os gatos só amam a quem os merece. Alguém, não me ocorre o nome, já disse que os felinos não satisfazem às necessidades doentias do amor. Só as saudáveis. Amo os gatos. Eles, ao contrário do “melhor amigo do homem”, o cão, e sem com isso desmerecê-lo, têm com o ser humano uma relação de afeto e ao mesmo tempo de independência. O gato, como não cede a seu dono, é chamado de egoísta, arrogante, safado. Isso é injusto. O gato nos proporciona lições de amor verdadeiro. Ele não pede para ser amado, mas quando sente que o é retribui profundamente, sempre com discrição e em silêncio. Mas isso... nada tem.... — Justo. Nada tem a ver com o assunto – interrompeu a advogada, sorrindo. – Porém também gosto, e muito, de gatos. Tenho uma gata e me interessei... Continuemos com o nosso caso, doutor Narciso. — Quando entrei no quarto, preocupado com o grito de Maria, ela me disse que vira um vulto correndo em direção ao balcão. — Pode alguém subir até ele e entrar no quarto? — Com facilidade. Há uma árvore por onde se pode chegar até em cima sem dificuldade. Por isso, à noite, preferimos dormir com a portaveneziana fechada por dentro, à chave. — A porta estava fechada? — Não. O dia estava quente, apesar da estação. Não era necessário fechála. Temos guardas armados. — Sabe se sua mulher também ouviu a gata miar? — Ela disse que não ouviu. Como tem o sono mais leve que o meu, pensei ter sonhado com o miado e não me preocupei mais com esse fato. Fechei a porta do balcão por precaução. Ordenei a um vigia da casa que desse uma batida pelos arredores e verificasse a presença de algum estranho. — Não se preocupou muito com o vulto desconhecido, não é mesmo? — No primeiro momento, não muito. Não sabia que tinha havido um furto. Achei que poderia ser algum descuidista à procura de algo para roubar. Assustou-se com o grito de Maria e fugiu. Conseguiu, não sei //
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como, entrar no jardim. Vira a árvore que chegava até o balcão e a porta aberta. Subira. O caso foi entregue aos guardas. Naquele momento, não liguei o fato ao miado da gata. Só depois. — Por quê? — Eu não sabia que as joias de minha esposa estavam guardadas no armário de roupas onde a gata costuma dormir. Somente no dia seguinte Maria deu por falta das joias. Foi então que liguei os fatos. Resolvemos não dar queixa para evitar escândalo. Telê olhou o relógio de pulso. Depois dirigiu-se ao secretário e perguntou: — Tomou nota de tudo? — Sim doutora, de tudo. — Então, por favor, leia o que escreveu para que o doutor Narciso veja se está bem e se não esqueceu nada importante. Qualquer detalhe pode ser a chave do problema. Delio leu o relatório. —Tudo está como eu falei. Nada tenho a acrescentar – disse o fazendeiro. — Mas, onde estará Maria? *** Telê continuou a perguntar: — Como se comportou o pessoal da casa nessa noite, no jantar? — Foi uma refeição normal. Conversamos. Helena fez a crônica doméstica do dia. — Quem é Helena? — É a acompanhante de minha mãe. Entende da organização da casa. É um pouco governanta, enfermeira e dama de companhia. — Sua mãe não dirige a casa? — Há alguns anos que não se sente com forças para isso. Seu médico achou que uma governanta poderia ajudar muito e... //
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— Há quanto tempo Helena está com a família? — Sete anos aproximadamente. Já se tornou uma pessoa da casa. — O que fez o senhor depois do jantar? — O que sempre faço. Verifiquei o livro de movimento diário da fazenda que o administrador me traz todas as noites. Dei-lhe alguns cheques para os pagamentos do dia seguinte. Algumas poucas ordens... e fui dormir. — Sua mulher, o que fez? — Maria foi dar um passeio de Vespa pelas alamedas da fazenda, o que faz às vezes, antes de se deitar. Nossas terras são seguras. Pelo menos... pensava que fossem. Frequentemente eu a acompanho, mas naquela noite ela foi sozinha. — Que espécie de passeio sua mulher costuma fazer? — Na sua Vespa, gosta de explorar a fazenda e se dirige à margem do rio um pouco distante da sede. Percorre as picadas entre as fileiras de eucaliptos até onde pode. Depois, deixa o veículo e caminha em direção ao curso d´água, que nesse local é largo, forma uma bacia muito serena, parecendo um pequeno lago. Mas o que isso tem a ver... — Nada importante – respondeu Telê. – O que aconteceu a seguir? — Foi tudo como sempre. Normal. Maria voltou às dez horas. Como disse, só descobriu que faltavam joias no dia seguinte. Portanto, nessa noite foi dormir tranquila, assim me pareceu. Não falou mais no descuidista. Quando deu pela falta das joias, ficou aborrecida mas, como já contei, concordou em não dar queixa para poupar minha mãe. — Nada notou, fora do comum, na atitude de sua esposa? — Não, nada notei. Era a Maria de sempre – respondeu rapidamente Narciso como se já tivesse a resposta preparada. Teresa se dirigiu ao fazendeiro como a encerrar a conversa: — Vamos procurar um bom detetive particular, o Fulgencio. Começaremos as investigações pela fazenda e veremos o que se pode fazer. Como nos receberá sua mãe? Já sabe do desaparecimento da nora? //
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— Não. Disse-lhe que foi visitar a irmã dela em São Paulo. — Como vai nos apresentar? — Quantos são? — Fulgencio e eu. — Estou negociando a venda de alguns cavalos de raça. Direi à minha mãe que vieram estudar as cláusulas da compra. A senhora e o senhor Fulgencio poderiam se apresentar como intermediários do negócio? — Faremos isso com perfeição. Estamos habituados a essas situações. — Então venham e se hospedem em minha casa. Não é a primeira vez que recebo pessoas com as quais tenho negócios. O fato não chamará atenção. Concorda? Telê abanou a cabeça afirmativamente e concluiu: — Acho que é o melhor a fazer. Além disso, preciso que me descreva sua mulher. Se possível, alguma fotografia... — Separarei algumas assim que chegar em casa. Só tenho fotos tiradas em reuniões sociais, além das do nosso casamento. Maria tem vinte e um anos, cabelos curtos e escuros, olhos azuis, pesa cerca de sessenta quilos e mede um metro e sessenta e oito. Não é magra nem gorda. Tem o porte elegante. — Sabe que roupa vestia ao sair? — Isso não será difícil de descobrir, pelas roupas que ficaram no armário. Tenho boa memória visual e saberei descrever a roupa, ou melhor, as roupas que faltarem no guarda-roupa. — Perfeito – disse Telê. — Iremos à sua casa depois do jantar. Até por lá. Não chegaremos muito tarde. Narciso acrescentou: — Porei a governanta Helena a par dos fatos para facilitar a movimentação dos senhores em suas pesquisas. ***
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II
Ainda não soara as nove horas, o velho relógio da fazenda, quando
Telê acompanhada do detetive Fulgencio chegou no seu carrinho ao portão imenso da propriedade. Logo em frente e à esquerda viu uma guarita de aspecto vagamente militar. Por uma seteira iluminada ecoou um vozeirão: — Quem é? — A advogada Teresa Lemos e seu assistente. Temos encontro marcado com o doutor Narciso.
Por um sofisticado sistema de radio-telefonia, o vigia, sem sair da guarita, avisou o fazendeiro e recebeu a ordem de deixar passar. Por controle remoto abriu-se o pesado portão enquanto o mesmo vozeirão trovejava: — Sempre à direita, senhora. Boa noite. *** Por uma larga alameda bordejada de centenárias paineiras os visitantes foram se adentrando até uma encruzilhada. Desta, à esquerda, prosseguia uma segunda alameda até uma igrejinha que ao longe sob o plenilúnio junino mostrava sua beleza barroca. Telê estancou o carro e ficou contemplando a silhueta cinzenta do templinho que lhe parecia uma miniatura da igreja de São Francisco de Ouro Preto, a cidade de sua infância. Reminiscências vieram à tona. Mais olhava aquele belo exemplo de barroco colonial e mais acalentava o pensamento de que ainda ultimaria seus estudos, interrompidos, de arquitetura que tanto ou mais que advocacia amava com trepidação. — Telê, vamos dormir aqui? Viu algo? — a voz fina e anasalada de Fulgencio interrompeu os devaneios de Telê que com um suspiro e um ar de compaixão para o detetive deu partida no carro dobrando a estrada à direita. //
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Vislumbrava-se, não muito ao longe, por entre o arvoredo, a massa clara da fazenda. Uma bela construção do século dezenove modernizada em todos os detalhes sem desfigurar o estilo, barroco tardio. A estrada terminava numa praça ajardinada que prosseguia à esquerda e à direita por jardins em flor cujo perfume se espalhava pela bela noite enluarada. Na frente do casarão uma imponente escadaria branca. Ao pé dela o doutor Narciso, ereto nos seus quase dois metros de altura e elegantemente trajado, aguardava. *** Telê e Fulgencio acompanharam o anfitrião através do amplo vestíbulo e dos dois salões, até a biblioteca. Ali, em silêncio se acomodaram em confortáveis poltronas ao calor de uma bonita lareira. A advogada observava em volta. Tudo, os móveis, os quadros e os adornos, refletia luxo sem exagero e simplicidade com requinte. Como o perfume recebido. No fundo do aposento, todo forrado de madeira fina, abria-se uma escada também de madeira que excitou a curiosidade de Telê. Não sendo uma escada principal e o andar superior já tendo sido alcançado pela vasta escadaria da entrada para onde, diabo, levaria essa outra? As elocubrações arquitetônicas da advogada foram interrompidas pelo doutor Narciso que a ela se dirigiu: — Bem, antes de mostrar-lhe o resto da casa veja as fotos de minha mulher. Mal acabara de pronunciar essa frase e uma senhora elegante, já de idade avançada, entrou pela sala acompanhada de outra que visivelmente deveria ser a governanta Helena. Olhou as pequenas valises dos visitantes e inquiriu: — Temos hóspedes hoje, Narciso? — Sim, mamãe, são os representantes da empresa interessada nos cavalos que pus à venda. //
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— Pena que Maria, minha nora, não possa fazer as honras da casa. Ela está viajando. A propósito Narciso, quando volta mesmo? Diante do leve embaraço do fazendeiro e antes que ele pudesse responder qualquer coisa, Telê passou as fotos para Fulgencio e interrompeu: — Não se preocupe madame. Ficaremos somente o tempo necessário para a decisão final do negócio. Não desejamos abusar da fidalga hospitalidade dos senhores. Suponho que em poucas horas, amanhã à noite ou no máximo depois de amanhã, tudo estará resolvido. Talvez antes mesmo da volta de dona Maria. Lamentaremos então não tê-la conhecido. Com um solene cumprimento de cabeça Dona Ofelia se despediu de todos e com ainda maior solenidade saiu do aposento. O vestido longo, plissado e purpúreo, deixava descobertas as delicadas espáduas, realçando o pescoço esguio e alvo envolvido por fina faixa negra. Logo abaixo desta reluzia um colar de verdes esmeraldas. Parecia uma figura vinda do século passado, surgida de um quadro de Toulouse-Lautrec. *** Telê olhou então as fotos que Fulgencio acabara de examinar e fixou-se em uma em que Maria aparecia ao pé da escada que tinha despertado a sua curiosidade. Dirigiu o olhar a ela e ali se deteve. Narciso percebeu e disse: — Muitas pessoas que vêm a esta casa são atraídas por esta escada. Minha mãe diz ver descer por ela, às vezes, um fantasma. Comecemos pois a visita da casa por aí. Ela leva ao meu, chamemo-lo assim, “refúgioobservatório” onde passo boa parte do tempo livre estudando ou vendo... estrelas. Lá tenho um telescópio. Com um gesto da mão convidou seus hóspedes a segui-lo. De fato, a escada conduzia a uma espécie de torrinha, invisível ao se olhar a fachada principal do casarão. Aconchegante, também retratava o bom gosto de seu dono. Relativamente pequena e com estantes forradas de livros tinha por teto uma claraboia móvel que permitia a //
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“Muitas pessoas que vêm a essa casa são atraídas por esta escada”.
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passagem do tubo de um telescópio fixado no centro do aposento. Uma grande janela envidraçada dava para o vale ao longe onde se via o rio sinuoso entre as montanhas. Ao luar magnífico, de um certo ponto do rio algo cintilava parecendo um estranho reflexo de águas. — O que é aquele fulgor? – perguntou Telê. — É a cachoeira Sete-Quedinhas. Aquelas luzes bruxuleantes ao lado são de um acampamento situado em terras que cedi à Prefeitura. Lá ela implantou uma espécie de colônia de férias ou camping. Telê, curiosa, deu uma olhada ao telescópio, que apontava para o céu cravejado de estrelas e outra em direção à janela, estendendo o olhar até a cachoeira cintilante. — O telescópio pode ser abaixado, doutor Narciso? — Por que, doutora Telê? — Gostaria de apontá-lo para as Sete-Quedinhas a fim de vê-las melhor. — Seja feita a sua vontade. Com um luar como este, tudo se torna bem visível e diria... um pouco misterioso. Dizendo isso o fazendeiro, sob expressão atenta da advogada e embasbacada de Fulgencio, foi rodando os dois volantes, um horizontal e o outro vertical, inclinando o telescópio e contemporâneamente virandoo em direção à janela. Em seguida aproximou os olhos de uma pequena luneta acoplada ao telescópio e a ele paralela. — Com esta luneta piloto amplia-se o campo do telescópio, pequeno por causa de seu grande poder de aumento — explicou o doutor Narciso — com o campo aumentado é fácil achar o alvo escolhido, no nosso caso a cachoeira que tanto excita sua curiosidade, minha cara advogada. Eila! Achei! Voltou a olhar pelo telescópio, sempre sob a atenção constante de Telê. O fazendeiro focalizou a cachoeira com rápida manipulação de um disco metálico. //
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— Pronto! As Sete-Quedinhas viraram as Sete-Quedonas. Veja, dona Telê, mas antes ajuste a ocular ao seu jovem olho – disse o fazendeiro apontando para o pequeno disco. Telê não se fez de rogada. Regulou a ocular. Uma exclamação ruidosa e alegre ecoou pelos aposentos. — Mas que lindo! Isso devia ser aberto à visitação pública! — explodiu ela. — É o que acontece, pois o local é visitado amiúde pelo pessoal que frequenta o camping — explicou Narciso. — Sim – replicou Telê — com efeito. Estou vendo uma casa-rolante ou “motor home” à direita de uma das quedas, um pouco antes de terminar a estrada que, acho, leva ao salto d’água. Assim dizendo, Telê foi manipulando os volantes do telescópio e modificando sua posição até ter visão de boa parte do acampamento. — Estou vendo pessoas. Parece-me que algumas apesar do frio estão se preparando para mergulhar no rio. Oh! Pessoal corajoso e feliz! — Nem sempre a felicidade mora nos lugares bonitos – murmurou o fazendeiro com ar de quem estava espantando maus pensamentos e logo em seguida: — Vamos nos aquecer com um chocolate, na biblioteca? – continuou sem perceber que Fulgencio estava agora olhando pelo telescópio do qual se tinha aproximado sorrateiramente após Telê terse afastado e sussurrava entre dentes: Tira mais! Tira tudo! — Você não perde essa mania de espiar mulheres se despindo... o que imagino ser o que está fazendo — prorrompeu Telê com seu belo rosto entre o sério e o risonho. Fulgencio, visivelmente encabulado, começou a sacolejar o braço direito convulsivamente, entortando o rosto e esgazeando os olhos. — Espero que não esteja tendo um orgasmo — disse gravemente Teresa meneando a cabeça. — Nã-ã-ã-o!... eu prendi o dedo... nesta maldita rodela! – tartamudeou o pobre Fulgencio – Me ajude a soltar! *** //
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Com a xícara fumegante numa das mãos Telê foi percorrendo com os olhos os belos livros da biblioteca luxuosamente encadernados e acariciando-os com a mão livre. Havia de tudo: ensaios, memórias, ciência, arte, literatura... — A senhora está, talvez sem saber, seguindo as recomendações de Winston Churchill.... — Como assim, doutor Narciso? — Dizia ele: “Se não podeis ler todos os livros pelo menos, com as vossas mãos, acariciai-os!!!”. Talvez ele tivesse razão. De acordo com um pensamento oriental o conhecimento, por um caminho misterioso, pode ser transmitido pelo contato macio das mãos... Fez uma pequena pausa e continuou, absorto, seguindo os dedos de Telê: — As obras dos grandes mestres me acompanham na vida, passo a passo, com a realidade. Sou escravo dos livros. Eles me guiam. Aceitando essa dependência espiritual o meu poder de compreender e de sentir se acresce enormemente e meu senso crítico jamais se paralisa. Dessa forma tal servidão voluntária é o começo da minha verdadeira liberdade. Telê compreendeu e admirou a profundeza desse paradoxo: ser livre, por ser escravo... “é neste local tão gostoso” – pensou ela — que o fazendeiro saboreia suas essências libertadoras... Tinham razão os antigos egípcios que para as bibliotecas possuíam uma feliz denominação: “Farmácia das Almas...” Teria permanecido mais tempo, prazerosamente, na presença de seu anfitrião tão culto e agradável se um pequeno ronco não a tivesse feito voltar a uma outra realidade. Era Fulgencio que de boca aberta dormia a sono solto tendo nas mãos o livro Fotos Eróticas...de Salomé Volúpias.1
1. N. O.: Refere-se a Salomé. Apesar das raízes do nome hebreu “Salomé” estarem associadas a “paz”, ela e sua história estão relacionadas à decapitação de João Batista, após sua dança erótica no banquete do padrasto (Antipas). Entretanto, no Renascimento, sua história foi ampliada por artistas e escritores. Seu culto, em contextos eróticos, é muito disseminado. (Neginsky, Rosina. Salome: The Image of a Woman Who Never Was – Salome, Nymph, Seducer, Destroyer. Newcastle: Cambridge Scholars Pub., 2013.) //
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Depois disso, Telê julgou oportuno fazer sentir ao seu hospedeiro que chegara a hora de se recolherem. *** A advogada observou que o quarto de dormir onde se encontrava ficava situado entre o do fazendeiro e o de Fulgencio. Em cada aposento havia um balcão externo. Saiu para o seu, respirando o ar frio e gostoso típico de uma noite invernal na serra. Notou que a altura de onde estava até o solo era grande. Ninguém poderia pular saindo incólume. Porém do balcão do doutor Narciso poder-se-ia, com alguma habilidade, descer até o chão por intermédio de uma árvore cujos frondosos e robustos galhos chegavam até o peitoril e o sobrepujavam em altura. De repente um gemido fanhoso cortou o rumo de seus pensamentos. Olhou espantada em direção ao lamento. Era Fulgencio que de cuecas, com os pés no peitoril de seu balcão, os braços esticados e o corpo na horizontal, se agarrava desesperadamente no balcão de Telê. — O que você está fazendo a essa hora, nessa posição ridícula e com esses trajes? — Telê, me ajude a sair daqui. Estava procurando uma pista... Tive uma ideia... Escorreguei... Diabo! Com muito esforço, Telê conseguiu que Fulgencio atingisse seu balcão, rezando para que ninguém visse ou percebesse um homem em trajes íntimos em seus aposentos. Ela o pôs pela porta a fora maldizendo a hora em que o tinha convidado para assisti-la. Finalmente só, deixou-se cair cansada na cama e ficou pensando: “O que está acontecendo hoje com Fulgencio? Sempre foi um grande estabanado, mas agora está exagerando...” Porém reconhecia que apesar de suas flagrantes limitações, tinha sido até então um auxiliar devotado à sua profissão e a ela própria. “Fora ele que em última análise e talvez por acaso havia descoberto a pista fundamental no caso do “freezer”, o tenebroso crime que anos atrás //
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havia abalado o Sul de Minas dadas as circunstâncias: a madre superiora de um convento tradicional havia sido estrangulada. Seu corpo ocultado num “freezer” fora despachado para um ferro-velho e lá enterrado”. Aliás a figura de Fulgencio trouxe a Telê outras memórias: estava sempre ligada a fatos insólitos e pitorescos. “Ele é quem tinha cooperado e muito, em Caxambu, para a elucidação de outro crime não menos famoso: o falso suicídio de Futuko Bai-Bai, o rico e infeliz japonês. Com impressionante astúcia e brilhante argumentação Fulgencio havia provado à atônita Polícia mineira que o asiático na realidade fora assassinado com uma injeção letal um pouco antes do veneno por ele ingerido para se matar fizesse efeito. Esse caso de suicídio-homicídio, único na história policial brasileira, tinha sido objeto de comentário pela Scotland Yard que o publicou em seu jornal e servira de roteiro para um filme italiano.” Fulgencio às vezes parecia um débil mental. Outras vezes um computador no qual tivessem sido inseridos milhares de dados, insignificantes se tomados isoladamente mas inquietadores quando ele, pouco a pouco, ia revelando as conexões entre os mesmos. “Era verdade – lembrava ainda Telê – que Fulgencio, em suas andanças à cata de indícios, muitas vezes acabava se metendo em situações cômico dramáticas. Em certa ocasião havia escapado por verdadeiro milagre de ser estuprado quando, travestido de mulher, todo maquiado e empetecado, tinha subido à noite, rebolando, a favela da Rocinha no Rio de Janeiro em busca de uma pista...” “Houve, porém, algo pior. Procurando realizar um flagrante de adultério por conta de uma agência de investigações chegou a penetrar furtivamente e a se esconder no quarto da adúltera em plena ação com seu parceiro. Pois bem, este conseguiu escafeder-se despercebido e repentinamente, pouco antes que o marido traído irrompesse armado no aposento descobrindo a mulher pelada e o pobre e gaguejante Fulgencio... “ “Na confusão ele preferiu também fugir em vez de se explicar. Resultado: duas balas ainda encravadas. Uma em cada nádega, o que desde então //
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e lá se vão vários anos causa ao desastrado detetive um andar ligeiramente saltitante e bem peculiar...” Telê sorriu ao relembrar estas e outras aventuras de seu assistente a quem tudo perdoava: suas gafes, suas distrações catastróficas e até as suas não raras impertinências. Uma coisa porém, que acabara de descobrir, não poderia perdoar: o uso de cuecas roxas com borboletinhas amarelas. Aí era demais! ***
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III
Já eram quase oito horas da manhã quando Telê acordou. O dia estava lindo, muito claro, como costuma ser nessa época do ano nas montanhas mineiras. Em pouco tempo estava de banho tomado, vestida e pronta para o café. Quando fez a entrada no vasto salão de refeições encontrou sentados à mesa Narciso e Fulgencio, sob o olhar penetrante de Maria, retratada a óleo num grande quadro. A conversa girava sobre Maria. O seu desaparecimento estava minando a sólida alma de Narciso. Era evidente a sua ansiedade, por mais que estivesse acostumado a esconder suas emoções. — Dona Telê, temos que fazer algo! Talvez seja o momento de avisar alguém e assim contarmos também com a força da Lei! — Calma doutor Narciso! Não é prudente tornar público o desaparecimento de sua esposa antes de termos mais dados, o mínimo necessário para que as autoridades saibam COMO e ONDE dar o primeiro passo. Passo seguro, obviamente. — Que mais pretende saber, doutora? Conhece tudo o que sei, somente não sabe o quanto ela me faz falta. — Compreendo, doutor, o senhor está emocionado, mas no fundo de sua alma, como se fosse um sexto sentido, sente que em breve irá revêla. E sei que dada sua cultura e seu caracter o senhor, como o duque de York na peça de Shakespeare, ficaria indiferente diante do inevitável ou do irremediável; o que não é o caso, pois o senhor pressente que o desaparecimento de Maria é temporário. — Deus a ouça, menina! — Algo me leva a crer – continuou Telê — que Maria é o primeiro grande amor de sua vida. Mas a recíproca é verdadeira? — Penso que não. Maria foi casada anteriormente e, pelo que conheço dela, só se casaria novamente amando muito... //
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— Gostaria de conhecer melhor o ambiente de sua Maria, isto é, a propriedade, doutor Narciso. — É pra já! Vamos! — disse o fazendeiro levantando-se rápida e agilmente. *** Lentamente, de jeep, os três foram percorrendo os vários recantos e dependências da fazenda, por estradas internas e seus ramais: o grande pomar, a horta, o campo de polo, as pistas de obstáculos, o campo de tênis, as baias dos puro-sangue, os estábulos das vacas leiteiras, as duas piscinas, os vários bosques harmoniosamente distribuídos, a criação de patos e gansos... Finalmente pararam diante de um jardim japonês surgido de repente, como uma bela surpresa, na virada de uma ensolarada alameda. Um conjunto de bancos e mesas de ferro batido completava o bucólico ambiente. — Este é o jardim preferido de Maria — murmurou Narciso. Levantando a voz ligeiramente embargada, prosseguiu: — Aqui ela lê, pinta, escreve suas poesias. Aqui ela conversa comigo. Aqui sonhamos juntos nas tardes em que meus afazeres o permitem. Ela supervisionou pessoalmente a sua implantação, com a colaboração de um emérito jardineiro japonês. Para ele, a construção do jardim não era um simples trabalho, mas uma devota invocação aos chamados deuses da vida, os Kami, que ali viriam habitar tão logo o jardim estivesse pronto. “Os Kami superiores — dizia ele — são os que moram nos jardins construídos com muito carinho”. Esse conceito prontamente absorvido por Maria, aliado ao seu imenso amor pela natureza, fizeram deste recanto o lugar mais bonito e apreciado da fazenda, objeto até de uma reportagem numa revista estrangeira especializada em paisagismo. Essas últimas palavras foram seguidas de um ligeiro soluço do fazendeiro, prontamente contido. Telê observou uma pitoresca estradinha que se iniciava logo atrás do jardim e desenvolvia-se em aclive, na direção da serra. Onde leva ela? – perguntou apontando com o dedo. //
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“Finalmente pararam diante de um jardim japonês…”
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— Às Sete-Quedinhas que a senhora já conhece pelo telescópio e que... A frase do fazendeiro foi interrompida por um ladrar de cães, grasnar de patos e gansos e pelo ensurdecedor rumor de um carro com escapamento aberto que se aproximava a toda velocidade. — Lá vem o tarado! – exclamou Narciso, enquanto um belíssimo carro esporte conversível irrompia barulhentamente e estancava de chofre junto ao jeep na entrada do jardim. — Não sei por que você insiste em passar por entre meus patos e gansos se pela estrada principal é melhor! – esbravejou Narciso sem perder a costumeira pose e olhando o jovem que, no carro agora silencioso, fixava Telê com um ar maroto e a boca aberta... — Que bela moça! E ninguém me apresenta a ela? — falou o rapaz, descendo com um pulo do carro sem abrir a porta e plantando-se de pernas abertas em frente à advogada sem desviar o olhar de seu rosto. — Sou Jacinto, o filho mais prendado e inteligente de Dona Ofelia. A seu dispor, moça lin-da-a! — disse ele tomando com suas mãos as dela e beijando-as suavemente, uma, duas, três vezes. Em seguida, diante da perplexa Telê, procurou visivelmente aflito algo no seu bolso. Retirou uma flor levemente amarfanhada, enfiou-a rapidamente nos cabelos de Telê e exclamou: — Voilà! A cena que já começava a ficar cômica tomou um aspecto surrealista quando Fulgencio, aparentemente alheio a tudo, se aproximou de Jacinto e com sua voz de falsete perguntou muito sério: — O senhor gosta de queijo? A gargalhada foi geral. Até Narciso pareceu ter recuperado de repente o seu estado normal. Subitamente ficou sério. Fez sinal ao irmão que queria falar-lhe a sós. Em poucos minutos revelou o que estava acontecendo: o desaparecimento da mulher e a contratação da advogada e do detetive. Recomendou-lhe que não dissesse nada à mãe. Em seguida, os quatro voltaram à sede da fazenda no carro de Jacinto. *** //
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Lá estava Dona Ofelia em pose majestática numa ampla poltrona. Entreteve-se amavelmente com todos, mas Telê notou que Jacinto, apesar de manifestar-lhe carinho, perturbava-a um pouco. Em sua presença ela ficava levemente constrangida. “Ele — observava a advogada — não tem o charme nem a sobriedade elegante da mãe ou o que também é característica do outro filho, Narciso. Será que a sua impetuosa e talvez excessiva exuberância quebram a rotina da família ou, quem sabe, fazem Dona Ofelia meditar sobre ela mesma e seu estilo fechado de vida? Não terá um pouco de inveja desse filho, dono por completo de sua própria existência e sem as cadeias dos convencionalismos e das tradições que em muitos momentos ela deve sentir pesadas? Cadeias que a oprimem mas que, afinal, ela própria as impôs? Telê lembrou-se de uns versos do poeta Alvaro Meira que lera no álbum de uma amiga: “Havia em seus olhos a amargura das aspirações inalcançadas e dos ideais reprimidos.” Sem dúvida, a chegada do filho tornara Ofelia pensativa. Imagens do passado se sucediam em sua mente. Lembrava-se da semelhança de Jacinto com o marido que perdera há vinte anos. Quando este morrera, ela tomara a direção da casa, mas deixara ao filho mais velho a administração da fazenda. Pouco a pouco, Narciso habilmente foi se firmando nesse encargo com muito sucesso. Jacinto, por sua vez, educado nos melhores colégios, não quis permanecer na fazenda. Foi estudar Direito no Rio de Janeiro e lá morava. A família possuía à beira-mar, na Avenida Atlântica, um belo apartamento. Ele adorava viajar pelas capitais europeias e todos os anos ia gozar as delícias do inverno suíço. Lá possuía bons amigos. “Justamente em Gstaad Jacinto veio a conhecer Maria, que estava em viagem de férias... e de esquecimento. Acabara de se separar do marido. Incidentalmente, ele a tinha apresentado ao irmão. Já no Brasil, Maria e Narciso ficaram bons amigos, namoraram e foram se casar na Suíça tão logo ela obteve o divórcio. Jacinto se sentiu posto de lado mas aguentou firme”. //
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Dona Ofelia continuava com seus pensamentos: “Pouco sabia do motivo da separação da moça de seu primeiro esposo. A discrição inibia-a de qualquer indagação a respeito. Ouvira rumores de que o ex-marido “não era flor que se cheire” um indivíduo algo indefinido entre aventureiro e gigolô... mas eram somente murmurios. De concreto nada sabia. Mal se lembrava do nome dele: um certo Antunes Arantes... ou seria Alencar?” Sabia ela, isto sim, da paixão de Narciso pela moça, e vice-versa. Rememorava a expressão de ternura que sempre envolvia o rosto dos dois e a efusão de carinho, comedido na sua presença... e tantas, tantas palavras sussurradas entre eles em todas as ocasiões. Porém, algo dentro de si, mais forte que qualquer outro sentimento, fizera com que não houvesse desejado aquela união. “Não, Narciso deveria ter escolhido outro tipo de mulher, de família mineira tradicional como a sua. Com um sobrenome bem brasileiro. Que coisa estranha – pensava ela - os netos teriam um arrevesado Strunck como sobrenome ao lado do importante e sonoro Tourinho Palmeira”. “No fundo, não seria ciúmes de algo que ela não sabia definir? Ou inveja dessa nora cuja vida fora também livre como a dela nunca pôde ser? Helena- a governanta – continuava a rememorar Ofelia - também não demonstrava simpatia excessiva pela moça. Seria apenas uma sutil adulação para a patroa ou um sentimento verdadeiro? Não, não, na Helena se podia confiar. Ela era sincera. O escrúpulo que tinha na apresentação das contas domésticas com certeza retratava a correção de seus sentimentos. Isso mesmo, Helena tinha cuidado na manipulação do dinheiro e mais que isso, demonstrava prazer em lidar com ele”. Assim Ofelia, entregue às suas meditações e agora já quase alheia ao grupo que a cercava, levantou-se vagarosamente. Em silêncio acenou imperceptivelmente com a cabeça à guisa de despedida e foi saindo da sala... *** Narciso, mais à vontade, dirigiu-se a Telê e Fulgencio: — Os senhores disponham da fazenda a seu bel-prazer para qualquer investigação que queiram efetuar. Já deixei abertos armários, gavetas e //
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arquivos. Nada tenho que não possa ser visto pelos senhores. Procurem, vasculhem, mas achem uma pista que leve à minha mulher! Não tinha acabado a frase e Fulgencio já se encaminhava saltitante em direção à biblioteca. Passou pela sala derrubando um vaso e dois cinzeiros e embarafustou-se escada acima até a torrinha onde estava o telescópio. Manejou-o cuidadosa e lentamente em direção à cachoeira e ao acampamento próximo. Focalizou a casa-rolante que vira na noite anterior. Observou ao lado da mesma um casal que conversava gesticulando. O homem tinha um aspecto esquisito, uma mistura de luxúria e cafonice. Não sabia bem porque ele lhe lembrava um cantor de tango, o que o fez cantarolar: “El día que me quieras...” De repente teve um choque. Ao fixar o olhar na figura feminina pareceu-lhe reconhecer o rosto de Maria, o mesmo rosto visto nas fotografias que Narciso entregara a Telê e que esta depois lhe passara, tendo sido objeto de sua atenção concentrada. “Estranhos são os mecanismos cerebrais — pensou Fulgencio essas transferências das imagens das fotos que ficaram no meu subconsciente diretamente para minha visão! Se não tomar cuidado verei a desaparecida à noite nos meus sonhos. Isso explica certas visões” – pensou ele fechando os olhos, afastando de si o telescópio e entoando dessa vez um outro tango: “La Cumparsita”. Depois deu uma olhada para as dezenas de pastas bem arrumadas numa estante. Pelos títulos: Aluguéis, Bancos, Contabilidade, Dados Técnicos etc, deveria ser o arquivo do fazendeiro. Um grosso dossiê chamou sua atenção pelo título: Documentos Pessoais. Puxou para fora e abriu. Continha uma espécie de sub-pastas etiquetadas: Eu, Mamãe, Jacinto, Maria... Fufi. — Sim senhor! Veja só! Até a gata Fufi tem sua pasta pessoal. A pasta de Fufi continha o seu registro com a respectiva data de nascimento, o rol das vacinas tomadas, instruções dietéticas para pequenos felinos e um álbum de retratos de animalzinho. Comovente! “Disse a verdade – pensou Fulgencio – quem escreveu ser o gato o único animal que conseguiu domesticar o homem”. Em seguida o detetive se interessou pela pasta intitulada Maria. Lá estava o seu certificado de nascimento. Há 21 anos... mas pelos retratos que //
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vira e eram recentes ela parecia ser mais moça, digamos uns 18 anos. O nome completo constava da certidão de batismo: Maria Sofia Landini Strunck. Passou os olhos pelos boletins escolares. Sempre boas notas. Continuou folheando: um diploma de professora de História e outros de alguns cursos de pós-graduação. “Aqui está!” a certidão de seu primeiro casamento. O marido se chamava Alvaro Antunes Arantes. Grampeada a ela a certidão do divórcio. Estranho, o casamento fora celebrado na Comarca de São Paulo conforme constava do primeiro documento, mas o divórcio tinha sido concedido na Comarca de Sorocaba... Havia alguma coisa insólita, estranha ou talvez... errada, naquela certidão. Maria não assinara o divórcio. Quem o fizera fora seu procurador, um tal Teobaldo Baldoteo. Que nome esquisito! “Ninguém — pensou Fulgencio – iria falsificar um documento usando um nome como esse... Não, não, muito pelo contrário – corrigiu-se mentalmente — uma palavra estranha, mas verdadeira, contribui psicologicamente para encobrir um fato corriqueiro, mas falso. Isso acontece mutatis mutandis com as mentiras estatísticas: um número enriquecido com a incrível precisão de algumas casas decimais ajuda a passar por cima da inverdade que representa!” Fulgencio, ainda intrigado, resolveu ir ter com o fazendeiro. — Doutor Narciso, haveria outros papéis pessoais de dona Maria além daqueles que tomei a liberdade de consultar na torrinha? — Sim. Na escrivaninha dela no nosso quarto. Acompanhe-me, por favor. Lindo, de estilo, num canto, lá estava o móvel no aposento. Porém a gaveta estava trancada a chave. — Não seja por isso! – exclamou o detetive. Num piscar de olhos e com ajuda de um canivetinho que extraiu de um bolso abriu facilmente a gaveta. Narciso olhava admirado tamanha habilidade num homem que às vezes parecia tão desengonçado e sem jeito. //
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Eram poucos papéis. Alguns chamaram a atenção de Fulgencio e fizeram empalidecer Narciso. Eram vultosas ordens de pagamento, recentes, a favor de... Alvaro A. Arantes, o ex-marido de Maria. Narciso estava profundamente perplexo e mais ainda ficou quando ouviu as suspeitas do detetive sobre a autenticidade da certidão de divórcio... — Estou, estou... — balbuciou ele — sustentando o ex-marido de minha mulher. A serem verdadeiras as suas suspeitas, como ele continua sendo o marido dela e eu também com ela estou casado de papel passado, Maria é bígama... Não sei o que mais poderia me acontecer hoje.... ***
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IV
Em breves instantes Narciso saberia o que mais poderia acontecer naquele radioso dia de junho com a natureza em festa.
Isso: o recebimento pelo correio de uma carta escrita com o emprego de letras de imprensa extraídas cuidadosamente de jornais. Continha poucas frases:
Apesar das emoções contrastantes e das desconfianças que lhe lancinavam o cérebro Narciso não conseguiu abafar um grito de alegria: — Maria está bem! Graças a Deus! Logo em seguida, porém, pensou: “Quem voltará? Minha mulher ou a do outro?”. Só lhe restava aguardar com a alma varrida por uma tempestade de sentimentos. Quando se acalmou, afastou-se, para se entregar sozinho aos seus pensamentos. “Que coincidência!... Duzentos mil dólares é o que ele tem em casa, há muitos anos, no cofre escondido na torrinha, para qualquer emergência... Por que os sequestradores estavam pedindo essa quantia? Exatamente duzentos mil dólares, não mais, nem menos... Quem sabe que ele tem esse dinheiro? Somente a mãe e... e... — agora se lembra — também Maria, pois que incidentalmente havia contado a ela. Então — continuou pensando — pressionaram-na, talvez a tenham até torturado, para que revelasse de quanto a família pode dispor de imediato. Sinal também de que os sequestradores querem resolver logo o caso sem que haja saque de dinheiro em banco. Ou essa cifra, esses duzentos mil dólares, não seriam apenas uma simples coincidência? O tempo, só o tempo poderia responder a essa pergunta”. //
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O gongo tocou para o almoço interrompendo bruscamente os pensamentos de Narciso. *** Telê e Jacinto estavam entrando na sala. Narciso almoçaria somente com eles e Fulgencio, que chegou logo em seguida. Sua mãe estava com enxaqueca e não viria. Helena tinha ido muito cedo para Sarminho, a vila vizinha, fazer compras para dona Ofelia e ainda não voltara. Durante o almoço discutiu-se acaloradamente os últimos acontecimentos. Todos concluíram que o melhor a fazer era aguardar o próximo sinal dos sequestradores. Nada podiam resolver por enquanto e a ninguém convinha avisar. À sobremesa o detetive expôs a Telê as suas suspeitas sobre o já famoso documento de divórcio de Maria. A advogada riu: — Evidentemente, o papel é falso! — exclamou. — No nosso país o desquite e o divórcio não podem ser realizados por procuração. São atos pessoais, diria mesmo PER-SO-NA-LÍS-SI-MOS – soletrou ela — e só podem ser obtidos diretamente pela pessoa interessada, nunca por outrem com delegação de poderes. Jacinto, também advogado, concordou plenamente. — Mas como pôde ela se casar novamente comigo, com uma certidão falsa? — inquiriu Narciso — Eu me casei mesmo com ela. Não duvidem! — Onde foi que o senhor se casou? — perguntou Telê. — Na Suíça. —Entendi – prosseguiu Telê depois de ter pensado alguns segundos – ou as autoridades helvéticas, em boa fé, não atentaram suficientemente para o documento ou o que é mais provável, se basearam unicamente nas afirmações verbais ou escritas dos casadoiros sobre o seu estado civil... nesse caso, porém, ái daquele que mentiu se for descoberto e estiver naquele país! — De fato — confirmou Narciso — tanto eu como Maria declaramos por escrito ser eu solteiro e ela divorciada... na frente de duas testemunhas, amigos nossos, também de passagem pela Suíça. //
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— Está claro... mas diga-me, doutor Narciso, o senhor falou que dona Maria tinha o hábito de passear à noite de Vespa... — Sim. Por quê? — E quantas Vespas o senhor tem? — Duas. E daí? — TINHA duas. Uma foi furtada e o senhor não sabe. O seu Administrador, como um louco, gago e frenético, está passando os guardas a ferro e a fogo e palmilhando a propriedade para descobrir o autor do furto... e a Vespa afanada. — Eu naturalmente, como marido traído... – o fazendeiro pigarreou. – bem, quero dizer, eu sou sempre o último a saber o que se passa nesta casa! Narciso se dispunha a chamar incontinente pelo radio-telefone o infeliz Administrador quando Helena entrou pelo salão, afobada. — Boa tarde para todos! Doutor Narciso, veja que coisa estranha! Estava eu quase chegando à porteira quando um menino franzino, desconhecido, me deu esta carta e disse que era para entregar ao senhor somente... Narciso olhou o envelope. Não tinha remetente. — Mas... ninguém viu o menino? Os guardas...? — Não. Ele estava num canto, meio escondido. — A senhora perguntou quem o mandou? — Bem... ia perguntar... mas o menino correu logo. Nem tive tempo de dar uma gorjeta... pois o senhor sabe que eu gosto... Está bem, está bem — interrompeu Narciso abrindo o envelope; leu e exclamou — É dos sequestradores! Todos se aproximaram e também leram o conteúdo, sempre escrito em caracteres de imprensa:
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— Isso é um absurdo! São loucos! – esbravejou Narciso – a única mulher na família é minha mãe, semi-inválida e que nunca dirigiu nem bicicleta... Fulgencio interrompeu: — Se eu tivesse trazido meus disfarces femininos poderia... — Você não! Nunca! – vociferou Telê – e não insista! – arrematou. *** Helena, demonstrando um aspecto apatetado e com olhos esbugalhados, perguntou rapidamente: — Que é isso? Que está acontecendo? Que houve? Por favor, me digam... Todos se lembraram que durante a manhã Helena estivera ausente e portanto não havia acompanhado o desenrolar dos acontecimentos. Depois de acalmá-la com um copo de água e açúcar fizeram-na sentar e contaram-lhe tudo. Ela ouvia e repetidamente exclamava: — Não! Não pode ser meu Deus! E agora? Finalmente se aquietou. Reassumiu por completo o controle das feições e ponderou dirigindo-se a Narciso: — Bem, acho que posso ajudar. Sou mulher, dirijo e sou considerada pelo senhor e por dona Ofelia uma pessoa da família, o que aliás me desvanece e sempre agradeço. Os bandidos não pretenderão ver a árvore genealógica da família para julgar do meu parentesco com os Tourinho Palmeira... De qualquer forma eu posso e devo ir pois não tenho medo de bandidos e além disso só devemos pensar em dona Maria que corre perigo. Me ofereço para levar o dinheiro. Insisto que aceitem.
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Todos se entreolharam. Diante de uma proposta tão lógica ninguém poderia se opor. — Eu vou também, no porta malas — disse Fulgencio com sua voz fina, que contrastava com a de Helena. — Não. Pelo amor de Deus! — retrucou Telê — conheço de longa data suas intervenções... Algumas foram desastrosas... — Também digo não — prosseguiu Helena, dirigindo-se a Fulgencio – estou disposta a arriscar minha vida por dona Maria, mas não a porei em risco pelo senhor! Pense bem: enquanto permanecer no porta malas seria o mesmo que ficar aqui... se sair do porta malas é previsível a reação dos bandidos e imprevisível o risco que todos nós, Dona Maria, eu e o senhor, correremos. Mesmo estando armado, senhor Fulgencio, teria condições e potência de fogo suficientes para, sozinho, dominar os bandidos? Sabe o senhor quantos são? “Não há dúvida que esta fiel governanta tem muito bom senso” – pensou Narciso. — Vá — disse ele a Helena. Confio na senhora. — Sim, estou pronta. Mas... quanto tempo o senhor levará para arranjar o dinheiro? Lembre-se, os sequestradores escreveram que o pagamento deve ser imediato. — Não se preocupe minha boa Helena. Num minuto terá o dinheiro. — Mas como? — Deixe comigo — respondeu Narciso encaminhando-se para a torrinha. *** Não havia dado dois passos quando surgiu na porta a silhueta de dona Ofelia. — Finalmente! – disse ela dirigindo-se a Helena – comprou os meus sais de banho? Gostaria que ajudasse a me banhar... Os presentes que desculpem o prosaísmo de meu pedido, mas, sabem, é a velhice. — Senhora, mandarei levar-lhe os sais imediatamente. Quanto ao banho, peço que me perdoe, mas terei que voltar urgentemente a Sarminho a //
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fim de cumprir uma ordem do doutor Narciso. Desculpe- me outra vez. Chamarei uma das empregadas para atendê-la. — Que ordem é essa? — Deve levar logo alguns documentos para doutor Cesar, nosso advogado — falou Narciso já de retorno à sala e entregando uma pasta a Helena. — Está tudo aqui — acrescentou ainda dando às palavras um tom significativo e cúmplice. — Levo dona Ofelia de volta ao quarto e parto em seguida – disse Helena - apertando a pasta de encontro ao peito com uma das mãos. Amparando carinhosamente com a outra o braço da velha senhora conduziua vagarosa e suavemente em direção aos seus aposentos. — Minha cara amiga! — sussurrou Ofelia — como você é bondosa! Que faria eu sem você? *** Poucos minutos depois o carro da fazenda, com o qual Helena havia chegado, saiu rapidamente com ela ao volante sob os olhares de todos. — Boa sorte e desde já obrigado! – gritou Narciso que depois se quedou pensativo: “Acho que este pesadelo acabará em breve... Maria voltará. Sairá de uma situação delicada com terceiros para entrar noutra ainda mais delicada comigo... Vai ter que explicar direitinho o falso divórcio, o dinheiro dado ao ex-marido... isto é, o atual outro marido que com certeza tem menor vocação para palhaço do que eu...”. Ele assim divagava imaginando um gigantesco, imenso palhaço de circo que tinha o seu próprio rosto e dois enormes chifres na testa... Sua meditação masoquista foi bruscamente interrompida por Fulgencio que berrando: — A roupa! A roupa! – saiu em disparada, correndo como um canguru. — Esse exótico Sherlock Holmes suburbano já está enchendo – murmurou Narciso acompanhando o apressado detetive que se dirigia ao quarto de Helena. — Mas que é isso, que é isso! — indagava Jacinto seguindo os passos do irmão e sendo por sua vez acompanhado por Telê, todos em fila indiana. //
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Fulgencio, sempre a galope, já estava de volta esbarrando em Narciso e perdendo um sapato. — Oi, gente! Os armários estão todos vazios... Não deixou nada, nem um sutiã. Foi-se com toda a roupa. Doutor Narciso, telefone imediatamente para a Polícia e mande bloquear as estradas que NÃO conduzem a Sarminho. Repito: que NÃO conduzem a Sarminho. — Por quê? O que lhe deu na telha? – retrucou Narciso olhando para o pé descalço do detetive e continuou sussurrando entre os dentes - Esta minha casa mais parece um bordel! — Já entendi tudo – interrompeu Telê – o senhor, doutor Narciso, está arriscado a perder seus dólares e mais o carro. Quanto à governanta, já a perdeu... E o que é pior, não terá de volta tão cedo dona Maria. — Hem? Dona Telê... — Sim, doutor Narciso. Não houve sequestro nem há bandidos. O que existe ao certo é apenas uma hábil farsante que se aproveitou do desaparecimento de Dona Maria para engendrar esse falso sequestro... — Tinha que acontecer isso somente comigo! – sibilou Narciso. — Tudo falso. Tudo falso... – repetia Fulgencio – Ah! Se me tivessem deixado ir no porta malas! — Você não caberia pois lá estava a bagagem de Helena – disse Telê sorrindo – ela já devia tê-la preparado com antecedência. Tudo foi bem calculadinho... Com ar cansado Narciso se dispunha a telefonar à Polícia mas de repente estacou. — Só não entendo por que devo mandar bloquear os caminhos que NÃO levam a Sarminho... — dirigia-se a Fulgencio, que explicou: — Porque os criminosos têm o hábito de tomar o sentido oposto àquele que querem fazer acreditar estar tomando. Não se lembra dos dizeres do segundo bilhete? ...”levado por mulher... em carro. Direção Sarminho”. Narciso telefonou à Polícia conforme sugestão de Fulgencio. Depois se deixou cair numa poltrona. //
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— Como fui ingênuo — suspirou olhando para Telê — tropecei em todas as armadilhas, como um patinho. Falsa era a primeira carta. Falsa a segunda. Inexistente o menino que a teria entregue... Não me conformo em ter sido tão simplório... Simplória foi também minha mãe confiando cegamente em Helena. Não há dúvida que esta sabia da existência dos exatos duzentos mil dólares por confidências de mamãe. Bem, agora só me resta ir pessoalmente à Polícia, reforçar o pedido falando com o Delegado. Ele é meu amigo. Aliás é casado com uma prima de minha mãe. *** Eram cinco horas da tarde quando o carro de Narciso entrou de volta na fazenda. O fazendeiro estava pálido. Desceu vagarosamente do automóvel, olhou a janela do quarto da mãe, suspirou e entrou no casarão. Parecia atordoado. Telê o aguardava. Leu a preocupação no seu semblante e viu a palidez do rosto. — Que mais aconteceu, doutor Narciso? O senhor está branco. Sentese bem? — Mais branco do que eu está a Helena. Ela morreu. — Foi à Polícia? Conte o que houve... — Sim... Uma patrulha rodoviária, avisada pelo rádio, já detectara o carro da fugitiva. O que é um verdadeiro milagre tratando-se da nossa Polícia do interior... Iniciou-se a perseguição. O carro de Helena derrapou numa curva na descida da serra e caiu num grotão. Ela sofreu uma grave concussão cerebral. Ao que parece morreu na hora. O carro está inutilizado. Recuperei os dólares, ou melhor, quase todos. Sabe como são as coisas. Tive que dar uma gratificação aos policiais que olhavam o dinheiro avidamente... Também tive que contribuir para a “Casa da mãe do policial” ou coisa parecida. Por falar em mãe, o problema agora é dar a notícia à minha. Só lhe contarei uma coisa: a morte de Helena. Esconderei que sua “boníssima governanta” era uma refinada patife. Ela sofreria demais se soubesse de tudo. Aliás, para abafar qualquer possível escândalo, de acordo com o Delegado retirei a queixa- crime que havia formulado. Para todos os efeitos Helena se acidentou a serviço //
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da fazenda. Por isso estava num de meus carros, com o dinheiro meu na pasta, também minha. Mamãe não entenderá como foi morrer longe de Sarminho quando deveria ir justamente para lá, que é perto. Mas não me será difícil inventar uma história qualquer. O pior é que a defunta não tem parentes. Deverei, então, providenciar o enterro, o “bom enterro que é devido a uma fiel empregada”. E continuou, pensativo: — Prevejo, ou melhor, tenho certeza, mamãe há de querer que Helena seja inumada na capela da família... Assim teremos essa grandíssima filha da ... desculpe, quero dizer, essa filiada ao clube dos ladrões, ao lado dos Tourinho Palmeira. Um insulto! Agora espero que Deus na sua infinita bondade me poupe de alguma outra novidade até amanhã. O dia de hoje está suficientemente cheio. Eu também. O fazendeiro, já um pouco refeito depois desse desabafo, refestelou-se na sala, na sua poltrona preferida, ao lado da janelona. Relaxou-se, espreguiçou-se ligeiramente, fechou os olhos. Fufi, a gata, sentindo-o mais calmo foi se aninhar em seu colo. *** Alguns uivos e sons guturais semelhantes a cacarejos fizeram-no abrir os olhos quase imediatamente. Olhou pela janela. Não acreditou no que viu. O detetive estava correndo em direção à piscina, naquela sua maneira estranha e contorcendo-se todo. Chegou à borda, estancou, deu um urro e se jogou na água de cabeça. “Pena que a piscina não esteja vazia” – pensou o fazendeiro com um sorriso cruel. Já estava irritado com Fulgencio e considerava que qualquer ato dele era prenúncio de más notícias. — Dona Telê — disse em seguida com um tom de imensa resignação — vá ver, por favor, que diabo está acontecendo. Depois que me contar chamarei um padre para benzer esta casa... ou dois. A cabeça de Fulgencio emergira quase toda da água e Narciso pareceu ouvir que ele gritava: //
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“Fufi, a gata, sentindo-o mais calmo foi-se aninhar em seu colo.”
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— Uma bosta! Uma bosta! — Até baixo calão devo suportar – murmurou. Mas logo em seguida percebeu que o estranho e extravagante detetive, já fora da água, na realidade gritava: — Uma pista! Uma pista! O fazendeiro, com ar sofredor, aguardou pacientemente que Fulgencio fosse trocar de roupa e voltasse. Levantou os olhos ao céu e gemeu quando o viu chegar acompanhado por Telê. Vestia calças de mulher cor de rosa “cheguei”, apertadíssimas nos tornozelos e largas, bem largas, em toda a extensão das pernas. O umbigo saliente estava de fora. Tinha o rosto todo picado e os lábios inchados desmesuradamente. Parecia uma Odalisca depois de um desastre. — Hoje só faltava mais isso... – disse Narciso fitando Telê. – Ele vai dançar para mim a dança do ventre? — Não senhor – começou Fulgencio – não tinha roupa para... tso... tso... trocar... — Como o senhor está vendo, ele não pode falar direito – interrompeu Telê – veja o estado de seus lábios e desculpe-o pelas calças, que são minhas. Emprestei-as porque ele não trouxe outras. Mas eu lhe asseguro que não dançará para o senhor... – prosseguiu Telê fingindo levar a sério as palavras do fazendeiro. – Em compensação, o que “dançou” foi a hipótese de um ladrão ter furtado as joias de dona Maria. Esse ladrão não existe. Nunca existiu! — Hem! Como? — Ouça: Fulgencio teve a ideia de percorrer o caminho que o ladrão deveria ter seguido para apanhar as joias de sua esposa. O senhor supôs que para fazê-lo ele subira pela árvore situada junto ao seu balcão. Pois bem, a árvore está completamente infestada de terríveis formigas. Elas atacaram Fulgencio quando estava subindo pelo tronco. Nenhum ladrão poderia ter alcançado o balcão. Logo, não há ladrão... — Mas as joias sumiram. Quem as levou? – perguntou o fazendeiro. //
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— Doutor Narciso, a primeira ideia que me surgiu à mente foi a de ter sido Helena a autora do furto. Contudo as joias, ao que me consta, não foram encontradas com ela nem nos destroços do carro... Então eu pergunto: se dona Maria deu dinheiro ao ex-marido, por que não teria dado também as joias? Telê observou Narciso, que tinha um ar humilhado, e continuou: — Veja bem, é só uma hipótese... Não quero magoá-lo ainda mais. Entendo e respeito seu sofrimento... — Bem, doutora Telê, o que vamos fazer? — Doutor Narciso, os dados que temos em mão são suficientes para continuar nossas pesquisas, não necessariamente na fazenda. Ademais, amanhã o senhor estará muito ocupado com o enterro de Helena e com as explicações que deverá dar à dona Ofelia. Por isso queremos agradecer a sua fidalga acolhida e nos despedir. Não deixaremos de manter contato com o senhor e avise-me se houver alguma novidade... Mas antes de nos retirarmos agradeceria se o senhor me fornecesse uma relação das joias furtadas. — Imediatamente, doutora. Pouco depois Telê e Fulgencio saíam pelo portão da fazenda. ***
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V
Eram duas da tarde do dia seguinte quando Telê entrou no escritório. Delio, o secretário, a estava aguardando. — Boa tarde Delio. Há alguma novidade? — Salve, dona Telê! Aqui tudo calmo, normalmente rotineiro e rotineiramente normal. A correspondência está na mesa junto aos processos que ontem eu trouxe do Forum para seu exame. Pelo que parece a senhora acaba de ganhar mais uma demanda. Parabéns! Sic itur ad astra! — Não Delio, bondade sua... falta muito para que eu alcance as estrelas, como você diz. Mas se lá chegar será também pela sua dedicada cooperação. — Obrigado. O Fulgencio acaba de telefonar. Gostaria de falar-lhe pessoalmente e se a senhora nada tiver em contrário estará aqui às quinze horas. Deixou um número de telefone para desmarcar o encontro caso não possa ou não queira atendê-lo. — Muito bem. Aguardo-o às quinze horas. Entrementes gostaria que você, com discrição, averiguasse nas joalherias do lado Oeste da cidade e não são muitas, se nos últimos dias lhes foram oferecidas joias usadas, precisamente as que constam dessa relação entregue pelo doutor Narciso. Como você pode constatar é bem detalhada. Não será pois difícil identificar tais joias se elas “pintarem” por aí. Eu, esta manhã, já vasculhei as joalherias do lado Leste. Nada encontrei. Só resta alguma esperança na sua pesquisa, Delio. — Perfeitamente, dona Telê. E o caso da desaparecida, como vai? Em poucos minutos Telê esboçou para seu auxiliar um quadro resumido dos fatos principais e como sempre disse o suficiente; só o que o dedicado secretário devesse saber para bem exercer suas funções. — Já vou indo, doutora. Acontece porém que os pneus da minha “charanga” estão tão ou mais lisos do que eu e ademais... //
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— Já sei. Já sei — atalhou Telê — use o meu carro. Porém, por favor, não vá bater como da outra vez. Lembra-se daquela diligência no caso do pianista gago?... — Que é isso, doutora? Que é isso? Eu não bati. ME bateram. — Um carro estacionado e vazio LHE bateu. OH! Delio! — Dona Telê, a senhora sabe muito bem que, dialeticamente falando, um carro vazio mal estacionado equivale a um carro ocupado vindo na contramão. Daí o inevitável choque havido... — O seu choque dialético me custou um bom dinheirinho — respondeu Telê, rindo com aquele seu jeito brejeiro e mineiro... — Quanto a isso eu proclamo e confesso ser um seu gratíssimo devedor que quando puder... — Tá bom, tá bom, Delio. Reconheço que um devedor grato é melhor do que um ingrato. Tome as chaves do carro... *** Pouco passava das quinze horas quando Fulgencio chegou. Trazia uma pequena caixa embrulhada em papel de presente. — Boa tarde, Telê. Isso é para você! — ?! — Mandei lavar e passar as belas calças que me emprestou. No ínterim, para que o seu guarda-roupa não fique desfalcado, tomei a liberdade de comprar-lhe este par de calças quase igual às outras mas de cor verde periquito...Deve lhe cair bem pois experimentei-as pessoalmente na frente da vendedora. Ela mesma, sem saber para quem seriam, disseme que eram “adoráveis” no meu corpo... — Você é um gozador incorrigível! Imagino a cara da pobre moça — disse Telê sorrindo. — Graças à “pobre moça” eu encontrei uma pista no caso do doutor Narciso. — Como assim?
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— Ah! Ah! Cherchez la femme dizem os franceses quando há um caso policial... Minha intuição, ou será meu gênio? me diz que encontramos a nossa “femme”. Chama-se Silvia W. Siqueira. Não imagino o que significa o W... — Não continue com o “suspense” Fulgencio! Desembuche! — Incidentalmente a vendedora da butique onde comprei as calças contou que teria de ir ao acampamento perto das Sete Quedinhas para entregar a encomenda de um cliente. Ela é linda e ruiva! Você conhece o meu fraco, isto é, o meu forte fraco pelas ruivas. E esta... bonita ruiva... oh! que corpo! Estava momentaneamente sem condução. Coitadinha, tão linda e a pé! Eu naturalmente me ofereci todo, quero dizer, me ofereci apenas para conduzi-la. O “todo” marquei para esta noite... Mas, como ia dizendo, a viagem foi deliciosa. Já a simpática subida da serra com inúmeras curvas... proporcionou um certo contato entre nossos corpos, o que... — Fulgencio, por favor! Você não precisa detalhar todo o seu relacionamento... — Me desculpe mas você não imagina como ela é fofinha... um encanto! Como ia dizendo, as curvas... onde estava mesmo? — ?! — Ah, sim. Chegamos ao acampamento. Lá estava a casa-rolante que vimos pelo telescópio anteontem na fazenda do doutor Narciso. Pois bem! Ontem, nem sei se lhe contei, apontei o telescópio outra vez para o mesmo local. Ao lado da casa-rolante estava um casal. A moça me pareceu ser a própria Maria, a desaparecida. No primeiro instante não acreditei no que via. Pareceu-me uma ilusão. As tais ilusões que enganam até os bons detetives como eu... Mas a imagem do rosto dela não me saiu da cabeça. Por mais que eu quisesse negar, as suas feições eram perfeitamente coincidentes com aquelas das fotos que me passou. Era ela, não tenho dúvida! Tenho ainda mais um indício da presença de Maria naquele acampamento. — Qual? — O veículo pertence ao seu atual ex-marido!
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“Chegamos ao acampamento. Lá estava a casa rolante…”
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— Como? Como sabe? — Pela placa. É de Goiás. Lá tenho um amigo no Departamento de Trânsito. Do próprio posto telefônico do acampamento telefonei-lhe e dei o número da placa. Ele prontamente me forneceu o nome do proprietário Alvaro Antunes Arantes... Meu bom faro detetivesco me induz a crer que na vida dos dois — Alvaro e Maria — há mais alguém: a mulher, a tal cujo cartão achei no local ao lado do veículo: Silvia W. Siqueira. O cartão estava “dando sopa” no chão. Bem na entrada do veículo. Aqui está ele. Como você vê, não contém dizeres nem endereço. Só o nome. Na hora fiquei tão intrigado que por alguns instantes me esqueci de Bubú. — Quem é Bubú? — A ruiva. — Bem — disse Telê — se a casa-rolante é desse Alvaro, como você hoje descobriu e Maria estava lá com ele no acampamento, como você ontem viu, ela só iria àquele local para lhe entregar valores. Maria já lhe havia enviado dinheiro por intermédio de ordens de pagamento. Pode ser, então, que tenha lhe levado as joias, as tais que Narciso dera como furtadas... Maria nas suas saídas à noite de Vespa, facilmente poderia se encontrar com Alvaro, pois lembre-se que atrás do jardim japonês há um caminho que leva às Sete Quedinhas. Será que Maria ainda gosta do primeiro marido e como boa aventureira se casou com Narciso pelo dinheiro dele? Será que em conluio com Alvaro pretendia se aproveitar da situação para depená-lo? Por que, afinal, falsificou a certidão de divórcio se não foi para dar um golpe no rico fazendeiro? Chego a pensar que Maria pode ser enquadrada no tipo de mulher que até pensaria, para se beneficiar, em liquidar Narciso se o seu casamento não fosse contestável, isto é, passível de anulação a ser baseada na falsa certidão de divórcio... — Sim, sim Telê. À primeira vista você tem razão. Seu raciocínio é lógico; as aparências o justificam. Mas tentemos esquematizar as hipóteses possíveis. A que não deixar “furo” será a mais aceitável. Ou talvez nenhuma venha a sê-lo. O que eu direi são hipóteses, mas sobre hipóteses se baseia a menos passional das ciências: a geometria. Eu não sustentarei uma tese nem a tese oposta. Apenas procurarei resumir, com //
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a objetividade de um tabelião, o que vi e o que me parece. Telê, pensemos juntos: “Admitindo-se como verdadeira a presença no local de Alvaro, porque dono da casa-rolante e de Maria, porque eu a vi, devemos ipso facto concluir que: Ou há cumplicidade dos dois em alguma trama OU submissão de um ao outro, provavelmente dela a ele por questão de idade, e para um objetivo que ele deve ter em mente”. “Uma terceira hipótese não existe e como dizia Maquiavel mestre em reduzir os casos possíveis a DOIS: tertius non datur (o terceiro caso não é concedido).” Na primeira hipótese, a do conluio, o que Maria pode lucrar mais do que já tem e teria como mulher amada de Narciso? Isto é, sem necessidade de cúmplices ou de alianças com quem quer que seja? Ela possui tudo o que uma mulher bem casada pode desejar. Não será associando-se a um aventureiro que iria aumentar o que tem e o que poderia ter. Na segunda hipótese, a submissão dela a ele, seria por amor? Não creio. Nesse caso ela teria simplesmente abandonado o Narciso, sem deixar aquele estranho bilhete. E não iria postar-se com seu amado a poucos quilômetros do marido traído. A não ser que quisesse chantageá-lo o que de perto é mais fácil. Mas até o presente, não o fez. E se o fizesse recairíamos na primeira hipótese que não se revela suficientemente consistente. De qualquer forma, as chantagens costumam ser imediatamente subsequentes a um fato desencadeador, como o foi com a defunta Helena, que, aliás, entrou e saiu fugazmente do caso, como a andorinha da vida. — Não divague, Fulgencio. Mas que ANDORINHA DA VIDA é essa? — Nada, nada. Uma simples força de expressão que me ocorreu agora ao me lembrar que um pensador comparou a vida humana ao breve vôo de uma andorinha que vindo do escuro e do frio penetra num aposento iluminado e quente e logo sai de novo, para o frio e para o escuro... — Você está poeticamente devaneando... — Telê, no mosaico das hipóteses examinadas, uma peça não encaixa... //
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— Qual? — A do casal numa posição tão incômoda: ela fugida da casa e ele com a mulher do outro ficar recebendo uma tal Silvia W. Siqueira... — Fulgencio, espero que a importância que você está dando a essa nova personagem, Silvia Siqueira, seja prenúncio de uma nova pista. Aliás, desta vez você está no encalço de indícios sem fazer estragos... Parabéns!... — Telê, não goza! Como compensação pela sua maldade eu aceitaria um dedo do seu bom Cointreau o licor de minha sóbria preferência. Sem gelo, por favor! *** Desceu a noite e Fulgencio se despediu todo lampeiro. Estava ansioso para encontrar com a sua Bubú. Telê, agora sozinha na calma aconchegante de seu escritório, mergulhou no estudo de um processo. Sua mente porém de contínuo a fazia pensar no desaparecimento de Maria. Estranho! O bilhete que tinha deixado não continha uma despedida definitiva. Aquelas palavras: “um dia contarei, quando tudo estiver esclarecido” deixavam entrever uma esperança, a possibilidade de um retorno. O seu P.S. revelava a constância do seu amor pelo fazendeiro. Mas para quando o retorno? Por que não havia, na cartinha, a menor explicação? Ademais, até quando poderia ser mantido em segredo o seu desaparecimento? Maria é a esposa de uma personagem da região com vasto círculo de relações e parentes. Sua ausência não poderia passar desapercebida por muito mais tempo. Com certeza os primeiros ti-ti-ti surgiriam nos funerais de Helena, quando não estaria presente... De um lado há a conveniência de se evitar qualquer escândalo; de outro a necessidade de se fazer alguma coisa... Telê se sentiu oprimida entre dois receios: o de pecar pela ação avisando a Polícia ou pela inação não a avisando... O leve rumor da porta que se abriu interrompeu os pensamentos de Telê. Era Delio, que voltava da sua diligência.
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— Boa noite, minha doutora! Num relance Telê percebeu que o secretário tinha feito uma das suas pois essas palavras “minha doutora” eram típicas dele nessas ocasiões. — O que hoje andou ME fazendo, Delio? — Amassei as joias e não encontrei o paralama... Oh! Não! Quero dizer amassei o paralama de seu carro e nada obtive em relação às joias. Já deixei o seu carro na oficina do Benicio, meu primo. Ele passará a noite executando o conserto e de manhã lhe trará o carro. Levará na sua casa. Ficará novinho em folha e ainda mais bonito. Me desculpe. Não me olhe desse jeito por favor! Quando quiser ir para casa ou para qualquer lugar serei seu chofer. Eu a levarei no meu carro... se ele pegar... A senhora ainda gosta de mim?... diz que sim... — Vou pensar sobre isso, Delio — respondeu Telê sem esconder o início de um sorriso resignado. — E as joias? Continue... — Nenhuma notícia a não ser a extrema curiosidade dos joalheiros que ficam logo assanhados ao ler a lista do doutor Narciso e loucos para saber a quem pertencem os valiosos objetos. — Espero que você não tenha aberto a boca. — Doutora, posso ser um motorista imperfeito, mas no tocante à discrição sou uma múmia perfeita... — Está bem, Delio. Já é tarde. Agora me leve para casa... se o seu carro andar. Nesse caso, por favor, me faça chegar inteirinha... ***
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VI
No dia seguinte Telê chegou cedo ao escritório. Delio já havia anotado, entre outros, um recado: o doutor Narciso viria vê-la às dez horas.
Ele apareceu, sempre elegante, com uma caixa de bombons para a advogada, deixando transparecer porém cansaço e angústia. Estavam estampados no seu rosto. — Doutora Telê, por favor, faça algo ou pelo menos me dê alguma ideia. Não aguento mais. A situação está verdadeiramente insustentável. Todos perguntam pela Maria. A desculpa que tinha engendrado, a de estar ela em São Paulo visitando a irmã, não se aguenta de pé nem mais algumas horas. Minha mãe queria de qualquer forma telefonar para lá solicitando seu imediato regresso a tempo de assistir aos funerais daquela maldita Helena. Perdido por perdido achei melhor retirar às escondidas o “miolo” de todos os fones da fazenda. Com isso mamãe não telefonou à minha cunhada que, aliás, não sabe de nada. Mas também ninguém lá em casa consegue se comunicar com alguém. A criadagem em peso não entende por que não mandei ainda consertar os aparelhos. Indiretamente estou impedindo também o Administrador de fazê-lo, com uma série de evasivas e desculpas. Desconfio pelo seu modo de olhar que já está duvidando da minha lucidez... O pior porém é que mamãe exigiu um lugar de destaque no jazigo da família, que é uma capela mortuária, para o caixão daquela despudorada Helena; que o diabo a tenha consigo para sempre... — Calma, doutor Narciso! — E ainda devo permanecer calmo?! É isso possível, doutora Telê? Mas ia contando: minha mãe teima em dizer que o melhor lugar para a sua adorada governanta deve ser aquele ocupado pelo venerando Visconde, o mais nobre de meus antepassados: o Visconde de Palmeira e Barão de Córrego Cheio. Pois bem, diante das crises e cenas de mamãe, não tive outra alternativa senão mandar remover a urna do Visconde e pôla, sempre na capela, numa posição secundária, dando assim lugar ao //
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caixão daquela gatunaça... me desculpe, da defunta. Meu único consolo é pensar que se o visconde em vida sempre bêbado mal sabia onde se encontrava, agora morto, com maior razão, não perceberá em que canto foi colocado... Telê sufocou uma risadinha. — Não ria doutora — prosseguiu Narciso sorrindo — estamos em tempos de choros e ranger de dentes... — Desculpe-me, foi sem querer. Percebo porém que seu desabafo está lhe fazendo bem. O senhor estava muito tenso. Agora reencontrou o seu senso de humor, o que é uma melhora. Prossiga por favor. — A senhora sabe ouvir, me entende e eu preciso mesmo desabafar. Minhas vicissitudes não terminam aqui... — Perdoe interrompê-lo, doutor Narciso, mas vejo que o senhor nunca foi verdadeiramente franco com Dona Ofelia. Jamais a deve ter enfrentado diretamente e sem subterfúgios. Se, por exemplo, lhe tivesse contado toda a verdade nesse lastimável episódio da falecida Helena, não estaria agora nessa posição tragicômica... — Bem. Comprei a lona, o picadeiro, armei o circo e no final o palhaço sou eu... a senhora tem razão doutora mas tudo isso tem uma explicação. Como lhe contei, meu relacionamento com mamãe sempre foi complexo, freudianamente complicado. O que ainda deve ter agravado a situação ao longo dos anos foi a sua maior convivência comigo. Jacinto, meu irmão, estava sempre distante dela mesmo quando presente. Aos poucos fiquei em plano semelhante ao de um filho único, naturalmente mais exposto à concentração do amor materno. Se esse amor por um motivo qualquer for possessivo, levemente doentio, como é o caso, a concentração aumenta as consequências da morbidez e daí a dificuldade de relacionamento com o seu rosário de fugas, mentiras, restrições mentais, dissimulações etc. Estes se avolumam com o tempo num “crescendo” rossiniano, como uma bola de neve... Narciso fez uma pausa e respirou fundo. Mas retornemos aos fatos concretos. Como disse, meus dissabores continuam. Como uma homenagem póstuma à “adorada governanta” (oh, oh! como a abomino!) mamãe redigiu um epitáfio que dadas as //
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conhecidas circunstâncias soa absurdo e ridículo. Veja por si mesma, doutora... Narciso puxou de um bolso da sua jaqueta de camurça um papel de carta cor-de-rosa de linho finíssimo e estendeu-o a Telê. A advogada notou que o fazendeiro já tinha as feições relaxadas. Não era à toa que seus amigos diziam ter ela virtudes sedativas e até lhe haviam dado um apelido “Ouvidinho de Ouro”, pois Telê, só em ouvir relaxava os interlocutores. *** Baixou os olhos sobre o papel. Estava escrito com letras grandes, tremidas, mas legíveis. O que porém chamou mais a sua atenção, já que gostava de heráldica, foi o brasão da família impresso em relevo no alto, à esquerda da folha. Um escudo contendo um touro rampante e coroado. Na sua boca um lírio. Entre as patas anteriores uma lança. Embaixo um dístico que lhe pareceu um espanhol arcaico: HAY QUE FORZAR CUM SUAVIDAD Y SIEMPRE. No fundo, em segundo plano, uma palmeira esguia. — Bonito o brasão da sua família doutor Narciso e original o lema. De onde provém? — Ah! Sabia que a senhora iria perguntar isso! É uma história entre grotesca e dramática, fruto de uma época em que os valores eram outros, época na qual foi concedida à família a primeira nobreza, a europeia. — Conte, doutor! — Oito séculos atrás, e a senhora sabe como a história medieval em certos períodos se confunde com lendas e mexericos, um rei ibérico, Sancho III, tinha especial predileção pelas virgens. Mas ao mesmo tempo não suportava ver nem sentir sangue. Tinha então, para seu uso exclusivo, uma espécie de deflorador oficial que em seu nome, e como se fora ele próprio, “preparava” as raparigas escolhidas para o leito real. Em suma, uma verdadeira delegação de poderes. Era um trabalho ditoso, honroso, mas árduo, dada a insaciabilidade do rei. Dizem as crônicas e não posso jurar serem fieis à verdade que em certas noites, noites de epopeia, o //
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“…um touro rampante e coroado. Na sua boca um lírio “.
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procurador tinha que “condicionar” mais de seis moçoilas. Essas noites apoteóticas eram frequentes. Assoberbado pelo seu trabalho nobre mas excessivo, ele, já maduro, muito em segredo foi levado a repartir suas tarefas com o Bobo da Corte que, como se vê, não era tão bobo assim e mais tarde com o piedoso capelão real, um certo frei Bartolomeu cujo processo de beatificação foi suspenso e definitivamente arquivado quando esses fatos vieram à tona... O fazendeiro continuou: — Pois bem, o tal “procurador” prestou seus dignos serviços anos a fio. Quando pela idade e pela tremedeira de que foi acometido já não podia desempenhar suas incumbências vice-reais, foi aposentado e aquinhoado com um título de nobreza. O dístico, bem alusivo, do seu brasão foi composto pelo próprio soberano pois o novo nobre era analfabeto e de poucas luzes. Mas é o fundador de nossa estirpe. Chamava-se Navarro Taurinus, ou Taurin. Daí o touro do brasão. O lírio na boca, ao que parece, representa a pureza arrancada. A lança, obviamente, tem um significado fálico. Finalmente, a palmeira foi acrescentada depois com a outorga da segunda nobreza, a brasileira, durante o Império...Como é, doutora, está satisfeita com a explanação mas um pouco escandalizada, não é? — Não, doutor Narciso. Compreendo os costumes peculiares, mesmo os mais bárbaros, de cada época histórica. Apenas deploro a servidão a que estavam sujeitas as mulheres, pelo menos aquelas de determinadas classes. Mas... vamos ao epitáfio de Dona Ofelia. Telê tornou a baixar os olhos sobre o papel. Leu e releu: COMBATI O BOM COMBATE A CORRIDA ACABOU CONSERVEI A FÉ E A HONRA — É, doutor Narciso, estas palavras soam mal, ironicamente falsas... Mas são só palavras, o vento as leva... — Não, não menina, quero dizer: doutora... Obrigada pela menina. Narciso continuou:
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— O vento não as leva porque serão gravadas no túmulo da famigerada, em letras GRANDES, BONITAS e DOURADAS. Eu o prometi. Textualmente. Por isso quando sair daqui irei rápido e direto ao marmorista. — Mas o que o levou a prometer ISSO? — É o seguinte: apenas mamãe me apresentou esse epitáfio e me pediu que mandasse gravá-lo, me rebelei. Afinal, pensei, a primeira frase não combina com Helena porque é de São Paulo, um santo... muito honesto. A corrida que realmente houve foi a fuga da Polícia e quanto à honra, se Helena a teve eu sou donzelo. Então, apesar do meu profundo amor filial não me contive. Respondi à minha mãe, naturalmente sem lhe revelar os motivos, que não iria mandar gravar coisíssima nenhuma e que se ela não estivesse satisfeita fosse se queixar ao bispo... — E então? — Ela foi. Na hora. Direto! O bispo é seu tio... — Vejo que dona Ofelia é muito decidida. — Mais decidido ainda foi seu titio, o bispo. Enviou-me incontinenti um monsenhor que já conheço e detesto. Um certo Don Biriricas ou Pipiricas, um grego naturalizado búlgaro ou vice-versa, muito atrevido. Vive incitando meus colonos e peões. Um horror! Mal o vi ao longe já no interior da fazenda, com a batina esvoaçante na sua motocicleta, montei o meu alazão que estava bem a mão e procurei me esconder no pomar. Não é que o diabo do reverendo me viu e logo me alcançou? A discussão foi longa e duríssima. Disse-me que eu estava recusando a uma mãe cristianíssima a oferta de um epitáfio ainda mais cristão a favor de uma santa servidora já chamada por Cristo... Recitou-me em latim, doutora, naquele seu horrendo latim de sotaque balcânico, longos trechos de várias encíclicas... — Mas o que ficou decidido? — Que eu mandaria gravar logo, bem bonitinho, o epitáfio. Senão, o bispo não deixaria mais o padre rezar missa aos domingos na capela da fazenda. — O senhor é muito devoto? //
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— Não, mas mamãe é. Se a ameaça se concretizasse teria no mínimo um colapso. Sem contar os males menores: eu seria deserdado, as hemorroidas dela piorariam etc. Bem, como a senhora vê, tive que ceder. Quem disse que o clero está perdendo sua força? — E como foi o enterro, doutor Narciso? — Constrangedor. Todo o pessoal da fazenda em atitude compungida. O reverendo monsenhor discursando e benzendo, eu segurando a alça do caixão da malfeitora sob os olhares sarcásticos de Jacinto e do Delegado, os únicos dos presentes que conheciam a sua verdadeira história... *** Desculpe interromper – disse Delio, entrando de chofre na sala. – É urgente! A senhora, doutora, pode me atender na saleta? Telê se levantou e se dirigiu para o pequeno aposento contíguo, local de trabalho de seu secretário. — Espero que seja algo muito importante que justifique esta sua intempestiva interrupção, Delio... — Oooh! Sim. Sim. A senhora não imagina quem telefonou... Adivinhe! Aposto como não acerta! Dou-lhe duas chances. Eu... — Vamos logo Delio. Não seja criança. Ou seja-o, mas pelo menos objetiva... — Telefonou dona Maria Struck Tourinho Palmeira... — !? — Quer falar com a senhora a sós. Hoje. Sua agenda está livre após as 14 horas. Então marquei nesse horário. — Está bem — respondeu Telê sem demonstrar qualquer emoção e entrando de volta para sua sala. Narciso a estava esperando de pé. — Bom, doutora querida, antes de me despedir deixe que me queixe. A bem da verdade confesso que me sinto melhor porque fiz uma boa catarse, mas a senhora não me deu o menor conselho, notícia ou orientação. Maria continua desaparecida. E eu, além dos problemas que //
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seu desaparecimento está causando, a esta altura não sei se sou um marido traído ou um viúvo idem... — Doutor Narciso – disse Telê com um tom de voz suavíssimo – até o presente o senhor falou e eu deixei falar. E foi bom porque sairá daqui parecendo outro homem. Agora falo eu, pouco mas o suficiente: hoje mesmo lhe darei notícias da sua Maria que, lhe asseguro, está bem viva. Nada mais posso adiantar. — Mas diga-me pelo menos... — Peço-lhe que não tente insistir. Tenha fé em Deus e confiança em mim... ou vice-versa o que dá no mesmo. Sou sua advogada e agora que o conheço melhor posso dizer, sua amiga. Até mais tarde. ***
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VII
Telê uma vez sozinha ficou matutando: a conversa com Maria lhe traria
novidade, novos fatos, talvez surpresas. A advogada sabia por experiência própria que o inesperado estimulava a sua capacidade de tomar decisões e isso geralmente redundava em diligências, averiguações, abertura de processos. Enfim uma atividade qualquer. Para executá-la não precisava de ninguém. Era autossuficiente. Estava consciente de seu valor e ainda não conhecia seus limites. Por maiores que fossem as dificuldades e os desafios profissionais sempre os tinha superado ou contornado. Era uma vencedora. Ainda não havia se defrontado com seu “horizonte de incompetência”, aquela terrível linha divisória que transforma o ganhador em perdedor, fazendo sentir o gosto amargo da derrota. Por enquanto, e ela já tinha vinte e nove anos de vida e oito de profissão, estava incólume. Porém nesse dia... seria uma pitada de insegurança ou um grão de prudência? Ela sentia a necessidade de ter a mão de alguém que a pudesse ajudar intempestivamente se fosse preciso. Quem? Obviamente Fulgencio, o estabanado mas fiel colaborador de sempre. Telê pegou o telefone e pediu ao detetive que após as catorze horas ficasse à sua disposição no próprio escritório dele. Já eram onze horas. Telê despachou seus processos, consumiu um sanduiche, consertou uma gafe de Delio que em vez de enviar um processo e xerocar um artigo jurídico tinha feito precisamente o contrário e aguardou. O relógio marcou catorze horas. Maria chegou. Pontual. “É linda! O mesmo rosto das fotos – pensou Telê quando a viu – Apenas estava um pouco mais magra e muito pálida. Mas isso realçava-lhe o porte elegante embora esportivo”. Ao dar entrada, introduzida por Delio, Maria sem dizer uma palavra fixou longamente Telê com seus olhos de um azul profundo. //
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A advogada percebeu de relance que ela estava emocionada, embaraçada, oprimida. — Eu a esperava. Não sabia quando viria, mas sabia QUE VIRIA! Seja benvinda, Maria! Permita-me dispensar o dona ou doutora, porque é como se eu a conhecesse de longa data. Acomode-se por favor e fique à vontade. Não precisa falar já, entrar logo no assunto. Temos tempo! Pelo menos o meu está todo a seu dispor. Mas antes permita-me que lhe ofereça algo. Aceita uma xícara de chá ou prefere uma bebida alcoólica? — Obrigada. — Obrigada sim ou obrigada não? Diga que sim para me acompanhar! — Pois não, eu a acompanharei — disse Maria quase timidamente. — Deu-me vontade — prosseguiu Telê — de tomar um Strega, a “bebida das bruxas”, aquele licor italiano que clareia o cérebro, revigora os músculos e abre o coração... Não é “slogan” publicitário, mas palavras de um meu amigo italiano... tem o costume de bebericar alguns cálices de “Strega” ao pôr do sol. Não sei bem se como último digestivo do almoço ou primeiro aperitivo do jantar... Ele quando bebe fica triste e põe-se a lamentar a distância que está de sua terra... — “Oh! Mia Patria si bella e perduta”... — recitou Maria com sua voz agradável. — Isso! Isso mesmo ele diz! — exclamou Telê — Como conhece essas palavras? — São versos caros aos italianos, principalmente aos emigrantes... fazem parte de um coro famoso da ópera Nabuco... — Ah! Já me lembrei, é uma ópera de Verdi. A ária é “Va pensiero”... — continuou Telê – sabe italiano? — Sim. Como uma boa filha de italiana e de suíço fui obrigada a aprendêlo. Aliás foi uma gostosa obrigação. — Então oportunamente eu lhe pedirei um favor... — Disponha — respondeu prontamente Maria. — ...o de tirar-me algumas dúvidas num libreto de uma ópera de Puccini. — La Bohème, Tosca ou Butterfly? — perguntou Maria. //
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— Não. Uma ópera menor. Mas não por isso deixa de ser uma pequena joia. É a Gianni Schicchi. — Para a senhora... — interrompeu Maria. — Trata-me por VOCÊ, por favor — disse Telê. — Quero sentir-me como uma amiga e não como uma profissional. — Para você que é advogada — continuou Maria — o libreto dessa ópera deve ter um interesse especial pois, pelo que me lembro, trata de um ilícito penal, a incrível falsificação de um testamento sob os olhos de um tabelião e suas testemunhas... — Certo! — Porém — prosseguiu Maria, com um rosto que de repente se fez triste — na vida real os crimes de falsificação não se pagam somente na outra vida como no libreto daquela ópera, onde Dante põe o falsário no inferno... Pagam-se nesta também... — Minha boa Maria, sei em que está pensando... Na vida real... como no seu caso, perdoe abordar o assunto, deve estar pensando na certidão falsa de seu divórcio... — Como... como sabe?! — prorrompeu espantadíssima Maria. — Na vida real, repito — prosseguiu Telê imperturbável — talvez não tenha havido um dolo ou culpa sua, mas, digamos, uma co-responsabilidade... Nesse instante um forte soluço de Maria interrompeu a conversa. Deu mais um e finalmente prorrompeu em um choro convulsivo. — Chore Maria, chore. Vai lhe fazer bem — disse Telê. — Nós mulheres não temos o preconceito masculino de que nunca se deve chorar... pelo menos em público. Eles, os homens, não sabem o que perdem em matéria de saúde. Dizendo isso, Telê se aproximou de Maria, levantou-lhe docemente o queixo e com o lenço enxugou-lhe as copiosas lágrimas. As duas mulheres, ambas lindas, jovens e cultas, se abraçaram irmanadas pelo sentimento. Uma vez refeitas elas e refeitas as próprias maquiagens, iniciou-se uma longa confissão de Maria. Telê deu partida à conversação: //
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— Maria, quando você teve a primeira ideia de vir aqui? — Foi o doutor Cesar, advogado da família, a quem esta manhã em meu desespero resolvi recorrer. Por uma questão de ética, é há anos o advogado de Narciso, não pôde me atender, mas me deu seu nome e endereço com os melhores elogios a seu respeito... — É gratificante, pois mal conheço o doutor César. — Ele sabe a sua fama e frisou várias vezes a sua SENSIBILIDADE! Humana e jurídica. Disse ser a pessoa indicada para me ajudar. — Abordou o assunto que a preocupava? — Muito por alto. Mal entrei no assunto ele falou no seu nome e nos próprios impedimentos éticos. — Entendo. Vamos lá, Maria. Abra sua alma como se eu fosse sua irmãzinha! *** Maria começou: — As histórias com happy end, isto é, com final feliz, acabam em geral num bom casamento. Em contraposição, minha história que tudo leva a crer não terá um epílogo alegre começou justamente com um mau casamento. — Não seja pessimista quanto ao epílogo Maria! — Tentarei não ser Telê. Mas embora a esta altura eu esteja achando que um pessimista nada mais é do que um otimista bem informado... Meu casamento foi péssimo... — O PRIMEIRO, não o segundo — interrompeu Telê. — Talvez deva dizer o ÚNICO, pois o segundo, este sim feliz, provavelmente não tem valor jurídico. Mas isso é outro problema que entrego a você. Aliás estou aqui também por causa disso. Como ia dizendo, quando me casei tinha dezessete anos e era um tanto inexperiente. Talvez, mesmo, ingênua. Os motivos por que eu era assim devem ser vários e podem decorrer de defeito de educação. Mas qualquer análise nesse sentido viria a indicar um grau maior ou menor de culpabilidade de mamãe, mesmo indireta. Eu a amo e muito. Ela está no meu coração //
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acima de qualquer indagação ou crítica. Assim sendo, não quero pesquisar a fundo esse tema. Veja bem não tenho antolhos, não me recuso a encarar de frente o âmago ou a realidade das coisas... Apenas coloco o amor por minha mãe acima de qualquer realidade. Sinto por ela o que aquele poeta inglês sentia pela sua pátria: “Right or wrong is my country”. O amor, quando verdadeiro, é incondicionado. Só sei amar assim. Seja mãe ou companheiro de minha vida. — Você, Maria, deve ser uma boa filha tanto quanto boa esposa. Que Deus a conserve assim... Continuemos. — Obrigada. Fiquei casada dois anos. Graças a Deus não tivemos filhos e isso, de certa forma, facilitou mais tarde a nossa separação. Meu marido Alvaro, era encantador socialmente falando. Alegre, comunicativo, gostava de se distrair. Gastava uma fábula. Dissera-me que herdara uma grande soma de um tio e que iríamos aproveitá-la juntos, vivendo a vida o melhor possível. Eu o admirava e amava. E... quem não gosta, aos dezessete anos, de viver como uma princesa? Quem não gosta de ter dinheiro? Isso, embora eu saiba muito bem que malgrado o que dizem os ricos o dinheiro não faz felizes os pobres e apesar do que dizem os pobres, o dinheiro não faz a felicidade dos ricos... Trabalhava desde os quinze anos pois minha mãe ficara viúva e praticamente desamparada. Como eu estudara em ótimos colégios tinha um preparo melhor do que a maioria das moças de minha idade que desempenhavam o mesmo trabalho. Redigia num português perfeito, dominava várias línguas. Aprendi taquigrafia com facilidade e era ótima datilógrafa. Mesmo trabalhando continuei a estudar à noite. Diplomeime em História e depois de casada fiz dois cursos de pós-graduação, com vista ao mestrado e depois, quem sabe, ao doutorado. Até que um dia, um dia fatídico, ao chegar em casa encontrei meu marido bêbado. Foi então que ele me confessou: o dinheiro que manipulava não era dele. Era dinheiro obtido ilicitamente em negociatas. Tinha tido sorte, se é que se pode chamar de SORTE o sucesso em negócios escusos... Organizara um Fundo de Ações, aparentemente muito bem montado, em que entraram muitos conhecidos e amigos nossos como sócios, outros como simples cotistas, um puxando o outro numa verdadeira pirâmide. O Fundo estava dando muito lucro e ficou //
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sendo um chamariz para enredar outras pessoas. Alvaro aproveitou-se para viver desse lucro que não era seu, cobrindo um buraco com outro, numa ciranda imensa de títulos, promissórias etcétera. O escândalo acabara de estourar. Alvaro se transformara. Ficou violento. Me agrediu. Disse que eu era a culpada porque fizera com que se arruinasse. Maria fez uma pausa, como quem se analisa, e continuou: — Eu teria perdoado tudo: sua desonestidade, o fato de termos ficado na miséria... mas não a brutalidade com que passou a me tratar e também à minha mãe. Era outro homem! Exigiu de mamãe que lhe entregasse as joias que ainda conservava como uma última reserva, para uma eventualidade. Tanto mais que sua saúde já era periclitante. — Foram essas as joias que você entregou ao Alvaro há pouco tempo? — perguntou Telê com o rosto impassível, o que aumentou a surpresa de Maria. — Telê, as suas perguntas mostram tal conhecimento de causa que dão a impressão de que você já sabe tudo de mim... Tenho desculpas? Posso ter esperanças na situação em que me encontro? — Sim, querida. Estou aqui, na sua frente, para tirá-la de qualquer situação ruim. Isso eu o farei aliando-me ao seu Destino se ele lhe for favorável ou modificando-o, caso contrário. Mas continue, por favor. As palavras de Telê, ditas com determinação, tiveram o dom de desvanecer os últimos traços de angústia do rosto de Maria. Agora ela estava serena, confiante e ainda mais linda. “Parece uma Nossa Senhora de Ticiano” – pensou Telê. Maria continuou a narrativa: Não conseguindo mais suportar as grosserias de Alvaro e percebendo que ele jamais seria uma pessoa honesta, eu, muito triste, pedi que me concedesse a separação para o posterior divórcio. Num primeiro tempo ele não concordou e ficou ainda mais brutal. Em seguida, passados alguns dias, não só concordou como se ofereceu para tratar de tudo, para ele mesmo e para mim. Confiei nele. Outro erro meu. Nunca deveria ter feito isso. Mas era muito jovem. Encontrei um bom emprego numa firma de publicidade. Com o que ganhava sustentava a mim, a //
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mamãe e ainda poupava algo. Todos os meses remetia ao meu ex-marido as minhas economias para pagar o que ele chamava de “tríplice processo”: o de separação de corpos, o de desquite e do divórcio. Todas as minhas poupanças e os meus aumentos de salário, não de reajustes, mas de promoção profissional, eu os enviava a Alvaro, que cada vez exigia mais, alegando dificuldades burocráticas, jurídicas, má vontade do Juiz e motivos outros que, agora, percebo, eram falsos. Até que um dia, após ter-lhe enviado, a seu pedido, uma boa soma de dinheiro, remeteu-me pelo correio uma certidão de divórcio, a tal que você sabe ser falsa. Eu não sabia... Apenas me senti livre daquele homem, já para mim um verdadeiro pesadelo. Minha mãe acabara de falecer e me deixar, além das joias e algumas pratas, um prêmio de seguro, resgatável na Suíça. Pedi, então, umas férias e fui para aquele país. Maria tomou um ar pensativo. — Lá conheci Jacinto, irmão de Narciso. Ele me cortejou. Achava-o encantador, mas não era o meu tipo. Nele alguma coisa, algo vago, faziame lembrar o Alvaro... e gato escaldado... Foi Jacinto quem, ocasionalmente, sempre na Suíça, me apresentou ao Narciso. Apaixonei-me em pouco tempo. Senti que seria o verdadeiro homem de minha vida, aquele com o qual, como diz o poeta, “desejo envelhecer sorrindo como envelhecem os fortes...” Percebi que o sentimento era recíproco. Narciso não me largava mais e mais ele ficava junto a mim, mais eu me sentia feliz. Sua honestidade, cultura, modos educados e até aquele seu jeito de adolescente, apesar da idade, me atraíam. Minha única preocupação era não causar problemas entre os dois irmãos porque percebia que Jacinto também me amava e... não me esquecia. No fim, já no Brasil, após uma conversa franca na qual lhe disse lealmente que quem eu amava era o seu irmão e estava disposta a tudo para não provocar desavenças entre eles, inclusive CORTANDO O NAMORO COM NARCISO por mais que isso me custasse, a situação se aclarou. Jacinto embora ferido no seu amor próprio resignou-se e se afastou. Depois soube que sua crise foi forte e longa. Felizmente conseguiu superá-la. Consolou-se com inúmeras mulheres pois no fundo e guardadas as devidas proporções, ele psicologicamente oscila entre dois mitos: o de Fausto, da Eterna Juventude que deve ser saboreada sofregamente em //
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todos os instantes fugidios da vida e o de Don Juan, do Amor Poliédrico de muitas variedades e profundidade nenhuma. Maria fez uma pequena pausa e sob o olhar doce de Telê continuou: — De qualquer forma não fiquei com remorso de ter cortado as esperanças de Jacinto. Ele ama desesperadamente a vida e, então, procura colher e saborear o prazer em todas as direções e oportunidades, como se o ISSO e o AGORA devessem acabar de repente, para sempre varridos por um furacão ou cortados por uma Parca... — Parabéns, Maria! As amargas provas da vida foram-lhe úteis. Você já passou da experiência juvenil para a maturidade sapiente. Atravessou a fronteira que, no dizer de um escritor “divide o homem dos rapazes”. Mas continue, tenho prazer em ouvi-la. — Bem — prosseguiu Maria — casei-me com Narciso na Suíça, para onde embarcamos ainda noivos. Lá, entre as montanhas nevadas, nós nos conhecemos e lá Narciso, incorrigível romântico, como eu, quis casar. Foi uma cerimônia simples numa pequena aldeia de um vale ridente, com o testemunho de alguns amigos de Narciso que lá estavam. Era um inverno frio, seco e estranhamente ensolarado. Maria interrompeu o que estava dizendo por alguns instantes. Levou o cálice com o licor cor de ouro aos lábios e bebeu. Sua boca tremia. Ela estava prestes a chorar novamente mas se conteve. Engoliu, não mais a bebida mas em seco e continuou: — Telê, prezada Telê, espero não estar roubando o seu tempo, mas julgo necessária esta explanação geral a fim de lhe dar os elementos necessários para você ajudar Narciso e eu. A felicidade de um casal está em jogo e em jogo está também a minha liberdade frente ao Código Penal... — Maria – interrompeu Telê — já lhe fiz entender que o meu tempo é seu. Todo ele. Use-o à vontade. — Obrigada, Telê. Bem... era inverno... Quando voltei ao Brasil e fui guardar, já no arquivo de Narciso, os meus papéis de casamento, percebi algo estranho na certidão de divórcio. Procurei um advogado qualquer na cidade, pois tive um misto de receio e pudor em mostrar o documento ao doutor Cesar que costumeiramente trata os assuntos jurídicos da família de Narciso. //
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“Lá, entre as montanhas nevadas, nós nos conhecemos e lá Narciso, incorrigível romântico, como eu, quis casar.” //
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À primeira vista, sem titubear, o advogado declarou que a certidão era “falsíssima, grosseiramente falsa e parecia mais obra de um louco com senso de humor do que de um bom e zeloso falsário”... Senti-me enregelar. Então — concluí — eu era BÍGAMA! Ele respondeu: “Perfeitamente bígama” e continuou solene “Seria conveniente a senhora iniciar um processo contra o gaiato que lhe forneceu este papel antes que aconteça algo de escandaloso, dada a posição social de seu marido. De acordo com a ética, guardarei segredo. De minha parte ninguém saberá nada, mas uma providência urgente é necessária. Mexa-se, minha boa senhora!” Maria continuou: — Resolvi, então, pôr Narciso a par de tudo e, de acordo com ele, tomar as providências legais cabíveis. Não houve tempo. O Alvaro, que não via há muito, me procurou. Estava irreconhecível. Parecia alcoolizado ou, pior, drogado. Disse-me que amava loucamente uma aventureira, uma mulher sem escrúpulos que talvez não o merecesse. Disse isso como se ele próprio fosse uma grande coisa... Sentia-se completamente dominado por ela. Falou-me, para ilustrar a sua humilhante submissão, da Servidão Humana de Somerset Maughan. Considerou seu caso pior que o daquele romance, pois o herói-vítima não beirava o suicídio. Ele, Alvaro, sim. Estava disposto a se matar se não pudesse pelo menos “frequentar” a sua amada. Foi assim mesmo que ele disse e repetiu “Frequentá-la como se fosse uma prostituta me basta pois sei que ela não me concederia uma vida em comum; mas, mesmo assim, eu a adoro. Ardentemente. Ela me fascina”. Para estreitar os laços com aquela mulher, na esperança de prendê- la a si por algum modo, casou com ela. Isso foi feito no benevolente consulado de uma republiqueta centro-americana. Usou uma via da famosa certidão de divórcio, que deve ter sido aceita, também, por boa-fé. A tal mulher, após o casamento, de uma forma ou de outra descobriu a falsidade do documento. Considerou que eu teria uma outra via e resolveu imediatamente tirar vantagem. Em suma: começou a me chantagear, não diretamente, mas por intermédio do Alvaro e sem aparecer. Sua única manifestação era o envio periódico a mim de um cartão, contendo simplesmente o seu nome à guisa de lembrete e ameaça... Telê teve uma inspiração, olhou para Maria e seriamente sentenciou, como se conhecesse a mulher: //
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— Ela se chama Silvia W. Siqueira. — Meu Deus! Sim. Silvia Wagner Siqueira. Mas como sabe? Você a conhece? Com quem andou falando? — O segredo profissional é básico para os advogados... — Entendo. É inacreditável o banco de dados que você possui a respeito desse assunto e de mim. E me conheceu hoje... — Mas prossiga a narrativa, Maria. — Com medo do escândalo, fui me sujeitando às chantagens do Alvaro que, por sua vez, era pressionado pela Silvia. Assim, cedendo e cedendo, entreguei o dinheiro, joias, prataria... — Joias e pratarias que você fez passar como tendo sido furtadas por um ladrão ocasional, não é Maria? — Sim, sim, Telê. Exato. — E você fazia as entregas no acampamento perto das Sete Quedinhas... — Justo. Você sabe tudo. É incrível! — Diga-me, Maria, sei também que Alvaro tem uma casa-rolante onde costumava aguardá-la e você usava uma Vespa para ir até ele... — Certo. Alvaro, depois do escândalo financeiro ficou desacreditado. Foi então trabalhar em outros estados, Goiás e Mato Grosso, como simples corretor de lavras e minérios. Para suas viagens de negócios e visitas a clientes usa a casa-rolante; assim poupa as diárias de hotel. Contudo, continua periodicamente a frequentar a cidade por causa de sua relação ou melhor, submissão à Silvia. Ela mora aqui, mas ignoro onde. — E a Vespa, Maria, que fim levou? — Na última vez em que fui levar ao Alvaro os derradeiros bens que possuía, Silvia estava com ele na casa-rolante. Parece-me que tinha ido pressioná-lo, como de costume, para que me arrancasse ainda alguma coisa. Não satisfeita com o que eu tinha levado pretendeu mais e mais, com uma desfaçatez inimaginável. Na sua desmedida voracidade exigiu a Vespa e até um colarzinho de ouro que eu trazia no pescoço. Era a última lembrança de mamãe. Voltei sem ele... a pé. Isto é, voltei //
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provisoriamente para casa. Arrasada e apavorada como estava fiquei só o tempo necessário para escrever um bilhete a Narciso e apanhar alguma roupa. Fui para o apartamento de uma antiga empregada de mamãe, a quem devo uma generosa acolhida... — Em que pé ficaram as pretensões de Silvia? — interrompeu Telê. — A última vez em que a vi, e já lhe contei, exigiu mais dinheiro, ameaçando provocar um escândalo pelos jornais se não o entregasse até o fim do mês. Faltam poucos dias. Não sei o que fazer, Telê. Ajude-me! Jamais terei coragem de enfrentar Narciso, sua mãe Ofelia, Jacinto e até Helena a governanta, que não simpatiza muito comigo. *** — Minha boa Maria, saiba que Helena faleceu num desastre de automóvel. Foi enterrada ontem. Onde ela foi sepultada e outros detalhes saberá mais tarde. Os oficiais e os verdadeiros... — Não entendo, Telê. Mas lamento muito a morte de Helena, por ela e por dona Ofelia. Vai fazer falta naquela casa. — Talvez não... — disse Telê — mas isso é uma outra história. Oportunamente saberá... Agora vamos agir. Diga-me, onde podemos encontrar Alvaro? Devemos estabelecer um contato com ele. — Pobre Helena — suspirou Maria. Depois, como quem afasta um mau pensamento, prosseguiu: — Telê, acho imprudente nas atuais circunstâncias irmos vê-lo sozinhas. Ele, às vezes, fica violento quando contrariado. Está respondendo a dois processos por agressão a credores. Por outro lado... se fôssemos acompanhadas por alguém o Alvaro não nos receberia. Mesmo quando deprimido ou raivoso continua esperto... Não se preocupe, Maria. Iremos com um detetive particular que costuma colaborar comigo. É o Fulgencio. Está me esperando. Sabe como agir. Na hora conveniente ele surgirá. Pode se fazer passar por um inspetor da Companhia Telefônica, membro do Exército da Salvação, baby-sitter à procura de trabalho... É um verdadeiro camaleão. Dizem que certa vez apareceu de repente numa reunião secreta de mafiosos //
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e convenceu-os que era um Extra-Terrestre à procura de um determinado tipo de amendoim... Coisa de doido! Mas diga-me, onde mora o Alvaro? — Quando não está viajando, como lhe contei, mora na periferia da cidade, em Vargem Redonda... não Vargem Quadrada. — Agora é Vargem Redonda mesmo — interrompeu Telê rindo – pois lembrara que o Distrito mudava alternadamente de nome conforme o resultado das eleições municipais, a favor da Situação ou da Oposição. E a rua Maria, qual é? — Deixe-me lembrar... rua, não. Estrada da Sulamita, número 413... não, 417! ! Lembrei! — Ontem Alvaro estava na cidade – disse Telê com convicção — ou pelo menos nos arredores. Sua casa-rolante foi vista no acampamento perto das Sete Quedinhas. Vamos ver hoje... Mas você nem imagina quem viu a casa-rolante... — ?! — O Fulgencio... o detetive que... — Mas então ele já está tratando do caso? Não entendo mais nada Telê. Estou começando a achar você... diabólica! — Não, Maria. Sou uma simples advogada que procura desincumbir-se de suas missões frente aos clientes... — Mas que clientes? — Há dias tinha um no caso em espécie. O doutor Narciso... Hoje tenho dois: ele e você — disse sorrindo. — Não posso, por enquanto, dizer-lhe mais nada. Não pergunte. — Estou cada vez mais caindo das nuvens! Quero vê-lo —disse, quase gritando. — Ótimo! Agora quer vê-lo. Para quem fugiu de casa é uma bela promessa de retorno... A seu tempo o reverá para sempre!... — Jura, Telê? — Juro, Maria... Juro! Mas agora devemos ir procurar o Alvaro. Já! *** //
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VIII
Depois de apanhar Fulgencio na sua casa, Maria e Telê seguiram no
carro desta para Vargem Redonda. No trajeto a advogada, em poucas palavras, fazendo uma “síntese do resumo” contou a Fulgencio o que tinha sabido durante o dia, referente ao caso. Telê parou o carro um pouco antes do endereço fornecido por Maria e explicou: — Não convém que o meu veículo seja visto em frente à casa do Alvaro. As duas seguiram a pé. Fulgencio vinha atrás, distanciado e na calçada oposta. A residência de Alvaro era bem modesta, quase pobre: uma pequena casa com não mais de quatro dependências. Na frente havia um minúsculo jardim mal conservado, cercado por uma mureta descascada e enegrecida. Na entrada um portão semi-arrebentado. Ao lado da casa um telheiro abrigava a famosa casa-rolante com placa de Goiás. Ele deve estar em casa, pois o veículo está ai – pensou Telê. Tocaram a campainha. Ninguém atendeu. Insistiram. Silêncio. Bateram na única porta de entrada. Nenhuma resposta. Só se ouvia os primeiros cri-cris dos grilos, pois a tarde estava começando a declinar. Deram volta à casa. Tudo trancado. Telê chegou então até o portão e fez um gesto de chamada a Fulgencio que, do lado oposto da rua, estava medindo com uma trena a distância entre os postes como um zeloso funcionário da prefeitura. Não só media mas tomava nota e repetia os números em voz alta. Pena que tanta arte cênica não tivesse espectadores. Não havia viv’alma... Fulgencio logo atendeu ao chamado. Entrou furtivamente pelo portão e começou a examinar detalhadamente a porta de entrada e as poucas janelas da casa. Notou que o basculante que devia ser do banheiro podia ter uma de suas folhas levantada. Forçou com cuidado e levantou-a completamente. Mãozinha de ouro — brincou Telê //
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— A cabeça também — respondeu Fulgencio rindo. — Mas agora fiquemos quietos. Qualquer barulho pode nos comprometer. Depois de enfiar os braços e a cabeça na abertura deixada pela folha levantada, Fulgencio tentou fazer penetrar seu tronco. Aos poucos, esgueirando-se e contorcendo-se como um malabarista, ficou com todo o busto no interior do cômodo que era mesmo o que supunha, o banheiro. A porta estava fechada. Fulgencio inclinou a cabeça e o tronco para baixo procurando deixar-se escorregar para o interior. Caiu com o rosto estatelado no bidê. Porém seus pés ficaram presos do lado de fora do basculante. Pudera... ele calçava um robusto número 44 bico largo... — Telê, me ajude! Tire meus sapatos, por favor! Estou com a cara no bidê e não consigo me soltar... Telê que estava perto, ao lado de Maria, ouviu o pedido que havia sido feito em voz baixa e dispôs-se a ajudá-lo, quando viu parar junto ao portão a caminhonete do Correio. O carteiro desceu. Era um velhinho fardado, barrigudo e jovial. Entrou calmamente e vendo as duas moças encaminhou-se sorrindo a elas. Chegando a três passos de distância estacou de repente. Percebeu aqueles pés saindo do basculante entre a cabeça das duas. Esfregou os olhos... Obviamente não estava acreditando no que via. — Boa tarde, senhoras... Sou o carteiro. — Estou vendo. Boa tarde — respondeu Telê ansiosa para se ver logo livre daquela presença inoportuna... — Uai! Moças... aqueles são pés de gente, né? — perguntou o velhinho apontando para os sapatos imóveis de Fulgencio. — O que o senhor queria que fossem... pés de vaca ou de abajur? — Sim... oh! Não... Quero dizer, não importa, mas ... estão do lado de fora... — O senhor os prefere do lado de dentro? — Madama... para mim é o mesmo... Mas, quero dizer... Oh! Quero dizer... — Pois não. Diga! — retrucou rápida Telê.
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“Porém seus pés ficaram presos do lado de fora do basculante “.
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— Ele está aí por quê? — perguntou o carteiro com um fio de voz e já manifestando uma certa inquietação. — Ele quem, meu senhor? — O dono dos pés, madama. — Bem. Ele está com o rosto no bidê. O carteiro arregalou os olhos e abriu desmesuradamente a boca. Era visível que queria dizer alguma coisa, mas não encontrava palavras. No fim prosseguiu, gaguejando: — Oh! Desculpe-me se mal lhe pergunto, madama, mas ele usa o bidê para o rosto? — Bom. Ele pode usá-lo como bem entender. O senhor faz alguma objeção ou tem algum preconceito? — Sim, sim... não, quero dizer... Ah! Eu não tenho pre... pre... o pre... que a senhora falou. Na verdade eu nem tenho bidê... Eu queria só aprender... — Mas o senhor quer aprender o uso do bidê hoje, aqui, comigo? — perguntou Telê com um tom entre o suave e o maternal. — Não. Não. Uai! Madama... Quem sou eu... Só vim entregar a correspondência, sou o novo carteiro — respondeu o pobre homem já engasgado, mexendo convulsivamente na sua bolsa, retirando alguns envelopes e entregando-os a Telê. — Obrigado, amigo. Estão entregues. São cartas simples e não preciso passar recibo. Boa tarde. Passe bem! Volte sempre! *** Maria observava em silêncio e divertida o modo decidido com que Telê se livrou do carteiro e a velocidade com que este saiu. Em seguida ajudou-a a tirar os sapatões de Fulgencio, que ouvira todo o diálogo permanecendo quieto e silencioso. Uma vez libertado examinou onde estava. Um pequeno banheiro sem expressão. Entreabriu cautelosamente a porta. Ouviu vozes no interior da casa. Em tom baixo. //
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“Então, na realidade o Alvaro está em casa – pensou Fulgencio – tem visitas e... não abre a porta para ninguém! Muito estranho e mais suspeito ainda.” O detetive pôs vagarosamente a cabeça para fora da porta. Esta dava para um corredor que ia até a sala, de onde provinham as vozes. Prudentemente, sem sair do banheiro (e o detetive sabia que este é o lugar mais seguro por ser o menos frequentado) procurou distinguir melhor as vozes. Agora eram mais nítidas. “Uma masculina... devia ser o Alvaro. Outra feminina... de quem seria? Da Silvia? Estavam discutindo. Posso ter dois pássaros numa mão só pensou Fulgencio - mas deverei ter cuidado, senão o pássaro acabo sendo eu...” A discussão na sala estava agora mais acalorada. O detetive ouvia claramente as frases. Quem estava falando era Alvaro: — Sinto-me cansado de ser tratado por ti como um criado ou um escravo! Mas estou decidido. Me libertarei para sempre pela morte. A TUA morte! — Atira se tiveres coragem! — respondeu Silvia e continuou - atira neste meu ventre que abriga a carne de tua carne... “Como esta Silvia é dramática! Deveria dar uma esplêndida atriz... estou muito interessado no desfecho” - pensou Fulgencio. Alvaro respondeu com voz soturna: — Um filho? Não é meu! — São DOIS porque são gêmeos e são teus! Teus! — respondeu Silvia desta vez soluçando freneticamente e gemendo. “Se ela continuar a se angustiar dessa forma acabará tendo xifópagos” — murmurou o detetive sempre pronto a tirar conclusões. Ela prosseguiu, após um lamento que parecia um mugido: — Ouviste?... São teus e são gêmeos... Alvaro interrompeu: Se é difícil acreditar que UM seja meu, imagina DOIS! Pelo menos um deles é de teu amante, o Zé Zebedeu. Chega! Não quero saber de mais nada! Toma! //
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Fulgencio ficou esperando o estalar de uma bofetada. Enganou- se. Ouviu três disparos surdos e sucessivos de uma arma de fogo. “É um Colt 45, sem dúvida – pensou – Deve ter mais três balas na arma. Eu que me cuide...” — Aaai! Uiii! Oooi!... Estou morrendo — gritou uma voz sufocada como num gargarejo... Logo depois se ouviu o forte baque de um corpo tombando. “Pelo barulho da queda a Silvia deve ser bem gorda – deduziu o detetive – Lá se foram, ela e os gêmeos...” Apesar de sua profissão e da frieza com que a exercia, Fulgencio se sentia um pouco emocionado. Afinal ele tinha presenciado, não pelos olhos, mas pelos ouvidos, um crime brutal. De repente sua carga emotiva se desvaneceu instantaneamente ao ouvir uma conhecida musiquinha infantil, acompanhada pelo refrão: “Atirei o pau no gato-tô Mas o gato-tô Não morreu-reu-reu Passou pomada-da E curou-se-se CONTRA CONTUSÕES, POMADA BIROKA... Miauuu!” “Como fui bobo” – sibilou Fulgencio entre os dentes, apertando o rosto entre as mãos – acabei de ouvir o final da novela das cinco. É por isso, por ser tão interessante e eu que o diga pois fiquei tocado, que o Alvaro não abriu a porta... Mas agora tenho que sair rapidamente daqui, pois é logo após a novela que os telespectadores fazem o seu merecido pipi...” *** Sem fazer o menor barulho saiu do banheiro e rastejou pelo corredor na direção oposta à sala. Encontrou a porta aberta. Dava para o quarto em cujo interior havia uma cama. Fulgencio não perdeu um segundo. Meteuse debaixo dela e aguardou. Passaram-se minutos... Nada aconteceu. //
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Na casa ninguém se movia. Voltou, então, para o corredor já familiar e sempre rastejando silenciosamente chegou até a entrada da sala. Sem se levantar olhou para o interior do aposento. Lá estava, num canto, a televisão ligada perto do sofá. No centro uma ampla mesa com cadeiras em volta. Numa delas, sentado, um homem. Devia ser Alvaro. Tinha a cabeça apoiada em seu braço direito que, por sua vez, estava estendido sobre a mesa. Devia estar dormindo a sono solto. “É o cúmulo” – pensou o detetive – adormecer durante uma novela tão movimentada...” Cuidadosamente e sempre rastejando Fulgencio se aproximou do homem que continuava imóvel e levantou os olhos para o seu peito. Não aparentava haver o menor indício daquele movimento rítmico característico da respiração dos que dormem e dos que não dormem. Tocou de leve com as pontas dos dedos o tornozelo. Era frio. Já perdendo o receio apalpou-lhe a perna. Estava dura. Levantou-se, então, e já sem medo algum olhou para a parte visível do rosto, a que não estava em contacto com o braço. Estava branco. — “Algor, rigor, livor” — proferiu para si mesmo — frigidez, rigidez, palidez, os três sintomas que desde a Antiguidade definem a morte. Passou-lhe pela cabeça outra definição lida algures, moderníssima mas ridícula... “morte é o estado peculiar do corpo no qual nenhuma reestruturação funcional é possível...”. “Agora sim, finalmente sei por que ele não veio nos abrir a porta” – pensou o detetive – “as feições dele parecem as mesmas daquele cantor de tango” que vira perto da casa-rolante, pelo telescópio. “Mas... será mesmo o Alvaro? Quem pode dizê-lo com segurança é sua ex-mulher Maria.” Fulgencio abriu a porta da sala que dava diretamente para o exterior e chamou as moças. — Estamos AQUI FORA, sozinhas e preocupadas — disse Telê. — Até que enfim você se fez vivo. O detetive respondeu impassível:
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— Em contrapartida AQUI DENTRO alguém não pode fazer-se vivo, porque está morto... Entrem, mas, por favor, não toquem em nada, absolutamente nada. Virando-se para Maria continuou: — Peço-lhe que olhe bem para o cadáver e diga se reconhece nele seu ex-marido, o Alvaro. Maria entrou, lançou um olhar espantado para a parte visível do rosto. Seus lábios tremeram. Disse, num sussurro: — É... É... — e desmaiou, caindo espichada no chão. Telê tirou-lhe os sapatos, era a segunda vez naquele dia que tirava os calçados de alguém. Alargou-lhe o cinto, levantou sua cabeça e apoioua na sua bolsa de pano. Fulgencio foi até o banheiro e de lá trouxe o seu lenço embebido em água. Com ele massageou o rosto de Maria que, aos poucos, voltou a si. — Maria, não fale para não voltar a se emocionar. Deite-se no sofá, relaxe e fique descansando. Faremos uma inspeção neste local e partiremos — disse Telê. O detetive examinou os papéis que estavam sobre a mesa, os da cesta de papeis ao lado, e o cadáver, sem tocá-lo. Sobre este se deteve mais demoradamente. Aparentemente não apresentava sinal de violência. Olhou para o braço direito. A manga larga da camisa estava encobrindo quase totalmente um pequeno revólver 22. Com cuidado e a ajuda de seu canivete trouxe para fora a arma. Segurando-a com um lenço, que pediu emprestado a Telê, desencaixou o tambor. Tinha uma cápsula deflagrada. Cheirou a boca do cano. Ainda conservava o odor peculiar da pólvora. Encaixou o tambor e recolocou o revolver exatamente no local onde se encontrava antes, debaixo da manga. Em seguida pegou a sua trena e com delicadeza enfiou uma ponta por baixo do queixo do defunto, no diminuto espaço existente entre o seu rosto e o braço sobre o qual se apoiava. Segurando a alça formada pela ponta e pela parte restante da trena levantou com cuidado a cabeça. Examinou a parte que estivera escondida. Lá estava na testa, em cima do ouvido direito, o pequeno furo típico do calibre 22 e um minúsculo grumo de sangue. //
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O projétil havia perfurado o crânio, mas não o havia transpassado. — Cabeça dura ou munição velha... — sentenciou Fulgencio virando-se para Telê e continuou — É... pelo menos ele viveu imune à hemofilia e ao diabetes, porque seu sangue coagulou extremamente bem... Tudo leva a crer ter cometido suicídio: a posição do corpo, a localização do ferimento, a presença da arma, sua situação e uso recente... Só falta verificar se a bala alojada na cabeça é a que saiu do revólver. A perícia policial o fará. Outros detalhes, como a presença de pólvora na zona do ferimento, já não têm tanto valor probativo... — Esses são os indícios circunstanciais — disse Telê e prosseguiu — Há ainda a favor do suicídio o momento psicológico. A situação financeira do Alvaro era precária. Enquanto esperava lá fora examinei as cartas que o simpático carteiro me entregou. Sem abri-las, consegui ler por transparência se não o seu conteúdo, pelo menos o “assunto do conteúdo”: uma ação de despejo, que deve ser desta casa e mais a retomada de sua casa-rolante que, parece, estava penhorada... — Muito bem, Telê. Não quero ser o que os italianos chamam de “guastafesta” ou seja, estragador de festas. Mas ouça-me com atenção: quando as aparências conduzem todas, monótona e uniformemente, numa única direção, DESCONFIE porque aí é que está o perigo! É sinal de que alguma coisa ou alguém está interferindo artificialmente, mudando o curso natural das coisas. A natureza e o acaso sem a intervenção externa não costumam convergir aguda, constante e precisamente numa meta, ponto ou alvo predileto. Só o homem o faz. Sem querer sair do assunto, analogamente o digo: é por isso que o universo não tem retas, mas o homem as traça. Não tem curvas perfeitas, mas o homem as fabrica e, diria mesmo, não tem melodias, mas o homem as compõe. A não ser que você acredite na “música das estrelas” de Pitágoras, aquele filósofo grego... — Por favor, Fulgencio. Estamos na presença de um defunto e de uma moça que passou mal. Não é ambiente adequado para divagações filosóficas. Diga-me sucintamente: onde quer chegar? *** //
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IX
O detetive, com ar de quem se dispõe a ensinar o beabá a uma criança
mongoloide, encarou Telê e continuou:
— Telê, querida Telê, este suicídio é PERFEITO. O movente, a execução e o resultado combinam, se entrosam e harmonizam demasiadamente. É o suicídio mais lindo que já vi, se pode haver beleza num ato como este... É o único suicídio previsto e anunciado por escrito por terceira pessoa. Veja este cartão aqui na mesa, perto de seus olhos e dos olhos do “de cujus”... E, antes de lê-lo, observe que tem a data de hoje. Com ar um tanto incrédulo Telê leu: “Alvaro, antes de te suicidar, procura-me. Ex-tua Silvinha” Fulgencio não deu trégua e continuou: — Você há de concordar, Telê, que algo não cheira bem e não é por causa do defunto aqui presente. Ou melhor, é por causa dele, mas em outro sentido. — Mas Fulgencio, este bilhete estranho e cruel pode estar somente revelando a verdadeira intenção de Alvaro, a de se suicidar. — Revela — interrompeu o detetive — a vontade de alguém, no caso de Silvia, tornar pública uma pseudo intenção da vítima. Silvia quer fazer crer que Alvaro COGITAVA o seu suicídio. Logo, cometê-lo seria uma consequência não só possível, mas provável. Completando Descartes: não só quem “cogita, existe”, mas quem cogita não mais existir pode facilmente cortar a sua existência. En passant, note a astúcia da palavra EX-TUA. Silvia quer dar a entender a quem de direito, a Polícia, que não tem mais nada a ver sentimentalmente com Alvaro. Portanto, que não indaguem muito dela a respeito dele... — Mas Fulgencio, se a Silvia pretende fazer crer que não estava mais ligada ao Alvaro, por que então lhe faria chegar às mãos este bilhete? //
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— Se perguntarem isso à Silvia, dirá que apesar de ter cortado sua relação com Alvaro, muito bondosamente imaginara esse meio, o cartão, para tentar evitar o suicídio que julgava iminente. Isso, não pelo amor que não mais existe, mas em respeito e homenagem ao amor passado. Tem mais: seria absurdo alguém entregar em mão, diretamente, um bilhete com esses dizeres, pois seria mais lógico e prático expressar de viva-voz o seu conteúdo. Assim sendo, não ficaria admirado se ela disser que o remeteu pelo correio... — Fulgencio, embora o Correio não seja tão eficiente, pois a carta, datada de hoje, hoje mesmo está aqui, quem pode afirmar que não veio por via postal? — Bem, pode-se provar que algo foi postado, mas não que NÃO O FOI... Contudo há um forte indício de que realmente o cartão não passou pelo Correio. Veja os documentos na mesa. O defunto tinha o hábito de conservar os papéis nos respectivos envelopes a ele remetidos. Essa é uma forma de arquivar como outra qualquer. Os papéis que estão sem envelope são os não recebidos pelo correio. Exemplo: esta conta de telefone, aquele talão de jogo de bicho e... o bilhete de Silvia. — Ela poderia alegar —disse Telê — não ter encontrado o Alvaro em casa e, então, ter deixado o bilhete debaixo da porta... Alvaro poderia, após tê-lo lido, ter entrado em desespero assim mesmo, e ter-se matado sem procurar Silvia... — Acontece que a Silvia ANTES de ter escrito esse cartão tinha começado a redigir este outro — e mostrou a Telê quatro pedaços de um bilhete — juntando-os, você vê um cartão igual ao anterior, com a mesma data de hoje e apenas com uma letra Q... — E daí, Fulgencio? O detetive continuou, imperturbável: — Ela ia escrever “Querido Alvaro...”, mas se arrependeu do “Querido” pois lhe pareceu comprometedor. Rasgou o bilhete em quatro pedaços e jogou-o nesta cesta de papeis. Perigo não há, deve ter pensado, porquanto o bilhete nada contém. Mas ele TUDO CONTÉM para um profissional como eu... //
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“...quatro pedaços de um bilhete - [...] e apenas com uma letra Q...”
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— Então, gênio meu — disse Telê — você chegou à conclusão que Silvia escreveu os dois cartões, o definitivo e o primeiro, aqui. DEPOIS DO ALVARO ESTAR MORTO! — Sim — respondeu Fulgencio — depois de TÊ-LO MORTO. — Fulgencio, não é que eu queira defender uma mulher a todo custo – disse Telê – mas pode ter-se passado o seguinte: ela, como amante de Alvaro, tinha a chave da casa e portanto poderia ter entrado nesta sala. Vendo-o morto se apavorou, com medo de ser incriminada, pois alguém a podia ter visto entrar. Daí escrever o bilhete. Se houve um rasgado e outro definitivo não tem importância. Uma mulher nervosa pode acertar a redação somente após duas ou mais tentativas... ... — Sim — disse Fulgencio com um sorriso seráfico — aceito a tese da moça nervosa e receosa de maus julgamentos. Ela tão pura... nada devia mas tudo temia... Responda-me, porém: por que, afinal, ele se matou? — Ouça, Fulgencio, as cartas que foram entregues pelo cordial carteiro, mais algumas que você deve ter fuçado na mesa e na cesta de papéis, mais as declarações de Maria, que por sinal... veja... adormeceu, coitadinha... provam que a situação financeira do defunto era ruim. — Ruim não. Péssima! — retrucou o detetive. — Daí — prosseguiu Telê — o seu desespero e consequente suicídio. A existência do bilhete é um fato puramente marginal, acessório e irrelevante. — Telêzinha... — Não me chame assim... não gosto! — respondeu a advogada, sorrindo com aquele seu jeitinho de mineira. —Telêzona esqueça o bilhete, já que é marginal e etcétera. Resta, porém, para você, o importante, a motivação do suicídio; o desespero e a consequência do desespero, o suicídio. Certo? — Certo Fulgencio. Mas não imite o Conselheiro Acacio ou o Monsieur de La Palisse, aquele que “quinze minutos antes de morrer estava vivo”. — Doutora, ouça-me: se o Alvaro, porque desesperado, suicidou-se, não iria interromper uma preocupação particular, a das suas CUECAS, para fazê-lo! Simplesmente não teria se preocupado com as ditas! //
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— Explique-se Fulgencio, você parece um conta-gotas. Solte tudo! — Telê, eu estou explicando à medida que você o pede ou o assunto o requer... Vou continuar: olhe para este papel, ainda na Remington, na mesa. Telê olhou. Viu uma folha no rolo da máquina de escrever. Depois da data, que era a do dia, leu: “Prezada Isaura. Deixo no saco: 4 lenços, 3 fronhas, 3 toalhas de banho, 3 toalhas de rosto, 5 camisas, 2 cuecas. Estão faltando 3 cuecas. Favor” A carta estava bruscamente interrompida. — Então Teleeeê! Você está muda? Você acha que os homens se preocupam com suas cuecas antes de se matarem e interrompem uma reclamação a respeito delas para fazê-lo? Ou será que o desespero motivado PELA FALTA DE 3 CUECAS foi que o levou a escolher a hora e o local de sua morte? — Fulgencio, não seja tão sarcástico! Você me convenceu. Ele não se matou. Foi morto. Só pode ter sido Silvia. Tentou mascarar com o bilhete. Como faremos para provar tudo isso à Polícia? — Telê, caberia a ela descobri-lo. Teoricamente, porém, seria melhor metermos a mão sobre a Silvia e induzi-la a confessar. — Em primeiro lugar devemos avisar logo a Polícia, Fulgencio. São quase seis horas... — Nós sabemos que a Polícia é formada por dois tipos de elementos, ambos honrados: os diurnos e os noturnos. Como estamos no crepúsculo, poderemos nos defrontar com um ou outro tipo. Se por acaso nos embatermos com um Delegado ou Comissário “diurno”, ele certamente, pensando no seu iminente e merecido repouso ou lazer, preferirá tomar qualquer providência pela manhã. Tanto vale, então, avisar a Polícia amanhã. Se encontrarmos um “noturno” ele se disporá a promover logo as diligências e interrogatórios, que se estenderão noite adentro e madrugada afora, com a provável convocação de Maria, que passou mal... Olha, ela continua dormindo. Talvez, também, do próprio doutor Narciso e da minha pessoa que precisamente esta noite tem um compromisso inadiável com Bubú. Logo, também nessa segunda hipótese, seria melhor avisar a Polícia amanhã... o que poderá ser feito bem cedo... //
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— Já sabia. Sabia que você tinha algo a fazer esta noite, tem consultado com frequência o relógio... disse Telê rindo maroteiramente — Quem vai guardar o cadáver? Fulgencio inquiriu muito sério: — Ele vai fugir? Ou vão furtá-lo? — A prudência aconselha que não se deixe sem custódia o teatro de um crime — respondeu Telê. O detetive coçou a cabeça, depois o queixo e disse com uma expressão iluminada: — Que tal pôr o Delio a “custodiar o teatro do crime”? É uma mera sugestão... Telê respondeu: — Feito! Sei que posso contar com ele - e acrescentou baixinho – desde que seu carro pegue... Já está ficando escuro. Vamos acordar Maria e sair daqui, um de cada vez. O último bate a porta. Nos encontramos no meu carro. Mal tinha terminado a frase o telefone ao lado do sofá tocou. Maria despertou de repente. Instintiva e mecanicamente estendeu a mão em direção ao fone e atendeu. Na penumbra reinante não percebeu o ar de desaprovação de Telê e Fulgencio. — Alô!... Alô... Ouviram minha voz e desligaram — comentou. — Foi um erro você ter atendido — disse Telê e prosseguiu — Alguém, agora, mesmo não sabendo que aqui há um morto sabe que há pelo menos um vivo. Se for a Silvia saberá uma coisa e outra... Era voz de mulher? — Sim — respondeu Maria — Desculpem. Espero não causar danos ou dissabores... — Por via das dúvidas e por uma questão de cautela vou levar comigo o rol para a lavadeira e os dois bilhetes da Silvia — disse Fulgencio — São as únicas provas, embora indiretas, de que houve um assassinato e não suicídio. Telê retrucou: — Você correrá o risco de ser acusado pela Polícia de desfigurar o local do crime... //
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O detetive não se perturbou: Seja o que Deus quiser. Correrei o risco, mas não deixarei os documentos aqui. Quem nos garante que Silvia, arrependida de ter escrito aquele bilhete, o que foi uma burrada, não venha aqui furtivamente à noite apanhá-lo? Bem gente... vamos! Já sinto um cheirinho que parece provir do defunto... *** No carro, Maria já refeita foi posta a par das conclusões a que tinham chegado Fulgêncio e Telê. Esta a deixou na casa de sua amiga, a exempregada da mãe. Despediu-se demonstrando à advogada uma imensa gratidão e não escondeu a esperança de, em breve, talvez dois ou três dias, poder voltar para casa e abraçar longamente o seu Narciso. Distante dele sentia o quanto o amava. Telê levou Fulgencio à sua residência. Despediu-se recomendando-lhe ir no dia seguinte, bem cedo, à Polícia e conduzi-la à casa do finado Alvaro. Ela, Telê, aguardaria e ficaria à sua disposição. Sozinha, dirigiu-se ao seu escritório onde Delio a estava esperando, pois só encerrava o expediente com a sua chegada. — Boa noite, Delio! — Salve, doutora Telê! Seja bem-vinda! Aqui tudo bem. Que notícias a senhora traz? — Para você, uma boa e uma ruim. — Por favor, comece logo pela ruim, doutora! — Delio, será que hoje seu carro pega e anda? — Dona Telê, está afiadíssimo! Um bólido a seu serviço! Quer que eu vá competir na Paris-Dakar? Telê olhou para o céu e respondeu: — Não precisa tanto! Quero apenas que VÁ ESTACIONAR em frente à casa de Alvaro Arantes, o ex-marido de dona Maria, e vigie discretamente toda a noite, até manhã, para que não entre ninguém. Aqui está o endereço. //
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— Serei um vigilante indormido! Mas doutora, se alguém quiser sair da casa eu deixo? — Ninguém sairá, Delio, pois na casa só há um cadáver, o do próprio Alvaro. — Meu Deus! E eu que tenho horror a defuntos... — Você não precisará vê-lo. Está no interior da casa que, por sua vez, está trancada. — Mas doutora, se a Polícia chegar de repente, que é que eu faço? — Ela não vai chegar de repente. Irá amanhã cedo junto com o Fulgencio. Quando ela aparecer você, disfarçadamente, irá embora. Só isso. — E qual é a BOA notícia, dona Telê? A de haver somente um defunto? — Delio, esse serviço é extraordinário, portanto você fará jus a uma gratificação especial e ainda terá folga amanhã para um merecido descanso. — Ainda bem, doutora. Dona Telê, ouça... quero lhe fazer um pequeno pedido... posso levar minha prima? — Bem Delio, se isso não influir na qualidade da sua “vigilância indormida”, tudo bem. Mas desculpe a pergunta: por que você quer levar sua prima? — Já que estarei PARADÃO tanto tempo, não ficarei sozinho e aproveitarei para lhe ensinar inglês. — Tudo certo, Delio. Mas... desde quando, é só uma curiosidade minha, sabe inglês? Outro dia você nem sabia se a palavra delicatesse era inglesa ou francesa... — Doutora, andei recebendo umas aulas e as estou repassando para a prima... Como a senhora sabe, é ensinando que se aprende. E eu tenho uma vocação especial para o ensino... Ainda chegarei a ser professor de línguas. Mas, mudando de assunto, me tire uma dúvida dona Telê: como é que o Alvaro Antunes ficou defunto? — Delio, amanhã lhe contarei tudo. São quase oito horas. Vou comer alguma coisa na lanchonete aqui embaixo e irei até a fazenda do doutor Narciso. Prometi dar-lhe ainda hoje notícias de D. Maria e não poderei fazê-lo por telefone, pois o dele está com defeito. Boa noite e boa aula. Juízo, hem! Diga-me, por acaso sua prima é menor? //
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— Que é isso doutora! “Por acaso” é mais velha que eu... Boa noite e até amanhã minha chefe querida! *** O doutor Narciso recebeu Telê com sua costumeira fidalguia. Estava ansioso para falar com ela. A advogada foi sóbria nas palavras. Contou-lhe apenas o essencial. Tinha estado com Maria e a tinha encontrado bem de saúde apesar de traumatizada. Tinha certeza dela ser uma vítima inocente e, de certa forma, ingênua. Falou das chantagens do seu ex-marido, Alvaro, morto recentemente de forma violenta, muito provavelmente assassinado. Havia uma pessoa por trás da chantagem: a amante do finado. Tudo levava a crer ser ela a assassina. A Polícia entraria em diligências no dia seguinte e ela, Telê, confiava que tudo ficaria esclarecido em pouco tempo. Aconselhou doutor Narciso a guardar segredo, por enquanto, do que lheestava narrando. Nada havia em contrário que Maria voltasse logo para casa, porém Telê julgava conveniente esperar algumas horas para que se refizesse completamente do trágico espetáculo visto àquela tarde. No ínterim, se houvesse necessidade dela depor na Polícia, Telê a acompanharia e lhe daria assistência. Narciso ficou comovido. Sua fisionomia austera não deixava transparecer emoção alguma, porém uma lágrima escorria lentamente de sua face enquanto fixava longamente o retrato da mulher na parede do salão. Telê percebeu. Procurando dar outro rumo à conversa perguntou: — Quanto ao seu telefone “enguiçado”, o que resolveu? — Ah! Doutora Telê, amanhã cedo recolocarei os “miolos” nos fones, antes de acompanhar mamãe à fazenda de sua tia, a irmã do bispo, em Borbulheiras, a uma hora de Sarminho. Convenci-a a passar lá alguns dias para espairecer... Ela gosta muito da tia e das primas. A estada lhe fará bem. Porém só concordou em ir após ter eu prometido levar flores, diariamente, ao túmulo de sua querida governanta... a ladra... //
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— Escute, doutor Narciso, entendo a sua hostilidade, mas em sã consciência Helena não pode ser considerada in totum uma má pessoa. Ela fez feliz sua mãe. Se dona Ofelia tem saudades dela e lhe devota gratidão é porque recebeu amor... Penso que esses sentimentos devem ser preservados. Basta não revelar-lhe o mal que Helena fez nos últimos dias de sua vida, certamente fruto de um acesso subitâneo de loucura e não da sua personalidade. Saibamos perdoá-la, doutor Narciso, como perdoamos os sempre doidos que ao contrário... têm acessos de lucidez. — Doutora, me convenceu... pelo seu coração, são seus nobres sentimentos e pela sua mente, é seu raciocínio silogístico. A senhora tem em proporção harmônica o esprit de finesse e o esprit de geometrie... Feliz o homem que algum dia há de conhecer o que a senhora, tenho certeza, também tem: o esprit d’amour... *** Dirigindo o seu carrinho para casa, de volta da fazenda de Narciso, Telê se deixara embalar pelas palavras doces e finais do fazendeiro. Esprit d’amour... – e pensava – Sim, o amor que “movimenta o sol e outras estrelas”, na ideia de Dante... o amor que fez Picasso dizer “se não houvesse mais nenhuma criatura no mundo amaria uma planta ou a campainha de uma porta...”. Esse amor que é uma constante no relacionamento de Narciso e Maria. Bonito casal... E ela, Telê, se sentia feliz em colaborar para sua reunião. O caso, do ponto de vista profissional, parecia praticamente resolvido. Tratava-se agora apenas de convencer a Polícia, prender a culpada e enterrar o morto. Telê esta noite descansaria gostosamente. Antes porém de ir para casa pensava espairecer um pouco, para relaxar as tensões daquele dia agitado. Talvez telefonasse para seu amigo italiano, ou fizesse uma visitinha à sua vizinha, uma simpática arquiteta. Com um ou com outra, a noite estava fria, beberia um bom conhaque, o verdadeiro. Já se imaginava com o copo na mão, admirando aquela cor de topázio, respirando seus eflúvios e agradecendo a Deus... *** //
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X
Trim... Trim... o tilintar do telefone acordou Telê. Eram sete horas e ela se encontrava no melhor do seu sono. Uma voz lamurienta e gaguejante se ouvia do outro lado da linha: — Alô Telê!... Sou eu, o Fulgencio... Estou preso na Delegacia... Preso incomunicável! — Mas Fulgencio... você está se comunicando... — Por pouco tempo. Para poder telefonar tive que entregar meu canivete ao carcereiro, o “Totola”. Ainda mais, precisei dar-lhe uma barrinha de chocolate, que tinha, para ele não ficar ouvindo nossa conversa... — Você tinha ficado sem dinheiro, Fulgencio? — Tive que dá-lo, para não ser autuado, Telê... — Mas Fulgencio, se você não foi autuado não poderia ser preso... — Contudo eu o fui... É por isso que estou telefonando... Você sabe como a Polícia daqui detesta os detetives particulares... — Isso é um absurdo Fulgencio, um absurdo rotundo! Se o Governador souber... — É o que eu lhes disse, Telê! — A quem você disse? — Aos dois policiais que me prenderam... Falei que você conhece pessoalmente o Governador... Sabe o que fizeram em resposta? — !? — Gargalharam, pintaram dois vastos bigodes num retrato do Governador e o penduraram na cela onde estou... — Bem, Fulgencio. Isso não deve ter abalado muito você... O importante é saber PORQUE foi preso.
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— Os dois policiais que me prenderam também não sabem, Telê... Devem decidir entre dois motivos. Estão discutindo muito e ainda não chegaram a uma conclusão. Um quer me prender por falsa denúncia de assassinato e violação de domicílio alheio, isto é, do pseudo-morto. O outro, embora aceite a denúncia como verídica, quer me prender por ocultação de cadáver... — Mas como, Fulgencio? Você não lhes exibiu o morto? — Como eu ia exibi-lo, Telê, se o furtaram? Surrupiaram juntamente com a televisão, a máquina de escrever, o revólver e a casa-rolante. Rasparam tudo... — Fulgencio, explique melhor, você não levou a Polícia até o local do cadáver? — Sim, Telê. Mas quando cheguei lá, o local estava SEM cadáver... — Quando você chegou não viu Delio com seu carro? — Que Delio, Telê? Que carro? Só havia na rua um chinês bêbado que cantava uma canção obscena e acabou preso também... — Isso não vem ao caso, Fulgencio. Você mostrou à Polícia a carta e os bilhetes que retirou de lá? — Não, porque então me prenderiam também por violação e furto de correspondência particular... Mas espere... “Totola”vem chegando. Vou negociar com ele mais alguns minutos de conversa. Tenho ainda para oferecer-lhe a minha gravata borboleta e uma esferográfica Bic... *** — Aló! Telê... Pronto! Estou de volta, “Totola” acabou me tirando os dois objetos. Você vem logo, né Telê? — Sim Fulgencio. Espero que pelo menos esteja numa cela individual. — Não Telê. Me puseram junto ao chinês bêbado que agora está dormindo e à “Ivonete”, um homossexual que me azucrina... — Mas isso é o triunfo do absurdo! Você não falou com o Delegado? Com o Comissário? //
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— O Delegado está de férias... O Comissário ainda não chegou. O que é pior: um dos policiais ainda disse que se até amanhã eu não apresentar o defunto vai trocar a “Ivonete” pela “Bumbunzinha”... — Quem é “Bumbunzinha”? — Dizem que é uma tremenda ‘bichona’... um negrão com dois metros de altura... e quase a mesma largura. Prefiro a “Ivonete”... Vem logo Teleeê! — Daqui a pouco estarei aí, Fulgencio. Procurarei antes contatar Delio para saber o que houve e, principalmente, o que não houve, a fim de ter maiores dados para enfrentar a Polícia. Depois correrei para aí... Confie em mim. Tchau! *** Telê se vestiu rapidamente. Em seguida discou para a casa de Delio. Ninguém respondeu. Quando depôs o fone ouviu tocar a campainha da porta. Abriu. Era Delio em pessoa. Estava abatido, com aspecto entre o desesperado e o suplicante. — Bom dia, minha doutora. Muito bom dia. Desculpe se a incomodo, mas quero lhe explicar pessoalmente... A senhora não sabe o que me aconteceu! — Não Delio. Mas sei o que aconteceu ao Fulgencio, que por causa de sua “vigilância indormida” está no xilindró; também SEI o que acontecerá com seu emprego... — Que é isso, doutora?! Deixe-me contar... A senhora saberá como é terrível a força do DESTINO. É um fato tão sério que fizeram até uma ópera com esse título... — Por favor, Delio. Sintetize. Preciso soltar Fulgencio, tão logo você acabe de me explicar a “força do destino”!... — Bem doutora. Ontem eu estava quase chegando à casa do Alvaro, depois de ter apanhado a prima, quando o carro fez uma barulheira infernal e pifou... Pensei que o motor havia caído... De um orelhão telefonei para o Benicio, o mesmo que consertou seu carro. Tive sorte porque ele veio logo, mas dei azar porque ele anunciou que o conserto //
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ia durar umas três horas. Teria que reparar ou trocar... não sei bem porque não entendo nada de mecânica, o mancal da suspendida ou a suspensão do roleto. Enfim, algo parecido, e ainda um tal de plizete do virador ou, sei lá, do giratório... E Delio continuou: — Fiel à missão que a senhora me deu, deixamos o Benicio trabalhando no carro e fomos a pé até a casa de Alvaro. Tudo em silêncio. Tudo normal. A rua deserta. Notei que ao lado da casa havia uma casa-rolante abrigada sob um telheiro. Fazia frio, muito frio! Nós para cima e para baixo, vigilando e tiritando, tiritando e vigilando... A um certo momento reparei que do outro lado da rua, quase em frente à residência do defunto, havia um terreno baldio. Seu fundo dava para um Motel, cujas janelas permitem uma visão completa da casa do Alvaro. Então, até que o carro ficasse pronto, tanto valia vigiar na rua, enregelados, ou no Motel, abrigados no quentinho... Antes de sairmos do local tive a ideia de amarrar o lenço que a prima trazia na cabeça, no portão de entrada. Dei um nó todo especial, difícil de ser reproduzido. Assim, se alguém passasse pelo portão, eu, na volta, saberia... Bem, fomos ao Motel Meu e Teu... — Delio, estranho essas intimidades... Desde quando eu frequento os seus motéis? — Que é isso, Doutora? MEU e TEU é o nome do Motel... Quem é a senhora para frequentar meus motéis... desculpe... quero dizer... quem sou eu para frequentar os seus motéis... Não, não falei isso! Nada disso! Estou me confundindo todo!... Ia dizendo... Lá no Motel, sempre vigiando, aproveitei para dar minha aula à prima. A senhora entende, ensinar e aprender cansam... O cansaço nos fez adormecer. Quando acordei eram quatro horas da madrugada. Olhei pela janela e levei um susto; a casa de Alvaro estava iluminada. Então deixei a prima dormindo, me vesti rapidamente e... — Você precisa tirar a roupa para ensinar inglês, Delio? — Ah! Não. Sim. Quero dizer, só precisei vestir o sobretudo e o cachecol!... E corri para a casa do defunto. Cheguei a tempo de ver a casa-rolante saindo do portão, dirigida por uma mulher que tinha na //
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“...Antes de sairmos do local tive a ideia de amarrar o lenço que a prima trazia na cabeça no portão de entrada”.
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cabeça o inconfundível lenço da prima... Veja a senhora, não satisfeita em levar o veículo afanou também o lenço... — E também o cadáver, Delio... e tudo o que representa algum valor: televisão, máquina de escrever, revólver, talvez, quem sabe a maçaneta da porta. A Silvia é um verdadeiro “pente fino”... — Mas... como a senhora já conseguiu ter o inventário do furto e a identidade da ladra? — O “inventário” foi fornecido pelo Fulgencio pelo telefone. Já à “identidade” da motorista é dedução minha... Mas continue, Delio. — Bem. Corri atrás da casa-rolante, mas ela logo se distanciou. Ainda a vi, ao longe, entrar no posto de gasolina no fim da rua. Voltei para apanhar a prima, pois a senhora concordará que não podia deixá-la sozinha no motel. O que poderiam pensar dela? E o que poderia ela pensar se acordasse e não me visse? E Delio continuou: — Saímos e fomos diretamente ao posto de gasolina. Aqui entra a minha habilidade. A senhora deve ter percebido que tenho uma alma de detetive. Pois bem, com o meu savoir faire e a minha astúcia consegui saber do gerente que tal mulher, depois de reabastecer o veículo, havia telefonado a cobrar para Corumbá, para uma amiga ou parente e lhe tinha anunciado que começaria logo a sua viagem para lá... Agora a senhora há de reconhecer que, embora minha férrea vigilância tivesse sofrido uma interrupção, eu, em contrapartida, consegui saber que essa Silvia foi direto para Corumbá, informação essa que a senhora não teria se por causa de uma vigilância ininterrupta, ela não tivesse penetrado na casa. — Mas Delio, use a cabeça! Pense: se a Silvia tivesse sido impedida de entrar na casa não teria furtado o cadáver e portanto não teria fugido para Corumbá. — Doutora, isso é uma hipótese, nós não sabemos com certeza... Muita gente vai a Corumbá sem entrar naquela casa... De qualquer forma, doutora, há de perceber que compensei o pequeno deslize cometido. Ademais... a senhora não precisa pagar a gratificação extra e eu, como está vendo, não estou tirando folga hoje... Então, minha doutora? Ainda //
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gosta de mim, não é verdade?... Diga que sim, pelo menos com a cabeça... seja boazinha comigo... Por que olha desse jeito para mim? — É Delio — disse Telê sorrindo com aquele seu ar um pouco maroto e um pouco maternal — sua prima deve ter muita paciência para suportálo. Como se chama ela?... — PRIMA, doutora. Por quê? ***
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XI
A caminho da Delegacia Telê meditava sobre a situação presente . Era
escura com bolinhas negras...... “Há um homem assassinado, sem testemunhas e a respectiva assassina. Ambos estão em ‘lugar incerto e não sabido’, como dizem os escrivães no seu linguajar cartorial. Os únicos indícios do crime são subjetivos e seu portador está preso. Ela, Telê, não é parte legítima em fato algum. É apenas uma advogada encarregada de descobrir o paradeiro de uma desaparecida, Maria, que desaparecida já não é mais... “E... o preso que ia libertar é detestado por boa parte da Polícia... Os escalões inferiores desta tinham um relacionamento difícil com investigadores particulares. Além da natural rivalidade existente entre pessoas da mesma profissão mas em âmbito diferente, o do Estado e o privado, ainda pesava, no caso específico de Fulgencio, o ciúme de que era alvo por ter deslindado sozinho vários delitos.” Ademais desta vez, pelo que Fulgencio lhe falara pelo telefone, nem os critérios de análise dos policiais eram uniformes. Pelo contrário: eram ridiculamente antagônicos. Tinha pois razão o escritor Alvaro Lins – refletia a advogada – em dizer que “não temos verdadeiros romances policiais porque o gênero exige que a Polícia obedeça a normas e regras fixas…” Ao mesmo tempo, porém, Telê acalentava a esperança de encontrar o Comissário. Se ainda fosse o mesmo que ela conhecia, o doutor Rodrigo, tudo seria menos difícil. Ele era tido como profissional honesto, competente e... admirava-a. Ia se lembrando aos poucos que em certa ocasião fora elogiada por ele, de público, em pleno Tribunal... Até as palavras lhe vinham à mente: “Parabéns doutora! A senhora acertou contra o meu ponto de vista inicial... apontou o verdadeiro culpado. Nada e ninguém pode torcer o curso da sua vontade porque a senhora persegue o duplo alvo da razão e da justiça, ou seja, da Lógica e do Direito e ainda sabe fazê-lo com... ternura!” Telê relembrava e sorria. Naquele caso ganhou bem pouco mas a gratificação pessoal foi imensa. //
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Quase sem perceber havia chegado à Delegacia. Já chegara também o Comissário. Era o mesmo, o doutor Rodrigo em pessoa. Telê sentiu uma onda de satisfação percorrer-lhe a alma. Porém sabia que, de qualquer forma, não seria fácil obter dele tudo que desejava: a imediata soltura de Fulgencio e a perseguição à criminosa. O Comissário a recebeu imediatamente, quando ela se fez anunciar, e bem, quando lhe pediu um colóquio a sós. Telê se sentiu mais segura. Já sabia o que ia dizer e como dizê-lo. Esperou que o Comissário trancasse a porta da sala e se sentasse. Expôs a sua versão dos fatos ocorridos. Embora sucinta, abriu completamente o jogo. Tudo contou e nada escondeu. Ela sabia, como disse o escritor Ruskin que “quem tem a verdade no coração não há de temer que à sua língua venha a faltar a força da persuasão”. Quando na sua narrativa chegou ao ponto crucial: o conteúdo dos papéis em poder de Fulgencio, Rodrigo mandou que o mesmo viesse até ele trazê-los. Examinou os documentos detidamente, sem dizer uma palavra e sem dignar-se olhar para o pobre Fulgencio. Telê concluiu a exposição dos fatos e fez seus pedidos. O Comissário levantou-se silenciosamente e ficou de costas para Telê, olhando vagamente pela janela um ponto qualquer no céu azul daquela manhã invernal. Em seguida virou-se para a advogada e lentamente falou: — Bem, doutora Telê, em primeiro lugar — e apontou para Fulgencio que tinha ido se sentar num canto da sala — aquele homem está livre, com as desculpas da Polícia. Mas deverá ficar à minha disposição para eventuais depoimentos. Em segundo lugar, acredito em toda sua narrativa, aceito a sua interpretação dos fatos, ou seja, em resumo: que a tal cidadã Silvia seja a assassina do senhor Alvaro, embora não se tenha em mão um indício CON-CRE-TO - e soletrou a palavra – e nem o CORPO da vítima. Porém... e isso é importante, sem essas duas coisas falta-me amparo legal para fazer o que a senhora pleiteia, mandar prender a criminosa. E continuou: — Veja bem doutora, eu lhe darei agora satisfação sobre a minha negativa porque a aprecio... Como posso, e, ainda, com os parcos recursos de que disponho, arriscar-me a caçar pelas estradas do País uma cidadã que //
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provavelmente a esta hora já terá “desovado o seu presunto” e está simplesmente dirigindo, tranquilona, a casa-rolante de outro cidadão, vivo para os efeitos legais? E pense na ironia da situação: Alvaro, pelo que a senhora me contou, chegou a casar com Silvia, embora com documentos falsificados. Até se provar a nulidade do casamento ela é co-proprietária da casa-rolante e de tudo o que nela se contém. Isso, em virtude da costumeira “comunhão de bens”, sem a qual ela, esperta aventureira, obviamente não teria consentido em se casar... A rigor e é um detalhe, a Silvia só poderia ser acusada pela posse indevida do lenço da tal Prima... Na realidade, nem por isso, pois pode alegar ter encontrado o objeto abandonado no portão de SEU lar, o que não deixa de ser verdade... Então, diga-me, minha cara doutora, em nome de QUE ou de QUEM eu mandaria prender esta Silvia? O Comissário fez uma pausa e suspirou. Prosseguiu: — Em nome de uma carta anônima, porquanto não assinada, dirigida a uma suposta lavadeira igualmente não identificada e em nome de dois bilhetinhos, um deles de conteúdo surrealista: o estranho convite a um “morituro” para um encontro antes do seu suicídio, com uma expressão final de repúdio por parte de quem convida. Outro bilhete com conteúdo irrelevante: uma letra qualquer do alfabeto. O grande Pirandello, nas suas novelas, não escreveu nada de melhor... Como poderia eu, repito, prender a Silvia? Sem mandado judicial, sem flagrante do crime e, principalmente, sem o objeto do delito, isto é, CADÁVER? — E para prender o Fulgencio foi preciso isso tudo? — interrogou rápida Telê. — Não doutora! Aí houve um lapso de nossos inexperientes rapazes, pelo qual já pedi desculpas ao interessado aqui presente... Agora, não há de pretender que para compensar esse erro eu vá cometer outro. Atente para a minha posição funcional... — Estou atentando, estou atentando – repetiu Telê, levantando-se e ajeitando sua bolsa como quem se prepara para dar por encerrada a conversa e sair... Mas continuou sem se mover e num tom entre o solene e o irônico: //
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— Entendo, senhor Comissário... Há coisas que em obediência às Leis e principalmente às suas lacunas e, ainda, em respeito “aos poucos recursos do Estado” o senhor não pode fazer. Eu o louvo por isso! Louvo também o zelo com que defende sua “posição funcional”, isto é sua nobre carreira... Faço votos que, em assim fazendo, chegue rapidinho a Delegado e queira o bom Deus a Chefe de Polícia... — Mas doutora! — interrompeu o Comissário que também tinha se levantado – a senhora parece contrariada... Desculpe, não quero vê- la assim porque a considero e… quero vê-la assim porque fica ainda mais bonita... Seus lindos olhos cintilam, faíscam... Diga-me, voltando ao assunto, já que não sei como satisfazer seu pedido, o que fará? — Doutor Rodrigo, o que o senhor não pode fazer EU O FAREI! Sou uma simples advogada de poucos recursos, não vinculada à defesa de posições ou carreiras. O que defendo é algo diferente e pensava, quando aqui entrei, que o senhor me ajudaria na luta. Eu já me imaginava combatendo a seu lado... Lutar em companhia é bem melhor que sozinha. Infunde- se um ao outro a coragem e o reconforto. O sentimento de ter o antagonista mau e o de ter o objetivo bom se fundem num mesmo calor... Telê se aproximou mais do Comissário. Seus olhos já não fulguravam, mas fitavam Rodrigo com uma doçura imensa. A fisionomia parecia iluminada por uma luz interior que realçava a beleza dos seus traços. Prosseguiu suavemente: — Paciência... Enganei-me de porta ou de pessoa... — Doutora — interrompeu o Comissário com um ar entre o perplexo e o cauteloso — quero ajudá-la, mas como? Diga-me, sem retórica, por favor... — Doutor Rodrigo, “sem retórica”, se o senhor não pode colaborar para uma causa justa com a AÇÃO, faça-o pelo menos com a sua PRESENÇA! — Como? minha enigmática advogada? — Ouça doutor: desejo apenas o seu testemunho, o testemunho de um policial acima de qualquer suspeita. Se eu, com a ajuda do Fulgencio e com meus próprios recursos, puder alcançar a fugitiva, tenho certeza de poder... OU descobrir com ela o cadáver, OU desmoralizá-la a vivavoz e talvez obter até mesmo a sua confissão. Só preciso da sua presença //
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no momento em que conseguir algo. Aí, nesse instante, o senhor procederá como achar melhor, tomando notas em seu caderninho para um seu futuro testemunho OU dando-lhe voz de prisão se os seus brios, não de Policial, mas de Advogado e de Cidadão, o levarem a isso... O Comissário ouvia sorrindo e olhando o rosto de Telê. Em seguida coçou o cavanhaque à d’Artagnan e consultou rapidamente uma agenda na mesa de trabalho. Suspirou fundo e disse gravemente: — Minha bela doutora... o que insinua ou propõe é que eu vá com a senhora, no seu carro, atrás da fugitiva, em caráter pessoal e particular... Enfim, numa viagem de lazer. Mas o que vou explicar a meu chefe, o Delegado? — Doutor Rodrigo, o Delegado está de férias. Se é o seu Substituto, o que creio, o senhor É O DELEGADO.. Se não o é, explicará na volta. Aliás, não explicará, CONTARÁ o sucesso do qual o Delegado será também responsável por ser seu chefe. O senhor lhe dará um pouco da sua glória. Se, o que não acredito, houver insucesso, não haverá explicação a dar, pois como o senhor bem o disse: estará numa viagem particular de lazer. Nesse caso o que perderá? Algum tempo na minha companhia... Como sua colega de profissão, haverei de retribuir... — Senhora, não! — interrompeu Rodrigo — sua companhia ser-me-á muito agradável, não me fale em retribuição... Vejo que a senhora é uma diaba ou sereia, ambas sem rabo — prosseguiu, rindo, num sorriso franco e aberto, que Telê sentiu ser o de um homem reto, um daqueles cada vez mais raros aos quais repugna juntar o verdadeiro ao falso para obter o cômodo. — É... — continuou ele começando a arrumar sua mesa — Irei com a senhora para o bem ou para o mal. Só os deuses o sabem. É por essas e outras que não chego a Delegado... Farei o seguinte: solicitarei por rádio à Polícia Rodoviária que intercepte o veículo da Silvia. Levarei o meu pequeno rádio que capta ondas de baixa frequência, para sabermos onde e quando a fugitiva será bloqueada. Pensou um pouco e prosseguiu: Passarei o cargo ao outro Comissário meu substituto. Ele me deve alguns dias de férias. Tomarei algumas providências mais e dentro de vinte //
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“...Levarei o meu pequeno rádio que capta as ondas de baixa frequência…”
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minutos exatos estarei no restaurante no fim da rua. Lá nos encontraremos.Olhou para o relógio. Telê e Fulgencio fizeram o mesmo. Em seguida Rodrigo chamou o chefe dos detetives e ordenou em tom imperioso: — Providencie para que este homem — e indicou Fulgencio — seja ressarcido dos prejuízos que teve, dos quais são responsáveis o carcereiro e os rapazes do plantão. Dou-lhe cinco minutos precisos para isso!... Telê internamente vibrou, o que acontecia todas as vezes que assistia à reparação de uma injustiça. Fulgencio, que não havia aberto a boca, agradeceu e perguntou: — Doutor Rodrigo, antes de partir posso ir apanhar uma valise com meus apetrechos profissionais? — Que apetrechos, rapaz? — Disfarces vários, como bigodes, perucas, artigos de vestuário e etcétera... O comissário riu e respondeu: — Apanharemos em viagem... Depois retirou do cinto o coldre com o revólver e guardou-o numa gaveta. Trancou-a, levantou-se, deu uma última olhada em Telê e perguntou de chofre: — Afinal, seus olhos são verdes ou castanhos? Sem esperar a resposta saiu fechando a porta. Tornou a abri-la imediatamente. Ia-me esquecendo, doutora. Antes da viagem, se precisar do toalete, use o meu, no fundo da sala. E retirou-se. ***
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XII
A viagem transcorria tranquila. Telê dirigia e conversava animada-
mente com Rodrigo. Este acompanhava pelo rádio a transmissão entre as patrulhas e a Central de Informações, esperando ouvir a qualquer momento alguma notícia da casa-rolante. No banco de trás Fulgencio, todo encolhido, pouco falava. Preferia refletir sobre a melhor forma de abordar Silvia quando fosse localizada. “Chama-se Wagner Siqueira — meditava. Como descendente de alemães teria, psicologicamente, tendência a simpatizar com gente dessa nacionalidade. Então ele se faria passar por alemão. O seu chapeuzinho tirolês, na valise, dar-lhe-ia o toque teutônico. Seria um alemão e comerciante de carros... Os grandes bigodes postiços que colocaria lhe proporcionariam o aspecto típico do negociante honesto, como os bigodudos antepassados lusos de saudosa memória. Só precisava treinar um pouco mentalmente e consigo mesmo o sotaque germânico”. O que fêz. Para se situar melhor, indagou detalhes da conversa do dia anterior entre Telê e Maria. Finalmente adormeceu. De repente ouviu-se claramente pelo rádio a mensagem: — Patrulha 252 à Central. Avistada casa-rolante chapa GO-1183, dirigida por indivíduo do sexo feminino. Velocidade normal. Estamos a dez quilômetros do Posto Policial 17, na estrada de Passo Raso. Aguardamos instruções. Câmbio. — Central à Patrulha 252. Abordem o veículo. Verifiquem documentos. Escoltem-no até o Posto 17 onde ficará retido até novas instruções. Recado para o patrulheiro Pinote: esqueceu seu quepi e a merenda no alojamento. Câmbio. Telê e Fulgencio, que havia acordado, exultaram. Rodrigo foi mais cauteloso. Tinham ainda muita distância a percorrer, embora a casarolante andasse devagar. Telê acelerou, aumentando a velocidade de cruzeiro. A estrada estava vazia e a tarde serena. A serenidade que os Fados costumam conceder como suprimento para futuros momentos difíceis. //
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“O seu chapeuzinho tirolês, na valise, dar-lhe-ia o toque teutônico”.
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Finalmente, do alto de uma lombada, avistaram o Posto Policial e a casarolante estacionada com um guarda por perto. Numa janela do veículo uma figura de mulher. Fulgencio já estava caracterizado na sua nova personagem e tinha na mão uma pasta 007. Telê ao olhar para trás e vê-lo sério com o chapéu tirolês enviesado e os imensos bigodes não sabia se rir ou se atemorizar. Perguntou-lhe: — O que leva nessa pasta? — Dólares, dólares falsos — respondeu circunspecto Fulgencio. A advogada olhou para o céu, depois para o atônito Rodrigo e murmurou: — Seja o que Deus quiser... *** Pararam no acostamento antes do Posto, num ponto em que da casarolante não poderiam ser vistos. Rodrigo saltou do carro e se encaminhou sozinho para o Posto. Ia ver como estava a situação da fugitiva. Pouco demorou. Voltou com o semblante carregado. — Há problemas — disse — detiveram o veículo por mera deferência à nossa Polícia, mas não têm motivos para continuar a detê-lo. Aliás, só o veículo está detido. Silvia não, pois o estado da casa-rolante é bom e os documentos estão em ordem. Quando houver a mudança de plantão, daqui a uma hora, o veículo será liberado automaticamente. Podemos nos comunicar livremente com Silvia. Não há tempo a perder - concluiu. Virou-se para Telê e perguntou com um sorriso: — Doutora, como combinado a ação é sua. Que vai fazer? — Agora é comigo! — exclamou Fulgencio, saindo rapidamente do carro — Não se preocupem. Aguardem-me aqui. Com passo marcial e assobiando “Lili Marlene” caminhou em direção à casa-rolante. Telê acompanhou com o olhar a pena do chapeuzinho verde, até desaparecer atrás da curva. *** //
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Quando Fulgencio estava a poucos passos da casa-rolante, parou. Olhou para a mulher que continuava na janela. Era de estatura mediana, gordinha, ainda bonita. Tinha olhos estranhos, penetrantes e dominadores. Na cabeça o já famoso lenço sob o qual despontava na testa uma mecha de cabelos louros. O nariz levemente adunco junto a aqueles olhos, faziam lembrar vagamente a fisionomia de uma águia. A mulher encarou decididamente o Detetive. Este fez uma mesura com o chapéu, aproximou-se e deu início à conversa: — Bom tarrdes fraulein... isto é, senhorra... mim serr Fritz von Hoffen, comerciante de veículas e outros coisas. Querr venderr seu veículas? — O que eu quero é me livrar da Polícia que deteve minha casa-rolante — respondeu secamente a mulher. — Senhorra, vendendo veículas se livrarr de Polícia... — Mas fico a pé e sem a minha casa-rolante...oh! ...cara! — Imperturbável, Fulgencio voltou à carga: — Senhorra ficar sem veículas, mas... ficarr com ein grosse tutú. Mim pagarr dolars, que valem sempre mais... e non em dinheirra brasileirra, que vale sempre menos... — Diga, só por curiosidade – falou Silvia – quanto me pagaria? Fulgencio deu uma volta ao redor da casa-rolante, cofiou um bigode de cada vez e disse solene: — Sem verr por dentra, oito mil dolars. Se verr por dentra pode serr mais... A mulher sumiu instantaneamente da janela. Voltou logo após com uma maquininha de calcular na qual mexia freneticamente as teclas. No fim sorriu para Fulgencio e disse: — Entre... O detetive mal pisou na saleta, a parte principal da casa-rolante, sentiu um leve mal cheiro em parte mascarado por uma mistura de odores que pareciam ser de naftalina e creolina. Não teve dúvida. A mulher ainda não se tinha descartado do cadáver. Ótimo! Fingiu se interessar pelo estado de conservação das paredes e do piso do ambiente. Notou que lá estavam a televisão do Alvaro, sua //
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máquina de escrever e encostada num canto... a Vespa. A Vespa que Silvia tinha exigido de Maria. Mostrando-se satisfeito Fulgencio reiniciou a conversa: — Bonito veículas. Mim pagarr nove mil dolars... Silvia imediatamente rebateu, esfregando as mãos: — Só venderia por dez mil. — É carra.... carra... — repetiu Fulgencio – Mas mim aceitarr porque mim simpatizarr com senhorra... A mulher ignorou o galanteio e exclamou: — Eu disse VENDERIA, no condicional. VENDER mesmo, só se o senhor também comprar aquela Vespa, os móveis, os utensílios, tudo, enfim, que está aqui dentro. — Mim que fazerr com tanta cacarrecas? Do que estarr aqui dentro mim só ficar com... a senhorra! Silvia o fulminou com o olhar e explodiu: — Deixe de gracinhas! Eu só vendo nessas condições: tudo por quinze mil dólares e mais duzentos para a condução, pois vou ficar a pé. Total: quinze mil e duzentos dólares. É aceitar ou largar! Fulgencio respondeu sem pestanejar: — Mim só pagarr catorze mil e oitocentos dolars. A mulher abriu um largo sorriso, logo contido. Falou em voz alta: — Negócio fechado! Passe o dinheiro! — Antes de mim pagarr — disse Fulgencio — querrer fazer perguntas delicadas: senhora venderr também cadaverr? Silvia, ao ouvir essas palavras, estremeceu. Revirou os olhos para cima e para os lados e se apoiou na mesinha da saleta. Seu rosto estava branco. O detetive aguardava impassível o seu desmaio. Improvisamente ela suspirou e foi se refazendo. Olhou firme para Fulgencio e sibilando entre os dentes murmurou:
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— O senhor é um louco! Ponha-se daqui para fora! Já! O detetive permaneceu imóvel. Deu um pequeno bocejo para demonstrar descontração e prosseguiu calmamente: — Por que a senhorra zangarr? Mim perguntarr isso a todos as donos de veículas grandes e encontrarr de vez em quando bom defuntas à venda. Mim sempre pagarr bem em dolars. Mim ter comprrado cadaverr a quatrocentão paulista, a almirantas português... Senhorra dever saberr que um porr centos de veículas grandes terr defuntas a bordo. Silvia aos poucos tinha se acalmado e já manifestava um certo interesse pelo assunto. Perguntou: — Mas por que o senhor compra cadáveres? — Ah!... Senhorra... é um segredas, mas mim contarr parra senhorra: ser parra comerrcio interrnacional. Defuntas ser esvaziada e ir parra Bolívia com dentrro peças eletrônicos. Defuntas voltarr com dentrro cocaínas, heroínas, maconhas... Irr e virr, mudando semprre de roupas e de carra! Com barrbas, sem barrbas... — Mas senhor Fritz, a Alfândega não desconfia? — Non, senhorra... Alfândegas sempre abrirr caixão. Nunca abrirr defuntas... — Mas senhor Fritz, de qualquer forma isso é um crime! Fulgencio tranquilizou-a: — Senhorra, me entederr seu escrúpulas, mas mim não fazerr crime. Mim só negociarr honestamente cadaverr... Silvia chegou mais perto do detetive e falou-lhe em voz baixa, estranhamente suave: — Senhor Fritz, sem compromissos ou promessas, quanto pagaria por um cadáver? —Senhorra, depender da estado... cinco a oito mil dolars. A mulher não se conteve. Disse abruptamente: — Quero ver o dinheiro. Fulgencio, num piscar de olhos, abriu a pasta e colocou-a sob o rosto de Silvia. Os olhos da mulher brilharam ao ver, em perfeita ordem, os //
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pacotes de notas de cem dólares novinhas em folha. Não se controlou. Estendeu a mão e começou a alisar o dinheiro com a volúpia estampada no rosto. O detetive, num gesto rápido, quase brusco, puxou a pasta e fechou-a dizendo: — Senhorra, mim deixarr fazerr mais carrícias em dinheirra se mostrarr cadaverr.... Silvia, silenciosamente, levantou-se e fechou a janela. Acendeu a luz e deu dois passos em direção a um armário alto e estreito. Virou-se ligeiramente e retirou do sutiã uma chave. Abriu o armário. Lá estava o corpo de Alvaro, durinho, nu e molhado da cabeça aos pés de creolina. A boca entreaberta deixava ver bolinhas de naftalina. Nos ouvidos e nas narinas também. Um horror!! Fulgencio não se lembrava de ter visto algo tão horripilante. Porém não deixou transparecer o menor sinal de nojo ou emoção. Virou-se para Silvia e exclamou: — Bonito presuntas Porém não serr frescas! A mulher indignou-se: — O senhor paga pouco e ainda pretende defunto quente? O importante é que está conservado. Eu cuidei bem dele. Os seus orifícios naturais, todos mesmo, têm naftalina. Cada duas horas lhe dou um banhozinho de creolina misturada com perfume. O que o senhor quer mais? — Senhorra, oito mil dolars mim só pagarr se cadaverr serr de primeirra classe. Mim examinarr... Assim dizendo o detetive tirou do bolso uma lupa e com ar de entendido aproximou- se do morto. Inspecionou o corpo através da lente, sob o olhar ansioso de Silvia. Deteve-se na testa. Deu por terminado o exame, meneou a cabeça, fez hum...humm. Olhou severamente para a mulher e sentenciou: — Defuntas serr de terrceirra classe. Ter furrinha no cabeço, perto de ouvidas. Silvia visivelmente aflita interrompeu-o: — É um furinho à-toa. O resto da pele é perfeito. — Senhorra... Alfândega desconfiarr de furrinha... A mulher, inconformada, insistiu: //
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— Mas senhor Fritz, ele pode ir de chapéu! Logo percebeu sua tremenda gafe pela expressão do detetive e pelas suas palavras: — Senhorra, já viu defuntas em caixão com chapéu? Ridículas... O rosto da mulher de repente se iluminou como se uma ideia genial lhe ocorresse. Retirou o lenço da cabeça e estendeu-o a Fulgencio. Falou: — O defunto pode ir com este lenço. É de seda e bonito. Cedo-o por sessenta dólares. Ao todo o senhor me deve... — contou nos dedos e conferiu na maquininha — me deve... vinte e dois mil e oitocentos e sessenta dólares. Não é muito, pelo valor que o senhor leva. Pensando bem, não poderia me dar mais mil dólares pelo falecido? O detetive sorriu: — Senhorra... a múmia de Tutankamem se estiverr à venda ficarria mais barrata, com vantagem de serr já oca.... Nesse instante, uma bolota de naftalina se desprendeu de uma narina do morto. Caiu no piso e rolou lentamente até os pés de Silvia. Ela fitou a pequena esfera e encarou Fulgencio. Seus olhos já não eram aqueles prepotentes e arrogantes de antes. Pareciam esgazeados. A mulher esboçou um sorriso que era mais um esgar. *** Nesse momento, o detetive sentiu que havia chegado ao apogeu do drama. Ou seria uma farsa? Com habilidade, passo a passo, tinha levado a criminosa sem a menor violência ou coação a uma situação novelesca em que o grotesco se misturava ao absurdo e o hediondo ao ridículo. Mas para obter isso tinha praticado o embuste e o engano. De qualquer forma, a mentira fazia parte da profissão que abraçara. Porventura não mentia quando seguia um suspeito sem dá-lo a perceber? Não mentia quando se disfarçava em outra pessoa? Não mentia quando nas suas perguntas embutia armadilhas que induziam a uma só resposta?
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Contudo, há mentira e MENTIRA, por uma questão não de quantidade, mas de qualidade. A diferença entre uma e outra às vezes era sutil, mas Fulgencio sabia qual era. A primeira pertencia à esfera do lícito, a segunda do ilícito. O detetive percebia que agora, naquele dia e hora, ele se encontrava naquela faixa crepuscular existente entre as duas e não pretendia ultrapassá-la. Havia chegado o momento de desmascarar a criminosa e a si mesmo. Ambos continuariam o jogo, frente a frente, mas despojados de suas falsidades. Acabara a primeira fase da armadilha. Começaria a segunda, a do desfecho, que ele previa curta. *** Fulgencio deu uma última olhada à bolinha branca no chão e foi se sentar numa das duas cadeirinhas ao lado da pequena mesa. Com um gesto de mão convidou Silvia a fazer o mesmo. A mulher hesitou, mas acabou sentando. Os dois, um frente ao outro, se fitaram em silêncio. O detetive, lentamente, foi retirando os bigodes sob o olhar de Silvia que, estranhamente, não demonstrava excessivo espanto. Em seguida, já sem sotaque, começou a falar: — Dona Silvia Wagner Siqueira, a comédia acabou! Para si e para mim. Sou Fulgencio Romero, detetive particular. Estou a serviço e em serviço não brinco. Portanto, fique quietinha. Se mover um só músculo da face chamarei a Polícia aqui ao lado. A senhora será detida por um motivo burocrático rodoviário qualquer, como transporte de cadáver sem licença ou uso da casa-rolante como veículo funerário... Mas o pior virá depois, quando eu CONTAR TUDO, PORQUE SEI TUDO! — O senhor sabe tudo? — perguntou Silvia com um fio de voz e com um ar apático. — O suficiente para lhe dar alguns quinquênios de cadeia. A senhora não se dá conta de que caiu num poço sem saída? Está vendendo o corpo do homem que a amava, Alvaro Antunes Arantes, e a quem matou //
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depois de explorá-lo e de induzi-lo a chantagear dona Maria Tourinho Palmeira. Aliás, a senhora chegou a chantageá-la diretamente no dia em que lhe extorquiu esta Vespa e um pequeno colar de ouro... Silvia o interrompeu com um gesto de mão: — Por favor, não continue. Não será necessário. Confessarei tudo a quem de direito. O senhor vai me levar à Polícia? — Sim. Eu mesmo dirigirei sua casa-rolante de volta à cidade. A senhora ficará quietinha a meu lado. Dê-me a chave de ignição, pois partiremos em seguida. Mas antes tenha a bondade de trancar a porta desse armário — e apontou para o cadáver à vista — e entregue-me também a chave. Como um cordeirinho, Silvia obedeceu. *** A noite tinha caído. Telê e Rodrigo já preocupados pela longa ausência de Fulgencio viram-no chegar sem bigodes, dirigindo calmamente a casarolante e tendo Silvia a seu lado. O veículo estacionou atrás do carrinho de Telê. Ela saltou e foi logo perguntando, na frente mesmo da criminosa: — Fulgencio, tudo bem? — Tudo ótimo Telê, vou levar esta senhora à Polícia, pois está disposta a confessar seus crimes. Vocês, por favor, me escoltem, seguindo-me de perto. Rodrigo que também tinha descido do carro se ofereceu para acompanhar o detetive, dentro da casa-rolante. — Obrigado, doutor Rodrigo, mas não será preciso. É preferível que o senhor fique com Telê, assim ela não viajará sozinha. ***
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XIII
Alvorecia quando o “motor-home” e o carro de Telê chegaram à cidade
e pararam em frente à delegacia.
Rodrigo entrou e imediatamente reassumiu suas funções, pois desejava receber pessoalmente a confissão formal da mulher. Fulgencio entregou-a e entrou no carro de Telê para ser conduzido à sua própria casa. A advogada virou-se para ele e com aquele seu jeitinho peculiar disse: — Fulgencio, sei que é muito tarde, isto é, muito cedo e você há de querer dormir logo. Mas eu não poderei fazê-lo se primeiro não me contar como dobrou a Silvia. — Está bem, Telê. Vamos comer algo em algum lugar aquecido porque aqui está um gelo e lhe contarei tudo. Tim-tim por tim-tim... E ficaram os dois num pequeno restaurante aconchegante, ele narrando e sorrindo, ela ouvindo e vibrando, ambos aquecidos pelo ambiente, pela amizade que os unia e por um bom vinho. — Bem Telê — disse o detetive após ter descrito os fatos, à guisa de conclusão: uma dúvida me vem à mente. A “volta à realidade” daquela alienada Silvia foi tão repentina, inesperada e desconcertante que não sei se atribuí-la à minha atuação ou à... queda daquela bolinha de naftalina do nariz do morto... Chego a pensar que foi essa queda que clareou a sua mente, como aliás, mal comparando ou bem comparando, aconteceu com a famosa maçã de Newton... — É Fulgencio, sem diminuir o merecimento seu e de Newton, a bolinha e a maçã devem ter sido uma espécie de centelha desencadeadora de algum mecanismo cerebral. De qualquer forma, foram um mero “acelerador” pois mesmo sem a maçã Newton teria chegado a formular a sua Lei da Gravidade e Silvia, até sem a naftalina, teria acabado por confessar. Ela tinha em si dois fatores que de qualquer forma a levariam fatalmente à perdição: a desmedida ganância e a absoluta falta de senso //
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“…que não sei se atribui-la à minha atuação ou à…queda daquela bolinha de naftalina…”
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do ridículo. Não sabemos se esses defeitos são independentes ou se o segundo é consequência do primeiro. Mas Fulgencio, tire-me uma curiosidade: foi Silvia quem anteontem telefonou para a casa de Alvaro? — Sim. Foi a primeira pergunta que lhe fiz durante a viagem de volta. Sem esse telefonema ela, muito provavelmente, não teria depois furtado o cadáver. Pois bem, Silvia há dias tinha conseguido, e foi sua última exploração, que o Alvaro transferisse para ela o telefone. Anteontem, naquela hora, telefonou para verificar se a Companhia Telefônica tinha desligado o aparelho como prometera, o que não aconteceu. Mais um mau serviço telefônico... — Fulgencio... porque Silvia matou? — Por um simples acesso de raiva. Ela soube do próprio Alvaro que iria perder a casa-rolante, da qual se considerava quase proprietária por ter contribuído na sua compra com um polpudo sinal. O restante do pagamento ficou por conta do Alvaro. Ele, premido pelas dificuldades financeiras, deixou de fazê-lo, tanto mais que ainda pagava um aluguel do veículo à própria Silvia. Ela, numa explosão de ira atirou, pegando o revólver que estava ocasionalmente na mesa de Alvaro. Portanto, nada houve de premeditado e isso, de alguma forma, lhe servirá como atenuante. Após o crime, dada a “posição feliz do ferimento”, são palavras textuais dela, resolveu simular o suicídio e escrever aquele bilhete, exatamente como tínhamos conjeturado. — E as joias de Maria, Fulgencio, que fim levaram? — Estão na casa-rolante junto com a prataria. Tudo recuperado, até o lenço da prima do Delio! Quer saber mais alguma coisa? — Sim. Uma outra pergunta: o que Silvia ia fazer com o cadáver? — Tencionava jogá-lo à noite no rio que passa pelos fundos da casa da mãe em Corumbá, para onde ia. Em relação à mãe sei que a única “colher de chá” que Silvia pedirá a Rodrigo será uma permissão para telefonar-lhe, avisando-a do cancelamento da viagem. — Fulgencio, por que o Alvaro estacionava tanto tempo no acampamento? Lembra-se que lá estava na noite em que fomos à fazenda do Narciso? //
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Também estava lá no dia seguinte e ainda quando você deu condução a Bubú. — Naquele local ele ora esperava Maria para receber valores, ora ficava para se furtar aos seus inúmeros credores. — Porém, no dia em que você foi com Bubú o veículo estava trancado e Alvaro ausente. Por quê? Essa é minha última pergunta... — Bom Telê, isso a Silvia não soube explicar. Disse que não o tendo encontrado deixou o seu cartão de visita. Aliás era essa a forma por ela adotada para pressioná-lo. Presumo que Alvaro tenha pressentido a sua chegada e, já cansado, se escondeu por perto. Parece-me que os sentimentos dele no tocante a Silvia nos últimos dias de sua vida tinham se transformado: passaram a ser de amor e ódio, atração e repulsão. Clima dostoievskiano... E agora, Telê, você me leva a “nanar”? — Você merece mesmo um bom sono, Fulgencio. Vamos! *** No mesmo dia à tarde Telê marcou uma reunião com Maria e Narciso no seu escritório. Seria a grande ocasião do reencontro entre os dois. Às dezoito horas. A hora do crepúsculo e do “Angelus”, aquela que “vai de encontro aos desejos e aos navegantes enternece o coração...” Telê fazia questão de estar presente, não só por ser advogada do fazendeiro... mas como testemunha dos fatos ocorridos, para que não pairassem dúvidas sobre o comportamento de Maria. Ela tinha sido uma vítima, na acepção mais completa do termo. Só tinha uma culpa, se assim se pode chamar, a de ter mentido para Narciso no dia do “furto das joias”... De fato, ela dissera ter visto um vulto fugindo pelo balcão o que não era verdade. Na realidade ela havia retirado as joias do armário (daí o miado da gata que nele dormia) para depois à noite, saindo de Vespa, entregá-las ao Alvaro. Essa mentira poderia constituir uma “sombra” na conduta de Maria e Telê tinha abordado esse assunto com ela ao marcar pelo telefone o encontro daquela tarde. Restava o problema do casamento realizado na Suíça entre os dois, com base em documento falso. Telê tinha uma solução pragmática a //
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apresentar. Se o casamento era nulo por ser falso o documento, este poderia para qualquer efeito ser ignorado ou destruído. Como o casamento não tinha sido homologado ainda no Brasil, ele solteiro e ela agora viúva do Alvaro poderiam se casar onde quisessem... menos na Suíça. *** Dezoito horas. Maria foi a primeira a chegar. Estava linda, ansiosa e ao mesmo tempo feliz. Ia poder novamente abraçar o seu Narciso, o homem de sua vida. Ele chegou sorridente com dois estojos de veludo, iguais, um em cada mão. Estendeu um para Maria e outro para Telê, dizendo: — São dois colares de pérolas! À uma porque veio. À outra porque fez com que viesse. A ambas o meu obrigado! Chegando a este ponto é inútil descrever ao leitor o resto da cena de reencontro. Só nos cabe dizer, para finalizar, que se abraçaram longamente... Que foram casar em Roma, a cidade cujo nome ao contrário é AMOR... e que são muito felizes, atualmente com dois filhos. *** Silvia continua na cadeia e quer ser freira. Delio comprou um novo carro de segunda mão. O doutor Rodrigo teve a sua promoção a Delegado adiada mais uma vez. Fulgencio deixou a Bubú e atualmente está namorando a irmã dela, a Kikí, ruiva também. Dona Ofelia continua mais alienada ainda e, em compensação, menos infeliz. Jacinto namora uma finlandesa entusiasta da Lapônia e está resolvendo como enfrentar com ela aquele clima. FIM //
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Nota: Os fatos aqui narrados não são de todo verdadeiros, mas se basearam num episódio verídico ocorrido em 1984. O dossiê da advogada que cuidou do assunto tem como etiqueta “O caso do miado da gata”. Nós mudamos esse título e os nomes, para dificultar a identificação das personagens. De qualquer forma, se houver semelhança com pessoas conhecidas do leitor PODE NÃO SER mera coincidência. Voltaremos em breve com um segundo episódio, pois estamos analisando outro dossiê da mesma profissional. Muito promissor. Os Autores
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Novella Quattro Conto Quatro
A Coroa da Rainha de Sabá e o Sceptro do Rei Salomão (A Gruta Encantada) Ligia Junqueira Begossi e Armando Begossi
Desenho de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 201.
Todos os sinos da aldeia e do vale ao redor tocavam, chamando o povo
para a Missa do Galo. Ao festivo convite para a cerimônia religiosa pareciam responder outros sinos de lugarejos outros a alguns quilômetros de distância. Era uma música melodiosa que se ouvia por todos os lados, como se os anjos, eles próprios, estivessem a comemorar o nascimento do filho de Deus e quisessem que toda a humanidade participasse desta grande festa. Numa casa, de um pequeno vilarejo junto à estrada, uma família estava reunida junto ao presepe, armado sobre uma grande mesa, na sala da frente. Bastante ampla para abrigar muita gente, pois a família, descendente de imigrantes italianos, era bastante numerosa. O velho patriarca já havia morrido e ficara a mulher. Em torno dela estavam os cinco filhos, casados, menos o último, Francisco, que retornara há pouco do serviço militar e ainda vestia o uniforme. Os quatro irmãos mais velhos já tinham — ao todo — 15 filhos, entre grandes e pequeninos. Dessa forma, com a velha Regina, a avó, a quem chamavam de NONNA, noras, filhos e netos eram vinte e cinco pessoas! Na propriedade, grande, todos trabalhavam a terra, fértil naquelas paragens. Mas, se os quatro irmãos não fossem sempre com o caminhão vender os produtos na cidade, o que faziam duas ou três vezes ao dia, em idas e vindas, a família pouco teria para se sustentar, além dos frutos da terra. *** Naquela noite de Natal, a velha avó estava sentada numa grande e confortável cadeira de balanço, junto ao presepe e suas mãos, habitualmente sempre ocupadas a tecer belas e úteis peças de vestuário em tricô que aprendera com a avó e esta com a bisavó, todas italianas, naquele dia repousavam tranquilamente no colo. Ela contemplava a bela árvore de Natal e mentalmente recordava o que sabia da origem italiana da família. Fora várias vezes à Italia para conhecer parentes e visitar a avó. Tinha então na primeira vez quinze anos. Os netinhos menores a seu lado, num banco de madeira, examinavam curiosos e interessados os detalhes do imenso presepe. De vez em quando um deles se levantava e ia sorrateiramente apanhar uma //
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guloseima sobre a mesa posta para a ceia, que seria servida depois da missa do galo. Estavam todos acordados e com os olhos bem abertos. Ninguém pedia para ir dormir e nenhuma das mães lhes dava a ordem costumeira: — Agora, para a cama! Era costume da família ir todos os anos à missa do galo – adultos e jovens – na igrejinha da praça. Os pequeninos ficavam em casa, fazendo companhia à vovó, que lhes contava histórias fantásticas e maravilhosas, que ela própria havia escutado de sua avó e de outras velhinhas da família. Italianos, haviam chegado ao Brasil com as primeiras imigrações destinadas a cultivar o campo, no começo do século. Portanto, as histórias que contava nesse dia falavam da terra de seus ancestrais e relatavam coisas estranhas e fantásticas daquele país distante. *** O filho mais velho da NONNA, o sisudo Mateus, que tomara o lugar do pai como chefe da família, era quem comandava a todos, com firmeza. Levantou-se e, abrindo a porta da cozinha que dava para o quintal, disse, dirigindo-se à mulher e às cunhadas: — A noite está escura, parece que vai chover. O que acham? Enquanto Mateus segurava a porta aberta, olhando as nuvens ameaçadoras, um raio riscou o espaço, prenunciando tempestade. Na cozinha, os pequeninos se encolheram temerosos. Mas, Carla tomou a palavra imediatamente e respondeu: — Desde quando a tempestade nos amedronta? Sempre vamos à missa do galo com qualquer tempo e não vai ser este ano que faltaremos. Carla, como mulher do chefe da família tinha certa autoridade. Assim, todas as cunhadas concordaram sacudindo a cabeça afirmativamente. Enquanto ela dava uma última olhada à mesa e tomava algumas providências para a ceia a ser servida no retorno da missa, as cunhadas subiam ao andar de cima para apanhar os véus, os missais e o terço, assim como os amplos guarda-chuvas, dos maridos, pois deles com certeza iriam precisar. //
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Carla havia distribuído nozes, avelãs e castanhas às crianças e também as cunhadas apanharam algumas, que puseram no bolso para irem saboreando enquanto caminhavam. — Vamos indo? — disse Mateus. — Estamos prontas — responderam quase ao mesmo tempo as mulheres. — Você não vem à missa? — perguntou o irmão a Chiquinho que se sentara de novo no grande banco junto ao presepe. — Não se preocupe. Amanhã assistirei até mesmo duas missas. Há tanto tempo que não passo o Natal em casa que estou ansioso para ouvir de novo mamãe contar a história do Sceptro do Rei Salomão e da Coroa da Rainha de Sabá. Na verdade, Chiquinho não dizia tudo que tinha em mente. Há dois anos que, devido ao trabalho em outra cidade, no Oeste do Brasil, não passava o Natal em casa. Hoje, ao chegar do Serviço Militar achara sua mãe bem envelhecida e o temor de que pudesse perdê-la de um momento a outro mantinha-o preso a seu lado, todos os momentos em que estava em casa. E pensava: — Quando partir, depois do Natal, será que a encontrarei ainda viva na minha volta? Esse pensamento angustioso que não o abandonava, impedia-o de procurar os amigos e os vizinhos e de frequentar a praça todas as noites, onde rapazes e moças passeavam e ele seria festejado pelas jovens, curiosas de ouvi-lo falar de sua vida na cidade grande e de suas aventuras no quartel. *** Mateus abriu a porta e começou a caminhar pela estreita estrada de terra, à frente do grupo familiar, composto pelos irmãos, cunhadas e os filhos maiores. Quando todos saíram, Chiquinho sentou-se junto à mãe e pondo-lhe uma das mãos carinhosamente sobre os ombros, disse, brincando: — Ouça, mamma, essa história eu a sei quase de cor, tantas foram as vezes que já a escutei, em noites de Natal. Se não contá-la muito bem, roubolhe a palavra e conto-a eu! Lembra-se de quando ficava à sua frente, //
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acocorado e com os olhos arregalados, apoiado com os cotovelos nos joelhos, bebendo sofregamente as suas frases? — Eram tempos felizes! — suspirou a velha. — Teu pai estava vivo, todas as minhas filhas ainda estavam em casa e eu não era tão enrugada. — Vovó, a história! Começa logo! —disseram os pequeninos ansiosos para ouvir mais uma vez a maravilhosa fábula que tinha a propriedade de comovê-los, e muito. A velhinha acabara de partir uma castanha que deu ao menor dos netos. Começou com a voz suave e o sonoro sotaque italiano, próprio dos toscanos, a sua narrativa. *** — Vocês já devem saber que há muito tempo, quando minha tataravó ainda morava na Itália, um dia chegou à sua aldeia um velho com a barba branca e os cabelos tão longos que desciam até quase à cintura. Vestia uma capa de seda e na testa usava um turbante. Esse ancião cavalgava uma mula branca e atrás dele vinha um carro fechado, puxado por um par de bois e guiado por outro velho, também com cabelos e barba compridos, porém vestido mais pobremente. Ao lado do carro, a cavalo, iam cinco homens armados com lança, que mantinham à distância qualquer um que quisesse se aproximar. Nem o homem com a capa de seda, nem o carro, nem os outros homens tinham sido vistos passar pela ponte de pedra. Por onde entraram na aldeia ninguém soube. Algumas pessoas avistaram o grupo passar pelo alto de uma colina. Depois desapareceram com o carro num vale onde existe uma grande caverna. O velho com a capa de seda ficara de sentinela na entrada do vale e na manhã seguinte, quando os habitantes da cidadezinha acordaram, admiraram-se ao ver que, exatamente naquele lugar, na entrada da caverna onde antes nem praga crescia, levantava-se uma pequena casa com as janelas fechadas e a porta trancada. Não tenho palavras para descrever o espanto de todos com o aparecimento daquela comitiva e depois com o súbito surgir daquela pequena casa, da noite para o dia. //
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De todos os arredores acorreram pessoas para ver o acontecido. Depois vieram também habitantes de aldeias e lugarejos mais longínquos. Observaram, tornaram a olhar e nada viram, pois a casa se mantinha fechada, como se dentro não houvesse ninguém. Os mais curiosos tomavam coragem e punham o ouvido de encontro ao buraco da fechadura. Escutavam um tilintar de moedas e algumas palavras numa língua que não entendiam. *** Passou o outono e veio o inverno. A casa que era baixinha ficou quase toda coberta pela neve. Vocês sabem que naquela região, da qual vocês descendem, a Toscana, na Itália, os invernos são muito frios e quase sempre tudo se cobre com uma capa de neve. O mistério daqueles sete homens desaparecidos naquela caverna punha todas as cucas a trabalhar e surgiram as mais incríveis hipóteses. Um dos habitantes da aldeia, que se chamava Tulio, sem dizer nada a ninguém, imaginou que havia de desvendar o mistério. Esperou uma noite sem lua, pôs um punhal na cintura, apanhou uma vara bem comprida e foi até à misteriosa casinha. O céu era muito escuro e o vento rugia por entre as árvores; caía uma neve fina que enregelava o rosto de Tulio. Acontece que era a Noite de Natal. Na Europa e na Itália o Natal não é como aqui. Nesta época lá faz frio e a neve deixa quase tudo muito branco. Os ramos das árvores, tocados pela ventania, batiam uns nos outros fazendo um rumor como o de ossos que se entrechocam. Um pouco a escuridão, um pouco o uivo do vento e mais do que tudo esse barulho de galhos se chocando, fizeram gelar o sangue de Tulio. Porém, a curiosidade era mais forte do que o medo e ele se aproximou da misteriosa casinha. Chegando bem perto, olhou pelo buraco da fechadura, mas não conseguiu ver nada. Pôs o ouvido, e ouviu — como os outros já tinham escutado — o tilintar de moedas e palavras estranhas que não compreendia.
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Esperou um pouco, em dúvida, se devia bater na porta ou não. Porém vendo que da chaminé não saía fumaça, teve a ideia de subir ao telhado para dar uma olhada no aposento pelo buraco da chaminé. A neve alta abafava os seus passos e o teto era baixo; conseguiu subir sem dificuldade. Mas logo compreendeu que fora tempo perdido, pois pela chaminé somente conseguiu avistar as cinzas do fogo apagado... E mais nada. Tulio, porém, era bastante perspicaz e pensou: — Já é tarde, mais cedo ou mais tarde esses homens misteriosos irão dormir. Até mesmo contar ouro acaba por cansar. Então eu, que sou magro como uma vara, entro pela chaminé, chego até a lareira apagada e assim tiro da minha cabeça essa curiosidade que me atormenta. De fato, acocorou-se como melhor pode junto à parede da chaminé, sobre o telhado, no lado protegido do vento e da neve. Esperou. Mas, um bom espaço de tempo. Lá em baixo era um tal de contar e recontar e não acabavam nunca de manusear as moedas e conversar. Até que, em certo momento, o silêncio se fez. As luzes da sala foram apagadas e ninguém mais falou. Nesse exato momento lá no alto, no castelo da aldeia, o relógio bateu meia-noite. — Entendi tudo — pensou Tulio — são feiticeiros e está na hora de irem a vagar por aí. Melhor assim, pois poderei ver tudo sem ser incomodado. Vou esperar... Não esperou muito porque dali a pouco foi ofuscado por um grande clarão e viu passar pela chaminé diante de seus olhos uma figura toda branca e luminosa, depois uma segunda, uma terceira e muitas e muitas outras. Tinham os cabelos louros e anelados, duas asas branquíssimas presas aos ombros e cada um carregava nas mãos uma cesta coberta. Assim que saíam pela chaminé se dirigiam logo para uma casa ou um lugarejo. Alguns voavam muito alto e desapareciam entre as silhuetas das árvores, na colina onde ficam as casas dos carvoeiros e dos tropeiros. — São anjos — murmurou para si mesmo Tulio— E eu pensei que eles fossem feiticeiros! Depois de ter visto passar uma centena e concluir que não sairia mais nenhum pela chaminé da lareira, Tulio amarrou uma corda na cintura, //
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deu um laço em torno da chaminé e desceu por dentro dela, como se fosse Papai Noel. Sem saco. Era uma sala grande e, a julgar pelo tamanho, devia ser o único aposento da casa. Porém, sobre as duas mesas compridas e sobre os bancos não havia moedas. Não havia nada. Na parede oposta à porta que abria para fora havia uma espécie de arco, fechado por uma porta de pedra. Tulio apanhou uma lamparina de ferro, que estava presa à parede, acendeu e depois de ter afastado a pedra entrou por um corredor escuro. Caminhou um bom pedaço, sempre descendo, e finalmente desembocou numa belíssima caverna que parecia uma sala. A abóbada era toda recoberta de uma manta de cristais, de formas curiosas, e no meio havia uma enorme coluna, tão grande que não poderia ser abraçada por quatro homens. Quando acabou de olhar tudo atentamente Tulio recomeçou a caminhada e, sempre descendo, de repente se viu diante de uma luz, fulgurante. O clarão vinha de uma sala muito mais bonita do que a primeira, e se encontrava no final da rampa de descida, bem nas entranhas da montanha. Essa sala era iluminada por uma luz que parecia a do dia e no centro havia uma arca de ouro com tampo de cristal. Em volta, uma porção de arcas menores. Na parede do fundo se erguia uma espécie de trono, todo de ouro, onde dormia o velho com a capa de seda. *** Tulio começou a tremer ao vê-lo e não ousou se aproximar. Porém chegou perto das caixas de ouro com tampos de cristal e ficou a olhar, de boca aberta. Na caixa maior, que estava no centro, havia um sceptro de ouro todo ornado de grandes pérolas, tão grandes como azeitonas. No fundo de ébano em que o sceptro fora deitado, estava escrito com brilhantes: SALOMÃO. Em outra arca havia uma coroa de ouro ornada também de brilhantes e nela estava escrito RAINHA DE SABÁ.
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Nas arcas pequenas, se amontoava uma profusão de braceletes, colares, broches, punhais, tudo estupendamente trabalhado e incrustado de gemas que luziam como se fossem pequenos sóis. Tulio vendo todas aquelas preciosidades ficou estupefato. Foi nesse momento que o DIABO o tentou. Bastava um só daqueles colares para que pudesse comprar um pedaço de terra, fazer uma casa e assim terminar com a vida sempre cheia de necessidades que vivia desde que nascera. Levantou os olhos e viu que o velho da capa de seda dormia como um santo. E o diabo sempre a tentá-lo... Punha-lhe na cabeça que ninguém daria por falta de uma das joias. — Para quem tem tantos tesouros, um objeto a menos não vai ser nunca notado — sugeria o maligno. Tulio levantou a tampa de uma daquelas pequenas arcas, enfiou dentro a mão e retirou-a cheia de joias, que escondeu rapidamente no casaco. Depois, desconfiado e trêmulo, apanhou a lamparina que havia apoiado no chão e refez o caminho de volta, para sair da caverna. Quando chegou à segunda sala escorria de suor e as pernas pareciam de chumbo, tanto as sentia pesadas. Parava a todo momento, procurava escutar, pois parecia-lhe ouvir atrás de si rumores de passos e vozes. A subida de volta cansara-o muito e se não fosse o temor de encontrar o velho acordado, teria voltado para repor as joias roubadas onde as apanhara. Elas pesavam-lhe na consciência como pedras. Sentou-se um momento para descansar nessa segunda sala, mas levantou-se imediatamente, pois ouvira um cavalo relinchar a pouca distância. Percorreu correndo o corredor. Chegou todo esbaforido à sala da lareira e, sem descansar um minuto, agarrou-se à corda. Num momento chegou ao telhado. *** Assim que se sentiu fora da casa viu que, dos quatros pontos cardeais vinham voando os anjos brancos e luminosos que haviam passado perto //
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dele quando estava escondido atrás da chaminé. Toda a atmosfera estava tomada pela luz que emanava dos corpos dos anjos. De todos os lados se ouvia cantar: HOSANA! HOSANA!.... enquanto os sinos das igrejas do vilarejo tocavam as quatro badaladas da madrugada. Tulio em vez de correr logo para casa se escondeu num buraco no meio da neve e ali ficou, até que o dia clareou completamente, como um ladrão que tem medo de ser descoberto. Voltou para casa ao amanhecer e quando a mãe lhe perguntou onde estivera respondeu, enrubescendo: — Fui à missa. Em vez de ajudar a velha mãe com os trabalhos da casa, subiu até seu quarto, escondeu tudo o que roubara embaixo de uma laje do chão e foi se deitar. Porém, o sono que sempre fora seu fiel companheiro depois do trabalho não veio lhe fechar os olhos e depois de se virar de um lado para o outro, por muitas horas, levantou-se. Assim que desceu à cozinha e foi até a porta da casa, viu passar dois camponeses alegres que falavam entre si gesticulando muito. Estavam tão entretidos no que diziam que nem se aperceberam da presença de Tulio. — Sabe uma coisa — dizia o mais velho — foi como um milagre. Esta noite, exatamente à meia-noite, vi uma grande luz sobre a minha casa. Depois ouvi um rumor como o de asas batendo no meu telhado. Camilo, o meu menino mais velho, que dorme na cozinha, acordou e viu que um anjo descia pela chaminé. Pois o anjo inclinou-se sobre o seu leito, beijou-o na testa e disse: — Toma o presente que lhe manda o Menino Jesus, porque você foi muito bem comportado. Se continuar a ser sempre bondoso, honesto e correto, virei visitá-lo nos próximos anos. Depois o anjo desapareceu, cantando: HOSANA! Camilo me contou que todo o quarto rescendia a um perfume muito forte de rosas e lírios. Além de moedas de ouro, o menino achou, sobre sua cama, roupas para o frio e gulodices de toda a sorte. Estou vindo até à cidade para contar ao pároco o que houve e mostrarlhe as moedas de ouro.
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“...enquanto os sinos das igrejas dos vilarejos tocavam as quatro badaladas da madrugada”. //
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— Na minha casa aconteceu a mesma coisa — disse o outro camponês — mas os presentes foram dados somente à minha filha Maria, porque os meninos são três pestinhas e isso mesmo disse o anjo à menina, enquanto a beijava. Tulio, muito impressionado, seguiu os dois homens até à igreja e os viu entrar e se misturarem aos outros fiéis para esperar até que o padre pronunciasse as últimas palavras da missa: “Ide em paz, a missa acabou” e depois com ele conversarem. Tulio compreendeu para onde tinham os anjos voado! Agora sabia por que contavam tantas moedas! Ele havia roubado o tesouro dos meninos bonzinhos, dos meninos pobres! Teve vergonha do seu furto e pareceu-lhe que todos liam em seu rosto a sua má ação. Naquele dia, não conseguiu entrar na igreja, NÃO CONSEGUIU mesmo. Suas pernas se recusavam a levá-lo. Pôs-se a correr, fugindo, até o bosque de castanheiros, onde se escondeu até a noite, como um bandido. Quando voltou para casa encontrou a mãe que chorava diante da mesa posta. A pobre velha, não o vendo voltar para casa ao meiodia, para o almoço, se pusera a chorar e não pudera engolir um só bocado da comida que havia preparado para aquele dia de Natal. Quando o viu voltar tão desnorteado não se consolou, porque percebeu que algo de muito sério tinha acontecido. Tulio respondia a todas as perguntas que ela lhe fazia dizendo: — Não tenho nada. Estou bem. Estive com meus amigos e por isso estou voltando tarde... Mãe e filho comeram sem vontade e pela primeira vez na vida foram dormir sem mesmo dizer BOA NOITE um ao outro. Tulio, que estava aborrecido consigo mesmo, descontava o que sentia sobre a pobre velha. Ela estava convencida, convencidíssima de que seu filho cometera uma ação má. Nem a velha, preocupada, nem Tulio, perseguido pelo remorso, conseguiram dormir. Ainda mais: o jovem se levantou a uma certa hora, porque se sentia sufocar. Alçou a lajota, apanhou as joias que pôs dentro //
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do paletó e dirigiu-se até a casinha na entrada da caverna. Queria tentar descer pela chaminé outra vez, até a sala e tornar a pôr as joias roubadas no seu lugar, pois que elas lhe pesavam como se fossem chumbo. Estava arrependido, muito arrependido de sua velhacaria. Apenas chegou ao teto da casinha, teve que se esconder rapidamente, porque ouviu lá embaixo um grande movimento e, logo em seguida, viu os anjos aparecerem um a um e depois, quando todos haviam saído da chaminé da lareira, alçarem voo como se fosse uma revoada de pássaros que da montanha se dirigissem ao charco. Tulio percebeu que os rostos dos anjos estavam sérios e carrancudos. Voavam rapidamente e de suas bocas não mais saíam sons melodiosos. Em certo momento um deles se virou e fez um gesto de maldição em direção ao vilarejo que deixavam. Tulio se jogou do telhado, amedrontado, e caiu sobre a neve. Nesse mesmo instante ouviu um tremendo barulho e a casinha desmoronou e desapareceu nas profundezas da terra, como numa mágica, exatamente como surgira. Naquela noite os habitantes da cidadezinha viram na entrada da gruta dois DIABOS com pés de cabra, que exalavam um cheiro de enxofre tão forte que sufocava todos os que se aproximavam. Os dois demônios tinham nas mãos espadas flamejantes. Não somente os habitantes do lugar, mas também aqueles dos vales ao redor e os moradores das casas nas montanhas ficaram amedrontados com a sucessão de encantamentos e nenhum ousava passar, nem mesmo em pleno dia, diante da entrada da caverna. Depois do escurecer, nem se fala! - ficavam todos fechados em casa e, depois daquela primeira noite, nenhum quis mais se expor a ver aqueles feios diabos com espadas de fogo. *** A notícia desses acontecimentos chegou até um santo Eremita, que desceu de seu refúgio acompanhado por uma longa procissão formada por outros frades da mesma comunidade. Cada um deles trazia na mão uma cruz e foram todos benzer a entrada da caverna. O santo Abade,
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porém, disse que por detrás dos fatos acontecidos deveria haver alguma força misteriosa. Chegou a essa conclusão quando um dos frades lhe assegurou que algumas noites depois que a caverna fora bendita, os demônios haviam voltado e retornado a montar guarda na sua entrada. Para implorar a Deus que os livrasse daquele imenso terror o abade ordenou que todos os moradores da localidade rezassem e jejuassem. Nem isso deu certo. Os demônios lá continuavam sempre. Nesse meio tempo Tulio ficara definhando, emagrecendo. Na mesma noite em que os anjos e a casa desapareceram, ele, sentindo-se oprimido por ter roubadas as joias aos pobres, em vez de levá-las para casa e escondê-las sob a lajota do chão, cavara um buraco na adega e as enterrara. Depois foi para a cama. Mas não conseguiu dormir durante toda a noite e quando saiu pela manhã para ir ao bosque serrar lenha, como fazia todos os dias, ouviu o que contavam as pessoas sobre a aparição do demônio. Estavam temerosas e amedrontadas. Também comentavam o desaparecimento dos anjos, que na Noite de Natal haviam trazido muitos presentes para as crianças bem comportadas de toda a região. O que ouviu lhe roía o coração porque sabia que sem a sua curiosidade e o seu roubo os anjos teriam continuado a ajudar os pobres da localidade. Sentia um grande mal estar dentro de si e os braços pesados não o deixavam executar nenhum trabalho. Durante todo o dia vagou pelo bosque, evitando encontrar-se com outros lenhadores, e só chegou em casa muito tarde. Porém, depois de ultrapassar as últimas árvores, sentiu um bater de asas sobre a sua cabeça e viu um morcego tão grande quanto uma águia com os olhos e a língua de fogo. O morcego parou no ar na sua frente, com as asas abertas, e lhe disse: — Tulio, você fez um grande favor ao Diabo espantando os anjos da caverna. Deve saber que ali eles haviam escondido os tesouros da Rainha de Sabá e do Rei Salomão, que foram salvos da destruição da cidade de Jerusalém. Os anjos aqui os haviam guardado depois de uma longa peregrinação. Se algum olhar humano os visse eles perderiam a sua guarda e os tesouros passariam às mãos de meu Mestre, Belzebú. Agora //
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ele quer recompensá-lo: permite que você entre na caverna e escolha o que quiser, até mesmo o sceptro de Salomão ou a coroa da Rainha de Sabá. — Não quero nada —dizia Tulio - tremendo. — Não quero nada! Tudo é coisa do Diabo! — e fez o sinal da cruz. O morcego de olhos de fogo caiu como fulminado e no lugar em que tocou o chão abriu-se um buraco muito fundo que ainda hoje se chama o Poço do Diabo. Quem nele cair nunca mais voltará. Depois desses acontecimentos Tulio voltou para casa ensimesmado. Sua mãe não conseguiu que ele lhe dissesse nada que tivesse algum sentido, porque divagava como um louco. Teve febre quando chegou a noite, uma febre cavalar, e ninguém sabia a causa. Assim ficou durante um mês, entre a vida e a morte. Foram chamados os médicos para que o tratasse, mas eles nada entendiam daquela doença. Depois sua mãe chamou as curandeiras que curam o “mau-olhado”, mas também elas não conseguiram curá-lo. Finalmente chamou o cura da aldeia para benzê-lo e Tulio se sentiu mais aliviado depois que contou-lhe o que havia roubado. Melhorou pouco a pouco. Assim que se achou bastante forte, desceu até a adega, apanhou as joias que lá estavam escondidas e com um cajado de peregrino na mão, foi andando a pé pelas estradas até a gruta do Santo Eremita, no alto de uma montanha. Depois, a conselho deste, foi, sempre a pé e com seu cajado na mão, até um convento de santos frades e lhes entregou as joias roubadas, para que com elas construíssem um asilo para as crianças pobres que não mais ganhariam presentes dos anjos no Natal. Tulio voltou para sua casa, onde viveu uma existência de trabalho e boas obras enquanto a mãe era viva. Quando esta se foi para um mundo melhor ele vendeu a casa, distribuiu o dinheiro aos pobres, retomou o seu cajado e foi ser, também ele, eremita no alto da montanha. Quando morreu todos o consideravam como um santo homem pelas muitas virtudes que praticava. ***
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Os habitantes do pequeno vilarejo nunca mais viram os dois diabos com suas espadas flamejantes postados como sentinelas na entrada da caverna. Contam que uma vez vieram alguns ladrões procurar as riquezas de que haviam ouvido falar. Porém foram mortos por setas incendiárias partidas de não se sabe onde, antes mesmo de entrar na gruta. *** Mas as crianças bem comportadas e as crianças pobres das casinhas espalhadas pelas montanhas nunca mais ganharam os bonitos e preciosos presentes, e isso nos faz concluir que os anjos nunca mais voltaram àquela região. *** A nonna se calou e Chiquinho, o belo artilheiro, exclamou: — Mamãe, você ainda tem uma ótima memória, mas esqueceu de contar uma coisa a estas crianças que a estão escutando, com a boca aberta. — O que foi? — perguntou a avó. — A história do turbante! — Não esqueci. Deixei para contar amanhã. E tem mais uma para cada festa de fim de ano. — Então, nonna, você só sabe três histórias? — exclamou Aninha, uma menina esperta que a ajudava no serviço da casa como uma mulherzinha: a Noite de Natal, o Dia de Natal e Ano Novo? — Não. Quero dizer que ainda tenho uma para a Noite de Ano Novo, o Dia de Ano Novo, para a Noite de Reis e para todos os domingos de janeiro. — Você é uma grande vovó, nonna! — disse um dos meninos, Gino, encostando a cabecinha no colo da velha, uma cabecinha com cabelos avermelhados sempre em desordem e uns olhinhos espertos nos quais se lia claramente tudo o que lhe passava na cabeça. — Mas... não gostei muito da história que você acabou de contar. //
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— Porquê? — perguntou Chiquinho, apanhando Gino nos braços e pondo-o a cavalo sobre o seu joelho. — Porque os anjinhos não deviam ficar desgostosos com as crianças só porque Tulio entrou na caverna e roubou. Acha certo que os justos paguem pelos pecadores? E que para nós, que tanto esforço fizemos para nos conter e não fazermos travessuras, nada recebamos de presente na véspera de Natal? — São histórias! — sentenciou Aninha — e são contadas para nos divertir. Se acreditasse em histórias eu não levaria nunca mais as vacas ao pasto, depois de tirado o leite, para não passar perto da caverna malassombrada! — Pois eu acho que Gino tem razão, é uma injustiça! — disseram a um só tempo dois outros meninos que estavam sempre de acordo com o primo de cabelos vermelhos. *** Nesse momento ouviu-se alguém mexer na maçaneta da porta; eram as mamães que voltavam da missa com a roupa toda respingada de gotas da chuva fina que agora caía. Deixaram sobre a mesa uma quantidade de docinhos e balas, aos quais as crianças se atiraram avidamente. — Chegaram os nossos anjinhos! — exclamou Aninha. — Pois o meu anjinho é este aqui — disse Chiquinho, abraçando a avó. Depois de uma deliciosa ceia, todos foram dormir e a casa ficou em silêncio. Os meninos sonharam belíssimos sonhos naquela noite de Natal. ***
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Novella Cinque Conto Cinco
O Turbante “O Velho de Jerusalém ou O Velho da Capa de Seda” (A Gruta Encantada) Ligia Junqueira Begossi e Armando Begossi
Desenho de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 271.
Depois de tirada a mesa do lauto almoço ajantarado os homens da
família não puseram nem o nariz fora de casa, pois caía aquela chuva fininha que os paulistas chamam de garoa. Também não havia necessidade de sair de casa, pois era dia festivo. O vento sudoeste — não muito frequente nessa época — cantava lá fora, empurrando as gotas de chuva contra os vidros das janelas. As horas haviam passado rapidamente entre os bons quitutes de uma culinária meio brasileira e meio italiana e a alegria de todos. O relógio já batera as cinco. Os homens haviam acendido o cigarro ou o cachimbo e conversavam, na sala, sobre os problemas das plantações, planos futuros e muitas coisas mais. As mulheres também tagarelavam num outro grupo e a avó tirava um soninho, com o terço na mão. Quando Aninha, que estivera a vigiá-la, percebeu que acordara pediulhe imediatamente: — Nonna, já se esqueceu do que nos prometeu?
— Queremos a História do Turbante! — exclamaram todas as crianças, em coro. — Esperem que os seus pais saiam — respondeu a avó — então contarei a história... — Porque? —disse Mateus — desde quando nessa casa não somos dignos de ouvir as tuas histórias? Comece a contar a do Turbante, assim passaremos o tempo mais distraídos, porque essa garoa não convida a sair. — Começa logo, mamãe — continuou Chiquinho carinhosamente — estou doido para ouvi-la mais uma vez... de boca aberta! — Nós também — exclamaram os meninos. *** — Está bem — começou ela a falar — vamos ao conto. Voces já devem saber que naquela noite de Natal, quando Tulio saiu da caverna, depois de ter roubado as joias, aconteceu uma cena horrível na belíssima sala subterrânea. Os anjos ao voltarem de sua generosa excursão encon//
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traram o velho guarda do tesouro adormecido. Bastou que lançassem um olhar para as arcas de ouro menores, com tampo de cristal, para perceber que faltavam algumas joias. Acordaram o velho com a capa de seda e perguntaram-lhe: — Quem é que você trouxe até aqui? — Ninguém — respondeu ele. — Aliás, como poderia eu abrir a porta se está fechada com 24 chaves e cada um de vocês tem uma? — Então foi você quem cedeu à tentação e se apoderou de uma parte do tesouro que confiamos à sua guarda? — Pela minha alma, sou inocente! — exclamou o velho. — Se alguma culpa tive foi a de ter cedido ao cansaço. Podem me castigar por isso, mas não por outras coisas! Os anjos não acreditaram nele, apesar de que já faziam muitos séculos que aquele velho fora contratado para custodiar o tesouro. Vocês precisam saber que, para os anjos, era uma grande vergonha não terem sabido cuidar bem daquelas preciosidades. Deus as dera para serem distribuídas, mas, na sua suma Justiça, avisara que, se não soubessem usá-las para aliviar a miséria dos pobres e premiar as crianças bondosas ele as tiraria dos anjos. O tesouro passaria para as mãos dos DIABOS — que eram seus maiores inimigos. Os anjos haviam planejado fazer muitas doações naquela região e dessa forma conquistar para o Paraíso Celeste muitas almas de mães, pais e crianças; almas que ficariam agradecidas ao Menino Jesus por tê-las socorrido na aflição e na miséria ou ter-lhes proporcionado momentos de felicidade. A dor por serem obrigados a deixar o vale era tanta que se mostraram injustos com o pobre velho. —Diga-nos onde escondeu as joias — disse um dos anjos, levantando ameaçadoramente a sua grande espada de fogo sobre a cabeça do guardião. O infeliz velhinho respondeu com um soluço e os anjos pensaram que esse fosse um sinal de remorso pela má ação que praticara. Condenaramno, por isso, a ser expulso da caverna e a sentença foi executada imediatamente. //
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Foram até a báia apanhar a mula e arrastaram o pobre velho porta a fora da casinha que haviam levantado na entrada da caverna. Empurraram-no para a neve gelada. Depois, cada um dos anjos apanhou a sua chave e todos trancaram a porta. O guardião ficou atordoado, sem saber para onde ir e paralisado pelo inesperado do acontecido. Não tinha mais vontade nem força para nada. — Pois então, também os anjos que se sentam junto ao trono de Deus podem ser injustos! — exclamou. — Quem me fará justiça? — EU — respondeu uma voz áspera e rouca. Era uma noite muito escura e o homem de capa de seda e turbante não conseguiu ver de onde vinha a voz. Porém, apenas aquele EU fora proferido, a mula branca que estava junto ao seu dono saiu em disparada montanha abaixo e o barulho das ferraduras sobre a neve gelada se perdeu no fundo do vale. O velho perguntou: — Amigo ou inimigo? — Amigo, naturalmente. Somente um amigo pode nos consolar num momento de dor e tristeza — respondeu a voz. — Porém, vamos para longe daqui, este lugar não é muito bom para conversarmos. — Ai de mim! — disse o velho — estou tão ferido na alma que não consigo dar um passo. Então, ele sentiu que dois braços fortes o levantavam e foi transportado na noite escura em direção a uma das montanhas dos arredores. Quando chegaram bem no meio de um bosque fechado o velho sentiu que tinha sido posto de novo no chão. Daí a pouco avistou uma luzinha não muito longe e o limiar de uma porta. Devia ser a cabana de algum carvoeiro. Nesse momento percebeu que quem o havia trazido até aquele lugar, elevando-o acima da terra, era um homem peludo, com rosto carrancudo de dar medo. Tinha um capuz de pele áspera, de onde saíam dois chifres. O velho ficou tremendo e disse para si mesmo: — Estou perdido! É o DIABO em pessoa! //
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Era mesmo o diabo. Aquele que havia tentado Tulio. Ele trouxera o guarda do tesouro de Salomão e da Rainha de Sabá não por compaixão, mas para roubar uma alma ao Paraíso. Ficara a girar e a regirar em torno da caverna, pois sabia que aqueles tesouros acabariam indo para suas mãos. — Velho venerando — disse o Diabo, depois que entraram na cabana, dirigindo-se respeitosamente ao homem da capa de seda e turbante — você me fez um grande favor, dormindo quando deveria estar atento a vigiar, e quero recompensá-lo. Quer ser rico? — Nunca ambicionei riquezas. Vi tantas e tantas que não me tentam mais. — Você é um sábio — observou o Diabo — e dou-lhe os parabéns. Quer viver muitíssimo tempo? Não digo ANOS, mas SÉCULOS? — Sou já tão velho, vi tantos países e tantos homens que não desejo ficar muito mais tempo neste mundo que conheço demais. — Quer voltar a ser jovem? Quer, além da juventude, ter força e alegria? — Nem isso... pois nem a juventude, a força e a alegria, por si mesmas, não dão a felicidade de quem, como eu, a perdeu... — Não quer nada, então? — disse o Diabo admirado. — De TI não quero nada. — Olha velho, você vai se arrepender de haver recusado minhas ofertas... — Não tenho medo de TI —disse o velho em tom de desafio e fez o gesto de quem ia levantar a mão direita até a testa para fazer o Sinal da Cruz. Porém, por mais que experimentasse e tornasse a experimentar não conseguia levantar o braço, que se tornara pesado e parecia grudado em sua capa de seda. O Diabo fez uma careta e, sentando-se diante do fogo, disse: — Agora entendeu que está em meu poder? Pensou que com aquele Sinal, diante do qual eu tenho sempre que fugir, como os soldados vencidos o fazem diante do vencedor, você se livraria? Eu prendi a sua mão e o seu braço. Você não quer ser meu aliado, pois então será meu inimigo e entre nós haverá GUERRA! //
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O velho da capa de seda nada se dignou a implorar ao Diabo mas ficou mudo e preocupado no meio da sala, rezando mentalmente ao Senhor para que o libertasse das garras do maligno. Não tinha medo da Morte, mas tinha pavor da Danação Eterna. Desejaria morrer santamente, como havia procurado viver. Parecia que o Diabo não se preocupava mais com o velho. Bateu com o pé de cabra no pavimento e apareceu uma gata preta que começou logo a preparar a comida, andando de lá para cá na cozinha, como se fosse uma boa dona de casa. Porém, quando o galo cantou, e o dia começou a clarear, a gata repentinamente largou tudo como estava e desapareceu, sem nem mesmo pôr a comida na mesa. O Diabo teve que apanhar tudo sozinho, sobre o fogão, e comeu com muito apetite. Quando o céu ficou mais claro ainda ele também desapareceu. O velho respirou aliviado e contente quando o Sol se levantou totalmente no horizonte e procurou sair daquela casa de Satanás. As pernas não o aguentavam, porém, e caiu sentado outra vez sobre o banco em que estava antes. — Uma outra artimanha daquele grande inimigo! — exclamou — primeiro me arruinou o braço direito e depois a perna. Porém, São Lucas meu protetor e Vós, meu Anjo da Guarda, vão querer mesmo que o Diabo fique com a minha alma? Apenas terminara de invocar esses dois nomes sentiu que o turbante que tinha na cabeça, que era de finíssimo linho branco, levantava-se no ar. Depois de voltejar pela sala, como o faria uma andorinha que descuidadamente penetra numa casa e voa para lá e para cá à procura da saída, o turbante tomou a direção da lareira e o vento o chupou pela chaminé fazendo-o sair por sobre o telhado. Depois o mesmo vento levantou-o a uma grande altura, fazendo-o voar pelo ar. *** A manhã estava serena e a neve que havia caído em abundância fazia prever um bom dia para as caçadas. Foi por isso que o conde Guido, precedido de seus falcoeiros e seguido dos pajens, desceu de seu castelo (o famoso castelo de Poppi, na Toscana //
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perto da caverna das joias). A mesma coisa fizera o seu rival, o Conde Oderico (o nome é um pouco esdrúxulo, mas era de origem ostrogótica, como assim acontecia no tempo das lendas, quase todas de origem medieval). Um ódio tremendo surgira entre esses dois senhores, ainda que fossem ambos primos, porque um deles achava que o outro lhe fizera anos atrás uma grande injustiça. As duas comitivas se encontraram na ponte, entre as terras dos dois castelos, quando atravessaram o rio (o rio Arno). Os dois inimigos avançaram um contra o outro, pois se haviam reconhecido de longe. Os dois não se olharam por muito tempo porque viram voando sobre a ponte um pássaro desconhecido naquelas paragens: era todo branco e não se avistava nem a cabeça nem as asas. Os dois condes traziam os seus falcões encapuzados, nos pulsos dos seus falcoeiros. Retiraram-lhes os capuzes e mandaram solta-los. As duas aves de rapina imediatamente voaram em direção ao estranho pássaro que planava no ar. Porém, assim que o tocaram e estavam para apanhá-lo caíram fulminados aos pés de seus donos. Vendo o que acontecera, os condes rivais empunharam os arcos e lançaram as suas flechas contra o pássaro branco. Os dois dardos atingiram-no ao mesmo momento, pois os condes eram hábeis atiradores. O pássaro caiu no meio da ponte. Os dois condes se lançaram rapidamente em sua direção, para apanhá-lo. — Eu o feri primeiro! — gritou o conde Guido — ele é meu! — Foi a minha seta que o atingiu primeiro — disse o conde Oderico — e faço questão... Os condes estavam a uma certa distância um do outro e nenhum dos dois se preocupara em verificar que tipo de ave haviam matado. — Proíbo-te que o toques — dizia o conde Guido. — Essas terras são minhas e aqui caçar sem minha licença é crime! O conde Oderico que há muito tempo nutria pelo primo um grande ressentimento, sentiu-se mais ofendido ainda por essas palavras. Sem se //
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preocupar com o pássaro morto, objeto da altercação, esporeou o cavalo e chegou em frente ao conde Guido. Desembainhou a espada e disse: — Põe-te em guarda que vou cobrar agora todas as ofensas que me fizestes; apenas terminara de pronunciar essas palavras e já se lançava fulminantemente sobre o conde Oderico. Também este último prontamente desembainhara a espada e as duas armas se cruzaram fazendo sair chispas. No entanto, por mais que os dois Condes fossem bons espadachins, nenhum conseguia ferir o adversário. Ao contrário, todas as vezes que as espadas se tocavam quebrava-se um pedaço das mesmas. Dessa forma, houve um momento em que só tinham nas mãos as empunhaduras. — Está acontecendo uma magia! — exclamou o conde Guido — e proponho que paremos um pouco este duelo até ver que tipo de pássaro nós matamos. Quando o conde Oderico ouviu falar em magia ficou pálido e deu meiavolta ao cavalo. Esporeou-o e, a galope, foi se fechar em seu castelo sobre uma montanha. Para maior precaução ordenou que fosse alçada a ponte levadiça e os guardas se postassem armados diante das seteiras que davam para fora. *** O conde Guido, mais corajoso, se viu dono do campo de batalha e apeou do cavalo. Recolheu a presa abandonada pelo seu competidor. Quando viu que as setas haviam atingido um trapo de linho branco deu uma risada sonora. Logo depois refletiu: como aquele trapo poderia ser a causa da morte de seu falcão de estimação, que havia sido tão bem treinado? Ordenou a seus pajens que recolhessem o pano e o queimassem no pátio do castelo. Tanto mais que ele sem o dar a perceber, também acreditava em magias e temia que daquele trapo lhe surgissem muitos aborrecimentos. Assim, o valente conde Guido voltou pelo caminho que subia até o seu castelo e quando lá chegou ordenou que se armasse uma fogueira para queimar o turbante. //
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Quando puseram fogo na lenha ela começou a crepitar, porém tornouse negra como se fosse lenha verde e dela se liberou uma baba branca e muita fumaça, mas nenhuma chama viva. A lenha foi mudada três vezes, e sempre o fogo se apagava sem queimar o turbante. O conde Guido ficou cada vez mais com o semblante anuviado e sombrio. Já não duvidava que o turbante fosse enfeitiçado e possuísse alguma força secreta. — Jogue-o nas cachoeiras do rio Arno — ordenou a seus homens. Assim que acabou de dizer isso, o turbante voou, e foi pousar sobre uma das ameias da altíssima torre que se erguia no centro do castelo. Aí ficou, como pregado. *** Agora vamos voltar um pouco atrás e ver o que aconteceu com o velho da capa de seda, fechado na cabana do Diabo. Ele, aflito, não cessara de invocar seus santos protetores mas nenhum deles viera em seu socorro, porque a casa pertencia ao Diabo e na casa do Inimigo os santos não podiam fazer milagres. O pobre velho via, atemorizado, que o sol estava cada vez mais baixo no horizonte. Temia que vindo a escuridão, e ao soar da meia-noite, o Diabo tornasse a molestá-lo. Porém, a noite transcorreu sem que ninguém se apresentasse, porque Satanás, nas poucas horas que podia passar na terra, tinha outras coisas para fazer. Uma delas era expulsar os anjos brancos da gruta das riquezas e lá pôr os seus anjos negros. Enquanto isso, a fome e o frio acabavam com as poucas forças do velho guardião e o Diabo, abandonando-o daquela forma havia calculado que, no final das contas, o velhinho sentindo-se morrer, o invocaria e deste modo seria mais uma alma conquistada para o Inferno. O velho da capa de seda, porém, manteve-se firme e enquanto teve um pouco de ânimo invocou todos os Santos do Paraíso e por último São Francisco de Assis, o grande santo que não temia o Diabo. Mesmo na beirada de um precipício, certa vez, ele se agarrara a uma pedra que — tendo se tornado mole como cera — permitira que ele se segurasse.
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Também nesta hora São Francisco não teve medo do Satanás, desceu à terra sob as vestes de um frade caminhante e subiu ao monte onde estava o castelo do conde Guido. Chegando ao pátio da fogueira olhou toda aquela gente agrupada a observar o turbante branco que pousara no alto da torre. Ao ouvir a narração de tudo que havia acontecido naquele dia, entrou no castelo e dirigiu-se ao conde: — Senhor — disse ele, quando se viu na sua presença — ouvi dizer que fostes partícipe de aventuras sobrenaturais. Permití-me que, humilde frade, eu use contra esses encantamentos o Signo da Salvação? — Faça o que achar melhor, bom frade — disse o conde — e se conseguir me livrar daquele trapo que pousou na minha torre prometo que darei muitas esmolas aos meus vassalos mais pobres. São Francisco se dirigiu ao pé da torre, abriu os braços em cruz e disse: — Eu te ordeno que me guies até o teu senhor. Apenas terminou de pronunciar essas palavras, o turbante deixou a torre e começou a voar lentamente na frente do Santo. As duas setas dos condes inimigos pareciam duas asas. São Francisco se pôs a caminho, acompanhando o estranho pássaro de pano e o conde Guido, maravilhado pelo que via, seguiu o frade, atravessou as suas terras e o rio Arno e andou pelos montes e bosques até a cabana do Diabo. Não foi somente o conde Guido que acompanhou São Francisco. Também o seguiram seus familiares e os vassalos; todas as pessoas que encontravam no caminho engrossavam o cortejo. São Francisco em voz alta entoava as suas preces poéticas e aqueles que o seguiam repetiam-nas em voz alta. Os animais saíam dos bosques e se ajoelhavam diante do Santo. Do alto dos montes vinham os pássaros em bandos e formavam um palio que precedia a procissão; cantavam como se tivesse voltado a primavera, com suas flores, e a terra não estivesse recoberta de neve gelada. O turbante se deteve a pouca distância da cabana do Diabo e o mesmo fizeram os pássaros, os animais, o conde Guido e todos os outros. O frade avançou sozinho e com a sua suavíssima voz disse: //
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“Chegando ao pátio da fogueira, olhou aquela gente agrupada e observou o turbante branco que se pousara no alto da torre.”
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— Que você seja libertado, em Nome do Senhor! Imediatamente o velho saiu da cabana; inexplicavelmente sentiu-se outra vez com as pernas e o braço fortes. Ele se prostrou diante do Santo, chorando de alegria. Nesse instante a cabana começou a crepitar e ardeu como fogo de palha. O Conde Guido e todo o povo caíram de joelhos e, enquanto rezavam, uma pequenina nuvem branca desceu do céu, envolveu o fradezinho e levou-o para o alto. O velho da capa de seda apanhou o turbante e o pôs na cabeça, chorando de alegria e sacudindo as mãos para a nuvem branca que, pouco a pouco desaparecia. Exclamou: — Viva São Francisco! — Viva — responderam todos os que lá estavam, em coro. Então, o conde Guido se aproximou do velho e lhe dirigiu a palavra na língua Oriental que havia aprendido com um monge daquelas bandas. Convidou-o para que fosse ao castelo. Disse, mesmo, que ficaria honrado se ele resolvesse morar no seu castelo, pois um homem pelo qual São Francisco desceu do Céu seria uma bênção em sua casa. O velho aceitou o convite e a longa procissão se pôs de novo a caminho, todos cantando louvores ao pobrezinho de Assis, o Grande Santo protetor daquelas paragens. O velho foi recebido com muitas gentilezas pela condessa, que era filha de Guido de Romena, um nobre ainda mais poderoso que seu marido. A condessa era jovem e muito bonita. Tinha tanta piedade de todos que não podia ver morrer nem uma mosca. Por isso, vivia em angústia contínua ao lado do marido, homem guerreiro, sempre em guerra com os nobres dos arredores. Ela não podia conversar com o velho porque não entendia a sua língua e menos ainda a podia falar. Porém, com ajuda de um livro manuscrito, todo adornado de figuras (chamadas iluminuras) deu a entender que esperava dele uma ajuda para fazer o conde deixar a vida de guerra sem
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trégua e se dedicar ao trato pacífico de seus campos, ao bem-estar de seus vassalos e às obras de caridade, para ser digno do Paraíso. O velho prometeu ajudar a nobre senhora e começou imediatamente a “amansar” o Conde. Este, porém, já havia esquecido suas promessas, aborrecido com os sermões do velho, disse-lhe que nunca ninguém havia ousado admoestá-lo e se continuasse, ele lhe daria um cajado de peregrino e o mandaria sair pelo campo a caminhar. O velho ouviu essas palavras e imediatamente apanhou o seu bastão e pôs-se a descer a montanha. Pouco a pouco, como o permitiam as suas pernas já enfraquecidas pela idade, dirigiu-se à cidade, onde pediu abrigo num convento. O inverno já se fora e a primavera fizera com que nos bosques nascessem o capim macio e muitas flores perfumadas. Sua fama chegara a toda parte. O povo o chamava de “o velho de Jerusalém” e todos sabiam do milagre de São Francisco, que o livrara de Satanás. *** Um dia o conde Guido mandou-o chamar. Estava em luta com seu primo e as coisas não corriam bem para o seu lado. Foi a condessa quem o foi procurar no convento. Levava com ela uma grande quantidade de moedas de ouro para que os frades o distribuíssem em esmolas para os necessitados, como prometera o Conde e não cumprira. O velho concordou em acompanhá-la. Vestiu um hábito de franciscano, para não chamar a atenção, e chegou ao castelo por atalhos que só ele conhecia. Não deixou a sua capa e o seu turbante no convento, pois ficaria muito triste em deles se separar. Eram uma recordação da pátria, longínqua, no Oriente. Levava-os num saco, como os que usam os frades caminhantes. Quando a condessa e o velho chegaram ao castelo do conde Guido ficaram sabendo que o dia tinha sido funesto e muitos soldados do conde haviam morrido em batalha. O próprio conde fora ferido com uma seta no ombro esquerdo. //
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Pálido e deprimido, ele viu chegar sua esposa e o velho. Chamou-o: —Que me aconselha fazer, sábio velho? — perguntou ao estrangeiro. — Eis o meu turbante — respondeu ele. — O conde teu primo fugiu quando o viu no meio da ponte sobre o rio Arno. Manda pô-lo numa das janelas do castelo. Quando o Conde Oderico avistá-lo mandará levantar o cerco ao castelo. — Tomara que dê certo! — exclamou conde Guido. Àquela mesma noite fez com que o turbante fosse içado, como galhardete, a uma das janelas centrais. Quando a escuridão da noite deu lugar ao sol nascente, o conde Oderico viu o turbante e disse: — Ai de mim! Estou perdido! Aqui se combate com armas desiguais. Eu com a espada de ferro e o meu inimigo com feitiçarias e magias. Como previra o velho de Jerusalém, ele reuniu os seus homens e bateu em retirada. Desde aquele dia nunca mais molestou o primo, pois todos afirmavam que possuía um talismã infalível. A condessa viveu tranquila e feliz até sua morte. O velho de Jerusalém, que passou a morar no castelo, entregou a alma a Deus antes dela, e o conde Guido fez erguer um túmulo para ele na capela senhorial. O turbante foi encerrado num cofre de prata finamente trabalhada e conservado como um tesouro, até que um descendente do conde Guido, o Conde Francisco, foi vencido numa batalha. O troféu foi levado para Florença pelos vencedores, junto com outras preciosidades. *** — Assim termina a história do turbante — disse a Nonna – se esqueci de algum detalhe, Chiquinho, pode acrescentar. — Você não se esqueceu de nada, mamãe. Contou-a exatamente como há vinte anos atrás, quando a ouvi pela primeira vez.
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— Como há trinta e cinco anos – retrucou Mateus — e escutei-a hoje com o mesmo prazer de quando tinha apenas cinco anos. — Também temos o nosso talismã, o nosso turbante – disse Chiquinho, e ninguém o levará embora! — Onde está ele? — perguntou Aninha. — Está aqui, é a nossa velhinha, a nossa mamma. Que Deus a conserve! Agora, vamos tomar um bom gole de vinho! Apanhou a garrafa e encheu primeiro um copo que deu a Regina e depois aos outros. Quando todos os copos estavam cheios, Mateus se levantou e disse: — À saúde do nosso talismã! Todos os irmãos, as crianças e as noras responderam em coro. Depois puseram-se a conversar sobre a história que haviam acabado de ouvir e foram dormir. As luzes se apagaram na casa onde reinava a harmonia e a paz, um tesouro muito mais valioso do que o turbante do velho de Jerusalém hasteado no castelo do conde Guido.
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Novella Sei Conto Seis
O Fantasma do Senhor de Narbona Ligia Junqueira Begossi e Armando Begossi
Xilogravura de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 391.
No dia seguinte a tempestade havia amainado; o vento forte se fora,
como por milagre. No entanto, depois do jantar, também nessa noite ninguém saiu de casa, porque até mesmo os homens tinham ficado felizes ao ouvir, contadas pela avó Regina, as histórias que haviam alegrado a infância de todos, e tinham um vago pressentimento de que as estavam ouvindo pela última vez. A velha avó, depois da morte do marido, com o qual havia partilhado pacificamente alegrias e dores, durante quarenta anos, estava reduzida a um espectro e, como se costuma dizer, já tinha um pé na cova. Os filhos que haviam ficado junto a ela disso não se apercebiam. Não viam o seu depauperamento, pois a velhice vem um pouquinho cada dia e não dá para se notar. Mas quando Chiquinho voltara para casa e já perguntara várias vezes se a mãe estivera doente, então, haviam aberto os olhos e o temor de perdê- la se insinuara no coração dos filhos que muito a queriam. — Vovó, a história! Ainda é época de festas! — disse Aninha, mais impaciente do que os outros para ouvir os maravilhosos contos. — Tem razão, ainda estamos em festa, mas exatamente por isso deixe que sua avó descanse, retrucou Carla - que sempre tinha um excesso de cuidados com a sogra. — Não me canso, é verdade! — replicou a boa velha. Além disso, mesmo que contar histórias me cansasse um pouco, que mal haveria? Algum dia todos esses pequeninos, ao recordarem as festas de fim de ano, se lembrarão de mim e rezarão a Deus pela vovó. — Que ideias fúnebres você tem esta noite! ! — exclamou Chiquinho — Mamãe, não quero ouvir você falando de coisas tristes; devemos estar alegres hoje! As palavras de Regina haviam suscitado um arrepio nas veias dos filhos e noras; durante alguns momentos ninguém teria falado se as crianças não insistissem: — Vovó, então vai nos contar uma história?
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— Sim, queridos, esta noite contarei uma bem vibrante: O Fantasma do Senhor de Narbona. *** Imediatamente começou: Há muitos e muitos anos, quando o conde Guido era o senhor de Poppi e de outros castelos dos arredores, aconteceu, na vizinha planície de Campaldino, uma grande batalha entre os florentinos, habitantes de Florença, e os aretinos, habitantes de Arezzo, cidades da atual Toscana, na Itália, sendo uma vizinha à outra, mas naquela época independentes. Arezzo é onde nasceu Guido d´Arezzo, considerado como o iniciador da escrita musical moderna. Foi ele quem deu nome às notas da escala, como a usamos hoje. *** As crianças interromperam a vovó e cantarolaram: — Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó! — bem desafinadinhas. Vamos voltar à história, interrompeu vovó Regina. *** Naqueles tempos (século XIII), esta cidade era mais importante e mais forte do que Florença. Os seus soldados foram arregimentados e quem os comandou foi o bispo Guilhermino, da família dos Ubertini, que gostava mais de ter na mão uma espada do que o báculo (bastão) de bispo. A seu lado combatiam os vassalos do conde Novello que era o senhor de Arezzo. Todo o condado estava em armas. Os inimigos vindos de Florença eram muitos, entre infantes e cavaleiros; eram tantos que demoraram dias e dias para atravessar a fronteira. Os florentinos tinham como emblema, em seus estandartes, um lírio vermelho e eram comandados pelo nobre francês Americo de Narbona, um senhor louro e dizem que muito bonito. Entre os combatentes estava Dante, que depois descreveu a batalha em alguns versos de um livro muito famoso, A Divina Comédia. //
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Em 11 de junho de 1289, que era um sábado e dia de São Barnabé, os dois exércitos se enfrentaram numa grande batalha. Tanto de um lado como do outro morreu uma porção de gente. Os florentinos venceram e, contam as lendas, São Barnabé em pessoa desceu do céu e voou até Florença para dar as boas novas aos senhores daquele Estado que haviam ficado acordados toda a noite torcendo pelo seu exército. Estavam já sonolentos e quase dormindo quando ouviram alguém bater à porta. Uma voz — a do Santo — dizia: “Acordai, que os aretinos foram vencidos!” Era verdade. À tarde a vitória foi confirmada. Por isso, até hoje existe em Florença uma igreja erguida depois desse acontecimento em agradecimento ao Santo. Como já disse, morreu muita gente. Do lado dos aretinos, caiu no campo de batalha o bispo de Arezzo, que foi logo reconhecido entre os mortos pelo seu solidéu. Também morreu o conde de Montefeltro, sogro do Senhor do Castelo de Poppi, e muitos outros nobres e soldados. O conde Guido Novello conseguiu escapar com a sua cavalaria, quando viu a batalha definitivamente perdida. Do lado dos florentinos morreu, além de muitos outros, Americo de Narbona, que comandava diretamente um grupo de cavaleiros e dirigiu a batalha. Ninguém sabe porque, depois do combate, não se pensou no cadáver desse Senhor, mas o fato é que seu corpo ficou insepulto. Os florentinos se preocuparam mais em levar para Florença, como troféus, o escudo, o elmo e a espada do inimigo, o bispo Ubertino, do que enterrar quem comandara gloriosamente os seus próprios soldados. *** “Eu nunca fui a Florença — disse a avó pensativamente — agora que já estou velha e moro aqui no Brasil é que não penso em ir mesmo. Mas, se um de vocês for, vá ver na igreja de São Giovanni se ainda estão lá esses troféus tomados na guerra”. Bem, voltemos à nossa história. *** //
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Os florentinos, portanto, retornaram à sua cidade e na grande planície da batalha, em vez dos feixes de trigo colhido ficaram montes e montes de cadáveres, sobre os quais os corvos se deleitavam. Os habitantes da região tinham tanto medo de se aproximar dali que, quando tinham que ir de Florença a Arezzo ou vice-versa, davam uma grande volta para fugir da estrada principal e daquele tétrico espetáculo. *** Um dos senhores da região era o Conde Selvático, que apregoava não saber o que era medo. Cavalgava dia e noite, sozinho, pelos bosques, passava pelos mais perigosos lugares e ria de tudo que aos outros incutia temor. Uma noite, enquanto sua mulher estava a um canto da sala de armas do castelo, em meio a suas amigas, do outro lado o Conde se vangloriava de suas proezas diante de um grupo de cavaleiros. Um deles disse: — Eu aposto, Conde Selvático, que não tens coragem de cavalgar de noite na planície da grande batalha. — Se eu não fosse capaz disso, respondeu o Conde, seria um covarde! Pois, essa noite mesmo, eu percorrerei o campo cheio de esqueletos, pelo menos dez vezes, de um lado a outro. — Mas... como nos provarás que cumpristes o que nos afirmas? Não sei qual de nós te acompanharia de perto para ver-te executar tal proeza, pois nós todos, um pouco mais, um pouco menos, temos horror daquele campo. — Não é necessário que ninguém se exponha a encontrar os fantasmas dos combatentes insepultos — respondeu o Conde Selvático — Podeis subir à torre do meu castelo e ficar de olho na planície de Campaldino. Eu empunharei na mão esquerda uma tocha acesa e podereis contar dez minhas cavalgadas através do campo. Mas, que prêmio terei por esse desafio? Cavalgar de noite entre defuntos, de graça... não tem graça! — Todos sabem — replicou o cavaleiro que havia falado em primeiro lugar — que eu tenho uma armadura completa, tomada ao francês Americo de Narbona, comandante dos florentinos. Quando eu comprovar que percorrestes dez vezes o campo, em idas e voltas, a armadura será tua. //
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— Senhores, ouvistes qual galhardão me espera — exclamou o Conde Selvático — dentro de uma hora, ou estarei de posse daquela rica armadura ou não me vereis mais, nunca mais! Virou-se para um de seus servidores e ordenou que mandasse selar o seu cavalo preferido. A Condessa, sua esposa, enquanto mantinha os olhos baixos sobre o bordado, conservava os ouvidos bem abertos para o que dizia o marido. Ao escutar a terrível aposta, levantou-se, chegou junto ao Conde, e suplicou: — Meu senhor, desista dessa ideia. Lembra-te que aquele campo ainda está coberto pelos ossos de muitos combatentes que não foram sepultados. Talvez entre os esqueletos esteja o de meu pai, que ninguém, até hoje, pôde encontrar. — Volte ao teu trabalho — querida esposa — replicou Selvático — deixe que eu cuide da minha honra, que está em boas mãos. Prometi e agora só me resta cumprir... Senhores! — acrescentou, virando-se para os amigos — podeis subir à torre e lá ficar de olhos bem abertos. Dentro em breve vos convencereis de que o Conde Selvático não tem medo dos vivos, e, com mais razão, dos mortos. Dali a pouco se ouviu o pisotear de um cavalo no pátio do castelo. Na sala, que ficara vazia, a Condessa caiu de joelhos e disse às suas Damas: — Só nos resta rezar! O Conde Selvático trotou até a planície de Campaldino. Quando lá chegou acendeu a tocha de madeira resinosa e esporeou o cavalo, que galopou pelo campo banhado com o sangue dos valentes guerreiros. Havia apenas começado a galopada veloz quando ouviu um grito, que ecoou partindo de mil bocas. Na noite escura se levantaram centenas de esqueletos dos mortos insepultos, que estendiam as mãos para tentar segurar, alguns a rédea, outros a crina, outros a cauda do cavalo. Selvático esporeou ainda mais o animal e aumentou a velocidade do galope. Porém, por mais esforços que fizesse para evitar ser apanhado por aquelas mãos esqueléticas, de tanto em tanto sentia que lhe afloravam o rosto, a nuca ou as costas e se arrepiava todo.
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O conde corria como um doido e o cavalo, no seu ímpeto, derrubava os esqueletos e os pisava. As imprecações dos mortos chegavam aos seus ouvidos. Percorreu o campo, não dez, mas vinte vezes, e continuaria a galopar ainda se, exatamente no limite da planície, perto do castelo, não lhe tivesse aparecido à frente um fantasma envolto num lençol branco. Quando o viu o seu cavalo se deteve de chofre. O cavaleiro ficou firme na sela, mas, se lhe tivessem aberto as veias não teria saído sangue nenhum. E, o que é pior, sentiu que tinha se urinado completamente. — Conde Selvático — disse o fantasma — que prazer bárbaro é esse, o de perturbar os mortos que já têm a desventura de não estarem cobertos nem por um palmo de terra? Diziam que eras bom cristão, porém estás te mostrando mais desumano do que os povos primitivos que deixam os mortos, amigos ou inimigos, expostos à voracidade das feras e das aves de rapina. — Quem sois vós que me falais com tanta altivez? — perguntou o Conde, trêmulo e molhado, com um fio de voz. — Eu NÃO SOU mais — respondeu o fantasma — EU FUI Americo de Narbona, comandante dos florentinos, os quais, como recompensa da vitória que lhes dei e do sangue que por eles derramei, nem sequer me enterraram. — Que queres de mim Senhor de Narbona? — prosseguiu o Conde já um pouco menos temeroso. — Pouca coisa, Conde Selvático: um pedacinho de terra para enterrar os meus ossos. — E... onde estão eles? — Estás vendo aquele fosso que atravessa quase ao meio a planície fatal? Deves remover um montão de cadáveres que as chuvas do outono empurraram até lá; embaixo encontrarás o meu. Tu me reconhecerás pela alta estatura e mais ainda, por uma pulseira com a imagem de Nossa Senhora que minha mãe pôs no meu pulso direito para me proteger. Em vão, porque acabei morto e ao relento, concluiu com ar enfastiado.
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— Procurarei o teu cadáver, Senhor Americo de Narbona, isso é tão verdade quanto eu sou um Nobre — disse o Conde. Esporeando o cavalo, fugiu apavorado, em corrida desenfreada, até o seu seguro castelo. Agora ELE SABIA O QUE ERA O MEDO, porém era capaz de morrer se tivesse que confessá-lo! *** No pátio estavam os seus amigos e hóspedes à espera. Acolheram-no com gritos de alegria. — A armadura do Senhor de Narbona é tua — disse o cavaleiro que havia feito a aposta. Vi tua face cintilando à luz do archote, pelo menos umas vinte vezes, de um lado a outro, no campo de batalha. Sois um valente! — E que vistes lá no campo? — perguntou outro. — Nada, senhores, apenas os ossos brancos e... O Conde Selvático falava com dificuldade e tremia como uma vara, mas não queria que ninguém percebesse o seu turbamento e, principalmente as calças molhadas. Deixou os amigos, mudou de roupa e entrou na grande sala de armas, onde a Condessa rezava ainda, junto às suas Damas. — Meu senhor, que desgraça te golpeou? — perguntou ela, a cujos olhos não escapava o que o Conde procurava esconder. — Nenhuma, minha Senhora. Venci a prova e minha honra está salva. A Condessa não ousou perguntar mais nada. Recolheu-se, pensativa, a seus aposentos. Nunca vira o seu Senhor pálido e assombrado. O Conde Selvático entrou em seu quarto. Apenas pôs o pé na entrada ficou rígido, ao ver a armadura completa, toda em aço, com a viseira do elmo abaixada. Sobre o elmo se destacava o brasão de Americo de Narbona. Aquela era a armadura que havia ganho como troféu e que o amigo mandara levar a seu quarto. O Conde teve vontade de ordenar que fosse //
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“...ficou rígido ao ver a armadura completa, toda em aço, com a viseira do elmo abaixada. Sobre o elmo se destacava o brasão de Americo de Narbona”.
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posta em outro lugar, mas, pensando que esse fato pudesse chamar a atenção e fazer nascer a suspeita de que ele tivesse medo, deixou-a onde estava. Muito cansado, logo adormeceu. Acabara, porém, de fechar os olhos quando lhe pareceu ver, perto da cama, o fantasma do Senhor de Narbona, envolto no lençol branco. Lançou um grito e despertou. O fantasma estava mesmo, bem em pé, à sua frente. — Que queres? Deixe-me em paz e vá com Deus, ou para o diabo — disse o Conde. — Percebi — respondeu o fantasma — que me fizestes aquela promessa sob o domínio do medo... — Medo eu? — exclamou o Conde Selvático, gaguejando, levantandose e sentando-se trêmulo na cama à procura da espada que sempre tinha ao alcance da mão. — Isso mesmo. Percebi que naquele momento haverias de prometer-me qualquer coisa que te pedisse, mas, quanto a manter a promessa, depois não pensarias mais. Por isso achei bom ficar a teu lado para que cumpras o que me prometeste. Depende de ti livrar-te logo da minha presença. O Conde fechou os olhos para não ver o fantasma, mas sentiu que ele não se afastara da cama. Aguentou firme, pois, embora tivesse um grande medo não era um covarde. *** Levantou-se com o nascer do sol. O fantasma já tinha sumido. A armadura, porém, recordava-lhe continuamente a promessa feita. Era uma verdadeira obsessão. Nesse dia o Conde Selvático montou a cavalo e, sozinho, com uma pá, quase às escondidas, foi à planície de Campaldino. Quando lá chegou amarrou o animal a uma árvore. Dirigiu-se ao fosso indicado pelo Senhor de Narbona e pôs-se a retirar todos os esqueletos que formavam um monte de ossadas, para achar aquela que procurava.
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Suava frio, o pobre Conde, e os camponeses das colinas vizinhas, que o viam nesse tétrico labor, descansavam a pá por um momento e diziam, em voz baixa: — Olhem...! Vejam só...! O Conde deve estar procurando joias ou armas entre os mortos. Depois de muito trabalho o Selvático pôs a descoberto uma ossada intacta. Inclinou-se para examiná-la e, vendo que tinha uma pulseira de prata no pulso, como lhe informara o fantasma, procurou levantála e depositá-la na borda do fosso. Nesse ato, porém, o esqueleto se desconjuntou e caiu em pedaços que se misturaram aos ossos amontoados por ali. O Conde se arrepiou, mas continuou, já agora a procurar os pedaços do Senhor de Narbona entre os esqueletos. Quando achou todos eles amontoou-os de um lado. Abriu uma cova e lá os depositou. Depois, com dois ramos de árvore, fez uma tosca cruz e espetou-a na terra com que cobrira o túmulo. — Amanhã trarei um padre para benzer esta sepultura. A parte mais penosa do trabalho já está pronta — pensou ele alto, como se suas palavras fossem dirigidas ao fantasma, invisível àquela hora. À noite, porém, apenas se deitou e fechou os olhos, sentiu que o fantasma estava outra vez a seu lado. — Que quer agora de mim? — perguntou entre o aborrecido e o temeroso. — Conde Selvático, meu corpo ainda está em parte exposto às intempéries. Tu não sepultastes tudo e me impusestes a companhia de uma perna e de um braço inimigos. Os que me mataram. — O que posso fazer? O teu corpo, Senhor de Narbona, está todo em pedaços e não consegui reconhecer o que é teu daquilo que não é. — Não posso tolerar a maldita companhia que me destes! Enquanto não tiveres reunido os meus legítimos pedaços dispersos passarei as noites dentro daquela armadura que me protegeu no combate. Muito mal aliás... A cada hora eu te lembrarei de tua promessa. De fato, todas as vezes que o relógio da torre do castelo badalava as horas certas, saía uma voz cavernosa da armadura, que dizia: //
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— Conde Selvático, se é verdade que és um cavaleiro, deves procurar todos os meus ossos. Esse aviso, que era repetido a intervalos de uma hora, impedia que o Conde dormisse. Cansado daquela segunda noite passada em claro, ele se levantou ao alvorecer, montou a cavalo e voltou ao campo da batalha. Os camponeses, que pela segunda vez o viam de longe a remexer, entre montes de ossos, repetiam, agora com insistência: — O Conde Selvático ficou doido! *** De fato, ele quase perdera o bom senso, revolvendo aquelas centenas de restos humanos a medir pernas e braços para comparar com os que já estavam na sepultura. Fora obrigado a abrir a cova e, no fim, repôs a terra de novo. Cansado, exausto, o Conde cavalgou até o seu castelo. A Condessa, ao vê-lo tão abatido febril e coberto de suor temeu que estivesse doente e mandou chamar o doutor Cósimo, sábio médico, para curá-lo. Depois de ter tomado o pulso do Conde, ordenou-lhe o velho doutor que fosse para a cama, tomasse um suadouro e bebesse algumas poções de ervas, que ele mesmo preparou, contra as febres malignas. A Condessa não mais saiu de junto ao leito do seu Senhor. Cuidou dele amorosamente. Chegada a noite ela ouviu a voz cavernosa que saía da armadura, repetindo ao soar de cada hora: — Conde Selvático, o meu corpo ainda está em parte insepulto e tu me impusestes a indesejada companhia da cabeça e da mão de um desgraçado inimigo. O som daquela voz fazia desesperar o enfermo que, agora já choramingando, descrevia as angústias sofridas na planície de Campaldino e implorava o Senhor de Narbona que o libertasse daquela perseguição. Ao que o fantasma da armadura respondia implacavelmente: — Tenha piedade do meu estado e da minha estrutura óssea e eu também me apiedarei dos teus sofrimentos. //
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A doença do Conde durou duas semanas e naquele passar de tempo a Condessa ouviu pela sua própria boca, tomado ele de delírio, tudo o que lhe acontecera. A nobre senhora não sabia a quem recorrer para pedir um conselho. Havia, nos arredores, um frade que nunca se levantava de seu catre. Até mesmo à igreja era ele carregado. O frade nunca abria os olhos, mas, em compensação, não parava de falar um só minuto. Dizia-se que frei Celestino tinha contínuas visões e comunicava-se diretamente com os santos. A ele recorria o povo do condado e também pessoas de alta linhagem. A Condessa pensou em procurá-lo e, mandando selar uma mula, cavalgou, com uma boa escolta, até o Eremitério. Lá agiu como os monges lhe ensinaram: apoiou as palmas das mãos sobre as do frade e pediu-lhe: — Meu santo frade, seria capaz de me indicar um remédio para livrar meu senhor da perseguição de Americo de Narbona? Este morreu em Campaldino e seu cadáver ficou insepulto. O Conde Selvático — meu marido — procurou-o e deu-lhe sepultura, mas como os ossos estavam todos soltos ele fez uma grande confusão e na sepultura estão partes que não pertenceram ao corpo daquele Senhor. O fantasma do Senhor de Narbona se pôs ao lado de meu esposo e não lhe dará trégua, nem de dia, nem de noite, até que todos os seus ossos sejam encontrados e deixem de ficar expostos à chuva e ao vento. Devido a essa perseguição o Conde, meu Senhor, ficou doente e não tem paz. O frade pensou um pouco e respondeu: — Se queres salvar o teu Senhor, apanha o círio pascal que está na capela de teu castelo e vá com ele, à meia-noite, à planície de Campaldino, onde está a sepultura de Americo. Cave-a com as tuas mãos e depois deixe cair sobre os ossos que estão lá dentro um pouco de cera derretida. Se endurecer, o osso é do piedoso guerreiro, devoto de Nossa Senhora. Se ficar líquida é sinal de que os ossos são de outro. Faça o mesmo com os ossos insepultos que estão nos arredores. Quando tiver recomposto todo o esqueleto o Conde recuperará a saúde. Amém. A Condessa deixou donativos no Eremitério e cavalgou de volta ao castelo. * * *. //
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Encontrou o marido em tal estado que parecia próximo ao fim. A corajosa mulher procurou acalmá-lo. Quando a meia-noite estava próxima, vencendo o medo e a repugnância, saiu sozinha por uma porta lateral, com o círio pascal na mão, e, rezando, dirigiu-se ao campo da batalha. Lá chegando procurou a sepultura do Senhor de Narbona, que reconheceu pela tosca cruz lá fincada pelo Conde Selvático. Com seus dedos delicados pôs-se a escavá-la, como lhe tinha dito o frade. Quando os ossos ficaram a descoberto fez a prova da cera e verificou que, de fato, a cabeça e a mão esquerda não pertenciam ao esqueleto de Americo. Então ela, a tremer e desesperadamente, pôs-se a pingar a cera derretida sobre os ossos esparsos. Depois de muito procurar, e penar, recompôs o esqueleto. A seguir, arrumou-lhe os braços, formando uma cruz sobre o peito, e disse: — Fantasma errante, que tu repouses em paz e não perturbes, nunca mais, o sono do meu Senhor! Durante a demorada procura e as muitas provas com a cera derretida todo o círio pascal tinha se consumido. Por isso ela teve que voltar para o seu castelo no escuro. A noite era tempestuosa e pesadas nuvens corriam pelo céu. O vento assobiava entre as folhas dos choupos que contornavam o campo recoberto de esqueletos. A Condessa recomendava sua alma a Deus e procurava apertar o passo para chegar logo à cabeceira do marido. Porém, antes de atingir a estrada principal, viu-se cercada por uma multidão de fantasmas, envoltos em brancos lençóis, e que levantavam as mãos na sua direção. Suplicavam-lhe: — Piedosa mulher, como destes sepultura aos ossos de Americo, dai-a também a nós e salvai-nos desse contínuo errar pela terra! Condessa, salvai-nos! Ela fez muitas vezes o sinal da cruz, mas aquelas aparições não desapareciam; ao contrário, a multidão era sempre mais numerosa. Os fantasmas surgiam das entranhas da terra, do fundo das covas, do capim, das cercas, e a mulher se sentia apanhar pelo braço, de forma a quase não poder mais caminhar.
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— Deixem-me, santas almas — dizia ela — o meu Senhor me espera e eu tenho que assisti-lo. — Uma promessa! Faça-nos uma promessa! — gritavam os fantasmas com voz entrecortada. — Está bem. Prometo dar sepultura a todos os ossos que encontrar. — Cuidado, Condessa, não se esqueça das palavras que disse — avisaram as aparições. Deixaram que a pobre senhora se fosse e voltaram a vagar pela planície. Mais morta que viva a Condessa retornou ao seu castelo. Logo ao entrar no quarto do marido enfermo sentiu o coração aliviado. O Conde repousava com a cabeça descansando no travesseiro e nenhuma aparição lhe perturbava o sono. Quando abriu os olhos, na manhã seguinte, perguntou à mulher: — Como pode ser, querida esposa, que o fantasma do nobre francês me deixou em paz? — Acontece, Senhor meu — replicou a Condessa — que o corpo dele já repousa em paz. Por amor a ti, fiz uma ação de que não me julgava capaz. Ela contou ao Conde como conseguira achar os ossos do Senhor de Narbona. No entanto, não disse uma palavra sobre o encontro com os outros fantasmas e a promessa que estes lhe haviam arrancado, mas que ela não poderia cumprir, porque na capela não havia outro círio pascal. *** Foram organizadas festas em homenagem ao restabelecimento do Conde, mas enquanto este recuperava a saúde, a força e a boa disposição, a Condessa se tornava pálida como um lírio e cada dia se mostrava mais deprimida. Isso era devido à angústia de todas as noites, pois logo que se recolhia ao quarto a multidão de fantasmas encontrados à saída da planície de Campaldino se colocava a seu redor e com ameaças e pedidos lembrava-lhe a promessa que ela fizera. — Não há mais círio pascal e não posso tentar o reconhecimento — respondia. //
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— Não importa. Pelo menos enterre-nos, enterre-nos! — gritavam as aparições. Arrastavam-na à força para fora do quarto e do castelo até o campo assombrado, onde a obrigavam a apanhar terra e cobrir os montes de esqueletos. Esse trabalho durava muitas horas seguidas e ao amanhecer a pobre senhora voltava ao palácio meio morta de cansaço. Escondia de todos, porém, o seu sofrimento daquelas noitadas tremendas. Prostrava-a uma febre contínua, mas os fantasmas, implacáveis, diariamente obrigavam-na a cumprir a tétrica tarefa. Quando os montes de ossos não ficaram mais expostos ao sol e ao vento ela finalmente teve paz. *** Recomeçaram, no entanto, as tribulações do Conde. Uma noite ele dormia placidamente quando acordou com a voz do Senhor de Narbona, aquela voz tremenda que o tinha perturbado durante tanto tempo, que dizia: — Os meus ossos estão outra vez sobre a terra. Não te deixarei em paz até o dia em que tenha conseguido reuni-los, TODOS, num sepulcro. Os ladrões abriram a cova e roubaram a pulseira de prata que eu tinha no pulso. Trate de recuperá-la. O Conde Selvático abriu os olhos e viu, ao lado de sua cama, o fantasma de sempre. Dirigindo-se a ele, falou: — Pela manhã irei a cavalo, com os meus homens, e darei uma batida pelos bosques, para descobrir os ladrões e recuperar a tua pulseira de prata. Façamos, porém, um acordo: dá-me oito dias de trégua. — Aceito — respondeu o fantasma— dentro de oito dias me verás outra vez. E desapareceu. O Conde se armou completamente e partiu ao amanhecer com forte contingente para os bosques onde sabia que os ladrões se aninhavam. Dali saíam sempre para as suas correrias e assaltos pelo condado. A condessa acompanhou-o com suas orações, mas ficou aflita, muito aflita, por vê-lo partir para expedição tão perigosa. //
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Depois de cavalgar por montes e bosques a comitiva chegou a um casebre baixo, mal cuidado. Na porta estavam alguns homens que, ao vê-la, se entrincheiraram dentro da habitação. Das janelas atiraram setas contra o Conde e sua gente. — Rendam-se! — gritou o Conde que, nesse meio-tempo, havia mandado cercar a casa por todos os lados. Os de dentro respondiam atirando pedras. — Ponham fogo! — gritou o Conde. Rapidamente foram apanhados muitos feixes de lenha, postos nos quatro cantos da cabana e imediatamente as chamas lambiam as quatros paredes. Os meliantes, vendo que não lhes restava outra saída, subiram pela chaminé até o telhado e continuaram de lá a lançar setas e telhas. O Conde mandou derrubar a porta com um machado e precipitandose no meio das chamas pôs-se a procurar. Ali estavam amontoados elmos, espadas, cintos de metais preciosos, moedas de ouro. O Conde não se interessou por todos esses tesouros. Procurou a pulseira de prata do Senhor de Narbona, que encontrou enfiada no osso do braço direito em torno do qual fora soldada. Apanhou tudo e saiu daquele turbilhão. Dentro em pouco o teto desabou com grande barulho e os ladrões caíram nas chamas, onde encontraram a morte. Quando o incêndio foi apagado, os homens do Conde Selvático recolheram das cinzas uma grande quantidade de ouro e prata e muitas pedras preciosas. Carregaram tudo sobre uma mula e voltaram ao castelo. *** Dois dias depois o Conde e a Condessa se dirigiram em procissão à planície de Campaldino e ali, reunindo num caixão de carvalho os restos mortais do Senhor de Narbona, depuseram-no numa capela. Com o valor do ouro e da prata que haviam tomado dos ladrões, mandaram esculpir em Florença, pelo próprio Giotto, um sarcófago de mármore //
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com a efígie do Senhor de Narbona, vestido com a armadura e deitado sobre o túmulo. Desde esse dia o fantasma do cavaleiro não perturbou mais o sono do Conde. A Condessa, porém, não conseguiu recobrir de terra, com suas mãos, todos os ossos dos mortos de Campaldino. Ainda hoje se diz que, quem por lá passar de noite verá muitos fantasmas envoltos em lençóis brancos. Durante anos e anos o arado não sulcou aquele campo embebido no sangue de florentinos e aretinos. Agora, que está de novo cultivado, ainda são encontrados, aqui e ali, montes de ossos sobre os quais a Condessa espalhara terra. E aqui a história acaba. *** Todos ouvimos o bonito conto com muito interesse. — Você, papai — perguntou Aninha, virando-se para Mateus – você que já foi muitas vezes à Itália e visitou Campaldino, viu lá, de noite algum fantasma? — Eu não. Somente avistei sombras negras que pareciam ser as dos altos choupos. Aninha encheu de perguntas todos os tios que haviam visitado aquela região de seus antepassados. A resposta, porém, não era sempre a mesma. Alguns haviam visto sombras estranhas que não sabiam a que atribuir. Árvores? Fantasmas? Chiquinho lhe assegurou que os mortos não voltam. — Nem sempre — disse Gino... — eu não passaria lá de noite... e lembrou a frase espanhola: Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay...1 1. N.O.: Frase galega, sendo uma das versões: “Yo no creo en brujas, pero haberlas, haylas”. O original galego é: “Eu non creo nas meigas, mais habelas, hainas” (meigas são más, mas bruxas podem ser boas). https://www.catalunyapress.es/texto-diario/mostrar/756228/ persecucion-xx-brujas-europa-empezo-catalunya (2017) (6 de junho de 2021, 18:45); Rangel, R. 2019:110. O destino é o caminho, Ed. de Janeiro, Rio de Janeiro. //
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Novella Sette Conto Sete
O Fazendeiro Ligia Junqueira Begossi e Armando Begossi
Desenho de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 339.
Foi assim que começou a contar a sua história, muito simples mas cheia de mistério.
— Na verdade não tenho de que me queixar, pois, graças a Deus, não sou mais nada, supondo que algum dia eu tenha sido alguma coisa. Desejo a muitos ambiciosos que terminem como eu. Encontrei a certeza e o descanso, o que vale mais que tudo. Hoje vivo coerente comigo mesmo e isso é a maior vitória que se pode conseguir sobre o IMPOSSÍVEL. Finalmente, de inútil me tornei útil para alguns e fiz de minha vida, que não pôde nada oferecer do que dela se esperava, o único ato que ninguém previa, um ato de modéstia, de prudência e de razão. Portanto, repito, não tenho nada de que me queixar. Permaneceu alguns minutos calado e continuou, como que recapitulando: — Agora, minha vida está estruturada, e bem, segundo os meus desejos e os meus méritos. É uma vida rústica que me agrada. Como as árvores que crescem depressa demais eu dei-lhe uma boa poda: ficou menos imponente, menos graciosa e menos vistosa. Mas tem raízes sólidas e daqui por diante dará mais sombra. Tenho três pessoas às quais me dedico e estou ligado por deveres precisos, por responsabilidades que nada têm de pesadas, por laços que não lamento. Minha tarefa é simples e darei conta dela. Ajeitou-se na poltrona, tomou fôlego e concluiu: — A finalidade da existência humana não é sobressair sobre os demais e sim transmitir: a vida, os exemplos e muita coisa mais. Se a felicidade consiste no equilíbrio entre os nossos desejos e as nossas forças, então estou caminhando na via reta, na estrada da sabedoria. Podem testemunhar que viram um homem feliz. *** Ainda que antes de voltar ao refúgio de suas terras delas houvesse saído com um início de celebridade, gostava de se confundir com a multidão dos desconhecidos. Quando lhe falavam de sua juventude ou lhe lembravam algumas luzes bastante vivas que ele houvera feito jorrar, respondia que provavelmente //
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era uma ilusão ou dos outros ou dele mesmo. Na verdade ele não era ninguém e a prova disso é que agora “se parecia com todo mundo”. A propósito, costumava repetir que somente poucas pessoas podem ser consideradas exceções. O papel de ser privilegiado é dos mais ridículos, o menos perdoável e o mais vão, quando não justificado por qualidades realmente superiores. A vontade audaciosa de se distinguir do comum dos mortais é, a mais das vezes, um engano cometido contra a sociedade, uma injustiça imperdoável feita a todas as pessoas modestas que nada são. Atribuir-se uma notoriedade à qual não se tem direito é usurpar os títulos dos outros, arriscar-se a ser pego, mais cedo ou mais tarde, em flagrante delito de pilhagem do tesouro público da celebridade. Talvez ele se diminuísse tanto para poder explicar o seu isolamento (“o beata solitudo, o sola beatitudo”) e para eliminar qualquer pretexto de volta a suas próprias lamentações. Era sincero? Muitas vezes eu me fiz essa pergunta e algumas vezes tive dúvida de que um espírito como o seu, apaixonado pela perfeição, fosse tão resignado. Há tantas maneiras de se dizer a verdade sem revelá-la por inteiro! O desapego absoluto das coisas não admite nenhum olhar sobre aquilo que se deixou para trás. Qual é o coração bastante seguro de si que pode dizer não sentir arrependimento, entre a resignação que depende de nós e o esquecimento que só existe de tempos em tempos? Ele chegara a um alto grau de despojamento de si mesmo e de obscuridade. Tornara-se – conforme suas próprias palavras – tão pouco “alguém” e tão muito “como todo mundo”! *** São tantas as pessoas que poderiam se reconhecer nestas páginas que não vejo a mínima indiscrição em publicar o retrato e a história desse homem, estando ele ainda vivo. Apenas alguma coisa o distingue daqueles que nele verão sua própria imagem. Tem a coragem rara de se analisar, de se examinar, e a severidade MAIS RARA AINDA de se julgar medíocre. //
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Encontrei-o pela primeira vez quando estive em Sombreira, no Sul de Minas, hóspede de um meu amigo médico, Dr. Raimundo. Isso foi no outono, a época do ano que ele mais ama e da qual fala frequentemente. O outono resume perfeitamente as existências moderadas que se completam e terminam num quadro de serenidade natural, de silêncio, de saudades. — Eu fiz o impossível – me disse uma vez – para não me tornar um melancólico. Lamento sempre os que nasceram nas brumas do outono! — acrescentou, rindo, ao mesmo tempo, da pretensiosa metáfora. *** No dia em que o conheci pescava eu no rio que contorna a cidadezinha. Chegara na véspera e não conhecia ainda ninguém na localidade, a não ser o Dr. Raimundo que desde há alguns poucos anos ali vivia e clinicava. Quando nós dois saímos a caminho do local da pescaria, apareceu outro pescador, sobre uma elevação. Caminhava lentamente como quem estivesse passeando, com dois grandes cães ao lado. Soube depois que eram os seus únicos companheiros de caminhadas e que o seguiam diariamente até o rio. A pescaria era um pretexto para satisfazer seu vivo desejo de ar livre e ao mesmo tempo de solidão. — Ah! eis o doutor Olimpio do Vale, que vem pescar – disse-me o médico, assim que o reconheceu. Pouco depois ele se acomodou e jogou o anzol na água. Durante toda a tarde nós o tivemos sempre à vista e, ainda que separados por algumas centenas de metros, acompanhamos a sua pescaria, como ele poderia ter acompanhado a nossa. Porém, seja por distração, seja – como meu amigo me havia feito presumir – porque ele não teria prazer numa pescaria a três, o doutor Olimpio só se aproximou de nós à tardinha. A amizade que se esboçou nesse dia teve como origem uma circunstância bastante curiosa: Começava a escurecer e estávamos – eu e o médico – nos preparando para regressar. Nossa pescaria fora bastante minguada. O fazendeiro Olimpio caminhava em nossa direção. No momento em que quase se encontrava a nosso lado, apanhei meu samburá e ia colocar dentro os poucos peixinhos //
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apanhados, quando o fazendeiro correu até nós com um grande facão e rapidamente decepou a cabeça de uma jararaca que se aninhara no meu cesto e se preparava para abocanhar-me a mão ou o braço. — Senhor — disse-me ele — desculpe a intervenção intempestiva. Mas não havia outra solução. — Obrigado. Muito obrigado — concluí eu abalado pelo choque do que poderia ter acontecido. O fazendeiro era um homem jovem de aparência, ainda que já tivesse passado dos quarenta. Alto, pele queimada, um pouco desajeitado, tinha a fisionomia tranquila, a palavra grave e o ar reservado. Em resumo: uma certa elegância séria. Mas... vestia-se como um camponês: camisa de manga curta e calça de brim. Porém, a qualidade do material de pesca indicava uma boa situação financeira; ademais, os cachorros tinham coleiras de prata, nas quais estava gravado um número. Apertou a mão do médico, que a seguir me apresentou a ele. Trocou duas ou três palavras conosco e deixou-nos imediatamente depois. Deveria ir verificar o ensacamento do café – disse ele – que seria despachado naquela mesma noite em caminhões para os armazéns da firma exportadora, no porto de Santos. *** A colheita terminara, o café fora expedido. As turmas de trabalhadores iam deixar o campo. Só ficariam os colonos e alguns outros auxiliares permanentes. Um pau de sebo levantado junto ao terreiro de secagem, agora vazio, anunciava a festa de despedida, que era tradicionalmente realizada, naquela época. A tarde caía. O sol tinha somente poucos minutos de trajetória para descer até a linha do horizonte. Sua luz se alongava, deixando entre as árvores longos raios de sombra. Do outro lado, algumas casas caiadas de branco se aninhavam em torno da igrejinha de campanário em ponta, como são os templos dessa região. A da fazenda dos Bentevís é muito pequena e muito antiga. //
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A quietude era completa e perpassava pelo ar uma atmosfera de pitoresca indigência, que seria completa sem a beleza do clima, da hora e da estação do ano. A caminho de Sombreira avistamos um grupo de árvores formando um pequeno parque em torno de uma casa vistosa. Era uma típica construção mineira, com janelas em vidros retangulares contornados com molduras em madeira pintada de azul forte. A seu lado aglomeravam-se construções mais recentes: galpões, silos, báias e o indefectível terreno de secar café. Uma névoa azulada que se elevava por entre as árvores indicava que havia por perto um curso de água, afluente do rio onde tínhamos ido pescar. Uma estrada longa e úmida, ladeada por salgueiros (que ali eram chamados de chorões) levava diretamente até a casa principal. O médico apontou para o oásis verde no meio das plantações de café e disse: — O que você está vendo é a fazenda dos Bentevís, do doutor Olimpio. Realmente, ele já lá havia chegado, caminhando tranquilamente com a vara de pescar ao ombro e o samburá na mão, os cães sempre a segui-lo. Deu apenas poucos passos na estrada que o levaria à casa, quando testemunhamos um encontro encantador: Três crianças em alegre algazarra e uma jovem senhora vestida de calças jeans e blusa branca vieram a seu encontro. As crianças correram até alcançálo. A mãe as seguiu lentamente, agitando nas mãos uma echarpe azul. Olimpio pegou nos braços cada criança por sua vez. O grupo animado se deteve um pouco na estradinha arborizada, iluminada pela luz afogueada da tarde e como que envolvido pela placidez do dia que terminava. Depois, a família reunida tomou o caminho de casa e o último raio de luz, vindo do poente, acompanhou o grupo feliz até a porta. Meu amigo médico contou-me então, em poucas palavras, que Olimpio do Vale além de proprietário do lugar era Juiz de Direito da cidadezinha. Devia esse cargo menos à sua influência pessoal do que à antiga estima ligada a seu nome. Contou-me que o fazendeiro e Juiz muito ajudava à //
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população; era estimado e considerado por todos, ainda que não se assemelhasse aos seus subordinados a não ser pela camisa de camponês, quando a usava. O médico acrescentou: — É um homem amável, um pouco retraído, excelente pessoa, simples e discreto, que se desdobra muito em serviços e pouco em palavras. Tudo que posso dizer dele é que conheço tanta gente que lhe deve favores quantos são os habitantes da região. *** A noite que se seguiu a essa jornada campestre era tão bela e límpida que poderia acreditar estar ainda no mês de... Lembro-me de tudo perfeitamente, principalmente por uma certa conjuntura de impressões que se gravaram na lembrança, mesmo as mais fugidias, em todos os planos da memória. Havia lua. Um luar deslumbrante iluminava a estrada para Sombreira com tanta claridade como se fosse dia. A rua que atravessa a localidade em linha reta estava deserta. Ao passar diante das casas ouvia-se somente as pessoas que jantavam por detrás das janelas já fechadas. Um estreito raio de luz passava pelas fechaduras e pelas frestas das venezianas, como um traço amarelo na brancura da noite enluarada. No campo, nenhum ruído, a não ser o cri-crí dos grilos e o coaxar distante de algum sapo. *** Quando o relógio da igrejinha bateu oito horas um rumor alegre explodiu para os lados da fazenda dos Bentevís, fazendo com que todos os cachorros dos arredores latissem ao mesmo tempo. Simultaneamente ecoaram violões e acordeões em músicas de dança. — Há festa na casa do doutor Olimpio – disse-me Dr. Raimundo. — Essa é uma boa ocasião para visitá-lo ainda esta noite, pois que você lhe deve agradecimentos. Quando há dança no terreiro de café é como se a festa fosse aberta a todo mundo. //
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“Havia lua. Um luar deslumbrante iluminava a estrada para Sombreira com tanta claridade como se fosse dia”.
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Dirigimo-nos aos Bentevís, por entre os cafezais, ternamente comovidos pela noite magnífica. O doutor Raimundo que a sentia a seu modo pôs-se a observar as raras estrelas que o claro brilhar da lua não obscurecera e se perdeu em divagações astronômicas, as únicas que um espírito como o dele se permite. *** Dançava-se no terreiro de café, contornado por folhas de bananeira, dispostas como bandeiras, em toda volta. A lua iluminava tudo tão bem que não havia necessidade de outra luz. Quanto aos dançarinos, lá estavam os trabalhadores, os empregados da casa, os contratados que tinham ajudado no ensacamento do café e alguns jovens dos arredores, atraídos pela música. O acordeonista se exibia com firmeza e ímpeto. Conseguia tirar dos instrumentos sons tão fortes e prolongados que rasgavam – literalmente – o ar calmo da noite. Não me admirei que o tivesse ouvido de tão longe. Aposto que até três quilômetros ao redor as jovens, em suas camas, sonhavam com o baile. Enquanto se dançava no terreiro alguns empregados da casa passavam, indo e vindo, da cozinha até a grande varanda onde estava arrumada uma grande mesa com litros de quentão e muitas guloseimas, como pésde-moleque, mães bentas, rabanadas e outras doçarias típicas de Minas. *** Fomos encontrar o doutor Olimpio no seu escritório. Ainda vestia a calça de brim e a camisa com que fora pescar e nada o distinguia dos seus homens, a não ser que todos o chamavam de “senhor”. Atendeu-nos muito cordialmente. — Não se escuse – disse ao doutor Raimundo que lhe pedia desculpas pela hora e o momento escolhidos para nossa visita — sou eu quem tenho de me desculpar em não recebê-los melhor.
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Pouco tenho a dizer desse nosso primeiro colóquio com um homem que depois vim a conhecer, em muitas conversas. Sei, apenas, que após terem se esgotado os assuntos que nos eram comuns: pescarias, colheitas, preços do café, armazéns de Santos etcétera, o nome de Paris surgiu como uma antítese a toda essa simplicidade e à rusticidade daquela vida nas montanhas mineiras. — Ah! que belos tempos! suspirou o doutor Raimundo, que sempre tinha um sobressalto quando ouvia falar em Paris. — Ainda tem saudades? – perguntou o doutor Olimpio. Isso foi dito com um acento particular, mais significativo do que as palavras, que me fez desejar entender o que havia por detrás. *** Despedimo-nos quando os trabalhadores foram cear na grande varanda. Era tarde. Tínhamos que voltar a Sombreira. O doutor Olimpio nos acompanhou, rodeando a casa para cortar caminho. Passando diante de uma janela iluminada e entreaberta avistei a jovem senhora de blusa branca que bordava, velando junto a duas camas iguais. Separamo-nos no portão. Não se ouvia mais a música do baile que fora interrompido pela refeição. A fazenda dos Bentevís voltava a repousar no maior silêncio. *** Poucos dias depois, ao chegar em casa, encontramos um cartão do doutor Olimpio do Vale, que estivera a nos procurar para uma visita. No dia seguinte nos chegou um convite dos Bentevís para um almoço. O bilhete fora escrito pela senhora do Vale, mas assinado pelo marido. Tratava-se de um almoço informal, oferecido aos vizinhos e eles ficariam felizes se comparecêssemos. Esse primeiro convite dos proprietários dos Bentevís na verdade não trouxe nada de memorável, apesar de ter sido uma reunião agradável. Não me referiria a ela se não fosse pretexto para dizer algumas palavras sobre a família “do Vale”: //
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Além do chefe, era composta de duas crianças, uma menina morena que se chamava Beatriz e um menino louro, magro, que – via-se – estava crescendo muito depressa. Já se podia perceber que levaria avante o nome tradicional dos “do Vale” com maior distinção do que vigor. Quanto à mãe, era uma bela mulher, nem matrona, nem mocinha, talvez com pouca idade, mas com a madureza e a dignidade do seu duplo papel. Olhos belíssimos num rosto indeciso, muita suavidade, qualquer coisa de sombrio, que deveria ser causada pelo isolamento a que se acostumara; tudo com muita graciosidade. *** Naquele ano nossas relações não foram muito mais longe. Uma ou duas pescarias a convite do doutor Olimpio e algumas visitas recebidas e retribuídas, que me fizeram conhecer melhor os caminhos até os Bentevís do que os atalhos discretos de sua amizade. Deixei Sombreira sem ter penetrado na intimidade daquele lar feliz. Era assim: LAR FELIZ, que o doutor Raimundo e eu passamos a designar a propriedade dos Bentevís.
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Xilogravura de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 402.
Novella Otto Conto Oito
Fazenda dos Tangarás Armando Begossi e Ligia Junqueira Begossi
Porcelana de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 140.
I Salvador, proprietário da Fazenda dos Tangarás, tenta desvendar o crime da fazenda do Convento mostrando os relatórios que pediu aos que podem saber algo.
Prefácio escrito pelo conselheiro de Justiça, doutor em Direito, de Belo Horizonte...
Levantando o véu que recobre os fatos estranhos e terríveis, acontecidos
na Fazenda dos Tangarás, nas altas regiões da Mantiqueira, há cerca de vinte anos, cumpri apenas o meu dever, na qualidade de executor testamentário.
Pois, segundo as últimas vontades, redigidas pelo testador, o eminente comandante e proprietário da Fazenda dos Tangarás, que morreu piamente em Barbacena, com a idade de setenta anos, no dia em que está escrito textualmente na 3ª parte, parágrafo... “Segundo as escrituras, a idade do homem é de setenta anos. Assim, setenta anos depois, o segredo da Fazenda dos Tangarás poderá ser divulgado, segredo este que, naquela época, durante mais de dez anos, foi motivo de curiosidade de todo mundo. Nós que conhecemos o segredo (e não somos muitos) juramos sobre o Evangelho, imediatamente depois do drama, que esse segredo não sairia de nossos lábios enquanto um de nós estivesse vivo. Eu sou o último sobrevivente. Tenho quase noventa anos. Meus dias estão contados.” Seguem-se disposições do testador, de acordo com os herdeiros ... Conforme o artigo … do Código Civil, quebrei os selos que lacravam um envelope contendo um grande calhamaço de manuscritos, com letras diversas e em papéis de formatos e tintas variados. As anotações foram cuidadosamente classificadas e numeradas pelo aqui citado, com lápis vermelho. São aqui reproduzidas segundo sua vontade, exatamente na ordem por ele indicada, sem mudanças, nem corte. *** //
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Nota explicativa por mim, Salvador ............, escritas na Fazenda dos Tangarás, no final do ano da graça de 19.... depois de ter conseguido juntar os documentos anexos. Deus sabe como e porque precisamente eu quem, há ... anos fui testemunha de acontecimentos espantosos que se desenrolaram sob o meu teto. Acontece que nem eu, nem minha querida esposa, Cecilia, temos o gosto do bizarro e do estranho. Somos pessoas simples, cremos firmemente em Deus e na nossa Igreja Católica Romana e, graças a Deus somos ainda jovens e gozamos boa saúde. Naquela época eu tinha trinta anos; minha mulher vinte e cinco. Nossa união era abençoada com o nascimento de três crianças, todas elas cheias de qualidades e no gozo de todos os bens terrestres. No entanto, a vontade da Providência nos destinara a ser, em nossa bonita e grande Fazenda dos Tangarás, testemunhas incrédulas e perplexas de fatos inexplicáveis, acontecidos entre nossos hóspedes, que, usando dos direitos da amizade e do parentesco, trouxeram às nossas montanhas, às nossas florestas e campos aprazíveis, os seus segredos sombrios. Minha família e eu mesmo ficamos absolutamente estranhos a tudo o que se passou. Nossas mãos e nossas almas são puras. O terror, porém, ainda mora em nossos corações e faz tremer as mãos que estas linhas traçam. Não sou um escritor. Em vez da pena, prefiro segurar rédeas e chicotes, e nas horas de lazer as espingardas de caça ou os pincéis. Por isso é que não me senti capacitado a escrever, eu sozinho, tudo o que aconteceu. Muitos erros teriam sido feitos. Consultei minha esposa e também o reverendo Padre Cura e concluímos que o melhor seria pedir àqueles que, há anos, foram teste-munhas dos acontecimentos mais importantes daqueles dias sombrios, de anotar o que eles haviam visto e ouvido. *** Os relatórios que me foram remetidos, depois de classificados em ordem devida, apresentam um conjunto homogêneo. //
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Todas as testemunhas, sem faltar uma, satisfizeram o meu pedido. Redigiram, o mais conscienciosamente possível o que contataram. Eu fazendeiro, proprietário da Fazenda dos Tangarás, classifiquei tudo por ordem cronológica e completei as lacunas com o que também vi. Foi assim que essa história verídica foi criada. Assumo toda a responsabilidade. Entre os escolhidos, aptos a relatar, dou primeiro a palavra a meu amigo Kurt, fotógrafo no Rio de Janeiro e formado pela Escola de Belas Artes, em Pintura. ***
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II O estranho proprietário e o misterioso crime da Fazenda do Convento
Relatório do fotógrafo e artista pintor Kurt – 32 anos, solteiro – morando no Rio de Janeiro
Lembro-me como se fosse ontem. O dia estava claro, dessa claridade que faz os artistas sonharem... Eu, contente, assobiava no meu estúdio, enquanto caprichava um retrato. Um retrato difícil. O modelo era a gorda mulher de um rico comerciante atacadista! Seria uma surpresa que ela lhe faria no seu aniversário... Quase não se via mais os olhos recobertos por uma camada de pálpebras gordas. Fiquei aliviado quando a rechonchuda senhora desceu as escadas e se despediu. Cumprimentei-a exuberantemente: — A senhora é uma ótima modelo! Pode ficar tranquila que o retrato vai ficar muito bom! Evidentemente, eu teria que “retocar” muito! *** Foi quando avistei o carteiro que subia, com um envelope decorado com grandes iniciais e o desenho de um pássaro sobre um galho. Pulei de contente. Mesmo sem abrir a carta sabia que era um convite para uma caçada, na Fazenda dos Tangarás, perto de São Tomé das Letras. O fazendeiro, proprietário de uma imensa extensão de terras naquela região havia frequentado a Escola de Belas Artes no Rio, em sua juventude. Lá, nos encontrávamos frequentemente. Chegou mesmo a ter um cavalete no meu estúdio e eu lhe corrigia alguns defeitos de sombreado e sempre lhe repetia que em pintura eu e ele nunca passaríamos de diletantes. Foi assim que ficamos amigos, bons amigos. Tornamo-nos companheiros de caçadas e posso dizer que, com uma carabina na mão faço bela figura. Alegremente chamei minha empregada Carolina: //
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“... na Fazenda dos Tangarás, perto de São Tomé das Letras”.
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— Carola, prepare minhas botas ferradas e meu shorte de couro, aquele que trouxe da Europa. Outra coisa, não fique na minha frente dando conselhos quando eu partir. Isso dá azar! Não adiantou. Na hora de sair lá estava a velha na minha frente com suas recomendações! Foi assim que os aborrecimentos começaram. Reli a carta de meu bom amigo, enquanto descia a escada. Somente então vi que havia um post-scriptum:
Venha depressa Kurt. Não p erca tempo. Só o suficiente perca para ap anhar a máquina fotográfica. V IAT Aapanhar Venha MEDI ATAenha IMED MEN TE. MENT Aqui na F azenda dos T angarás estão acontecendo coisas Fazenda Tangarás erturbadoras.. Preciso ter à minha volta gente razoável perturbadoras para me ajudar, ssee for preciso. *** Fui até Caxambu. Depois tomei um ônibus que me levou até à vilazinha de São Tomé das Letras onde o carro de meu amigo Salvador me esperava. E lá fui eu pela pequena estrada secundária que leva à fazenda, a pensar: — Santo Deus! o que estará acontecendo na Fazenda dos Tangarás? Paramos na entrada da grande casa quando começava o anoitecer. Um dos empregados veio abrir a porta e apanhou minha pouca bagagem. Disse: — Todos foram para a sala de jantar ao chegarem da caçada, às duas horas. Ainda estão à mesa. A porta da sala estava semi-encostada e ouvi vozes animadas e risadas, o que me tranquilizou. Pensei: “Kurt, você não está chegando a uma casa infeliz. Porque então aquela carta?”. Após trocar de roupa entrei na sala onde se reuniam os caçadores. Fumavam cigarros e charutos e bebiam vinho. As lâmpadas iluminavam feericamente o ambiente. //
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Meu olhar de fotógrafo distinguiu imediatamente numa das extremidades da mesa um tipo muito interessante. Como gostaria de retratálo! Era muito diferente daquela senhora, que fotografara antes de sair do Rio de Janeiro. Esse me entusiasmava, me fazia vibrar. Eu o retrataria mesmo sem receber nada em troca. Era um homem com cerca de trinta anos. Mais alto do que a média. Um rosto muito expressivo, que me fez lembrar o de um ator teatral, apesar de seu bigode ruivo, em desordem. Havia qualquer coisa de aventureiro em seus olhos esverdeados e no desenho do nariz proeminente e voluntarioso... Observei ainda: “Nada tem de imbecil, ao contrário, ele se diverte fazendo os ouvintes de imbecis e caçoando deles”. Enquanto falava observei o tremer enigmático de seus lábios e como todos estavam atentos ao que dizia. Riam. O orador, porém, tinha um ar de visionário como se ele mesmo não se entendesse, e como se estivesse com o pensamento muito longe... E, que pensamentos obscuros!... Também concluí que era de um sangue frio inabalável. Com seus olhos de cobra fascinava os convivas – pouco mais de uma dúzia – como faz a serpente com a rã, antes de abocanhá-la. Observei os que o ouviam e percebi que todos manifestavam um certo temor. Como bom observador, afinal sou fotógrafo e retratista, compreendi que algo separava esse aventureiro dos outros companheiros de mesa. Eu o imaginaria como um fidalgo espanhol, num traje do século dezesseis, com um chapéu de abas largas onde se destacasse uma pluma branca. Ao lado, a espada rebrilhante! Que bela ilustração haveria de resultar! *** Sentei-me discretamente, para não incomodar ninguém. Na outra extremidade o desconhecido, acariciando com seus dedos esguios de Mefistófeles um anel com uma pedra, verde como seus olhos, dizia: — E porque não teria eu dois mil anos? Não é essa a idade de um homem saudável? Porque, senhor juiz, o senhor fala de morte? Morte! Essa é uma invenção de nossa civilização. Na Índia, há séculos que as pessoas //
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ressuscitam, em reencarnações sucessivas. Lá, quando alguém acha que a vida é muito aborrecida, prende a respiração e... simplesmente APAGA. É enterrado num campo de terra fértil e depois de várias gerações, em que passa de árvore a animal, volta. Eu mesmo já fiz isso várias vezes... — Será que ele já foi à Índia? – perguntou a meia voz um senhor a meu lado. Num lado da mesa alguém perguntou ao aventureiro, que naquele momento parecia o próprio misterioso comandante do Navio Fantasma: — Mas, então, você viveu com seus próprios antepassados! — Meus antepassados? Mas EU SOU os meus antepassados!... Não era só a ironia que seus traços revelavam, mas também um sofrimento estranho que só mesmo meu olhar de retratista profissional deve ter notado. — Além disso – continuou ele — só existe uma pessoa que sucessivamente muda de roupa e encarna diversos destinos, o ator. E, sempre, mesmo diferente todas as noites é a mesma pessoa! — Você também, teria uma vida melhor se fosse ator! – gritou um dos convidados. — Isso eu fui, há quinze anos atrás – respondeu o aventureiro. Ele riu e acrescentou: — Eu era um outro homem, bem diferente do que sou hoje!... — Ora, eu sempre achei que só existisse um Rodolfo Torres. — Esse é o segredo de todas as coisas – falou ele, tão baixinho que os empregados puseram-se a caminhar na ponta dos pés, para poder ouvilo. — Esse é precisamente o segredo que faz misturar as pessoas e depois as junta de novo para que se tornem UMA. Por isso é que o EU não existe, mas existem muitos EUS. É ótimo viver uma vez em um e outra vez em outro ao sabor das circunstâncias, ficando-se, ao mesmo tempo, consciente de todos os EUS sucessivos. — Cada dia ele fica mais doido – disse um senhor que esvaziou com ar aborrecido seu copo de bom vinho importado. //
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Rodolfo continuou: — Foi assim que no século dezesseis, durante a Inquisição, eu estava na Espanha para ser queimado na fogueira devido às minhas ideias, quando entrei no corpo de um monge e no seu hábito pude atravessar todo o país sem ser perturbado pelos meus inimigos. Não me olhe assim, meu caro Salvador – disse ele, dirigindo-se a seu anfitrião – você sabe que não gosto dos padres, fujo deles como da peste! Quando vejo um, mudo de calçada para não encontrá-lo! Mas, mesmo assim, me enfiei numa batina... — E ironicamente, as suas terras se chamam FAZENDA DO CONVENTO – gritou um dos convidados que, depois se encolheu como se tivesse feito uma gafe enorme. Um pesado silêncio paralisou a assembleia. Todos os rostos demonstravam um receio estranho, mudo, pesado. Ninguém mais falou. Ele, o aventureiro, ele que demonstrava tanto sangue frio, ele que se divertira às custas dos convidados como o gato com o rato, ele empalidecera. O seu rosto mudou e nesse momento poder-se-ia acreditar que muitos milhares de anos haviam encurvado seus ombros. Durante alguns instantes teve o aspecto de um velho arrasado... como se fosse Ahasverus, a má consciência errante. Subitamente, porém, ele disse, em tom cordial e percebi que desafiava seus ouvintes: — Que querem? nós somos ainda muito ignorantes, nós os ocidentais. Nada sabemos sobre a ciência da troca entre as almas e como nos encarnar em outros despojos humanos... — Rodolfo, cale-se! – disse baixo o dono da casa. — ...e como tomar a forma de um animal para depois voltar ao nosso corpo humano primitivo e, assim, flanar pelos mundos que formam o Universo. — Já é demais! – gritou alguém. — Mas, o que sabem vocês sobre a Índia e sobre a reencarnação das almas? Você pode matar um jacaré e esse animal pode ser seu bisavô. No Egito, nos templos antigos, os homens têm cara de animal e os pássaros cara de homens... O hieroglifo RA (o escaravelho) representa //
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o sol. Isso é perfeitamente apropriado: “Sobre as tampas que recobrem as múmias sou eu que retenho a chave da vida em minha mão”. Enquanto ele falava, apoiava a mão direita sobre o peito, num gesto místico, e o seu olhar se fixava em algum ponto misterioso. Seu rosto tomava um aspecto iniciático, solene, como nos longínquos tempos dos Faraós. “Fantástico!” – disse a mim mesmo — seria maravilhoso fotografar esse tipo! Muda a cada instante! É mais fácil apanhar um punhado de pulgas com a mão do que as suas expressões! Incapaz de dominar a minha curiosidade por mais tempo, perguntei ao meu vizinho quem era aquele homem enigmático. Visivelmente surpreendido com minha ignorância, ele respondeu: — Mas... é Rodolfo Torres! Eu me lembrava vagamente... Rodolfo Torres... uma história bizarra... de alguns anos atrás... Os jornais haviam falado profusamente. Mas eu leio pouco os jornais. Meu vizinho acrescentou: — Ele é um dos nossos vizinhos. A ele pertence a Fazenda do Convento. Um outro caçador que estava à minha frente acrescentou: — Ele herdou essa fazenda há três anos. — De seu pai? Tive como resposta um silêncio estranho e prolongado... Finalmente o fazendeiro à minha frente (mas, nem mesmo sei se ele também era fazendeiro!) acrescentou rapidamente: — Não, ele a herdou de seu irmão mais velho, Mauro Torres. Este deixou viúva e uma filha, mas a fazenda ele a deixou ao irmão. Havia feito um testamento que pretendia mudar, mas não teve tempo! — O fazendeiro Mauro Torres morreu, então, muito jovem? — Foi encontrado morto, no bosque, com uma bala na cabeça – retrucou o vizinho com uma voz quase imperceptível. A seu lado havia uma velha espingarda de caça, com um tiro disparado. //
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Todos se calaram. Eu sentia que a meu redor as pessoas sabiam muito mais e, principalmente, que pensavam muitas coisas que não queriam dizer ao fotógrafo carioca. No entanto, percebi que não conseguiam controlar completamente a discrição que pretendiam manter. Alguma coisa os oprimia, apesar de suas gargalhadas, as histórias de caçadas e o vinho, ao qual honravam abundantemente. Essa onda de inquietude partia da cabeceira da mesa, lá longe, onde estava sentado o fazendeiro Rodolfo, cuja cabeça curtida pelo sol pareceu-me de repente a de um caçador clandestino. Ouvi sua voz que continuava: — Todo o segredo consiste em se convencer de que se está morto. Então é que se vive. Uma vez, em Ceilão eu... Eu perguntei a meu vizinho, pois estava curioso: — O fazendeiro morto, Mauro, era tão excêntrico quanto o irmão? De novo eu me senti mal, pelo silêncio de chumbo que seguiu minha pergunta. Finalmente, foi o gordo vizinho da frente quem rompeu o mutismo geral: — Era um santo – disse ele enfaticamente. — Conheci-o desde a infância. — Um verdadeiro santo, como está descrito nos Evangelhos – confirmou outro em voz baixa. De repente, as confidências cochichadas se multiplicaram ao meu redor: — Um benfeitor dos pobres. — Um pai, pródigo, para os seus empregados. — Em toda a região não havia outro igual, sua fama era conhecida léguas ao redor. Quando morreu, vieram centenas de pessoas, de muito longe, para as missas rezadas em intenção de sua alma, na capelinha da fazenda. — Um cristão de peso. Dava esmolas para os conventos e obras sociais. Todos os anos ia a Roma, ver o Papa e pedir sua bênção, para si e para os seus empregados. — Quando alguém denunciava algum roubo de fruta ou de lenha, era tempo perdido. Uma vez ele até ajudou uma velhinha pobre a levar para //
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sua cabana a lenha que ela havia roubado de sua própria reserva florestal! — Todas as tardes, diante da porteira da fazenda, ele e sua mulher distribuíam uma sopa para os pobres. — E que casal feliz! que casamento ideal! — Pareciam-se tanto, um com o outro! — Se ele pudesse prever que morreria cedo, teria mudado o testamento... Eu não entendia nada. Comecei: — Posso perguntar? Eu não sei porque então... se é assim... então? — Vamos, pergunte o que quiser, senhor fotógrafo! — Mas não é possível que ele tenha se suicidado… que ele tenha se matado, se... — E quem lhe disse isso? – exclamou o senhor à minha frente. Mais uma vez todos se calaram. Pude distinguir lá longe, na cabeceira da mesa, a voz do herdeiro, do atual dono da Fazenda do Convento, Rodolfo Torres. Ele falava com o charuto inclinado sob os grandes bigodes, as mãos nos bolsos. Exprimia-se em gíria muito jovial, porém bastante pesada, como a de um lenhador. Parecia um homem qualquer. O fotógrafo que existe em mim pensava: “Se eu pudesse com a minha máquina fixar uma por uma as fisionomias dos que aqui estão ouvindo o fazendeiro Rodolfo! Todos tão pouco à vontade, tão hesitantes! Ninguém se atreve a dizer uma palavra em voz alta. Mas, se os lábios estão fechados os olhos falam demais. Eles se compreendem em silêncio, uns aos outros”. Tomei coragem: — Não investigaram as circunstâncias dessa morte? — Procuraram daqui e dali. Fizeram indagações, mas os juízes não chegaram a nenhuma conclusão. — Nenhuma, mesmo? — Arquivaram o processo por falta de provas. //
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Eu estava apatetado, tinha mesmo o jeito de um idiota. Ao meu redor sentia ecoar e vibrar uma porção de coisas a que ninguém se referia. Para terminar, tomei coragem e disse: — Que aconteceu com a viúva? — Elisa? Mas ela se casou outra vez, faz um ano! Era preciso, não tinha como administrar a sua parte na herança, não entendia disso! São algumas casas em Caxambu e Baependi. Valem bastante e lhe dão uma renda! — Onde mora? — Mora aqui perto, numa pequena cidade, onde também tem uma chácara, senhor fotógrafo – respondeu o fazendeiro gordo, dando um suspiro (subitamente percebi que todos à minha volta pareciam sentir falta de ar). Hoje é esperada aqui. Deve chegar em uma hora, com seu segundo marido... Ela e o cunhado, Rodolfo, vão se encontrar face a face pela primeira vez, desde a morte de seu primeiro marido! — Na véspera da morte, o fazendeiro havia tido uma discussão violenta com seu irmão – observou outro dos caçadores. — Por questão de dinheiro – completou um outro. Comentei: — Pelo que ouvi, Rodolfo sabe fazer tudo, menos conservar o dinheiro que tem no bolso! — Sempre teve dívidas. — Sim, mas agora que é dono da Fazenda do Convento, ele sabe de onde tirar o dinheiro... Tudo isso não estava destinado aos meus ouvidos, evidentemente. Eles cochichavam rapidamente no meio do barulho geral, levantando-se da mesa, empurrando as cadeiras. Porém, eu tenho o ouvido tão arguto como o de um cão perdigueiro. Não perdi uma palavra de seus comentários. Senti um friozinho correndo pela espinha. Compreendi que aquele fazendeiro, Rodolfo, era considerado por todos um proscrito, posto no ostracismo, no íntimo de cada um, e uma suspeita terrível pesava sobre ele. Mas ninguém tinha coragem de expor abertamente o que não podia provar, o que o próprio tribunal não tinha podido. Esse homem de olhos verdes hipnotizava a assembleia. //
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Agora, ele estava isolado, de pé, no fundo da sala. Seu olhar dominador afrontava os que o rodeavam. Parecia um domador, com as costas protegidas, na jaula de feras. Meus olhos de fotógrafo, habituados a dissecar o corpo humano, adivinhavam músculos retesados sob as roupas. Enquanto nos dirigíamos a uma sala vizinha interroguei: — O senhor Rodolfo é casado? — Não, e mesmo, com toda boa vontade, não seria capaz de imaginá-lo preso às cadeias de um esposalício. — Aviso-lhe uma coisa: se ele ouvir alguém perguntar se é casado será capaz de provocá-lo. — Muitas mulheres, sim! mas uma mulher! isso não lhe conviria!... Aqueles homens riam alto. Um deles acrescentou seriamente: — No entanto, ele devia pensar nisso, pois é o último homem da família... — Ele tem um primo longínquo, mas é monge. — Sim, Frei Leo, da ordem dos Cruzados do Golgotha. — Uma ordem italiana? – perguntou um dos caçadores. — Isso mesmo, Frei Leo mora em Roma. — Eu estive com ele, este ano, na Páscoa, quando fui recebido pelo Santo Padre – disse um senhor de barba branca, uma bela figura de homem, imponente, que eu soube se chamar Francisco de Assis... era também fazendeiro. — Parece que vem ao Brasil, este ano, para tratar de assuntos eclesiásticos, referentes à Pastoral da Terra. — Ele já chegou no Brasil: está hospedado pertinho, no Convento das Graças. Eu o fui cumprimentar há quinze dias. Aproveitei para agradecer-lhe a ajuda que nos prestou em Roma, a todos os fazendeiros... — Em Roma Frei Leo limpou a sua alma negra, com pregações e conselhos! – disse Rodolfo que repentinamente apareceu a nosso lado, rindo muito. — Como o bom frade deve ter suado para isso, não? — Seria melhor se você também recorresse a ele. Você precisa muito... //
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— Não posso suportar esses homens de óculos, vestidos com saias! – exclamou selvagemente Rodolfo, sem pestanejar – Eu me lixo das feiticeiras, lobisomens e do diabo, mas quando ouço o frufrú de sotanas e que sinto o cheiro de incenso, eu me desvio, se estão em meu caminho, o mais rapidamente possível. Mesmo quando o frade é o meu querido primo Frei Leo em pessoa! E com toda pose se dirigiu à mesa repleta de garrafas de licor. *** Eu o seguia com os olhos, com a curiosidade do artista e não pude me impedir de admirar sua cabeça tão característica e seus largos ombros. — É um tipo extraordinário, como são encontrados nas velhas famílias de latifundiários mineiros – observou um dos caçadores. Também as velas brilham, com uma chama mais bonita pela última vez, antes de se apagarem. Enquanto ouvia essas palavras, uma mão se apoiou no meu braço e reconheci o nosso caro anfitrião, Salvador, meu colega antigo da Escola de Belas Artes. Ele me chamou de lado e me levou a uma pequena sala confortável onde estavam as mulheres. Vendo essas boas senhoras tão agitadas e pressurosas tive pena, sinceramente. Quantas vezes eu as havia fotografado: seus rostos eram límpidos como a água e refletiam o fundo de suas almas. Quanto a Salvador, em sua roupa de fazendeiro típico, não parecia ser um militar, nada tinha de marcial. Vivia repetindo que ia se reformar e viver unicamente para suas três paixões. A primeira era a família. O que era compreensível com a esposa que tinha, dona Cecilia. Não sei descrever os olhos dela: afetuosos, amáveis, bondosos. Parecia uma mocinha, com sua ingenuidade. No entanto, já tinha três filhos: Bubi o mais velho, Wall e a pequena Josefina que começava apenas a caminhar. A segunda paixão do proprietário da Fazenda dos Tangarás era a pintura. Fora meu colega na Escola de Belas Artes. Tinha um bonito rosto de artista, enquadrado por uma barba curta, castanha. Usava óculos //
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pequenos e seu olhar era profundo e sonhador. Um tipo aristocrático, calmo e cismador, pensei. A terceira paixão eu posso repetir aqui, pois sempre o disse a ele mesmo: “Salvador amigo, você é o melhor dos homens, mas tem um defeito: quando se trata de caçadas, você é um egoísta! quando organiza uma caçada, dirige os seus convidados para longe das melhores presas! a tal ponto que proibiu seus empregados de mostrarem a seus hóspedes os melhores locais para se caçar na sua fazenda e nos arredores! Você não os mostraria, nem mesmo ao Papa, se ele aqui viesse, apesar de toda sua religiosidade. Por castigo, os caçadores clandestinos estão acabando com as melhores presas: antas, capivaras, lobos do mato e até mesmo uma onça que mataram há dois meses na grota verde, na região perto do pico do Papagaio!” Pois como ia dizendo, Salvador media a passos a saleta, sacudindo a cabeça. Cecilia, sentada em sua cadeira de braços, não conseguia dominar o nervosismo. Subitamente Salvador me disse: — Por amor de Deus, Kurt, preste-me um serviço de amigo: faça com que Rodolfo deixe minha fazenda AGORA! Dentro de uma hora será muito tarde! — Como vou conseguir isso? Eu nem mesmo o conheço! — Isso não importa. Rodolfo é um caçador apaixonado, também. Por isso está aqui há quinze dias. Ele me ajuda a apanhar os caçadores clandestinos que os meus empregados temem. Já conseguiu prender dois, que entregou à polícia. Ele tem o diabo no corpo se não for o próprio diabo, como acredita Cecilia. Passa noites inteiras lá em cima das montanhas. — Tudo isso é muito interessante, mas não vejo como... O bom Salvador respirava fundo. Preparava-se para me dizer algo. — Pois bem. Eu vou deixar que ele cace a fera mais nobre de minhas terras: a PARDA! Eu sabia quem era a Parda. Uma onça de pelos luzidios. Já a vira uma vez e meu sangue gelara nas veias. Era de madrugada e o animal dirigiase às montanhas. Que bela fera! //
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Salvador continuou: — Você sabe Kurt, onde a PARDA se esconde, sempre no mesmo lugar, a seis horas de subida. Lá onde sempre venta. Nos cafundós, no fim do mundo. Realmente o lugar era como o limite do mundo. Velhas árvores seculares se entrelaçavam. Paredões de granito, com dezenas de metros, caíam abruptos, até o fundo do vale. — Eu, você e meu guarda florestal somos os únicos que sabemos o lugar exato da toca dessa bela onça. Você vai acompanhar Rodolfo... — Por que não manda com ele o guarda-florestal? — Ele detesta Rodolfo. Se eu o mandar com ele é capaz de dar sumiço no fazendeiro. Você Kurt é quem deverá acompanhá-lo, pô-lo na pista da fera. Hoje é noite de lua cheia. Se vocês partirem agora chegarão ao local antes do alvorecer. Leve sua máquina fotográfica com o pretexto de que vai documentar o episódio. Por favor, isso é preciso! — Está bem, tentarei levá-lo! — Às dez horas a cunhada dele, aquela que era viúva e que agora é a senhora Beltrão... chegará com o marido. Ela e Rodolfo não podem se encontrar aqui! — Não, isso não pode acontecer! – gritava Cecilia desesperadamente. — Mas, enfim, Salvador, se o caso é esse não devia ter convidado os dois! — Eu não os convidei! Oh! Não! Ontem ao meio-dia recebi uma carta da viúva, apenas algumas linhas para nos avisar, à minha mulher e a mim: Chegarei amanhã à noite, às dez horas, com meu marido. Peço hospitalidade por alguns dias. Quando chegar explicarei o motivo de minha visita. — E você não poderia tê-la avisado... — Mas, como? A carta foi escrita ela já estando em viagem. Mesmo se pudesse avisá-la, como iria recusar-lhe minha hospitalidade? a pobre viúva anda arrasada, desde a morte do primeiro marido. //
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— Depois de ter tido um marido como Mauro (e não nasce um homem assim em cada século!), ela se casar com uma pessoa como Vanderlei... Não quero falar mal dele, mas... — Nada podemos dizer dele contra, mas também nada a favor – explicou Cecilia, sacudindo a cabeça. – Porque ele não é nada! Nem bom, nem mau, nem inteligente, nem bobo. Não é nada, a não ser rico. — Se ela chegar e souber que o cunhado está aqui irá embora imediatamente. Temos que afastá-lo da casa, pelo menos até amanhã. Seria terrível o encontro dos dois – continuou Cecilia. Ela olhou mais uma vez o grande relógio. A agulha avançava com sacudidelas. Tocou as nove e meia. O eco das badaladas se prolongara até as salas vizinhas. Ao longe ouvia-se as risadas dos convidados. — Dentro de meia hora... – murmurou Cecilia. Salvador segurou as minhas mãos: — Em você Rodolfo terá confiança, Kurt. — Mas ele não me conhece! — Por isso mesmo. Você não pertence ao mundo dele. Ele sabe perfeitamente tudo o que murmuram por detrás a seu respeito. Mas você, amigo Kurt, você ignora essa história lúgubre, graças a Deus! — Não é verdade. Hoje ouvi coisas suficientes, à mesa, para tirar minhas conclusões. Subitamente entrou o fazendeiro Rodolfo. Sorrindo como se se dirigisse a crianças travessas falou: — Que estão fazendo aqui? porque estão se escondendo de seus convidados? Com a elegância de um nobre – que sabia mostrar quando queria – inclinou um dos joelhos e ofereceu um braço, graciosamente encurvado, à dona da casa: — Por favor, venham, os seus convidados me encarregaram de levá-los outra vez à sala. Não nos abandonem!
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Cecilia teria certamente obedecido, tal era a insinuante força de vontade que se desprendia de todo o ser do fazendeiro Rodolfo, se o marido não se interpusesse. Salvador era uma pessoa reflexiva, e disse, mais grave do que habitualmente: — Chega de palhaçadas, Rodolfo, e fique aqui! Cecilia e eu temos que lhe dizer alguma coisa que não pode ser ouvida por uma terceira pessoa! Compreendi que, das quatro pessoas presentes, uma era demais e esta se chamava Kurt, fotógrafo no Rio de Janeiro. Saí de mansinho e fui me encontrar com os outros na grande sala, ornamentada por uma belíssima coleção de armas, ponto de reunião dos caçadores. ***
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III Rodolfo é suspeito do assassinato do irmão Complemento do relatório precedente, escrito por Salvador, o proprietário da Fazenda dos Tangarás
Apenas meu amigo o fotógrafo Kurt deixou a sala, aproximei-me de
Rodolfo. Nada lhe falei da onça parda. Contava me referir a esse assunto mais tarde, depois de tê-lo feito compreender que teria de deixar a fazenda imediatamente. Não fui diretamente ao assunto. Apanhei um álbum de retratos que tinha sobre uma mesinha abri-o numa certa página e disse: — Olha o retrato de seu irmão! Ele o olhou, sacudindo a cabeça: — Oh! que tristeza, o bondoso Mauro – disse. Eu repeti: — Olha bem para o retrato! Então ele sacudiu os ombros e disse com ar indiferente: — Não vejo nele nada de especial hoje. Está como nos outros dias. — Rodolfo!... Senti-me entristecer e minha alma sangrar... Seria possível tanta indiferença e cinismo? Continuei: — Só Deus sabe COMO o bom Mauro foi chamado ao céu tão subitamente e qual a mão que cortou o seu destino nesta terra... Rodolfo bocejou. — Isso tudo, você sabe… quanto a Deus não acredito nele... — ...e no momento oportuno ele julgará o culpado!
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— De acordo! No mesmo instante em que julgar o culpado ele irá mostrar que de fato existe! – respondeu Rodolfo. — Os homens não devem condenar sem provas... – prossegui eu. — Perfeitamente e você fará bem em dizer isso a todo mundo! — Mas, se há uma pessoa por quem temos que ter piedade é Elisa a viúva de Mauro, seu irmão, ela que tanto o amou! — Sim. Mas não posso ajudá-la. Ela não me suporta. — Sei disso. Mas ponha-se no lugar dela. Essa mulher expulsa do seu paraíso, essa mulher que, de um mesmo golpe perdeu o marido e a fazenda. Vê quanta injustiça acumulada! Só estou falando das aparências, Rodolfo. Você que sempre teve dívidas... — Como poderia eu, de outra maneira, pagar minhas longas viagens? — Você nunca desejou ter uma ocupação fixa; não quis nunca criar para si mesmo uma situação estável. Rodolfo me olhou do alto, compadecido, esbelto, com as mãos nos bolsos – o verdadeiro tipo de play-boy. — Só existe um crime nesta terra – disse ele – o trabalho. Esse é o verdadeiro pecado mortal! Estou me referindo ao trabalho “da gente mesmo”. De outra forma, para que serviriam as outras pessoas? Os imbecis? Vocês são todos imbecis! Eu e os outros “aproveitadores”, os salteadores etc., nós todos rimos de vocês! — Você sempre viveu do jogo... — De tapear no jogo – completou Rodolfo, sentando-se. Seus olhos irreverentes tinham tomado a expressão astuta da raposa. — Você faz questão de se mostrar pior do que é. — Meu caro... eu SOU mau – disse ele placidamente. E esticou as longas pernas. — Se você tivesse roubado no jogo, não teria perdido tanto... Finalmente, quando viu o abismo... — E, quantas vezes! – disse ele com olhar sonhador, concordando. — É verdade... muitas vezes. //
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— Então você insistiu com Mauro para que lhe cedesse o pavilhão dos hóspedes, da fazenda. Ali, bem à vontade, você se instalou e... procurou fabricar ouro! — Eu conheci a fórmula, exatamente há quinhentos anos – disse Rodolfo. Seu rosto se tornou sério; ele ficou ensimesmado, pareceu mais velho. — Pois então, depois de tanto tempo, com certeza você esqueceu a receita – disse eu. — Que resultou? Nada. Rodolfo se levantou de um salto e respondeu, caminhando pela sala: — É isso. Quando Marte e Vênus estão em oposição – sussurrou — então tudo acontece ao contrário, tudo vai mal. Não há mais “torta”. Foi o que aconteceu. — Mas foi seu irmão quem teve o prejuízo, gastou dinheiro... Ele lhe deu muito e de bom grado, ainda que me confessasse diversas vezes que achava você doido varrido! Mas no fim ficou cansado e fechou os cordões da bolsa. — É verdade, e no momento em que eu ia conseguir! – gritou Rodolfo. Os seus olhos fulminavam e davam medo, pois sua face se tornara selvagem e irritada. Assim ávidos e fanáticos deviam ser os Bandeirantes paulistas quando partiram à procura do ouro em Minas e Goiás. Continuou com amargura: — Se me tivessem possibilitado trabalhar mais alguns dias... — Quando Mauro recusou, houve uma cena terrível entre vocês dois. Você queria mais dinheiro a todo custo... — E ele dizia que precisava dele para suas insípidas distribuições de sopa! e para suas chatas viúvas e imundos órfãos! e para vestir seus inúmeros irmãos pobres! Eu lhe disse: “Já entendi tudo, você é um monge, um lunático. Mas não foi com essa finalidade que nossos antepassados nos legaram essa fazenda! Foi para que VIVÊSSEMOS! Se quer se ver transformado em estátua, num nicho, renuncie desde já à Fazenda do Convento, vá para a África e se alimente de gafanhotos, vista-se com um cilício de pele de camelo (se acha que não vai ter coceira) e dá-me //
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logo a Fazenda, como prometeu a meu pai. Saberei como usá-la...”. Quando terminei de dizer essas palavras meu irmão chamou o criado e ordenou-lhe que me acompanhasse até a porta! Nunca hei de lhe perdoar isso! – concluiu, com uma calma sinistra. Eu continuei: — Nessa mesma noite, bem tarde, você lhe escreveu uma carta, lá no seu pavilhão de alquimista, pedindo que ele fosse ajudá-lo porque estava no fim... Você não sabia como se livrar dos credores. Que bastava uma pequena ajuda, para despejar o ouro do alambique ao cadinho. Você continuava, na carta, dizendo que, aquilo que um idiota como Cagliostro pudera fazer, você também podia e... só usando o dedo mindinho! E continuava dizendo que continuaria as suas pesquisas e não deixaria a Fazenda do Convento. Preferiria desgraçar alguém... A viúva de Mauro encontrou essa carta na escrivaninha do marido!... DEPOIS! — Mas eu nunca neguei que escrevi essa carta – disse Rodolfo empalidecendo. No rodapé da carta Mauro anotara nessa mesma noite: “Fui muito duro com meu irmão. Estou arrependido. Amanhã bem cedo, irei me reconciliar. Ele tem que ir embora e abandonar a magia. Os camponeses dos arredores já estão ficando temerosos e dizendo que o diabo tomou conta da Casa de Hóspedes da Fazenda. Mas ele é meu irmão. Deus lhe deu um caracter orgulhoso e vacilante como uma chama. Eu lhe apertarei a mão e direi que pagarei suas dívidas e que o ajudarei a conseguir um emprego estável, numa cidadezinha tranquila. Então, talvez ele se case e encontre a felicidade que me foi dada. Quero dizerlhe tudo isso, com toda afeição”. — Uma tapeação, o que Mauro queria me propor – disse Rodolfo desdenhosamente. — Antes do raiar do dia Mauro atravessou o parque solitário para encontrá-lo. Ele não voltou para o café da manhã. Foi encontrado morto, no meio do caminho que leva à Casa de Hóspedes. Uma bala atravessou sua cabeça. Perto dele uma espingarda descarregada... //
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— Mas, sei de tudo isso – disse Rodolfo —porque me está contando depois de três anos? — Porque você desapareceu imediatamente... antes ou depois do assassinato? Pois ninguém pode negar que foi assassinato... — Não quis esperar que o senhor meu irmão me pusesse para fora pela manhã! Pus minha capa e meu chapéu tirolês e como tinha pouco dinheiro caminhei a pé. O tempo estava bom. Dormia ao relento, como um andarilho... Rodolfo se pôs à minha frente e me fixou com seus olhos esverdeados, irônicos e insondáveis, enquanto o suor me gotejava da testa. — Salvador, você se julga mais esperto do que a Polícia? Ele, aquele delegado, era muito inteligente. Não se deixaria enrolar. Não conseguiu levar adiante o inquérito e teve que me deixar livre! — Pouco me importa você! – gritei. — Trata-se da viúva Elisa! Contei a você os acontecimentos como ela os deve ter imaginado! Lembre-se que sempre foi contra você, que avisava o marido... Aos olhos dela você deve... Bem, ponha-se no lugar dela! Tudo que se passou aponta você... e assim pensam todos, a menos que os anjos desçam do céu para proclamar que é inocente... Se a pobre infeliz chega aqui e se encontra face a face com você a quem ela odeia!... — Oh! quanto a isso... – disse Rodolfo pensativamente. — Ia ser um escândalo! Não posso imaginar o que aconteceria, diante dos convidados e dos empregados. Não posso mandar meus hóspedes dormir às dez horas e trancá-los nos seus quartos. Ela vai ver você, assim que passar pela sala, ao entrar... — Certamente. Sou bem alto... – disse Rodolfo. — Não quer evitar isso? O ar está cheio de eletricidade. Vai ser uma tempestade... — Adoro isso! — Rodolfo, sua cunhada está chegando! Precisa se decidir! Cecilia está implorando que você se vá!... Não posso obrigá-lo a isso. A hospitalidade é sagrada, para mim... //
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— Se você ousasse me mandar embora daqui eu revidaria violentamente! Já suportei essa afronta de meu irmão e ninguém mais me fará outra igual! Seria capaz de matar quem o fizesse!... Cecilia olhava apavorada, e nos seus olhos lia-se a certeza que ela não atrevia a pôr em palavras: “Você matou seu irmão, como se mata um animal”. Rodolfo, que parecia adivinhar sempre o que se pensava (e ele tinha esse dom), disse em tom confidencial: — Olha, em minha vida, já suprimi mais de uma pessoa. Quem e onde não vou dizer. Teria aborrecimentos... Cecilia tapou as orelhas e disse: — Chega! Chega!... Rodolfo continuou, friamente: — ... porém, exatamente porque já se está habituado, não se repete isso impulsivamente, como um idiota. Se eu tivesse matado alguém na Fazenda do Convento eu o teria feito de forma mais inteligente. Pode acreditar! Eu não pretendia ouvir mais nada. O tempo corria. Tudo girava a meu redor. Tive que chegar ao que queria: — Rodolfo, é a última vez: quer nos evitar uma cena desagradável? Vou lhe dar um pretexto ótimo. Escuta, a PARDA, sabe onde ela é encontrada? Eu sei, deixo-a para você. Pode ir caçá-la. Ela está... Ele olhou-me duramente. Gargalhou e disse: — Eu fico! Eu fico e me sentarei bem de frente para a porta, na sala grande, para receber a senhora minha cunhada! ***
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IV Encontro da viúva com o suspeito do assassinato do marido Segundo relatório do fotógrafo Kurt Mardoc, do Rio de Janeiro
Pouco depois que deixei Salvador, Rodolfo e Cecilia que queriam
conversar a sós na saleta, ouvi, vindo de fora, o estalar de um chicote e o tropel dos cavalos. O mordomo da Fazenda foi recebê-los e anunciou a seus patrões: — O senhor Beltrão e dona Elisa acabam de chegar. Primeiro entrou a ex-viúva de Mauro Torres. Tinha lindos cabelos louros, presos na nuca com um grande laço de veludo. Seus olhos de um azul sombrio iluminavam um rosto muito feminino, suave, bonito como uma joia. As narinas vibravam ligeiramente, denunciando uma natureza impressionável e nervosa. A boca destoava um pouco dos traços finos de todo o rosto: era carnuda e sensual. Atrás dela vinha o marido, o senhor Vanderlei Beltrão. Assim, atrás e não a seu lado, ele parecia uma sombra projetada pela mulher. Seus traços não denotavam nenhuma personalidade, apenas, era um homem de uns quarenta anos: robusto, florescente e ar despreocupado. Olhos beatamente felizes, rosto que demonstrava pensamentos pouco profundos. Bonachão. Em resumo: o nada. Fotografar esse rosto ou um copo d’água seria a mesma coisa. Mais tarde Salvador me confirmou: — Esse Vanderlei Beltrão só se destaca quando em caçadas, com roupa muito elegante, culote de camurça e belíssima espingarda alemã. Ou então quando apanha um violão e toca músicas sertanejas. Tem uma bonita voz. Sempre foi assim. Conheço-o desde a adolescência. Não evoluiu. — Por que Elisa se casou com ele? Salvador suspirou: //
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— Ele é rico, imensamente rico! Além disso, não faria mal a uma mosca! Quando Elisa entrou viu logo a dona da casa, Cecilia, e foi cumprimentá-la. Um sorriso melancólico iluminava seu rosto pálido. Ela possuía uma grande sedução. As duas mulheres se abraçaram e foi então que ouvi (pois estava perto delas) Cecilia murmurar rapidamente e com medo: — Elisa, seu cunhado está aqui. Não conseguimos afastá-lo! Nesse momento a loura senhora Beltrão desprendeu-se do abraço da amiga, estendeu a mão a Salvador que a beijou elegantemente e depois, com calma, olhou em volta. Não precisou procurar muito. Rodolfo estava a seu lado e olhava-a. Ele não pestanejava. Um reflexo de aço luzia em suas pupilas, a chama de uma vontade dominadora, capaz de fazer os homens se ajoelharem... parecia o olhar de uma serpente quando paralisa a presa à distância. Elisa não se intimidou. Enrubesceu levemente. Ficou um momento imóvel e depois, com o rosto perfeitamente tranquilo, se dirigiu a ele estendendo a mão, diante de todos. Ele tomou-lhe a mão e apertou-a respeitosamente, sem se mostrar surpreso, como se esperasse esse gesto... Depois se separaram. Elisa saudou todo mundo com uma inclinação de cabeça. A seguir, dirigiu um olhar sério e um pouco altaneiro aos convidados reunidos na sala e subiu com Cecilia a larga escadaria de pedra-sabão. Segui-a com o olhar, como todo mundo, creio eu. Mas a meu lado o professor e jurista Jefferson Hamilton me olhou estupefato! Seria possível, naquele cabeça recheada de códigos e leis, terem se acumulado as mesmas dúvidas que no meu simples cérebro de fotógrafo? “Se Elisa estendeu a mão a seu cunhado é porque sabe que ele é inocente (mas só poderia ter certeza se soubesse quem é o culpado, então, porque não o denuncia?). Ou, então, Rodolfo é o culpado e ela o sabe (ou crê sabê-lo), mas, estendendo-lhe a mão revela ser cúmplice, diante da assistência...” //
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Atrás da Elisa e sem que ela se preocupasse, seu marido atravessou a sala com o dono da Fazenda dos Tangarás. Evidentemente, Vanderlei vira sua mulher e Rodolfo se cumprimentarem, pode-se dizer, amavelmente, como convém a um cunhado e uma cunhada. Poder-se-ia pensar que ele, Vanderlei, faria a mesma coisa, pois nada tinha de pessoal contra Rodolfo. Ao contrário, se fosse ele o assassino, era a ele que devia o ter-se casado com Elisa! Foi então que aconteceu o incompreensível. Como se Rodolfo aquele homem alto e vistoso fosse feito de ar, invisível, o marido de Elisa passou a seu lado sem dele tomar conhecimento. Até aquele momento Vanderlei estivera despreocupado, feliz. Ao avistar Rodolfo havia empalidecido e seu rosto se tornara sombrio, cinzento... Olhando firmemente para a frente, apressou o passo. No momento em que, com Salvador, pisava o primeiro degrau da escadaria, sua mulher e Cecilia já tinham desaparecido no corredor do primeiro andar. Na grande sala todos ficaram em silêncio, estarrecidos. Poder-se-ia ouvir cair uma pena. Rodolfo impassível se sentou e acendeu um charuto. ***
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V Elisa estaria disposta a acusar o cunhado? Cecília conta a Salvador
Subi as escadas com Elisa. Eu ia pensando: o novo marido, Vanderlei,
depois do ótimo Mauro! Que diferença!
Pouco depois que chegamos ao quarto ele também apareceu. Esfregava as mãos, sem saber o que dizer ou fazer! Se não estivesse presente seria a mesma coisa, o vazio do Universo entre as quatro paredes não teria se enchido de uma molécula! Elisa virou-lhe as costas para fiscalizar a bagagem que estava sendo trazida pelos empregados. Ela vestia uma elegante roupa de lã fina, própria para a nossa temperatura serrana. Mostrei-lhe as minhas crianças e, depois, nos pusemos a conversar na saleta do primeiro andar, só nós duas. Foi então que ela me explicou: — Eu vim aqui com a finalidade de encontrar Frei Leo Torres o primo de Mauro, meu infeliz marido, morto tão tragicamente – ela pareceume enxugar uma lágrima discreta – e, além de Rodolfo, o último descendente dos Torres que, como você sabe, são oriundos de ilustre família portuguesa; são quatrocentões e têm até mesmo um brasão. — Eu já ouvi falar no Frei Leo. Pertence a uma ordem extremamente severa. Senão me engano tem como postulado a regra dos monges Trapistas... — Raramente ele vem ao Brasil, só de anos em anos! Atualmente é hospede do Convento das Graças. Veio tratar de assuntos eclesiásticos. — Não é longe daqui. — Não, de carro se está lá em menos de uma hora. Por isso é que aqui me hospedei. Não fica bem eu ir procurá-lo no convento. — Sim, os frades não gostam de visitas femininas. Eu e Elisa rimos um pouco disso e ela continuou: //
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— Também, convidar o Frei Leo em nossa casa, acho que não seria fácil. Moramos longe e a viagem é longa. Nossa casa está sempre cheia de hóspedes. Eu não teria calma e concentração necessárias para um encontro com ele. — Entendo Elisa... — Preciso falar-lhe, na qualidade de último sobrevivente de meu marido defunto (além de Rodolfo, é claro, mas este não conta, é um doido, irresponsável). Não vai ser uma conversa demorada. Sei que é um homem muito rígido, como o são todos daquela ordem. Mas é justo e bondoso. — Também ouvi essa opinião sobre ele. — Foi então que pensei... “Cecilia e Salvador são tão compreensivos... Creio que não recusarão me atender... Poderiam hospedar Frei Leo por uma noite, na Fazenda dos Tangarás, para que eu possa conversar com ele”. — Com prazer. — Na verdade, atualmente vocês estão com a casa cheia de caçadores. Foi o que percebi quando entrei. Frei Leo não estaria exatamente no lugar que lhe convém. Mas estou certa que não incomodaríamos ninguém... — Vou mandar arrumar um quarto para ele, imediatamente. Diga-me apenas quando devemos mandar o carro buscá-lo no Convento das Graças. — Não é necessário. Já falei com Frei Leo, ele tomará o ônibus que vai a Juiz de Fora e descerá na estrada, num ponto que ele conhece e que fica a uma hora daqui, a pé. Ele mesmo combinou, dizendo: Cristo fez sua pregação a pé; um monge não precisa, pois, de um carro para viajar. — E... quando chegará? — Quando souber que já estou aqui. Já mandei um aviso, por um mensageiro, quando fiz uma parada no Posto de Gasolina Bem-te-vi aqui perto. Provavelmente ele chegará amanhã à noite... Você me perdoa de ter disposto de tudo... mas sabia que concordaria, pois sei que me tem muita amizade... //
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— Pode ter certeza, Elisa. Depois de tudo o que você passou, minha estima aumentou, querida. Levei-a até o seu quarto, onde estava o marido, sentado num canto, olhando fixo à sua frente. Não tinha um ar muito inteligente. – Também, sua principal ocupação é ser rico! é não fazer nada! Pobre Elisa! *** Fui correndo avisar-lhe da visita de Frei Leo Torres. Disse-lhe que Elisa ia ter uma entrevista com ele e era para isso que viera. Ele deu um suspiro aliviado e observou: — Esperemos que Frei Leo Torres traga alegria a esta casa. Ele é mais um sábio do que um apóstolo. Vive longe do mundo, é quase um misântropo. É uma grande autoridade em Direito Canônico. Espero que Elisa não o consulte sobre algum assunto profano. Ele se sentiria como um míope que procura os óculos. — E como homem? — Um padre benévolo, compreensivo. Sempre de bom humor e de olhar sorridente. — A presença de um santo homem como Frei Leo há de purificar o ar das influências perniciosas. Já adivinho a quem ele lançará o seu exorcismo, o seu “Apage Satanás!”. ***
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VI Padre Danilo faz “fofocas” – 2º Dia Carta do Padre Danilo, Vigário
Excelentíssimo amigo e benfeitor. Conforme Vossa vontade, anoto
aqui, numa comunicação modesta, algumas manifestações da cólera divina, que se manifestaram como se fosse a visita do Anti-Cristo, no mês de abril do ano de .... em nossa tranquila região. Eu acabara de celebrar muito cedo a missa na igreja da Praça e atravessava a rua, para voltar ao presbitério. Ainda não era dia claro e a igreja não se enchera. Só vi, assistindo à missa, algumas mulheres idosas. Os homens e os jovens – moças e rapazes – acham que ainda terão muito tempo para rezar e se precipitam, assim, na larga estrada do inferno. Acrescento, meu caro amigo, que também não avistei nenhum de seus convidados. Esses senhores só vão à casa de Deus quando há uma comemoração alegre ou triste, como batizado, casamento, funeral. Nos domingos ensolarados, assim que o sol aparece, eles já se encaminham para as florestas e montanhas, pobres pecadores! Não pensam que nossa alma imortal é mais importante que um javali, um veado mateiro, uma onça pintada... Não condeno as caçadas desses ilustres cavalheiros, mas que Deus os faça encontrar a via justa que leva à vida eterna! Entre as mulheres do povoado, às quais me referi, estava, naquela manhã, uma senhora desconhecida, que durante toda a missa ficou mergulhada em profunda devoção, dir-se-ia, dolorosa. Essa senhora elegante viera da fazenda. Meu sacristão que, como o senhor sabe, mete o nariz em tudo, contou-me, após a missa, que era a senhora Beltrão que, na véspera, tarde da noite, havia chegado à Fazenda dos Tangarás, com o marido. Sei, também, que outro hóspede estava em sua fazenda desde há quinze dias. Seu nome não me é muito familiar, mas me lembro que fiquei //
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impressionado, porque todas as vezes que com ele cruzei me evitava ostensivamente. Só conheci dele a aparência exterior que poderia definir, sem faltar à caridade, como um “aventureiro”. Alto, bem apessoado, ágil. Tinha o andar e a pose de um grande senhor. Mas seu rosto, cortado por uns bigodes esvoaçantes, não irradiava a benevolência daqueles bons senhores, dos quais o senhor, Sr. Salvador Bueno Ribeiro, é um exemplo. Seus traços denunciavam a inquietação daqueles que caminham sem se deter nem repousar e por isso têm o olhar fugidio e a fisionomia instável do Judeu Errante. Ora, quando eu saía da casa de Deus, esse homem caminhava lentamente, em roupa de caçador mas sem carabina, um par de binóculos a tiracolo e um cajado na mão e, como se procurasse alguma coisa, atravessou a praça que separa a igreja da casa paroquial. Quando esse senhor me avistou, fez meia volta, caminhou ao redor da praça, pelo outro lado, para evitar me encontrar, assim como antigamente se fugia dos pestilentos para não se ser atingido pelos seus eflúvios maléficos. Fiquei aborrecido, porém mais ainda curioso. Percebi que essa atitude de aversão não poderia ser dirigida à minha humilde pessoa, mas à minha situação de um servidor de Deus. Então, eu também dei a volta, por detrás da hospedaria, e voltei à praça, encontrando-me face a face com o cavalheiro de pernas compridas, num jardim cheio de flores, que lá existe. Ele não pôde fugir e eu levantei o meu chapéu com toda cortesia: — O senhor me permite uma pergunta? Esta é a terceira vez que escapa, quando me aproximo. Será que tem medo de mim, padre-cura sertanejo, a quem todas as crianças abraçam com confiança? Claridades e sombras múltiplas bailaram em seus traços cáusticos e nelas não pude ler com clareza o que ele estava pensando. Bruscamente, replicou: — Gostaria de encontrar o Diabo, reverendo? — Não. Evidentemente que não – respondi. Instintivamente fiz o sinal da cruz. Vendo isso, ele abriu um sorriso, mostrando os dentes brancos e disse: //
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— Pois, para o Diabo é a mesma coisa: encontrá-lo... Rindo maliciosamente e sem me dar tempo de retrucar, descreveu um círculo, prudentemente ao meu redor e continuou seu caminho. Segui-o com o olhar. Estou certo que, se eu o tivesse aspergido com água benta, as gotinhas teriam crepitado e fumegado, sobre esse personagem hostil, como sobre a chapa ardente de um fogão. *** Foi nesse momento que vi a senhora Beltrão deixar a igreja, onde deve ter-se demorado em orações. Então compreendi o que procurava o cavalheiro de pernas longas... Ele se deteve diante dela. Os dois se olharam fixamente. Não se cumprimentaram com as mãos e não trocaram uma palavra... A seguir, o desconhecido, que depois vim a saber ser o senhor Rodolfo Torres, falou-lhe rapidamente. Tinha o rosto tenso e não pestanejava. Ela o escuta, atenta. Depois, lentamente, puseram-se a caminhar, em direção à Fazenda dos Tangarás. Cortaram caminho pelo bosque. O homem falava sempre e a mulher não dizia uma palavra. Não resisti. Dirigi-me também à fazenda, por outro caminho, e lá entrei, sendo levado até o senhor. Contei-lhe sobre a atitude estranha de seu hóspede e o fato de ter fugido de mim já pela terceira vez. O senhor, meu caro amigo, me respondeu: — Ora, reverendo, Rodolfo Torres nada tem contra o senhor, pessoalmente. Ele vira as costas a todos os padres, em geral. — Porque? – perguntei eu. — Porque é biruta... Nós o conhecemos bem, no nosso meio. Não deve ser levado a sério. — Bem, se esse senhor não é são de mente, então... estou mais tranquilo – eu disse. O senhor continuou: //
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— Neste momento está lá em cima no Pico. Aquele é o lugar onde se sente melhor. Com os binóculos fica observando os animais. — O senhor se engana, hoje ele está aqui perto, no bosque. — Onde? — Com a senhora Beltrão. Essas palavras inofensivas caíram como um raio e imediatamente o senhor e a senhora Cecilia perguntaram: — Rodolfo e Elisa? — Sim... isso mesmo. — O senhor os viu, reverendo? — Há quinze minutos. Os dois trocaram olhares estupefatos, misturados a uma ansiedade que não compreendi. Mas senti-me opresso, como acontece com algumas pessoas quando a tempestade se aproxima. *** Percebi que o casal desejava falar de assuntos confidenciais e me levantei para me despedir. Ainda me perguntaram. — O senhor acha, reverendo, que ainda estão no bosque? Respondi afirmativamente. Um empregado apareceu, atravessando a sala. Dona Cecilia perguntoulhe: — Sabe onde está o senhor Vanderlei Beltrão? — No quarto, senhora. — Que está fazendo? — Quando lá fui, o senhor Vanderlei não fazia nada. Estava sentado, olhando para a frente. Eu lhe disse: — Bom dia, senhor Vanderlei! — Mas ele não respondeu, com certeza nem me ouviu. //
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Então eu pensei (que Deus me perdoe se fiz um julgamento malévolo) “E, enquanto isso, sua bonita esposa passeia com um cavalheiro a quem o remorso ou alguma má ação não deixa olhar um padre de frente”. *** Caro amigo, é assim que ficaram em minha memória os estranhos fatos e — para mim meio nebulosa — a conversa que tivemos naquele dia de abril 19... Que Deus proteja e abençoe, o feliz e virtuoso casal. Don Danilo ***
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VII Rodolfo domina Elisa? Salvador conta mais alguma coisa...
Quando nosso excelente amigo, o padre Danilo, com a discrição que
o caracteriza, se retirou, CecIlia exclamou:
— Que será que Rodolfo dizia a Elisa? Que poderia o assassino pelo menos presumido de seu marido lhe falar nesse encontro furtivo no bosque? Cecilia, sentada a meu lado, se quedou pensativa. De repente levantou os olhos ao céu e balbuciou: — Senhor! perdoai a ambos! Conduzi-os ao bom caminho! Olhei para ela. Seu rosto refletia angústia; perguntei-lhe: — Cecilia, só Deus sabe o que se passou naquela trágica noite... — Querido, será que não percebe? Vocês, homens, pretendem saber tudo, adivinhar tudo... Sabe o que Rodolfo quer de Elisa? Simplesmente que ela não diga tudo o que sabe... e que, provavelmente, só ela sabe... Ouvia o coração de minha mulher bater com força. Exatamente como senti o meu, outrora, quando matei a primeira onça pintada... Ela continuou: — No íntimo, nós sabemos que Rodolfo matou o irmão! — Aqui, somente entre nós: também tenho quase certeza disso – afirmei. — Nós temos QUASE certeza, mas Elisa SABE! Fiquei petrificado. Cecilia começou a falar sem se deter, como inspirada: — Ela sabe. Ela tem as provas de que o cunhado matou para se livrar das dívidas, herdando a fazenda!... Ela pode entregá-lo à Justiça! — Querida, o que está dizendo...? //
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— Rodolfo sabe que está em suas mãos, que sua vida lhe pertence... Compreende, agora, porque ele a segue? Ele joga com todos os seus trunfos... — E seriam... — À força de artifícios Rodolfo tem conseguido, desde o dia do crime, que Elisa se mantenha calada. Há tempo que ela guarda esse segredo, que ela esconde da justiça o assassino de seu marido! — Cecilia... — E o infeliz Beltrão, seu segundo marido, sabe que Rodolfo matou seu predecessor... Não viu que ontem passou na frente de Rodolfo sem o cumprimentar? Sem mostrar sequer que o tinha visto? Ao passo que Elisa estendeu-lhe a mão, diante de todos...! Eu levantei a cabeça. — Salvador, tenho pena desse pobre homem. Ele está sentado em seu quarto, olha para a frente e nada diz. Sabe que sua mulher foi enfeitiçada por Rodolfo, que este fechou os lábios da cunhada por artifícios demoníacos, no mesmo dia do assassinato. — Sua hipótese, querida, peca por uma falha, uma grande falha... — Qual? — Porque Elisa se cala? Cecilia ficou muda. Tremia um pouco. Continuei: — Elisa precisaria ter uma razão para poupar o assassino do marido! — Certo. Isso foi dito em voz alta, mais firme do que eu esperava. Fui avante: — Nós conhecemos Elisa desde a infância. É uma boa pessoa, amorosa, conscienciosa... sua melhor amiga! — É verdade. — Além disso, é religiosa, vai à missa, crê em Deus... — Isso mesmo. — Foi muito feliz em seu casamento com Mauro e todos sabem disso. //
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— Concordo. — Pois, então, seja lógica. Pense com a cabeça e não com o coração e diga: “Porque, em nome de Deus, essa mulher se calaria?” Cecilia ficou muda. — Porque ela deixaria de lado os sentimentos magoados de uma viúva para subtrair um fratricida da Justiça? — Porque... — Pense o que significa essa palavra: fratricida. Porque ela não o aponta, clamando: “Foi ele, e as provas estão aqui!”? — Porque ela o ama! Cecilia gritou isso angustiada. E repetiu: — Porque ela o ama! Porque ele a enfeitiçou no dia em que matou seu marido... Ele enfeitiça todos vocês! Faz de vocês todos o que quer!... Ele hipnotiza qualquer pessoa, só em olhá-la! Calamo-nos por alguns minutos. Eu estava embasbacado. Finalmente lhe disse: — Se assim fosse, por que ela se casou com Vanderlei e não com Rodolfo? Minha mulher estremeceu. — Casar com o assassino do próprio marido...? – disse. Não Salvador, a natureza se revoltaria. O poder magnético que Rodolfo possui sobre as pessoas não vai tão longe. Mas é bem forte para conservar Elisa sob sua influência. Ontem quando ela chegou à fazenda foi em direção a ele maquinalmente, como enfeitiçada, sorrindo... Eu também estremeci. Mas não podia concordar com minha mulher. Repliquei: — Cecilia, você acha que um ser humano possa, por amor, guardar um segredo tão terrível, por muitos anos e até por toda a vida? — Não. — Então?
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— Ela já não aguenta mais. Olhe-a bem. Ela gostaria de se livrar desse peso, mas não pode entregar Rodolfo à Justiça. — Então não tem saída... — Tem sim, tem uma. Por isso é que Elisa veio se hospedar em nossa casa. — Não entendo... — Ela pediu a Frei Leo Torres, o último parente do finado marido, que aqui viesse. Ela confiará a ele o seu segredo, e nenhum juiz, nem ninguém, o saberá, enquanto o mundo existir. — Mas Rodolfo, esse Caim, se sentirá livre! – eu concluí. — Ela aliviará seu coração, descarregando sobre um outro o seu fardo. Frei Leo pertence a uma ordem severa e não será bondoso com ela, mas nunca saberemos o que lhe dirá e que penitência lhe imporá. — Sei o que ele vai exigir... que ela entregue à Justiça as provas da culpabilidade de Rodolfo... Com a mão tremente Cecilia apontou para o bosque iluminado pelo sol primaveril. — Isso mesmo... Por isso é que ontem ela foi cumprimentá-lo assim que o viu, porque já tem pena dele. Foi também por isso que, angustiada, foi se ajoelhar esta manhã na igreja, na missa matinal. Também é por isso que agora está conversando com Rodolfo e este a está hipnotizando para que nada conte a Frei Leo. Se vencer mais uma vez, ele a dominará para sempre e ela se calará até a outra vida! — Nada podemos fazer... - retruquei. *** Bruscamente Cecilia exclamou: — Elisa está de volta! Realmente, pela janela vimos a sua silhueta elegante, com as mãos nos bolsos do casaquinho branco. Caminhava rapidamente, parecia uma menina. Estava sozinha. Subiu a escada da varanda e logo em seguida ouvi uma porta se abrir. Ela tinha entrado em casa. //
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Tomei meus binóculos e prescrutei a paisagem para além do bosque, até à subida que leva à montanha. Rodolfo caminhava, em passos gigantes e via-se o movimento forte de suas pernas, como o de um corcel. A terrível discussão que certamente tivera com Elisa não parecia ter-lhe deixado marca. Com certeza ia em busca de uma caça que avistara ao raiar da aurora, com seu possante binóculo. Fui interrompido por uma tosse discreta, de um dos meus empregados, que viera comunicar que o carro estava pronto para conduzir à estação dois dos meus hóspedes, que queriam se despedir. ***
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VIII O casal Beltrão discute Alguns fatos esclarecedores anotados por Cecilia, para seu marido, em abril de 19...
Na grande casa da fazenda eu tinha uma salinha que considerava só
minha e onde me retirava frequentemente quando Salvador tinha convidados para suas frequentes caçadas. A um lado dessa salinha ficava o quarto das crianças, com a sala dos brinquedos, bem retirada do movimento. A babá, Sonia, cuidava muito bem das meninas. Do outro lado, entrava-se em meu “refúgio” por uma escada estreita, em pedra, que tinha à meia altura uma janela. Essa janela dava para um pequeno pátio, cercada em três lados pelas paredes da casa, ao abrigo do vento, e orientada para o Norte. No verão era quente e pouco íamos lá, mas no inverno – geralmente frio, aqui no Sul de Minas – era o nosso cantinho ideal para tomar sol, conversar, bordar, ler. Era todo contornado por canteiros floridos. Raramente as visitas aqui eram recebidas. Eu subia a escada e parei um pouco para tomar fôlego, quando avistei, à janela, a babá que olhava muito interessada, esticando o busto e o pescoço para fora, como quem quer ver melhor. Muito entretida, não me viu chegar. Eu toquei o seu ombro com os dedos, ela deu um gritinho, e ficou vermelha como quem é pega com “a boca na botija”. — Que está espiando da janela? Ela alisou os cabelos com as mãos e respondeu em tom ofendido: — A senhora pensa que eu estava espiando alguém? Como pode imaginar isso? Eu não sou bisbilhoteira, não senhora. — Parece-me que é sim, e também algo indiscreta – respondi. – Que lhe interessa se o senhor Beltrão e sua mulher passeiam juntos no pátio? — Não estava espiando os dois... – e com ar de quem disfarça – só estava vendo se não fazia muito frio para levar as crianças a passear... //
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— Faz muito frio, o tempo está enevoado – respondi irritada. – Não precisava ficar aí debruçada para ver isso. Agora vá. Quando ela se foi, eu não pude me impedir... Também me debrucei na janela, pensando: “Os fins justificam os meios...”. Prestei atenção ao casal que discutia, mas não consegui ouvir uma palavra do que diziam em voz baixa, mas com ênfase, andando de um lado para o outro. Elisa falava, agitando suas mãos muito brancas e Beltrão a interrompia a todo momento, tomando a palavra veementemente. Parecia que um estava contra o outro; seus lábios demonstravam exasperação e o rosto a vontade de persuadir o interlocutor. Era claro que não estavam de acordo e que discutiam desesperadamente. Seus rostos estavam descompostos. Até mesmo os traços inexpressivos dele demonstravam raiva. No entanto, o rosto de Elisa contrastava com a expressão do marido. Refletia uma resistência hostil e inquebrantável contra a qual se perdiam os argumentos do homem. Dela eu só ouvia algumas palavras, repetidas de vez em quando: “Não! não!”. Mas minha curiosidade foi mais prudente do que a de Sonia. Quando ouvi alguém subir a escada saí da janela. Reconheci os passos firmes e regulares. Eram do meu marido. — Olha lá embaixo, Salvador – disse quando ele chegou perto de mim. No pátio o “segredo da Fazenda do Convento” está sendo apresentado... Entre Elisa e Beltrão, estou certa que Rodolfo caminha, invisível. A solução está lá embaixo, perto de nós, diante de nossos olhos... mas indecifrável. Meu marido pôs os óculos para ver melhor. Eu continuei a observar por sobre os seus ombros e disse: — Vê como eu tinha razão, Salvador? É claro como o dia. Beltrão está dizendo a Elisa que ela deve falar a verdade dos fatos para que o culpado seja castigado. — Mas... você acredita que ela vai confessar isso ao Frei? — Ela espera, no fundo de seu ser, que ele a absolva sem pedir-lhe que denuncie Rodolfo. //
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— Cecilia... — Beltrão, que no fundo é um bom homem sem malícia, perdeu a paciência. Está cansado de viver ao lado de uma mulher cúmplice de um crime brutal. Ele exige que Elisa diga o que sabe, não a Frei Leo, mas no Tribunal. — E Elisa? — Vê como ela sacode a cabeça inexoravelmente? O pobre marido perde o seu tempo. Rodolfo é mais forte que ele! — Mas, santo Deus, porquê? — Eu já lhe disse. Ele enfeitiçou Elisa, desde o dia do crime e ela o ama, ama o assassino do marido! Como eu gostaria de saber ler as palavras nos lábios...... ***
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IX O casal Beltrão se ama Contado pelo fotógrafo e artista Kurt, do Rio de Janeiro
Meu amigo Salvador, o dono da Fazenda dos Tangarás, me pôs à janela
da escada que levava à saleta de sua mulher Cecilia.
— Kurt, olha lá em baixo e diz o que está vendo. Não vá dizer que não tem nada com isso! Abre bem os seus olhos de fotógrafo retratista e também pintor. Talvez consiga entender o que nós não conseguimos. Bem. Não compreendi muito o que eles queriam de mim. No fundo o senhor Vanderlei e senhora não me interessam. Se fosse Rodolfo! esse tem personalidade! Mas o casal Beltrão! Provavelmente levam uma vida pacata e nunca fizeram nada na vida. Ele principalmente. Seu rosto? Um retratista dele se esquece antes mesmo de tê-lo visto. Mas a bela senhora Elisa, com seus cabelos louros e olhos expressivos! Essa eu venho observando desde ontem quando chegou. Agora percebo que sua cabeça elegante e as narinas inquietas não podem ser fixadas facilmente num retrato. No momento, por exemplo, está completamente diferente. Mesmo sonhando nunca a poderia imaginar assim. Repentinamente os dois se olharam gravemente, com veneração mesmo, como se contempla as imagens dos santos... Naquele momento até Vanderlei me pareceu belo, a resignação absoluta e inevitável enobrecia seu rosto, geralmente vulgar... Ela cruzou os dois braços sobre o peito, como quem tem frio e ele envolveu o seu ombro, com o seu braço. Entraram lentamente na casa e desapareceram de minha vista. Virei-me para Salvador e Cecilia. Os dois se aproximaram, inquietos: — O que viu? – falaram quase ao mesmo tempo. — Imaginem! – respondi, como bom carioca que sou. //
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— Diga logo! – insistiu Cecilia. — Vou dizer, pois nada vi de mau, ao contrário, tudo perfeito: dois esposos que se amam... — Que quer dizer? — É a verdade: eles se amam como marido e mulher, estou acostumado a ver e observar isso; é um espetáculo agradável. — Você acha que um se importa com o outro? — Mais que isso: o senhor Vanderlei e a senhora Elisa se amam tanto como dois seres podem se amar nesta mísera terra! ***
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X Rodolfo dá outro show e prevê sua morte Carta remetida por um dos convidados/caçadores, o Sr. Alex
Já que o meu amigo deseja que lhe diga o que vi e ouvi em sua fazenda
dos Tangarás, certa noite de abril, entre os caçadores e as gentis senhoras reunidas por ocasião de um almoço de confraternização... Aqui vai! Não tenho a verve de um historiador. Desde os meus estudos de ginásio, no colégio dos Jesuítas, não tenho usado a caneta senão para assinar recibos e para alguns bilhetinhos carinhosos... Portanto, peço que desculpe os meus erros. O caro amigo diz que me incumbiu dessa descrição porque os outros convidados, que já estavam na fazenda a mais dias, se sentiam tomados de receios ao passo que eu – chegando de repente – tinha o espírito liberado. Cheguei, me apresentei ao senhor, beijei a mão de sua senhora e tive a honra e privilégio de me sentar à direita dela. Fiquei completamente à vontade em sua casa. Sua senhora foi de uma grande amabilidade e nem seria necessário que ela se desculpasse dizendo que naquele dia estava um pouco distraída e com enxaqueca, portanto não tomava parte muito ativa na conversação, sentindo-se mesmo um pouco distraída. Realmente, ela estava pálida e via-se que um pouco cansada. Na frente dela estava uma outra senhora, uma linda loura, de olhos azuis como os do mar. Tinha as faces rosadas e via-se que estava um pouco inquieta, como se esperasse algo... Eu confiei em voz baixa à minha vizinha de mesa: — Ela parece um anjo caído do céu. Soube, em seguida, que era a senhora Beltrão e viúva do fazendeiro Mauro Torres, casada atualmente com o senhor Vanderlei Beltrão, também presente ao almoço. A loura perguntou à dona da casa: //
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— Cecilia, querida, já teve notícia de Frei Leo? Minha vizinha respondeu: — Não, ainda não tenho notícia de sua chegada, Elisa. Essas senhoras falavam baixinho porque um dos convidados dominava toda a conversa geral. Ele discursava, mas o que dizia não era nada edificante. Tinha um rosto sarcástico e um bigode grande, de português. Os olhos esverdeados tinham ar de se divertirem à custa de todos! Mas era sério e dir-se-ia que acreditava nos absurdos que dizia com tal convicção que se era quase levado a acreditar!... — Vocês me perguntam se existem espíritos? Mas os espíritos poderiam também perguntar se existem os seres humanos! Porque a humanidade não seria o irreal, que apareceria como fantasmas para as realidades invisíveis? Quando eu estive no Egito vi numa noite de lua cheia... isso foi na expedição de Napoleão Bonaparte... — Por favor, me diga – perguntei ao meu vizinho da direita – quem é este lunático? — Mas... é Rodolfo – respondeu ele resignado. Ah, sim! Eu já ouvira falar dele! Era ele, pois... Depois desse esclarecimento olhei atentamente para o senhor Rodolfo que continuava a pontificar: — O inexplicável nos envolve, em todos os lugares e em todos os tempos porque nós mesmos somos o inexplicável. Provavelmente não existimos e estamos dissolvidos no nada. Somos o nada. Tudo é o nada. Um pouco adiante, à distância de algumas cadeiras, um senhor de barba branca, um juiz aposentado, comentou: — Isso é sabedoria demais para mim! — Por exemplo, meritíssimo juiz – replicou Rodolfo com toda calma – este cálice de vidro não produz som, não tem cheiro, é transparente. Portanto, não existe. Só existirá quando eu o quebrar, pois pelo menos produzirá um som. Chamamos de vida essa existência, mas a vida na realidade começa depois da morte. //
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— Esse Rodolfo é sempre assim? Foi o juiz quem respondeu: — Hoje ele está excepcional! Rodolfo revirou um pouco os olhos, sentou-se e começou a comer um belo pedaço de peito de peru. Disse: — É bom não falar muito dessas coisas, pode acontecer algo. A gente acaba por fazer acontecer, e o que seria melhor... Eu lhe perguntei: — Senhor Rodolfo, o senhor pensa, dizendo isso, evitar a influência dos espíritos, esconjurá-los? — Ao contrário. São os espíritos que nos esconjuram! – disse ele. — Chamam-nos quando querem, fazem de nós o que querem, pois somos apenas seus reflexos... e isso é o Destino Humano. — Mas, então, onde estão esses espíritos? – falou do outro lado da mesa um senhor que não era fazendeiro, mas fotógrafo no Rio de Janeiro, além de pintor. — Eles estão em toda parte, senhor Mardoc – respondeu o orador — não nomearei todos os que estão conosco nesta mesa, as senhoras ficariam com medo. Mas as duas senhoras – as únicas que estavam na mesa, não prestavam atenção ao que Rodolfo dizia. Uma delas, a loura, perguntou à dona da casa: — Não compreendo como Frei Leo ainda não deu notícia de sua vinda! — Ele aparecerá, vai ver, Elisa. Tenha paciência! Pouco depois as duas senhoras pediram licença e se retiraram acompanhadas por um dos senhores. O Meritíssimo que agora com a saída da dona da casa se encontrava a meu lado, aproximou a cadeira e me disse que era o senhor Vanderlei, marido da senhora loura. Esse casal não veio, como nós, para a caçada, mas com uma finalidade pia, pois desejavam encontrar um Frade de uma ordem italiana, que era esperado //
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naquela mesma noite e que era primo do senhor Rodolfo. Eles eram os últimos dos Torres, desse ramo. Rodolfo continuava o seu falatório: — Nada é mais pedante do que um fantasma – disse ele. Uma vez eu me hospedei num hotel, instalado onde fora um velho convento colonial, lá pelas bandas de Barbacena. Pedi que me dessem o quarto mal assombrado, onde diziam aparecer um monge que morrera há cincoenta anos... Exatamente à meia-noite ele veio e atravessou o quarto. Até aqui, nada de anormal... O estranho consistia em que o monge andava a meia altura do quarto, como se levitasse. No dia seguinte pedi para ver as plantas do antigo convento e entendi: tendo sido transformado em hotel, e as celas dos monges sendo muito baixas, foi suprimido um pavimento e o fantasma caminhava pisando onde antigamente era o chão da cela superior. Nada mais simples! Alguém perguntou: — Rodolfo Torres, é verdade que você pode prever quando cada um de nós vai morrer? — A hora de cada um – respondeu, olhando a todos com seus olhos esverdeados. Todos sentiram um calafrio, mas o senhor Salvador interveio com autoridade: — Rodolfo, por hoje basta! Não deixe as pessoas temerosas e não estrague a nossa caçada! — Mas... eu não fiz nada! – replicou Rodolfo jovialmente. — Mas já percebi onde quer chegar. Você é capaz de apontar cada um de nós e dizer quem vai morrer primeiro, simplesmente dizendo o nome! – É o que eu ia fazer... — Cale-se! — Um de nós, aqui na sala, morrerá dentro de pouco tempo. — Cale-se, Rodolfo! — ... talvez esta noite. E seu nome... //
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— Mas, faça-o calar! — Rodolfo, seja razoável. Não pronuncie esse nome! Você deixará a pessoa apavorada... Ele estava sentado, com o cachimbo inclinado na boca... — Ele não se apavorará, meu caro – respondeu Rodolfo. — Como é que pode saber? — Porque eu não sou medroso, Salvador! Rodolfo tirou uma baforada e esticou as pernas. Salvador exclamou: — Você? — Eu mesmo, sem dúvida. — Quer dizer... que você? — É bem possível. — E fala com essa tranquilidade? — Que tem isso? – respondeu Rodolfo com ar espantado. – Eu já morri diversas vezes. Estou habituado. Não é nada ruim. — Mas como pode ser? Você é um homem forte! — Você não pensa seriamente, Salvador, que vou ficar doente. Há trezentos anos que não tenho um resfriado... Lentamente Rodolfo se levantou, espreguiçou-se, esticou os braços, olhou a sua volta... O silêncio era total. — Se eu aparecer morto, aqui, na sua casa, Salvador (ele falava calmo como se falasse do tempo) então, é que fui assassinado! — O quê? Todos estavam abismados! — Se eu lhe digo isso agora, Salvador, é para que DEPOIS você não pense que me matei. De outra forma, sei que ouviria todo mundo dizer: “Naturalmente, tinha a consciência pesada! o sangue que derramou há três anos na fazenda do Convento! a morte misteriosa de seu irmão
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Mauro!...”. Eu não quero, ouviu? comentários tão idiotas, não tenho nenhum motivo para me suicidar por causa disso! Portanto, repito, se eu aparecer morto é porque me assassinaram, meu caro! Depois disso, Rodolfo se sentou outra vez displicentemente, e nós ficamos a conjeturar, estupefatos e intrigados. Passados alguns minutos, o dono da casa perguntou: — Mas, quem poderia querer a sua morte, Rodolfo? Rodolfo fez um gesto de defesa, com uma das mãos, e com voz de visionário respondeu: — Quem? quem?... Meu caro Salvador, EU sei quem. Mas não direi o nome dele, pois o assassinato ainda não está consumado, e não sou daqueles que acusam o próximo de um crime que não cometeu. *** Foi nesse momento que um dos empregados entregou uma carta ao senhor. Você abriu-a e sua face desanuviou quando a leu. Perguntou: — Quem trouxe a carta? — Um sertanejo, vindo do lado de Caxambu... — Onde estão as senhoras? — Já subiram para a saleta de dona Cecilia. — Pois vai avisá-las que Frei Leo estará aqui provavelmente esta noite. Ou melhor, leva a carta a senhora Elisa Beltrão, para que ela mesma leia. Rodolfo se levantou e perguntou com ar ameaçador: — Quem vai chegar esta noite? Um devorador de breviários? — Seu primo, Frei Leo Torres. — Todos os homens de batina são iguais. Não gosto de nenhum deles! — Nada a fazer, Rodolfo. Frei Leo virá, quer você queira, quer não. De qualquer forma, falamos disso hoje e você já devia saber...
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— Passei todo o dia na montanha, atrás de um veado-mateiro. Cheguei uma hora antes do jantar, cansado. Não sabia da vinda de meu primo. — Pois bem. Agora sabe. Ele pode chegar de um momento a outro. Rodolfo se dirigiu à porta e se despediu. — Adeus a todos! Vou indo! — Fique, Rodolfo! — O cheiro de incenso, meu caro, me faz vomitar. Sabe, acabaria brigando com o tonsurado e você não iria querer isso, não? Vou descansar um pouco, pois conto sair à meia-noite para subir a montanha... Tenho a honra de desejar a todos uma boa noite – concluiu, saudando para um lado e para outro, como um fidalgo espanhol! A seguir, com o corpo bem reto e a cabeça empinada deixou a sala. Sentimo-nos aliviados, no íntimo. Mas, à nossa volta se fez um vazio estranho... O senhor pediu licença e se retirou. Ninguém dizia nada. Ninguém sabia o que dizer... Cada um ficou mergulhado em seus pensamentos. Parecia que Rodolfo ainda estava entre nós. Para mudar de ambiente, fomos nos sentar na grande sala da frente. ***
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XI A chegada de Frei Leo O que contou o Administrador da Fazenda dos Tangarás
Meu patrão, o senhor Salvador, mandou dizer que um reverendo, Frei
Leo, seria hospedado na Fazenda dos Tangarás e chegaria à noite (isto é, naquela mesma noite). Ordenou que eu preparasse para o monge um quarto, conforme a sua importância. A fazenda estava cheia de convidados. Como dois dos ilustres caçadores já tinham partido naquela manhã, um dos aposentos fora destinado ao senhor Alex Potiguar, uma visita também ilustre. Ficara livre o outro quarto e o senhor (o mesmo) que conhecera o reverendo monge quando, esteve em Roma, havia me repetido o que eu já sabia, dito por dona Cecilia, isto é, que o reverendo eclesiástico tinha idade avançada, pouca saúde e era asmático, talvez devido aos rigores das regras seguidas pela sua ordem. O fato do quarto contíguo ser ocupado pelo senhor Rodolfo não faria diferença para o santo homem, como pensei. De outro lado, o senhor Rodolfo nunca estava no quarto. Tinha o hábito de deixar a casa em plena noite, muito antes do alvorecer para subir as montanhas. Ele gostava de se sentir livre e por isso mesmo pedira que lhe fosse reservado um dos quartos do rez-do-chão. Apesar de acordar muito cedo o senhor Rodolfo não incomodava ninguém e nunca pedia nada aos empregados. Saía, mesmo sem tomar café, punha a espingarda nos ombros, saltava pela janela, passava pelos cães, que nunca o estranhavam, apesar de serem ferozes, pulava o muro e seguia pelo bosque. Mandei preparar o quarto com todo cuidado. Providenciei um crucifixo na parede, atrás da cama. Às dez horas da noite eu estava no alojamento do porteiro quando ouvi um som de sino, agudo e metálico, chamando no portão. Era noite de lua cheia e a claridade quase como a do dia. Essa luz iluminou a alta //
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Pintura de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 269.
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estatura de um monge vestido de negro, à espera diante do portão. Tinha na cabeça um chapéu de abas largas. Uma das mãos segurava uma velha valise e na outra tinha um bastão, no qual se apoiava. Eu mesmo corri até o portão, abri a porta e disse: — Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo! O reverendo Padre respondeu: — Nos séculos dos séculos, amém! Olhou-me com bondade, através de seus óculos. Era de uma certa idade, como já me haviam avisado. Os cabelos completamente encaracolados. O aspecto calmo e solene, de um sábio, demonstrava que não era frade de uma obra esmoleira (como aqueles que apareciam frequentemente na fazenda, pedindo alguma coisa para os pobres), mas de um convento onde os frades se dedicam à contemplação e ao estudo. — Sou Frei Leo Torres — disse o padre. Eu respondi: — Tenho o prazer de lhe desejar as boas vindas. Ao entrar na casa, o conduzí ao seu quarto e ajudei-o a tirar o sobretudo. Passamos pela galeria lateral, porque os caçadores estavam reunidos na grande sala da frente. Perguntei-lhe se o quarto estava bom e ele respondeu: — Tudo está ótimo para mim, meu amigo... Diga a seus patrões que já cheguei e que não pretendo incomodá-los a esta hora da noite, com cumprimentos sociais. — Eu não deixarei de avisar. — Eu lhe peço ainda, senhor, para avisar à senhora Elisa Beltrão que estou aqui e que se desejar, estarei à sua disposição esta noite mesmo, daqui a uma hora aproximadamente, assim que tiver sacudido a poeira da viagem e repousado um pouco. — Vossa Reverendíssima pode estar tranquilo que avisarei a senhora Elisa. Eu sabia que dona Elisa estava no primeiro andar, com dona Cecilia, na saleta. Subi a escada e dei o recado. *** //
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XII Elisa teme ser assassinada Anotações de Cecilia Bueno Ribeiro
A caneta treme em minhas mãos à ideia de descrever o que segue. Mas Salú, meu querido marido, quer que eu o faça. Ele deseja ter uma relação sem hiatos dos acontecimentos daqueles dias.
Nosso fiel administrador, Raul, acabara de nos avisar da chegada de Frei Leo e estava à nossa frente, esperando ordens. Eu estava no meu quarto, com Elisa sentada a meu lado numa poltrona. Seu frágil corpo parecia sustentado somente pela sua força de vontade. Sem titubear ela disse: — Diga, por favor, a Frei Leo que eu lhe agradeço vivamente o ter vindo e dentro de uma hora, se ele já estiver pronto, conduza-o aos meus aposentos. Raul saiu e Elisa se pôs a tagarelar de outros assuntos sem importância e fiquei tão chocada que deixei-a falar sozinha. Às vezes acho-a estranha. Outras vezes desejo ajudá-la e conhecer o enigma que guarda em segredo por detrás de sua fronte lisa. Mas não ousara interrogá-la. Conheço-a bem e sei que as pessoas de aparência suave são as mais teimosas e ninguém faria com que Elisa se abrisse se não o quisesse fazer. Já eram quase dez e meia quando Elisa se levantou, alisou o vestido e disse: — Já está na hora de ir ao meu quarto. De outra forma, Frei Leo lá chegará e eu não estarei. Não me dissera uma palavra sobre o marido, Vanderlei. Ela o considerava como uma pedra atirada ao mar... Acompanhei Elisa até a porta: — Vai Elisa. Diga a Frei Leo que ele é benvindo nesta casa e que estou contente com isso. Amanhã nos conheceremos. //
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— Eu direi — respondeu ela distraidamente. Seus pensamentos estavam longe. — ... e espero que a sua presença traga bênçãos e felicidade a esta casa — continuei. Elisa riu alto. Fiquei chocada: — Que tem hoje? Você parece uma pessoa totalmente frívola! Se é assim que se prepara para conversar com um santo frade... Mas seus lábios nervosos conservavam a mesma expressão equívoca e desagradável. Compreendi que sua alegria era fictícia e que minha amiga representava uma estranha comédia, para si mesma e para mim. — Elisa, como ousa rir desse frade que é tão bondoso, que se incomodou a vir até aqui por sua causa... Ela retrucou com vivacidade: — Não estou rindo do frade! Deus me livre... — Então por que ri? — Do que você disse sobre bênção e felicidade... – disse ela — você é uma ingênua... para você todos são bons e honestos! Elisa pôs a mão em meu ombro, olhou-me fixamente, repentinamente tomada de pânico, que tentou reprimir, e murmurou: — Está cega, Cecilia? Está surda? Não percebe que um desastre vai acontecer conosco? rápido como uma avalanche? — Agora... que Frei Leo está em nossa casa... — Precisamente por isso. Elisa continuou: — Ouço o troar do trovão, tudo se torna negro... Meu corpo está gelado... — Elisa, Elisa, volte a si! Eu a sacudi. Suas pupilas estavam dilatadas pelo terror, os lábios entreabertos. Temi que desmaiasse e carreguei-a até uma poltrona. Com movimento impaciente ela voltou a si, empurrou-me e se pôs de pé. Seus olhos fitavam algo longe, fora do quarto, fora da fazenda... //
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Supliquei: — Por favor, Elisa, acalme-se! — Estou calma, como está vendo — respondeu. — Você está agitada. Sente-se. Beba um copo de água. Eu vou avisar... — Quem? — Frei Leo, para lhe dizer que não vai lhe falar hoje e que amanhã haverá tempo... Elisa segurou meus pulsos com a força de um homem, para que eu não fosse. Comecei a chorar, não de dor mas de angústia. — Elisa, se não me soltar eu grito! – ela soltou meus pulsos e eu continuei – Quer mesmo falar com o frade, no estado em que está? Solenemente ela pronunciou: — Se eu quero? Finalmente! Finalmente! Eu vou beijar as mãos dele, apaixonadamente... Eu me ajoelharei e beijarei o chão que ele pisa. Ele porá a mão sobre minha cabeça e me abençoará. Ela disse isso com olhar de beatitude. Então fui eu quem a empurrou pela porta a fora, já que esse encontro noturno não podia ser adiado. — Adeus, Cecilia... Adeus! — Mas você não vai embora, Elisa... — Quem sabe? Para longe... muito longe… esta noite... — Elisa — gritei — o que mais quer dizer? Ela aproximou o rosto do meu, tão perto que senti sua respiração entrecortada (ofegante) e quente e falou baixinho, acentuando cada palavra: — Pode ser, Cecilia querida, que eu morra esta noite. — Está doida? — exclamei. Ela sacudiu a cabeça tristemente, depois mais calma retrucou: — Não... não estou doida.
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— Vai se suicidar? — Me suicidar? Deus me livre, seria um pecado... Talvez alguém me assassine. — Quem? — perguntei. Ela não respondeu. Pôs a mão sobre os meus lábios como para me dizer que mantivesse isso em segredo e continuou, misteriosa: — Todas as coisas prosseguem o seu caminho. Lembre-se sempre de mim e... Boa noite, Cecilia. Ela caminhou o mais rapidamente que pôde pelo corredor, em semiobscuridade, desceu a escada para se dirigir ao seu quarto onde estaria esperando frei Leo. ***
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XIII Vanderlei se sente ameaçado. Elisa se abre com Frei Leo. Rodolfo não vai à caçada. Novas anotações de Salvador, proprietário da Fazenda dos Tangarás
Eu acabara de entrar no meu escritório quando minha querida mulher
Cecilia apareceu terrificada, ofegante, e se jogou em meus braços. Cecilia desabafou logo: — Salú, Salú. Elisa disse que talvez morra esta noite! — Deixa disso! — Verdade, ela disse, agora há pouco... — E porquê? — Ela não explicou bem! — Mas... todo mundo está doido nesta casa? Cecilia sentou-se a meu lado e com olhos lacrimosos começou:
— Salú, primeiro ela me disse ADEUS. Depois explicou que alguém a quer matar... — E quem seria? — Você está perguntando demais. Ela não quis dizer... — Deus do céu! Os Tangarás estão virando um covil de malfeitores. Tenho que cuidar, agora, da vida de meus convidados que estão sob o meu teto! — Você poderá defendê-los contra OUTROS, querido, mas não contra ELES MESMOS. — Mas o que tem uns contra outros? — Há qualquer coisa no ar... Uma maldição atingiu nossa casa... Acho, Salú, que é o espírito de Mauro que voltou e anda entre nós, que tão //
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amigos éramos dele. Não encontrará repouso enquanto o criminoso não tiver expiado sua culpa. Alguém aqui guarda um segredo... Eu e Cecilia tivemos o mesmo pensamento sobre a pessoa culpada. Olhamo-nos significativamente, mas nada dissemos. Bateram à porta. — Entre! — exclamei. Não esperávamos essa visita. Era Vanderlei! Um pouco sonolento como de hábito, mas sempre com ar bonachão e impessoal. No entanto, parecia deprimido. Nesse momento tive pena dele. Parecia deslocado. — Posso ficar um pouco aqui perto de vocês? Mandaram-me embora de meu quarto. Frei Leo está lá, com Elisa. Pode demorar! Enquanto isso, estou sobrando... Fiz sinal para que ele se sentasse e ficasse à vontade. Vanderlei pediu licença e acendeu um comprido charuto (usando para isso uma tira de palha de milho que apagou em seguida). Tirou algumas baforadas. Eu disse: — Falávamos de sua mulher. Estamos muito preocupados com ela. — Não se preocupem com Elisa. Conheço o que tem. São os nervos... Senti-me aliviado de um grande peso. Ele continuou: — Os nervos, como estão vendo, a fazem imaginar em certos momentos uma porção de coisas. Acreditem-me, não devem levar o que diz pelo lado trágico. — Você acha?... — Conheço bem minha mulher. Vê fantasmas em pleno dia. Tem um temperamento versátil – concluiu. Cecilia respirou fundo e murmurou: — Tive tanto medo! Os pesadelos de Elisa me impressionaram. — Não há motivo para se comover — repetiu Vanderlei com ar um pouco apatetado. Apalpou o charuto e olhou vagamente à sua frente, de forma idiota. Não sei porque, nesse momento me desagradava mais do que antes. //
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Mas, fiquei contente ao ver que Cecilia se sentia mais tranquila. Dirigime a ela: — Está vendo, Cecilia, você se apavorou atoa. Elisa nem sabe mesmo o que diz... — É isso — confirmou a voz de Vanderlei, vinda detrás de uma espessa nuvem de fumaça de onde pouco a pouco emergiu sua cabeça redonda e raspada. — Agora, vá dormir Cecilia, já que está tranquila. São onze horas. Daqui a pouco também irei. *** Vanderlei ficou sentado a meu lado, algum tempo, cantarolando uma música popular e fumando. Difícil é falar com esse homem de coisas sérias. Tentei, mas suas palavras caíam gota a gota, depois ele se calava. Agradeci ao Senhor quando decidiu se levantar e me desejou boa noite. — Já vou, vou verificar se o frade ainda está instalado nos meus aposentos. Se estiver, que remédio! terei que ficar algum tempo passeando pelo terraço. Durma bem, Salvador. Mas, ao chegar à porta ele se deteve. O rosto se tornara estranhamente pálido e transtornado. — Quanto à Elisa, não é preciso que se inquietem. Mas quanto a mim, meu amigo, quanto a mim!... — Santo Deus! Agora é você...? — Quanto a mim — repetiu — ninguém poderia dizer o tempo que tenho de vida, ninguém e eu menos ainda!... — Vanderlei, a Fazenda dos Tangarás está se transformando num asilo de doidos! — Provavelmente será a minha vez... — Mas de onde vem o perigo? Merda! Desculpe... Fale!... — Vem de todos os lados — disse Vanderlei, olhando medrosamente a sua volta como se sentisse alguma coisa atrás de si. //
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Houve um silêncio e ele continuou, mais sombrio e desesperado ainda: — Salvador, você nada pode fazer! — Lógico que posso! De que servem os meus homens? De que serve a polícia? O próprio juiz da Comarca está hoje aqui como meu convidado... — Ora, o Juiz da Comarca!... — Naturalmente se você não abrir a boca serei impotente! — Você não saberia o que fazer... — Eu posso fazer alguma coisa! Não tenho medo! Onde estão os prováveis assassinos? Diga quem são. Vamos tocar o alarme! Eu os farei passar por sangue e fogo, mas saberei pôr ordem nessa confusão... — Você é um violento — disse Vanderlei. Ao ouvir a réplica daquele imbecil tive vontade de rir do meu arrebatamento. — Eu? Sou um homem tranquilo, conciliador. Só peço paz. Mas são vocês que para aqui trouxeram a inquietação, são vocês que deixam minha mulher aterrorizada!... — É verdade. Sinto muito... é o destino, todos nós temos que morrer um dia... — Ainda bem que você me ensina isso! — comentei com ironia. — ...mas quando? ...quando? ... Isso nos é desconhecido, Salvador. — Também isso é novidade para mim — continuei sarcástico. — E sei que o próximo serei eu, Vanderlei Beltrão... serei eu, Salvador! — Realmente? — ...e Vanderlei Beltrão não tem muito tempo de vida. Quem sabe se daqui a vinte e quatro horas eu ainda estarei com vocês? Que Deus me perdoe, pensei que não seria uma perda irreparável! Haveria sempre jeito de substituí-lo por alguém melhor... Mas me controlei e não lhe disse nada. Indaguei: — Fale! Quem quer matá-lo? //
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Ele suspirou muito fundo e olhou para a frente. Eu continuei a pensar: “Que vantagem teria quem o matasse?”. Com ar estudadamente ameaçador repeti: — Quem é? Eu falarei diretamente com a pessoa de quem você suspeita, mesmo que seja o Presidente da República! De novo Vanderlei suspirou pesadamente e falou: — Agradeço, Salvador, mas repito: “você não pode fazer nada”. Vi que estava desanimado. Nesse momento os olhos esverdeados de Rodolfo me vieram ao pensamento, olhos que subjugavam as pessoas, como parecia ter subjugado meu interlocutor, agora. Repentinamente, com um gesto brusco, Vanderlei me apertou a mão. Com a cabeça baixa seguiu pelo corredor, como um boi que vai ao matadouro. *** Confesso que tive medo de ficar sozinho. Apaguei as luzes e fui me encontrar com minha mulher que já se recolhera. Ela ainda estava acordada. Sentei-me na cama e não pude me impedir de contar o que me tinha dito Vanderlei, mesmo sabendo que corria o risco de ver minha mulher ter uma crise de nervos. Mas como ela estava cansada minha presença acalmou-a. Quando terminei de falar, ela sacudiu a cabeça e disse: — Agora, Salú, eu compreendo. Tudo está mais claro... — Não para mim — respondi. Do travesseiro ela me lançou um olhar de comiseração, como quem quer dizer: “meu marido não tem imaginação!”. Depois falou: —Escuta Salvador querido, nesse instante Elisa está falando com Frei Leo que Rodolfo é o assassino de seu próprio irmão. Foi em vão que, pela manhã, ele usou todos os seus recursos para dissuadi-la. Sobre isso falavam no bosque! — Acha? //
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— Elisa entrou — continuou sem me responder — e disse ao marido que, depois de um grande e angustioso conflito interno, decidira contar a verdade ao frade, que, além do mais, é primo do morto e do assassino, sendo portanto o fato uma questão familiar. Diante disso, Vanderlei lhe perdoou o amor que ela teve por Rodolfo e se tornaram um casal de pombinhos... Foi esse desfecho, no pátio, que Kurt observou... — E agora? — Agora começa para os Beltrão o perigo... Agora que Elisa está abrindo a boca para contar o que sabe... a partir desse momento, estão os dois expostos às represálias! Não há dúvida que Rodolfo os ameaça há muito tempo! — É possível... afirmei. — Você acredita que Rodolfo poderá chegar a matá-los? — Com toda certeza, Salú! Pensa um pouco: Vanderlei é o mais exposto, porque se não fosse sua insistência Elisa nunca confessaria o que sabe sobre a morte do primeiro marido. Ele mesmo falou com você sobre a possibilidade de morrer esta noite. — É exato... — Até onde poderá chegar Rodolfo? Ele deve ter muito ódio no coração. Também Elisa pode ser assassinada. Ela também teme isso e me declarou... — Mas... isso é terrível... Temos obrigação de proteger os Beltrão contra Rodolfo, Cecilia! — Por todos os meios. Esse é nosso dever. — Mas como? Essa última pergunta ficou me rodando na cabeça durante muitas horas e não pude conciliar o sono. Com os olhos abertos eu olhava a escuridão. Até que, não aguentando mais, acordei Cecilia e disse: — Cecilia, como explica que Rodolfo declarou diante de todos, esta tarde, que se sentia em perigo de morte aqui em minha casa?
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— Ora, Salú, será que não percebeu? Ele disse isso para ter cobertura, caso falhasse o tiro contra Vanderlei e ele fosse apanhado. Diria então que o marido de Elisa é quem o atacara e ele se defendera! — Qual seria o motivo que daria Rodolfo para um ataque de Vanderlei? — Ora, ciúmes! Porque Elisa o ama. Vejo o seu jogo bem claramente... — Cecilia não queria desmontar as peças do drama que armara com sua imaginação... Quanto a mim, só poderia aceitá-lo com muita reserva... Abracei-a, apaguei a luz e tentei dormir. Dali a quinze minutos tossi um pouco e falei: — Cecilia, você está dormindo? — Também não consigo! — Diga uma coisa: se você acha que todos os que sabem das circunstâncias reais da morte de Mauro ou que as saberão, estão expostos a serem... — Eles mesmos se declararam ameaçados... — Então... Frei Leo... — Ele também estará nesse grupo, ou já está, depois do que lhe foi contar Elisa. — Então, Rodolfo poderia também tentar... para descartar também... — De Rodolfo tudo se pode esperar! Mais quinze minutos... Então não aguentei mais. Só faltava isso... um frade assassinado em minha casa! Que escândalo! Repercutiria em Roma. Minha fazenda ficaria com fama de... Acendi a luz e me vesti: — Cecilia, vou fazer eu mesmo de sentinela esta noite, para que nada de anormal aconteça. Vou primeiro ver se Rodolfo está dormindo, como deve estar a esta hora. ***
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Sob a luz bizarra da lua, minha querida Fazenda dos Tangarás me pareceu estranhamente misteriosa. A claridade entrava pelas janelas de vidro, nas salas, nos corredores e iluminava a grande escadaria. Meus passos ressoavam, como se atrás de mim marchassem seres invisíveis. Os rostos de meus antepassados pendurados na grande sala se mostravam azulados pela luminosidade emitida pelo astro da noite. Até mesmo a armadura espanhola, que trouxera há dez anos quando fiz uma viagem à Europa, parecia viva e não ficaria surpreso se no buraco dos olhos aparecessem olhos de verdade a me fitar. Entre meia-noite e o primeiro raiar da aurora o mundo é bem diferente... Fui até o quarto de Rodolfo e bati à porta. Ninguém respondeu. Perguntei: — Você está aí? Silêncio. Então mexi no trinco e a porta se abriu. Pensei: “esse Rodolfo dorme de porta aberta, sem a tranca. Não tem medo de fantasmas, nem de assassinos. Dorme tranquilamente, mesmo sentindo-se ameaçado”. Ele não dormia. A cama tinha sido remexida, mas estava vazia. Olhei a meu redor. A espingarda de caça não estava, nem a mochila, nem o chapéu tirolês. Também o bastão e as botas não os vi. A janela estava aberta, deixando entrar o ar frio da noite. Era isso. Três horas. Rodolfo já tinha partido para as montanhas, como de costume. Saía, geralmente, pela janela para não incomodar ninguém. Fiquei aliviado. Preferia esse companheiro de caçadas lá fora. Ele não voltaria antes da madrugada e assim ao menos por esta noite qualquer acontecimento funesto estaria fora de cogitação. Apenas sai do quarto, um passo pesado, firme, aproximou-se rapidamente. No final do corredor uma luz vacilante vinha em minha direção. Era frei Leo que retornava, com uma vela inútil na mão, pois a luz da lua iluminava melhor o corredor. Sua entrevista com Elisa durara mais de quatro horas! A severidade solene de seu rosto, oculto parcialmente por grandes óculos, atestava a emoção causada pela confissão que acabara de ouvir. //
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Ele não me viu, mas eu, na sombra de uma coluna, observei seu perfil com o nariz adunco, apanagio desse ramo dos Torres. Os cabelos eram grisalhos e um solidéu cobria sua tonsura. Achei que não era o momento oportuno de aparecer e lhe desejar as boas vindas... Ele passou e chegou ao seu quarto, onde entrou calmamente e fechou a porta. *** Voltei para o meu quarto e disse à minha mulher: — Por esta noite não vai acontecer nada, Elisa já deve ter desafogado a sua alma, Rodolfo está nas montanhas a apreciar a lua cheia e a prescrutar os animais noturnos. Ainda bem que ele não sabe onde fica a toca da PARDA. Seria capaz de abatê-la. Mas essa é minha! Dormimos algumas horas, até o momento em que tivemos que nos levantar para a caçada. A batida teria lugar não muito longe da fazenda, nas faldas das montanhas. Tomamos o café da manhã e às oito horas os caçadores estavam reunidos. Observei o tempo e não me agradou muito. Um vento sul fazia prever chuva para mais tarde. — Acho que estaremos de volta ao meio-dia, disse a um dos caçadores, quando, para minha surpresa, avistei Rodolfo que voltava das montanhas, vestido como sempre a carácter, mas displicentemente: camisa aberta, casaco sobre os ombros, um grande facão na cintura, no seu estojo de couro. — De onde vem a essa hora? — perguntei. — Estive lá em cima na floresta. Quero lhe avisar que encontrei alguns carvoeiros e ameacei-os com a polícia… Fiz bem? Depois, passou o braço sob o meu e me forçou a caminhar a seu lado: — Esta manhã, antes da aurora, eu a vi! Ela acabara de atacar um dos meus lindos veados mateiros...... Agora sei onde ela mora, a PARDA! — Pois então, é sua — respondi distraidamente. Eu estava preocupado com outras coisas, mas Rodolfo não podia conter seu entusiasmo de caçador. //
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— Vai chover esta tarde — disse ele. — Provavelmente antes — respondi. — Estou cansado. A noite será escura e eu lá voltarei para ver se consigo avistar a PARDA outra vez. Um belo animal! — Vai ficar aqui durante o dia? — perguntei. Um pouco adiante, no grande pátio, meus convidados se preparavam para partir. Entre eles avistei Vanderlei. — Primeiro vou me jogar na cama e dormir um bom sono, até a hora do almoço — disse Rodolfo. — Fique bem tranquilo Rodolfo, para não incomodar o frade, que está no quarto a seu lado. Não jogue as botas no chão com força e não assobie para chamar os empregados! Rodolfo fez uma careta quando eu nomeei o monge. Cuspiu desdenhosamente na grama e dirigiu-se à casa. O perigo estava outra vez sob meu teto. Não sabia para que santo apelar. Até que, felizmente, tive uma ideia. Dirigi-me para o grupo de caçadores, entre os quais consegui achar meu amigo Kurt Mardoc, o fotógrafo. Fiz sinal para que me seguisse. — Kurt — disse eu — agora é hora de mostrar que é meu amigo de verdade. — Diga! — Sei de sua paixão pela caça... No entanto, Kurt, faça isso por mim. Não vá caçar hoje. Fique e vigie bem a casa! — Está bem, mas porque? — retrucou o bondoso Kurt, desconsolado. — Só por esta vez, Kurt. De qualquer forma, a caçada hoje não vai ser muito brilhante. Conheço esse vento que sopra do Sul e que traz chuva. — Mas... eu lhe presto esse serviço com toda boa vontade, ainda que me custe um pouco — respondeu ele. — Apenas, não compreendo... — Escuta, Rodolfo, em vez de voltar ao meio dia, ou mais tarde, como é seu costume, acaba de descer das montanhas. Sei que voltará para lá daqui a seis horas, esta tarde... Entre nós, creio que Rodolfo é capaz de tudo... //
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— Eu também, Salvador. — Não posso ficar em casa, tenho que dirigir a caçada, estar junto de meus convidados... Mas eu ficaria muito inquieto se aqui só estivessem as duas mulheres com o Frei Leo, sabendo que Rodolfo também ficou... Não posso explicar tudo agora, Kurt... São pressentimentos, suspeitas... Não há nenhum fato positivo... Mas ficaria mais tranquilo sabendo que, além dos empregados, um amigo meu ficará de olho em Rodolfo. — Que tenho que fazer? — Basta que fique aqui. Ignore as intenções de Rodolfo e nem sei mesmo se tem algum projeto. Porém... sabendo que tem uma testemunha presente... Kurt, seja bonzinho e fique! Ao meio dia estaremos todos de volta, provavelmente encharcados pela chuva que vai cair. Converse com Cecilia, tire retratos das crianças, se tiver vontade, ou faça fotografias do que quiser em casa ou fora. Outra coisa, se não tiver nada para fazer, porque não se confessa com Frei Leo? Eu dei uma gargalhada, rindo da própria piada, e ele respondeu: — Não sei o que faria de uma licença para me confessar! Mas obrigado. Ficarei aqui, vou apanhar minha máquina fotográfica e me divertirei. Boa caçada e até meio dia! *** Observação das organizadoras Esse último conto, de Armando e Ligia, é inacabado... Estarão suas consciências, como gotas no oceano, a se divertir e tecer mais histórias, espalhando ricas parábolas, cheias de sabedoria? Encontrar esses contos, décadas depois, trouxe-nos grande emoção. Com ela, a saudade... mas também o deleite de poder organizá-los e publicá-los. Agradecemos à RiMa Editora, bem como a Paulo e família, o cuidadoso trabalho que incluiu digitar os contos, pois foram datilografados na máquina de escrever... nossa antiga Olivetti. //
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Pintura de Ligia Begossi. In: BEGOSSI, A.; BEGOSSI, R. (Orgs.). A arte de Ligia Begossi. São Carlos: RiMa Editora, 2020. p. 318.
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