Seminário Internacional Hélio Oiticica Para Além dos Mitos

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Hélio Oiticica para além dos mitos Seminário Internacional

Organizadores

Barbara Szaniecki Giuseppe Cocco Izabela Pucu [em colaboração] 1



HĂŠlio Oiticica para alĂŠm dos mitos


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Hélio Oiticica para além dos mitos Seminário Internacional Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica 4-7 julho 2016

Organizadores

Barbara Szaniecki Giuseppe Cocco Izabela Pucu [em colaboração]

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Apresentação Referência de arte contemporânea na rede de equipamentos da Prefeitura do Rio, o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica comemora seus 20 anos em 2016, consolidando-se como um espaço cultural que estimula a reflexão acerca das artes visuais por meio de sua programação variada. A comemoração vem no momento em que o Rio de Janeiro se tornou a primeira cidade da América do Sul a receber os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, e a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) reafirmou como uma de suas principais missões a valorização das mais variadas expressões artísticas e manifestações culturais presentes na cidade, colocando a sua produção criativa sob os olhos do mundo. Por isso, é com muito orgulho que a SMC apoia o Seminário Internacional “Hélio Oiticica: para além dos mitos”, que discute o legado do pintor, escultor e artista plástico carioca que dá nome ao centro de arte contemporânea da Rua Luís de Camões. Mesas-redondas, conferências e debates reúnem pesquisadores e pensadores que se debruçaram sobre a sua obra. Constituído como um marco para a criação do corredor cultural do Centro Histórico do Rio de Janeiro, o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO) expõe em suas galerias trabalhos de artistas nacionais e estrangeiros, dá espaço para a discussão de temas pertinentes para a sociedade contemporânea e valoriza o diálogo entre diferentes vertentes da arte, indo ao encontro de uma das principais missões da SMC, que é promover um acesso à cultura cada vez mais democratizado e com um olhar atento para o público carioca. Por acreditar e fomentar a cultura sob a forma das mais diversas expressões e linguagens, a SMC se alegra em apoiar este seminário, que integra a série de eventos comemorativos pelos 20 anos do CMAHO, e deseja que cariocas e visitantes se apropriem ainda mais deste espaço. Junior Perim Secretário Municipal de Cultura do Rio de Janeiro


Introdução Para comemorar os 20 anos do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, o Seminário Internacional Hélio Oiticica: Para Além dos Mitos reuniu críticos, cientistas sociais, pesquisadores, designers, poetas e artistas ao longo de quatro dias. O seminário teve como foco principal discutir o legado do artista Hélio Oiticica (1937-1980) a partir e para além do campo da arte, tendo em vista a diversidade de questões presente nos seus escritos e em seus trabalhos de arte, entendidos como partes de uma mesma prática artístico-intelectual. Oiticica é um autor-artista revisto com frequência nas últimas décadas, no entanto, são poucas as chances de reunião de pesquisadores oriundos de diversos campos de pensamento e práticas assim como interessados em novas abordagens e abrangências da obra do artista. Composto por mesas-redondas e conferências, todas seguidas por debate com o público, o seminário se estruturou em quatro eixos temáticos baseados em quatro proposições/sentenças/obras desse importante artista que, obviamente, guardam estreita relação entre si. Os trabalhos do seminário tiveram início na segunda-feira, 4 de julho, com o tema “Seja marginal, seja herói. O mito da marginalidade”. A expressão “Seja marginal, seja herói”, estampada numa bandeira em 1968, no auge da ditadura militar, indicava que Oiticica assumia na sua trajetória a dimensão ético-social como sentido crítico, refletindo em tudo que ele fez posteriormente. O herói popular evocado poeticamente contra a opressão policial nos permite, neste eixo, abordar a condição de exclusão dos pobres, a relação da favela com a polícia e o tráfico, e também com o “asfalto”, paradoxo inerente à cidade do Rio de Janeiro. Já no campo cultural, a “Marginália” abrangia desde o cinema aos jornais e revistas, da música às artes visuais, bem como a chamada contracultura e os projetos de descentralização da produção para além dos principais centros econômicos do país. O tema foi desenvolvido na conferência de Giuseppe Cocco, com Izabela Pucu como debatedora e prosseguiu na mesa com Eleonora Fabião, Frederico Coelho, Gerardo Silva e Luiz Eduardo Soares com mediação de Bruno Cava. A terça-feira, 5 de julho, trouxe o tema “Tropicália. A pureza é um mito”. Em 1967, Oiticica apresentava seu penetrável Tropicália, um labirinto cheio de referências à cultura popular que colocava em crise o “culto do bom gosto”. Tomando o experimental como posicionamento crítico, Oiticica propunha a transformação radical dos conceitos-valores vigentes e do


comportamento-contexto e a reformulação dos problemas locais para a constituição urgente de uma linguagem-Brasil ou face-Brasil, antropofágica como ele próprio definiria, cujos valores se situariam no âmbito universal. Neste eixo, foi discutida a condição e a produção cultural brasileira, atravessadas por questões e lutas de gênero e étnicas. A mesa trouxe as contribuições de Barbara Szaniecki, Cíntia Guedes, Gonzalo Aguilar e Paola Berenstein Jacques e, à noite, a conferência de Celso Favaretto teve como debatedor Luiz Camillo Osório. O tema da quarta-feira, 6 de julho, foi “Área aberta ao mito. O mito da criação”. Se a modernidade foi moldada pelo ideal da criação como atributo do artista, acentuando-se em direção ao individualismo, a ideia de criação na concepção de Oiticica é posta radicalmente em jogo. Muitos de seus trabalhos-proposições constituem um simples gesto que aponta a poesia que subjaz à criação anônima, presente no mundo como prática coletiva. Se a criação é uma experiência de coprodução do mundo, do comum, de novas formas de vida, foi um dos questionamentos desenvolvidos neste eixo que se debruçou sobre a produção textual de Oiticica e se desdobrou nas diversas práticas presentes. A mesa trouxe Ana Kiffer, André Vallias, Rafael Zacca e Ricardo Basbaum, com mediação de Patrick Pessoa, enquanto a conferência de Peter Pál Pelbart contou com Tania Rivera como debatedora. O seminário se encerrou nas atividades de quinta, 7 de julho, com o tema “Museu é o mundo. O mito da instituição”. Se museu é o mundo, é a experiência cotidiana, como diria Oiticica, neste eixo foram discutidas as possibilidades de extravasamento da experiência da arte para o mundo e no mundo, o que nos convoca a pensar outras instituições possíveis a partir dessa permeabilidade entre arte e vida. Tomando esse movimento de renovação das instituições como algo para além da arte, esses processos na sociedade em geral foram discutidos com as contribuições de Izabela Pucu, Lisette Lagnado, Luiz Guilherme Vergara e Max Jorge Hinderer Cruz mediada por Mário Chagas e na conferência de Jesús María Carrillo Castillo com Giuseppe Cocco como debatedor. Esperamos que a publicação dos textos dos autores faça o seminário seguir provocando. Giuseppe Cocco, Barbara Szaniecki e Izabela Pucu [em colaboração] Organizadores


sessão 1: Seja marginal, seja herói. O mito da marginalidade

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Bruno Cava MOVIMENTO HO

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Eleonora Fabião

Heróis, anti-heróis e anônimos: marginalidade e extermínio em um texto de Hélio Oiticica

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Frederico Coelho

Um boi com cara de cavalo. O lugar de herói do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, o Amarildo

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Gerardo Silva Hélio Oiticica e a intervenção tropicalista como contraponto à memória recalcada da dualidade ontológica [antropofagia, dialogia criativa, abertura participativa e expansão do repertório]

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Luiz Eduardo Soares

Hélio Oiticica depois de junho de 2013: na trama da terra que tremeu

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Giuseppe Cocco sessão 2: Tropicália. A pureza é um mito Luiz Camillo Osório

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Penetrável Rio de Janeiro: seja gari, seja herói

108

Barbara Szaniecki E se Hélio fosse hoje? Ou, como a favela chega ao museu

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Cíntia Guedes

Hélio Oiticica e o under-underground

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Gonzalo Aguilar tropicália brasília: a pureza é um mito

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Paola Berenstein Jacques Tropicália: objetivação de uma imagem brasileira

Celso Favaretto

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sessão 3: Área aberta ao mito. O mito da criação Tania Rivera

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Involuções sobre escrita, corpos e cadernos

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Ana Kiffer

Hélio’cubrações em torno do diagrama

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André Vallias

Éden é o mundo. Só têm razão de existir os inventores

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Rafael Zacca

Hélio Oiticica: exercícios de autoconstrução de si como artista

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Ricardo Basbaum mudar O valor das coisas

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Peter Pál Pelbart

sessão 4: Museu é o mundo. O mito da instituição Mário Chagas

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Fazer instituição como crítica

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Izabela Pucu Instituição, programa in progress?

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Lisette Lagnado Utopia Tripartida Brasileira = Terra + Sociedade + Luta Hélio Oiticica, Lygia Clark e Oscar Niemeyer

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Luiz Guilherme Vergara

TROPICAMP: pré- e pós-Tropicália ao mesmo tempo. Algumas notas sobre a noção de Tropicamp (1971) de Hélio Oiticica

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Max Jorge Hinderer Cruz

A instituição em xeque: trabalhando nas ruínas do museu

Jesús María Carrillo Castillo

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sessĂŁo 1

Seja marginal, seja herĂłi. O mito da marginalidade


Marginal é criação Bruno Cava Das cinquenta cidades com maior taxa de homicídios do mundo, vinte e uma são brasileiras, bem à frente do segundo lugar, a Venezuela, com nove.1 A grande maioria das vítimas são homens jovens, negros, moradores de bairros mais pobres das grandes metrópoles.2 Os territórios são controlados por um agregado de gangues, milícias e máfias, numa zona de indiscernibilidade entre lícito e ilícito, estado e não estado, polícia e bandido. No subterrâneo dessa realidade de violência e morte, prospera uma economia de ilegalidades cujos tentáculos se estendem às eleições, ao sistema financeiro, ao comércio internacional. Hoje, uma das vanguardas mais fortes da América do Sul, vinda dos Andes, quer repensar o mundo segundo o paradigma cosmopolítico do bem viver. Diante da brutalidade dos fatos, contudo, viver já é desafio o bastante por aqui. 1 Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_cities_by_murder_rate 2 Fonte: http://www.mapadaviolencia.org.br/


O paradoxo consiste na constatação de que os mesmos territórios atravessados pela tanatopolítica são aqueles que pulsam de uma energia aparentemente infinita de recriação. A potência na pobreza é legião, fonte inesgotável de empreendimentos sociais, culturas de resistência, estéticas e devires minoritários que dão carne e vida às cidades. Múltiplas iniciativas de mercado e estado se misturam e coexistem nessas usinas biopolíticas, segundo uma complexa trama de sujeitos, capturas e liberdades. Nenhuma dicotomia fará sentido nessas condições, tudo é estratégia, limiar, nuance. Não é para principiantes. Com a inscrição dos territórios pobres no regime flexível do capitalismo, parte do que sob o malho da pacificação militar, as suas populações foram financeirizadas e incluídas nos circuitos de produção, circulação e consumo de bens e serviços, com grande impacto na microeconomia local e na macroeconomia da cidade e do país. É nessa zona paradoxal, interzona onde reinam os contrastes entre o mínimo e o máximo existenciais, que um programa marginal, um “programa in progress” – para falar com Hélio – pode voltar a funcionar. A marginalidade percorreu, de uma forma ou de outra, o inteiro percurso de Hélio. No final dos anos 1950 e começo dos 60, como margem construtivista tensionada até as bordas do real, como mais um cúmplice do sequestro brasileiro do modernismo, isto é, a antropofagia. Ao redor de 1968, como dupla recusa: de um lado, do militantismo pastoral das esquerdas inspiradas pela saga das montanhas cubanas; de outro, o degringolamento do momento tropicalista passados os primeiros fogos. Nos anos 1970, a marginalidade ao próprio processo histórico, marginália exasperada, povoada de malditos que, exilados e renegados, precisam reinventar a própria ambiência em que podem existir e criar. Diferentes sentidos de marginal que se unem na trajetória em zigue-zague do artista e escritor. Consequência das inquietações formais, “antiartísticas” e pessoais, Hélio se relaciona com os moradores e a realidade da favela na fase dos parangolés da Mangueira, quando conhece marginais em carne e osso. Em 1968, estampa os dizeres na bandeira: “Seja marginal, seja herói”. A força da intervenção até hoje impressiona e mobiliza debates, nem tanto pelo gesto transgressivo por si, como por revolver fundo a ambivalência do banditismo social e da violência urbana: brutal e transformador, criminoso e mártir, maldito e herói, – tudo ao mesmo tempo e em diferentes graus que se sobrepõem. Graças ao artista, o que passaria batido como noticiário de polícia vira um acontecimento, e vai deflagrar um programa comum para um tempo de pressões cada vez mais insuportáveis. Essa é uma chave persistente em suas obras, intervenções e ambientações: mexer com a base inconsciente da vida comum para funcionar a partir de um nível primário que nos faz sentir antes de poder ver e dizer algo. Não

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temer os meios materiais com os quais intervimos no mundo sensível em que somos. Enfrentar os dilemas entrando neles. Como não sentir a violência que nos cerca? E a potência transformadora que ela, de maneira desfigurada, exprime como substrato? A perplexidade com que recebemos a interpelação “Seja marginal, seja herói” até hoje comprova como Hélio não deixou de ser-nos contemporâneo. Essa é uma delícia, porque nos preenche de possibilidades, mas também o nosso grande drama.

Bruno Cava Graduado em Direito pela UERJ e em Engenharia pelo ITA, pós-graduado em Gestão Pública e mestre em Filosofia do Direito pela Uerj, atualmente pesquisa movimentos, lutas urbanas e processos criativos.

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MOVIMENTO HO Eleonora Fabiรฃo Performer, teรณrica da performance e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro


Criar não é a tarefa do artista. Sua tarefa é a de mudar o valor das coisas. Hélio Oiticica. Experimentar o experimental, 1972

Boa tarde a todos os presentes e aos companheiros de mesa. Agradeço aos organizadores deste seminário – Barbara Szaniecki, Giuseppe Cocco e Izabela Pucu – o convite para apresentar aqui trabalhos que venho realizando nas ruas do Rio de Janeiro e de muitas outras cidades desde 2008. Contar aqui sobre o que venho praticando por aí, desde que decidi sair da caixa-preta do teatro e do cubo branco da galeria para agir na rua. Ou seja, quando decidi trabalhar num campo marcadamente misturado onde regulamentação e imprevisibilidade reinam juntas e delirantes. Esse convite me intrigou. Demorei a responder. Conversei diretamente com quem me fez a proposta. Por que, num seminário sobre Hélio Oiticica, apresentar as Ações? As Ações Cariocas, as Berlinenses, as Fortalezenses, as Bogotanas, as Rio-Pretenses, as Andreenses? E as tantas outras ações da Série Precários, as Manchas, os Quase nada, sempre tudo, a Série Coisas Que Precisam Ser Feitas [SCQPSF], et cetera, et cetera, et cetera? Por quê? Perguntei, sigo me perguntando, e por isso decidi que esta fala será um compartilhamento dessa pergunta com vocês.

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Penso que o convite foi feito não porque as Ações tenham uma relação intencional ou direta com o trabalho do Hélio Oiticica, mas porque as Ações pensam e agem em espaços abertos por HO – por HO, seus parceiros e os tantos outros complicadores culturais que, antes de nós, se perguntaram sobre a vida da arte e a arte da vida. Ou seja, talvez o convite para estar aqui tenha sido feito porque as Ações agem no influxo do que chamarei de MOVIMENTO HO. Pois fato é que para além das criações propriamente ditas – dos Metaesquemas, dos Bilaterias, dos Relevos espaciais, Penetráveis, Bólides, Parangolés, Tropicália, Éden, Cosmococa, Crelazer, Aspiro ao grande labirinto, Programa ambiental, Suprassensorial, Esquema geral da nova objetividade, Delirium ambulatorium, et cetera, et cetera, et cetera –, para além da obra propriamente dita, de suas fases e do conjunto das fases, da trajetória como um todo, Hélio Oiticica fez MOVIMENTO. MOVIMENTO HO: ‘H’ que são duas paralelas ao infinito com curta ponte perpendicular ligando-as pelo quase-meio; ‘O’ que é círculo, buraco, possibilidade de mergulho, outro tipo de ponte. HO e o Mergulho do corpo – os múltiplos corpos dos corpos, os buracos e as pontes infinitas. As conexões, os materiais, texturas, textos, cartas, telefonemas, labirintos, neologismos, conceitos, gente, muita gente, Rio de Janeiro, Nova York, Londres, Mangueira, museus, galerias, terrenos baldios, ruas, Ninhos. O objeto, o problema do objeto, o não objeto, o quasi-objeto, o probjeto, o transobjeto, o objetoato, o objeto relacional, o parcial, o aberto. O entre-objetos. E tudo, menos o objeto: a “coisa”. A coisa toda; toda a coisa. A verve do HO – seu brio, seu inconformismo e mais os brancos, amarelos, laranjas e vermelhos-luz. O timing da sua bossa, da sua ginga, do seu passo, do seu passe. Tantos e tudos desencadeando movimentos que reverberam até aqui, até agora, tamanha a potência e a inteligência da coisa toda. Tamanha a energética conceitual, corporal e material da cosmocoisa que segue se desdobrando prismática, política e sensória. Uma obramovimento que lançou mão, como diz HO, de “tudo o que há no mundo”, já que “tudo o que há no mundo poderá ser o meu material”.1 Movimento suprarrigoroso de experimentar o experimental já que “criar não é a tarefa do artista. Sua tarefa é a de mudar o valor das coisas”.2 Nem 1

Oiticica, Hélio. “Entrevista para a Cigarra por Marisa Alvarez de Lima (1966)”. In: Encontros Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 41.

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Oiticica, Hélio. “Experimentar o experimental (1972)”. In: Encontros Hélio Oiticica. Op. cit., p. 108. Nesse texto Oiticica se refere a Yoko Ono, outra complicadora cultural da maior relevância. Ono publicou em 1971 um texto intitulado “What is the relationship between the world and the artist?”, em que diz: “Os artistas não estão aqui para destruir ou criar. Criar é algo tão simples e artless a fazer quanto destruir. […] O trabalho de um artista não é destruir, mas mudar o valor das coisas”. In: Yoko Ono One Woman Show 1960-1971. New York: MoMA, 2015, p. 215 (minha tradução).

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mais, nem menos. Nada mais, nada menos. Assim, o que convencionalmente tem pequeno valor passará a ter grande valor; e o que supostamente tem grande valor passará a ter pequeno valor. Mas não apenas isso – inverter valores estabelecidos é dobra importante mas não suficiente. A tarefa do artista é buscar uma nova objetividade. E, consoante, novos modos de subjetivação, de agenciamento, de existência pessoal e coletiva. A escala da obra é existencial e social. O que está em questão é a transvaloração de valores, a herança nietzschiana – o desinteresse por valores absolutos, por crenças e morais absolutas, seja a metafísica platônica, a moral cristã ou o totalitarismo mercado-capital. Transvaloração de valores que se faz por meio do reconhecimento da historicidade e da relatividade de valores tidos como universais, da coragem e da impetuosidade do ultrapassamento, e da valorização do corpo e da imanência para a potencialização da vida. “Mudar o valor das coisas”. Mudar a coisa do valor. Mudar o valor do valor. HO dá a ver e dá a sentir, através dos projetos que realiza e dos modos como vive a vida, um corpo mutante de valores que não para de se refazer (e de propor refazimento aos que vivenciem sua obra). Vejam, não se trata aqui do inevitável transformar-se inerente ao corpo e à vida, mas de um projeto de potencialização estético-crítica que envolve artista e público, e conjuga as dimensões corporal e social. HO é corpo-classe, corpo-gênero, corpo-raça, corpo-nascido-no-ano-de-1937, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem peso, cheiro, tamanho e cor. Tem meio social, densidade política, massa histórica e vontade construtiva. E nesse corpo, e, por conseguinte, no corpus dessa obra, movimento é fator decisivo – HO faz seu trabalho movendo-se entre classes, raças, gêneros, lugares. Entre o morro e o asfalto, a filosofia e o samba, entre ricos e pobres, corpos e sexualidades, norte e sul, entre continentes. Essa mobilidade – trânsito, transitividade, transa, transe – é potência elementar. E mais, seu interesse pela participação do espectador – que ele nomeou em certo momento “participador”3 – é consequência direta de sua participação em seu meio, de seu engajamento como artista propositor e pensador, de sua mobilização. Mobilização. Mobilização aqui é referente conceitual da maior importância – mobilizar, ou seja, pôr em movimento, ativar, motivar, impulsionar, a si mesmo, a outros, a materiais. E, igualmente, ser mobilizado pelas gentes, matérias, lugares, circunstâncias. Em se tratando de MOVIMENTO HO o que está em questão é uma poética e ética da mobilização para além de uma categorização estilística como “arte participativa”.

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Oiticica, Hélio. “Anotações sobre o Parangolé”. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: RioArte, 1992, p. 93.


Quando perguntado: “Você é pelo indivíduo ou pela coletividade?”, você respondeu: “Pelos dois: para mim não pode haver separação; são apenas duas polaridades numa totalidade social.”4 Pois caro HO, estamos vivendo hoje no Brasil uma crise política gravíssima e são muitas as manifestações e ocupações acontecendo por todo o país. Temos debatido cotidianamente sobre modos de ação poético-políticos condizentes com a situação e a altura de sua gravidade. Simultâneo ao corrente processo de autoavaliação e renovação da esquerda brasileira, crescem e se fortalecem os partidos de direita – não apenas no Brasil mas no mundo. Na chamada “aldeia-global”, regida por valores empresariais e pela lógica do capital, aumenta, em velocidade assustadora, a intolerância, o fascismo, o terrorismo. Nesses tempos de totalitarismo mercado-capital a questão de fundo (e de frente) é: afinal, o que é política hoje?; de que trata?; onde, quando, quem faz?; como faz?; como queremos fazer? E, a par e passo, avança alarmante, e talvez irreversível, a crise ambiental. Pois nessa conjuntura te digo: somos muitos hoje implicados em dia a dia experimentalizado. Somos muitos, artistas e ativistas, experimentando experimentação, desmontando noções duras de “indivíduo” e de “comum” através de processos de singularização e coletivização (alguns mais elaborados, outros, menos, mas muitos buscando). Estamos trabalhando por mudanças efetivas de valores para desmontar a lógica do capital e da violência, ampliando o imaginário político e propondo novos modos de ação. Aumentam as ações artísticas em que a questão não é simplesmente criar obras, mas fazer cidade, fazer mundo, fazer vida. Também vem crescendo nos últimos anos discussões em torno da noção de novo materialismo e do conceito de coisa. São pesquisadores de diversos campos – cientistas políticos, teóricos da performance, feministas, ambientalistas, estudiosos queer, artistas – engajados no debate. Estamos procurando dar conta da insuficiência teórica, da incapacidade de mobilização e do esgotamento crítico das noções de “sujeito” e “objeto” para pensar e fazer vida hoje. Um exemplo: em Vibrant matter: a political ecology of things (Matéria vibrante: uma política ecológica das coisas, 2010), a cientista política Jane Bennett apresenta o mundo como um ecossistema formado por “coisas” em vez de povoado por objetos passivos e sujeitos ativos – uma rede de relações em que matéria animada e inanimada, orgânico e inorgânico, corpos humanos e não humanos não são meras categorias antagônicas mas forças articuladas numa teia de agentes e agenciamentos. O antropocentrismo é desafiado por um ecossistema vibrante de coisas; coisas interdependentes não apenas porque 4

Oiticica, Hélio. “Entrevista para a Cigarra por Marisa Alvarez de Lima (1966)”. In: Encontros Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 45.

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coexistem no mesmo espaço-tempo, mas porque formam umas às outras. Sobre as implicações políticas desse “materialismo vital” Bennett diz: “Por que advogar pela vitalidade da matéria? Porque me parece que a imagem de matéria morta instrumentalizável, assim como nossa fantasia destrutiva de conquista e consumo, alimenta a hubris humana [o descomedimento humano]. Isso se dá de modo a não nos deixar perceber (ver, escutar, cheirar, saborear, sentir) uma gama mais ampla de poderes não humanos circulando por dentro e em torno dos corpos humanos”.5 O materialismo vital seria, pois, um projeto de evidenciação da interligação sensório-social de todas as coisas, e de avaliação de suas dinâmicas e implicações políticas e ecológicas. Outro pensador, o teórico da dança André Lepecki, articula os conceitos de “coisa” e “subjetividade”, e argumenta que em distintas peças contemporâneas o que está sendo performado é “a emancipação do dançarino de sujeito à coisa”.6 Em “9 variações sobre coisas e performance”, Lepecki revisita um ponto de vista amplamente difundido e aceito – aquele que diz que uma estratégia colonialista de base é transformar pessoas em coisas. O autor contra-argumenta propondo que “o colonialismo (e o capitalismo) transforma sujeitos menos em ‘coisa’ do que propriamente em mercadorias: objetos com valor de uso e valor de troca destinados ao descarte”.7 E sugere: talvez um devir-coisa não seja um destino tão ruim assim para a subjetividade. Quando olhamos ao redor, certamente parece ser uma opção melhor do que continuar a viver e a ser sob o nome de “humano”. A “coisa” nos lembra que organismos vivos, o inorgânico, e aquele terceiro produzido pelo seu confronto chamado “subjetividade”, todos necessitam ser libertados da força subjugadora chamada dispositivo-mercadoria – força que esmaga a todos num modo de vida empobrecido, ou triste, ou dócil, ou limitado, ou utilitário”.8

“Mudar o valor das coisas”. Mudar a coisa do valor. Dar valor à coisa. Pois interessa nesse MOVIMENTO HO estabelecer conexões mais potentes e menos hierárquicas, colonialistas, tristes ou utilitárias entre as 5

Bennett, Jane. Vibrant matter: a political ecology of things. Durham- London: Duke University Press, 2010, p. ix (minha tradução).

6

Lepecki, André. Singularities: dance in the age of performance. Londres e Nova York: Routledge, 2016, p. 20.

7

Lepecki, André. “9 Variações sobre coisas e performance”. In: Urdimento #19. Santa Catarina: Udesc, 2012, p. 96 (minha ênfase).

8 Ibid., p. 97.

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coisas humanas e não humanas. Interessa enfatizar a insuficiência de visões estanque de sujeito-artista e objeto-obra para acessar as transvalorações operadas por Oiticica, para dar conta do movimento em questão. Quando perguntado: “Que mensagem pretende trazer – ou não haverá mensagem?” Respondeu: “Nenhuma – a minha mensagem é a obra não formulada – cada qual cria o seu conceito, a sua vivência ao contato com a obra; uma mensagem preconcebida seria fatal ao próprio sentido primeiro da obra”.9 Ou seja, o caráter do MOVIMENTO HO é marcadamente performativo – “é a obra não formulada”, não há “mensagem preconcebida”; sentido é algo a ser elaborado no contato e não a ser decifrado. Tudo dependerá das relações vividas, das vivências experimentadas, dos agenciamentos em seu materialismo vital. Tudo dependerá porque tudo depende. Tudo depende. Há ainda dois últimos temas nos quais gostaria de tocar antes de apresentar os trabalhos que selecionei para mostrar a vocês hoje. Um deles é o interesse de HO pelas ruas e pela cidade. Disse: “A minha vida é praticamente na rua, eu tenho uma facilidade enorme em fazer amizade com pessoas que eu não conheço”.10 Guy Brett comenta sobre a sua “relação imensa” com as ruas: “A rua, onde as pessoas e coisas eram anônimas, o ‘ambiente vivido’, que para Hélio era o cósmico, ‘isto é, o não-naturalista, multi-transformável’”.11 A rua-cosmos. Já Haroldo de Campos lança mão da visualidade da cidade do Rio de Janeiro e enxerga o Parangolé como uma “asa-delta para o êxtase”: “arte do corpo e do desenrolamento trans-espacial”.12 Campos ressalta também o interesse de HO pela “provisoriedade” e “fragilidade do estético”,13 e por atos que “supunha[m] a alteridade”.14 Escuto em todos esse comentários sons da cidade, de gente na rua, de tráfego, de cruzamentos, a rua ressoando, o cosmos-rua. O outro tema é a dança, a importância da dança para seguir elaborando essa ideia-em-processo de MOVIMENTO HO. A dança que é, cito Oiticica, “por excelência a busca do ato expressivo direto, da imanência desse ato”.15 9

Oiticica, Hélio. “Entrevista para a Cigarra por Marisa Alvarez de Lima (1966)”. In: Encontros Hélio Oiticica . Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 41.

10 Oiticica, Hélio citado por Guy Brett. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: RioArte, 1992, p. 235. 11 Brett, Guy. O exercício experimental da liberdade. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: RioArte, 1992, p. 235. 12 Campos, Haroldo entrevistado por Lenora de Barros. Asa-delta para o êxtase. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: RioArte, 1992, p. 217-218. 13 Ibid., p. 218. 14 Ibid., p. 221. 15 Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Luciano Figueiredo; Lygia Pape; Waly Salomão (orgs.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 73.

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O ato humano imanente, demasiadamente imanente, imensamente humano. O samba especificamente – uma dança de descentramento, uma experiência de margear o centro gravitacional do corpo por meio de sucessivos desequilíbrios curvilíneos prontamente rearranjados em novos, ágeis e curvilíneos desequilíbrios. Difícil colocar o samba em palavras. Talvez seja mais simples dizer: “É melhor ser alegre que ser triste/ alegria é a melhor coisa que existe/ é assim como a luz no coração/ Mas pra fazer um samba com beleza/ é preciso um bocado de tristeza/ é preciso um bocado de tristeza/ senão, não se faz um samba não [...]”16 Como se, no movimento de aceitar a tristeza encontrássemos já certa alegria; e ao sambar essa tristeza, pudéssemos olhar para ela, ou ainda, dançar com ela, deslocando-a, descentrando-a pelos quadris. Um pequeno avanço diagonalizado para frente e um pequeno recuo para trás – o desequilíbrio oscilado do passista. E “Meu pai sempre me dizia/ ‘meu filho tome cuidado/ quando eu penso no futuro/ não esqueço o meu passado’/ Desilusão, desilusão/ danço eu, dança você/ na dança da solidão”.17 Programa MOVIMENTO HO #1: Nalgum lugar, na vastidão entre o passado e o futuro, no descentramento do presente, em desequilíbrio, dançar um MOVIMENTO HO. Na Mangueira, no Estácio, em Copacabana; em terrenos baldios do Caju, no vão do MAM, na Praça da Bandeira, na Aldeia Maracanã; em Santa, na Lapa, no Leme, na Vila, na Favela do Quieto, no Morro do Esqueleto; na Cidade (de Deus), em Duque (de Caxias), no Engenho (de Dentro); em Madureira, Ramos, Méier, São Cristóvão ou Santo Cristo. Logo aqui. Basta seguir em frente toda a vida.

Agora estamos no ano de 2008 e bem perto daqui – no Largo da Carioca, a uns 600 metros de distância do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Trago duas cadeiras da minha cozinha, uma em cada ombro. Coloco uma diante da outra, descalço os sapatos e escrevo numa grande folha de papel “CONVERSO SOBRE QUALQUER ASSUNTO”. Espero. Sem a mais pequena ideia do que possa acontecer, espero. Era a primeira vez de muitas e muitas vezes. Quase imediatamente alguém se senta. Um senhor me fala de sua infância na cidade e se comove profundamente ao lembrar da mãe adotiva “negra como o vestido daquela moça ali”. Um rapaz se senta para comemorar o fato de que tinha acabado de ganhar seu primeiro emprego como veteri16 Moraes, Vinicius de. Excerto da letra de “Samba da bênção”. 17 Viola, Paulinho da. Excerto da letra de “Dança da solidão”.

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nário. Muita gente curiosa com a minha sexualidade. Um especificamente tentando compreender se eu era prostituta, lésbica, lésbica-prostituta ou prostituta-lésbica, desconsiderando qualquer outra hipótese. “Você se masturba?”, perguntou. “Claro”, respondi. Uma mulher queria saber se eu era psicóloga, pois estava em sofrimento profundo e necessitava ajuda imediata: “os vizinhos de cima andam na minha cabeça”. Identifiquei-me com o caso. Expliquei que não era psicóloga nem padre – “Sou performer. Eu converso. É gratuito, não custa nada. Não envolve lucro, cura ou salvação”. Ela se foi. Um ex-boxer, agora síndico de seu prédio, viu passar seu amigo Jorge e gritou: “Vem cá Jorge, essa moça conversa sobre qualquer assunto!” Jorge juntou-se a nós. Três adolescentes de uma escola próxima partilharam a cadeira para conversar, entre outros assuntos, sobre como pedir uma garota em namoro. Rimos muito dos meus casos de adolescência no Rio. Outros dois rapazes, engraxates trabalhando no Largo da Carioca, disseram que eu deveria tomar cuidado com a câmera, pois poderia ser roubada. Chamei a atenção para uma cabine policial localizada a quinze metros de onde estávamos sentados. Entreolharam-se, sorriram e disseram mais ou menos assim: “Esses policiais são os piores. Antes nós roubávamos aqui,
por isso sabemos. Eles esperam nosso assalto e nos roubam. É assim: levam câmera, dinheiro, correntinha, o que for, e ainda espancam a gente”. Em um mês e meio de Ações no Largo da Carioca conheci incontáveis Rios de Janeiro.18

18 Nesta segunda parte da fala apresento textos e imagens que podem ser encontrados no livro Ações Eleonora Fabião. Eleonora Fabião; André Lepecki (eds.) (Rio de Janeiro: Tamanduá Arte, 2015) e também em inglês, Actions Eleonora Fabião (Rio de Janeiro: Tamanduá Arte, 2015). Essa publicação apresenta textos e fotos (em cores) referentes a muitas ações realizadas em ruas de diversas cidades desde 2008. Ações reúne também ensaios de Adrian Heathfield, André Lepecki, Barbara Browning, Diana Taylor, Felipe Ribeiro, Pablo Assumpção B. Costa e Tania Rivera. Para acessar a lista dos locais onde o livro pode ser encontrado consultar www.eleonorafabiao.com.br

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Assim foi a Ação Carioca #1: converso sobre qualquer assunto

Ação Carioca #1: converso sobre qualquer assunto, Largo da Carioca, Rio de Janeiro (2008). Foto: Felipe Ribeiro

Ação Carioca #1: converso sobre qualquer assunto, Largo da Carioca, Rio de Janeiro (2008). Foto: Felipe Ribeiro

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Ação Carioca #2: bandeira De pés descalços, sentada diante de uma mesa ao meio-dia,
cortar as palavras “ordem e progresso” estampadas na bandeira brasileira. Costurar uma tarja branca no espaço aberto pelo corte.
Separar as letras e recombiná-las para formar novas palavras. Algumas palavras encontradas: medo, podre, pode, pede, poder, mero poder, prego, osso, osso
de prego, prego de osso, ego, preso, ego some, ego morde, rede, dor, odor, dom, erro, eros, esmero, dose, demo, regresso, gesso, roer gesso, grosso, germe, geme, mede, morro, moro, mordo, remo, dorme, ser, somos, oremos, rodemos, sopremos, poremos, porem, poro, poros, esporro, se, esse, soro, sogro, peso, modess, pego, rego, rogo, gorro, gomo, ogro, po, po de ogro, segredos, sp, ps.

Ação Carioca #2: bandeira, Largo da Carioca, Rio de Janeiro (2008). Foto: Felipe Ribeiro

Depois de três horas formando e desformando palavras, depois de muitas conversas ou de discussões acirradas com passantes, encontrei apenas um anagrama, uma única maneira de reincluir todas as letras. ORDEM E PROGRESSO transformou-se em O SER GORDO SEMPRE ou O SER SEMPRE GORDO ou SEMPRE O GORDO SER ou SER SEMPRE O GORDO.

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Ação Carioca #7: jarros Dois jarros – um de barro, outro de prata; um cheio d’água, outro vazio. Com os pés descalços, mover a água de um para o outro
até seu desaparecimento completo.
Caso passantes se aproximem, oferecer os jarros para que realizem a ação também.
Ou, oferecer um dos jarros para que a realizemos juntos.

Ação Carioca #7: jarros, Largo da Carioca, Rio de Janeiro (2008). Foto: Felipe Ribeiro

Da Série Precários (2011/13), também realizada no Rio de Janeiro, selecionei duas ações: toco tudo e troco tudo. Série Precários: toco tudo Com local de partida e de chegada preestabelecidos, caminhar com os olhos fechados.
Aceitar a ajuda de estranhos. Tocar e ser tocada.

Série Precários: toco tudo, Rua Uruguaiana, Rio de Janeiro (2012). Foto: Felipe Ribeiro

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Série Precários: troco tudo Me aproximar de desconhecidos e perguntar:
“Você troca alguma coisa comigo? Te dou alguma coisa minha,
algo que eu esteja vestindo ou carregando, e você recebe.
Você me dá alguma coisa em troca e eu recebo”. A ação só se conclui quando tudo o que possuo no início for trocado.

Série Precários: troco tudo, Feira de São Cristóvão e arredores, Rio de Janeiro (2013). Foto: Felipe Ribeiro

Outra série de 2013 chamada Manchas (Mancha Preta, Mancha Branca e Mancha Vermelha). Programa: caminhar ensacada pela cidade. Uma imagem da Mancha Branca:

Mancha Branca, Arpoador, Rio de Janeiro (2013). Foto: Felipe Ribeiro

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E uma nota do caderno de notas: “Não enxergava nada que não fosse o branco do saco. Breu branco total.
Sem buracos para os olhos ou para o nariz. Sem buracos. [...] Depois da curva
estava completamente perdida, caí de uma mureta e fui parar num parque de cachorros que nem sabia que existia. Os cães enlouqueceram com aquela visão. Fiquei completamente imóvel para que eles me cheirassem, para que entendessem que eu estava com mais medo deles do que eles de mim. Nem sei como consegui
sair dali. Tem algo de super-herói, algo hilariante e algo muito triste e terrível nisso tudo.” Uma ação da série Quase nada, sempre tudo realizada na Praça Tiradentes, a uma quadra daqui, em 2012: Quase nada, sempre tudo #1: 25 tijolos À luz do dia, numa praça. Por horas seguidas fazer e desfazer composições com 25 tijolos.

Quase nada, sempre tudo #1: 25 tijolos, Praça Tiradentes, Rio de Janeiro (2012). Foto: Felipe Ribeiro

Em outro dia a ação consistiu em fazer e desfazer composições com dezenas e dezenas de pedaços de carvão – Quase nada, sempre tudo #2: carvão. E, em outro dia, com lençóis brancos – Quase nada, sempre tudo #3: 9 lençóis. Notas do caderno de notas: “Não uso estúdio ou sala de ensaio. Não faria sentido. A rua é o espaço do trabalho. Na rua eu invento, descubro, testo, descarto, insisto, desisto. Na rua eu experimento possibilidades. E impossibilidades. É preciso negociar incessantemente.” “É preciso armar a composição e depois se afastar. Dar tempo. […] E então, lá pelas tantas, o material começa a chamar, a pedir movimento. A coisa.”

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Em julho de 2015, com no meio da noite tinha um arco-íris, no meio do arco-íris tem uma noite, um novo movimento se inicia. Esta ação foi concebida para ser realizada por um grupo assim como todas as ações subsequentes até o presente momento. Programa: convidar amigos para fazer um arco-íris resplandecer na noite da cidade.
 Mover juntos: 7 longos bambus (3,4m cada) com sete lâmpadas de tungstênio amarradas em suas pontas – cada lâmpada, uma cor: azul, verde, rosa, roxo, amarelo, vermelho e laranja –, todas ligadas por 45 metros de fio a um reversor que, por sua vez,
 está conectado a uma bateria de caminhão arrastada num carrinho de feira. Caminhar noite adentro.

no meio da noite tinha um arco-íris, no meio do arco-íris tem uma noite Enseada de Botafogo e Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro (2015). Foto: Jaime Acioli

E, por fim, apresento uma série realizada em novembro passado no Festival Performa em Nova York: Things That Must Be Done Series [TTMBDS] – Wall Street Actions (Série Coisas Que Precisam Ser Feitas [SCQPSF] – Ações Wall Street) (2015).

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Wall Street Action #1: asphalt snake (Ação Wall Street #1: cobra de asfalto) dia 1 do mês 11 11h da manhã e 11h da noite Uma cobra de asfalto se move pela Wall Street e arredores. Somos um conjunto de pessoas (11 colaboradores, público do festival e passantes que se juntaram a nós) e 7 bambus (3,4m cada, paralelos ao chão) serpenteando pelas avenidas, ruas e becos às 11h da manhã e às 11h da noite. Essas são as horas do dia em que a cobra de asfalto – criatura que muda de rabo e cabeça permanentemente e que, por vezes, perde o rabo e a cabeça – sai do buraco.

Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #1: asphalt snake (2015). Foto: Felipe Ribeiro

Wall Street Action #2: clothesline (Ação Wall Street #2: varal) dia 2 do mês 11 meio-dia – sol no meio do céu Dezenas e dezenas de tiras de fita metaloide prateadas e douradas são amarradas como rabiola de pipa numa linha de algodão com 12m de comprimento. A linha franjada conecta pelo topo os 7 bambus (3,4m cada). Caminhamos juntos. As fitas cintilam e ressoam ao vento. Finalmente algum brilho na Wall Street.

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Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #2: clothesline (2015). Foto: Felipe Ribeiro

Wall Street Action #3: almost monochromatic (Ação Wall Street #3: quase monocromático) dia 3 do mês 11 pôr do sol – de uma hora antes do sol tocar o horizonte até uma hora depois do sol ter tocado o horizonte Agora 7 lâmpadas de tungstênio estão atadas no alto dos bambus. Todas as lâmpadas têm a mesma cor, exceto uma (6 tons de rosa e 1 amarelo). Todas estão ligadas por 45m de fio a um reversor que, por sua vez,
está conectado a uma bateria arrastada num carrinho de carga. Juntos cruzamos o poente e adentramos a noite.

Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #3: almost monochromatic (2015). Foto: Felipe Ribeiro 30


Wall Street Action #4: Rothko’s pallet (Ação Wall Street #4: paleta Rothko) dia 4 do mês 11 nascer do sol – de uma hora antes do sol tocar o horizonte até uma hora depois do sol ter tocado o horizonte Agora os bambus estão forrados com lycra colorida. A cor de cada cor, cada quantidade de cada cor, e a sequência das cores são definidas a partir de sete quadros de Mark Rothko (ou seja, cada linha de bambu colorido corresponde a uma tela específica do pintor). Primeiro caminhamos separadamente pela Wall Street e arredores; em seguida nos juntamos. Cruzando a alvorada, vemos o despertar das cores.

Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #4: Rothko’s pallet (2015). Foto: Felipe Ribeiro

Wall Street Action #5: there was a rainbow in the middle of the night, there is a night in the middle of the rainbow (Ação Wall Street #5: no meio da noite tinha um arco-íris, no meio do arco-íris tem uma noite) dia 5 do mês 11 meia-noite – sol no meio do céu de baixo Um arco-íris brilha na noite da Wall Street. Juntos, adentramos a madrugada.

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Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #5: there was a rainbow in the middle of the night, there is a night in the middle of the rainbow (2015). Foto: Felipe Ribeiro

A Série Coisas Que Precisam Ser Feitas é uma disputa explícita por espaços simbólicos e imaginários na arena pública. A Série Coisas Que Precisam Ser Feitas é um experimento, nos arredores da bolsa de valores da capital do capital, sobre extensões corporais coletivas, instabilidade, negociação e encontro. SCQPSF é uma meditação sobre abstracionismo e concretude, bruxaria e arte, capitalismo e obscurantismo, bruxaria e capitalismo. SCQPSF performa abertamente uma luta entre eficácia/eficiência/ efetividade e experimentação, entre vida capital e imaginação política, entre normatividade e vitalidade. Queremos arte se movendo 4 metros acima das nossas cabeças.

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Heróis, anti-heróis e anônimos: marginalidade e extermínio em um texto de Hélio Oiticica Frederico Coelho Professor de Literatura na Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade/PUC-Rio


Ao longo da história e das sociedades, são inúmeras as possibilidades de definirmos aqueles situados nas margens. Seja como corpos estigmatizados, perseguidos, encarcerados e exterminados, seja como contrapontos contagiosos da ordem dominante, marginais são personagens limítrofes cujas representações estão, até hoje, em permanente movimento. Essa perspectiva histórica do marginal como categoria de acusação que se reinventa através do tempo a acumular preconceitos arraigados e motivações conjunturais de diferentes naturezas (econômicas, políticas, morais, estéticas, religiosas etc.) será a perspectiva utilizada no texto a seguir. Por ser óbvio que sua definição é demarcada pela posição de um centro, e por ser também óbvio que essa demarcação binária não indica necessariamente uma passividade ao assumir tal situação, o marginal se torna um tipo relativo no jogo de poderes de nossa sociedade. No caso do período que estamos discutindo aqui, definiu-se quem era marginal ou quem vivia à margem em um tempo cuja definição local e universal passava por binarismos conflituosos e absolutos como desenvolvimento e subdesenvolvimento, centro e periferia ou primeiro e terceiro mundo. Três pares cuja síntese era, essencialmente, progresso versus atraso. O marginal, nesse contexto, acumula as marcas desse atraso como carne e osso do que Glauber Rocha chamaria em 1965 de “estética da fome”. Ele é subdesenvolvido, periférico, terceiro-mundista e, claro, atrasado. Mais: ele é, aos olhos da “boa sociedade”, potencialmente violento. O marginal brasileiro nos anos 60 é a gênese de uma regra que vemos até hoje: dentre a população da cidade, ele cumpre o papel de agente descartável na marcha inexorável do progresso. É essa perspectiva ampliada e móvel de marginalidade que permitiu ao artista plástico carioca Hélio Oiticica (1937-1980) apropriar-se dela e transformá-la em um dos pontos centrais de sua obra e de sua vida.

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Em que consiste, porém, a arte “marginal” de Oiticica? Ou, em sentido mais amplo, como entender especificamente a “cultura marginal” que foi afirmada em seu trabalho como frente produtiva e compromisso estético coletivo a partir de meados dos anos 1960? Por que um artista plástico de carreira sólida e ascendente, iniciando uma trilha internacional e com renome dentre a crítica contemporânea, optou pela ruptura completa em prol de um posicionamento à margem do sistema da arte e do consenso de seu tempo? No caso específico de Hélio Oiticica, alguns pontos são fundamentais para pensarmos a representação do “homem marginal” no âmbito da arte. Vale lembrar que, ao mesmo tempo em que a questão pode parecer óbvia na trajetória de alguém tão relacionado ao tema, são muitos os caminhos possíveis para sua análise. Aqui, a abordagem não trata de provar algo, mas sim de oferecer diferentes perspectivas sobre o mesmo lugar-comum. As afirmações públicas e privadas indicando sua posição à margem de uma série de condições e expectativas sobre sua vida e obra não foram apenas opiniões superficiais. Muito menos simples frases de efeito em entrevistas ou cartas. Hélio Oiticica, como é sabido, articulou de forma orgânica suas ideias e seu corpo com o contexto urbano marginalizado carioca de seu tempo. Ele aprofundou uma reflexão radical sobre a alteridade do artista e do cidadão na sociedade brasileira militarizada e conservadora. Seu homossexualismo assumido, seu mergulho deliberado na vida dos morros, sua relação tensa, afetiva e poética com bandidos, malandros e sambistas, sua negação em se ajustar ao mercado comercial da arte, sua resistência aos discursos institucionais, seu anarquismo crônico, o uso explícito de drogas, as opiniões inegociáveis sobre seu trabalho, sua condição emigrante em países do Primeiro Mundo são horizontes possíveis que formam esse amplo campo de caminhos para pensarmos além dos clichês o papel fundamental da ideia de marginal nesse trabalho. Foram ao menos três momentos em que, ainda nos anos 60, Oiticica transformou em matéria plástica sua indignação com a situação do marginal urbano carioca. Em dois bólides dedicados ao seu amigo Cara de Cavalo e em uma bandeira, a famosa Seja marginal, seja herói. Esta última, pelo seu lema poético e romântico, pela sua força icônica e pela aura que ganhou ao longo do tempo, marcou profundamente os debates ao redor do trabalho do artista. Muitas vezes, alimentou leituras equivocadas que buscaram atrelar o lema transgressor a uma simples exaltação da criminalidade. Nada mais pueril. Se não podemos afirmar exatamente as intenções do artista, podemos sugerir o óbvio. Não se trata de transformar alguém em herói pelo fato de ser visto como marginal. Trata-se, isso sim, de heroicizar a parte mais frágil

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da sociedade – ou, ao menos, a mais sujeita à violência legal do Estado. Em todos os textos e entrevistas sobre esse tema no período, Oiticica demonstrava uma consciência muito clara das suas motivações. Para ele, o marginal morto virava espetáculo midiático, carne fresca para saciar a sociedade sempre em busca de seus cadáveres expiadores. O heroísmo do marginal, assim, não é superficialmente ligado a sua condição fora da lei. Seu heroísmo emana do desejo de inversão – ao menos simbólica – da sua condição anônima, miserável, violenta, diante da vida no país conservador e repressor daquele período. Tal lema empunhado por um artista contestador em 1968 ganha dimensões explosivas. Feito por alguém que sabe exatamente o que ocorria nos extermínios e ações policiais entre os bandidos cariocas, torna-se uma denúncia. É exatamente desse período o artigo “O herói anti-herói e o anti-herói anônimo”. Escrito originalmente para a exposição “O artista brasileiro e a iconografia de massa”, foi publicado no Diário de Notícias, na coluna Artes Plásticas, do crítico e curador Frederico Morais. No dia 10 de abril de 1968, Oiticica expressa em palavras públicas o ponto culminante que seu trabalho artístico chegava com sua bandeira. Nesse período, ao contrário da época em que conheceu a Mangueira, ele era um nome popular em certos meios. Mesmo assim, assume de forma rara e corajosa o lugar de quem compreende os dilemas do criminoso em uma sociedade assassina. Ao comentar as mortes de amigos famosos (Cara de Cavalo, bandido do morro do Esqueleto e amigo íntimo do artista, morto depois de um combate com a Escuderia Le Coq) e anônimos que estavam no mundo do crime (como Alcir Figueira da Silva, que, citando o artista, “ao se sentir alcançado pela polícia, depois de assaltar um banco, ao meio-dia, jogou fora o roubo e suicidou-se”), Oiticica inclusive elucida pontos importantes sobre a relação desse universo com seu trabalho (principalmente o Bólide-caixa nº18, B33 para Cara de Cavalo, de 1966, e o Bólide-caixa no 21, B 44 de 1966/67). Alguns trechos do texto mostram de forma direta como Oiticica se encontrava imbuído em assumir publicamente sua condição marginal na rejeição absoluta à fome de sangue da sociedade em relação aos bandidos e seus atos. Podemos ver ali que o espaço privado de sua marginalidade, cuja origem rompedora em 1964 atravessou tudo ao seu redor e reinventou sua personalidade, já havia transbordado em um caminho sem volta para o aspecto político da marginalidade pública. Cito Oiticica: Como se sabe, o caso de Cara de Cavalo tornou-se um símbolo de opressão social sobre aquele que é “marginal” – marginal a tudo nessa sociedade; o marginal. Mais ainda: a imprensa, a polícia, os políticos – a sujeira opressiva, em síntese, elegeu Cara de Cavalo como o bode expiatório,

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como inimigo público nº 1 (já em 62 haviam feito o mesmo com Mineirinho e logo depois com Micuçu). Cara de Cavalo foi de certo modo vítima desse processo – não quero, aqui, isentá-lo de erros, não quero dizer que tudo seja contingência – não, em absoluto! Pelo contrário, sei que, de certo modo, foi ele próprio o construtor de seu fim, o principal responsável pelos seus atos. O que quero mostrar, que originou a razão de ser de uma homenagem, é a mesma maneira pela qual essa sociedade castrou toda a possibilidade da sua sobrevivência, como se fora ele uma lepra, uma mal incurável – imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais degradantes princípios, como é a nossa, colaboraram para torná-lo o símbolo daquele que deve morrer e digo mais, morrer violentamente, com todo requinte canibalesco.

Aqui, não há a valorização ao ritual canibal visto pelo prisma positivo da antropofagia. A devoração que a sociedade fazia em relação ao marginal era de outra natureza. Destrutiva, sádica, insaciável. Mórbida e canalha, nas palavras públicas do artista. Quero ressaltar a predisposição de um artista plástico famoso em sua cidade e país pedir a um crítico (Frederico Morais, generosamente destemido em permitir a publicação) o espaço do jornal dedicado às artes plásticas para desabafar sua revolta não contra a crítica, os demais artistas, os museus ou o público. O desabafo e sua revolta, em plena ditadura militar, eram contra a condição dos marginais reais – e não dos simbólicos, como ele. Oiticica não estava sendo “politicamente correto”, nem estava usando um universo desconhecido para mostrar-se solidário com uma tragédia social. Ali, era uma voz da fronteira entre mundos demarcando o que chamava de “momento ético” em sua vida e obra. Pois ao mesmo tempo em que é o intelectual que escreve um texto em um jornal de grande circulação, ele também se considerava “um deles”. Sabendo, porém, que fundamentalmente não era um bandido perseguido pela polícia, podia entender as dores de tais personagens e denunciar duramente a sociedade em um jornal de sua cidade. Mas vale aqui um contraponto que não se pode perder de vista: seu texto, apesar de um olhar “de dentro” da situação do criminoso na sociedade brasileira que só alguém como ele poderia apesentar naquele momento, denuncia também a incompletude do artista marginal que Oiticica encarnava no Brasil daquela época. Apesar de amigo e companheiro de bandidos, apesar de conviver nas barras pesadas do mundo criminoso carioca, Oiticica ainda era um intelectual. Era sua arte, seu pensamento e seu texto que expressariam sua revolta. Em vez de atirar em policiais ou morrer com buracos de balas, seu limite no enfrentamento público de suas ideias era reconhecer no marginal o seu além do homem, a sua extensão

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e complemento, a sua possibilidade vivencial de suportar o cotidiano no Brasil daquele período. Era reconhecer no marginal, enfim, o seu herói. Citando Oiticica: O certo é que tanto o ídolo inimigo público no 1, quanto o anônimo são a mesma coisa: a revolta visceral, autodestrutiva, suicida, contra o contexto social fixo. Esta revolta assume para nós a qualidade de um exemplo – este exemplo é o da adversidade em relação a um estado social: a denúncia de que há algo podre, não neles, pobres marginais, mas na sociedade em que vivemos. Aqui isto aparece no plano visceral e imediato. Num outro plano, mais geral e com outros conotações estariam as mais heroicas experiências: Lampião, Zumbi dos Palmares, mais adiante o exemplo mais vivo em nós, grandioso e heroico, que é o de Guevara. O problema do marginal seria o estágio mais constantemente encontrado e primário, o da denúncia pelo comportamento cotidiano, o exemplo de que é necessária uma reforma social completa, até que surja algo, o dia em que não precise essa sociedade sacrificar tão cruelmente um Mineirinho, um Micuçu, um Cara de cavalo. Aí, então, seremos homens e antes de mais nada gente.

Antes de mais nada, gente. Oiticica proclama o marginal herói para anular a sina de anti-herói anônimo desses corpos. A afirmação-convite da bandeira “seja marginal seja herói” é justamente o acerto de contas do artista com aquilo que ele viu de perto ser esmagado rapidamente pela força policial do Rio de Janeiro – seus amigos e conhecidos de vida fronteiriça entre a malandragem e a bandidagem. São heróis sem rosto e sem vida (a imagem da bandeira é de um cadáver) que, para o artista, precisavam ficar como contraponto mínimo da situação aberta de enfrentamento que a cidade vive até hoje. No contexto em que Hélio viveu em seu tempo – a ditadura e a contracultura como limites desse caldo de repressão, invenção e transgressão –, o marginal em seu aspecto criminal transborda para o campo das representações do artista experimental ou fora dos padrões convencionais do período. A poesia, o cinema, a imprensa se tornam, aos poucos, “marginais” por múltiplos motivos. Estar à margem “do sistema” (editorial, institucional, financeiro, político, estético) torna-se um espaço fundamental de reinvenção de artistas e pensadores cujas obras não negociam. O artista se afirma marginal por analogia a duas “categorias de acusação” criadoras de anti-heróis: o bandido e o guerrilheiro. Ambos foragidos da justiça e do Estado, ambos submersos em cafofos e aparelhos, ambos elididos de qualquer possibilidade de convivência com a sociedade. Ambos, afinal, armados.

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Não é à toa que a arma de fogo e a violência se tornam tema desse grupo de artistas que se autoproclamam marginais. Filmes de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla apresentam bandidos, mortes, estupros, sangues, armas. Matam a família e vão ao cinema. Com um Hélio Oiticica atuando de arma na mão, Glauber Rocha faz Câncer e o define como um estudo sobre a violência (citando o próprio, violência psicológica, sexual e racial). As músicas do álbum coletivo Tropicália ou panis et circensis são repletas de punhais, sangues, assassinatos, violência contra a mulher, cachorros mortos nas ruas, fuzis. Waly Salmão tem sua iluminação poética em uma cela do Carandiru. Rogério Duarte é preso e brutalmente torturado. Anti-heróis. Oiticica estava no cerne disso tudo. Viu de perto, de muito perto, a vida nas favelas cariocas e a dinâmica sem lei que seus moradores eram obrigados a inventar a vida e a sobrevida. Seu gesto de proclamar o marginal herói não vem de um obscuro espaço romântico de observação geral da sociedade. Vem de saber que por trás daqueles corpos mortos em fotos espetaculosas de jornais tinha carne que andava, amava e desejava. Sem eximi-los de suas responsabilidades pelas escolhas na vida, entende-os na complexidade mais ampla do demasiado humano. Novamente, não se tratou em momento algum de positivar o crime, mas sim de inverter a lógica exterminadora do pobre que aderiu ao crime. Dar a ele o lugar do herói é, de certa forma, destituir-nos da nossa posição de definidores do bem e mal e, mais, de quem pode morrer sem remorso coletivo e quem não pode ter sua vida atacada por esses que ou morrem ou matam.

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Um boi com cara de cavalo* O lugar de herói do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, o Amarildo Gerardo Silva Professor da Universidade Federal do ABC (UFABC)

* Agradeço os comentários dos participantes do Seminário Internacional Hélio Oiticica para Além dos Mitos, onde este texto foi apresentado, e a Leonora Corsini pelas sucessivas leituras e sugestões.


I Desde a icônica imagem da crucificação de Jesus Cristo, passando pela representação de todos os heróis que morreram nas catacumbas e nas fogueiras da inquisição, ou que foram fuzilados ou mortos nas guerras (revolucionárias ou não), sempre temos convivido com a interpelação das imagens, de determinadas imagens. Duas delas, em particular, fazem parte do meu imaginário de um modo bastante perturbador. A primeira é a imagem de Ernesto “Che” Guevara no seu leito de morte (na verdade, trata-se de uma maca sobre uma mesa), com os olhos abertos como se estivesse ainda vivo. Como sabemos, o “Che” foi capturado na Bolívia e levado ferido à famosa “escuelita” de La Higuera, onde aguardou por seus verdugos norte-americanos. A imagem fotográfica, que seus captores utilizaram como troféu ou como prova da sua morte, transformou nosso herói revolucionário em um mártir, cuja morte agigantou sua já legendária determinação e coragem pela causa libertária.1 1 Essa imagem trágica contrasta com a fotografia icônica de Alberto “Korda” Diaz Gutierrez (1928-2001), na qual uma mirada perdida no horizonte, porém extremamente grave no seu semblante, contagia-nos com sua determinação revolucionária (essa imagem foi capturada durante a homenagem do governo cubano às 136 pessoas mortas em um atentado contra um barco francês carregado de armas no porto de La Havana, em 5 de março de 1960).

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A segunda imagem é mais antiga, porém mais recente na minha memória. No dia 28 de julho de 1915, marines norte-americanos invadiram a República do Haiti – fruto da primeira e única revolução de escravos negros no mundo inteiro – e iniciaram uma ocupação militar que duraria quase vinte anos, até a retirada das tropas em 1o de agosto de 1934.2 Durante a ocupação, marcadamente violenta e racista, um grupo de rebeldes conhecidos como os “Cacos” iniciam uma guerra de resistência baseada nas mesmas táticas de guerrilha que tornaram possível a revolução, mais de cem anos antes.3 Em outubro de 1919, o seu líder, Charlemagne Péralte, ensaia um ataque à capital Porto Príncipe, sendo, porém, derrotado. Em novembro do mesmo ano, ele é emboscado e morto por uma patrulha norte-americana, e seu corpo seminu é atado a uma porta e fotografado na vertical, para conhecimento das autoridades e de todo o povo do Haiti. Mais uma vez, o feitiço se volta contra o feiticeiro. A imagem-troféu de Charlemagne Péralte, em uma posição de quase crucifixão, o transforma em um mito da resistência haitiana – até os dias de hoje! Sem dúvida, as imagens dos corpos abatidos de Manoel Moreira (Cara de Cavalo) e de Alcir Figueira da Silva, utilizadas por Hélio Oiticica nas suas obras Bólide B33 e B44 e, posteriormente, na bandeira da emblemática frase Seja marginal seja herói, pertencem a essa mesma linhagem expressiva, com a diferença, porém, de que, nesse caso, elas serão recicladas por uma narrativa de segunda ordem, não menos potente, de ressignificação visual através da arte.4 Evidentemente, essa operação se impõe pelo fato de os corpos serem, em grande medida, anônimos ou, como no caso de Cara de Cavalo, estigmatizados pelo poder e pela mídia ao ponto de não retorno, isto é, ao ponto de poderem ser caçados e mortos sem grande remorso 2

Para os interessados nas circunstâncias e nas consequências da ocupação norte-americana do Haiti, ver a obra clássica de Suzy Castor, La ocupación norteamericana de Haití y sus consecuencias (1915-1934), 1971.

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Sobre a estratégia de luta dos revolucionários haitianos durante a revolução, que derrotou os exércitos da Inglaterra e da França, duas das maiores potências imperiais na época, e que culminou com a independência de Haiti em 1804, ver James ([1938] 2010).

4 Podemos afirmar que para Hélio Oiticica arte é fundamentalmente experimentação e crítica levada até suas últimas consequências, isto é, até a dissolução do próprio conceito de arte. Na verdade, como ele mesmo assinala, sua arte é, na verdade, uma “arte ambiental” produto de uma experimentação coletiva de espaços, objetos, texturas, imagens e cores na qual a participação ativa do espectador é determinante – às vezes também chamada de antiarte (cf. Oiticica, 1986). No caso dos Bólides e Parangolés, como afirma Celso Favaretto (1992), eles representam as últimas “estruturas primordiais” do processo de instauração da arte ambiental. Tratar-se-ia de um momento de inflexão e ruptura na trajetória experimental do artista no qual se persegue a produção de objetos para além da representação. Os Bólides-caixa, em particular, são “estruturas de inspeção”, espaços de sensibilidade que exigem um reconhecimento visual e tátil por parte do espectador como forma de diálogo com a obra de arte.

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social. Como sabemos, este último foi amigo de Hélio Oiticica e foi abatido por um esquadrão da morte em Cabo Frio, no dia 3 de outubro de 1964, depois de uma caçada que durou um mês e sete dias para vingar a morte – em um enfrentamento armado – do detetive Milton Le Coq, contratado pelos “bicheiros” da Vila Isabel para neutralizar Cara de Cavalo. Eis os motivos que levaram o artista a realizar sua obra homenagem Bólide B 33: Em começos de 1965 quando germinava a ideia de uma homenagem a Cara de Cavalo, que só veio a se concretizar numa obra em maio de 1966 (Bólide-caixa nº18 – B33), o meu modo de ver, ou melhor, a vivência que me levou a isso foi a que defini numa carta ao crítico Guy Brett (12/abril/67) como um momento ético. Como se sabe, o caso de Cara de Cavalo tornou-se símbolo da opressão social sobre aquele que é marginal – marginal a tudo nessa sociedade: o marginal. Mais ainda: a imprensa, a polícia, os políticos (Carlos Lacerda pessoalmente chefiou uma blitz ao mesmo, aliás, como já o fizera em relação a outros anteriormente) – a sujeira opressiva em síntese, elegeu Cara de Cavalo como bode expiatório, como inimigo público no 1 (já em 62 haviam feito o mesmo com Mineirinho e logo depois com Micuçu, tudo isso no governo Lacerda, que se tornou símbolo da opressão social policial, inclusive com o trágico caso dos mendigos afogados, etc.). Cara de Cavalo foi de certo modo vítima desse processo – não quero, aqui, isentá-lo de erros, não quero dizer que tudo seja contingência – não, em absoluto! Pelo contrário, sei que de certo modo foi ele próprio o construtor de seu fim, o principal responsável pelos seus atos. O que quero mostrar, que originou a razão de ser de uma homenagem, é a maneira pela qual essa sociedade castrou toda possibilidade da sua sobrevivência, como se fora ela uma lepra, um mal incurável – imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais degradantes princípios, como é a nossa, colaboraram para torná-lo o símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer violentamente, com todo requinte canibalesco (o motivo chave para isso foi o assassinato, numa luta, do detetive Le Coq, do Esquadrão da Morte, organização policial que envergonharia qualquer sociedade de caráter, composta de policiais assassinos e degradados, que até hoje milita por aí com outras pessoas e outros nomes). Há como que um gozo social nisto, mesmo nos que se dizem chocados ou sentem “pena”.5

5 Este texto de Hélio Oiticica foi apresentado em uma exposição de 1968, “O artista brasileiro e iconografia de massa”, organizada por Federico de Morais e pela Escola Superior de Desenho Industrial, e realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM/ RJ. Também foi publicado no jornal Diário de Notícias, do dia 10/04/1968. Salvo indicação, todas as citações do artista utilizadas neste trabalho pertencem a esse texto.

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No que diz respeito à segunda imagem, trata-se de um corpo estendido no chão – às margens do rio Timbó – com os braços abertos e na perspectiva da cabeça aos pés, utilizada na obra Bólide B44. Como o mesmo autor explica, a imagem de Alcir Figueira da Silva, que se suicidou ao ser alcançado pela polícia depois de ter roubado um banco, expressa, na mesma lógica da obra homenagem anterior, o problema ou a tragédia da incomunicabilidade de uma vida vivida à margem, que prefere a morte à prisão. Diz o artista, Já outra vivência sobrevém a do ídolo anti-herói, ou seja, a do anti-herói anônimo, aquele que, ao contrário de Cara de Cavalo, morre guardando no anonimato o silêncio terrível dos seus problemas, a sua experiência, seus recalques, sua frustração (claro que herói anti-herói, ou anônimo anti-herói, são, fundamentalmente a mesma coisa: essas definições são a forma com que seus casos aparecem no contexto social, como uma resultante) – o seu exemplo, o seu sacrifício, tudo cai no esquecimento como um feto parido. Numa outra obra (Bólide-caixa no 21 – B44 – 1966/67), quis eu, através de imagens plásticas e verbais exprimir essa vivência da tragédia do anonimato, ou melhor, da incomunicabilidade daquele que, no fundo, quer comunicar-se (o caso que me levou à vivência foi o do marginal Alcir Figueira da Silva, que ao se sentir alcançado pela polícia depois de assaltar um banco, ao meio dia, jogou fora o roubo e suicidou-se). Por que o suicídio? Que diabólica neurose (aliás tão shakespeariana) o teria levado a preferir a morte a prisão? Uma esperança perdida, o desespero dessa perda, mas qual perda? Uma ideia, sei lá se certa ou não, me veio: seria isto a busca da felicidade (aqui entendida como segurança, afeto, tudo o que envolveria a falta que ocasionou essa neurose)?

Não precisamos nos deter na veia psicanalisante dessa manifestação. A distinção (e a semelhança) entre as duas figuras: o herói anti-herói e o anônimo anti-herói, é que nos interessa neste momento. Como afirma o autor, ambas figuras são “resultantes”, não de um modo de vida escolhido livremente, mas de uma revolta contra ele. O certo é que tanto o ídolo, inimigo público nº 1, quanto o anônimo são a mesma coisa: a revolta visceral, autodestrutiva, suicida, contra o contexto social fixo (status quo social). Esta revolta assume, para nós, a qualidade de um exemplo – este exemplo é o da adversidade em relação a um estado social: a denúncia de que há algo podre, não neles, pobres marginais, mas na sociedade em que vivemos. Aqui isto aparece no plano visceral e imediato. Num outro plano, mais geral e com outras conotações estariam as

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mais heroicas experiências: Lampião, Zumbi dos Palmares, mais adiante o exemplo mais vivo em nós, grandioso e heroico, que é o de Guevara. O problema do marginal seria o estágio mais constantemente encontrado e primário, o da denúncia pelo comportamento cotidiano, o exemplo de que é necessária uma reforma social completa, até que surja algo, o dia em que não precise essa sociedade sacrificar tão cruelmente um Mineirinho, um Micuçu, um Cara de Cavalo. Aí, então seremos homens e antes de mais nada gente.

Vale a pena, a partir dessas palavras, abrir aqui um parêntese sobre o suposto romantismo do artista ao compor essas obras. Alguns autores, seja na tentativa de contextualizar a violência no Brasil, seja com o propósito de fazer uma crítica a certa “fascinação” pela violência por parte das camadas médias da população, têm observado que essa relação com “o marginal” por parte de Hélio Oiticica pertence a um momento da história em que essa “transgressão” era ainda possível. O contexto atual, porém, pelo seu grau de violência, anomia e crueldade, tornaria essa aproximação cada vez mais difícil, senão impossível.6 Além do mais, as obras teriam sido concebidas em pleno início da ditadura militar, quando o desafio às leis e à própria institucionalidade era quase um dever moral, enquanto que hoje, em um contexto democrático, essa postura seria altamente contraproducente. Embora essas observações tenham sua parcela de legitimidade, a verdade é que Hélio Oiticica nunca pretendeu ancorar sua crítica nessa relação pessoal com Cara de Cavalo (ou com outros indivíduos do mundo dito marginal), nem muito menos justificá-los, mas chamar a atenção sobre a dimensão social do problema, sobre a grande parcela de responsabilidade que cabe à sociedade nesses desfechos. Afinal, pergunta o artista, qual a oportunidade que têm os que são, pela sua neurose autodestrutiva, levados a matar ou roubar? “Pouca”, ele mesmo responde. E agrega: “porque a sociedade mesmo, baseada em preconceitos, numa legislação caduca, minada em todos os sentidos pela máquina capitalista consumitiva, cria os seus ídolos anti-heróis como o animal a ser sacrificado”. Nesse sentido, mesmo considerando os níveis de violência atuais, entendo que o alvo da crítica continua plenamente vigente. Voltando às imagens que compõem sua obra de homenagem e crítica, em 1968 Hélio Oiticica apresenta sua bandeira estampada com a imagem 6 Tal como o filme Tropa de elite (dirigido por José Padilha, 2007) que se tenta demonstrar que somente tolos inocentes da classe média carioca podem acreditar em construir algum vínculo com o mundo marginal da favela sem que isso não coloque automaticamente em risco suas próprias vidas.

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do anti-herói anônimo e os dizeres Seja marginal seja herói. Com esse gesto, entendo eu, o artista libera a sua homenagem da caixa Bólide e a torna um símbolo da resistência aos dispositivos mais brutais de opressão, sintetizados na ideia da produção social contínua de vidas matáveis ou sacrificáveis, isto é, daqueles que devem morrer e, sobretudo, morrer violentamente, como ele mesmo diz. O fato dela (a bandeira/estandarte) ter sido exposta em um show da Tropicália, que o próprio artista ajudou a instituir como movimento artístico e cultural, e de ter sido objeto de censura e perseguição, como narra Caetano Veloso no seu livro Verdade tropical,7 deu-lhe uma projeção inesperada. Assim, a imagem do marginal Alcir Figueira da Silva, o anti-herói anônimo, morto nas circunstâncias descritas, ficou para sempre estampada não apenas na bandeira, como também na memória coletiva da sociedade brasileira.

II Mais recentemente, no fim do dia 14 de julho de 2013, na favela da Rocinha no Rio de Janeiro, o ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza foi levado por policiais militares para a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), recentemente instalada na comunidade, e nunca mais se soube nada dele, a não ser pelos depoimentos que levaram à condenação, dois anos e meio depois, dos policiais que participaram da operação.8 De acordo com os autos da sentença proferida pela juíza Daniella Alvarez Prado,9

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Uma noite, um juiz de direito que, não sei por que cargas d´agua foi à Sucata ver o nosso show, indignou-se com o estandarte de Hélio. Sob uma ditadura militar, uma reação moralista contra uma obra que glorificava um marginal tinha tudo para crescer. Mesmo desproporcional como essa: o estandarte devia ter um metro quadrado e não ficava no palco nem era destacado pela iluminação. Só um fanático se ateria a esse detalhe com tanta tenacidade. Sem embargo, o juiz conseguiu não apenas suspender o show como fechar a boate. Ricardo Amaral ficou tentando negociar a reabertura, enquanto nós esperávamos, sem muito otimismo, reestrear. O episódio foi muito falado e teve, a médio prazo, terríveis consequências (Veloso, 1997: p. 307).

8 Pelo caso, doze policiais militares foram condenados pela justiça e expulsos da corporação, quatro foram absolvidos e mais um grupo de oito pessoas que trabalhavam na UPP naquele momento não foram imputados pelo crime. Disponível em: http:// g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/02/caso-amarildo-entenda-o-que-cada-pm-condenado-fez-segundo-justica.html. Acesso: 14/04/2016. 9 Para consultar a íntegra da sentença: http://s.conjur.com.br/dl/sentenca-amarildo. pdf. Acesso 21/04/2016.

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Infelizmente sabemos que ele não sumiu. Amarildo morreu. Não resistiu à tortura que lhe empregaram. Foi assassinado. Vítima de uma cadeia de enganos. Uma operação policial sem resultados expressivos. Uma informação falsa. Um grupo sedento por apreensões. Um nacional vulnerável à ação policial. Negro. Pobre. Dentro de uma comunidade à margem da sociedade. Cuja esperança de cidadania cedeu espaço para as arbitrariedades. Quem se insurgiria contra policiais fortemente armados? Quem defenderia Amarildo? Quem impediria que o desfecho trágico ocorresse? Naquelas condições, a pergunta não encontra resposta e nos deparamos com a covardia, a ilegalidade, o desvio de finalidade e abuso de poder exercidos pelos réus.

Podemos começar a nos debruçar sobre os sentidos dessa citação inquirindo sobre o significado de “Vítima de uma cadeia de enganos”. Aparentemente, Amarildo foi indicado por um informante como alguém que estava prestando serviço aos traficantes da favela da Rocinha, e foi pego na saída de um bar a caminho de casa. Na hora da detenção, ele estava com seu documento pessoal e não havia nada no seu comportamento que justificasse a apreensão. Amarildo tampouco tinha passagem pela polícia, nem problemas com os vizinhos da comunidade na qual vivia. Para os policiais, entretanto, a delação do informante era confiável, e ele tinha de saber algo. Decidiram então torturá-lo para obrigá-lo a falar, para obrigá-lo a dizer o que evidentemente não sabia ou não podia, e o mataram dessa forma, torturando-o. Com base nos depoimentos das testemunhas e dos acusados, a juíza afirma que Amarildo “infelizmente” morreu, mas de fato seu cadáver nunca foi encontrado.10 Um segundo elemento se refere à “vulnerável à ação policial. Negro. Pobre. Dentro de uma comunidade à margem da sociedade” (ou seja, como diz a canção Haiti de Caetano Veloso e Gilberto Gil: “todos sabem como se trata aos pretos, aos quase pretos e aos quase brancos quase pretos de tão pobres”). Considerando a forma em que foi assassinado, o fato de Amarildo pertencer a esse “grupo de risco” não constitui, evidentemente, nenhuma novidade. Aqui, ele seria mais um número em uma estatística massacrante de homicídios e repressão policial sobre esse segmento específico da população. De acordo com Waiselfisz (2012), com efeito, entre 2002 e 2012, a participação e a vitimização pela violência da população negra no Brasil representavam 65,1% do total; já quando consideramos os jovens negros, no mesmo intervalo de tempo, esse número aumenta para 10 Os policiais foram condenados pelos crimes de tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual.

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69,1%. Embora o Estado do Rio de Janeiro não esteja entre os entes da federação com os valores mais elevados, o mesmo relatório aponta que em 2010 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes era de 21,5 para os brancos e de 41 para a população negra, e que esses valores passam de 42 a 88,5 respectivamente quando considerada a população jovem. Acredito que a estatística não tenha mudado muito até hoje, e que não seja preciso explicar onde estão ou onde se encontra a maioria desses jovens. Por fim, “Quem se insurgiria contra policiais fortemente armados? Quem defenderia Amarildo? Quem impediria que o desfecho trágico ocorresse?” Ninguém, pareceria ser a resposta (pelo menos nessa hora). Impunidade policial, portanto, mais do que “desvio de finalidade” ou “abuso de poder”.11 Por um lado, um tipo de impunidade estrutural e de larga duração, de origem escravagista, que se perpetua através do tempo. Pelo outro, uma impunidade policial produzida cotidianamente como dispositivo de controle dos pobres e das formas múltiplas em que os mesmos se revelam, voltando às palavras de Hélio Oiticica. Certamente, o papel de herói de Amarildo, diferentemente de Cara de Cavalo e de Alcir Figueira da Silva, não se projeta sobre um enfrentamento com as “forças da ordem”, mas sobre um fundo mais opaco e truculento de tortura e desaparecimento – como nos porões da ditadura militar.12 Quem pode duvidar do heroísmo dos que 11 De acordo com o Relatório Mundial 2015 do Human Rights Watch, [a polícia brasileira] foi responsável por 436 mortes no estado do Rio de Janeiro e 505 mortes no estado de São Paulo, nos primeiros nove meses de 2014. No estado de São Paulo, isto representa um aumento de 93 por cento em relação ao mesmo período de 2013. De acordo com as informações mais recentes disponíveis, compiladas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma organização não governamental (ONG), mais de 2.200 pessoas foram mortas em operações policiais em todo o Brasil em 2013, uma média de 6 pessoas por dia. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/world-report/2015/country-chapters/268103. Acesso: 20/05/2016. Isso representa quatro vezes mais do que acontece nos Estados Unidos e duas vezes mais do que na Venezuela, um dos países mais violentos da região, de acordo com a mesma fonte utilizada no relatório. 12 Essa associação também é feita por Caetano Veloso na sua coluna do jornal O Globo, do dia 11 de agosto de 2013, dedicada ao desaparecimento do Amarildo: Quando eu estava num xadrez da Polícia do Exército, durante o governo militar, no quartel de Deodoro, ouvi diversas vezes, à noite, gritos e gemidos estarrecedores, não raro seguidos de comandos de emergência, “traz a padiola”, os urros da vítima dando lugar, depois de uns segundos de silêncio terrível, à azáfama dos algozes. Eu estava entre presos políticos (Gil, Ferreira Gullar, Antônio Callado, Paulo Francis, Perfeito Fortuna eram alguns deles) e havia uma ordem de não nos molestar, agredir ou ferir. Os companheiros de xadrez (estávamos divididos em dois grupos, cada um numa cela) diziam que aqueles gritos podiam ser de outros presos políticos, trazidos de diferentes quartéis, os quais não seriam, como nós, meros artistas, intelectuais e estudantes acusados de subversão, mas ativistas ligados à luta armada. No entanto, a hipótese mais resistente (talvez contando com coisas entreouvidas aos carcereiros) era a de que fossem “cri-

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sobreviveram e dos que morreram em tais circunstâncias? No momento em que Amarildo foi abordado pelos policiais o dispositivo foi ativado: negro, pobre, favelado, marginal (a partir daqui acredito que o desfecho não interessa demasiado, porque é absolutamente aleatório).13 Como sabemos, a notoriedade do caso Amarildo se deveu não somente à mobilização popular pelo seu paradeiro, mas também pelo que estava em jogo naquele momento. A campanha e mobilização “Cadê o Amarildo” foi para as ruas e engrossou as grandes manifestações de junho-julho de 2013, expondo o recrudescimento da dinâmica repressiva na cidade por causa da Copa e das Olimpíadas. As próprias Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foram questionadas por transformarem-se em forças de ocupação, mais do que de pacificação.14 Diversas personalidades públicas prestaram seu nome em favor da campanha, que foi amplamente acolhida nas redes sociais, e os grandes jornais e meios de comunicação, normalmente avessos a insistir nesse tipo de notícias, tiveram de fazer sua parte. Também prestigiosos jornais internacionais como o New York Times, Washington Post, El País, Le Figaro e La Reppublica, entre outros, publicaram artigos e imagens da campanha “Onde está Amarildo?”. No fim, Amarildo ganhou também uma biografia, embora permaneça anônimo no sentido de que ele mesmo nunca pode contar sua história. Segundo a Wikipédia, Amarildo nasceu em 1965 ou 1966, na favela da Rocinha, onde morou toda sua vida. Era o sétimo de 12 irmãos, filho de uma empregada doméstica e de um pescador. Era analfabeto e só escrevia o próprio nome. Estava casado com Elizabeth Gomes da Silva e era pai de 6 filhos. Vivia em um barraco de um único cômodo. Pela sua fortaleza física era chamado de “Boi”, e trabalhava principalmente como ajudante de pedreiro.

III Como vimos, Hélio Oiticica constrói sua narrativa sobre o herói anti-herói e o anônimo anti-herói na base de imagens de corpos abatidos, isto é, de cadáveres. Uma espécie de “necrofilia” imagética que retira os corpos dos minosos comuns”, gente pobre dos subúrbios e das favelas a sofrerem aqueles maus tratos (alguns pareciam perder a vida nessas sessões). Disponível em: http://oglobo. globo.com/cultura/pai-9461101. Acesso: 17/04/2016. 13 Embora não devesse, porque a UPP da Rocinha, assim como as outras, fora instalada justamente para evitar, entre outros, esse tipo de resultado. Para uma interpretação de como é possível chegar a uma tal situação, antes da instalação das UPPs, ver Silva, 2014. 14 Sobre essa espécie de “deturpação” da política das UPPs, ver a coletânea de textos de Silva e Corsini (2015).

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seus lugares de origem, seja nas fotografias-troféu ou nas imagens de jornais sensacionalistas, para colocá-los em outro registro e ressignificá-los. Isso também vale para as imagens de Che Guevara e Charlemagne Péralte, embora estas últimas não tenham sido o produto de um gesto deliberado. Mas, como exercer essa arte necrofílica quando não se tem o cadáver? Como restituir o sentido (sagrado) de uma vida que pertence à sociedade sem poder atribuí-la a um corpo (ou a uma imagem de um corpo)? Seria suficiente poder imaginá-lo? Alcançaria com as palavras? Provavelmente não. Acredito que ele mesmo (o artista) nos chamaria a atenção sobre uma outra possibilidade. No Bólide 56 Caixa 24, uma obra da mesma série de homenagem a Cara de Cavalo porém menos conhecida, chamada de Caracara Cara de Cavalo (1968), Hélio Oiticica utiliza uma fotografia retrato do amigo morto como elemento central da proposta (cf. Loeb, 2011). Estampada no fundo de uma das caixas que compõem a obra (são duas caixas superpostas, a de baixo com plásticos, cinza e brita que se espalham pelo chão), ela aparece sem dizeres ou poemas, numa tentativa de confrontar o público ou espectador com uma pessoa estigmatizada socialmente que foi morta de maneira brutal pela ação repressiva dos policiais e do Estado – a expressão “Caracara Cara de Cavalo”, que dá nome à obra, pode ser traduzida como cara a cara com Cara de Cavalo. O que diferencia essa versão das anteriores, entretanto, é o fato de se tratar de uma imagem de Manoel Moreira ainda vivo, olhando para nós (ou para a câmera) de maneira expectante: Olhe para mim! Você sabe quem eu sou? Tem alguma coisa para me dizer? No caso do Amarildo, algumas (poucas) imagens, que constituem praticamente uma única imagem, completam sua breve biografia. Nelas um rosto magro e anguloso com uma mirada forte nos interpela publicamente: Você sabe o que aconteceu! Vamos deixar por isso mesmo? Até quando? Encontramos essa imagem reproduzida em capas de revistas e jornais, camisetas, cartazes e faixas, junto com os dizeres “Cadê o Amarildo?”, “Onde está Amarildo?”, “Somos todos Amarildo”. A imagem se multiplica e se potencializa através de manifestações diversas tais como grafites, projetações, quadrinhos e charges.15 Nas redes sociais essa imagem circula e faz circular. Impossível conter seu apelo indignado diante de uma violência que há muito tempo se tornou insuportável. A mesma situação 15 Entre estas últimas, duas chamaram a minha atenção, ambas do chargista Latuff (2013). Na primeira, um policial militar utiliza como arma uma borracha gigante que vai apagando o desenho de Amarildo em passadas (rajadas?) violentas; na segunda, uma criança sai de casa e olha para um chinelo largado no chão e pergunta “Pai?”, enquanto uma viatura se afasta do local a toda velocidade. Em ambas as charges não há testemunhas, e em ambas o corpo desaparece.

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que levou Hélio Oiticica a manifestar-se contra toda forma de repressão institucionalizada, seja policial, militar ou de qualquer outra natureza. A violência, ele diz, é justificável apenas como meio de revolta, jamais como meio de opressão.16 No seu livro Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I (2010), o filósofo Giorgio Agamben nos adverte sobre uma obscura manifestação da faculdade soberana, que consiste em se afirmar sobre um poder que retira dos indivíduos tanto sua pertença jurídica quanto seu vínculo fraterno (ou religioso), com uma determinada comunidade, deixando-os completamente expostos a uma morte sem valor ou, no seu reverso, a uma vida que não merece ser vivida. Entre os antigos, afirma o autor, essa figura era bem caracterizada e, embora comum, constituía uma exceção; já na sociedade contemporânea, ela ameaça tornar-se a norma. Acredito que na interrogação “Cadê o Amarildo?” e em todas as manifestações que a acompanham, assim como nos Bólides homenagem e os dizeres “Seja marginal seja herói”, haja algo mais do que uma denúncia (ou momento ético, como queria Hélio Oiticica); trata-se também da recusa a um poder soberano que tenciona transformar nossas cidades em um gigantesco campo habitado pelo Homo sacer, isto é, por aquele que pode ser morto, torturado e/ou desaparecido sem ninguém ter o direito de reclamar.

16 Em carta ao crítico Guy Brett, de 12 de abril de 1967 (Oiticica, 2008).

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Referências Agamben, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2010. Braga, Paula. Hélio Oiticica: singularidade, multiplicidade. São Paulo: Perspectiva-Fapesp, 2013. Castor, Suzy. La ocupación norteamericana de Haití y sus consecuencias (1915-1934). México: Siglo XXI, 1971. Favaretto, Celso. A invenção do Hélio Oiticica. São Paulo: Fapesp/USP, 1992. James, C. L. R. Os jacobinos negros. Toussaint l´ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, [1938] 2010. Loeb, Angela V. Os bólides do programa ambiental de Hélio Oiticica. In: ARS (São Paulo) vol. 9 no 17, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202011000100004. Acesso: 9/07/2016. Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Organização, seleção de textos e notas de Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. . A pintura depois do quadro. Organização, seleção de textos e notas Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Silvia Roesler Edições de Arte, 2008. Silva, Gerardo. Viver e deixar morrer no Rio de Janeiro. Violência, narcotráfico e favelas. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade, 19(21/22), 1o e 2o semestres de 2014, p. 23-29. Silva, Gerardo; CORSINI, Leonora. Democracia x regimes de pacificação. A insistente recusa do controle exercido em nome da segurança. São Paulo: AnnaBlume, 2015. Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Waiselfisz, Julio. Mapa da violência 2012. A cor dos homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: Cebela, Flacso; Brasília: SEPPIR/PR, 2012.

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Hélio Oiticica e a intervenção tropicalista como contraponto à memória recalcada da dualidade ontológica [antropofagia, dialogia criativa, abertura participativa e expansão do repertório] Luiz Eduardo Soares Antropólogo e escritor


Em 1964, Hélio Oiticica escreveu sobre o “estandarte”, criação que problematiza a participação do espectador e iniciou a exploração da dança como componente da estrutura da obra, entendida como ação. No ano seguinte, a pesquisa conduziu à “capa”, o parangolé, integrando a participação na estrutura-movimento da obra, feita para vestir. A obra desloca-se no corpo do espectador ou do protagonista da performance. O movimento situa a obra no tempo e no espaço, suscitando, em vez de contemplação, a “vivência mágica” (OITICICA, 2011, p. 73). Nesse momento, o espectador passa a ser chamado participador. Tão extraordinária quanto a sensibilidade estética de Oiticica era sua refinadíssima capacidade de refletir sobre suas obras: O vestir já em si constitui uma totalidade vivencial da obra, pois ao desdobrá-la tendo como núcleo central o seu próprio corpo, o espectador como que já vivencia a transmutação espacial que aí se dá: percebe ele na sua condição de núcleo estrutural da obra o desdobramento vivencial desse espaço intercorporal. Há como que uma violação de seu estar como “indivíduo” no mundo, diferenciado e ao mesmo tempo “coletivo”, para o de “participador” como centro motor, núcleo, mas não só “motor” como principalmente “simbólico”, dentro da estrutura-obra. É esta a verdadeira metamorfose que aí se verifica na interrelação espectador-obra (ou participador-obra) (Oiticica, 2011, p. 74).1 1 Anoto à margem: um mundo interativo assim reconstruído instaura o protagonismo individual engajado na sociabilidade eu-tu, portanto avesso ao isolamento individualista, e expurga o uso recorrente da categoria “eles” – sobre o qual vou me deter adiante – como confissão de impotência política.

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Na sequência, Oiticica explica como concebeu a tenda, o primeiro de seus penetráveis, nesse caso o Penetrável parangolé. A meta é proporcionar a “vivência-total parangolé”, que lançaria o sujeito no mundo ambiental por sua participação nas obras, instando-o a “decifrar a sua verdadeira constituição universal transformando-o em ‘percepção criativa’” (Idem). Em 1965, Oiticica refletiu longamente sobre a dança, a desinibição, a superação de preconceitos, a revisão da relação corpo-espírito, o realinhamento liberador, dionisíaco, de ideias, ações e sensibilidade. Seu interesse voltou-se para a música, o ritmo, a coreografia popular abrindo espaço para a intersubjetividade transmutada em intercorporalidade – uma ambiência propícia ao exercício da relação “eu-tu” e sua metamorfose em um “nós” fusional e orgiástico, em cujo contexto a participação (em uma ação coletiva) e o pertencimento (a um grupo ou à sociedade) rearranjam o regime de distinções entre os indivíduos e entre estes e a coletividade, em paralelo à transmutação do espectador em protagonista. A palavra parangolé – conversa fiada, papo sem importância, abobrinha – combina autoironia e referência ao coloquial cotidiano, àquilo que nos diálogos é mais forte que o conteúdo intercambiado: o simples estar ali, lado a lado com o outro. Devolvo a palavra a Hélio, que visitou a Mangueira fazendo circular os parangolés: “A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos, classes, etc. seria inevitável e essencial na realização dessa experiência vital. Descobri aí a conexão entre o coletivo e a expressão individual – o passo mais importante para tal –, ou seja, o desconhecimento de níveis abstratos, de ‘camadas’ sociais, para uma compreensão de uma totalidade” (Idem, ibid., p. 76). O artista aproxima-se da concepcão antropológica de festa (Freitas Perez, Amaral e Mesquita, 2012) e do conceito – tão útil no capítulo anterior – de fato social total (MARCEL MAUSS, 1974).2 Recorro a uma metáfora que ele talvez aprovasse: Hélio instala na praça central da Polis o umbral – o penetrável – que permite a passagem da dimensão corriqueira em que as estruturas sociais brasileiras autoritárias e iníquas comandam a vida para outra dimensão, externa ao cotidiano, na qual o comando sai de cena e todo o espaço é tomado pela experiência estética e existencial da redescoberta de sons e sentidos, ritmos e temporalidades, relações consigo mesmo e com os outros. Essa dimensão não ordinária afirma sua autonomia diante das pressões do sistema institucional, as estruturas, constituindo-se como fato social total, regido por sua própria lógica contingente e ordenado em sua anarquia pelo contrato entre indivíduos livres e iguais, um diante do 2

Sobre a relação de Oiticica e sua obra com o carnaval, consulte Hélio Oiticica. Museu é o mundo. Organizado por Cesar Oiticica Filho (Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p. 185).

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outro com seus corpos, seus desejos, suas diferenças, embora imersos no tom e no ritmo da comunhão extravagante. Oiticica também vestiu sua capa-parangolé, também atravessou seu penetrável e cumpriu seu rito de passagem. Ele menciona a passagem em sua obra – também uma transformação pessoal – do hiperintelectualismo ao mito e à sua potência simbólica. Esse caminho experimental desaguou na exposição-evento “Tropicália”, em abril de 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Idem, ibid., p. 108). O próprio Hélio cita o crítico inglês Guy Brett, do Times, para o qual o Parangolé era “algo nunca visto” que poderia “influenciar fortemente as artes europeia e americana”. Mas cita-o para dizer que a “Tropicália” seria ainda mais importante: O Penetrável principal que compõe o projeto ambiental foi a minha máxima experiência com as imagens, uma espécie de campo experimental com as imagens. Para isto criei como que um cenário tropical, com plantas, araras, areia, pedrinhas. Numa entrevista com Mário Barata, no Jornal do Comércio, a 21 de maio de 1967, descrevo uma vivência que considero importante: parecia-me ao caminhar pelo recinto, pelo cenário da “Tropicália”, estar dobrando pelas “quebradas” do morro, orgânicas tal como a arquitetura fantástica das favelas – outra vivência: a de “estar pisando a terra” outra vez (Idem).3

Penetrar é sentir de novo um novo modo e viver com mais frescor a relação com sua morada, o ambiente, consigo mesmo e com os outros. Eis o ensaio geral para reabrir os grandes dilemas da história do Brasil. A obra de Oiticica interpela o espectador-participador e o incita a desestabilizar o que o tempo e as estruturas repetitivas cristalizaram para, das cinzas e dos cacos, da suspensão do que foi naturalizado, do estranhamento, transcorrido o itinerário do ritual de passagem, recompor o puzzle eu-tu. Os penetráveis evocam rituais de passagem (afastamento, liminaridade desconstrutiva, reintegração), mas os parangolés também aludem ao par desestabilização-reestabilização porque vesti-los impõe balançar com eles, dançar, mover-se em coreografias inusitadas. Inusitadas porque a forma dos parangolés é inusitada, como que a exigir incessantes deslocamentos no espaço para ajustar seu feitio assimétrico ao corpo. O parangolé é um manto ou uma capa em cores com divisões e faixas transversais mas contínuas, lembrando a fita de Moebius ou uma peça justaposta a outra, 3

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Peço que o leitor registre o adjetivo “orgânicas” e a expressão “pisar a terra”. Voltarei a elas mais adiante, quando discutir as migrações internas e a urbanização, à luz das reflexões de Tim Ingold sobre as relações entre os seres humanos e o meio ambiente.


ambas inacabadas, e sempre disformes e desesquilibradas em relação ao corpo humano ereto. A incompletude sugere vazios a serem preenchidos pelo corpo o que requer movimento. Um convite à dança. O que me parece mais interessante na incompletude e na mobilidade é a remissão inevitável e permanente a sobras e restos. A palavra convoca de imediato a tese de Lorenzo Mammi sobre o estatuto da arte como o que não se deixa assimilar plenamente a classificações, conceitos, instituições, cânones ou metodologias: o resto. Pois é graças ao excesso e à falta, ao evento que transborda e ao objeto que escapa, ao significado que se esfuma e à conta que não fecha, que a cultura move-se, em diálogo com a criatividade humana e as dinâmicas sociais (MAMMI, 2012). Para mim foi muito interessante perceber que a ideia de resto não serve apenas para pensar a arte. Serve perfeitamente para designar o desconforto que sinto ao contemplar o conceito de ambiguidade quando empregado para diagnosticar o aspecto-chave da cultura brasileira. A ambiguidade, embora verdadeira, alude à incompletude. Se existe ambiguidade é porque pelo menos duas versões (não) cabem – ou seja, ambas são impertinentes, incompletas, ou são pertinentes mas relativas a realidades parciais que conflitam com outras. Parece que a incompletude contamina a própria interpretação, tornando-a insuficiente ou revelando sua insuficiência. Resto aplica-se às duas alternativas que sugeri – alternativas à resignação com a ideia de que referir-se à ambiguidade seja suficiente para descrever os fenômenos socioculturais ambíguos. Proponho que resto designe a inconclusão do processo em que a ambiguidade se realiza: ele permaneceria aberto e se completaria sob o modo de continuada (re)negociação entre os agentes direta e indiretamente envolvidos (cf. VIANNA, 2010). Outra hipótese seria adotar a ideia de resto para evocar a natureza prismática da relação entre as ambiguidades e a dualidade ontológica instaurada pela escravidão. A dualidade aparece infletida e refratada, transposta para outras topologias nas mil e uma faces dos fenômenos ambíguos. A refração deixa restos e performa o novo. Dois restos, portanto: o que sobrou da imagem original e não foi incorporado no “prisma” e o que o “prisma” produziu além da fonte original. Desvio e criação, sempre diferença: o vocabulário da ambivalência e da ambiguidade não basta, soa pobre para lidar com a complexidade. Concorde-se ou não com as duas sugestões que apresentei, o fato é que no parangolé estão presentes movimento e incompletude. O primeiro surge por força do desequilíbrio, na busca do eixo; a segunda emerge no contato entre o corpo e o tecido em desajuste. Somando-se a esses dois componentes a redefinição do espectador, agora participador, conclui-se que a equação Brasil está montada. O desequilíbrio voluntariamente provocado pelo desajuste da capa com o corpo incita a ação, estimulando

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o portador do parangolé a dançar, assumindo o protagonismo da cena. A dança remete a renegociação do corpo com o espaço, no tempo, sendo o espaço ocupado dinamicamente por outros corpos. Rupturas não há, mas continuidade e diálogo, na sucessão de metamorfoses coreográficas. Mesmo o salto se dá com as forças disponíveis e nos limites ditados pelo corpo no ambiente, entre outros corpos. Quando traça a genealogia de sua exposição “Tropicália”, Oiticica compõe uma linhagem que inclui a antropofagia de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, o cinema de Humberto Mauro e Mário Peixoto, Carmen Miranda, Noel Rosa e Araci de Almeida, “e a evolução da música popular urbana no Brasil, escolas de samba, macumba, candomblé, todos os mitos e festas populares do Brasil, principalmente os de origem Negra e Índia, que é o caso geral. Programas de auditório Emilinha, Marlene, Ângela Maria, Dalva de Oliveira etc. etc. e cinema chanchada” (OITICICA, 2011, p. 130). Assinala, portanto, seu pertencimento à tradição brasileira relativamente consagrada, à cultura pop e à sociedade de consumo, a despeito de sua oposição ideológica ao sistema econômico e político. Sabe e diz que não fala da estratosfera, não cria senão no lugar e no momento histórico que são os seus. Em evidente diálogo com Hélio, Lygia Clark exibia (performava) as suas séries Óculos, Máscaras sensoriais e O eu e o tu: roupa-corpo-roupa, também em 1967 (BASUALDO, 2007, p. 172ss). Ainda em 1967, o cenário de outro Hélio, Eichbauer, muito próximo do ambiente penetrável criado por Oiticica para a exposição “Tropicália”, chocou e encantou as plateias de O rei da vela, de Oswald de Andrade, dirigido por José Celso Martinez Corrêa. Naquele mesmo ano infernal, sob ditadura mas vibrante como talvez nenhum outro antes ou depois,4 Glauber Rocha estreou sua obra-prima, Terra em transe, e José Agripino de Paula publicou seu PanAmérica, sobre o qual escreveu Caetano Veloso – a quem Oiticica dedicou o parangolé – no prefácio: “[...] talvez não haja no mundo nenhuma obra literária contemporânea que lhe possa fazer face. O livro soa (já soava em 1967) como se fosse a Ilíada na voz de Max Cavalera”.5 O que estava em jogo em todas as frentes era a reinvenção das linguagens artísticas e mais: a reinvenção do modo de pensar (e fazer) a sociedade brasileira e suas culturas. A súmula codificada por Oiticica seria aprofundada, ampliada, ressignificada e desenvolvida pelo 4 Brincando um pouco com o célebre livro de Zuenir Ventura, 1968, o ano que não terminou (Planeta do Brasil, 2008), talvez fosse apropriado dizer que 1967 foi o ano que acabou cedo demais, sepultado pela carga explosiva que o sucederia. Seu legado fantástico foi abortado pelo drama do AI-5, depois de ter sido em parte deslocado pela urgência e o impacto das lutas políticas. 5

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Veloso, Caetano. Prefácio. In: Paula, José Agripino. PanAmérica. 3a ed. São Paulo: Papagaio, 2001, p. 5.


movimento tropicalista, especialmente por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Acredito que haja na caixa preta do tropicalismo – entendido como gesto estético, existencial e político –, algumas senhas que talvez ajudem a abrir caminhos no labirinto das interpretações do Brasil. Em seu ensaio primoroso, “Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60”, Flora Sussekind descreve a proliferação exuberante da criação cultural nas mais diversas áreas e destaca uma novidade particularmente significativa: a intensificação das intercomunicações entre os campos culturais (SUSSEKIND, 2007, p. 44). Em todos eles, processava-se a busca de novas sínteses, acrescenta Flora, citando Oiticica. O tropicalismo nasce com um disco-manifesto coletivo que faria história. Participaram Caetano, Gil, Torquato Neto, Gal Costa, Mutantes, Capinam, Tom Zé e Rogério Duprat. Flora identifica o fio condutor que articulava uma rede dialógica entre os campos e que seria matricial para o tropicalismo, especificamente: Uma vontade construtiva de afirmação de novas relações estruturais, conjugada paradoxalmente a uma antiformalização desintegradora, a uma fuga (auto)consciente da forma, tornam-se, pois, elementos fundamentais ao processo de trabalho não apenas de Oiticica ou de compositores como Caetano, Gil, Tom Zé; são, igualmente, essenciais à noção de antiespetáculo, ao privilégio do “acontecimento” (e não da “representação”), invocados pelo grupo Oficina (e potencializados em montagens como Na selva das cidades e Gracias, Señor), às formas de improvisação trabalhadas por Glauber Rocha em Câncer, e às “imagens descentralizadas e errantes”, à “desestetização”, à “negação da forma do filme” que marcariam o cinema de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane (Idem).

Compreende-se que esse élan crítico não abrandaria seu sarcasmo dissolvente nem mesmo diante do espelho. Merecer o nome pomposo de movimento adjetivado por um título, tropicalista, incomodava seus membros porque os devolvia à prisão das classificações da qual se empenhavam tanto em escapar. A imprensa carioca insistiu na palavra-chave. Falou sem parar na “cruzada tropicalista” (SUSSEKIND, 2007). Até que Caetano contornou a resistência dos parceiros e os convenceu de que “Se essa é a palavra que ficou, então vamos andar com ela” (Veloso apud Sussekind). Não lhe faltou sensibilidade para a importância da comunicação de massa e do mercado pop, com os quais o movimento teria de conversar se almejasse a conexão com a sociedade em grande escala – e essa percepção constituiria um elemento estratégico do próprio tropicalismo. Flora sublinha a diferença com a arte de matiz populista, politicamente engajada na perspectiva tradicional, de que se nutre a intervenção

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recriadora dos tropicalistas –oswaldiana, antropofágica devoradora de tradições, potencializadora de alternativas e multiplicadora de veredas. Sua política era outra. Enquanto as canções de protesto ecoavam o velho realismo socialista, convocando as plateias para os coros em uníssono nos refrões de frases feitas, os rebeldes – com causas para as quais ainda não havia vocabulário – preferiam desafinar o coro dos contentes, em harmonia com a ousadia transgressora ensaiada por João Gilberto, Tom Jobim e a bossa nova, cuja importância transcendeu o gosto americanizado da pequena burguesia intelectualizada, surpreendendo o obscurantismo de muitos críticos sem imaginação. O Maracanãzinho exultava com o mantra, “quem sabe faz a hora não espera acontecer”, no mesmo compasso que as passeatas entoavam “povo unido jamais será vencido”. Como explica Flora Sussekind: Ao contrário, nas criações da Tropicália, interessava [...] provocar o público e expor-lhe as cisões, sublinhando disparidades, descompassos, trabalhando com uma multiplicidade descontínua de dicções, materiais, com imagens que se desdobram, que se contrariam mutuamente e potencializam tensões. “Toda simultaneidade é complexa”, enfatizaria Glauber. Não se trata, aí, pois, de criar correspondências, homogeneidades ou analogias entre elementos que, sem maior interferência, e apenas paralelos, mantenham-se “seguindo na mesma direção”. Seu coro inclui e expõe “contrários”. O operador fundamental dos modos corais do grupo da Tropicália é, portanto, a simultaneização (p. 49).

Na fonte lê-se: “A palavra-chave para se entender o tropicalismo é sincretismo” (Veloso, 2012, p. 286). Eis as perguntas-chave: o que é sincretismo? Qual sua relação com a simultaneização e com a antropofagia oswaldiana retomada por Zé Celso? De que forma a canção Coração materno, interpretada por Caetano no disco-manifesto, dialoga com Macunaíma? Compreender o tropicalismo poderia de fato ajudar a decifrar o Brasil, a cultura popular e suas complicadas relações com a individualidade e os direitos humanos? Uma colagem realiza a simultaneização, mas não basta para produzir os efeitos alcançados pela simultaneidade adotada como estratégia de aproximar elementos contrários – ou pertencentes a séries semânticas e sintáticas diversas e supostamente incompatíveis –, gerando tensões e estranhamentos desnaturalizadores. Operações conhecidas na poesia desde sempre mas exploradas com apuro em sua máxima potência – por exemplo, nas vanguardas russas, até o suicídio de Maiakowski – exercitam a simultaneização.

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A antropofagia não se caracterizaria pela colagem tensionante, mas pela assimilação do outro (ou do alvo da devoração), o que envolve a alteração do devorador, ou seja, a transformação do sujeito no outro que ele come.6 Entretanto, como procurei demonstrar nas considerações sobre o manifesto antropófago, o destino da alteração do sujeito, esse outro que ele devora, ao ser comido, já não é o outro que era antes da relação. Por isso, a devoração não se esgota em um mimetismo, assim como, no âmbito estético, não se reduz à subordinação do outro à lógica poética do poema-sujeito. A antropofagia implica dupla mudança e o movimento da metamorfose. Pelo menos é como a interpreto. Há os que preferem se manter no estágio mais simples: o polo que devora assimila propriedades do outro e as submete à gravitação de sua linguagem, desestruturando a linguagem objeto e a recompondo segundo a lógica do poema-sujeito da devoração. O que vale para o poema se aplica às demais artes. A simultaneização pode ser o efeito da devoração no sentido que eu lhe atribuo ou no sentido que não me parece o mais fecundo. Ela em certo sentido independe da antropofagia para realizar-se. Seu efeito é o estranhamento cujo desdobramento é a percepção crítica que desnaturaliza determinada forma de vida, isto é, determinada linguagem, digamos genericamente. A antropofagia no modo como a compreendo produz mais do que esse efeito crítico, o qual remeteria ao enriquecimento da consciência e à instauração de uma metalinguagem inteligente. De meu ponto de vista, a antropofagia visa ampliar o espectro de abrangência da receptividade, alargando o repertório e, por essa mediação, estender as possibilidades criativas, expandir a linguagem e, por consequência, multiplicar as formas de vida – mais ou menos como as mutações adaptáveis fazem na evolução biológica. Flora menciona luta. Caetano, em 68, falou em luta e violência. Era o clima da época – a ditadura emanava enxofre e cinzas. O ódio estava no ar. Infiltrava-se nos pulmões de todo mundo. Logo depois viriam o desespero e suas argolas de chumbo. Por isso a luta fez parte do léxico tropicalista, só por isso. Era o preço do ingresso na vida feroz daquele tempo. Caetano pagou tributo como todos nós que militamos na resistência. O movimento tropicalista não atravessaria a rua entediado e incólume até a banca de revistas debaixo da chuva ácida, acendendo um cigarro blasé. É verdade que houve evocações guerreiras aqui e ali entre rimas e clarins, entredentes. Hermano Vianna chama a atenção para a batida marcial seguida pelo “riff antológico de violão bem alegre, mas urgente, como uma convocação 6 Essa leitura me parece fiel a Oswald, mas foi inspirada pela análise de Eduardo Viveiros de Castro sobre o canibalismo araweté (Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986).

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militar” na abertura da primeira canção do álbum-manifesto, Tropicália, a “Miserere nobis”. Hermano também descobriu um Guevara sibilino espetado por Gil em falsete no meio de outra canção (Vianna, 2010, p. 16). Mas as alusões guerreiras são secundárias. É claro que me refiro à turma da música popular, sobretudo a Caetano e Gil – foi diferente com a trupe do teatro e do cinema. Caetano costuma dizer que só satiriza o que ama. Hermano Vianna fala em “ironia amorosa”(op. cit., p. 17), mas tempera seu significado, assinalando o caráter “trágico e alegre” que identifica no disco-manifesto. Capinam, citado por Hermano, disse o mesmo referindo-se à escolha de “Coração materno”, de Vicente Celestino, para o repertório: “Não é paródia nem rejeição. Somos filhos disso tudo, e não somos melhores, apenas discordamos disso com afeto” (Capinan apud Vianna, op. cit.). Muito diferente da devoração oswaldiana cheia de veneno, que inundou o teatro de Zé Celso, e da deglutição barroca e messiânica que Glauber fez da mitologia política brasileira e de nossas tradições arcaizantes. Em todos eles assomava o desejo de “por as entranhas do Brasil para fora” (VELOSO, 1997, p. 199- apud VIANNA, idem). Contudo, há diferentes maneiras de fazê-lo: do parto à mutilação, à necrópsia. Outra leitura poderia remeter ao verbo desentranhar com o sentido de diferenciar e separar as partes do todo, ação que corresponde ao trabalho analítico, seja como uma etapa do processo de conhecimento, seja como fase inicial de uma colagem, seja como passo metódico para a recomposição transformadora do todo. Cito Caetano, longamente, porque me parece indispensável aconchegarmo-nos na intimidade subjetiva do álbum-manifesto: Na concepção do disco Tropicália ou Panis et circensis havia um plano, este sim totalmente tropicalista, de gravar uma velha canção brasileira em tudo e por tudo desprestigiada. Era a supersentimental “Coração materno”, um dos maiores sucessos de Vicente Celestino, o melodramático compositor e cantor de voz operística cuja brilhante carreira remontava aos anos 30 e incluía, além de inúmeros discos de sucesso, operetas e filmes, como o recordista de bilheteria, O ébrio de 46. “Coração materno” conta a história de um jovem camponês que se vê obrigado a entregar à sua amada, como prova de amor, o coração da própria mãe. O matricídio se dá enquanto a velhinha está ajoelhada diante de um oratório. O jovem, depois de rasgar-lhe o peito e extirpar-lhe o coração, corre para a amada levando-o nas mãos. Na estrada, tropeça e cai, quebrando uma perna. Do coração da mãe, que tinha sido atirado longe, sai uma voz que pergunta: “Magoou-se, pobre filho meu?”, e, num último e extremo golpe comovedor, exorta: “Vem buscar-me que ainda sou teu”.

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Em 67 Vicente Celestino estava praticamente esquecido e seu estilo – o extremo oposto do que viera dar na bossa nova – era indefensável. A melodia do “Coração materno”, como todas as outras de Celestino, era para nossos ouvidos um mero pastiche de ária de ópera italiana. A ideia de gravar essa canção me ocorrera por ela ser um exemplo radical do clima estético acima do qual nós nos julgávamos alçados altamente. Mas essa era uma história que, em vários planos, era mais arcaica do que podia parecer (VELOSO, 1997, p. 286-287).

Caetano refere-se a um episódio infantil que sintetiza o ambiente doméstico em que transcorreu sua educação estética. Tinha entre quatro e seis anos quando sentiu-se humilhado pelo esnobismo cultural dos irmãos ao admitir sua admiração por Vicente Celestino. Por outro lado, o matricídio bizarro tinha origem em contos populares que tematizavam “a necessidade que tem o filho macho de se libertar de um amor materno demasiadamente sufocante” (op. cit., p. 288). Esse mito estaria em sintonia com a sensibilidade das massas brasileiras ou até mesmo com “a própria natureza de toda cultura popular” (Idem). Não houve escárnio: O arranjo que Rogério Duprat fez para essa canção é uma das maiores vitórias do tropicalismo. Excelente orquestrador, Duprat criou uma atmosfera de ópera séria (sem, no entanto, deixar de lembrar trilhas de filmes de Hollywood), restituindo dignidade e conferindo solenidade a canção execrável, o que fazia ressaltar minha interpretação assustadoramente sincera e sóbria. [...] O resultado [...] é uma peça que comove porque faz o ouvinte passar, consciente ou inconscientemente, por todas as referências que pude explicitar aqui –e por tantas outras que não pude (op. cit., p. 288/289).

Está tudo aí. A crítica e a diferença de registros não impediram a valorização da canção de Vicente Celestino. Depois de ouvir a gravação belíssima, a sensação do ouvinte, se meu testemunho serve de exemplo, é tríplice: perplexidade, desorientação e encantamento. O choque perturba, inquieta, mistura mapas e bússolas, e tudo se passa sob a aura do deslumbramento. Mais objetivamente, eis minha hipótese: por meio de Caetano e Duprat pode-se ouvir “Coração materno” de outra maneira, não só porque os dois grandes artistas tropicalistas nos autorizam a fazê-lo, emprestando legitimidade estética a essa experiência, estendendo sua virtude à canção antes conspurcada, mas, sobretudo porque a gravação fez saltar uma insuspeitada e paradoxal originalidade da peça de Celestino. Originalidade aqui significa

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força expressiva, personalidade melódica, harmônica, rítmica e poética. A esses atributos acrescentava-se a densidade inusitada conferida à letra: a solenidade não empostada, verdadeira, sincera da voz de Caetano fazia as palavras gravitarem em torno de eixos arquetípicos da cultura popular e das tradições camponesas. Em suas reflexões sobre “Coração materno”, Caetano não cita Macunaíma. Minha intuição – talvez a memória em fragmentos – levou-me à releitura da obra-prima de Mário de Andrade, depois de passar pelo esclarecedor Morfologia do Macunaíma, de Haroldo de Campos, no qual a ambivalência do personagem é destacada, ainda em suas versões popular e indígena. O nome Makunaíma, supremo herói tribal, significa “o grande mau”. Ele aparece como pérfido e grosseiro, mas também criador, transformador (CAMPOS, 2008, p. 112). Essa qualidade mágica está presente desde o início no romance de Mário. E não apenas como virtude do herói; também como propriedade da natureza que o cerca. Por aí, chego ao episódio que importa: No outro dia Macunaíma, depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida. – Essa eu caço! Ele fez. E perseguiu a viada. Esta escapuliu fácil mas o herói pôde pegar o filhinho dela que nem não andava quase, se escondeu por detrás duma carapanaúba e cotucando o viadinho fez ele berrar. A viada ficou feito louca, esbugalhou os olhos parou turtuveou e veio vindo veio vindo parou ali mesmo defronte chorando de amor. Então o herói flechou a viada parida. Ela caiu esperneou um bocado e ficou rija estirada no chão. O herói cantou vitória. Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do Anhanga... Não era viada não, era mas a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus do mato (ANDRADE, 2008, p. 26-27).

Sim, exatamente, o matricídio estava já em Macunaíma. O faro de Caetano não costuma falhar. Intuiu relações profundas com a cultura popular, identificou alguns pontos de ligação. Escapou-lhe o mais direto e importante. O diálogo entre o tropicalismo e a Semana de Arte Moderna, de 1922, tão ostensivamente travado via Oswald e Tarsila, pôs-se no centro do álbum-manifesto, Tropicália, pela via oblíqua de Mário. Curiosamente, a mãe aparece no elogio antropofágico ao matriarcado, em Oswald, e no matricídio, em Mário e Caetano. Escrevi extensamente sobre racismo e desigualdades

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sociais, mas silenciei sobre a misoginia inscrita no patriarcado despótico. A dominação a que a mulher foi submetida não deve passar despercebida, cabendo à mulher negra o duplo fardo. Por isso, tanto para o modernismo de 1922 quanto para o tropicalismo dos anos 1960, foi fundamental reverter simbolicamente essa estrutura de poder, seja pela defesa do matriarcado, seja pela revelação do matricídio na origem de nosso herói sem nenhum caráter. Macunaíma é o mito de origem moderno do povo brasileiro – é mais ou menos o que admite Mário, em carta a Tristão de Athaíde, em 19 de maio de 1928 (Campos, 2008, p. 111). E Caetano evoca nosso mito de origem, pela mediação de Vicente Celestino. Retomo o argumento sobre a originalidade: como seria possível descobrir a autenticidade até então ignorada de uma canção amplamente conhecida e depois por longo tempo esquecida? O encontro entre a canção estilizada, congelada em classificações rígidas, e a impetuosidade rebelde, livre, autoral, exalando o frescor da juventude, vincada por compromissos com o movimento coletivo que revolvia as entranhas da cultura brasileira, esse encontro, esse diálogo produzia um fruto por tudo estranho, inclassificável, residindo na estranheza dessa conexão a originalidade retrospectivamente transferida à canção e prospectivamente infiltrada no disco-manifesto, em sua carreira, em seus desdobramentos. Era possível, portanto, ouvir de novo e ao mesmo tempo pela primeira vez uma peça sepultada. Exumava-se o cadáver de uma estética banida do catálogo musical por todos os critérios razoáveis. “Levanta-te e anda”, sussurravam Caetano e Duprat, soprando vida no oco do fantasma. O repertório brasileiro se ampliava – nesse sentido, evoluía. A sociedade recebia autorização para fuxicar o relicário abandonado no porão. Registre-se que valorizar o passado implicava valorizar o país e sua cultura, potencializando sua disposição criadora. Observe-se que esse reforço narcísico, no sentido salutar da palavra, valia mais que várias passeatas somadas e certamente muito mais que os coros supostamente politizados das redundantes canções de protesto, carregadas de idealizações simplificadoras, as quais, ante o primeiro embate com a complexidade do real, desmaiavam em prostração. O protagonismo estava em outro lugar. De fato, havia mais do que a releitura do passado. Havia um gesto novo no ar, desdobrando o parangolé, fazendo-o girar, um ato libertador que revogava as revogações absolutas e irreversíveis. Tornara-se proibido proibir, o que de modo algum implicava aceitar tudo e todos numa geleia geral homogeneizante, acrítica, relativista e vazia. Não se tratava de matar o pai, no dia seguinte ao matricídio, dissolvendo todos os limites. O que se declarava suspenso era o banimento da cidade das letras (e das artes) como se uma sentença tivesse legitimidade para suplantar a liberdade

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criativa e interromper o fluxo da história. Sublinho o seguinte: o dinamismo histórico a que me reporto estende-se também ao passado, às formas pelas quais o interpretamos, relacionamo-nos com ele e dele nos apropriamos. Os novos ares de liberdade atravessavam de lado a lado a história da música popular (e da cultura brasileira), os ventos corriam para trás e para frente, levantando poeira, permitindo novos itinerários e descobertas – em contraste com o chumbo opaco da ditadura. Olhar de novo, ouvir de novo, esse frescor de manhã era quase um (re)nascimento, nada no bolso ou nas mãos. O álbum-manifesto interpelava a sociedade brasileira a livrar-se dos antolhos, e essa tarefa formidável deveria ser encetada como uma dimensão (essencial) da luta pelas mudanças sociais e políticas. Os estudantes que vaiavam a guitarra elétrica não estavam mesmo entendendo nada. O gesto libertador (autorizador) era um gesto autoral, e convidava à participação. Valorizava o indivíduo, inscrevendo-o na comunidade. De meu ponto de vista, inaugurava um outro sincretismo e uma antropofagia diferente daquela encenada por Zé Celso. Caetano, como Gil e seus parceiros do tropicalismo, compositores, cantores, performers, pensadores da arte, da cultura, da sociedade transformavam-se ao transformar a relação da sociedade com sua memória musical e poética, cruzando gostos de elite e populares. Caetano mudou Celestino e se transformou ao mudar Celestino. Em outras palavras: Caetano se transformava ao cantar “Coração materno”, ao mesmo tempo em que transformava a canção de Vicente Celestino. Essa dupla alteração promovia, simultaneamente, a transformação de práticas e critérios, juízos e sensibilidades, vocabulários musicais e gramáticas poéticas. Ampliavam-se repertórios em múltiplas arenas de atuação: o que um cantor/compositor podia fazer, de que modo podia conversar com a tradição e negociar com as diferenças. O movimento de dupla mudança coincide com a interpretação da antropofagia oswaldiana que apresentei. O elemento belicista cede lugar ao convívio sem acomodação mútua, sem recíproca neutralização; pelo contrário, cede lugar ao convívio envolvendo mútua ação transformadora. O tropicalismo demonstrou que é viável afirmar identidades, pronunciar-se criticamente e marcar diferenças, embora também abraçando alteridades, reconhecendo-lhes a força e a dignidade estético-cultural. Há um plano formal em que peças provenientes de fontes distintas se articulam sob a lógica de nova estrutura. O léxico é antigo e a sintaxe, nova. Eis uma modalidade sincrética. Derivará dessa configuração nova semântica. Outro arranjo sincrético inova no léxico mas gera surpresa, submetendo-o à sintaxe convencional. Há combinações múltiplas e heterogêneas, em que elementos inovadores e tradicionais no léxico e na sintaxe se combinam. Essa diversidade de estruturas existe nas artes, nas religiões e em outras

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áreas da cultura humana. Todas elas são sincréticas. O que me parece mais importante no tropicalismo, em especial nos percursos de Caetano e Gil, e não apenas durante o período em que o movimento teve vigência (pois a marca de origem nunca os abandonou), é sua relação com a alteridade no campo da cultura. Ironizar o que se ama, reconhecendo-se parte de uma linhagem, valorizando em si mesmos o que é herança e continuidade, e reinventando o que perdera viço na poeira dos escombros. Os ouvidos são tão importantes quanto os sons e os sentidos das canções. Dedicando-nos a mudar o registro de nossa sensibilidade, credenciamo-nos a compor canções de novo tipo e, sobretudo, a descobrir novos objetos de prazer, encantamento e sabedoria. Eles serão novos e originais graças à novidade de nossa audição. Em outras palavras, eis o gesto exemplar tropicalista: Caetano tira Vicente Celestino pra dançar. Assistindo ao baile, dentro dele, embalados pelo som, compreendemos a beleza do gesto de Gil, tirando Jackson do Pandeiro pra dançar, ou Catulo, enquanto Gal desfila com Dalva de Oliveira, Capinam rodopia com Ângela Maria, e Torquato, com Marlene. Caetano chama Dolores Durán para o meio do salão, encantado com a simplicidade excêntrica de Jorge Benjor. Tom Zé repassa o som com Carmen Miranda. Rogério Duprat troca dois dedos de prosa com Tom Jobim. Os Mutantes coreografam o samba do parangolé, Oiticica dá o braço a Cartola, e João Gilberto puxa Ary Barroso para um canto e deixa o violão com Dorival Caymi. A roda se abre. A festa se anima. Pares se formam juntando personalidades culturais, sociais, estéticas distantes no espaço e no tempo, no estilo, no balanço. Caetano tira o bolero do armário e gira na varanda. Gil dá a mão a Gonzaga e distribui sanfonas pra roqueiros. Como não é possível entender ou curtir a festa de fora, o jeito é participar. Mas o conhecimento possível está cifrado no modo pessoal do depoimento, do envolvimento. A conversa musical é contagiante, não anula diferenças, não dissolve identidades, joga com elas e, por isso, elas só resistem se forem porosas e permeáveis. É verdade que soa excessivamente metafórica a referência à festa, baile, rodas de conversa e de samba, pares que se formam e dançam. Não obstante as aparências, a descrição é muito menos metafórica do que parece. O que quero dizer é isso mesmo. O tropicalismo não se realiza no reino das ideias e das estruturas sígnicas. Seu terreno de ação é o chão da festa, é a rua, a praça, o lugar de encontro mais democrático e inclusivo que se possa imaginar, sem vetos prévios e crachás, sem ingressos pagos e cadeiras vip. Sua intervenção no campo da cultura se dá sob a forma de convite a interlocuções e parcerias, sob o modo de interpelação a todas as audiências radiofônicas e televisivas. O movimento tropicalista organiza e patrocina uma série de performances de personagens cujo carisma só é

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comparável ao talento transgressor e compassivo, amoroso e irônico, lasso, volúvel, promíscuo e esteticamente rigoroso. O tropicalismo inaugura uma dramaturgia para narrar a nova genealogia da cultura popular brasileira e apresenta ao distinto público um elenco de jovens que não cabiam nas classificações disponíveis. Por tudo isso, o movimento tropicalista requer uma etnografia antes que uma semiologia, uma sociologia antes que uma crítica estética. Exatamente por esses motivos, as interpretações tradicionais do Brasil põem-se em tela de juízo quando o álbum-manifesto chega às melhores casas do ramo – e às mais remotas e improváveis. A mensagem tropicalista perturbadora e desestabilizante não se decifra na lógica das estruturas musicológicas e poéticas: esteve todo o tempo na ponta da língua dos atores, a depender de suas iniciativas, de seu empreendedorismo, de sua liderança, de sua capacidade de convocação e mobilização, de sua sintonia com o mercado e com os segredos da indústria cultural. Caetano soube valorizar a jovem guarda de Roberto e Erasmo Carlos mas teve o tino de ocupar o proscênio, deslocando as platitudes adolescentes que vendiam gato por lebre e não teriam fôlego para conduzir a juventude na travessia da longa noite. Fundamental é isso: o tropicalismo logrou restabelecer o regime de relação com a alteridade no registro eu-tu. O efeito histórico foi extraordinário e até hoje insuficientemente valorizado: o movimento tropicalista e os desdobramentos que o transcendem – embora permanecendo fiéis a seus princípios – formaram nova audiência, novo mercado, nova sensibilidade, uma estética da recepção libertária e generosa, compatível com a vitalidade exuberante de uma democracia cultural dinâmica, inclusiva e criativa, que o Brasil jamais conhecera antes. Tom Zé o diz com admirável lucidez em seu depoimento para o documentário Tropicália, dirigido por Marcelo Machado. Retomo outro ponto decisivo: o que caracteriza a dinâmica performática tropicalista, cuja origem e inspiração vêm de Hélio Oiticica, é a predominância da relação eu-tu entre os parceiros diretos ou indiretos, voluntários ou acidentais, entre o protagonista e as tradições culturais que interpela, entre cada autor e a linguagem herdada, porque a matéria-prima das canções é parte de uma comunidade de sentido, participa de uma linhagem cuja dignidade é reconhecida. O que vale para o passado vale para o presente, permitindo a extensão interminável do campo de interlocução. Essa é a linha evolutiva da música popular brasileira de que fala Caetano Veloso: em vez de linearidade sequencial e aperfeiçoamento progressivo, linha e evolução significam ampliação do espectro de abrangência da interlocução criativa e expansão do repertório de realizações e possibilidades. Mais: significa relação entre autores e obras em um circuito dinâmico, aberto e inclusivo de trocas. Significa a sucessiva extensão da

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roda de reciprocidade inspiradora e a potencialização do diálogo crítico que, mesmo nas diferenças e tensões, valoriza os interlocutores, reafirma o pertencimento comum a uma linhagem e a reinventa, renegociando a cada passo seu sentido e suas implicações. O povo negro, o samba, as tradições populares, as novas formas do rap, do hip-hop, do funk, nada do que é musical, e mexe com o corpo e a alma, permanece indiferente à roda de bambas, onde sempre cabe mais um(a). Nada de geleia geral. Polifonia, diferenças, choques, mas sempre no circuito das trocas, que a internet ampliará e requalificará. A tal ponto se intensifica e expande a pulsão produtiva da cultura popular brasileira, especialmente em sua vertente musical, esticando os fios de ligação da rede – como para tirar som da tensão –, que já não tem cabimento falar em sincretismo, porque seu contrário não faz mais nenhum sentido. Pureza não há e, por isso, a geleia geral como categoria de acusação esgotou o prazo de validade. Tampouco prospera a vanguarda, entendida como tradição da ruptura. No âmbito do tropicalismo, o campo musical desdobra-se em múltiplas topologias, mas o que predomina – como na dinâmica do parangolé – é a continuidade nas metamorfoses e diferenças, apesar delas e por meio delas. E os ritmos operam as passagens. O break não quebra nada; faz parte do contínuo, a sequência o incorpora. Volto à reflexão de Wisnik sobre o drible e ao poema de João Cabral de Melo Neto que lhe serviu para exemplificar o funcionamento da elipse, “Tecendo a manhã”: Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. (WISNIK, 2008, p. 310)

A movimentação mal se vislumbra, mostra-se por seu efeito porque o verbo lançar é suprimido, lançando-se a ação para a frente sem que se acompanhe a descrição de cada sequência: supressão que é soma, eis a elipse. O resultado é belo como o processo, ambos independentes, dada a omissão da passagem entre causa e efeito: “A manhã, toldo de um tecido tão aéreo/que, tecido, se eleva por si: luz balão”.

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Não por acaso evoco Wisnik. Assim como no drible que se faz como o passo claudicante convertido em “baile”, combinando continuidade e descontinuidade, o circuito de trocas ou o campo de conversa musical e poética aberto pelo tropicalismo articula continuidades e descontinuidades.7 Wisnik pensava o futebol e associou o drible à elipse, por aí conectando o jogo à ambivalência matricial da cultura brasileira – ambivalência que também pode ser entendida como supressão e soma. Creio não deformar sua intuição primorosa se a estendo à nova dinâmica da cultura brasileira, que vem reorganizando o espaço musical desde a explosão tropicalista, aos trancos e barrancos, elipticamente. Nesse caso, deve-se compreender a elipse como uma das estratégias privilegiadas de ligação entre o novo e o tradicional. Insisto no ponto-chave: ambos os polos, o novo e o tradicional, redefinem-se mutuamente nessa relação, ambos renegociam o pertencimento comum a um campo que se expande, garante continuidade, legitima novas genealogias e incorpora diferenças. Conforme sublinhei, as descontinuidades convertem-se em ritmo, isto é, em parte do jogo, parte da conversa que prossegue. Incorporação aqui nada tem a ver com domesticação reducionista que obsta mudanças. Tem a ver com permeabilidade à mudança. No ambiente em que impera o regime eu-tu de sociabilidade, quem disser “eles”, excluindo algum segmento criativo, correrá o risco de morder a língua, vendo-se em breve cantando em dueto com o Outro, reatando uma relação eu-tu. Não porque tudo seja possível, mas porque os atores continuam vivos e renegociam suas relações com valores, opções estéticas e referências, dentro e fora do país. Essa rede se globaliza depressa. Nasceu transnacional. E o tropicalismo derrubou barreiras. Quando Caetano e Gil vestiram os parangolés de Oiticica, experimentaram o desajuste da capa colorida como impulso ao movimento da dança. Nesse momento, assumiram um tipo de protagonismo cuja virtude depende do reconhecimento dos outros corpos no espaço, depende da atenção ao desenho ágil de suas coreografias imprevisíveis, livres, individualizadas, porém indiretamente coordenadas pela percepção comum de pertencimento à mesma arena – em expansão. Caetano e Gil já não são tropicalistas porque o movimento foi um evento datado. Mas permanecem fiéis ao que deu sentido ao movimento e o fez perdurar por seus efeitos, até porque seus efeitos não são mais do que a perpetuação do novo regime de relação com a alteridade a que deu origem. 7 Há personagens picarescos nas mitologias indígenas e populares que usam a deficiência de seu movimento físico como recurso para ludibriar os inimigos e operar mediações entre planos distintos, como natureza e cultura, a humanidade e o mundo espiritual. Saci Pererê não está sozinho, nem Garrincha foi o único clown genial.

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Em vez de substituir uma classificação antiga, populista ou elitista e careta por outra, o tropicalismo suprimiu a ordem das classificações, pondo em seu lugar a continuidade como experiência e valor. Continuidade que em nada é conservadora ou acrítica, daí a importância da paradoxal categoria evolução, adotada por Caetano, cujo significado, como vimos, não é linear-evolucionista. Continuidade aqui aponta para movimento e relação, mais especificamente para relação em movimento. O que evolui (expandindo-se – aqui quantidade é indissociável de qualidade) é o repertório não só das obras valiosas, mas dos valores, das possibilidades de (re)criá-las, dos meios de produzi-las e de fazê-las circular, ressignificando-se na circulação. Por isso, evolução aponta para o futuro e também para o passado. Sublinho o caráter múltiplo da continuidade: trata-se de um modo de ser e agir na relação com o campo musical e seus atores, de um modo de pensar, correspondente a certos valores. Portanto, continuidade, aqui, é experiência, categoria de pensamento e valor. Esta equação foi formulada desde o primeiro parangolé que impelia o movimento do corpo entre corpos, transformando o espectador em protagonista, colando percepcão e uso, portanto sobrepondo inteligência e performance, pensamento e ação, interpretação e intervenção, fazendo coisas com palavras e palavras com coisas, e danças. Quando afirmo que as classificações foram abolidas como modo de funcionamento das relações com os autores da música popular brasileira e suas obras (claro que o campo de referência não se esgota nesses limites), quero dizer que as classificações foram substituídas pela valorização radical da individualidade e a liberdade de suas escolhas autônomas. Entretanto, individualidade não implica individualismo fragmentário ou “egoísta”, dar­ winiano, ou típico do modelo utilitarista, uma vez que, no contexto desse argumento, predomina a relação eu-tu, nos termos já descritos: relação regida pelo “amor”, significando não menos do que respeito e reconhecimento da dignidade do outro. Recordemo-nos ainda que o “amor” não neutraliza a crítica e o afastamento, e as transformações, como vimos. A “continuidade” e a afirmação culturalmente heroica da individualidade e de seu gesto livre tematizam tacitamente, revertendo-a, a duplicidade ontológica instalada pela escravidão, recalcada pela memória social e insuficientemente desconstiuída pelo igualitarismo democrático – plasmado na Constituição de 1988. O adjetivo heroico se justifica: tratava-se de ousadia subversiva à ditadura e às homogeneizações que ela cobrava, cujos ecos à esquerda eram os coros unívocos. Ousaria dizer que, além do nascimento do movimento negro, há duas grandes intervenções dissipadoras dos efeitos da dualidade ontológica, cujas significações mais dolorosas e profundas foram recalcadas na memória coletiva: a revolução cultural tropicalista e

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a formação do Estado democrático de direito, nos termos da Constituição de 1988, ainda que sua implantação prática esteja distante. A história do samba e do futebol, assim como conquistas políticas e mudanças legislativas representaram ao longo do século XX dinâmicas importantes, de grande impacto, contrárias à perpetuação traumática da grande divisão. Porém, os dois eventos referidos, além da afirmação histórica da consciência negra organizada, situaram os avanços anteriores em novo patamar, oferecendo-lhes novas condições de possibilidade para seus desdobramentos. Dramatizando a autopoiesis da individualidade solidária e participativa, e recusando clivagens excludentes (símbolos indiretos da grande violência brasileira, a escravidão), Oiticica e o tropicalismo foram e ainda são fundamentais não só para a cultura brasileira, mas para a história dos direitos humanos no Brasil, para a metabolização cultural dos sentimentos, dos valores e das experiências que lhes dão sentido.

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Referências Agripino de Paula, José. PanAmérica. São Paulo: Papagaio, 2001. Andrade, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. Basualdo, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naif, 2007. Campos, Haroldo. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 2008. Flora, Sussekind. Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60. In: Basualdo, Carlos. Tropicália, uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naif, 2007, p. 31-58. Freitas Perez, Lea; Amaral, Leila; Mesquita, Wania. Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. Mammi, Lorenzo. O que resta. Arte e crítica de arte. São Paulo: Cia das Letras, 2012. MAUSS, Marcel. Antropologia e sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. Oiticica Filho, Cesar (org.). Hélio Oiticica. Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011. Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997. Vianna, Hermano. Miserere nobis. In: OLIVEIRA, Ana. Tropicália ou panis et circensis. São Paulo: Iyá Omin, 2010. Viveiros de Castro, Eduardo. Araweté, os deuses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. Wisnik, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

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HĂŠlio Oiticica depois de junho de 2013: na trama da terra que tremeu Giuseppe Cocco Professor da UFRJ


“Dê-me um corpo”: esta é a fórmula da reversão filosófica. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que mergulha ou deve mergulhar para atingir ao impensado, isto é, a vida. Gilles Deleuze

“Museu é o mundo” Comecemos por uma análise material. O mundo é hoje desenhado por redes de territórios e comunicação. Seu espaço-tempo é o da circulação nas metrópoles. Uma circulação que já é produção: formas de vida que produzem formas de vida, produção de conhecimento por meio de conhecimento, em espiral. Na circulação, a produção se torna uma bioprodução: toda a vida é posta para trabalhar, trabalho e vida coincidem e se misturam. A “alma” do trabalhador tem que descer nas oficinas e ao mesmo tempo as oficinas saem do chão de fábrica para difundir-se na sociedade, entre os territórios (metropolitanos dos serviços) e a comunicação (a nova forma de trabalho em rede). A alma volta a se juntar ao corpo e a produção de subjetividade se torna terreno fundamental da geração de valor. Claude Lévi-Strauss disse em suas conferências no Japão que passamos de uma época que transformava os homens em máquinas para uma em que as máquinas se transformam em homens. Em algum momento, Negri escreveu: “O homem é hoje uma máquina na qual se inscrevem a produção e a arte”. Ontem, o “abstrato subsumia a vida”, hoje é “a vida que subsume

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o abstrato”: estamos no meio das máquinas e antimáquinas humanas de Jean Tinguely.1 A produção biopolítica está ancorada nos corpos e nas relações que eles instauram entre eles no seio das multidões. Podemos falar mesmo de metamorfoses dentro e pela produção de próteses que geram não mais um excedente quantificável de tempo ou de utilidade, mas uma excedência, algo como um aumento da potência dos corpos acoplados a novas ferramentas, como os ciborgues de Donna Haraway: as redes que se fixam na comunicação e na cooperação dos corpos e o êxodo que se constitui na mobilidade espacial e sua flexibilidade temporal: “o corpo da metamorfose é, pois, aquele que se apropria da ferramenta, a faz sua por meio da rede e do êxodo, sob a forma da prótese”.2 Entre redes e ruas, os territórios metropolitanos são atravessados e desenhados por um trabalho que se torna cada vez mais comunicação. Nos termos de Manuel Borja-Villel: “Em uma sociedade como a nossa, em que a diferença entre produção e reprodução é cada vez mais escassa e na qual o ator típico do capital pós-fordista é o que desenvolve um labor mental ou simbólico, a arte e o museu, como cenário privilegiado onde isso acontece, têm adquirido uma centralidade até agora desconhecida”.3 Nessa perspectiva, a instituição museu hoje aparece ao mesmo tempo obsoleta e nova, ultrapassada e urgente. E isso na medida em que, como diz mais uma vez Borja-Villel, a própria “arte tem se convertido em uma espécie de vaselina social, um elemento disruptivo, mas que serve para tornar os bairros mais coesos, legitimar ações”.4 Borja-Villel fala da Espanha, dos Estados Unidos e da Europa. No Brasil, a preocupação com a “coesão” social é mínima: o que a arte legitima – sem muita vaselina – é uma pacificação que passa pela militarização e hoje sequer isso. Os artistas, continua Manuel, são para os moradores o que antes, nos anos 1970, eram os assistentes sociais, sendo que estes eram o que antes eram os padres: “Estamos em uma situação na qual a arte, a cultura e o artista desempenham um papel ambíguo: eles têm um papel hegemônico, pois nunca a cultura tinha sido tão popularizada e, ao mesmo tempo, tão banal...”5 1

Dorléac, Laurence Bertrand. L’ordre sauvage. Paris: Gallimard, 2004, p. 240 e seguintes.

2

Negri, Antonio. Lettre à Raúl: sur les corps (1999). In: Art et multitude. Paris: Mille et Une Nuits, 2009.

3

Borja-Villel, Manuel. 10.000 francos de recompensa (El museo de arte contemporáneo vivo o muerto), Congresso da ADACE, Baeza, 15 a 19 de dezembro de 2006. Anais publicados em 2009, p. 14.

4

Borja-Villel, Manuel. La arquitectura como ideologia. In: León, Juan Miguel Hernández (ed.). El museo: su gestion y su arquitectura. Madrid: Arte y Estética, 2012, p. 124.

5 Idem, grifo nosso.

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Essa ambivalência aparece com aquela nitidez selvagem e naïve da qual o Brasil é capaz: um sem-número de museus sobrevivendo ou até largados e o Rio de Janeiro onde um sem-número de “novos” museus entregues à gestão da grande mídia, sem esquecer o mais caro e imponente largado ao nada ainda antes de ser terminado (a “cidade da música”, agora “cidade das artes” construída por César Maia). Por um lado, como dispositivo tipicamente moderno de classificação da(s) cultura(s) (e das espécies), das heranças e das civilizações o museu passa pela crise do moderno e de sua vocação, como a definia John Dewey, nacionalista, militarista e imperialista.6 Por outro, o museu se torna um agenciamento de produção de sentido e por isso uma “nova fábrica” nos territórios de um trabalho que se torna comunicação. Emblemática a inauguração (em junho de 2006) do Musée du Quai Branly (“des arts premiers”), onde foram “recicladas” as coleções de antropólogos, de estadistas (o próprio presidente Jacques Chirac) e do Musée des Colonies, que se encontrava ao lado do grande jardim zoológico da Porte Dorée: na era pós-colonial, os objetos dos povos colonizados (e dos indígenas em geral) mudaram de estatuto: de “provas” (científicas) documentais das conquistas e das etnografias, foram promovidos ao estatuto de “obras de arte”. Ao mesmo tempo, para além da manutenção de seu estatuto segregado, essa mudança de estatuto provoca um sem-número de questões sobre a aura, a autenticidade, o verdadeiro e o falso das obras.7 A instituição museu é cada vez mais urgente e cada vez mais paradoxal, totalmente atravessada pelo conflito: não por acaso, a inauguração do Museu de Arte do Rio (MAR), em maio de 2013, foi objeto de uma contestação artística e social que antecipava o levante de junho: contestação não apenas do museu, mas também das exposições, em particular aquela dedicada à produção artística de apoio ao movimento dos sem-teto de São Paulo de 2003. Hélio Oiticica participava da crítica que os artistas faziam da própria ideia de museu desde a década de 1960, questionando o próprio dispositivo. Ele disse, então, que “museu é o mundo”, mas o mundo continua indo para o museu, sob o controle de curadores, críticos e historiadores. Quando o 6

Dewey, John. The collected works of John Dewey – vol. 10 (1934). Southern Illinois University Press. Tradução francesa por Jean-Pierre Cometti, Christophe Domino, Fabienne Gaspari, Catherine Mari, Nancy Murizilli, Claude Pichevin, Jean Piwnnica et Gilles Tiberghien. L’art comme experience. Université de Pau, Pau, 2005, p. 26.

7 Vide o debate organizado no dia seguinte da inauguração pelos curadores do novo museu francês. LATOUR, Bruno (org.). Le dialogue des cultures: Actes des rencontres inaugurales du musée du Quai Branly (21 juin 2006). Paris: Babel, 2007. Em particular a relação e o debate seguinte de Daniel Fabre, “De combien de manières un objet peut-il être authentique?”, p. 327 e seguintes.

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mundo vai para o museu nos descolamos de nossa experiência e passamos à ideia e, como diz Maurice Merleau-Ponty, não nos preocupamos mais com o nosso corpo. Assim, perdemos o contato com a experiência perceptiva e não entendemos mais nada: nem do objeto, nem do sujeito. O museu é nesse caso uma perda de sentido, uma perda de mundo: uma bandeira vermelha nas mobilizações da multidão. Para que “museu seja o mundo” é preciso que a arte se mantenha na vivência que a produz e nas experiências que ela produz. Isso nos leva de volta ao corpo, quer dizer ao verdadeiro veículo do ser ao mundo: ter um corpo é ter um ponto de vista, juntar-se ao meio ambiente (milieu), misturar-se com determinados projetos e envolver-se neles. Isso significa que nós só temos consciência de nosso corpo através do mundo e, em espiral, teremos consciência do mundo através do corpo. Aqui e nesse sentido o museu é o mundo. Psiquismo e fisiologia não se distinguem na experiência da existência: a união de alma e corpo não pode ser decidida por decreto arbitrário sobre dois termos externos (sujeito e objeto), mas acontece a cada instante no próprio movimento da existência: na dança entendida por Oiticica como gesto da imanência do ato corporal e expressivo. As danças como evento coletivo e primordial da estética do cotidiano. Como não pensar na dança da multidão no levante de junho de 2013: os jovens jogando seus corpos na luta: na tentativa de tomada da Alerj no dia 17 de junho8 e logo depois dançando em cima do caveirão na avenida Presidente Vargas no dia 20 de junho,9 desafiando o dispositivo de morte que toca o terror do Estado corrupto para cima dos pobres. A existência é movimento e todo movimento é ao mesmo tempo consciência do movimento. Merleau-Ponty lembra que todo movimento tem um fundo que o anima e o leva a cada instante. O movimento abstrato constrói seu fundo ao passo que o movimento concreto tem seu fundo como dado. É no entrecruzamento desses movimentos que se constitui o poder de desenhar fronteiras, direções e linhas de força, quer dizer de organizar-se formando um mundo. Um movimento é compreendido quando é o corpo que o compreende, incorporando-o a seu mundo. Aqui, nesse momento e nesse movimento, Merleau-Ponty diz que o corpo não se compara a um objeto, mas a uma obra de arte. Por quê? No quadro, em uma música, em uma dança, a ideia só pode comunicar-se pelo desdobramento das cores, dos sons, dos movimentos: “É a percepção de seus quadros que me restitui o único Cézanne que existe”.10 Jean François Billeter fala do paradigma da 8

Cava, Bruno. A multidão foi ao deserto. São Paulo: Annablume, 2014.

9

Cava, Bruno e Cocco, Giuseppe (orgs.). Amanhã vai ser maior. São Paulo: Annablume, 2014.

10 Merleau-Ponty. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.

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integração que nos gestos torna natural o que é artificial, numa unidade viva de estilos, naquela situação em que não há mais oposição entre cultura e natureza: “a cultura da música não seria nada sem a natureza do corpo”.11 Trata-se sempre de modulações da existência e “o corpo é uma obra de arte, pois ele é um nó, um elo de significações vivas”, como um quadro, uma música ou uma dança. A estética é uma experiência encarnada. Merleau-Ponty termina seu denso livro sobre a fenomenologia da percepção com uma longa reflexão sobre a liberdade. A liberdade, diz Merleau-Ponty, é sempre um encontro, pois nós “estamos misturados ao mundo e aos outros, numa confusão inextricável”. Nesses encontros, nessa confusão é que se definem as estruturas, as civilizações, os estilos de vida, as danças e as heranças – os museus de ontem e de amanhã: “Que se trate das coisas ou das situações históricas, a filosofia não tem outra função que de nos aprender a bem vê-las”. Nesse sentido, a filosofia só se realiza “destruindo-se como filosofia separada” e destruindo ao mesmo tempo, complementamos, a existência segregada da arte. De repente, o filósofo precisa da vida: “Aqui é preciso ficar calado, pois somente o herói vivencia totalmente sua relação aos homens e ao mundo e não é bom que um outro fale em seu nome” (grifo nosso). Aqui, curiosamente, o filósofo conclui citando Antoine de Saint-Exupéry em seu livro: Pilote de guerre. O escritor narra uma missão como piloto da aviação militar francesa que ele mesmo realizou e da qual ele sobreviveu miraculosamente. Não se trata só da guerra, mas, sobretudo, da derrota: o que significa arriscar a vida quando o país (no caso a França em 1939) já foi derrotado? Saint Exupéry pilota um avião de reconhecimento, sem cobertura da caça e com grande probabilidade de ser derrubado. Sobrevoa as concentrações de tropas e material de guerra do invasor alemão para tirar fotos e ter informações que – caso ele consiga voltar – não terá a quem encaminhar. O herói que Merleau-Ponty cita é um anti-herói, já derrotado. Mas a significação está mesmo nessa inutilidade do combate: na falta de significação. A França, diz ele, e, mais em geral, o humanismo correm o risco de morrer por causa de sua inteligência: uma inteligência totalmente abstrata, aparentemente cheia de razões e na realidade vazia de sentido, uma alma sem corpo ou um corpo sem alma, uma obra segregada nos muros de um museu. Missão impossível, “pátria derrotada”, morte certa: o que fazer na beira do abismo? A resposta está num simples convite a sentar à mesa, junto com os companheiros que ainda sobrevivem na fazenda do camponês que abriga a esquadrilha. Sentado à mesa, Saint-Exupéry realiza: “Adquiri um novo laço. Reforcei em mim esse sentimento de comunidade. Tenho o direito 11 Billeter, Jean François. Un paradigm. Paris: Allia, 2012, p. 15.

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de sentar à mesa e de ficar com eles. Esse direito se compra muito caro, mas ele vale muito caro: o direito de ser”. De onde vem esse valor, esse não ter preço do direito de ser? Saint-Exupéry explica: “Eu joguei toda minha carne na aventura e joguei para perder”. Assim, jogando seu corpo na luta, Antoine de Saint-Exupéry adquire “o direito de se sentir tranquilo, quer dizer de participar, ser enlaçado, comunicar, receber e doar, receber esse amor”. O amor verdadeiro é, pois, uma “rede de laços que faz devir”. A noção de cultura e herança aparece assim de maneira simples e potente, no meio de algo como uma missa sagrada e profana: “O camponês que distribui o pão no silêncio [faz] o exercício de um culto: esse compartilhar”. Mais uma vez a noção de valor é mobilizada: “O sabor do pão compartilhado não tem igual”. O culto do comum se torna assim a explicação do sentido de uma luta já perdida, mas que vale a pena ser combatida exatamente porque ela produz sentidos: “Lutei pela luz particular na qual se transfigura o pão nos lares de meu País”. No comum, o que acontece é outra economia, uma economia do comum, na qual a riqueza se produz na e pela multiplicação dos laços: “Quando o camponês distribuiu pão, ele não deu nada. Ele compartilhou e trocou. O mesmo trigo circulou em nós. O camponês não se tornou mais pobre. Ele se enriqueceu porque ele se nutriu de um pão melhor: o pão da comunidade”. Esse pão da comunidade e o valor que produz pelo compartilhamento são exatamente o mesmo que os teóricos das redes estão pensando desde a explosão da internet e os movimentos do copyleft: o custo marginal da duplicação da informação tende a zero ao passo que seu valor aumenta proporcionalmente à multiplicação do número de compartilhamentos.12 A riqueza está em outro lugar: nos laços e no sentido que faz a comunidade e que a comunidade faz. A vitória e o heroísmo também estão em outro lugar: “Com certeza, nós já somos derrotados. Tudo desmorona. Mas eu continuo sentindo a tranquilidade do vencedor”. É importante enfatizar: ele não escreveu isso depois da guerra, depois da liberação da França. Pelo contrário, ele escreveu sem perspectiva nenhuma de uma vitória que a guerra não lhe deixará o tempo de ver, pois desaparecerá junto com seu avião alguns tempos depois numa outra missão. Saint-Exupéry complementa: “Qualquer um que leva em seu coração uma catedral a construir, já é um vencedor”. E a catedral, dizia Roland Barthes, é “uma grande criação de uma época, concebida apaixonadamente por artistas desconhecidos, consumida em sua imagem, se não é em seu uso, por um povo inteiro que

12 Aigrain, Philippe. Cause Commune: l’information entre bien commun et propriété. Paris: Fayrad, 2005, p. 67.

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se apropria nela de um objeto perfeitamente mágico”.13 A vitória está na comunidade e o amor que a funda: “Nós sentimos o calor dos laços: eis porque nós já somos vitoriosos: porque nossa comunidade já nos é sensível. Uma cultura, uma civilização precisa manter seu fermento”. O humanismo é ameaçado, derrotado por ter perdido seu fermento e por procurar explicar sua derrota pela moleza dos fiéis. Quais são hoje a obra e o museu capazes de armazenar o fermento de uma herança viva? Se o que procuramos é esse fermento, essa cultura viva, é porque pensamos e sabemos que o “ser” não é nem o império da lógica, nem o império da linguagem, ainda menos das bandeiras e outros totens, mas dos atos e “o ato essencial – para o piloto de guerra que luta derrotado – é o sacrifício”. Nós diremos que o ato essencial é a luta, o êxodo: “pois não se trata nem de uma amputação, nem de uma penitência, mas da dádiva de si mesmo ao ser do qual pretendemos nos reclamar”: um território, uma cidade, uma favela! Lutando por um território, “tendo sacrificado uma parte de si a esse território”, tendo lutado para salvá-lo e suado para torná-lo mais belo, poderemos entender esse território, ter “amor” por ele: um território que não será a soma dos interesses, mas a soma das dádivas. Temos nesse momento duas pistas de trabalho. Em primeiro lugar, a herança como fermento não tem preço: que valor é esse? Entre interesses (juros) e dádivas, qual o papel do comum entre os dois?

Transformar o valor: uma antiarte e uma política dos corpos A herança entendida como fermento e como laço nos leva ao debate sobre o valor. Sabemos que para a economia clássica o valor é o trabalho incorporado nas mercadorias. Para a economia neoclássica o valor é a utilidade da mercadoria. Nos dois casos atribuiu-se ao valor uma dimensão substancial que existiria a priori, antes da troca mercantil. Para os clássicos, inclusive os marxistas, a moeda é apenas o reflexo do valor determinado pelo trabalho e, pois, se trataria de alocá-la corretamente em função desses parâmetros: para remunerar os “fatores” ou para reduzir ou a exploração. Para os neoclássicos e os marginalistas, a moeda não desempenha nenhum papel e, por isso, é preciso não tocar nela para que o equilíbrio possa se estabelecer a partir do jogo da oferta e da procura que formam um sistema de preços que corretamente reflita a utilidade dos bens que estão no 13 Esse famoso texto de Roland Barthes, escrito entre 1954 e 1956, compara as catedrais ao automóvel, o que não tira absolutamente nada à força do mito constituído por uma obra coletiva. Mythologies. Paris: Seuil, 1957, p. 150.

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mercado: no fundo, por trás da troca monetizada, o que acontece seria um escambo. Paradoxalmente, a utopia marginalista pensa uma economia sem moeda, assim como as utopias libertárias. Para Hélio Oiticica, “as teorias do valor [...] FEDEM!”14 Na realidade, o valor é totalmente relacional, determinado na troca, e a moeda é a instituição que a troca gera e ao mesmo tempo a permite. A moeda é aquele objeto que, sendo gerado na troca e pela troca, separa-se dela e aparece como instituição independente capaz de representar legitimamente o poder social que circula e se produz nas trocas. A potência da moeda vem, pois, do fato de ser um objeto capaz de captar uma confiança geral, um sentimento comum. Ela funciona como um “totem”: o emblema de um clã que capta o afeto comum. A moeda é uma representação coletiva, como o totem, que captura os afetos e os sentimentos da sociedade. Em retorno, a sociedade lhes atribui propriedades que ela não tem: como o totem ou uma bandeira tem qualidades sem nenhuma relação com o animal ou o pedaço de tecido, da mesma maneira a moeda tem qualidades sem nenhuma relação com o metal, o papel ou o sinal digital da qual ela pode ser feita. Isso porque o emblema não apenas recolhe o sentimento da sociedade, mas serve para produzi-lo.15 Os signos simbolizam as representações porque contribuíram para formá-las. A moeda, então, simboliza o valor porque captura o poder de compra e contribui para o processo de “valoração”. A autonomia do valor não é o resultado de nenhuma substância que haveria por trás do valor, mas do papel que desempenha a moeda. É a instituição da moeda que se torna autônoma. Temos, assim, dois enigmas retroalimentados ou duas tautologias: o enigma do valor que, sendo totalmente relacional, procura na moeda seu lastro e o enigma da moeda que procura sua métrica no “valor”. Nessa dupla dimensão enigmática temos a potência e ao mesmo tempo a fragilidade do sistema de trocas que delas depende. Contudo, parece claramente que são os mecanismos relacionais do mimetismo e do desejo que explicam a mecânica do valor e aquela da moeda, nos jogos de produção de opiniões majoritárias, segundo a lógica mimética da moda, capazes de produzir confiança e, pois, a instituição monetária. Por um lado, o valor permite fazer a diferença entre a equivalência em valor das transações mercantis e todas as outras formas de apropriação (a dádiva, o roubo, a captura, a redistribuição). Por outro, a moeda viabiliza as trocas mercantis não vio14 Oiticica, Hélio. Carta a Waly ( janeiro a fevereiro de 1974). In: Oiticica Filho, César e Coelho, Frederico (orgs.). Conglomerado newyorkaises. Rio de Janeiro: Azougue, 2013, p. 147. 15 Estamos usando as reflexões de André Orléan em L’empire de la valeur. Paris: Seuil, 2011.

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lentas mas passa a conter dentro dela, como instituição separada, essa violência. Valor e moeda precisam assim procurar algum lastro. O lastro da moeda é, pois, aquele dos emblemas, mas esses emblemas podem ser verdadeiros ou falsos e isso na medida em que tendem a se separar dos processos que os criam e a criar sua transcendência. Dessa maneira, a questão do valor nos leva àquela da moeda e essa àquela do valor e da significação e assim chegamos ao papel da arte e mais, no geral, da criação: a economia procura resolver na arte os enigmas do valor como se pudesse fornecer um novo lastro, ou uma nova substância ou uma nova transcendência. Lorenzo Mammì diz que na passagem ao moderno, com o Renascimento, que rompeu a distinção medieval entre matéria e espírito, deixando no seu lugar a obra de arte. Essa, ao mesmo tempo, torna-se mais instável que seu sentido; é inesgotável. Diante dessa variação infinita, Mammì pensa que é a crítica que passa a conferir valor numa situação na qual a obra não tem matéria definida e, pois, não pode ser avaliada com base em categorias definidas. É a crítica que confere valor à obra e ao mesmo tempo é a obra que gera suas categorias. “A obra não pode mais ser submetida a categorias. Ela própria gera as categorias pela qual é julgada”.16 Estamos na espiral ou numa tautologia? Onde as formas de vida que produzem formas de vida encontram seu lastro? A “casa da moeda” é o ateliê do artista ou o escritório do crítico? Hélio Oiticica considera que a “parafernália bestiológica” dos críticos não resolve e lembra que sua própria “evolução pode ser chamada de antiarte, daí a conotação com a definição de décio pignatari sobre oswald”.17 Uma perspectiva que está em aberta “oposição ao sistema vigente de administração da cultura (complexo editorial, ensino, museus, exposições, concertos, etc.)”.18 Sua inspiração é situacionista: a antiarte é o único caminho para se fugir da sociedade do consumo e do espetáculo: “enquanto a ‘obra’ for ‘obra’ continua a urgência de ‘criar obras’: sempre me impressionou, dando-me tédio e desinteresse incríveis o número de obrigações (expor, promover, ‘estar em dia’) que os artistas possuem [...]”.19 Ou seja, “não basta que a obra seja descolada de certos contextos”, é preciso mesmo sair do âmbito 16 MammI, Lorenzo. Isto, aquilo e o valor disso. In: O que resta. Arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 38. 17 Oiticica, Hélio. Anotações para uma próxima publicação, 1O de setembro de 1971. In: Conglomerado newyorkaises. Op. cit., p. 93. Os nomes são escritos no original de Hélio sem maiúscula. 18 Décio Pignatari, citado por Hélio Oiticica. In: Conglomerado newyorkaises. Op. cit. 19 Oiticica, Hélio. Anotações para uma próxima publicação, 1º de setembro de 1971. In: Conglomerado newyorkaises. Op. cit., p. 95.

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da arte. Oiticica é claramente inspirado pela revolução cultural situacionista e suas “Directives” para o “dépassement de l’art”.20 Hélio usa uma citação totalmente nietzschiana de Yoko Ono para explicitar o desafio: “creating is not the job of the artists. the job of the artists is to change the value of things”.21 A antiarte é uma arte ambiental que não cria “obras” que possam servir de lastro e substância ao sistema de valor, mas situações que transformem os valores. A arte ambiental implica a vida como obra de arte e as duas são, então, vias de fuga que se articulam com uma política dos corpos. Dito com José Gil: “o operador da tradução dos signos no ritual é o corpo” porque o que se encontra entre as forças e os signos é exatamente o corpo e isso nos faz “entender porque o primitivo não precisa interpretar a significação inconsciente dos signos e dos atos simbólicos: ele os porta em seu corpo”. 22 Qual seria, então, a moeda produzida por um tipo de símbolos que não se separam em totem e bandeiras e continuam, como a dança, imanentes à sua produção democrática? É aqui que encontramos novamente Hélio e sua atualidade urgente, com a afirmação que museu é o mundo: o território que produz e mantém vivo o fermento é aquele que nos faz ser no mundo, que faz do corpo uma obra de arte, um elo de significações. A proposta de Oiticica é, pois, aquela da arte ambiental, o Parangolé: “[...] o ‘achar’ na paisagem do mundo urbano, rural etc. elementos Parangolés”. Assim, na arquitetura das favelas “está implícito um caráter do Parangolé, tal a organicidade estrutural entre os elementos que a constituem e a circulação interna e o desmembramento externo dessas construções”. Com efeito, “todos esses recantos e construções populares, geralmente improvisadas, que vemos todos os dias” são na realidade obras cuja “unidade estrutural (é baseada) na estrutura-ação”. Hélio organiza uma situação e uma circulação: é mesmo na circulação que se faz o verdadeiro.23 A estrutura, o território, é uma ação, uma “obra requer aí a participação corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, que dance [...] O próprio ‘ato de vestir’ a obra implica uma transmutação expressivo-corporal do espectador, característica primordial da dança, sua primeira condição”. Por meio dessa vivência total, o “espectador” se 20 Lütticken, Sven. Guy Debord and the Cultural Revolution. Grey Room. Special Issue: Guy Debord Cinema, n. 52, p.112. Cambridge, MA: MIT Press, Summer 2013. 21 Oiticica faz a tradução: “Criar não é a tarefa do artista. sua tarefa é a de mudar os valores das coisas. No manuscrito ele não usa maiúsculas. 22 GIL, José. Métamorphose du corps. Paris: La Différence, 1985, p. 80. 23 Stéphane Breton, intervenção no debate sobre autenticidade. FABRE, Daniel. “De combien de manières un objet peut-il être authentique?” Op. cit., p. 343.

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transmuta em “participador” e isso, diz Hélio Oiticica, por meio da “instituição e reconhecimento de um espaço intercorporal, criado pela obra ao ser desdobrada”.24 O vestir se contrapõe assim ao assistir na produção de uma obra-ambiente, de um sistema ambiental. A subjetividade que Hélio propõe é quase animista, como diria René Schérer uma “proliferação de agenciamentos maquínicos e territórios existenciais em formação”.25 Oras, José Gil lembra que “os corpos são mais livres que as imposições de signos” e a mudança no regime dos signos – e da relação desses ao corpo – se reflete – justamente – na dança. Nas sociedades arcaicas a dança – individual ou coletiva – embora sempre ligada a um simbolismo (a um rito) não implica na submissão rigorosa aos imperativos da significação. A energia do dançarino, seu élan, sua singularidade e seu próprio investimento dão vida aos símbolos dançados. No limite, o símbolo é apenas um pretexto para a dança.26 Trata-se, pois, de um tipo de “infralíngua ao estado puro”. O dançarino que reproduz um ou mais símbolos pelo corpo, “ele decompõe os movimentos, quebra os ritmos, refaz os conjuntos. Eis porque essa dança é ela mesma, sem ter que obedecer ao um sentido determinado, tão ‘libertadora’”.27 Ao passo que algumas danças visam alcançar um caráter absoluto descolando-se dos constrangimentos corporais, reduzindo o corpo a um signo ou a uma máquina a produzir signos, as danças africanas descodificam o corpo “enraizando-o ainda mais no mundo, em suas energias e ritmos”, totalmente “libertada do peso dos símbolos”.28 Os ritmos criam o espaço e o tempo que somente existem porque “materializados num envelope rítmico”. A dança, a música, o teatro, os ritmos de todas as situações sociais não são algo primitivo ou periférico, mas o próprio terreno de construção da imaginação e de suas significações, ou seja, “de projeção sobre a realidade de uma luz que esclarece humanamente o desdobramento simplesmente zoológico das situações humanas”.29 Podemos, então, pensar o horizonte de uma crítica do valor e de uma apropriação comum da moeda como uma política dos corpos? A única que seria capaz de manter os símbolos e os signos imanentes aos processos e aos ritmos de sua produção. John Dewey lembrava que a economia é 24 Oiticica, Hélio. A dança na minha experiência. In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p. 73. Grifos do autor. 25 Schérer, René. Subjectivité hors sujet. Chimères / Guattari, n. 21, hiver, Paris, 1994. 26 Gil, José. Métamorphose du corps. Op. cit., p.162. 27 Ibid., p. 163. 28 Ibid., p. 165. 29 Leroi-Gourhan, André. Le geste et la parole, tomo II: La memoire et les rythmes. Paris: Albin Michel, 1964, p. 136.

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uma filosofia moral (“bem” como objeto ainda contém um sem-número de significações, assim como “preço” e “precificar” significam avaliar e “caro” significa precioso, custoso, mas também “querido”). Por sua vez, “interesse” vem do latim inter e esse, quer dizer o que está entre os seres: uma interação entre uma pessoa e o meio ambiente e entre as pessoas: uma dança dos corpos. Os “interesses” (os “juros” em português) aparecem em precisos contextos existenciais e, da mesma maneira, os “valores” são negociados, resultados de conflitos e as diferenças sobre as “valorações”, resolvidos pela força e pela produção de sistemas de símbolos: as guerras e/ou as lutas de classes e a produção de símbolos: bandeiras e totem. A afirmação que museu é o mundo assume que a obra é o fermento quando é ação e luta. O fermento que a ação e a luta produzem é o amor: a relação na qual a riqueza se cria e amplifica no saque e na dádiva e institui uma moeda verdadeira. O corpo como obra de arte é um nó de relações vivas capazes de criar novas institucionalidades. Mas, então, para quem e quando, em qual situação o corpo e o sentido ficam juntos? Quando a política implica, como dizia Pier Paolo Pasolini, inspirado na luta dos negros norte-americanos, “jogar seu corpo na luta” e isso acontece no corpo dos pobres. Podemos, assim, perguntar novamente: cadê o corpo do Amarildo?30 Temos duas respostas a essa questão: a primeira é aquela do Brasil, país rico e sem pobreza que faz desaparecer os corpos dos pobres, dos índios, dos negros e falsifica a moeda: na pedalada fiscal bem como no crédito consignado. A segunda é a do corpo de Amarildo transfigurado em pão compartilhado e fermento da comunidade: “Amar é, a Maré, Amarildo”.31

“Seja marginal, seja herói”: a verdade do mito32 Voltemos à bandeira de Hélio Oiticica, ao interesse e ao incômodo que ela ainda cria: entre aqueles que dizem que nada tem a ver com o “projeto” dele e os que a atribuem a um período determinado quando a ditadura justificava certa glamourização da marginalidade. Nessa ambivalência, nós pensamos que há algo mais e ainda dramaticamente atual: a obra de Oiticica tem a potência de falar do enigma da resistência dos pobres de uma maneira que ninguém consegue fazer (em termos analíticos) e ainda 30 Ver Gerardo Silva, “Um boi com a cara de cavalo”, neste livro, p. 42. 31 Szaniecki, Barbara. Maré Amarildo: amor e arte. In: Cava, Bruno e Cocco, Giuseppe. Amanhã vai ser maior. Op. cit. 32 Retomo aqui parte do que argumentei em Cocco, Giuseppe. KorpoBraz. Por uma política dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.

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menos resolver (em termos políticos) e colocar a arte no âmbito da experiência estética em que vivem os pobres: leiamos o que dizia, ainda em 1934, John Dewey em suas conferências em Harvard: “As artes que hoje em dia têm a maior vitalidade para o homem comum são coisas que ele não considera como formas de arte: por exemplo, cinema, jazz, quadrinhos e [...] os artigos da imprensa sobre as proezas cometidas por bandidos”.33 A política dos pobres – e não apenas no Brasil – está totalmente tomada, paralisada e esvaziada nessa ambivalência. Há hoje uma vastíssima literatura acadêmica sobre “favelas”.34 Contudo, no meio desse grande volume de produção e de abordagens, podemos apontar para um “grande eixo” em torno do qual se articula boa parte de toda a literatura sobre o fenômeno das favelas. Esse grande eixo é o da marginalidade, quer dizer, do contraste que fixa os territórios onde se concentra esse tipo de construção e autoconstrução da moradia “popular” nas margens do tecido social e urbano “formal”. As favelas estão estruturalmente associadas às linhas sinuosas, mas onipresentes, de segregação e exclusão espacial dos pobres. Linhas que modulam espacialmente as modulações sociais e étnicas de uma sociedade e de uma cidade profundamente marcada pelo período da escravidão, as condições de sua abolição e seus impactos nos processos migratórios internos (e também externos). Terreno das margens e da marginalidade, as favelas abrigavam os pobres e esses constituíam a versão brasileira das “classes perigosas”.35 A partir da década de 1960, o fenômeno da favela passou por duas inflexões importantes. Essas se deram em âmbitos totalmente diferenciados, mas podemos dizer que se alimentaram reciprocamente. As migrações internas foram se acelerando por meio do violento processo de êxodo rural que faria das favelas um fenômeno “marginal” totalmente paradoxal pelos efeitos de escala que passará a caracterizá-lo no Rio de Janeiro:36 a margem se tornou, em termos de tama33 Dewey, John. The collected works of John Dewey. Op. cit., p. 24. 34 Mas, as obras, trabalhos e pesquisas que falam de favelas, inclusive as obras literárias e artísticas em geral, são muito mais numerosas, até o ponto que dificilmente é possível quantificar. Por exemplo, a meticulosa bibliografia analítica elaborada por Lícia Valladares e Lídia Medeiros (Pensando as favelas do Rio de Janeiro, 1906-2000, uma bibliografia analítica. Rio de Janeiro: Faperj-Relume Dumará, 2003). 35 Guimarães, Alberto Passos. As classes perigosas: banditismo urbano e rural (1982). Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. 36 Lembremos alguns dados básicos. Os dados dos recenseamentos gerais indicam que, em 1950, havia 58 favelas no Rio de Janeiro para um total de 169.305 favelados. Em 1980, o número de favelas tinha passado para 192 (ou seja, tinha sido multiplicado por 3,3 vezes) e os favelados eram 628.170 (multiplicado 3,7 vezes) ao passo que a população tinha “apenas” dobrado. Em 30 anos, o ritmo de “favelização” era duas vezes maior do que o ritmo de crescimento da cidade e passando assim de 7,1% a 12,3% da popu-

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nho, a grande maioria. Ao mesmo tempo, toda uma geração de sociólogos e antropólogos (brasileiros e norte-americanos) irá se formando no estudo das favelas e particularmente na crítica da marginalidade, que passa a ser chamada de “mito”, um mito a ser desconstruído. A tese de doutorado da norte-americana Janice Perlman se tornou a referência clássica dessa nova geração.37 Apesar da sua originalidade ser contestada por Lícia Valladares, o trabalho de Perlman se constituiu na primeira grande desconstrução do regime discursivo hegemônico sobre o fenômeno das favelas.38 Perlman pretendia ultrapassar o mito da marginalidade seja em sua vertente “negativa”, seja naquela que pretendia ser uma vertente “positiva”: “(e)m português e espanhol, a simples palavra marginal tem conotações profundamente negativas. Um marginal, ou um elemento marginal significa um vagabundo indolente e perigoso, em geral ligado ao submundo do crime, da violência, das drogas e da prostituição”.39 Contra isso, Perlman afirma: “os ‘enclaves isolados’ de que fala a teoria da marginalidade simplesmente não existem”.40 “O favelado não pode ser considerado como marginal social, quer quanto ao critério de coesão interna como de uso da cidade exterior, lação total. Em 2000, a população favelada alcançou 1.092.958, passando a constituir 18,7%. Segundo o Censo de 2010, os números passaram a ser: 1.393.314 pessoas nas 763 favelas do Rio ou 22,03% dos 6.323.037 moradores do Rio. Se comparados com os números do Censo 2000 do IBGE (quando havia 1.092.283 moradores de favelas no Rio, ou 18,65% dos habitantes do município), o crescimento da população em aglomerados subnormais em 10 anos foi de 27,65%, enquanto a cidade regular, excetuando os moradores das favelas, cresceu a um ritmo oito vezes menor, apenas 3,4%, passando de 4.765.621 para 4.929.723 nesses dez anos. 37 Perlman, Janice E. O mito da marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 (inicialmente publicado nos Estados Unidos). 38 “É preciso ressaltar que a sua (de Perlman) crítica da teoria da marginalidade nem era original, nem pioneira, quer nos Estados Unidos quer no Brasil”, escreveu Lícia do Prado Valladares em A invenção da favela. Do mito de origem a favela.com (Rio de Janeiro: FGV, 2005, p.129). Contudo, é preciso ver e lembrar que a crítica do “mito da marginalidade” desenvolvida por Janice está fortemente marcada pela disputa política em torno do controle e/ou conquista das favelas por projetos alternativos da sociedade na era da guerra fria. O Partido Comunista Brasileiro tinha ensaiado bons resultados eleitorais nas favelas do Rio antes de voltar a ser declarado ilegal e os pesquisadores norte-americanos chegavam ao Brasil ao mesmo tempo em que os acordos entre o governador Carlos Lacerda e o Usaid através da Aliança para o Progresso: as remoções levavam os favelados para longínquos conjuntos habitacionais cujas “denominações não foram escolhidas por acaso”, com elas o governador antifavela, Carlos Lacerda, decidiu homenagear ao mesmo tempo “o presidente americano e o programa de financiamento internacional”: eis a Vila Kennedy e a Vila Aliança. 39 Perlman, Janice E. O mito da marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. Op. cit., p. 124. Grifos do autor. 40 Ibid., p. 174.

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podemos concluir que então ele deve estar integrado nesse sentido”.41 Os favelados não são marginais, mas integrados. Ao mesmo tempo essa integração acontece de maneira desfavorável e até humilhante. Contudo, o desmonte da dimensão negativa do “mito da marginalidade” não desemboca automaticamente numa dimensão positiva das favelas e dos pobres como atores políticos revolucionários. Os chamados “marginais” não são “nem apáticos nem radicais”. Não há “sinais de ideologia radical, ou inclinação à ação revolucionária (e) os favelados em geral apoiam o sistema e acham que o governo não é mau”. Em síntese, Perlman conclui nesses termos: O paradigma da marginalidade baseia-se num modelo equilibrado ou integrado de sociedade. Não apenas os mitos são falsos, mas o modelo também não é válido. A teoria da marginalidade supõe que num sistema em funcionamento as interconexões entre segmentos tendem a ser mutuamente satisfatórias e benéficas para todos. É possível, todavia, haver um sistema estável cujo equilíbrio beneficie a alguns precisamente graças à exploração explicita ou implícita de outros. Os grupos assim explorados não são assim marginais, mas integrados em larga medida no sistema, funcionando como uma parte vital do mesmo. Em resumo, integração nem sempre implica reciprocidade.42

No prefácio à edição brasileira do livro de Janice, Fernando Henrique Cardoso retoma essas conclusões, mas de uma maneira um pouco mais sutil: As populações faveladas não são “marginais” [...] subsiste o fato de que a falta de recursos econômicos, culturais e políticos é real. Não devemos nos preocupar com a situação de carência dos “marginais” [...] mas com a pobreza, a exploração e a repressão sistemática que, se bem incidam sobre toda a pirâmide social, se tornam mais diretamente visíveis e perceptíveis nas favelas e tugúrios. O passo seguinte, metodologicamente, seria reconstituir a história desta exploração e estabelecer os mecanismos pelos quais, de modo diferente mas persistente, são recriados os modos de exploração e de repressão pelas condições estruturais que caracterizam a formação e as etapas iniciais da acumulação capitalista [...].43

41 Ibid., p. 176. 42 Ibid., p. 288. 43 Cardoso, Fernando Henrique. Prefácio. In: Perlman, Janice E. O mito da marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 15. Grifos nossos.

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Ou seja, Fernando Henrique Cardoso diz que o mito pode bem ser “falso”, mas ele participa da máquina que integra e ao mesmo tempo explora os favelados segundo determinadas modalidades de exclusão e segregação espacial e racial. Não se trata de descobrir a “verdade” atrás do mito, mas a verdade do mito, ou seja, nas palavras de Fernando Henrique Cardoso, “a estrutura do mito”,44 como ele funciona, qual é sua força. A força do mito da marginalidade está nas políticas de regulação dos pobres. Assim como sobre favelas, há também uma gigantesca literatura sociológica, antropológica, política, urbanística e de ficção sobre violência. Grosso modo, a leitura, mesmo rápida, dessa vasta literatura sobre favelas, marginalidade e violência nos leva sistematicamente para o mesmo impasse ao qual nos leva a crítica da marginalidade. Em geral, entre o tráfico encastelado nas favelas e a polícia não há hesitação: é essa última que sempre constituiu e ainda constitui a principal ameaça à “segurança da vida” dos pobres que ali moram. Mas sempre aparece a necessidade moral de se distanciar da “paralisia política” que essa constatação determina e implica. Isso numa situação material em que é preciso desfazer certezas, ou seja, “desfazer muitas ideias preconcebidas sobre crime e juventude”. E isso porque há “uma surpreendente continuidade entre os dois mundos, o legal (da família e do emprego) e o ilegal (do tráfico), sem negar as diferenças profundas entre as consequências de estar ou não estar envolvido no crime”.45 O geógrafo da UFRJ, Marcelo Lopes de Souza, com base em ampla pesquisa de campo, diz a mesma coisa em outros termos: “Entre ser ‘gerente’ ou mesmo ‘dono’ de uma ‘boca de fumo’ e ser um trabalhador de salário mínimo, que tenta apenas fazer de tudo para não ser molestados pelos ‘bandidos’, há muito mais situações possíveis e reais do que as vãs filosofias reducionistas e maniqueístas querem fazer crer”.46 Com efeito, na obra de Hélio não há nenhuma glamourização da marginalidade, mas a expressão potente e trágica de sua ambiguidade e de sua potência: “Eu acho – declara Oiticica a Paulo Francis – que o trabalho criador propõe uma nova sociedade. É exatamente aí que eu acho que todo esforço criador tem um lado marginal, um lado marginalizado [...]”.47 Oiticica sabe muito bem que dizer isso é “perigoso”, que pode levar (como 44 CARDOSO, Fernando Henrique. Prefácio. In: PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade. Op. cit., p. 13. 45 Soares, Luiz Eduardo. Desfazendo certezas. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p. 235. 46 Souza, Marcelo Lopes de. O desafio metropolitano. Um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas metrópoles brasileiras. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 61. 47 Ibid., p. 69.

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levou e leva a maioria dos “marginais”) à “autodestruição”: “Sei que isto é uma afirmação perigosa, que é uma faca de dois gumes, mas que vale a pena. Só um mau-caráter poderia ser contra um Antônio Conselheiro, um Lampião, um Cara de Cavalo, e a favor dos que os destruíram”. Em outro momento ele escreveu que o que o interessava era a vivência [...] do ídolo anti-herói, ou seja, a do anti-herói anônimo, aquele que, ao contrário de Cara de Cavalo, morre guardando no anonimato o silêncio terrível dos seus problemas, a sua experiência, seus recalques, sua frustração (claro que herói anti-herói, ou anônimo anti-herói, são, fundamentalmente, a mesma coisa: essas definições são a forma com que seus casos aparecem no contexto social, como uma resultante) – o seu exemplo, o seu sacrifício, tudo cai no esquecimento como um feto parido. Numa outra obra (Bólide-caixa no 21 – B44 – 1966/67), quis eu, através de imagens plásticas e verbais, exprimir essa vivência da tragédia do anonimato, ou melhor, da incomunicabilidade daquele que, no fundo, quer comunicar-se (o caso me levou à vivência foi o do marginal Alcir Figueira da Silva, que ao se sentir alcançado pela polícia depois de assaltar um banco, ao meio-dia, jogou fora o roubo e suicidou-se).48

Hélio escreveu ainda: A liberdade moral não é uma nova moral, mas uma espécie de antimoral, baseada na experiência de cada um [...] e está acima do bem, do mal etc. Deste modo estão como que justificadas todas as revoltas individuais contra valores e padrões estabelecidos: desde as mais socialmente organizadas (revoluções, por exemplo) até as mais viscerais e individuais (a do marginal, como é chamado aquele que se revolta, rouba e mata).49

Oiticica sabia que o trabalho de artista não é de produzir objetos, mas de criar valor. Ele sabia também que com essa radicalização ele simplesmente mergulhava a produção de um “outro valor” na materialidade trágica (e heroica ao mesmo tempo) da situação social e da violência generalizada que caracteriza a regulação biopolítica dos pobres no Brasil e em toda a América Latina. Não por acaso, ele dizia logo em seguida: “Daí é fácil deduzir o que não estará por acontecer no mundo e nas comunidades – ou 48 Oiticica, Hélio. O herói anti-herói e o anti-herói anônimo (1968). Disponível em http:// culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/heroioiticica.html. 49 Oiticica, Hélio. Julho de 1966, posição ética. In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p. 84. Grifos nosso.

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tudo muda (e há que mudar!), ou continuamos a guerra. Não sou pela paz [...] – como pode haver paz ou se prender a ela, enquanto houver senhor e escravo!”50 Hélio dizia com lucidez singular: “ou tudo muda, ou a guerra continua” e isso em 1966: 50 anos depois, podemos dizer que ele tinha razão, que apenas apontava para o horizonte de um futuro de violência generalizada e, embora não o fizesse desde o ponto de vista de uma nova moral e de uma “bela consciência”, ele tampouco o fazia de um ponto de vista cínico: por isso, seu ponto de vista era o do “marginal”. Aqui, “marginal” é sinônimo de conhecimento: atravessar fronteiras, inventar, bem próximo do conhecimento nômade do pragmatismo de William James.51 Não ficar no limiar, mas fazer dele o terreno do êxodo, da produção de um novo horizonte ético no cerne do qual só pode haver uma política dos corpos que reconheça a potência dos pobres. Algo que hoje é renovado nas formas de uma centralidade paradoxal dos pobres, entre o devir-pobre do trabalho nas economias centrais e o devir-trabalhador dos pobres no Brasil. Nessa centralidade paradoxal dos pobres como multidão, (re)encontramos o trabalho dos pobres e o corpo do trabalhador e tudo isso como devir-Brasil do mundo e devir-mundo do Brasil, ou seja, com possível transmutação de todos os valores: construção e êxodo de um novo povo e de uma nova terra. A centralidade dos pobres é um devir-sul da política, um devir-Brasil do Sul e um devir-Sul do Brasil. Recorremos ainda a Oiticica: “SOU EU – É VOCÊ – É AMÉRICA LATINA – SUL – SUB [...] subterrânia do mundo para o Brasil [...], subterrânia é a glorificação do sub – atividade – homem – mundo – manifestação – : não como detrimento da glori-condição à sim : como consciência para vencer a super – paranoia – repressão – impotência – negligência do viver – crítica – criativa – ativa [...]”.52

A política dos corpos: capitalismo e antropofagia53 Em defesa da Tropicália em 1968, Hélio Oiticica escreveu: “[...] quem pretender criar uma cultura de exportação [...], única maneira de engolir, 50 OITICIA, Hélio. Julho de 1966, posição ética. In: OITICICA FILHO, César (org.). Museu é o mundo. Op. cit. Grifos nossos. 51 James, William. The meaning of truth. Harvard University Pressi, VI, p. 247. 52 Oiticica, Hélio. “Subterrânia”. In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Op. cit., p. 145. O poema é abertamente antropofágico, justamente, pela transformação de Underground em Subterrânia. 53 Parte desse parágrafo foi publicada em Cocco, Giuseppe. KorpoBraz. Op. cit.

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deglutir o que nos é bombardeado de fora é devolver em criação válida como coisas nossas, neutralizando assim o colonialismo cultural a que nos querem permanentemente submeter [...]”.54 Hélio fala, nesse momento, da repressão cultural que a renovação tropicalista da antropofagia oswaldiana está sofrendo da esquerda brasileira, ortodoxa e não ortodoxa. Mas, é curioso: há hoje outra maneira não mais de “reprimir” a antropofagia artística, mas de esvaziar suas dimensões políticas: de fazer de sua ambivalência uma ambiguidade miserável. Esse movimento vem por dentro e replica no Brasil o que outros fazem lá fora. Por exemplo, em sua introdução a um conjunto de escritos de Mao, Slavoj Zizek consegue ver os limites não do socialismo real, mas da filosofia da diferença: “O conceito de máquina articulado por Deleuze e Guattari, longe de ser simplesmente ‘subversivo’, também concerta o modo de operar (militar, econômico e politico-ideológico) do capitalismo contemporâneo”.55 Assim, Sabeth Buchmann e Max Cruz terminam seu livro sobre Cosmococa “aceitando as observações de (Suely) Rolnik”. Trata-se do que Rolnik escreveu em “Geopolítica da cafetinagem”, onde ela diz: Esta mesma singularidade que tanto fortalecera os movimentos contraculturais no Brasil, agravou por outro lado os efeitos da clonagem dos mesmos operada pelo neoliberalismo. O know how antropofágico dá aos brasileiros um jogo de cintura especial para adaptar-se aos novos tempos. Neste país, ficamos embevecidos por sermos tão contemporâneos, tão à vontade na cena internacional das novas subjetividades pós-identitárias, de tão bem aparelhados que somos para viver essa flexibilidade pós-fordista.

“O capitalismo também é tupinambá”56, escreveu Rolnik em outro texto. Seria, então, o “capitalismo (que) faz-se antropófago”, devorando a própria antropofagia e suavizando sua radicalidade e caráter emancipatório. Seguindo mais ou menos essas reflexões, as organizadoras do seminário sobre antropoemia no Instituto de Arte da Uerj problematizaram: diante de um sistema que “tudo devora e que a tudo se adapta”, pergunta-se: “não seria o momento de rever a ideia de antropoemia como uma práti-

54 Oiticica, Hélio. A trama da terra que treme. In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Op. cit., p. 152. 55 Zizek, Slavoj. Introduction. Slavoj Zizek presents Mao on practice and contradictions. London-New York: Verso, 2007, p. 27 56 Em O Brasil da virada, da coleção Panorama Histórico Brasileiro (Itaú Cultural). Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=NDkGVPmYjh0&list=PL2CCF74F3B149F96D &index=14&feature=plpp_video, devo a Amanda Bonam a indicação.

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ca de resistência face a um capitalismo antropófago”? Enfim, “diante da devoração generalizada a que somos constantemente submetidos – e do qual a institucionalização da arte é um sintoma – qual o lugar do vômito, da excreção, do não?”57 Na realidade, o capitalismo contemporâneo não é antropofágico, mas parasitário. A relação entre antropofagia e antropoemia não é dialética, sendo que uma, diremos em termos um pouco esquemáticos mais eficazes para a ruptura que queremos afirmar, é uma política da vida (uma biopolítica) e a outra, um poder sobre a vida (um biopoder).58 Dito de outra maneira, apreender hoje como funcionam as formas antropofágicas e antropoêmicas significa apreender como funciona o capitalismo contemporâneo. Nessa direção, a relação entre antropofagia (as formas de relação social que absorvem a alteridade que são “inclusivas”) e antropoemia (as formas de relação social que expulsam o “outro” para fora do corpo social, que são excludentes) está hoje em uma modulação que mistura continuamente a exclusão e a inclusão. Como já vimos, a relação entre antropofagia (inclusão) e antropoemia (exclusão) não é dialética, no sentido que não se desenvolve de maneira binária e não tem nenhuma síntese necessária. Aliás, o que caracteriza o capitalismo contemporâneo é mesmo o fato de essas duas dimensões, essas duas modalidades, se articularem hoje não mais por separação, mas por modulação, uma modulação típica do hibridismo brasileiro. É dentro dessa modulação (e não nas duas pontas) que precisamos procurar respostas e algumas pistas para a crítica das relações de poder. Ao mesmo tempo, essa modulação de inclusão e exclusão funciona como uma armadilha, exatamente nos termos em que o fôlder do evento desenvolve: o capitalismo contemporâneo é tão inclusivo até o ponto de parecer antropofágico e, ao mesmo tempo, a resistência parece fixar-se nas margens do “não”, da recusa do outro, da antropoemia. Suely Rolnik, que usou a antropofagia política e poética de Oswald em termos de “subjetividade antropofágica” desde a primeira metade da década de 1990,59 percebeu essa armadilha e se propôs a resolvê-la abrindo o conceito de antropofagia a duas dimensões opostas: inicialmente, ela falou de antropofagia “baixa” e antropofagia “alta” e em seguida fez a dis57 O Brasil da virada. Op. cit. Grifos das autoras. 58 Pelbart, Peter Pál. Poder sobre a vida, potências da vida. Vida capital, ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. 59 O texto de referência é a palestra realizada no Encontro Internacional Rio de JaneiroSão Paulo, 10 a 14 de junho de 1996. Rolnik, Suely. Schizoanalyse et anthropophagie. In: Alliez, Eric. Gilles Deleuze, une vie philosophique. Paris: Synthélabo, 1998, p .463476. (Les Empêcheurs de Tourner en Rond).

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tinção entre “antropofagia ativa” e “reativa”. Resumindo ao máximo essas distinções para dentro de nossa abordagem, diremos – com as próprias palavras de Rolnik – que a antropofagia “alta” ou “ativa” seria aquela capaz de “criação a partir do mergulho no caos” ao passo que a “baixa e reativa” seria a antropofagia como “denegação do caos e recusa de nele mergulhar” e, pois, como “mero consumo de mundos disponíveis no mercado das ideias e das imagens”. Contudo, essa não nos parece uma “solução” adequada a uma perspectiva crítica. O problema não está na antropofagia política, mas nas dimensões ambíguas (e não ambivalentes) da crítica que volta a fazer da arte um terreno de segregação dos valores. O que não funciona e é ambíguo é o terreno que Suely Rolnik indica como saída: os coletivos de artistas que, segundo ela, teriam “optado por distanciar-se do terreno (do circuito internacional da arte)”, em que o “governo dessas derivas [...] não é abandonar a arte, mas exiliar-se de seu ‘sistema’”.60 Assim, no meio dessa ambiguidade de uma crítica do sistema da arte que na realidade é apenas a tentativa de propor uma doxa outra mas sempre interna à segregação da arte, todos os coletivos brasileiros (de São Paulo) que Suely cita foram parar – dez anos mais tarde – em uma vergonhosa exposição sobre movimento dos sem-teto na inauguração de um dos maiores dispositivos de gentrificação do centro do Rio de Janeiro (o MAR)61 sem que nenhum dos “novos críticos” se pronunciasse diante disso. Longe de fugir das armadilhas do capitalismo flexível e das modulações da sociedade de controle, a separação do conceito de “antropofagia” em dois termos opostos (antropofagia alta e baixa, criativa e reativa) apenas serve para enfraquecê-lo e reduzi-lo a elemento interno do determinismo do capital e de suas mediações que, como veremos, tornam-se “necessárias”. Uma das razões disso é o fato de se manter a dicotomia caos versus ordem, quando na realidade, como Oiticica já escreveu, no caos não apenas há um ritmo, mas ele é a condição de todo ritmo, de toda ordem: é mergulhando na dança (no samba), diz ele, que encontramos o ritmo de uma “força individual e coletiva” na qual esses dois termos são inseparáveis. A procura de “um ‘ato total de vida’, irreversível” é para Oiticica a procura por um “desequilíbrio” como base do “equilíbrio do ser”.62 É a mesma coisa que diz Althusser em sua “filosofia do encontro”, quando nos fala da chuva de átomos e dos encontros 60 Rolnik, Suely. Lygia Clark recomenda: evite falsos problemas. Em Borjas-Villel, Manuel (org.). 10.000 francos de recompensa (El museo de arte contemporáneo vivo e muerto). Congresso da ADACE, Baeza, 15 a 19 de dezembro de 2006. Anais publicados em 2009, p. 73. 61 Rolnik cita os coletivos na nota 28. Ibid., p. 73. 62 Oiticica, Hélio. A dança na minha experiência. (1965). In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p.75-77.

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(clinâmen) aleatórios: é na materialidade do caos e no acaso que a ordem se constitui. A origem está no desvio e não na razão e, ao mesmo tempo, é preciso que ela alcance a duração, ou seja, uma ordem.63 Dizer que o capitalismo flexível é um “zumbi antropofágico” ou “tupinambá” acaba assumindo sua capacidade de modulação como um esvaziamento dos conflitos, exatamente como Suely Rolnik acaba fazendo no mesmo artigo, afirmando como “necessárias (a) negociação entre os interesses da economia capitalista e as exigências poéticas da criação artística”.64 Necessário seria então que os coletivos de artistas que apoiaram os sem-teto de São Paulo aceitem ir ao museu (o MAR) fazendo com que os sem-teto tenham sido apenas o ponto de apoio para eles entrarem no sistema da arte. Ao contrário, parece-nos que o interesse do conceito oswaldiano de “antropofagia” política está mesmo, por um lado, na dimensão afirmativa de uma alteridade radical diante do capitalismo e, por outro, na conexão que ele opera entre essa radicalidade não moderna brasileira (do Sul) e as alternativas da modernidade europeia. Ou seja, Oswald – contrariamente a esses usos – assume, por meio da antropofagia, o ponto de vista de uma alteridade ameríndia que lhe permite romper radicalmente com o Ocidente (e em particular com o positivismo e o iluminismo do marxismo ortodoxo do Partido Comunista) e ao mesmo tempo continuar trocando os pontos de vista com a alter-modernidade europeia, aquela das lutas e do poder constituinte, aquela que está também na resistência de Stalingrado contra o racismo nazista.65 Precisamos, pois, manter a díade que Claude Lévi-Strauss propôs entre “antropofagia” e “antropoemia” e para isso precisamos relativizar e rever não o conceito de antropofagia, mas aquele de antropoemia. Não há arte sem resistência. “Só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: nossa realidade”, diz Hélio Oiticica.66 Jean-Luc Nancy vai na mesma direção: “não há ser sem dobra, não há nada antes da dobra”. A criação continuada é aquela da luta e da resistência. “O sentido está no caminho e nunca se separa dele”.67 Com Oiticica a “dobra” se desdobra numa obra que é ação: o “vestir” que se contrapõe e articula ao “assistir”.68 63 Althusser, Louis. Le courant souterrain di matérialisme de la reencontre. Écrits philosophiques et politiques, Tome II (Textes rénunis et presentés para François Matheron). Paris: Stock/Imec, 1994, p. 554. 64 Rolnik, Suely. Políticas da criação na deriva transnacional. Cadernos de Subjetividade. São Paulo, 2010, pp. 14-21. 65 Um livro fundamental de referência: Negri, Antonio. Poder constituinte. As alternativas da modernidade. Trad. de Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DPA, 2002. 66 Oiticica, Hélio. Posição e Programa (1966). In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Op. cit., p. 85. 67 Jean-Luc Nancy em Alliez, Eric. Gilles Deleuze, une vie philosophique. Op. cit., p. 121. 68 Oiticica, Hélio. Bases fundamentais para uma definição do Parangolé (1964). In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Op. cit., p. 74. 100


Mas, será que sabemos o que são as lutas ou o que significa hoje lutar? Quais são as lutas que nos permitem ir para além da modulação e do controle? Se é a luta que define a clivagem entre brasilianização do mundo (inclusão modulada dos pobres na qualidade de pobres, pela fragmentação de todo o mundo e de todo o tempo sob o regime de acumulação capitalista, subsunção real) e devir-Brasil do mundo (recomposição dos fragmentos como singularidades que constituem “um novo povo e uma nova terra”, uma multidão), podemos reformular esse conflito como sendo aquele que atravessa a figura do “pobre” e que Oswald de Andrade definia como a luta que opunha os “bárbaros tecnizados” e os “novos trogloditas”.69

Brasilianização contra Mundobraz Uma maneira para escapar dessas armadilhas é reformular essa oposição, nos termos da alternativa entre duas diferentes dimensões do tempo e tudo isso dialogando com Oswald. Encontramos essa possibilidade na crítica deleuziana do tempo, assim como é apresentada e enriquecida por Peter Pál Pelbart, ou seja, como um “tempo que bifurca continuamente rumo a um sem-número de futuros”.70 Assim, numa “rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”,71 trata-se de optar pela alternativa entre o tempo linear do progresso eurocêntrico e antropocêntrico e outra dimensão do tempo, antropofágica: não mais Chronos, mas o devir. “A árvore não é verde, ela verdeja”,72 o sentido não está no atributo mas no verbo, na ação. É da mesma maneira que escreve João Guimarães Rosa quando diz: “Então, eu viro uma onça mesmo, hã. [...] De repente, eh, eu oncei...”73 Chronos é o tempo do “negócio”, ou seja, da negação do ócio (como dizia Oswald) pela disciplina e pelo controle do trabalho, da maldição do trabalho. É o tempo do índio que sai da floresta para o campo e para a cidade e vira camponês ou proletário ou constituindo os grandes contingentes

69 Sobre a figura do “bárbaro tecnizado” e a polêmica índio versus pobre, ver o belo verbete “General Intellect”. Global/Brasil, n.16. Disponível em: http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=1236. 70 Pelbart, Peter Pál. Le temps non-réconcilié. In: Alliez, Eric. Gilles Deleuze, une vie philosophique. Op. cit., p. 90. Para uma apresentação mais ampla ver Pelbart, Peter Pál. O tempo não reconciliado. Imagens do tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva, 2007. 71 Pelbart, Peter Pál. Le temps non-réconcilié. In: Alliez, Eric. Gilles Deleuze, une vie philosophique. Op. cit., p. 91. 72 GIL, José. Métamorphose du corps. Op. cit., p. 71. 73 Citado por Haroldo de Campos, “A linguagem do Iauaretê”. In: Rosa, João Guimarães. Ficção completa, vol. I. Cotia, SP: Nova Aguilar, 1994, p. CCXLI. 101


da “pobreza brasileira” e de seus “excedentes relativos da população”.74 É tempo da periferia que vai para o centro, indo do subdesenvolvimento para o desenvolvimento ou para a população excedente. É o tempo do “Brasil, país do futuro”: seu caminho já está desenhado e não há nenhuma escolha a fazer, apenas “acelerar [...] o crescimento” nesse rumo predefinido e determinista. Oras, referindo-nos ao contexto atual da globalização capitalista, chamamos esse tempo de “brasilianização” do mundo e [...] do Brasil. O futuro se tornou Brasil. Indo para o “centro”, modernizando-se, industrializando-se, o Brasil se dirige rapidamente rumo àquelas condições de precariedade do trabalho, fragmentação social e violência civil que caracterizam cada vez mais as economias centrais em função de modo de funcionamento do regime de acumulação do capitalismo contemporâneo. Aqui, como dissemos e lembraremos, acontece a inclusão dos excluídos como tais, segundo uma modulação que parece antropofagia (“baixa” ou “reativa”) mas na realidade é uma antropoemia, pois essa “inclusão” modula a exclusão para dentro da sociedade de controle: entre subordinação do trabalho e nova escravidão, nas linhas flexíveis da precariedade. Diante e para além dessa linearidade cronológica do “progresso”, podemos pensar um tempo enredado, misturado, mestiçado, antropófago: “mais terra do que rio, massa mais do que fluxo, coexistência mais do que sucessão [...] variação infinita mais do que ordem”.75 É o tempo do devir, da multiplicidade dos agenciamentos homem-instrumento-animal, cultura-natureza. Esse tempo é aquele que Oswald definia como sendo tempo do ócio e que nós diremos ser o tempo da recusa, da recusa do trabalho e de sua disciplina. Fabrício Toledo escreve: “Fugir, desviar, mentir, recusar, silenciar, paralisar, ceder, esconder, esquivar. Toda uma série de gestos que diríamos negativos, que nos parecem mais um recuo do movimento do que propriamente uma ação”.76 Chamamos essa outra dimensão do tempo de “Mundobraz”,77 devir-Brasil do mundo e devir-mundo do Brasil, ou seja, de uma inclusão que é ao mesmo tempo êxodo (recusa) e autovalorização (transmutação dos valores), ou seja, um duplo processo: a produção de novos valores e, pois, de novos direitos, dentro e contra o capitalismo. Aqui, a “inclusão” é constituinte e capaz de descentralizar, a partir de uma troca de pers74 Guimarães, Alberto Passos. As classes perigosas. Banditismo urbano e rural (1982). Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p. 32. 75 Ibid., p. 95. 76 Toledo, Fabrício. Recusar. Global/Brasil, n. 16, 2012. Disponível em: http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=1263 77 Permito me indicar aqui. Cocco, Giuseppe. Mundobraz: o devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2009.

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pectiva, o eurocentrismo e sua racionalidade instrumental e totalitária (a racionalidade do capital). Na realidade, “brasilianização” do mundo e “Mundobraz” estão juntos, na mesma modulação. O que faz a diferença? Onde encontramos o clinâmen, a clivagem ética? Onde está a verdade? Sabemos que Michel Foucault dizia que a resposta estava do lado da “coragem da verdade”, nas lutas. Assim, falando da tônica geral das análises marxistas, ele dizia: “(o que chama minha atenção é que sempre se fala de ‘luta de classes’, mas há uma palavra dessa expressão à qual se presta menos atenção, a ‘luta’”.78 Numa outra entrevista, Foucault enfatiza: “É tão somente na própria luta que as condições positivas se desenham”.79 Em um debate com Noam Chomsky, quando este define a luta como uma procura de justiça (ou seja, como afirmação de uma verdade que seria independente do processo de sua procura), Foucault disse que, ao contrário, precisamos pensar a justiça como sendo essa luta.80 Como dissemos, em suas últimas aulas, a “verdade” está atrelada à “coragem”, ou seja, a uma vida (bios) entendida como mise à l’épreuve de soi-même e “combate nesse mundo e contra o mundo”.81 Em termos parecidos, Gilles Deleuze dizia que sem resistência não há criação e, “fugindo”, precisamos “pegar uma arma”. É nesses mesmos termos que Oswald de Andrade se referia à mestiçagem universal a partir daquela que ele definiu como a “Stalingrado jagunça de Canudos”.82

78 Foucault, Michel. Dits et écrits, 1976-1988 (II). Paris: Gallimard, 2001, p. 268. 79 Ibid., p. 349. 80 Foucault, Michel. Dits et écrits III. Paris: Gallimard, 2001, p. 471-512. 81 Foucault, Michel. Le courage de la vérité. Le gouvernement de soi et des autres II. Cours au Collège de France, 1983-1984. Paris: Gallimard, Seuil, EHESS, 2009, p. 310. 82 “Atualidade dos Sertões”, em Oswald de Andrade, Feira das Sextas, São Paulo, 2000, p. 110. Ver também Giuseppe Cocco, Mundobraz, Capítulo 4, cit.

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sessão 2

Tropicália. A pureza é um mito


A ambivalência da arte depois do mito da pureza Luis Camillo Osorio Tenho visto, acompanhado, com muita aflição, às vezes muito susto [...] mas, num segundo momento, eu me sinto aliviado por ver esta insurgência popular. Me dá indicação de que a transformação, o tempo-rei continua Rei. Tudo transformando, transcorrendo, as coisas mudando, novas interrogações, novas questões, novas dificuldades analíticas. Eu estava vendo os protestos na TV ontem e pensando: o que é isso? Essa manifestação junta a rave com o arrastão. São as duas coisas ao mesmo tempo. É a rave-arrastão. Pronto, é um verso, um condensado poético. As novas palavras de ordem juntam ao mesmo tempo a oração e a praga. Gilberto Gil [ junho de 2013]

Este pequeno texto que se segue é o desdobramento de minha participação como debatedor neste seminário. Incorporei nele coisas além daquelas faladas no calor da hora, apropriando-me de outras discussões, de outras mesas, mas também podendo fazer uma leitura mais cuidadosa do texto de Celso Favaretto ali apresentado, que não tinha tido oportunidade de fazê-lo àquela altura. Muito se tem discutido ultimamente sobre Hélio Oiticica, predominantemente do ponto de vista da história da arte e da cultura brasileira. Queiramos ou não, ele entrou para o cânone da história da arte ocidental. Neste seminário foram tentadas outras leituras: mais políticas, mais erráticas, menos previsíveis. Não que a previsibilidade seja um problema, mas carece de páthos e de risco.


A apropriação de artistas de vanguarda pelo museu causa sempre alguma inquietação. Essa apropriação remete ao próprio esvaziamento da noção de vanguarda. Como devolver à vanguarda algum desafio? O questionamento do sistema da arte, das categorias tradicionais, do que se almejava como (outro) lugar da arte no escopo maior da cultura, sua tarefa crítica e transformadora, tudo isso era inerente ao fazer experimental das vanguardas, implicando novas maneiras de ser para o artista, a obra e o público. A arte era pensada como atrito, exigindo respostas diferentes por parte de quem dela se aproximava. O risco de aniquilamento do incômodo é imenso quando esse tipo de “artista/obra” entra e se adequa às instituições – ao museu e à história. Isso traz consigo desafios inadiáveis nos obrigando a deslocar os contextos, repensar as instituições, atualizar o incômodo. Não se trata de recusar o museu. Caberia entrar sem se acomodar? Tarefa ingrata. A frase de Hélio Oiticica estampada no interior do penetrável tropicália – “A pureza é um mito” – é uma síntese do seu programa ético-estético iniciado com os parangolés em 1964. A idealização do fora é uma forma de pureza. Mesmo sendo barrado do MAM-Rio em 1965, Oiticica permaneceu ali, frequentou o bar e as exposições e propôs a curadoria da “Nova objetividade brasileira”, em 1967 (exposição que nos interessa sobremaneira aqui). Enfrentar o mito da pureza trazia um sentido ético, pois carregava uma espécie de imperativo existencial saído da relação necessária do indivíduo com a alteridade, com as diferenças inerentes ao coletivo. Explicitava também um compromisso estético ao apostar em uma sensibilidade e uma poética marcadas pela contaminação com o que se mantinha excluído das normas do bom gosto. Essas contaminações indicavam um deixar-se afetar e uma produção de afetos e efeitos que só interessariam se transformassem os saberes e as identidades instituídas. Nesse aspecto, a arte experimental que se fazia no Brasil naquele limbo pós-golpe não se encaixava nos lugares de fala estabelecidos, pelo contrário: buscava produzir outros lugares (e formas de vida e possibilidades de mundo) a partir de falas que não tinham lugar. Entre os parangolés serem barrados na exposição Opinião 65 e o penetrável tropicália aparecer na exposição “Nova objetividade brasileira”, formou-se não só na obra de Oiticica, mas em parte significativa da produção cultural brasileira de vanguarda, uma certeza de que resistir à ditadura seria, mais que tudo, um exercício experimental de liberdade. Frase-conceito de Mário Pedrosa que nunca pode ficar de fora quando se fala desse momento, mesmo sabendo-se que a repetição cansa. Exercitava-se a experimentação em nome da liberdade, uma experimentação que pretendia ser, simultaneamente, artística e política.

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Como apontou Favaretto, no texto apresentado no seminário e aqui publicado, as estratégias visando compor um trabalho de inovação artística e de resistência à ditadura eram marcadas pela ambivalência, proveniente da articulação por justaposição de materiais de proveniência diversas, sincréticos, mobilizando nas composições uma atitude de fuga das polarizações, estéticas e ideológicas, para enfrentar as indeterminações do que Hélio Oiticica chamou de “Brasil diarreia” e Décio Pignatari e depois Gil e Torquato, “Geleia geral brasileira”.

O desafio aqui é positivar a ambivalência, como superação das polarizações sem fugir dos conflitos e sem cair na convi-conivência que seria a facilitação (ética) da ambivalência (estética). O conflito sem polarização é a própria potência do poético (ato) e do estético (afeto) sem a mediação do possível mimético e/ou ideológico – com os riscos, aí implícitos, de não ter o endereçamento e o efeito previstos. O “vocês não estão entendendo nada” dito por Caetano em um dos festivais da canção da época resume o conflito que transcende a polarização. Já a polarização sem conflito seria a arte engajada do CPC – com todo respeito à luta deles. Toda a questão da ambivalência aponta para o que podemos esperar como efeito político do fazer artístico. Em que medida a indeterminação desse efeito é a condição ambivalente de experimentar o experimental, de apostar na invenção sem amarras ideológicas (ou sem lugar de fala)? Outra vez Favaretto: “da maior importância foi a atitude de deslocar os modos vigentes de interesse pelo coletivo, de expressão do inconformismo social na experimentação artística, pelo ultrapassamento do mero interesse pelas mitologias, valores e formas de expressão das experiências populares”. O projeto ético-estético dos parangolés foi o condensado poético de Oiticica, sua possibilidade de produzir ali uma rave-arrastão. Sem caber no museu, ela entrou na história da arte, sendo, acima de tudo, signo político do tempo-rei, que transformou (e segue transformando) os modos de ser da arte e da cultura brasileira. Transformação ambivalente que muda e não muda o Brasil-diarreia.

Luiz Camillo Osório Professor na PUC-Rio.

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Penetrรกvel Rio de Janeiro: seja gari, seja herรณi* Barbara Szaniecki Designer, professora adjunta e pesquisadora da Esdi/Uerj

* tEXTO ESCRITO COM Talita Tibola, Pรณs-doutoranda na Esdi/UERJ


A pureza é um mito. A inscrição dentro do penetrável Tropicália é o ponto de articulação dessas reflexões e virá sob os holofotes dos megaeventos e na companhia dos garis em luta do Rio de Janeiro. De certa forma, essas reflexões articulam o luxo e o lixo da cidade a partir de duas imagens emblemáticas: a do gari Sorriso fazendo propaganda da cidade do Rio de Janeiro nas Olímpiadas de Londres em 2012 e a greve dos garis em pleno carnaval carioca de 2014. Naquela ocasião, as toneladas de lixo espalhadas por toda a cidade geraram um gari-site-specific. Entre o primeiro e o segundo evento – e suas respectivas imagens emblemáticas – estouraram as manifestações de junho de 2013 com suas reivindicações por transporte, saúde e educação pública de qualidade. Os meses se passaram e as manifestações multitudinárias foram aos poucos se reduzindo. Contudo, no início de 2014 assistimos a um fenômeno novo. Ao sair da fábrica e se estender por todo o espaço urbano, a greve dos garis no Rio de Janeiro se fez “greve metropolitana”1 e, nesse movimento, ganhou uma visibilidade incomum. O cuidado com o lixo é, de fato, fundamental para a vida nas cidades, mas esse cuidado é tão invisível que somente o não cuidado pôde torná-lo visível. O gari-site-specific alcançou essa visibilidade. Ele revelou a cidade lixo por trás ou por baixo da cidade luxo dos circuitos globais, incorporada pelo gari Sorriso no fechamento das Olimpíadas de Londres. Revelou o verso do cartão-postal, o avesso da fantasia de carnaval. 1

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NEGRI, Antônio. Dispositivo metrópole. Disponível em: http://bit.ly/1fPoh2U


A essas duas primeiras imagens acrescentamos aqui uma terceira: a bandeira Seja marginal, seja herói de Hélio Oiticica. Para além da mera homenagem a alguém que ele conhecera, ela afirma a marginalidade de certos modos de vida como resistências assim como a própria posição de HO às margens do sistema da arte. Com efeito, em entrevistas, ele dizia se sentir mais à vontade com moradores da Mangueira ou com pessoas na rua do que com artistas e outras figuras do meio artístico. Uma posição às margens não apenas pelo fato de HO ter se deslocado até as margens da cidade e de ter convivido com aqueles tidos por boa parte da sociedade como “marginais” – os que vivem fora da lei, mas também moradores de favelas que eram considerados como tais – mas por ele ter se colocado às margens do sistema artístico de diferentes modos. HO era marginal porque não centralizava a autoria e sim estimulava a participação; marginal porque não produzia obra e sim ambientes e programas; marginal porque não diluía, não repetia, não retomava, não voltava às origens; marginal porque experimentava. Existiriam nessa “marginalidade” de HO, na maneira singular como ele colava a sua arte ao seu modo de vida, elementos para pensar uma política em que a crítica aos governos, à representação e à corrupção não fosse entendida como demanda de uma pureza essencial? Existiriam elementos para pensar uma política marginal no sentido de uma política experimental em tempos tão fechados à experimentação? Depois de um ciclo intenso de protestos em 2013, vivemos em 2014 uma Copa do Mundo e eleições presidenciais. E desde 2015, estamos vivendo mais do que uma recessão. Vivemos uma ressaca generalizada com criminalização de ativistas, cooptação de movimentos, manipulação não apenas da grande mídia como também das redes sociais e mistificação de representantes políticos e partidos. Perguntemos a HO: como seguir experimentando? Para além das mobilizações para defender a política instituída e para além do imobilismo de alguns movimentos em luto por junho de 2013, nasceram algumas iniciativas autônomas como a dos Círculos de Cidadania e, em particular o Círculo Laranja, uma iniciativa dos garis em luta do Rio de Janeiro. A pureza é mesmo um mito. Uma política experimental não deve fazer concessões nem a mitos nem a mistificações. E por isso aqui pretendemos aproximar algumas questões artísticas de HO e questões políticas de nosso momento, entre elas as reivindicações dos garis do Rio de Janeiro em dois pontos que não exaurem outras possibilidades de aproximação: em primeiro lugar, o parangolé Gari e a questão da participação e, em seguida, o penetrável Gari-cidade e o Programa Ambiental.

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Parangolé Gari e a questão da participação: corpo e dança Para Hélio Oiticica, os parangolés são estandartes e capas, sobretudo capas. Mais do que ser carregado, o parangolé deve ser vestido. E, uma vez vestido, por sua estrutura em camadas multicoloridas, o próprio parangolé “pede” ao corpo para se movimentar. Em suas “anotações sobre parangolé” (1965), HO fala do próprio como obra inseparável do corpo, como estrutura inseparável da ação: é uma “estrutura-ação” mas, sobretudo, “uma estrutura ambiental”. O Parangolé revela então o seu caráter fundamental de “estrutura ambiental”, possuindo um núcleo principal: o participador-obra, que se desmembra em “participador” quando assiste e “obra” quando assistida de fora nesse espaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-obra ao se relacionarem num ambiente determinado (numa exposição, por exemplo) criam um “sistema ambiental” Parangolé, que por sua vez poderia ser “assistido” por outros participadores de fora.2

Ao vestir o parangolé, o espectador se torna ao mesmo tempo parte da obra, participante (participador, segundo HO) e até mesmo coautor ou coprogramador da obra porque, mais do que obras, HO elaborava programas. E, mais precisamente, programas ambientais com base na participação. Vemos então que a “participação” é chave na mudança da relação entre o artista e o seu público e, possivelmente, também entre representantes políticos e nós, cidadãos. Essa demanda de participação que HO formulava na arte nos anos 60 e 70, foi formalizada como “participação popular” na Constituição de 1988, foi revitalizada nos Fóruns Sociais Mundiais – o primeiro aconteceu em Porto Alegre em 2001, cidade pioneira no orçamento participativo3 – mas hoje na qualidade de cidadãos somos chamados a participar apenas para legitimar decisões já tomadas. O desafio do nosso momento é realizar uma política com menos representação e mais participação ou mesmo coprogramação das campanhas, dos programas dos partidos, das obras a serem realizadas, dos projetos e processos de cidade por parte das pessoas. HO não desejava uma “arte experimental” como categoria e sim assumir o experimental. De forma semelhante, desde junho de 2013, ruas e redes reivindicam mais do que uma 2 OITICICA, Hélio. Anotações sobre o parangolé (1965). In: OITICICA FILHO, Cesar (org.). Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p. 73 e 74. 3 Obrigada a Alexandre Mendes que fez uma ótima reconstituição do tema da participação em recente seminário da Universidade Nômade.

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“política participativa”. Assumir o participativo significa ir além de simples consultas pontuais com fins de legitimar o poder. Como estender a “política” proposta por HO não apenas no campo da arte e seus movimentos, como também a partir das lutas concretas nas e das cidades? Como articular os experimentos-parangolé de HO e as lutas dos garis? A cor surge como sensível articuladora. E de fato, os parangolés são amarelo-laranja-vermelho. E laranja são os uniformes dos garis. O parangolé-estandarte de HO e a vassoura dos garis também dialogam por meio de sua estrutura semelhante. A forte relação formal dos parangolés-capas de HO com as vestimentas dos garis, dos parangolés-estandartes de HO com as vassouras dos garis faz com que ao avistar um gari varrendo as ruas, apesar da dureza do trabalho, não seja possível não pensar nos passistas sambando na Mangueira. A potência do corpo e do movimento os une. Tudo isso tem impacto estético mas não parece suficiente para afirmar a relação política que parece unir o programa ambiental de HO ao dos garis. Retomemos aqui a greve dos garis de 2014. Depois da greve, garis foram demitidos e substituídos por máquinas. Após muitas rodas de conversa, chegaram à conclusão que não faria sentido reivindicar um tipo de trabalho realizável por máquinas. Ora, garis não são máquinas, são humanos apesar de suas condições de trabalho serem próximas às da escravidão.4 Hoje, eles lutam para saírem desse embate com as máquinas e serem reconhecidos como “agente de saúde ambiental”. Como assim? Com efeito, os garis já são responsáveis pela coleta de lixo, pela varrição de ruas, pela limpeza de bueiros e, eventualmente, pela poda de árvores. Todo esse trabalho é de proteção ambiental. Ele evita a contaminação das coleções hídricas dos solos, controla vetores e pragas, evita inundações. Ou seja, esse trabalho garante a salubridade das habitações e dos territórios.5 Para realizá-lo, os garis precisam ser qualificados e se tornam, por sua vez, qualificadores dos cidadãos. Eles têm um importante trabalho de educação a ser realizado com a população. Podem estimular a participação na coleta seletiva, por exemplo, mas não apenas isso. Sua presença e ação cotidiana nos espaços urbanos podem ativar as relações entre moradores, transeuntes e poderes públicos. Com essa participação, reaproximamos novamente os garis de HO. Mas ainda é pouco. O que HO desejava com a transformação do “assistir” num “vestir” a obra e, dessa maneira, na 4

Fui demitido porque saí da senzala. Disponível em http://outraspalavras.net/ blog/2015/05/04/fui-demitido-sai-da-senzala/

5 Ver artigo Garis: trabalhadores da saúde de Viviane Tavares (EPSJV/Fiocruz). Disponível em http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/garis-trabalhadores-da-saude. Acessado em 23/06/2016.

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transformação do “espectador” num “participador e até mesmo num coprogramador” do “programa ambiental”? E HO insistia bastante nessa ideia de programas, program in process, ou seja, estruturas abertas à invenção, à participação. O que HO procurava romper por meio das suas vivências-parangolés e sistemas ambientais era a própria sociedade do espetáculo com sua relação passiva do consumir objetos, do assistir espetáculo, do contemplar obra ou, se passamos à política numa aproximação livre, do eleger candidatos e do referendar programas prontos. Talvez a superação da crise da representação que vivemos hoje, em parte devida à falta de participação dos cidadãos nos processos de decisão – o que leva à corrupção da própria democracia – passe por outra arte-política com base nas cidades. Hoje assistimos não apenas a uma obra ou a um espetáculo na cidade. Hoje assistimos a nossa própria cidade sendo vendida como imagem e paisagem além de consumida como espetáculo urbano total que, sempre mais, circunscreve a experiência urbana. Nos passos de HO, levantemos como hipótese a programação de uma cidade de ambientes como resistência a uma cidade de megaeventos. Nela, os garis teriam um importante papel a desempenhar. Para além dos parangolés, quem sabe os penetráveis nos indiquem caminhos...

Sistemas ambientais, penetrável Magic square e o penetrável Gari-cidade #RJ2016 Quando se fala em penetrável, pensa-se de imediato em Tropicália composta de dois penetráveis: PN2 (1966) – Pureza é um mito e PN3 (1966-1967) – Imagético, ambos articulados em torno de plantas, areia, araras, poemas-objetos, capas de Parangolé e um aparelho de televisão. Uma década depois, HO se dedica ao penetrável Magic square. Pensado para a Bienal de São Paulo de 1977, ele permaneceu sob a forma de texto, planta baixa, desenho técnico, amostras e uma gravação (videoteipe) até ser montado em Inhotim.6 E marca a investida de Hélio Oiticica no espaço público. Numa entrevista a Lygia Pape em 1978,7 HO fala dessa investida que diferencia Magic square dos penetráveis realizados anteriormente:

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Disponível em http://www.inhotim.org.br/inhotim/arte-contemporanea/obras/invencao-da-cor-penetravel-magic-square-5-de-luxe/.

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COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (org.). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 181.

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novamente ouço falar em retomada. Vou falar em primeiro lugar em termos gerais para situar o problema da chamada retomada. Essa maquete, que estou preparando para ser realizada aqui, ela não tem nada de retomada. Essas propostas não têm nada de voltar atrás. Por exemplo, uma delas era a descoberta do espaço urbano, e somente nesse caso seria uma retomada pois teria partido da maquete Cães de caça,8 que ainda seria uma coisa isolada do urbano, um projeto ideal, como se fosse aquilo que Mário Pedrosa chamava de Invitation au voyage baudelairiana, no urbano. Aquilo era para ser feito no espaço urbano, é claro, mas era uma coisa isolada, como se fosse uma Invitation au voyage. Nestas outras obras não ocorre isso, é como se fosse a descoberta do espaço urbano mesmo, ou do espaço público. Mesmo que seja feito em um parque, pois parque ainda é um espaço urbano. Eu uso o nome de Penetrável ainda, inclusive eles não têm nada a ver com a Tropicália.

É como se HO desejasse uma experiência urbana mais concreta, mais pé no chão da cidade, no cinza ainda que tensionado pelo verde. Square pode ser traduzido não apenas como “quadrado” mas também como “praça”9 que, neste caso, se concretizava como uma área de 25 x 25 m2 rodeada por grama. Alguns críticos associaram o penetrável aos “quadrados” de Klee e Mondrian, mas HO insistiu de que se tratava de um quadrado-praça-mágica.10 A livre interpretação como quadrados por parte dos críticos nos incita a livremente insistir na experimentação do espaço urbano. O que menos interessa no quadrado-praça-mágica é a sua forma, no caso, quadrada. O que mais interessa no quadrado é o circular. Gerar circulação na praça requer algo da (des)ordem da magia. Sabemos que HO é um leitor dos situacionistas e, em particular, de Guy Debord. Conhecia bem as críticas à sociedade do espetáculo assim como as propostas de construção de situações e de ambiências por meio 8

Cães de caça é composto de cinco penetráveis, o “Poema enterrado”, de Ferreira Gullar, e o Teatro Integral, de Reynaldo Jardim.

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“É difícil fazer uma descrição sem ver. Chama-se Magic square. O nome tem de ser em inglês porque square quer dizer ao mesmo tempo quadrado e praça.” COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (org.). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 185.

10 “Continuando a descrição, rodeando essa área de 25 x 25 metros quadrados colocaria grama. Seria o espaço mesmo da praça e por isso daria o nome de Magic square. Imediatamente, associaram meu projeto como influenciado pelos “quadrados” de Klee ou Mondrian. Acho ótimo que associem, talvez façam parte de uma mesma linhagem, mas minha ideia não é quadrado mágico, o nome do meu projeto é Quadrado-PraçaMágica.” COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (org.). Encontros. Hélio Oiticica. Op. cit., p. 186.

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da psicogeografia. Mas não é em Paris e sim em Nova York que ele contrapõe, numa entrevista concedida a Aracy Amaral em 1977, a sua proposta de participação às práticas artísticas americanas que permanecem ligadas à representação: Eu não quero fazer coisas que as pessoas vejam como se fosse uma exposição, mesmo que seja do lado de fora. Eu acho que os americanos fizeram isso, aquelas cortinas do Christo, não sei o quê, você vai para a natureza para ver uma exposição.11 Aracy menciona que a grande contribuição da década de 1960 foi mesmo a participação. E HO responde: Isso [a participação] eu acho que é muito difícil de entender aqui porque tudo em Nova York, mesmo o espaço urbano é show, é show-espaço-urbano. Nunca há essa coisa de participação. [...] É tudo cenográfico, a própria rua, você entende, se você faz uma coisa na rua já não tem participação, as pessoas começaram a racionalizar como se fosse um evento [...]”.

Do show-espaço-urbano ao programa ambiental Da Nova York da década de 1970, voltamos ao Rio de Janeiro do ano de 2016. Quais são as possibilidades de participação num Rio de Janeiro de megaeventos, isto é, no show-espaço-urbano que se tornou a nossa cidade? Como SUBverter a exposição de obras e espetacularização total da cidade num programa ambiental? Num potente penetrável RJ 2016? HO abriu caminhos subterrâneos que nos interessa percorrer também. Percorremos a sua trajetória de um Programa Ambiental: dos parangolés aos penetráveis (Tropicália e Magic square). E apresentamos a demanda dos garis de transformação da força de trabalho braçal, facilmente substituível por máquinas, em “agente de saúde ambiental”. É preciso sempre lembrar que a participação que HO reivindicava para a arte é centrada na descoberta do corpo, corpo em movimento de dança. Também é por meio do corpo em movimento, no caminhar e cuidar da cidade, que os garis não apenas reivindicam participação na política como agenciam participação de cidadãos. Ao enfrentar um sindicato que não os representa mais, fazer greve e formular novas pautas, ao informar sobre a importância da coleta seletiva dentre outras informações de cunho ambiental em sentido específico mas, sobretudo, ao cuidar das relações na cidade num sentido ambiental muito mais amplo, aquele evocado por Félix Guattari com suas três ecologias: mental, social e ambiental. E aqui, acrescentamos outras: as ecologias estética e política. A ação dos garis 11 Ibid., p. 144 e 145.

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na cidade tem uma dimensão estético-política. Nela existe de fato uma demanda de visibilização dos invisíveis e de participação na pólis por parte dos sem parte. Ela constitui, nos termos de Jacques Rancière, uma partilha do sensível que o sistema político e também o sistema artístico insistem em ignorar ou reduzir, em suma, marginalizar. Ao escrevermos estas linhas, deparamo-nos com a notícia da parceria entre o artista Carlos Vergara, o designer Zanini de Zanine e o coletivo de agricultura urbana Organicidade na realização de um jardim-labirinto de plantas comestíveis e medicinais no meio do espelho d’água da Cidade das Artes, um dos símbolos da cidade de megaeventos na qual o Rio de Janeiro se transformou. Não poderia a presença dos garis demitidos trazer uma experiência que abrangesse não apenas a contemplação, a qual os autores generosamente nos convidam, mas também o cuidado cotidiano e o conflito necessário à democratização do espaço urbano? A pureza é um mito, nos diz HO. E, acrescentamos, a mistura é ainda uma miragem. Flâneries, derivas, delírios ambulatórios são potentes experiências corpóreas de cidade vindas do campo da arte, da arquitetura e urbanismo. HO – que se sentia mais à vontade na comunidade da Mangueira e com as pessoas nas ruas do que no meio artístico12 e mais à vontade nos mundos subterrâneos do que nas museificações superbrilhantes – certamente concordaria que potentes experiências corpóreas podem vir também das lutas na e da cidade tais como: as lutas pela moradia, das favelas às ocupações; as lutas pela descriminalização da maconha e das drogas; as lutas dos garis pelo seu reconhecimento como “agente de saúde ambiental”. “Luta” aqui não deve ser enquadrada como “militância” e sim apreendida como “proposta estética de uma experiência de cidade”. É mesmo difícil pensar fora do quadro da arte ou do campo acadêmico. Fazer o quadrado circular. Garis têm de fato uma intensa experiência de cidade. Eles percorrem quilômetros em condições extremamente difíceis, a pé, correndo atrás ou pendurados no caminhão de lixo, sem acesso a água ou a banheiro. E sofrem repressão e demissão por reivindicar novas formas de sindicato e novas formas de partido, em suma, por querer criar uma nova política. Os podres poderes – as empresas, os sindicatos, os partidos e tudo isso junto e misturado – têm medo deles porque percebem a potência do seu corpo a corpo com os moradores para além das conversas ocasionais, porque 12 Em entrevista à Aracy Amaral, NY, 1977: “[…] aliás é isso que é todo o destino do meu trabalho, acho que sempre foi esse. Tanto é que já começou com a quebra [?] para a Mangueira em vez de ir a reuniões artísticas. Todo mundo pensa, ninguém entende que eu nunca tava, não ia a exposição alguma, não ia a reunião artística nenhuma. Eu ia todo dia para a Mangueira. Já começa por aí”. COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 153.

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percebem a potência da sua caminhada por toda a cidade para além das carreatas tradicionais. Têm medo da natureza intrinsecamente política do seu trabalho e da natureza intrinsecamente participativa do seu programa ambiental. Hoje, num Rio de Janeiro de megaeventos, um programa ambiental no sentido que HO atribuía ao termo, isto é, um programa em que a relação entre o ator e o espectador assim como a relação entre o representante político e o cidadão eleitor é reconfigurada por meio da participação, ganha corpo num penetrável Gari-Cidade.

Agenciamentos pelo caminho.... Cerca de dois meses atrás, Célio Viana, entre outros garis do Rio de Janeiro, organizou um dia inteiro de atividades para festejar o Dia do Gari e planejar suas reivindicações. Junto com Clorisval Pereira Jr. e Bruno Tarin pensamos em fazer uma proposta para a ocasião especial. Clorisval propôs a realização de uma Barraca dos Desejos dos garis. A nós se juntou Renata Richard e lá fomos para o Parque Madureira montar a barraca cujas estacas usamos para criar uma estrutura de barbantes. Propusemos aos garis que escrevessem seus desejos em cartões laranjas e verdes e, uma vez escritos, os penduramos nos barbantes. Ao longo do dia, a barraca se tornou estrutura multicolorida. Um mês depois, já em meio aos preparos para o seminário internacional Hélio Oiticica para além dos mitos,13 deparamo-nos com essas reflexões de HO: Eu descobri na rua a palavra Parangolé. Tinha um negócio armado que parecia muito com uma tenda que eu estava fazendo. Sabe como? Na área, no caminho para a Mangueira, uma área da Praça da Bandeira, tinha um terreno baldio, assim, junto da parede do trem da Central. Tinha um negócio armado que era assim: quatro estacas de madeira fazendo a coisa, e o cara era um mendigo, ele fez assim, fios de barbante ligando uma estaca a outra inteira. Fazendo uma parede toda de barbantes.”[…] E dentro tinha assim uma aniagem e estava escrito: ‘Esse é o Parangolé… não sei de quê, a única palavra que eu entendi era parangolé, aí eu disse: ‘Aí, a palavra mágica!’.14

A barraca dos desejos que montamos para os garis do Rio de Janeiro se fez parangolé. Parangolé de Hélio, parangolé de Célio. A partir dos car13 Disponível em http://www.hoparaalemdosmitos.com.br/site/. 14 COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 153.

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tões dos desejos, Clorisval realizou uma cartografia em que classificou os desejos dos garis quanto aos atores (garis 40%, sociedade 23,8%, agente de saúde ambiental 19%, Comlurb 11,4%, políticos 5,7%) e aos temas dos desejos (direitos 49,5%, sonhos 43,8% oportunidades 12,3% e mobilização 7,6%). Em seguida, todos os materiais obtidos – cartões dos garis, fotos da barraca, textos de todos nós, cartografia de Clorisval foram reunidos num GariZine – fanzine dos garis – realizado no Colaboratório, junto com Roberta Guizan e André Aranha.

Considerações finais: cidade de ambientes inteiros, cidade do comum Em Dispositivo metrópole,15 ao pensar Nova York a partir da análise que Rem Koolhaas faz dela, Antonio Negri afirma que a metrópole é mais forte que o urbano. A hibridez ou mestiçagem da metrópole é mais forte que a pureza do planejamento urbano. Em outro texto, na resenha que faz do livro Junkspace de Rem Koolhaas,16 Negri afirma: Eu quase rio quando meus companheiros mais próximos me falam, tomando-as como indicações de alternativas, de comunas habitacionais, de jardins e hortos autogeridos, de casas ocupadas multifuncionais, de ateliês culturais e políticos, de empresas de uma Bildung [NT: cultura formativa] comum. O realismo cínico pós-moderno mereceu a minha crítica, mas é justo partir de seu realismo e não se alimentarem mais ilusões sobre o fato que a cidade e a metrópole estejam consignadas ao exercício do biopoder; é justamente a partir desse reconhecimento consciente que me pergunto: o que quer dizer restituir a metrópole à produção biopolítica? Na dimensão da Bigness, não do artesanato, mas do General Intellect, talvez nós precisemos voltar a falar em democracia e comunismo.

Negri fala com certa ironia dessa Bildung comum. Mas é preciso reconhecer que essa Bildung comum abrange uma pluralidade de teorias e práticas, abrange desde as comunidades criativas nos termos de Ezio Manzini até as comunidades sensíveis de Jacques Rancière, e certamente muitas outras ainda. Para responder a essa provocação a pensar as múltiplas formas de coprodução na contemporaneidade, retornemos a HO 15 NEGRI, Antonio. Dispositivo metrópole. Disponível em: http://bit.ly/1fPoh2U 16 In Radical philosophy, no 154, 2009. (Tradução: Universidade Nômade Brasil). Disponível em http://uninomade.net/tenda/rem-koolhaas-junkspace-e-metropole-biopolitica/

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sem qualquer pretensão de fazer exegese. Não retornemos às suas “obras” em separado e sim ao seu programa ambiental. Ele abala os alicerces que constituem a racionalidade da cidade moderna e, por que não, pode vir a abalar a hegemonia de certos modos de vida urbana hoje.Com HO, o trabalho, por exemplo, se faz arte e participação. De certa forma, ele se inspira nas formas de trabalho que emergiram das lutas dos anos 60 e 70. Delas surgiu um trabalho mais flexível e móvel que autores como Antonio Negri, Giuseppe Cocco, Maurizio Lazzarato e Paolo Virno chamam de “trabalho imaterial” ou “trabalho biopolítico”. Este último carrega uma forte ambiguidade. Ele pode ser mero efeito do poder sobre a vida (um biopoder) ou pode ser expressão de uma potência da vida (biopolítico), se quisermos chamar Michel Foucault para a discussão. O “trabalho da arte” de HO antecipa parte da problemática do trabalho contemporâneo que é um trabalho que se emancipou da fábrica mas, flexível e móvel na metrópole, encontra uma contínua e cruel precarização que é a forma como o capital produz marginalização. Marginalização por que o trabalho não encontra formas justas de remuneração e de proteção social e, menos ainda, formas adequadas de representação. Com HO, a moradia se transforma em penetráveis e em ninhos. De certa forma, aqui também HO está falando das demandas de moradias outras que emergiram das lutas dos anos 60 e 70 mas não apenas. No caso do Rio de Janeiro, são os quilombos de outrora, são as favelas que HO conhecera tão bem, são as resistências às formas de moradia disciplinadas e controladas. Na casa do condomínio, no apartamento do Minha Casa Minha Vida, o barraco da favela simplesmente não cabe. Não é que não caiba a geladeira, não cabe o modo de vida. Não se trata de uma crítica partidária, trata-se de uma questão ontológica. E é significativo como a incompreensão de outras maneiras de produzir ecoa na incompreensão de outras maneiras de habitar e ecoa, por sua vez, na incompreensão de outras maneiras de criar. Com HO, o lazer se transforma em Crelazer. De certa forma, com seus parangolés e penetráveis, HO formula uma forma de lazer que não é aquela que se opõe ao trabalho, isto é, mero descanso para recompor as forças do trabalho. Ele rompe a relação trabalho versus lazer que constitui a base produtiva capitalista. O Crelazer é criativo. O Crelazer cria mundos para além do consumo e do espetáculo, mundos de usos e de afetos. Com HO, o transporte – o deslocamento de um ponto a outro da cidade, o deslocamento que nos leva de casa ao trabalho e do trabalho até em casa ao longo da semana e, nos fins de semana, de casa ao lazer e do lazer a casa – faz-se deambulação, deriva, desvio. Hoje, a mobilidade urbana não corresponde exatamente à racionalidade da circulação funcionalista.

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Ela se desdobra numa vertente subserviente à flexibilidade do trabalho contemporâneo – a precariedade também denominada empregabilidade exige uma circulação constante pela cidade entre diversos empregos – e numa vertente desejosa de trânsitos por todos os territórios e tempos da metrópole que, não nos esqueçamos, estava na origem do estopim de junho de 2013. Do quadrado-praça-mágica de HO estendido ao máximo até alcançar a dimensão mega de nossas metrópoles, o que importa é o circular SUBvertendo magicamente a lógica produtiva. HO provoca toda a concepção funcionalista de cidade baseada no trabalho na moradia, no lazer e no transporte. HO provoca toda a racionalidade do planejamento urbano que, embora baseado em utopias, acabou servindo ao capitalismo moderno e produzindo hierarquias e marginalidades. E ainda acrescenta, como que antecipando naquele momento o que hoje estamos vivendo, o ambiental. O ambiental em sentido complexo. Se em Félix Guattari ele é relativo ao meio ambiente, ao social e ao mental, em HO e, como mostramos, nos garis, o ambiental é também estético e político. Hoje, num país em plena crise de representação e crise de tudo, num Rio de Janeiro de megaeventos, num Rio de Janeiro subordinado ao planejamento estratégico de um capitalismo esquizofrênico, precisamos da potência de HO. Não para retomar alguma coisa – não há nada a retomar dizia HO, nem pintura nem escultura, nem coisa alguma do campo da arte; e podemos dizer o mesmo do campo da política – e sim pôr em experimentação um penetrável Gari-cidade #RJ2016, isto é, um programa ambiental que resista à espetacularização e especulação da cidade. Sejamos garis, sejamos heróis.

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Referências COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009. NEGRI, Antonio. Dispositivo metrópole. A multidão e a metrópole. http://bit.ly/1fPoh2U . Rem Koolhaas – junkspace e metrópole biopolítica. Radical Philosophy, n. 154, 2009. Disponível em: http://bit.ly/29AbOFk. OITICICA FILHO, Cesar (org.). Hélio Oiticica. Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011.

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E se Hélio fosse hoje? Ou, como a favela chega ao museu Cíntia Guedes Doutoranda em comunicação pela ECO/UFRJ


Este texto comenta algumas das proposições estéticas e teóricas de Hélio Oiticica. Escrevo atenta aos debates sobre raça, e como mulher negra. Os interesses do texto giram, portanto, em torno de questões éticas e políticas dos escritos e do gesto artístico do artista em relação ao tempo atual, tendo em vista que sua obra é referência para uma série de experiências de arte contemporânea, em influências mais ou menos diretas no que são consideradas as intersecções entre arte e vida na produção artística, especialmente aquelas que se localizam no paradigma da micropolítica. Aproximo, para tanto, duas situações bastante distintas. A primeira é a proibição do Parangolé em 1965 no MAM, na abertura da exposição Opinião-65, que tinha por objetivo conjurar os jovens artistas mais interessantes do Brasil e da Europa. Nesta primeira parte do texto, avanço um pouco em direção à observação do que foi realizado pelo artista em Tropicália, obra de 1967. O contexto de ambas, realizadas pouco tempo depois do golpe militar de 64, era de uma ditadura que ainda ia ganhar sua faceta mais repressora, enquanto no âmbito internacional, como aponta o artista e professor Carlos Zilio (2009), havia motivos para crer que a utopia revolucionária era realizável: Havia a crença na construção de um novo homem e de uma nova sociedade. A guerra no Sudeste Asiático demonstrava a capacidade de um país pobre enfrentar a máquina de guerra imperialista. Na China, a Revolução Cultural parecia provar a possibilidade de o marxismo se revigorar internamente; na América Latina, a Revolução Cubana abria novas perspectivas e a figura de Che Guevara sintetizava todas as esperanças. (Zilio, 2009, p. 129)

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O segundo acontecimento tratado nestas reflexões é a abertura do Museu de Arte do Rio, em 2013. O Brasil seguiu o curso de uma frágil democracia profundamente marcada pelo capital, em um país integrado à economia capitalista global, às vésperas de uma série de manifestações multitudinárias que marcaram junho de 2013, e que fizeram retornar, de maneiras diversas, a vitalidade de pautas minoritárias como as dos feminismos e das lutas contra o racismo. Diante desses dois acontecimentos, o texto busca acenar para algumas questões que a visita recente aos escritos de Hélio Oiticica e de seus contemporâneos suscitou-me. Não pretendo, entretanto, apresentá-las aqui em caráter conclusivo, mas introduzir o debate. Escrevo mobilizada pelas problemáticas contemporâneas da micropolítica na arte, cada vez mais interessada nas dinâmicas da produção de subjetividade, e em relação ao cenário macropolítico contextual, para nos enlaces realizados pelo artista entre arte e vida na favela, apontar o que suas proposições dizem ao presente. É recorrente encontrar em comentários sobre trabalho de Oiticica a retórica da “descoberta”. Em seus textos, a ideia é mais frequente no âmbito subjetivo, do participador que descobre e completa a obra, ou dos objetos “achados” nos percursos cotidianos do artista. Em Esquema geral da nova objetividade brasileira (2006), entretanto, ele descreve que a tendência à coletividade, sua e de seus contemporâneos do neoconcretismo, foi influenciada por algo que “determinou de certo modo essa intensificação para proposição de uma arte coletiva total: a descoberta de manifestações populares organizadas (escolas de samba, ranchos, frevos, festas de toda ordem, futebol, feiras) e as espontâneas ou ‘acasos’ (artes das ruas ou antiarte seguida de acaso)” (Oiticica, 2006, p. 166). Tal perspectiva se desdobra em uma não rara associação entre o trabalho de HO e a “descoberta da favela”. Elaborada com mais atenção em seus escritos, a abordagem da “apropriação” dos objetos é um método descrito por HO como resultante de uma potente relação criativa do artista com o seu entorno, retornarei a essa questão mais adiante no texto. Por hora, gostaria apenas de pontuar que tanto a retórica da “descoberta” quanto da “apropriação” faz parte de um vocabulário que se tornou obsoleto para aqueles atentos aos debates sobre as questões raciais. Não se trata de dizer aqui o que Hélio poderia ou não ter feito ou dito, tampouco se trata de enumerar quem pode falar sobre o quê, e como o próprio HO já assinalava, fazer política na arte não significa assimilar por completo o vocabulário da militância, embora ele estivesse bastante atento ao vocabulário da esquerda e tivesse tido uma formação anarquista por intermédio do avô paterno.

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É importante, contudo, desde já atentar que a retórica da “descoberta” é paralela à crítica que o artista faz da situação colonial na arte brasileira de seu tempo, a qual o mesmo se contrapunha através do gesto antropofágico. A colonialidade, todavia, era definida por ele exclusivamente pela relação Brasil-mundo: A antropofagia seria a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, e a principal arma criativa, essa vontade construtiva, o que não impediu de todo uma espécie de colonialismo cultural, que de modo objetivo queremos hoje abolir, absorvendo-o definitivamente numa superantropofagia. (Oiticica, 2006, p. 155)

Na perspectiva de HO, era importante que artistas brasileiros se lançassem na aventura de descobrir a arte do Brasil, ou no vocabulário da micropolítica, de devir-brasil na arte, e não apenas assimilar os ismos dos movimentos internacionais, considerados dogmáticos pelo artista. Contudo, como espero que fique explícito ao longo destas reflexões, acredito que uma perspectiva contemporânea sobre a colonialidade deve atentar também para as relações Brasil-Brasil, nas quais os corpos são territórios em disputa, e as fronteiras que importam são tanto as da nação quanto as da cidade, marcada pelas relações raciais, de classe e de gênero, dentre outras. Hélio Oiticica segue, assim, experimentando novos possíveis para linguagem do que seria a arte brasileira: não a mais autêntica, mas aquela capaz de se defender pelo gesto antropofágico, que em tudo difere do gesto de instaurador de uma “verdadeira tradição brasileira” ou da busca por uma arte brasileira mais original. Para ele, não se tratava de, por isolamento, encontrar a pureza na linguagem-Brasil, mas de constituí-la na relação com os movimentos artísticos da vanguarda europeia, e de posicioná-la como universal desde esta relação crítica. Nesse sentido, os problemas “locais” o interessam menos do que os “globais”: A pressa em criar (dar uma posição) num contexto universal a esta linguagem-Brasil, é a vontade de situar um problema que se alienaria, fosse ele “local” (problemas locais não significam nada se se fragmentam quando expostos a uma problemática universal; são irrelevantes se situados somente em relação a interesses locais, o que não quer dizer que os exclua, pelo contrário) – a urgência dessa “colocação de valores” num contexto universal, é o que deve preocupar realmente àqueles que procuram uma “saída” para o problema brasileiro. (Oiticica, 1970, p. 147)

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Nos últimos anos, seguindo os rastros de Oiticica, multiplicam-se as relações entre artistas (e instituições artísticas) com o território das favelas, seus moradores e moradoras. Certamente, a relação dar-se-ia independentemente da existência do trabalho de HO, e não há dúvidas que as criações e reflexões do artista resultaram, já no momento de sua produção, numa aproximação menos folclorizante deste território. – Mas e se Hélio fosse hoje? Para seguir escrevendo, permito-me tocar algumas das margens dessa questão, ciente de que não poderei respondê-la de todo. Apenas entrevejo e tento apontar alguns caminhos através de pistas deixadas pelo próprio Hélio. O exercício consiste em olhar o passado a partir do presente, depois olhar para o presente de novo. Noto como alguns atores do passado retornam nos acontecimentos do presente, e como alguns gestos que outrora foram de força podem ser repetidos sem nenhuma vitalidade. A observação é paradigmática e contextual: quais seriam os novos sonhos de Hélio Oiticica?

Sonhos passados 1965. Passistas da Estação Primeira de Mangueira são impedidos de entrar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde participariam da exposição Opinião-65 junto com Hélio Oiticica. Recupero, através das notas apresentadas por Hermano Vianna (2001), registros que remontam a memória dessa ocasião, e imagino a dimensão do acontecimento para os presentes: “Parangolé impedido no MAM”, publicou o Diário Carioca, “É o mito. Hélio Oiticica, Flash Gordon nacional, não voa nos espaços siderais. Voa através das camadas sociais” afirmou Jean Boghici, um dos idealizadores da exposição, para O Globo, em agosto de 65. Em meio a público e crítica, os jornalistas que presenciaram o acontecimento estavam convencidos de que aquela era a primeira vez que moradores de favela iam ao museu, e não restavam dúvidas do caráter inovador e potente do trabalho de HO, que promovia ali o encontro entre dois mundos. O Parangolé voltava ao MAM já em 66. Dessa vez não precisariam se “apresentar” nos jardins, seriam devidamente expostos no interior do museu. O incômodo inicial da instituição é superado pelo interesse em caminhar com o artista em busca de uma face-brasil da arte. A “imagem obviamente brasileira” já se anunciava com o Parangolé, e tal chamado tem sua apoteose um ano mais tarde com a obra Tropicália (1967). O espaço criado em Tropicália, que conjura objetos que remetem à brasilidade com a arquitetura da favela, posto em relação ao espaço nor-

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mativo do museu (e da Zona Sul carioca em geral), é um bom exemplo para entender como essa busca pela arte brasileira passava pela experimentação das diferenças constitutivas dos territórios da cidade, e dessa maneira, como as vivências da favela foram desdobradas em elemento constitutivo do trabalho de Hélio Oiticica. É a vivência que borra as fronteiras entre a singularidade da experiência que só ele viveu e sentiu e a partilha da coletividade na vida no morro. Não é à toa que HO acredita que a vivência seria aquilo de que os “canalhas” e “burgueses” não poderiam se apropriar (Oiticica, 1986, p. 109). O gesto artístico de HO inaugura a possibilidade de tomar a vivência cotidiana na Mangueira como experiência criativa capaz de habitar a instituição de arte. Remontando a arquitetura da favela e ao mesmo tempo deslocando objetos comuns para o museu, o artista executa o que chama de arte ambiental, e de antiarte: Antiarte seria uma completação da necessidade coletiva de uma atividade criadora latente, que seria motivada de um determinado modo pelo artista: ficam portanto invalidadas as posições metafísica, intelectualista e esteticista […]. Não existe pois o problema de saber se arte é isto ou aquilo ou deixa de ser. Na minha experiência tenho um programa e já iniciei o que chamo de “apropriações”: acho um “objeto” ou um “conjunto objeto” formado de partes ou não, e dele tomo posse como algo que possui para mim um significado qualquer, isto é, transformo-o em obra [...] (Oiticica, 1986, p. 71)

Em Anotações sobre o Parangolé (1986), Oiticica segue explicando sobre a profusão de significados que se acrescentam dia a dia aos objetos apropriados, a partir da participação de cada visitante. A antiarte não pretende ser antes do encontro, e o sentido de cada obra está condicionado à ação criadora dos participantes. Algumas apropriações resultam em conjunto de objetos, outras em obras como o Bólide Lata, apropriação 2, consumitivo (1966), uma lata em chamas que serve cotidianamente para sinalização de estradas escuras. Em todos os casos, tais objetos articulam memórias que ultrapassam o espaço do museu. Sobre o Bólide Lata, por exemplo, HO afirma que “quem viu a lata-fogo isolada como uma obra, não poderá deixar de lembrar que é uma “obra” ao ver, na calada da noite, outras espalhadas como que sinais cósmicos, simbólicos, pela cidade: juro de mãos atadas que nada existe de mais emocionante que essas latas sós, iluminando a noite” (Oiticica, ibid, p. 80). A aposta do artista é na possibilidade de reposicionar o participador em relação às coisas do mundo, afinal, “o museu é o mundo”. Mas na re-

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lação entre o museu e o mundo, a memória também percorre o caminho inverso. Ao dispor de objetos ordinários em uma ambiência que remete à arquitetura das favelas, HO imprime no museu uma memória coletiva que atravessa os investimentos subjetivos pelos quais tais ambiências são percebidas pelos participantes. Como atenta Zilio (2009), sobre os quadros de influências do artista, em certa medida Hélio trata as coisas das quais se apropriava como se fossem o urinol de Duchamp. Os objetos de HO são como ready-mades na medida em que o ready-made é definido pelo gesto do artista de retirá-lo das da vivência ordinária e dá-los a ver/sentir/cheirar no espaço de privilégio do museu. Contudo, é importante acenar que os ready-mades, não tendo sido retirados da vivência ordinária, uma vez que são referências da cultura industrial, e não tendo sido postos em composição com arquiteturas ou ambiências específicas de determinados territórios, não articulam pertencimento. Portanto, se o urinol de Duchamp acompanha o gesto de apropriação de Oiticica de um lado, os objetos expostos em nossos museus de antropologia pairam a sua espreita, e o que se distingue no trabalho de Hélio em relação a ambos é que certa memória surge na articulação dos objetos com a estrutura arquitetônica das favelas. Dito de outro modo, é quando uma memória da favela é acionada em Tropicália, por exemplo, que se efetiva a aproximação entre espaços até então irreconciliáveis da cidade, como a favela e o museu. Em Tropicália, Oiticica compõe o espaço do museu com um ambiente suprassensorial, um conjunto de dois penetráveis agregados a muitos elementos reconhecíveis da brasilidade: o cheiro do capim-limão, o som da televisão, a chita, e ainda elementos constitutivos da arquitetura da favela, num ambiente labiríntico que exige o pé na terra. Tal gesto de aproximação entre favela e museu dá a ver uma série de dinâmicas que dizem respeito aos modos como determinados territórios (geográficos, afetivos e identitários) e seus habitantes são autorizados ou não a adentrar a arte e suas instituições. Em Tropicália, os objetos apropriados remontavam às imagens óbvias da brasilidade, mobilizadas pelo artista como aspiração de criar o que ele chama de imagem brasileira total: […] quis eu com a Tropicália criar o mito da miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo – nossa cultura nada tem a ver com a europeia. Só o índio e o negro não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disto caia fora. Para criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita,

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europeia e americana terá de ser absorvida, antropologicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas. (Oiticica, 1986, p. 108)

A afirmação a pureza é um mito, como nome de um dos penetráveis da obra (o PN2, o PN3 chamava-se imagético), atualiza a relação Brasil-mundo: a propõe como gesto antropofágico, comer o outro, o estrangeiro, com o qual a arte brasileira deveria manter a relação crítica, apreender apenas o que interessa para construir uma linguagem-Brasil nas artes, e descartar o que não servia para essa tarefa. Embora não pareça tão urgente no contexto da produção de Hélio, é importante perceber que tal provocação diz respeito também a uma relação Brasil-Brasil, que permanece latente quando o artista reivindica um trânsito capaz de apropriar objetos, e uma experiência capaz de comungar raças e classes: A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos e classes etc.; seria inevitável e essencial na realização dessa experiência vital. Descobri aí a expressão entre o coletivo e a expressão individual – o passo mais importante para tal […] o condicionamento burguês a que eu estava submetido desde que nasci, desfez-se como por encanto. (Oiticica, 1986, p. 73)

A “descoberta” seguida da apropriação da favela se dá na relação de estranhamento e fascinação de seu corpo burguês em relação ao movimento do corpo do outro, o favelado nas especificidades daquele território. Antes do pensamento, da consciência ou da representação, uma comunidade se atualiza no corpo, nas memórias que nossos movimentos imprimem no espaço-tempo que habitamos: “A Mangueira, que eu conheço melhor que qualquer parte do mundo, é um lugar muito especial, porque é de lá um dos melhores músicos de todos os tempos. E tem a forma peculiar de andar, que se adquire andando no morro. Como quem busca caminhos no coração da terra...” É encanto que permeia a vivência de Hélio na favela. É o legítimo engajamento do artista com a própria vida, mas não é por encanto que é permitido que ele habite os espaços da cidade que não lhe pertenciam desde sempre, assim como não é por encanto que a favela chega ao museu. É evidente que os passistas barrados no MAM não possuíam o mesmo privilégio, a favela não era, e continua não sendo, uma “condição” possível de se dissolver por encanto, ou por completo. Talvez apenas um pouco, de vez em quando, não em coletivo, quando muito individualmente ou em grupos controlados, de preferência quando convidada, mantendo alguns silêncios e esquecimentos.

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O trânsito de HO em relação ao trânsito dos passistas no museu evidencia o paradigma da branquitude no qual Hélio se encontra, mas não no qual ele se encerra. É importante notar que branquitude não diz respeito à brancura da pele de alguém, sendo um termo-chave para racializar a experiência do corpo branco no mundo, compreendida hegemonicamente a partir de uma não marcação, que coloca a pessoa branca em posição privilegiada em relação às qualidades do que entendemos por humano. Pelo olhar de mulher negra submetida aos esquemas de vigilância e controle da cidade contemporânea, que me põe em situação de vigília maior do que o fazem com pessoas brancas, observo as reflexões de HO sobre a interseção arte e vida do lado da vida, e logo entendo que somente o paradigma da branquitude permite a ele que o trajeto entre mundos seja formulado como um fluxo contínuo, o que não é o mesmo que dizer que a experiência dele na favela não teve episódios conflituosos. Suponho que precisamos refazer os antigos sonhos de Hélio, rever as relações museu-favela não apenas nos vislumbres pelos quais o asfalto descobriria certa ginga que a favela com muita disposição ensinaria. O sonho de trânsito total, de integração consensual, desemboca em abismos reais, dos quais nem a arte nem a cidade se beneficiam.

Sonhos presentes 2013. O Museu de Arte do Rio (MAR) abria pela primeira vez suas portas, sendo o primeiro de três empreendimentos culturais resultantes da parceria da Prefeitura do Rio com a família Marinho. O MAR e o novíssimo Museu do Amanhã ficam na Zona Portuária da cidade e fazem parte do projeto Porto Maravilha, que promoveu uma série de desapropriações e construiu os monumentos conciliatórios no território que já foi o maior porto de chegadas de negros escravizados do mundo. O terceiro empreendimento é a nova sede do Museu da Imagem e do Som a ser inaugurada em Copacabana. Havia chegado o momento das instituições artísticas seguirem o modelo parceria público-privada, já dominante em outros setores do governo e que acaba de ganhar papel mais central como política do Governo Federal através do Programa de Parceria de Investimento – PPI, instituído no primeiro dia do governo interino (leia-se golpista) de Michel Temer na Presidência da República em 2016. A instituição sabe-se em território de disputa. De um lado, os sonhos do prefeito Eduardo Paes, uma cidade ao modelo Bilbao, a revitalização urbana a qualquer custo, e “na qual um dado território é habilitado por um ícone de interesse global, em geral de arquitetura virtuosa” (Paes, 2013, p. 10). É

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contra o anacronismo que o prefeito argumenta os violentos processos de remoção e modernização da Zona Portuária e da cidade em geral. Para o prefeito, o MAR faz parte de um processo de recriação da cidade. Em uma versão colonial da história da arquitetura, ele afirma: a história das cidades mostra que sempre foi assim: basílicas, igrejas, mercados, parlamentos e centros culturais pertencem à mesma linhagem de centros de gravidade urbana, pelo simples fato de as cidades serem, primordialmente, complexos, vastos e intrigantes ambientes culturais que necessitam ter seus marcos, pelo simples fato de existirem, de se reconhecerem e de precisarem ser reconhecidas. Uma face que possa ser lida. (Paes, 2003, p. 8)

O MAR é o monumento conciliatório desta cidade segundo Paes, e, na sua abertura, a exposição “O abrigo e o terreno – Arte de sociedade no Brasil I”, com curadoria de Clarissa Diniz, garante que a favela tome “a parte que lhe cabe” desta instituição. As disputas pelo espaço urbano, as remoções, a favela e os trabalhos oriundos do encontro de diversos coletivos artísticos com a ocupação Prestes Maia (São Paulo) foram destaques na circulação de notícias sobre a exposição. Além dela, alguns dos Penetráveis de Hélio e trabalhos de Lygia Clark foram expostos, e a ocasião contou ainda com a exposição “Vontade construtiva na coleção Fadel” para que não restassem dúvidas sobre a referência do neoconcretismo no novo museu da cidade. Mas pode o museu operar o voo entre territórios? É possível remeter-se à “vontade construtiva” num gesto de assimilação ao projeto de uma nação integrada ao capitalismo internacional? Ou de outro modo: é possível aproximar a favela e o museu sem reorganizar o problema da arte no campo da política? A história do povo negro é soterrada pelo MAR, material e simbolicamente. Como afirma o prefeito, o apagamento é um gesto monumental, afinal, a memória do corpo negro que compõe aquela terra deve ser devidamente pacificada e substituída “por algo que possa ser lido”, nas palavras do alcaide. Nesse gesto, resta uma memória esvaziada das camadas de dor e sofrimento, apenas assim elas podem figurar bem na história colonial e conciliatória, na qual tudo “sempre foi assim”, e quem ousa contestar está indo contra o progresso. Foi o barulho dos pandeiros e frigideiras que atormentou os diretores do MAM em 65. No MAR em 2013, dezenas de pessoas, artistas e militantes, batiam latas em sinal de protesto. Não falo dos que chegaram lá para participar da festa, mas dos que queriam acabar com ela. Sobre os relatos desse protesto, que deixava um rastro do que viria a acontecer nas grandes

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manifestações de junho do mesmo ano, registro as impressões do artista e pesquisador urbano Raphi Soifer: Do lado de fora, se sonhava com a tentativa de articular memórias que foram por debaixo daquele mesmo asfalto, ou então que ficavam fragmentadas e dispersas numa poeira que não teria mais a firmeza do elemento terra em si, mas que seria dele uma lembrança. Esta poeira é matéria-prima da memória que não se encontra no museu, com qual o museu faz de tudo para acabar e cuja persistência articula outros sonhos da cidade. (Soifer, 2015, p.17)

Na bateção de latas, foi possível convocar o passado e demonstrar sua ligação com o presente da violência cotidiana pela qual passam pessoas que habitam o morro da Providência, outras favelas, ocupações e periferias da cidade. A abertura do MAR segue a cadeia de sucessivos soterramentos pelos quais o racismo se atualiza em processos de captura da história das populações massacradas, e de apagamento da dor daqueles que seguem resistindo. O Cais do Valongo que está situado nesse mesmo território, por exemplo, depois de ter sido duas vezes soterrado fisicamente – em 1843, para que o Rio parecesse mais “civilizado” aos olhos de uma Europa não mais interessada na escravidão de negros africanos, e depois durante as higienizações de Pereira Passos –, sofre hoje um “sepultamento malfeito”, que deixa seus rastros e faz barulho. A tentativa oficial de levar a favela ao museu na ocasião de abertura do MAR também é um gesto que diz ligar passado e presente, mas além de forjar a relação entre territórios distintos da cidade, tais relações são erguidas sobre esquecimentos, pois precisam demonstrar relações de continuidade e coerência, e o fato é que ao retomar a relação passado-presente e favela-museu em movimentos de conciliação, o museu precisa novamente excluir a presença daqueles que demonstram as incongruências desses movimentos, as pessoas não pacificadas, não conformes e não educadas... A aproximação entre favela e museu nas obras expostas nessa ocasião, mesmo aquelas oriundas de processos coletivos e de vivências engajadas, sofre uma diminuição de potência de sua face vital quando toma parte de um processo de soterramento de memórias. Uma vez que não são mais capazes de instaurar qualquer crise no museu, as obras servem para efeito de pacificação ou de uma autocrítica reformista. As vozes não “pacificadas” restaram do lado de fora, tentando fazer emergir as memórias que habitam aquele território, tanto as antigas, do período escravagista, quanto as recentes, que ligam a existência do MAR às políticas de “pacificação” empreendidas no morro da Providência e no restante de seu entorno. De

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maneira imprevista, o barulho que fizeram ecoou no salão onde foram feitos os discursos na ocasião. A proibição do Parangolé e o protesto na abertura do MAR são episódios de natureza bastante distinta, mas ambos possibilitam enxergar as forças que levam a favela para dentro dos museus. A primeira, construtiva, a segunda, monumental. Tanto ontem como hoje, é desde o que resta da porta para fora que podemos acenar para as fissuras das imagens conciliatórias produzidas por gestos artísticos ou, no caso do MAR, institucionais, que tomam a relação museu-favela de modo indiferenciado. O trabalho de HO serve de referência para muito da produção contemporânea. De modo geral, a arte segue sua apropriação dos fluxos de precariedade em seus processos criativos. Estão longe de se esgotarem as novas e potentes possibilidades de vivenciar os territórios das favelas (assim como o território da vivência dos corpos em situação de precariedade) como campo de possibilidades criativas para as artes, mas parece ser necessário perceber que a favela também se recria independente e na relação com a arte, e nesse movimento, não é mais somente observada, mas observa atenta o movimento das artes em seus territórios. A arte não pode mais se eximir da responsabilidade de pensar que, uma vez fundada a relação favela-museu, ela jamais parou, institucionalizou-se e, muitas das vezes, aparece apenas para argumentar em favor da redenção de instituições e artistas, como é o caso do MAR. Nos anos 10, o policial fortemente armado não é mero detalhe na paisagem das favelas. Em algumas delas, barricadas e tanques obrigam moradores a refazerem seus trajetos. A ocupação militar dos territórios de boa parte das favelas do Rio de Janeiro não é mais ocasional, é frequente e, em alguns casos, tida como permanente. A despeito do suntuoso fracasso dos programas de “pacificação” (as UPPs), eles seguem relatados como exemplos de política de segurança pública para outros estados, numa retórica capaz de justificar a aliança do poder público com a iniciativa privada para garantir a sua continuidade, diante da falência financeira e da crise de representatividade que constituem o cenário político nacional. Nesse cenário, experienciar a favela ou se apropriar de seus objetos e imagens se mostra mais complexo. Ao que me parece, as proposições da “vontade construtiva” formulada por HO, como a “tendência para coletividade”, a “participação corpórea, sensório e semântica do público”, e a expectativa da “vivência” como lugar exclusivo do artista engajado, são muito boas para criar obras que rompem com o paradigma da representação da favela, entretanto, não parecem mais suficientes para fazer o movimento da arte sobre si mesma, nem de anunciar os novos paradigmas da relação entre esses dois espaços. Observar a posição do artista torna-se cada vez

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mais fundamental para que se possa apreender a vitalidade de sua vivência, uma vez que essas duas experiências não estão mais inequivocamente associadas, como tentei expor com o exemplo do MAR. O trabalho de HO excedeu o suporte, o quadro avançou pelo espaço galeria e, de maneira fundamental, instaurou a importância do participador como sujeito não mais passivo nem contemplativo. Esse é o gesto do novo a seu tempo: “a forma toma sentido” e não “o sentido toma a forma” (Zilio, 2009, p. 139). É pela participação que o tempo nos trabalhos de HO aqui citados é uma medida subjetiva, unidade que varia de acordo com presença do espectador em relação com o objeto e o ambiente. Entretanto, ao lugar do artista, HO lança uma proposição apenas parcial para o tempo presente. Ele propõe que o artista se desloque do lugar de criador original, colocando-se como simples organizador de eventos. Ainda assim, seu lugar de artista branco resiste, como se a vivência engajada pudesse apagar as marcas que carregamos. As proposições de HO resultam naquele momento na recolocação da relação entre territórios antagônicos da cidade, mas hoje, são precisamente as marcas de onde se fala que podem nos ajudar a encontrar as fissuras dessas comunidades estéreis entre favela e museu. É importante atentar que alguns dos gestos que levam a favela ao museu atualmente são previstos e organizados nos registros do que é valor na arte, e não para questioná-lo. Assim, só é preciso que as instituições esquadrinhem as tais vivências e as mantenha sob controle. Não é outro artista se não o próprio HO que antecipa tais recuperações esvaziadas politicamente, geradoras de convivências estéreis: uma posição crítica implica em inevitáveis ambivalências; estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente; – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos; paternalismos; etc.); [...] Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão. Eis a questão: o que mais dilui hoje no contexto brasileiro é justamente essa falta de coerência crítica que gera a tal convi-convivência; a reação cultural, que tende a estagnar e se tornar “oficial” (mais do que burocrática, essa coisa oficial existe como reação efetiva), é a que predomina nesse estado atual. (Oiticica, 1970, s/p)

Se Oiticica fosse hoje, ele já haveria percebido que além da pureza ser um mito, a miscigenação também o é. Os novos sonhos de HO devem, portanto, atentar para o fato de que o museu anda fortemente interessado em

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modular a criatividade dos fluxos precários, e em fazer uma comunidade sem dissenso a partir das vivências mais genuínas. Afinal, nos antigos sonhos de HO, produzir o novo na arte nunca se tratou da capacidade de anunciar os problemas certos numa linguagem aceitável, mas de fazer da vivência uma força vital, capaz de refazer tudo, experimentar linguagem e efetivamente assumir os riscos. Disputar assim os diferentes sonhos de cidade. As obras de HO estavam dentro do MAR naquela noite, mas seus sonhos resistiam no barulho das latas.

Referências OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: Rocco, 1986. . Esquema geral da nova objetividade. In: FERREIRA, G.; COTRIM, C. Escrito de artistas: anos 60 e 70. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006 [1967]. . Brasil Diarreia. [Manuscrito, 1970]. Disponível em: http://icaadocs.mfah. org/icaadocs/THEARCHIVE/FullRecord/tabid/88/doc/1090409/language/enUS/Default.aspx PAES, Eduardo. Carta. In: Relatório de Gestão do MAR, 2013. Disponível em: www.museudeartedorio.org.br/sites/default/files/relatorio_mar.pd SOIFER, Raphael. “Olha eu aqui de novo!”: Sonhos, assombramentos e jogos de memória nas ruas do Rio de Janeiro. Qualificação de doutorado. IPPUR-UFRJ, 2015. (não publicado). VIANNA, Hermano. Não quero que a vida me faça de otário: Hélio Oiticica como mediador cultural entre asfalto e morro. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina. Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano em 2001. ZILIO, Carlos. Da antropofagia à tropicália. In: O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira, Revista Arte & Ensaios, ano XVI, n° 18, p. 114-147, Rio de Janeiro, 2009 (publicado originalmente em O Nacional e o Popular na cultura Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982).

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HĂŠlio Oiticica e o underunderground Gonzalo Aguilar Professor de Literatura Brasileira da Universidade de Buenos Aires


Em junho de 1970, Oiticica chegou em Nova York com uma bolsa Guggenheim para participar da “Information”, mostra do Museu de Arte Moderna (MoMA) com curadoria do trinitário-tobagense Kynaston McShine. Dada a proveniência de Kynaston McShine de uma colônia ou sua condição de afrodescendente, ou ainda a sua formação estética, “Information” representava uma rara avis em meio às exposições realizadas até então no MoMA – situação que continuaria inalterada por muito tempo após a mostra. Não apenas devido ao fato de se tratar da primeira exposição de arte conceitual em uma instituição de tanto relevo, mas sobretudo pelo grupo de artistas apresentados – algo realmente raro – com diversos latino-americanos, entre artistas de outras nacionalidades: Hans Haacke, Vito Acconci, Robert Smithson, Joseph Beuys dividiam espaço com Artur Barrio e Hélio Oiticica, bem como os argentinos David Lamelas, Marta Minujín, Alejandro Puente e Jorge Carballa. Os artistas latino-americanos não eram colocados como um grupo à parte ou relegados à condição de exóticos; eles gozavam, ao contrário, da premissa da igualdade. De fato, em seu texto para o catálogo, Hélio começa afirmando que “eu não estou aqui representando o Brasil; ou representando o que quer que seja”.1 Para Hélio Oiticica, a categorização sob o rótulo do conceitualismo parecia menos relevante que o marco firmado em Whitechapel, em Londres, ao passo que sua inclusão na mostra o colocava numa situação ideal para consolidar-se como artista plástico num momento em que o movimento do conceitualismo começava a ser aceito no mercado, adentrando o cenário nova-iorquino com a intenção de ali firmar seu espaço ainda por alguns anos. No entanto, Oiticica foi acometido por um desconforto (“um vazio terrível, como se estivesse morrendo”, afirmara Bressane, em uma de suas heliotapes) e “Information” não foi 1

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Disponível em: http://54.232.114.233/extranet/enciclopedia/ho/detalhe/docs/dsp_ imagem.cfm?name=Normal/0324.70 - 151.JPG


apenas o início, mas sobretudo o prenúncio do final: Oiticica abandonou as exposições para continuar com seu projeto subterrânia. Ele não era, outrossim, o único participante que manifestava suas dúvidas com relação ao mundo artístico e que considerava a “Information” uma mostra que descambava em aporias insolúveis no que tange à arte contemporânea. O artista argentino Jorge Carballa, que havia participado de Experiencias 68, no Instituto Di Tella, um ano depois da lendária “Tucumán arde”, expôs sua obra Noche de tigres, noche de panteras. América llora”, de pungente teor político. Carballa define assim a sua experiência em “Information”: Minha obra estava disposta ao lado da obra de Andy Warhol, que era o único que me interessava ali. No dia da abertura, havia muita decadência e uma opulência assombrosa, que me causaram asco. Mulheres com o colo desnudo coberto de joias. Tinha ido com minha esposa à época. Ela foi ao toalete e, quando retornou, não encontrou nem mais a mim, nem a minha obra. Eu a tinha arrancado e levado comigo para a rua. Ela foi me achar na calçada, abraçado aos restos e chorando. Tinha a sensação de que nenhuma emoção poderia ser despertada naquelas pessoas. Alguém poderia cortar a própria carne na tentativa de se comunicar (o que efetivamente ocorreu); e isto seria apenas parte da arte. Minha obra ia estar melhor no dia seguinte, quando chegassem os lixeiros, do que ali, entre aquela gente.2

Em “1970”, Carballa (um dos artistas mais promissores do panorama argentino até então) abandonou a arte para dedicar-se à militância política. A arte comprometida, segundo o seu raciocínio, não levava à ação e à mudança, significava apenas o narcisismo de uma arte à mercê da lógica de mercado. Este não era o caso de Oiticica, que nunca abandonou a arte, e dentre os motivos, um dos mais importantes é que, em 1970, enquanto a política na Argentina apresentava um futuro promissor, no Brasil, o ciclo de mudanças havia sido drasticamente interrompido. No entanto, em ambos percebe-se um mal-estar quanto ao ingresso no establishment e no cânone do underground, sem contar no terreno da arte política e ativista através do conceitualismo.3 Carballa se afugenta na militância, e Oiticica, no underground nova-iorquino. 2

Testemunho dado pelo artista na p. 333.

3

“1970”: uma abrangente retrospectiva da obra de Warhol excursiona pelos EUA e pela Europa, e é exibida na Galeria Tate, em Londres. Uma lata de sopa Campbell pintada à mão é leiloada por $ 60.000, estabelecendo um recorde para um artista americano ainda vivo. Disponível em: http://www.tate.org.uk/whats-on/tate-modern/exhibition/ warhol/warhol-timeline

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Desinteressado pelo circuito dos museus e galerias, Oiticica parece voltar-se à atuação no underground nova-iorquino, embora alguns acontecimentos demarcassem uma fronteira entre a metrópole e a periferia, o que, paradoxalmente, não havia em “Information”. Na mostra, Warhol podia estar ao lado de Carballa, mas o atentado que havia sofrido recentemente (em junho de 1968) o fazia fugir de contatos fora de seu círculo. Outros artistas também eram de difícil acesso e, em alguns casos, mal-entendidos se instauravam, que davam conta do pouco interesse que os ativistas do underground sentiam pela periferia. Em todo caso, e isso é particularmente notável no caso do Brasil, o interesse era maior pelas representações do brasileiro durante as décadas de 1940 e 1950, e seu impacto no público norte-americano, sobretudo pela formação de uma sensibilidade camp de que se tornou emblemática a performance de Carmen Miranda de The Lady In The Tutti Frutti Hat, no musical The Gang’s All Here, de Busby Berkeley. Esse interesse nos ícones latinos do passado – além de Carmen Miranda, Lupe Vélez e María Montez – não se repetia com a investigação da arte contemporânea latino-americana. Um dos exemplos mais contundentes é o cineasta underground Jack Smith (1932-1989). Smith não era alheio à cultura brasileira e latina. Mais do que isso, é possível afirmar que desempenha um papel fundamental em seus filmes: em 1966, produziu um filme no Rio de Janeiro e, em diversas de suas películas, incorporou a música latina. Oiticica não hesitou em dizer que o que Smith “imprimiu no cinema e teatro underground é um tipo de pop-tropicália”. No loft do Soho, Oiticica participou de uma performance com Smith. Segundo Juan Suárez: “A pedido de Smith, Oiticica se ofereceu para participar da performance e sentou-se em cima da mesa ao lado de Smith, que, em vestes árabes, o entrevistou. No relato de Oiticica, Smith o procurou avidamente após a entrevista para pedir que estrelasse noutra produção, e que estava prestes a colocar um anúncio no jornal para encontrá-lo, quando um amigo em comum encontrou Oiticica numa “festa doida” e contou-lhe a respeito do interesse de Smith. Oiticica retornou ao loft de Smith para descobrir que o interesse não era apenas artístico, mas também sexual, “como se poderia supor’”.4 O encontro entre o cineasta underground e o artista brasileiro é definido por Juan A. Suárez em sua cuidadosa reconstrução da relação como “um diálogo um tanto desarticulado” [slightly disjointed dialogue].5 É que, nas distribuições simbólicas, se Smith era underground, Oiticica, em Nova York, como outros artistas latino-americanos, era under-underground. 4 Suárez op.cit. 5 SUÁREZ, Juan A. “Jack Smith, Hélio Oiticica, Tropicalism.

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Sem formar um grupo e com uma história que ainda não foi documentada, os latino-americanos na Nova York dos anos 1970 só eventualmente participavam da cena do underground, um universo em que era de difícil pertencimento e participação em igualdade de condições. Como vaga-lumes que emitiam o seu próprio brilho na noite nova-iorquina, mas que nunca se associaram num grupo, os artistas latino-americanos mais vanguardistas prosseguiram com suas atividades, em obras que muitas vezes permaneciam clandestinas, ou que circulavam por grupos muito restritos, adotando uma estética underground, mas fora do underground canônico. Eles formaram o que se denominou under-underground, um subsolo do subsolo, uma clandestinidade invisível e uma cultura que estava – recorrendo às palavras de Décio Pignatari – “na margem da margem”. Os argentinos Leandro Katz e Jaime Davidovich, o porto-riquenho José Rodríguez Soltero, o chileno Juan Downey, o venezuelano Rolando Peña, os brasileiros que visitaram Hélio Oiticica em seu ninho nova-iorquino – desde os cineastas Ivan Cardoso e Júlio Bressane aos poetas de Noigandres, Andreas Valentin e Carlos Vergara – e Neville D’Almeida, seu colaborador nas Cosmococas. Em 1967, Rolando Peña criou, juntamente com o artista de videoarte de origem chilena Juan Downey, o cineasta Jaime Barrios e o pintor cubano Waldo Díaz Balart, “The Foundation for the Totality”, o primeiro grupo latino-americano de vanguarda fundado na Cidade de Nova York”.6 De toda forma, o under-underground não constitui um grupo e nem se refere a artistas que tiveram contato entre si (ainda que houvesse amizades e relações afetivas entre alguns deles), tampouco quer dizer que todos estiverem na cidade no mesmo momento, pelo contrário, parecem ter sucedido uns aos outros de maneira descontínua e com surgimentos inesperados e dispersos. O que houve foi uma série de atos, não raro, clandestinos, rarefeitos ou de pouca repercussão que foram tecendo a história não documentada de um underground nova-iorquino que foi mais subterrâneo que todos os conhecidos. Ou como afirmou Décio Pignatari, em “Hélio e arte do agora”: “Nova York, quando a pólvora prateada do sonho já virara rastro de fuligem”. Como seguir esse “rastro de fuligem” que se perde no tempo, em atos não registrados, em obras inconclusas que ainda hão de ser recuperadas, em realizações bem-sucedidas ou mais ou menos bem-sucedidas que devem ser revistas. Assim, por onde começar, para seguir este rastro que, por vezes, se esvai, para depois reaparecer de súbito? Qual é o fio de Ariadne que, embora não nos faça sair, pelo menos nos guie por este labirinto subterrâneo? Um fio possível, um dos “rastros de fuligem” reside na figura do ator transfor6

Disponível em http: http://performancelogia.blogspot.com.ar/2007/05/vida-pasin-y-resurreccin-de-la.html

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mista René Rivera, mais conhecido como Mario Montez. Nascido em Porto Rico, em 1935, viveu em Nova York desde os 8 anos. Possivelmente, Mario Montez seria menos conhecido se não tivesse trabalhado em Flaming creatures, de Jack Smith, ou em várias produções de Andy Warhol, como Mario Banana ou Harlot, mas essa é a pólvora prateada que, ao passar pelo under-underground, se converte num “rastro de fuligem” e une Hélio Oiticica a Leandro Katz e José Rodríguez Soltero. Em 1966, José Rodríguez Soltero filma Life, Death and Assumption of Lupe Vélez. Um ano antes, Warhol havia produzido sua Lupe, contando com a atuação de uma de suas modelos preferidas, Edie Sedgwick. Rodríguez Soltero, por seu turno, recorre a Mario Montez numa homenagem às atrizes latinas nos Estados Unidos, como María Montez ou a própria Lupe Vélez. Poucos anos depois, Charles Ludlam encenou Gran Tarot, também com Mario Montez; e o artista argentino Leandro Katz foi encarregado de registrar a obra fotograficamente num filme que realizou muitos anos depois, em 1988: Reel Six, Charles Ludlam’s Grand Tarot. É curioso que em sua pormenorizada resenha sobre os filmes de Mario Montez, Hélio Oiticica não mencione La Lupe de Rodríguez Soltero, nem faça qualquer menção ao trabalho no Teatro do Ridículo, de Leandro Katz, que era vizinho e amigo de Hélio. Uma prova a mais de que se tratava de um underground disperso e que jamais chegou a conformar uma comunidade latina. Em 1971, Oiticica conheceu, numa festa de Ira Cohen, Mario Montez, uma “espécie de califa do underground”, que já era uma celebridade na cena artística nova-iorquina. Isso certamente causou impacto em Hélio Oiticica, que escreveu um texto sobre a estrela intitulado “Mario Montez Tropicamp” (1917) e o convidou a participar de seu filme inacabado Agripina é Roma-Manhattan (1972) juntamente com o artista plástico Antonio Dias, com quem combina um jogo de dados nas ruas nova-iorquinas. O título de Agripina é Roma-Manhattan foi tirado do poema O Guesa errante de Sousândrade (1833-1902), poeta brasileiro que morou em Nova York entre 1871 e 1885, e foi outro under-underground. Em 1972, começa a filmagem de Agripina é Roma-Manhattan nas ruas da cidade com um roteiro muito simples, que consistia em aproveitar os lugares mencionados em “O inferno de Wall Street”, tal como Haroldo e Augusto de Campos alcunharam esse episódio. Em um de seus textos datados de abril de 1972, Hélio destaca os lugares retirados do “livro H/A CAMPOS”: a) fotos como em super-8 de curtas na trinity church b) fragmentos da bolsa de valores de nova york c) tomadas em battery park

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[…] h. campos e companhia fazendo uma expedição pela wall st g) cemitério da Trinity Church : aumentar foto da palavra body mostrando bod (excluir o “y” no impresso)

A analogia entre Roma antiga e a Nova York de meados do século XIX já é prenunciada em “O inferno de Wall Street” no parágrafo 71: “Roma começou pelo roubo; / New York, rouba a nunca acabar”. Mas é no parágrafo 129 que Sousândrade cria essa sobreposição entre a ilha e a metrópole imperial da Antiguidade que inspiraria o título do filme inacabado de Hélio, além de um de seus poemas visuais: 129 (Outros alagados salvando-se na coluna 666 do templo de Kun:) Agripina é Roma-Manhattan Em rum e em petróleo a inundar Herald-o-Nero aceso facho e borracho, Mãe-pátria ensinando a nadar!...

Mario Montez sintetiza várias das preocupações de Oiticica: como tropicalizar o underground nova-iorquino, como transformar o corpo numa máquina sensorial de invenção permanente, como inventar o tropicamp para deslocar as vanguardas metropolitanas (nesse caso, a nova-iorquina). Mas, com sua projeção, veio constelar o under-underground, e tornou-se algo ainda maior, posto que dois conceitos centrais podem ser refletidos a partir dele: o exotismo cosmopolita e o glam latino. E os filmes de Jack Smith mostraram que a sensibilidade de diversos artistas do underground havia sido influenciada por uma cultura latina hollywoodiana que transitava entre o estereótipo e a exuberância sentimental. Da perspectiva da metrópole, apropriava-se dos motes das culturas periféricas para traçar novas economias do desejo, das identidades de gênero e das classificações estéticas. Foi com esse sentido que Mario Montez entrou no repertório de Warhol e Smith como expressão de um olhar camp. Mas o under-underground promoveu outra operação: a partir da periferia, apropriou-se do que havia de marginal na metrópole. Transformou o uso dos artistas consagrados da grande cidade, assim como havia acontecido alguns anos antes com o tropicalismo, no Brasil. Carmen Miranda deixou de ser “poesia de exportação” para se converter – nas palavras de Oiticica – num “clichê latino-americano, na sua incidência no contexto da superamérica”. Carmen Miranda, na época tropicalista, havia se tornado o emblema que lhes serviu de ferramenta de intervenção na cultura local. Nas

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palavras de Caetano Veloso: “O fato de ela ter se tornado, com o sucesso em Hollywood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar-se tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto de Hollywood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao extremo)”.7 A “aceitação desafiadora” transfigura-se num uso mais agressivo, porque já não é a imagem de Carmen Miranda, mas sim o corpo de um homem (Mario Montez) que se faz passar por ela. Dessa forma, significa a passagem da cultura de massa para a cultura underground; da imagem estereotipada do Brasil para uma imagem camp da ambiguidade sexual e da explosão trash-pop. O exotismo cosmopolita dos artistas do under-underground se estende a uma operação que tem por finalidade traçar um percurso que pretende fazer explodir a sociedade capitalista em decadência (“Agripina é Roma-Manhattan”) a partir de certas margens, que se revelam tanto atualíssimas quanto anacrônicas e intempestivas. É o percurso que vai do centro da América Latina até a grande metrópole: dos índios muíscas de Sousândrade ao corpo transformista do ator porto-riquenho. A celebração da cocaína de Manco Capac e da cultura inca num departamento do Village. Percurso por que também passa a imagem de Che Guevara, desde a selva boliviana até a cidade dos arranha-céus, na obra Diálogos con el Che, de Rodríguez Soltero e El día que me quieras, de Leandro Katz (na verdade, o próprio Katz chega em Nova York depois de percorrer toda a América Latina).8 E, sobretudo, o projeto Video Trans Americas (1973–1977), de Juan Downey, em que realiza uma viagem dos Estados Unidos até o Chile e no qual permanece oito meses no território Yanomani ao sul da Venezuela junto com sua esposa e sua enteada, e onde produz desenhos e vídeos.9 A ampliação universal do cosmopolitismo já não mais acontece como nas vanguardas históricas, ao sublinhar os processos de modernização da periferia, mas sim pela introdução do exotismo, que extrapola os limites da contemporaneidade metropolitana. E vai além disso, uma vez que o intrincado texto escrito por Hélio Oiticica sobre Mario Montez, intitulado “Tropicamp”, foi escrito para ser publicado no 7 VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 268. 8 E, num filme de Katz, aparece uma imagem de um parangolé de Oiticica. 9

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CORDOVA, Amalia. Aftereffects: Mapping the Experimetal Ethnography of Juan Downey in The Invisible Arachitect. Brooklyn Rail, June 4, 2012.


Brasil, e ilustrado por fotos de Carlos Vergara e uma foto de Carmen Miranda que havia sido resgatada por Andy Warhol em sua revista Interview. Qual sentido teria a publicação desse texto no Brasil, tendo como base filmes que alguns poucos – ou talvez ninguém – conhecia? Oiticica utiliza duas fontes: Underground film, a critical history (Nova York, Grove Press, 1969) e An introduction to the American Underground Film, de Sheldon Renan, sem saber, por certo, que o livro havia sido traduzido no Brasil, em 1970.10 Esse texto deve ser entendido como uma releitura e uma reorientação do tropicalismo. Oiticica lança seus conceitos-projéteis: Mario Montez é uma “estrêla tropi-hollywood”, um “clichê tropi-pop” da “pop-tropicália”; Mario Montez e Carmen Miranda são “duas das precursoras do que chamarei aqui de TROPICAMP” e “TROPICAMP é parte do que chamo TROPICÁLIA-SUBTERRÂNIA”. Há uma busca sensorial, uma construção de papéis sexuais e uma afirmação do underground (fora da grande mídia) que, tomando por base o tropicalismo, adentra novas searas: seria interessante abarcar todos os fenômenos dos quais Oiticica figura como um dos expoentes, como o glam latino, na medida em que promove o cruzamento entre a identidade como performance e o uso da maquiagem e ambivalência sexual como modos de questionamento do poder ditatorial e das normas da sociedade repressora. Em sintonia com sua máquina sensorial, Oiticica capta perfeitamente o que está sendo gestado no Brasil e haveria de se confirmar se Ney Matogrosso, Secos & Molhados ou Dzi Croquettes, que surgiram pouco tempo depois, não seriam mais que um prolongamento do Tropicamp que Hélio havia lançado, a partir do under-underground.

10 Tradução de Sérgio Maracajá.

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Tropicália Brasília: a pureza é um mito Paola Berenstein Jacques professora PPG-AU/FAUFBA e pesquisadora CNPq

O presente texto é uma versão de minha fala em 5 de julho de 2016 (que foi acompanhada de imagens projetadas por Dilton Lopes de seu Atlas Maracangalha Brasília) no Seminário Hélio Oiticica Para Além dos Mitos, que integrou as comemorações dos 20 anos do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Algumas ideias do texto foram inicialmente esboçadas no capítulo 3 “Derivas: participação e jogo” do livro: Elogio aos errantes (Salvador: EDUFBA, 2012).


O penetrável chave da minha nova conceituação da “obra”, do significado da “arte”, do conceito de antiarte, é o que possui, no seu interior, a inscrição A PUREZA É UM MITO. Hélio Oiticica

Nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dela toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz. Lúcio Costa

Brasília nasceu de um gesto primário. Dois eixos cruzando. Ou seja: o próprio sinal da cruz. Como quem pede benção ou perdão. Nicolas Behr

No texto manuscrito de 16/4/1967, “Tropicália (planos para construção)”, Hélio Oiticica contrapõe seu novo trabalho, Tropicália, ao que “era idealista, em certo sentido neoclássico, no outro, no que se aparentaria, o Cães de caça [seu trabalho anterior], ao evento de construção de Brasília na época.” Ele diz: “seria a quebra com todo o passado idealizante e foi concebido em 1966. A palavra – referindo-se à inscrição A PUREZA É UM MITO – toma um sentido importante, não só poético, mas dialético”.

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Como sabemos, o movimento moderno nas artes se constituiu no Brasil por uma tensão entre duas características a princípio contraditórias: o internacionalismo moderno e um profundo nacionalismo. O paradoxo residia no fato de que os artistas queriam atualizar a arte, afrontando-a com a nova realidade moderna da industrialização e, ao mesmo tempo, dar a ela um caráter nacional que, no caso do Brasil, era inevitavelmente vernáculo ou popular. As favelas, por exemplo, que poderiam ser consideradas a própria antítese de tudo o que poderia ser tido por moderno, passaram a ser expressão de certa modernidade glorificada por artistas modernos brasileiros e estrangeiros. Artistas estrangeiros, como Cendrars e Marinetti, e arquitetos urbanistas convidados, como Agache e Le Corbusier, visitaram o Morro da Favella no Rio (hoje Providência). Essa tensão moderno/popular, presente já no manifesto “Pau-brasil” (1924) – “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos” –, configurou-se como a grande ambiguidade moderna nacional e encontrou a sua mais engenhosa formulação em 1928 com o “Manifesto antropófago” de Oswald de Andrade, publicado no 1o número da Revista de Antropofagia. Nunca fomos catechisados. Vivemos através de um direito sonambulo. Fizemos Christo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. (Oswald de Andrade, 1928)

A relação entre a tropicália (o movimento) e a antropofagia é nítida, mas para a nova geração tropicalista a mistura entre a vanguarda artística e a cultura popular tinha de passar ainda mais pela vivência direta. A situação política e econômica do país, nesses dois momentos, era bem diferente: nos anos 1960 já se estava longe de uma visão utópica dos anos 1920 e começava-se a duvidar do sonho brasileiro, sobretudo do milagre econômico dos anos 1950. No entanto, é exatamente em 1960 que Brasília, talvez a imagem mais forte da afirmação nacional moderna, é inaugurada. Brasília passa a ser vista como o maior símbolo, o grande ícone, o maior mito, da modernização nacional. O traçado de seu plano-piloto, do projeto de Lúcio Costa de 1956,1 trazia os princípios funcionalistas e puristas 1 Vencedor do polêmico Concurso Nacional do Plano-Piloto da Nova Capital do Brasil, que ocorreu entre setembro de 1956 e março de 1957 e teve Oscar Niemeyer, na época diretor da Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital), como seu principal articulador, o plano-piloto de Lúcio Costa segue a separação de funções da Carta de Atenas, os principais princípios corbusianos e, em particular, a pureza estética moderna, mas também dialoga com outras ideias urbanísticas, como das cidades-jardins inglesas, por exemplo. Sobre o concurso ver: Braga, Milton. O concurso de Brasília (São

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defendidos por Le Corbusier, em particular a separação de funções no espaço – circulação, habitação, trabalho, lazer – da chamada Carta de Atenas, resultado do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) de 1933.2 Os princípios funcionalistas defendidos por Le Corbusier, expostos como doutrina na Carta de Atenas, já vinham massivamente norteando construções na Europa do pós-guerra, principalmente sob a forma de enormes conjuntos habitacionais que já eram alvo de críticas tanto dos próprios jovens arquitetos modernos do próprio Ciam, reunidos no grupo conhecido como Team X, quanto de outros pensadores e artistas como os letristas (futuros situacionistas). Para eles, esses conjuntos monótonos, repetitivos e, sobretudo, a separação de funções proposta por Le Corbusier – que virou ponto de doutrina na Carta – provocavam a passividade e a alienação da sociedade diante da monotonia da vida cotidiana moderna. Desde os primeiros números de Potlatch, boletim da Internacional Letrista (IL), de 1954, Le Corbusier passa a ser um dos maiores alvos de suas críticas irônicas: ele é citado como “o protestante ‘Modulor’, Le Corbusier-Sing-Sing”, suas obras são vistas como “estilo caserna militar”, o urbanismo moderno seria “sempre inspirado pelas diretrizes da polícia” ou ainda que “hoje a prisão passa a ser a habitação modelo”. Le Corbusier é criticado como o Barão Haussmann já tinha sido alvo em sua época pelas críticas de Baudelaire, dos dadaístas e surrealistas, que mostravam que Haussmann só teria feito seus bulevares para deixar passar os canhões. Brasília, cidade tida como burocrática, 3 também Paulo, Cosac Naify, 2010). Também sobre o concurso com outros projetos anteriores ver: Tavares, Jeferson. Projetos para Brasília 1927-1957 (Brasília: Iphan, 2014). 2

A Carta de Atenas se refere às discussões acerca da “cidade funcional” travadas durante o Ciam IV a bordo do Patris II em uma travessia Marselha-Atenas em 1933. A Carta só foi publicada dez anos depois pelo próprio Le Corbusier (sem a sua assinatura), durante a ocupação alemã de Paris. Outra versão dos debates é publicada logo depois por J-L Sert, arquiteto moderno catalão exilado nos Estados Unidos; o texto referente ao Ciam IV é muito semelhante, mas o livro de Sert Can our cities survive? é ilustrado e mostra fotografias das cidades norte-americanas na década de 1940, que já antecipam, de certa forma, os princípios propostos pela Carta. Vistas hoje, essas fotografias podem até parecer o anúncio do esgotamento das ideias urbanas modernas e do início do fim do próprio movimento moderno em arquitetura e urbanismo (e dos Ciams, o que ocorre em 1959).

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“o governo não criou uma cidade de burocratas [...] ele criou uma cidade para burocratas que eram uma minoria com acesso privilegiado a um âmbito público que excluía a vasta maioria. Assim, mesmo antes de sua inauguração, Brasília era uma cidade estratificada, onde a incorporação diferencial era condição fundamental de sua organização social” (James Holston). As críticas ao plano de Brasília são numerosas e variadas; o interessante a notar é como a modernidade nacional está atrelada, desde o início,

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é criticada, no seu primeiro aniversário, pelos situacionistas: Em Brasília, a arquitetura funcional revela o pleno desenvolvimento da arquitetura para funcionários, o instrumento e o microcosmo da Weltanschuung burocrática. Pode-se constatar que, onde o capitalismo burocrático e planificador já construiu seu cenário, o condicionamento é tão aperfeiçoado, a margem de escolha dos indivíduos é tão reduzida, que uma prática tão essencial para ele, como é a publicidade, que correspondeu a um estágio mais anárquico da concorrência, tende a desaparecer na maioria de suas formas e suportes. É possível que o urbanismo seja capaz de fundir todas as antigas publicidades numa única publicidade do urbanismo.4

Da mesma forma que Brasília passa a ser o mito urbano da pureza moderna, a “publicidade do urbanismo”, o grande ícone internacional da cidade funcional e da estética purista moderna, a Tropicália5 de Oiticica também passa a ser vista como uma síntese do movimento tropicalista à precariedade da vida dos candangos que a construíram e coexiste com essa precariedade. Essa ambiguidade fundamental da cidade transparece em alguns trabalhos etnográficos: um dos mais conhecidos é a etnografia crítica do movimento moderno, de James Holston, citado acima, que, em 1989, publicou The modernist city, an anthropological critique of Brasília; um livro mais recente é o do sociólogo Brasilmar Nunes de 2004, falecido recentemente: Brasília: a fantasia corporificada; nessa mesma linha destaco também a montagem de Dilton Lopes, Atlas Brasília Maracangalha, mestrado em curso, PPG-AU/FAUFBA, Salvador, 2016, exibido no Seminário Hélio Oiticica além dos mitos. 4

Jacques, Paola Berenstein (org.). Internacional situacionista. Apologia da deriva. Escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 136.

5 “Tropicália é um ambiente constituído de dois Penetráveis – A pureza é um mito e Imagética –, dispostos em um cenário tropical, com plantas e araras; no chão, caminhos de areia, de cascalho e de terra, que meio-escondem poemas-objetos (de Roberta Oiticica). O primeiro penetrável é muito simples: uma cabine de madeira, com a inscrição interior – “A pureza é um mito”. O sentido é evidente, toda a fase purista de seu trabalho neoconcretista se desmancha depois da descoberta da favela, da vida dos morros, onde a ‘pureza formal’ efetivamente inexiste. O segundo penetrável é bem complexo: trata-se de um verdadeiro labirinto no interior de uma estrutura de madeira, tecidos, tela e outros materiais precários, com apenas uma entrada/saída. Penetrar nesse labirinto lembra o caminhar numa favela. Na extremidade do percurso, encontra-se uma televisão permanentemente ligada que justifica o título da obra: Imagética. Essa obra é, na verdade, um condensado e imagens, de “representações”, a partir da decoração tropical externa, passando pela alusão direta à ambiência das favelas com o percurso labiríntico e os materiais escolhidos, até chegar à imagem da imagem na tela da televisão, que funciona como um espelho no fundo do labirinto.” Ver capítulo 2, “Labirinto”, do livro Estética da ginga, a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001).

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(ou do chamado tropicalismo6): a contestação do mito da pureza na arte; a incorporação das experiências mais populares, como a arquitetura e a forma de vida comunitária das favelas; e aquilo que será também a maior ambiguidade tropicalista: simultaneamente, a incorporação da cultura de massa – como pode ser vista a questão da TV, da profusão de imagens – e uma postura ao mesmo tempo crítica e apologética. Oiticica visava com Tropicália fazer a “obra mais antropofágica da arte brasileira”, com sua ambiência tropical exagerada, atualizar a antropofagia do final dos anos 1920, propondo, como ele dizia, uma “superantropofagia”, que buscaria impedir o colonialismo cultural ainda existente na geração de artistas modernistas, propondo uma vivência mais próxima dos morros, da arquitetura das favelas cariocas, das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios... Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente “brasileira” ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formação do Parangolé em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e consequentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios etc.7 6 Como sabemos, os “ismos” já trazem consigo uma diluição massificada e são usados pelos opositores dos movimentos, como disse o poeta concreto Haroldo de Campos em conversa com Hélio Oiticica em 1971 (nas famosas Héliotapes): “Essa coisa de ‘ismo’ se passa sempre. Os críticos mais conservadores, os artistas que não têm o mesmo empenho em fazer uma contínua invenção, eles procuram acrescentar a palavra ‘ismo’ toda vez que se faz alguma coisa nova dentro do campo da arte, porque é uma maneira de etiquetar e transformar essa coisa em objeto de museu e permitir que não se fale mais no assunto [...] O tropicalismo é uma etiqueta que não tem nada a ver com a ideia de tropicália, que é uma espécie de neoantropofagia, neocanibalismo oswaldiano, uma devoração crítica do museu brasileiro. Isso é que é a tropicália, em termos ativos, e não passivos.” Frederico Coelho na nota editorial do livro Tropicália busca entender “um evento múltiplo como o Tropicalismo [...] não como um movimento cultural, como a historiografia sempre nos apresentou, mas sim como uma movimentação cultural [...] O Tropicalismo, se definido como essa movimentação, foi, de fato, muito mais a reunião criativa de contradições do que a confluência plácida de consensos”. Tropicália seria então esse “tropicalismo” sem ser “ismo”, como movimentação cultural dissensual e contraditória. Nas definições situacionistas também podemos ler, por exemplo, a seguinte definição para situacionismo: “Vocábulo sem sentido [...] Não existe situacionismo, o que significaria uma doutrina de interpretação dos fatos existentes. A noção de situacionismo foi evidentemente elaborada por antissituacionistas”. (Jacques, Paola Berenstein (org.). Internacional situacionista. Op. cit., p. 11). 7

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Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salomão, Waly (org.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 106.


A antropofagia seria a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, e a principal arma criativa, essa vontade construtiva, o que não impediu de todo uma espécie de colonialismo cultural, que de modo objetivo queremos hoje abolir, absorvendo-o diretamente numa superantropofagia.8

No lugar do mito primitivo dos índios antropófagos, temos agora o mito popular das ruas e favelas. Em vez de devorar, Oiticica propõe incorporar e exagerar ao extremo essa imagem tropical para buscar ir além dela, para tentar ir além dos mitos. A antropofagia moderna precisava ser desmitificada. Também como uma resposta à pop art norte-americana, no lugar do Stars and stripes, de Marylin Monroe ou da sopa Campbell’s, Oiticica propunha bananeiras, araras e favelas. Além do exagero cenográfico, o que continuava sendo proposto era de fato “a arte das ruas”, das favelas, a arte anônima realizada pelo Outro, pelos vários outros urbanos. A principal tensão tropicalista, herança antropofágica – entre moderno e vernáculo, entre progresso e atraso, entre cultura de massa e cultura popular – surge em várias faixas do disco-manifesto Tropicália ou panis e circensis. As canções eram, como dizia Oiticica, “delírios concretos”, montagens quase cinematográficas, como o quase-cinema de Oiticica, que dialoga com a ideia de détournement (desvio ou apropriação) situacionista, sobretudo dos filmes de Guy Debord. A colagem das diferentes imagens das canções – sempre “representações” do país misturadas com vivências pessoais – fazia surgir uma temporalidade diferente, não linear, embriagante. Talvez a ambiguidade tropicalista – a crítica e, ao mesmo tempo, fascinação pelas cidades em transformação; a nova vida urbana das grandes cidades, e sua ironia alegre, mas por vezes corrosiva – apareça de forma mais clara em Parque industrial de Tom Zé. O “sorriso engarrafado” nos remete diretamente à promessa de felicidade das propagandas capitalistas, reproduzidas ironicamente nas revistas situacionistas, e à crítica a essas promessas, a essa “sociedade do espetáculo”, captada por Debord e situacionistas. Debord diz na conferência “Perspectivas de modificações conscientes na vida cotidiana”, realizada por meio de um gravador em 17 de maio de 1961 no CNRS, para o grupo de pesquisa de Henri Lefebvre:9 8

Oiticica, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. In: Ferreira, Glória; Cotrim, Cecília (orgs.). Escrito de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 155.

9 O contato entre os situacionistas e o sociólogo e filósofo Henri Lefebvre (1901-1991) foi em um primeiro momento extremamente cordial, mas depois trouxe vários desentendimentos, principalmente com Guy Debord, que não aceitava as implicações institucionais de Lefebvre (tanto com o partido comunista quanto com o CNRS e as universidades), e a dissociação entre sua vida e seu pensamento teórico. Lefebvre, importante e conceituado pensador marxista, publicou muitos livros sobre a questão

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Tudo depende efetivamente do nível em que se ousa formular o problema: como vivemos? Como ficamos satisfeitos? Insatisfeitos? Isso sem deixarmos nunca intimidar pelas diversas formas de publicidade que visam persuadir que o homem pode ser feliz por causa da existência de Deus, ou do dentifrício Colgate, ou do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa da França).10

Em Geleia geral, expressão que se consolidou como uma síntese da própria tropicália, Gilberto Gil e Torquato Neto reúnem o vernáculo/passado e o moderno/futuro e retomam o manifesto antropófago: “A alegria é a prova dos nove [...] Pindorama, país do futuro [...] Pego um jato/viajo/arrebento [...] Voz do morro, pilão de concreto/Tropicália, bananas ao vento”. Em Enquanto seu lobo não vem, Caetano Veloso faz na letra da canção exatamente o que Oiticica chamava de delírio concreto: a canção é uma errância imaginária, muito próxima das narrativas surrealistas. O mais curioso é que o que foi imaginado se tornará possível vários anos depois, com a abertura do metrô na av. Presidente Vargas. Oiticica faz alguns trabalhos sobre o tema em 1978: “experiência do mito-desmitificado – Avenida Presidente Vargas-Kyoto-Gaudi” e “Manhattan Brutalista – objet semi mágico trouvé” e diz, em 1968, que “durante a Passeata dos Cem Mil, vinha-me a todo momento, e também a amigos meus que conheciam a música, o ritmo e as frases de Enquanto seu lobo não vem”: “Vamos passear pela floreta escondida, meu amor/ Vamos passear na avenida [...] A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas/ Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas/ Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas/ Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil/ Vamos passear escondidos/ Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou/ Vamos por debaixo das ruas.” Então eu pego pedaços de asfalto da avenida Presidente Vargas, antes de taparem o buraco do metrô, todos os pedaços de asfalto que tinham sido levantados. Quando eu apanhei esses pedaços de asfalto, me lembrei que Caetano uma vez fez uma música (disse até que pensou em mim depois que fez) que falava o negócio da “Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas, passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas”. Aí eu pensei, esses pedaços de asfalto, soltos, que eu peguei como fragmentos e levei para casa, agora, aquela avenida estava esburacada por baixo, e na realidade, a Estação Primeira da Mangueira vai passar por debaixo da urbana, e talvez o mais importante deles, no auge de Maio de 68, O direito à cidade. Sobre a relação entre situacionistas e Lefebvre ver: “Lefebvre on the Situationnists: an interview”, em October no 79, MIT Press, Winter 1997. 10 Debord, Guy. Internacional Situacionista, n. 6, agosto de 1961.

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Avenida Presidente Vargas. Uma coisa que era virtual quando Caetano fez a música, de repente, se transformou num delírio concreto. O delírio ambulatório é um delírio concreto.11

Talvez a canção que melhor sintetize essa complexa ambiguidade tropicalista, suas diferentes superposições de imagens e de significados diferentes – em particular dessa coexistência de opostos no contexto nacional: saberes e fazeres ancestrais, cultura e indústria de massa – seja a canção concreta Batmakumba (“Batmakumbayêyê batmakumbaibá”) de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que o próprio Augusto de Campos chamou de “batmakumba para futuristas”, em oposição ao que Oswald de Andrade criticava: a “macumba para turistas”. Como diz Antônio Risério, “Batmakumba é exemplar, no campo dessa tematização estética da multiplicidade da vida brasileira”, multiplicidade essa que, em outra passagem, ele chama de “o Brasil de Maracangalha e Brasília – e de maracangalhas em brasílias”. Brasília surge mais uma vez para mostrar essa coexistência de opostos e toda a ambiguidade, ou a ambivalência crítica para citar Hélio Oiticica, tropicalista. Nesse mesmo ano mítico de 1968, em âmbito tanto nacional (AI-5) quanto internacional, seria impossível separar os cenários interno e externo, complexos e contraditórios. Os jovens do mundo todo estavam se rebelando contra as regras impostas: no EUA com os hippies; na Inglaterra com a swinging London; na França com o Maio de 68. Enquanto na França, os situacionistas distribuem panfletos, muitas vezes em quadrinhos, e escrevem frases nos muros das universidades e da cidade (Ne travaillez jamais ou Sous les pavés, la plage), incitando os jovens e estudantes à revolução da vida cotidiana, que resulta no Maio de 1968,12 no Brasil, a ditadura militar se reforçava com o AI-5. Caetano Veloso lança em disco, com capa também tropicalista de Rogério Duarte, Alegria, alegria (“por

11 Hélio Oiticica em “Hélio Oiticica, entrevista a Ivan Cardoso”. Folha de S. Paulo, 16 de novembro de 1985. 12 Os situacionistas não só instigaram o Maio de 1968 na França, como participaram ativamente das ocupações. Eles criaram um grupo ampliado ao atuar nas ocupações, o comitê Enragées-IS. René Viénet relatou essa experiência: “O insólito se tornava cotidiano na mistura em que o cotidiano se abria a surpreendentes possiblidades de mudança... No espaço de uma semana, milhões de pessoas tinham rompido com o peso das condições alienantes, com a rotina da sobrevivência, com o mundo invertido do espetáculo. [...] A desaparição do trabalho forçado coincidia necessariamente com o livre curso da criatividade em todos os domínios: inscrição, linguagem, comportamento, tática, técnicas de combate, agitação, canções, cartazes e quadrinhos.” Sobre os escritos situacionistas sobre a cidade ver o livro: Apologia da deriva (Rio de Janeiro, Casa da palavra, 2003).

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que não?/ por que não?”) e a canção, também intitulada Tropicália,13 que começa: “Sobre a cabeça os aviões/ sob os meus pés os caminhões/ aponta contra os chapadões/ meu nariz / eu organizo o movimento/ eu oriento o carnaval/ eu inauguro o monumento/ no planalto central do país.” A letra da canção, cheia de imagens e referências contraditórias, gira também em torno dessa tensão antropofágica/tropicalista entre o moderno e o popular. A “canção-monumento”, como disse o próprio Caetano Veloso,14 ao mesmo tempo em que denota essa vontade construtiva evocada por Oiticica no texto manifesto “Nova objetividade brasileira” de 1967 – “eu inauguro o monumento” – também faz uma ressalva, “o monumento é de papel crepom e prata”. Não podemos deixar de perceber novamente a alusão à nova capital federal, o monumento moderno no planalto central do país, Brasília, símbolo da arquitetura e urbanismo modernos, da modernização nacional e, também, nesse momento, sede da mais rígida ditadura militar.15 O Brasil de Tropicália e de Brasília e, também, de tropicálias em brasílias.

13 Caetano Veloso ainda não conhecia Hélio Oiticica nem seu trabalho quando compôs Tropicália. Foi um amigo em comum, Luís Carlos Barreto (então fotógrafo de Terra em transe, filme de Glauber Rocha) que propôs o nome quando escutou a canção e se lembrou imediatamente da obra de Oiticica exposta no MAM do Rio. Barreto tinha razão: as duas obras tinham relações claras e seus autores depois se tornaram amigos, sobretudo no exílio de ambos em Londres. 14 No livro Verdade tropical, Caetano Veloso escreve: “A ideia de Brasília fez meu coração disparar por provar-se eficaz nesse sentido. Brasília, a capital-monumento, o sonho mágico transformado em experimento moderno – e, quase desde o princípio, o centro do poder abominável dos ditadores militares. Decidi-me: Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”. Pode-se relacionar essa ideia com o curta sobre Brasília de Joaquim Pedro de Andrade, de 1967, Brasília, contradições de uma cidade nova. Esse curta é anterior ao seu filme mais tropicalista, Macunaíma, baseado no livro homônimo antropofágico de Mário de Andrade, com Grande Otelo no papel do herói sem caráter. 15 “Fala-se sempre da ruptura de 1964 como o momento em que a violência se instala. Mas é preciso não esquecer que essa violência já estava nos canteiros de Brasília. O fortalecimento da dimensão autoritária favoreceu, na arquitetura, o desenvolvimento do risco, mas num outro sentido, do traço, da mão que comanda, da arbitrariedade mesma do seu movimento que, por força de vontade, quer impor aquilo que já na realidade começa a esmaecer. Essa necessidade do polo autoritário, a meu ver, foi o que levou a que a violência ainda disfarçável de Brasília passasse a não poder mais ser escondida a partir da ditadura.” (Sérgio Ferro) Sobre a violência dos canteiros na construção da capital federal (contestada por Lúcio Costa até sua morte que dizia desconhecer as precárias condições de trabalho que resultaram na morte de muitos operários) ver os filmes de Vladimir Carvalho sobre Brasília, em particular, Conterrâneos velhos de guerra, de 1992, com entrevista com Lúcio Costa logo no início.

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Segundo Carlos Basualdo, “poderia afirmar-se que Brasília é o dado real, efetivo, ao qual se contrapõe seu duplo mítico, Tropicália.”16 Poderíamos nos questionar também sobre uma possível crítica ao mito da pureza do projeto moderno e racionalista de Lúcio Costa. O traçado purista de seu plano-piloto em forma de cruz ou avião pode ser visto como o exato avesso da complexidade formal das favelas brasileiras, ou da própria periferia mais pobre de Brasília, no entorno do plano-piloto. Cidades-satélite (como uma das mais conhecidas, Ceilândia, a cidade da antiga CEI – Cia de Erradicação de Invasões/Favelas do DF17) onde mora, ainda hoje, boa parte dos antigos candangos (operários que vieram de várias áreas do país e moravam em favelas improvisadas na época da construção da cidade, como a Cidade Livre, oficialmente nomeada de Núcleo Bandeirante) que construíram Brasília com as próprias mãos, mas que depois de sua inauguração, em 1960, foram removidos e expulsos para a periferia do Plano-Piloto projetado por Lúcio Costa somente para os funcionários da capital federal. Em 1964, Lúcio Costa foi o responsável pelo pavilhão brasileiro na XII Trienal de Milão e, curiosamente, ou talvez, tropicalisticamente, projetou um espaço para o ócio, o que poderíamos chamar, a partir de Oiticica, de um “penetrável”: Riposatevi (repouse ou relaxe). Trata-se de um espaço tropical com várias redes, violões e diferentes imagens (com fotografias de Marcel Gautherot) do país: jangadas, praias e, como não poderia deixar de ser, as superquadras de Brasília, o Congresso Nacional, a praça dos Três Poderes e, o que poderia ser visto como a síntese de tudo isso, a região mais popular do plano-piloto de Lúcio Costa: a rodoviária de Brasília. Eduardo Rossetti chegou a chamar Riposatevi de “a Tropicália de Lúcio Costa”18, a semelhança é de fato impressionante, Riposatevi de certa forma também antecipa, como uma forma de “instalação” com várias redes, as Cosmococas de Oiticica.

16 Catálogo “Tropicália, uma revolução na cultura brasileira 1967-1972”, organizado por Carlos Basualdo. 17 Sobre o tema ver os fantásticos filmes de Adirley Queiroz, em particular, A cidade é uma só, de 2011. 18 Rossetti, Eduardo P. Riposatevi, a tropicália de Lúcio Costa: o Brasil na XIII Trienal de Milão. Arquitextos, São Paulo, jan. 2006. O mesmo autor apresentou dissertação de mestrado sobre a relação entre Lina Bo Bardi e a cultura popular: “Tensão moderno/ popular em Lina Bo Bardi – nexos de arquitetura” (PPG-AU, UFBA, Salvador, 2002). Em 2010 durante as comemorações do cinquentenário de Brasília, Riposatevi foi “remontada”, em Brasília, na exposição “Lúcio Costa – arquiteto”. Essa mesma remontagem foi exposta/instalada na Bienal de Veneza em 2013.

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Assim, a nossa participação nesta Trienal devendo ser econômica – por força das circunstâncias – poderá também resultar atraente e útil para o público de um modo geral por sua singularidade. Bastará apresentarmos ali um ambiente de estar “mobiliado” apenas com redes – cerca de 14 – e alguns violões dos mais singelos, ambiente este destinado a acolher o inevitável cansaço dos visitantes da exposição, e que, por sua índole, despertará fatalmente a curiosidade de todos. [...] as redes de algodão, da fábrica Filomeno, serão brancas, verdes, azuis, amarelas, cor de abóbora, roxas e vermelhas (tal como são vendidas no Ceará).19

Lúcio Costa, apesar desse fugaz diálogo indireto, que só confirma toda a ambiguidade moderna brasileira – uma complexa relação ou tensão com a cultura popular e/ou vernácula que o próprio Costa já mostrava tanto em seu início de carreira com seus projetos neocoloniais quanto a partir de toda sua participação na formulação e desenvolvimento do Sphan (hoje Iphan) de 1937 até 197220 – não participa, obviamente, do movimento tropicalista. Com relação ao campo da arquitetura, o único nome citado como “tropicalista”, entre alguns autores e curadores21 (mas não por ela), é o de Lina Bo Bardi, que trabalhou intensamente sobre a cultura popular brasileira e, em particular, a nordestina. Enquanto Lúcio Costa busca levar uma imagem “tropical” do Brasil para Itália, Lina Bo Bardi veio da Itália procurar o Brasil no seu interior e, em particular, no sertão nordestino. Na exposição “Nordeste”, em Salvador, em 1963, que inaugura o Museu de Arte Popular do Solar do Unhão – por ela reformado, hoje MAM-BA, que na época recebia vários jovens artistas (futuros tropicalistas) em suas atividades –, Lina Bo Bardi também mostra uma série de objetos populares 19 Costa, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995. 20 É importante notar que na época do projeto e da construção de Brasília, Lúcio Costa ainda é vinculado ao Sphan, talvez o texto que mostre melhor seu posicionamento seja o artigo “Documentação necessária” publicado (com croquis do autor) no 1o número da Revista do Sphan, em 1938. Diferentemente das vanguardas europeias, que buscavam se distinguir de tudo que poderia ser considerado “passadista”, a tensão (mesmo que por muitas vezes pacificada) entre tradição e modernidade é uma característica singular do projeto moderno nacional, o que pode ser visto na prática institucional do Sphan desde sua criação, uma vez que o próprio serviço do patrimônio nacional no país foi idealizado pelos pensadores e arquitetos modernos (como Mário de Andrade e Lúcio Costa), que ao mesmo tempo, também de forma ambígua ou ambivalente, constroem tanto a tradição vernácula (sobretudo da arquitetura colonial) quanto a moderna (o tombamento de Brasília é um bom exemplo). Sobre o tema ver Rubino, Silvana. Lúcio Costa e o patrimônio histórico e artístico nacional. In: Revista USP n. 53, São Paulo, 2002. 21 Como na grande exposição que circulou entre 2006 e 2007 – em Chicago, Londres, Berlim, Nova Iorque e Rio de Janeiro – e seu catálogo, “Tropicália, uma revolução na cultura brasileira 1967-1972”, organizado por Basualdo.

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e cotidianos que coletou em feiras e mercados populares do nordeste do país: carrancas, jangadas, pilões, lamparinas, redes etc. Ela explica sua proposta no catálogo: Esta exposição que inaugura o Museu de Arte Popular do Unhão deveria chamar-se Civilização do Nordeste. Civilização. Procurando tirar da palavra o sentido áulico-retórico que a acompanha. Civilização é o aspecto prático da cultura, é a vida dos homens em todos os instantes. Esta exposição procura apresentar uma civilização pensada em todos os detalhes, estudada tecnicamente (mesmo se a palavra “técnico” define aqui um trabalho primitivo), desde a iluminação até as colheres de cozinha, as colchas, as roupas, bules, brinquedos, móveis, armas. [...] Matéria-prima: o lixo. Lâmpadas queimadas, recortes de tecido, latas de lubrificantes, caixas velhas, jornais. (Lina Bo Bardi, 1963)

As experiências mais populares e cotidianas, além, portanto, do mito da pureza desses dois arquitetos modernos – Lúcio Costa, com Riposatevi, e Lina Bo Bardi, com a proposta do Museu de Arte Popular – explicitam essa ambiguidade moderna brasileira, uma coexistência tensa e dissensual entre moderno e popular, que pode ser diretamente relacionada a zonas urbanas dissensuais de todas as grandes cidades brasileiras, indicando-nos um liminar interessante, zonas de indecibilidade ou “zonas de tensão” – liminaridades sempre trabalhadas de forma consciente por Hélio Oiticica, em particular a partir da ideia de ambivalência crítica, uma coexistência conflituosa de opostos contra qualquer polarização dicotômica simplista ou totalizante – para pensarmos de forma menos pura ou mitificada (e portanto menos polarizada ou dicotômica) tanto a arte quanto a cidade: entre público e privado, entre informalidade e formalidade, entre gambiarra e regulamentação, entre transgressão e institucionalização, entre desordem e ordem, entre experimental e oficial, entre popular e moderno, entre prática e projeto, entre opaco e luminoso, entre Tropicália e Brasília. Essa tensão moderno/popular que é tão presente na arte brasileira tanto no período da antropofagia modernista quanto no da superantropofagia tropicalista, está visível também no próprio espaço público da maioria das nossas grandes cidades brasileiras. Essa tensão conflituosa e dissensual, entre o novo e o antigo, entre o moderno e o vernáculo, entre o erudito e o popular, entre aquilo que o geógrafo Milton Santos chamava de zonas luminosas e de zonas opacas, ou seja, a tensão entre os novos espaços espetaculares e os antigos espaços populares, é precisamente o que os projetos urbanos contemporâneos ainda visam hoje ocultar ao buscar a eliminação dos conflitos e a pacificação dos nossos espaços urbanos

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contemporâneos. Além das zonas opacas das cidades periféricas, ou das periferias das grandes cidades globalizadas, a opacidade urbana não se restringe aos espaços opacos mais delimitados de nossas cidades, como as favelas, mas se infiltram também nos seus espaços mais luminosos, através de uma série de atores – vendedores ambulantes, moradores de rua, catadores de lixo, prostitutas etc. – aqueles que, não por acaso, são os primeiros alvos da assepsia promovida pela maioria dos projetos urbanos pacificadores, em particular nas cidades que não foram projetadas ex-nihilo, e segregadas desde seu plano, como Brasília. Apesar da aparente oposição binária entre Tropicália e Brasília, ao olharmos a cidade de Brasília com atenção como, por exemplo, nas fotografias históricas de Marcel Gautherot22 da construção da cidade, podemos ver que “o espírito de Tropicália” – para falar como James Holston que no aniversário de 50 anos da cidade clamava por libertar o “espírito de Brasília”, um espírito experimental que teria sido congelado com seu tombamento patrimonial – sempre esteve presente, mesmo que à revelia, em Brasília. Mesmo no plano-piloto – projetado para ser regular, uniformizado e segregado socialmente – podemos encontrar traços de Tropicália nos numerosos rastros dos pedestres que criam caminhos sinuosos improvisados nos amplos gramados da cidade ou ainda nas poucas vilas/favelas que conseguiram resistir e permanecer e, assim, desviam de seu traçado regular, como a Vila Planalto.23

22 Imagens disponíveis no livro que comemorava os 50 anos de Brasília e os 100 anos de nascimento do fotógrafo. Marcel Gautherot, Brasília. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles (IMS), 2010. Na orelha do livro os professores Sylvia Ficher e Andrey Schelle explicam: “Um canteiro de obras se metamorfoseando em capital. Uma arquitetura em estado bruto, de madeira, de ferro, de concreto. Formas e “fôrmas” com as marcas das mãos de seus trabalhadores sempre anônimos. Uma arquitetura de severinos. De ‘[...] muitos severinos,/iguais em tudo e na sina:/a de abrandar estas pedras/ suando-se muito em cima’, como disse João Cabral de Melo Neto. Mas esses protagonistas não citados na saga brasiliense, individualmente, também estão no foco da câmera de Gautherot, surpreendidos no improvisado cotidiano do seu improvido habitat – de lona e de saco e de poeira.” Algumas dessas fotografias históricas de Gautherot da construção de Brasília estão expostas atualmente na exposição “Modernidades fotográficas”, no IMS do Rio de Janeiro, com catálogo homônimo. 23 Várias vilas/favelas da capital, habitadas pelos migrantes (em sua maioria operários e suas famílias), foram removidas após a inauguração pela CEI – Cia de Erradicação de Invasões do Distrito Federal. Uma delas, a Vila Amaury foi alagada e ainda existe hoje, submersa, no lago Paranoá. Sobre favelas e cidades-satélites de Brasília ver: Holston, James. A cidade modernista, uma crítica de Brasília e sua utopia. Cia das Letras, 1993 (2a edição comemorativa dos 50 anos de Brasília de 2010, com novo prefácio “Libertem o espírito de Brasília”).

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As fotos históricas de Gautherot, os vários textos críticos sobre a cidade desde o fim dos anos 1950 – como dos intelectuais que visitaram a cidade ainda em obras no Congresso de Crítcos de Arte em 1959 – ou ainda, um simples passeio pela movimentada e popular rodoviária da capital federal, mostram que essas “zonas de tensão”, esses limiares de indecibilidade, não só permanecem presentes ainda hoje em Brasília como existem desde antes de sua inauguração, desde sua construção no meio do Cerrado. Construção moderna bastante rudimentar e arcaica, extremamente perigosa, nesse gigantesco canteiro de obras no planalto central do país, que formou uma enorme população de milhares de operários, migrantes de vários estados. Para além, ou na fusão, dos mitos – tanto de Tropicália, transformada em mito fundador pelo movimento tropicalista, quanto de Brasília, já projetada como mito (funerário?) moderno – ao procurarmos o que haveria de Tropicália em Brasília, encontraremos aquilo que o próprio Oicicica chamou antes de “gênio anônimo coletivo”,24 ou seja, chegamos aos próprios construtores dessa nova cidade moderna, os anônimos candangos sobreviventes – sabemos quantos morreram para que a cidade pudesse ser construída em tempo recorde, como mostrou Vladimir Carvalho em seus filmes – ou seus descendentes, que ainda moram na cidade ou no seu entorno e podem ser encontrados ainda hoje no grande melting pot da rodoviária dessa “capital aérea e rodoviária”, como disse Lúcio Costa no relatório do plano-piloto para o concurso. Os candangos se aproximam do “gênio anônimo” de Hélio Oiticica assim como daqueles que Milton Santos chamava de “homens lentos” e Ana Clara Torres Ribeiro, de “sujeitos corporificados”, sem dúvida alguma eles ainda carregam “o espírito de Tropicália” em seus corpos, incorporando assim, e sempre, Tropicálias em Brasílias.

24 “Quero fazer voltar o Parangolé ao gênio anônimo coletivo de onde surgiu, e com isso jogar fora os probleminhas de estética que ainda assolam nossa vanguarda em sua maioria, transformando a pequenez desses problemas em algo maior [...] nas Escolas de Samba ninguém sabe quem fez isso ou aquilo; o importante é o todo onde cada um dá tudo o que tem. Minha experiência como passista da Mangueira é fundamental para que eu me lembre disto: cada qual cria seu samba com improviso, segundo seu modo e não seguindo modelos; os que o fazem seguindo modelos não sabem o que seja o samba ou sambar” Entrevista para Mário Barata, “Hélio Oiticica: A vanguarda deve jogar fora o esteticismo”. Jornal do Commercio, 16/7/1967.

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Tropicália: objetivação de uma imagem brasileira Celso Favaretto Doutor em filosofia e professor de pós-graduação na USP


Há duas entradas obrigatórias para se apreender a ideia que comanda Tropicália: uma, a artística, centrada no ambiente de Hélio Oiticica situado no horizonte de suas proposições, como uma formulação que vinha da sua teoria-parangolé, fincada ao seu “sentido de construção” – uma passagem em que a expressão “a pureza é um mito” indica uma “superação do abstrato-conceitual”, ou seja, da configuração das relações entre estrutura e cor, que presidiu à invenção dos metaesquemas aos bólides, transfiguradas com a emergência do parangolé; outra, de crítica da cultura, efetuada por uma estratégia, coincidente com a dos tropicalistas: um procedimento teórico-crítico cuja singularidade e eficácia se distinguiram sobremaneira das posições então correntes que debatiam aspectos da modernização e da modernidade no Brasil. Em Tropicália, a desmitificação do primado da estrutura-cor, da pureza da arte e das mistificações culturais que a envolvem se fazia por uma modalidade específica de pensamento da arte que ele designou como “jogo com a ambivalência” – uma estratégia de pensamento resistente ao princípio de contradição, voltada para a afirmação da sua posição ético-estética na evidenciação do “Brasil diarreia”, especialmente como crítica das imagens fixadas como brasileiras.

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Tropicália apareceu com destaque em um momento em que uma ampla circulação de ideias e realizações artísticas de vanguarda processavam uma rearticulação da reflexão e práticas políticas depois de 64. Na mostra “Nova objetividade brasileira”, em 1967, cujo texto base é de Oiticica, a manifestação ambiental se situou com destaque ao lado de uma ampla e variada produção de vanguarda. O trabalho de Oiticica foi sempre contextualizado: quer dizer, diante das transformações nas experimentações artísticas contemporâneas disparadas pela “morte da arte”, pela abertura das circunscrições tradicionais do trabalho artístico, tanto da atividade dos artistas como da vida histórica das artes, das circunscrições institucionais, a sua obra sempre esteve relacionada a situações de arte e de cultura. Entenda-se: arte de intervenção, arte participativa, arte urbana, etc., das décadas de 1960 e 1970 ou atuais, sempre implicaram e ainda implicam as circunstâncias que envolvem as ações, pondo em relação a obra e a realidade, a situação e os acontecimentos. Naquele tempo das promessas, tratava-se de propor a arte como modalidade de intervenção na realidade como um todo, especificada em alguns de seus aspectos – no sistema de produção cultural e de comunicação, como nas práticas tropicalistas, por exemplo. Tratava-se de fazer a crítica dos lugares institucionalizados de evidenciação e de circulação da arte. Uma arte da ação, de convite, exigência ou imposição de participação, que seria irrecuperável pelo princípio da representação, concebia experiências que implicavam o coletivo, no modo de se apresentar e na significação, visando quase sempre a uma eficácia, senão imediata, simbólica. Essas experiências configuravam novos modos de sentir, de relacionar-se, de agir socialmente, com que pretendiam induzir novas formas de subjetividade política, pelo entendimento que faziam da fusão da arte com a vida no tempo das ilusões revolucionárias, das mudanças dos comportamentos, das promessas de emancipação. Assim, a Tropicália de Hélio Oiticica é uma proposição artística situada no cerne dessa discussão artística e das reflexões estéticas daquele tempo, em todo lugar mas com referência específica ao que ele dominava vanguarda brasileira e ao mesmo tempo elaboração de uma posição crítica sobre os discursos ético-estéticos correntes que vinham se formulando desde o modernismo, centrados na constituição de imagens de Brasil; mais proximamente, focalizavam as relações entre arte e sociedade, tematizadas pelo menos desde meados dos anos de 1950. Tropicália é também uma singular experiência de pensamento na arte; ou, parafraseando Mário Pedrosa, “um exercício experimental do pensamento” na arte, em que os efeitos da invenção de conceitos e produção de sentido, são contingentes, autorrefenciais, implicando uma nomeação toda original que

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aparece por pura necessidade dos seus desenvolvimentos à medida que o trabalho exigia. Oiticica é um desses pensadores que avançam sempre; desde o início, quando dispara o seu programa com o parangolé, a pulsão que conduz os seus desenvolvimentos é sempre de avanço, sem titubear. Propondo, inventando proposições, o pensamento de Oiticica se desenvolveu aparentemente em linha reta, na verdade afirmando o devir como movimento da obra. O seu programa in progress definiu uma posição propriamente estética e uma prática artística que, enquanto criticava as idealizações que ainda recobriam o domínio artístico e o cultural, abria uma pletora de intervenções singularizadas que destoavam da mesmice e do conformismo artístico, cultural e político que dava a tônica ao que denominou a diarreia brasileira. A crítica à concepção imperante de obra, à mistificação do artista e ao sistema da arte, enfim, à descentralização da arte, “pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial”,1 levou-o, através de proposições em sequência, à passagem da posição “de querer criar um mundo estético, mundo-arte, superposição de uma estrutura sobre o cotidiano, para descobrir os elementos desse cotidiano, do comportamento humano, e transformá-lo por suas próprias leis, com proposições abertas, não condicionadas, único meio possível como ponto de partida para isso”. E ainda: Está claro que a “ideação” anterior substitui a “fenomenação” de hoje. O artista não é então o que declancha os tipos acabados, mesmo que altamente universais, mas sim propõe estruturas abertas diretamente ao comportamento, inclusive propõe propor, o que é mais importante como consequência. A obra antiga, peça única, microcosmo, a totalidade de uma ideia-estrutura, transformou-se, com o conceito de objeto, também numa proposição para o comportamento [...]: estruturas palpáveis existem para propor, como abrigos aos significados, não uma “visão” para um mundo, mas a proposição para a construção do “seu mundo”, com os elementos da sua subjetividade, que encontram aí razões para se manifestar: são levados a isso.2

Contudo, a passagem do “mundo das imagens do abstrato conceitual” para o comportamento não implicava para ele a simples diluição das estruturas – pois “o que importa, ainda, é a estrutura interna das proposi1 OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. FIGUEIREDO, Luciano; PAPE, Lygia e SALOMÃO, Waly (orgs.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 111. 2

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Id. ib., p. 120.


ções, sua objetividade”3 – mas que “a preocupação estrutural se dissolve no “desinteresse das estruturas” que se tornam receptáculos abertos às significações”;4 a passagem da unidade da obra, da coerência,5 à multiplicidade das células-comportamento, à expansão celular em que não cabem a ideia de forma e estrutura: “o passado de ‘necessidade estrutural’ cresce para o agora de ‘existência ou não’: algo espreita a possibilidade de se manifestar e aguarda – ultraguarda”.6 Em 1969, no momento da exposição em Londres, na Whitechapel Experience, afirmou que tinha chegado ao limite do que vinha sendo proposto como uma nova fundação da arte, com o seu programa parangolé. Em carta a Lygia Clark declarou: “encerrei a minha época de fundar coisas, para entrar nessa bem mais complexa de expandir energias, como uma forma de conhecimento ‘além da arte’; expansão vital, sem preconceito ou sem querer ‘fazer história’, etc.”7 Vem daí a intrigante afirmação, feita em 1978, de que tudo o que tinha feito antes tinha sido um prelúdio ao que tinha que vir, ao que estava vindo, de modo que estava apenas começando.8 Mas, a sua proposição de antiarte ambiental – que além de conceito mobilizador para conjugar a reversão artística, a superação da arte, a renovação da sensibilidade e a participação, implicava o redimensionamento cultural dos protagonistas das ações, o imbricamento das dimensões ética e estética – desde o início visava a liberar as atividades do ilusionismo, isto é, já implicava o além da arte. Como ele dizia, não visava com a antiarte à criação de um “mundo estético”, pela aplicação de novas estruturas artísticas ao cotidiano; nem simplesmente diluir as estruturas no cotidiano, mas, acima de tudo, transformar os participantes “proporcionando-lhes proposições abertas ao seu exercício imaginativo”, de modo a torná-lo “objetivo em seu comportamento ético-social”.9 Tratava-se, portanto, de outra inscrição do estético: o artista como motivador da criação; a arte como intervenção cultural. O imaginário que conduzia o experimental de 3 OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. FIGUEIREDO, Luciano; PAPE, Lygia e SALOMÃO, Waly (orgs.). Op. cit., p. 103 4

Id. ib., p. 114

5 OITICICA, Hélio. O q faço é música. In: OITICICA FILHO, César (org.). Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 180. 6

Id. ib., p. 117.

7

Carta de 23/12/69. In: FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark-Hélio Oiticica: cartas, 1964-74. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.

8 Cf. texto em Daisy Peccinini (org.). Objeto na arte: Brasil anos 60. São Paulo: FAAP, 1978, p. 190. 9 OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 77.

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Oiticica é aquele que se interessa pela função simbólica das atividades – o que implica a suplantação da imaginação pessoal em favor de um imaginativo coletivo – e não pelos simbolismos da arte. O requisito para que isso se cumpra é que as atividades, as ações, devem supor uma adequada perspectiva crítica para a identificação das práticas culturais com efetivo poder de transgressão – o que, por sua vez, provém da confrontação dos participantes com as situações. Nessa direção, Oiticica se situou de modo específico nos debates que efetuavam a radicalização do social e do político nas artes do CPC aos tropicalistas só para se ter uma ideia do que é preciso pensar quanto às variadas estratégias que provinham da interseção do estético com o político, basta relembrar produções mais significativas que apareceram no incrível ano de 1967: Terra em transe de Glauber Rocha, a encenação de O rei da vela pelo Teatro Oficina de José Celso, de Arena conta Tiradentes no Teatro de Arena de Augusto Boal, o Tropicalismo do grupo baiano, a exposição “Nova objetividade brasileira”, os livros Panamérica de José Agrippino de Paula, Quarup de Antônio Callado, Pessach: a travessia de Carlos Heitor Cony. Nessas obras, desdobravam-se proposições que articulavam, em suas particularidades, os signos que vinham se disseminando nas tematizações que fixavam perspectivas emblemáticas para fazer face à situação complexa e tensa em que se compunham a resistência aos cálculos do regime militar, o resgate das culturas populares, a assimilação de todo tipo de modelos e processos da indústria cultural, cujo desenvolvimento disparava, com penetração nunca vista no país em todas as camadas sociais, manifestando poder e informação e simultaneamente de diluição e mistura de referências culturais fixadas e de técnicas modernizadoras com que se respondia ao desejo crescente de superação ou apagamento das marcas do subdesenvolvimento. Dentre as proposições que mais exploraram a convivência dos elementos culturais e artísticos disparatados, sem dúvida foi a atividade tropicalista a que mais eficientemente propôs uma via que tinha a ver com o desejo de modernização, com a realização do imperativo moderno, de realizar a condenação ao moderno, de tratar a desigualdade, a dependência, os desajustes, as contradições de um modo cuja criticidade alterava os termos em que estavam postas as discussões desde os anos 50, reativando e repensando indicações da antropofagia oswaldiana. Daí o interesse imediato que despertou em Oiticica, especialmente pelo “jogo com a ambivalência” que se articulava em suas composições e atitudes. As estratégias visando a compor um trabalho de inovação artística e de resistência à ditadura eram marcadas pela ambivalência, proveniente da articulação por justaposição de materiais de proveniência diversas,

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sincréticos, mobilizando nas composições uma atitude de fuga das polarizações, estéticas e ideológicas para enfrentar as indeterminações do que Hélio Oiticica chamou de “brasil diarreia”, e Décio Pignatari e depois Gil e Torquato, “geleia geral brasileira”. A rememoração dessa atitude crítica produzida nas canções e outras ações tropicalistas e o procedimento crítico que faz da ambivalência uma técnica estético-política estão expostos de modo incisivo em alguns textos de Hélio Oiticica: em “A trama da terra que treme: o sentido de vanguarda do grupo baiano” (1968), “Brasil Diarreia” (1970) e “Experimentar o experimental” (1972). “É preciso entender que uma posição crítica implica inevitáveis ambivalências”, pois “pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente – envelhecer fatalmente: conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos; paternalismos, etc.); o que não significa que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema” [...] “entender e assumir todo esse fenômeno, que nada deva excluir dessa “posta em questão”: a multivalência dos elementos “culturais” imediatos [...] reconhecer que para se superar uma condição provinciana estagnatória, esses termos devem ser colocados universalmente, isto é, devem propor questões essenciais ao fenômeno construtivo do Brasil como um todo, no mundo [...] Nossos movimentos positivos parecem definir-se como, para que se construam, uma cultura de exportação: anular a condição colonialista é assumir e deglutir os valores positivos dados por essa condição e não evitá-los como se fossem uma miragem [...] assumir e deglutir a superficialidade e a mobilidade dessa “cultura”, é dar um passo bem grande – construir – ao contrário de uma posição conformista, que se baseie sempre em valores gerais absolutos: essa posição construtiva surge de uma ambivalência crítica [...] A formação brasileira [...] é de falta de caráter incrível: diarreica; quem quiser construir [...] tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia – mergulhar na merda [...] a condição brasileira, mais do que simplesmente marginal dentro do mundo, é subterrânea, isto é, tende e deve erguer-se como algo específico ainda em formação [...]: assume toda a condição de subdesenvolvimento, mas não como uma “conservação desse subdesenvolvimento”, e sim como uma... “consciência para vencer a super paranoia, repressão, impotência...” brasileiras; o que mais dilui hoje no contexto brasileiro é justamente essa falta de coerência crítica que gera a tal convi-conivência; a reação cultural, que tende a estagnar e se tornar oficial.10 10 OITICICA, Hélio. “Brasil diarreia”. In: GULLAR, Ferreira. Arte brasileira hoje. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1973, p. 150-151.

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Essa “posição crítica” é estendida em “Experimentar o experimental”, ao explicitar a relação entre atividades críticas de vanguarda e o consumo: “o experimental assume o consumo sem ser consumismo”, pois para ele “fugir ao consumo” não é “uma posição objetiva [...] mais certo é sem dúvida consumir o consumo como parte dessa linguagem”.11 Proposição polêmica, que esteve na base das críticas mais acerbas feitas aos tropicalistas. O acento na ambivalência como modalidade crítica visava a dar conta do procedimento de justaposição dos materiais arcaicos e modernos, cultos e populares, experimentais e da cultura de massa, constantes da experiência brasileira que, por efeitos de humor, paródia e alegorização, são deslocados, assim criticados. A frase de Oiticica, em sua concisa concentração conceitual, indicava a relação tensa entre vanguarda e comunicação, vanguarda e mercado, não uma composição oportunista e conformista, como o acentuado em algumas críticas. Tratava-se de um descentramento das questões em debate nas atividades artísticas e críticas, fazendo uma reavaliação dos fracassos ou das inadequações dos projetos e estratégias culturais que visavam à politização das ações. Uma reavaliação dos efeitos e eficácia política dessas ações implicava inevitavelmente o questionamento dos modos de expressão artística e do papel sócio-histórico da arte. Da maior importância foi a atitude de deslocar os modos vigentes de interesse pelo coletivo, de expressão do inconformismo social na experimentação artística, pelo ultrapassamento do mero interesse pelas mitologias, valores e formas de expressão das experiências populares. O interesse de Oiticica por práticas populares não implicava recurso à valorização, dada naquele momento, à cultura popular com ênfase na mitologização das raízes populares. Mas o destaque dado à Mangueira, ao samba, à construtividade popular deriva da sua concepção de antiarte ambiental; da sua experiência da marginalidade. Mantendo-se afastado dos projetos culturais que figuravam o conceito compósito de “realidade nacional”, tomado como um dado, como etapa da ação política que reagia à dominação do imperialismo e do regime militar, Oiticica respondeu à sua maneira aos apelos dessa posição. A sua marginalidade foi vivida, pois é o ponto em que se desfaz a contradição do inconformismo estético e do inconformismo social. Para ele, a arte tem sempre função política, contanto que isso não seja um “alvo especial”, mas sim “um elemento”, pois, “se a atividade é não repressiva será política automaticamente”.12 Arte e política são práticas convergentes, mas que não se confundem, sob pena de se promover a estetização da política. 11 OITICICA, Hélio. “Experimentar o experimental”. In: TORQUATO NETO e SALOMÃO, Waly (orgs.). Navilouca. Rio de Janeiro: Gernasa, 1974, p. 6. 12 Entrevista. AYALA, Walmir. A criação plástica em questão. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 166.

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Na Tropicália, a “objetivação de uma imagem brasileira” não se faz pela figuração de uma realidade como totalidade sem fissuras, mas pela devoração das imagens conflitantes que encenam uma cultura brasileira. Essa devoração se atribui aos participantes: apropriando-se dos elementos disparatados, justapostos, que formam uma “síntese imagética” – na verdade uma mistura de imagens, linguagens e referências –, os participantes agem nesse sistema conjuntivo e ambivalente, produzindo a evidenciação do processo de constituição das contradições enunciadas. O objetivo é provocar a explosão do óbvio por efeito da participação, com que tudo o que é traço cultural é ressignificado; alheia ao exclusivismo da experimentação ou da expressão de conteúdos do nacional-popular, Tropicália conjuga experimentalismo e crítica, de modo que as imagens “não podem ser consumidas, não podem ser apropriadas, diluídas ou usadas para intenções comerciais ou chauvinistas”.13 Ou seja: a Tropicália define uma linguagem de resistência à diluição: assumir uma posição crítica, diz Oiticica, é enfrentar a “convi-conivência”, essa doença tipicamente brasileira, misto de conservação, diluição e culpabilidade, que concentra os “hábitos inerentes à sociedade brasileira”: cinismo, hipocrisia e ignorância14. Essa “posição crítica universal permanente”, patente no que denominou “o experimental”, possibilitou-lhe interferir na vanguarda brasileira, enquanto nela encontrou condições para desenvolver projetos coletivos implícitos em seu programa-Parangolé. O alcance crítico que Oiticica atribui à sua posição provém da atitude de desestabilização do experimentalismo e das interpretações culturais hegemônicas. Ao insistir na “urgência da colocação de valores num contexto universal”, para “superar uma condição provinciana estagnatória”, rompe com os debates que monopolizavam as práticas artísticas e culturais, radicalizando-os. Com Tropicália, o projeto e a teorização, Oiticica, juntamente com as demais produções identificadas como “tropicalistas”, evidenciou o conflito das interpretações do Brasil sem apresentar um projeto definido de superação dos antagonismos. Expondo a indeterminação da história e das linguagens, devorando-as, todas ressituaram os mitos da cultura urbano-industrial, misturando elementos arcaicos e modernos, explícitos ou recalcados, ressaltando os limites das polarizações ideológicas no debate cultural em curso. É nessa direção que Oiticica destaca a importância da produção do Grupo Baiano, identificando-a com as propostas e com a linguagem de seu programa ambiental. Para ele, ambas articulam o experimentalismo 13 OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., encarte. 14 OITICICA, Hélio. “Brasil diarreia”. Op. cit., p. 148-149.

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construtivista e o comportamental; nelas a participação é constitutiva da produção, e a crítica, efeito da abertura estrutural. Para ele, o caráter revolucionário implícito nas suas criações e posições se deve à não distinção entre experimentalismo e crítica da cultura; à ausência de privilégios entre posições discrepantes, quando se trata de “constatar um estado geral cultural” e nele intervir; e, finalmente, à não distinção entre a repressão da ditadura e a setores da crítica e do público de esquerda.15 Oiticica identifica nos músicos a mesma tônica de suas manifestações ambientais: a renovação de comportamentos, de critérios de juízo e a eficácia crítica passam pelo modo de produção, em que se aliam conceitualismo, construtividade e vivência. Ambas as produções originam conjuntos heteróclitos, em que processos artísticos e culturais diversos são justapostos e, efeito da devoração, reduzidos a signos que agenciam ambivalência crítica e exploram a indeterminação do sentido, propondo-se, assim, como ações que exigem dos participantes a produção de significados. Ambas fazem parte do projeto crítico que assume a ambivalência como modo de significar a diarreia brasileira. Os tropicalistas, ele diz, “modificam estruturas, criam novas estruturas”. Um simples cotejo entre a estrutura das duas tropicálias, o labirinto de Oiticica e a canção de mesmo nome de Caetano Veloso, evidencia o caráter ambiental e o construtivismo que lhes é comum, ou seja, a coincidência dos modos de operar o experimentalismo conjugado à crítica cultural. A convergência dessas produções pode ser assinalada, por exemplo, na mudança radical da recepção: a transformação do ouvinte e do espectador em protagonistas de ações, que tanto se referem às intervenções implícitas na própria estrutura das obras-acontecimentos, quanto às alusões a outros modos de categorizar e contextualizar as ações. O jogo com a ambivalência difere de outros procedimentos críticos surgidos naquele momento que, incidindo sobre a ambiguidade das práticas artísticas de vanguarda, entendiam que o tropicalismo positivava uma combinação entre progresso técnico, experimentalismo de vanguarda e imobilismo social e político dada a sua prática de tomar o mercado como integrante do processo de produção. Como se sabe, os tropicalistas não elidiam essa discussão, tanto no implícito das canções como nas declarações e atitudes; acima de tudo na materialidade da linguagem, do processo construtivo. A colocação do aspecto estético e do aspecto mercadoria no mesmo plano, essa ambivalência, fazia parte da estratégia que problematizava o sistema da arte. Essa estratégia substituía as formas 15 Cf. “A trama da terra que treme – o sentido de vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24/11/68. Reproduzido em Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 117.

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consagradas de participação – em que frequentemente o político das ações era reduzido pela ênfase no primado dos efeitos imediatos e, em grande parte, emotivos, do poder da denúncia e da exortação – pelo processo de composição que articulava estrutura e comportamento, construtividade e vivência na elaboração crítica que, pela justaposição de elementos discordantes, evidenciava o processo de constituição mesma das contradições enunciadas. Em vez da crença na eficácia imediata da figuração da realidade brasileira, propunha um deslocamento que pela devoração das imagens encenava aspectos emblemáticos da realidade brasileira – como se pode ver, por exemplo, nas canções Tropicália, Geleia geral, Parque industrial, Marginália II, Enquanto seu lobo não vem e na manifestação ambiental Tropicália de Oiticica: um processo conjuntivo e ambivalente, corrosivo, que vinha da transformação do receptor em ativo decifrador de signos, com que se articula em outro nível de consciência. Nas canções tropicalistas o jogo com a ambivalência, por proceder como processo construtivo, acentua a indeterminação como índice de criticidade que opõe resistência ao consumo das imagens que se situam numa zona de indiscernibilidade, efeito da corrosão efetivada pelo parodiar das referências e pela alegorização. Daí a radicalidade das músicas tropicalistas e da antiarte de Oiticica quando pensam a simultaneidade de crítica e inserção no mercado. A indistinção entre estética e mercadoria faz parte da sua estratégia dessacralização para enfrentar a “convi-conivência”. O consumo era visto como uma das categorias transformadoras, como modo de enfrentar e dissolver as dualidades erigidas como oposições, pela exploração da ambivalência, saindo das oposições – bom gosto e mau gosto, nacional e internacional, cultura superior, cultura de massa e cultura popular, vanguarda e comunicação; crítica e conformismo. A desmistificação das relações entre criação e consumo destoava de posições que à esquerda e à direita condenavam o envolvimento comercial das artes, da arte como simples submissão às modas. Para os tropicalistas, e Oiticica, contudo, não parecia possível apropriar-se desses recursos e ao mesmo tempo preservar uma suposta neutralidade da arte. Assumir a ambivalência era o modo eficaz, ética e esteticamente, de enfrentar a diarreia brasileira. As canções tropicalistas resultam de um processo construtivo em que as imagens resultam da justaposição de materiais de procedência diversa, de elementos díspares, provocando um efeito de obscuridade e estranheza. Cenas alusivas, fragmentárias, compostas como alegorias do Brasil, aludiam à persistência dos arcaísmos, das deformações no processo de modernização da sociedade, tal como estão explicitados nas interpretações vigentes no sistema artístico-cultural. As canções, individualmente ou em conjunto, quando assim consideradas, configuram, na fulguração

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de suas imagens, uma situação histórica impossível de ser concretizada com nitidez e que irrompe sob a forma de retorno do recalcado. Assim, as canções geram significações conflitantes com os significados designados como identificadores de uma entidade abstrata, a realidade brasileira, emblematizada em signos que indiciam “as relíquias do Brasil”, como as enunciadas na canção “Geleia geral” de Torquato Neto e Gilberto Gil. Os fatos culturais designados, as formações históricas, os estilos artísticos, usos e costumes são desapropriados de seus valores já fixados como tradição, como identitários, e são transfigurados pela paródia, pelo humor, pela sátira, pelos procedimentos grotescos, pela carnavalização da linguagem, evidenciando sintomas de uma história malformada e que talvez nunca tenha chegado verdadeiramente a ser. A composição de paródia e alegoria, efetivada nas canções tropicalistas e na Tropicália de Oiticica radicaliza um processo extremamente importante, algumas vezes antes ensaiado na arte brasileira mas nunca tão contundente: trabalho corrosivo de crítica da arte e da cultura instituídas, em seus diversos matizes, desde o mito das raízes populares até as mitologias da cultura de mercado. Mas, ressalta Oiticica, tudo é feito segundo uma atitude experimental que redimensiona o que estava em curso na atividade artística, mesmo de vanguarda: uma atitude experimental centrada no “atuar sobre o comportamento diretamente, não num puro processo de relaxamento dessublimatório, mas no de estruturação criativa, convocação a transformações e não submissão conformista. É como uma trama que se faz e cresce etapa por etapa: a trama-vivência”.16

16 “A trama da terra que treme – o sentido de vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24/11/68. Reproduzido em Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 122.

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sessão 3

Área aberta ao mito. O mito da criação


Mito, vida e a frágil arquitetura do sujeito Tania Rivera É importante afirmar, hoje, a importância de Hélio Oiticica como teórico, como pensador. Sua reflexão se dá em uma proximidade total com a obra artística, dissolvendo as fronteiras entre objeto de arte e pensamento, de modo a realizar uma verdadeira antiteoria que corresponde à antiarte por ele defendida. Nela, a noção de “mito” tem um papel surpreendente. O próprio conceito de Parangolé é a ela vinculado: esse seria, nas palavras de Oiticica, capaz de levar a uma “verdadeira retomada” da “estrutura mítica primordial da arte” que se teria obscurecido a partir do Renascimento mas emergido novamente na arte moderna.1 A aproximação do Parangolé com a dança, “mítica por excelência”, e a criação de “lugares privilegiados” seriam, entre outros, elementos que interferem no comportamento do espectador, contribuindo com a “vontade de um novo mito”.2 1 OITICICA, Hélio. Bases fundamentais para uma definição do Parangolé (1964). Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 68. 2

Ibid., p. 69.


Tal vontade de mito se associa, assim, ao abandono do objeto de arte em seu sentido tradicional e à ideia de criação que lhe é correlata, como explicita Oiticica em uma entrevista de 1965 sobre os Bólides: Não se trata pois da “arte” como objeto supremo, intocável, mas de uma criação para a vida que seria como que uma volta ao mito, que passa aqui a ocupar um lugar proeminente nessa totalidade.3

A volta ao mito está, portanto, intimamente ligada a uma expansão do campo da arte em prol de “um estado, uma predisposição às vivências criativas, um incentivo à vida”.4 Nessas elaborações transparece uma certeira influência de Nietszche – de quem o artista era leitor assíduo – em sua retomada do mito trágico, no qual o dionisíaco, em especial, traça a via pela qual o filósofo pretende reexaminar “a arte pela ótica da vida”.5 O mito de Dionísio assinala, no júbilo estético assim como na vivência ritual, com sua música e sua dança, algo como uma embriaguez, que Nietzsche compreende como dilaceração de toda individualidade em um “sentimento místico de unidade”.6 Já em Hélio Oiticica, a quebra da “individualidade” – que não deixa de envolver, diga-se de passagem, o uso de drogas – nada tem de “mística”. Ela se imbui de um projeto de coletividade que vai além da mera “participação do espectador” na obra de arte para afirmar a arte como práxis política. Nesse projeto, o mito toma lugar na arte por nomear algo de saída coletivo ao qual se trataria de voltar. Toda essa reflexão se concretiza na Área aberta ao mito – um dos “núcleos de lazer” que fazem parte da ambientação Éden (1969), ao lado dos Ninhos, com um cercado circular vazio, delimitado por uma treliça – na qual se trata da “proposição do mito em nossas vidas, o cressonho consciente de si mesmo”.7 A arquitetura é aqui “abertura” para um mito que, vindo de fora, do coletivo, é a base para a criação onírica de si mesmo. A partir da dessubjetivação dionisíaca ressaltada por Nietzsche, trata-se para Oiticica, na arte, de nada menos do que fundar o si mesmo:

3 OITICICA, Hélio. Sobre os Bólides (1965). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 37. Eu sublinho. 4 OITICICA, Hélio. Sobre os Bólides (1965). Encontros. Hélio Oiticica. Op. cit., p. 37. 5 NIETZSCHE. La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard (Folio/Essais), 1977, p. 13. Eu traduzo os trechos citados. 6

Ibid., p. 32.

7

Oiticica, H. Eden. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996, p. 13.

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[…] Não há “proposição” aqui – estar-se nu diante do fora-dentro, do vazio, é estar-se no estado de “fundar” o que não existe ainda, de se autofundar.8

O artista chega, assim, ao ponto em que nem sequer cria proposições, mas apenas dedica-se a construir certa arquitetura – que proponho nomear como arquitetura do sujeito.9 Ela agencia uma situação, uma ambientação ou “recinto-proposição” que é precário, é “pobrecinto”, para trazer mais uma expressão de Oiticica. Não se trata aí de uma arquitetura para um indivíduo já constituído, de uma segura morada do eu, mas de uma arquitetura sutil na qual o sujeito surge como aquilo que deve ainda se “autofundar” – em sua implicação ética com o outro. Em tempos de surgimento da noção de “lugar de fala” como posição identitária fixa e inquestionável, a reflexão de Oiticica me parece apontar para a arte como incitação a uma fundação aberta de si mesmo, sempre em fluxo com o outro, em uma espécie de mito que é de todos e deve ser apropriado, singularmente, por de cada um de nós – sem jamais ser propriedade exclusiva de ninguém.

Tania Rivera Psicanalista e professora do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF).

8 OITICICA, Hélio. Crelazer. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 115-116. 9

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RIVERA, Tania. Hélio Oiticica e a arquitetura do sujeito. Niterói: Eduff, 2012.


Involuções sobre escrita, corpos e cadernos

Ana Kiffer Professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio


Eu já falei muito da escrita. Não sei o que ela é. Marguerite Duras, La vie matérielle

Rio de Janeiro, 26 de maio de 2016. Está difícil como poucas vezes antes escrever um texto-artigo. Sobretudo se a escrita de um artigo pressupõe distanciamento espaçotemporal sobre o objeto tratado. Com definições salvaguardadas. Sem que processos como contágio, identificação, afecções deixem seu rastro sobre a coisa escrita. Dou-me conta que sob o ponto de vista estrito dessa perspectiva o meu aparato reflexivo avariou. Talvez através de um longo processo, que certamente já se perdeu na história das minhas leituras. Ou que aqui não vem ao caso. No entanto, e isso importa, ele vem sofrendo impactos constantes ao longo dos últimos meses. O estreitamento do que considerávamos estado democrático acabou também o atordoando. O dia de hoje, que vocês já esqueceram, e sobre o qual volto para espezinhar foi especialmente duro. O estupro de uma jovem de 17 anos por 33 homens me deixou acometida pelo pior: um misto entre a impossibilidade de falar e a exigência em não deixar de dizer. Um afeto político que talvez nunca tenha experimentado nessa intensidade. Afinal, ainda estava na barriga de minha mãe. Sim em dezembro de 1968. Talvez muitos conheçam esse algo entre a afasia e o empuxo. Uma palavra ali estrangulada.

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Quando recebi o convite, feito por Barbara e Giuseppe, a quem agradeço sinceramente, além de parabenizá-los, e também a Isabela Pucu, pela iniciativa, assim como a todos que colaboraram pela realização desse evento, agora livro, mas quando recebi o convite me foi pedido que falasse da escrita. Não como especialista da obra de Hélio, que não sou. Mas a partir da minha – hoje já extensa – pesquisa sobre as relações entre o corpo e a escrita. Pois, então, pensava, inicialmente, que poderia começar esse trabalho a partir de um marco teórico e dele extrair algumas reviravoltas que me interessam. E que acredito que interesse também em um gesto que busque de um ou outro modo atualizar questões postas pela obra de Hélio Oiticica, como pressuposto nesse encontro. De todo modo, havia decidido escrever um texto eminentemente teórico-crítico. Interessado em afrontar hipóteses que até hoje havia aqui e ali intuído, mas nunca diretamente sobre elas escrito. O marco teórico figuraria aqui como uma espécie de ficção de origem. Na verdade, ele é apenas um deflagrador da discussão. Poderia ser de fato outro. Notem que se trata já de uma origem ficcionalizada e bastarda. Nesse ambiente os pais são facilmente falseados e também falseadores. Escolhi, então, a hipótese da alemã Fischer-Lichte (2011), especificamente quando situa historicamente nos anos sessenta do século XX a guinada que fez com que a cultura deixasse de ser tomada (ao menos exclusivamente) enquanto texto – texto esse que pode e deve ser lido e interpretado, em proveito de uma noção de cultura que passa a ser vivida e tomada enquanto performance – como algo que age e se efetua materialmente sobre os corpos. Desse marco, que empunho aqui sem apego ou fé, decido, no entanto, retirar algumas das suas consequências radicais. Do mesmo modo como um dia cremos ter ingressado na cultura da escrita, escrita ali entendida como esse grande texto da lei, anônimo e englobante, concernindo quem escreve e quem lê em seus direitos e deveres, e apartando-nos definitivamente das vozes e dos suplícios dos corpos, em proveito de uma sociedade moderna, igualitária e livre, entendemos que numa cultura performativa não se trata mais de um texto a priori escrito, certo ou errado, mas de uma inscrição constante e reivindicativa de novas “escritas” performadas no texto, sim e ainda, mas também nos corpos, na cidade, nos grupos, nas redes, em ambientes severamente materiais – como o odor das comunidades periféricas sem saneamento básico, ou severamente imateriais, como as hashtags hoje abundantes e que, vez por outra, conseguem até mesmo ativar camadas discursivas inesperadas no seio da experiência de uma dita cultura.1 1

Faço menção aqui, por exemplo, a hashtag do meu primeiro assédio que acabou per-

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Desse modo, se entendo que tal marco tem consequências, o início da minha fala, estrangulada entre o empuxo dos acontecimentos e a afasia que eles despertam, tem aqui o seu assento. Entendendo que esse filho bastardo do texto que a cultura na qualidade de performance (para tantos de nós ainda sentida como falsa ou superficial) interroga é frontalmente aos nossos corpos e aos seus espaços no mundo. Colocando em relação aquilo que antes não necessariamente estava interligado pelo texto. Posto que o texto conseguia, até então, separar estratos bem definidos. Já aqui até mesmo o subjetivo é parte dessa cultura performada, que engendra desde a construção dos gêneros até as escolhas ministeriais. Não numa imensa leitura de causas e consequências mas, ao contrário, numa rede de ressonância que desestabiliza o que outrora aprendemos estável e estável porque isolável, por exemplo: a estabilidade da natureza do meu gênero sexual que garante a estabilidade da função social da maternidade. A saída da origem, da causa, de todas essas noções constelares à noção de texto, em proveito dessa caixa de ressonâncias, assim como a saída da noção de influência, de verticalidade hierárquica (também noções caras à noção de texto) em proveito dessa espécie de contaminação entre termos heterogêneos, vão desmontando um determinado esquema de cultura e nos deixando muitas vezes a descoberto, nessa sensação de risco que pode nos incitar o desejo de que algo mais limpo, mais próprio e mais estável volte a determinar nossas vidas. Desejo para o qual devemos estar seriamente atentos. Desejo de higienização que certamente retorna nas situações em que o texto mostra a sua falência. Será justo esse desejo que a noção de escrita e de escrita de cadernos que trarei para vocês, mesmo sem querer, interroga. Tal noção, da qual derivo a construção de minha pesquisa atual sobre escrita de cadernos, já vem sendo, mesmo que minoritariamente, determinante de inúmeras experiências do pensamento e da arte desde a segunda metade do século XX. Pois então proponho aqui apontar três direções que busquem oferecer um esboço da questão: 1) delimitar o conceito material de escrita a partir de algumas contribuições seminais que ocorreram na segunda metade do século XX, (2) explicitar a noção de caderno que venho repensando e até certo ponto redesenhando – a partir de determinadas experiências teórico-práticas para, finalmente, recolocar, ao final, (3) o tema dessa mesa, qual seja: o mito da criação. mitindo a eclosão (e não apenas a reunião) de um conjunto de depoimentos que encenava uma verdadeira vinda à luz do dia, da hora, do comum, do partilhável um número e uma densidade afetiva expressiva da violência sofrida pela mulher no Brasil.

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É verdade que não me senti convocada a explicitar aqui uma reflexão sobre a obra de Hélio Oiticica. No entanto, gostaria de abrir essa nota, posto que venho entendendo que Oiticica abraça de modo contundente dois vértices fundamentais da discussão que aqui engendro. No primeiro deles, Hélio torna-se um artista fundamental, diria mesmo paradigmático, para explicitar a mudança de postura dessa saída do texto em proveito de uma escrita banhada por essa cultura – que já era por ele entendida – como performance. Noto, de modo singelo, a relação intrínseca à sua vivência na Mangueira com essa guinada espacial e performática da Tropicália e do parangolé. Antes de serem obras, esses acontecimentos poético-políticos desejavam incidir e atuar sobre a cidade na qual vivemos. Mas de uma forma bastante particular. Esses acontecimentos vinham na construção do projeto de Hélio deslocados da noção de engajamento político que se esperava – ali ainda – quando a arte se voltava para os modos de vida comum e, sobretudo, para as comunidades carentes e pobres. Mas não foi essa a experiência poético-política proposta por Hélio. Sem encetar esse discurso mais claro, que lhe era ofertado, do que significava uma arte engajada, tampouco, por isso, ele ancorou ou deixou que ancorassem suas iniciativas no contexto encastelado de piruetas formalistas. Naquele momento ainda em suspensão, e talvez sem saber, ele abria um conjunto de experiências estético-políticas que operavam essa saída do centralismo do texto, e das noções que o texto sustenta, em proveito dessa escrita do e no mundo, onde as coisas participam inscrevendo-se transitoriamente como arte em potencial, mas não necessariamente em obra. No segundo vértice seria preciso sublinhar a força escriturária presente em toda a construção dos projetos artísticos de Hélio. Essa força escriturária que perpassa desde a importância da correspondência até a máquina arquivística por ele inventada esboça, muitas vezes, entre um e outro polo, a sensação de que em proveito do projeto a obra foi abortada. Sobrevivendo num espaço heterotópico, às vezes inacessível, outras vezes impossível como defendeu Frederico Coelho na leitura que fez do livro existente-inexistente de Oiticica em Nova York.2 Ousaria dizer que seus cadernos, dotados desse fluxo ininterrupto – da própria vida – e ao mesmo tempo de um desejo de organização compulsivo, arquivístico, acabam também eles encenando essa espécie de dobra ou passagem, esse tempo interrompido entre algo que já não é mais e alguma coisa que ainda não aconteceu. De todo modo, Hélio, assim como Artaud, e outros artistas que serão aqui mencionados figuram na base dessa reflexão que, por ora, decide se 2

Coelho, Frederico. Livro ou livro-me. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.

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debruçar de forma mais premente sobre um conjunto de conceitos que encenam novos gestos, ou diferentes inflexões diante desse “arquigesto” que é a escrita para as sociedades ocidentais. Com intuito não tanto de engendrar uma reflexão puramente teórica (já disse que esse aparato anda em mim avariado), mas de esboçar os acoplamentos entre os conceitos e essa mudança sensorial, sensível, que as experiências estéticas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX nos deixaram como plataforma e desafio. Até porque nota-se que se a arte continuou desafiando-se e exigindo-se novos comportamentos sensíveis, afinal ninguém aqui ficou copiando Hélio, Clark, Artaud e outros, o pensamento – que é bem verdade, funciona noutra temporalidade – anda por um lado pedindo novas formas de existência e por outro resenhando-se a ele mesmo. E é nesse sentido que entendo que a saída do mito originário do texto – do textocentrismo – terá efeitos absolutamente fundamentais para germinação de novos modos ou comportamentos do pensamento crítico, ou mesmo daquilo que entendemos ser o pensamento contemporâneo. Roland Barthes é, sob esse aspecto, exemplar. Isso porque ele, que iniciou sua trajetória intelectual aos trinta e poucos anos, já ali questionando a supremacia do pensamento de Jean Paul Sartre através de uma nova noção de escrita (no livro O grau zero da escrita3), retoma, na sua maturidade crítica, reler a sua visada primeira da questão: O primeiro objeto que deparei em um trabalho passado foi a escrita: mas entendia então essa palavra em sentido metafórico: para mim, era uma variedade do estilo literário, sua versão [...] coletiva, o conjunto dos traços da linguagem por meio dos quais um escritor assume a responsabilidade histórica de sua forma e se vincula, com seu trabalho verbal, a certa ideologia da linguagem. (BARTHES, 2004, p. 204-205)

Essa “escrita em seu caráter metafórico” e as consequentes análises da linguagem que daí derivam será abandonada em proveito, eu diria, de uma vida material da escrita. Mas o que efetivamente estou tentando dizer por vida material da escrita? Ela indica, entre outras, para a potencialidade de uma escrita que já não mais se oponha à oralidade. Retirando a linha evolutiva que banhava o “aprendizado da escrita” e a subalternização das culturas orais. E ela adensa, em seu caráter material, a sua força gestual e corpórea. Rancière, vinte anos depois de Barthes, desenvolve esse mesmo tema, no já famoso livro Políticas da escrita (1993). Mas o próprio Barthes não deixa de tirar algumas consequências dessa nova potencialidade: “[...] não 3

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Barthes, R. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


é necessário fazer a escrita descender da fala (segundo o mito científico da ‘transcrição’) para nela distinguir as duas coordenadas da linguagem; o paradigma e o sintagma. A clivagem está alhures: [...] onde se pode opor sintagmas lineares (escritas e falas) e sintagmas radiantes [eu diria rizomáticos] (nas figurações murais, nas da pintura e nas dos quadrinhos)” (BARTHES, 2004, p. 204-205). Eu acrescentaria: em algumas escritas contemporâneas como veremos mais a frente. Veja como essa noção de escrita a faz proliferar num curioso paradoxo que a arrasta num “para fora da linguagem”. Algo dessa vida material e “radiante”, como alude Barthes, opõe uma escrita linear (logocêntrica) a uma escrita que já não depende da noção de texto e, por conseguinte, não se opõe mais à oralidade, permitindo um desarranjo anacrônico na leitura da história que poderá pensar sob um mesmo plano a pintura nas cavernas, a história em quadrinhos e porque não um conjunto de inscrições sobre os muros das cidades, ou em páginas soltas de um caderno? Notem desde já que eu não poderei chegar a uma revisão da noção de caderno, no que tange a um conjunto de práticas escriturárias contemporâneas, sem passar por essa liberação da escrita em relação ao texto. E tudo que com ela advém, como, por exemplo, o rompimento com a linearidade, tanto narrativa quanto escriturária. Se por um lado esse rompimento aproxima tais escritas de uma fragmentação de sentido e também da própria palavra, ele a aproximará de modo contundente à palavra do desenho, à letra do traço, à cor do afeto, criando mapas, linhas ou conjuntos antes inesperados numa análise em que a primazia do texto salvaguardava de modo exclusivo e excludente até mesmo o movimento dos olhos da esquerda para a direita, e a supremacia do sentido intelectivo sobre quaisquer outros sentidos atuantes no corpo receptor ou ledor. É bem verdade que para entendermos a potência geradora dessa revolta da escrita na cultura ocidental deveremos compreender como ela foi consagrada como ferramenta primordial do adestramento dos corpos nas sociedades ocidentais. É preciso passar pela contribuição de Foucault, e como ele mostrou os cadernos, para além da cultura clássica, consolidando-se como dispositivos de constituição de subjetividades, elevados ao patamar da docilização dos corpos, através da educação do ato gráfico da escrita e da caligrafia. Foucault nos fez observar que na passagem dos hypomnemata na cultura clássica (“esses cadernos que no sentido técnico [...] [são] livros de conta, de registros públicos, ou cadernos individuais servindo à memória ... [e que] constituíam uma espécie de memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas.” (FOUCAULT, D.E. IV, p. 418)) à correspondência íntima, o que estava em jogo era uma empreitada suficientemente forte, que

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foi sendo consolidada do cristianismo à modernidade, para constituição de epistemes ferozes no que tange à consolidação da escrita como prática de controle do que porventura do corpo desregularia uma assepsia do eu. É nesse sentido, como formulou Artières que “o ato gráfico [passa a ter] muitas dimensões no dispositivo disciplinar. Ele é de um lado entendido como prática, de outro como ferramenta e enfim como produção” (ARTIÉRES, p. 320). E assim, “a escrita é elevada ao mesmo nível da marcha; se faz de sua prática um meio de controle do corpo” (ARTIÉRES, p. 321). Fica claro que nesse contexto a escrita e, sobretudo, a escrita de cadernos (nesse dispositivo tanto um quanto outro figuram como ferramentas de disciplina do corpo na exigência do aprendizado da língua correta que é a língua escrita) não poderia ser mais, nesse regime de produção de “alunos” e “soldados”, esse registro exterior e heterogêneo que eram os hypomnemata. Ao tornar-se o suporte, por excelência, do adestramento disciplinar, a começar pela caligrafia, o caderno foi figurando como matéria-prima da disseminação dessa grande marcha que resultou no aprendizado do gesto gráfico. No entanto, o que venho propondo pensar é que por isso mesmo esse lugar turvo e límbico da matéria primeira foi fazendo com que o caderno deixasse a infância e sobrevivesse às interrogações e dúvidas do adulto escritor, artista, pesquisador, figuras que operaram de modo privilegiado, mas não exclusivo, a permanência dos cadernos entre nós. Em muitos casos notamos que os cadernos, em vez de terem deixado a infância figuram de algum modo como esse resíduo resistente, essa infância indomável, aquela que não foi de todo docilizada ou adestrada, uma infância do pensamento e da escrita ainda em nós. Sob esse aspecto, é verdade que valeria notar que apesar de Foucault, na esteira de Blanchot, investir em uma noção sem obra de literatura, no seu caso quando questiona a prática da escrita para a constituição de um modo de vida, através da estética da existência ou quando investe em um conjunto anticanônico de autores literários (Bataille, Sade, Artaud, Nietzsche), que puseram eles mesmos a literatura e a obra em questão, não será, no entanto, esse mesmo Foucault quem irá radicalizar em sua prática escriturária o conjunto de conceitos e saídas que ele vê e aponta como um exterior possível do pensamento. Pelo menos até que vejamos nós mesmos os seus cadernos temos de afirmar que a escrita de Foucault continua obedecendo às diretrizes ferozes dessa produção secular de alunos. Nada contra isso, apenas o traço dessa sintomatologia escriturária, que efetivamente indica a necessidade de saída dessa arborescência textual e ao mesmo tempo a dificuldade intrínseca, ao menos ao pensamento ocidental, para executá-la. Talvez, se tivermos a chance de ver o conjunto

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inútil, indomável, residual e fragmentário dos seus traços nos seus cadernos, das notas do que o seu pensamento não conseguiu desenvolver ou “pensar” propriamente, dos impasses acerca do que ele mesmo escrevia, enfim essa matéria viva da escrita, talvez, aí, reconsideremos o que agora precisamos ainda aqui afirmar. Que a escrita de Foucault se mantém até certo ponto intacta aos seus conceitos. Foi preciso, sob esse aspecto, aguardar a radicalização dessa experiência escriturária do pensamento que aconteceu no encontro de Deleuze e Guattari, sobretudo em Mille-Plateaux. Essa escrita feita de blocos de sensação, ela mesmo uma espécie de prática e de pensamento, nesse esforço por si só radiante, tomado de um furor dionisíaco, que dissipa a estabilidade de um e outro, aproximando, nesse caso, o pensamento de sua vocação propriamente aventureira e poética. No caso específico do campo literário, diria que com esses autores, um conjunto estranho de conceitos vai desenhando novo mapa: do menor, da deriva, do devir e das linhas de fuga, entre outros. Conceitos práticos que operam como um convite para sairmos do núcleo: do eu, do si mesmo, da língua, do vivido, do autor em prol dessas zonas do impessoal, do rizoma, do corpo sem órgãos. No entanto, e mesmo aqui, seria preciso também fazer uma inflexão. Isso porque venho entendendo que mesmo em Deleuze e Guattari a radicalidade dessa experiência escriturária e conceitual não tenha tido talvez tempo (Deleuze disse que não conseguiu escrever o livro que queria com a literatura) para alterar o estatuto, para modificar a figura mesma do literário. Se a fuga da própria escrita, que juntos eles põem em cena, desestabiliza o horizonte receptivo dos tradicionais textos ou tratados filosóficos, a reflexão que empreendem do literário, e nota-se que em muitos casos empreende sozinho o próprio Deleuze, mesmo que porte algo dessa literatura em fuga dela mesmo, ainda guarda esses mitos criadores. Altera-se a “superioridade” europeia mas se mantém intacto o crivo da superioridade para a literatura. Os nomes autorais continuam vigorando, não mais como experiências motoras da escrita literária (avessa, quase que sintomaticamente, a qualquer matéria do vivido), mas ali continuam como núcleos olímpicos, superiores, que engendram, é verdade, a recriação de novas séries, anticanônicas, mas certamente e ainda produtoras de novos cânones. Como a série do julgamento, a da gagueira, a do comum ou do fraterno, reunidas todas em torno dessas figuras seculares e malditas, ao mesmo tempo. Esse delicado problema tem muitas vezes um efeito extremante perverso na manutenção, no seio do literário, justamente daquilo que os conceitos por eles forjados buscavam desfazer ou fazer fugir. Um ar rarefeito em torno dos livros que podem ser considerados literários. Às vezes tão rarefeitos que se tornam impossíveis. Heroicos. Até certo ponto intactos,

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sobrevivendo em alguma superioridade, mesmo que seja a superioridade do menor ou a da literatura americana. Mesmo que se entenda que em sua força de assertiva política tal superioridade é posta pelo filósofo como necessidade de destronar a literatura europeia e, em especial, a tradição beletrista francesa, hoje descontextualizada, continua ela assim sozinha investindo no nosso desejo de criação de mitos, assim como nos mitos da criação. Mesmo que eu possa quiçá ousar dizer que esse ar rarefeito, que salvaguarda certo espaço sagrado do literário, seja uma espécie de afeto indomável que cutuca no filósofo o seu desejo de escrita. Da sua própria escrita. Ele está ali. E nós deveríamos a ele estar atentos. Esse amor à literatura, confesso ou não, se por um lado é a força subversiva da filosofia de Deleuze, e de Deleuze-Guattari, é também o elemento conservador, ou melhor, conservante das formas literárias, mesmo quando minoradas, que ali se mantêm. Essa dupla vertente, subversiva e conservante da forma não deve ser vista como erva boa e daninha, mas como indicadores de limites que ainda pedem para serem explicitados e quiçá expandidos, alargados. Como já havia observado Artaud, a cultura do livro serve para mantê-los como sepulcros. Essa caixa fechada que ou deve ser enterrada ou então aberta. Esse gesto, um tanto insolente, que se alastrou seguramente como gesto escriturário de Deleuze-Guattari merece ainda ser tomado em sua potência de insubordinação, e incluso a eles. Um pouco desse gesto e algo dessa hipótese traçaram, mesmo quando não sabia, a minha retomada da pesquisa sobre cadernos que hoje divido em duas linhas. Em uma delas retomo a pesquisa sobre cadernos de artistas e escritores que havia iniciado ainda em 1998 quando pesquisei na França os cadernos asilares de Antonin Artaud. E sobre essa linha de pesquisa venho observando que os cadernos vivem numa espécie de duplicidade, de espaço entre escrita e corpo, traço e letra, literatura e não literatura, cotidiano e epifania, dentro e fora. Como se os cadernos, que serviram a Artaud para sujar a noção edificada de obra ou, como disse o poeta, serviram para escrever constantemente “a angústia e a sufocação do pesquisador no meio e em torno à sua ideia como partes da obra feita” (ARTAUD, 1945), sobrevivessem ainda hoje, e incluso os cadernos dos pesquisadores – e não apenas os dos artistas ou escritores – dessa espécie de gesto que desintelectualiza a atividade crítica, assim como desidentifica os mitos artísticos: a obra, o artista, a arte, deixando-os existir deserdados deles mesmos. Os cadernos nos colocam, nesse sentido, diante de um pensamento gráfico, um fluxo sem acabamento, sem fim e sem finalidade, e em muitos casos de um fim que vai se cumprir ou se realizar no próprio corpo.4 Apon4

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Faço aqui uma menção às observações da ialorixá Wanda Araújo que aponta para a preg-


tando para sua vocação performativa, essa escrita um tanto desmembrada dos cadernos guarda algo de sua proximidade aos corpos que sobre ele desenham ou escrevem. Desde Artaud o interesse da pesquisa recai justo sobre essas zonas de indeterminação por que passa o texto quando exposto a esses suportes mais móveis e plásticos. Zonas essas em que muitas vezes se observa a passagem veloz entre a visualidade e a plasticidade do traço ao seu componente propriamente sígnico, outras vezes salta essa potência sonora da letra resistindo à formação de sentido, mas também essa zona límbica entre o registro íntimo e o impessoal, quase que efetuando uma exposição desses processos de subjetivação e dessubjetivação que muitas vezes são escondidos pelos diários, quando os mesmos decidem apenas evocar as zonas mais seguras (mesmo quando secretas) de uma constituição de si mesmo. Certamente os cadernos de Hélio Oiticica, como os 327 cadernos de Ricardo Piglia ou os Cadernos de África de Miquel Barcelò, ou os livros-ação de Anselm Kieffer,5 todos muito diferentes em sua natureza, agregam todos eles esse gesto de uma escrita insubordinada ao texto, criadora de novas zonas e derivas que acabam por nos fazer questionar dois grandes assentos constelares à cultura do livro-sepulcro, como diria Artaud, são eles: o arquivo e o publicável. Do arquivo, os cadernos questionam a sua natureza inacessível e privada, obrigando aos experimentadores de escritas e pesquisadores contemporâneos a tarefa de forjarem a produção de novos arquivos e ao mesmo tempo de resistirem a todo e qualquer movimento de sua decifração (falarei sobre isso quando em seguida abordar a segunda linha dessa pesquisa). Nesse sentido, vale de novo dizer, a importância do gesto de Hélio, à época um tanto exótica, mas que figura hoje como criação dessa ficção arquivística, ou mesmo desse arquivo como ficção que me parece ainda salutar para ser retomado, e sobretudo no Brasil. Da publicação, a existência dos cadernos vem questionar, por um lado, os conceitos que tentaram domar os cadernos quando eles passavam dos regimes “privados” dos arquivos para o regime público das publicações. Isso diz respeito sobretudo aos conceitos de diário no campo literário e de livro de artista no campo das artes plásticas e visuais. Tais conceitos acabam por rasurar ou borrar aquilo que residiria como resto primordial da experiência de escrita de cadernos. Isso porque o deslocamento radical que impõe o caderno da matéria acabada nância da escrita dos cadernos como prática ancestral no candomblé, mantendo ali, entre muitas outras questões, a presença dessa escrita performativa do canto, das ervas e mesmo do oráculo que só se efetua quando se cumpre sobre o corpo do consultante. 5

Todos esses autores vêm sendo contemplados na minha pesquisa atual sobre cadernos. Sobre eles venho escrevendo em textos ainda inéditos ou em produção gráfica.

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do livro é justo aquele que reside nos seus elementos processuais e nos seus impasses de construção do pensamento e da obra tanto do artista, do escritor ou do pesquisador. A tal angústia do pesquisador para falar nos termos artaudianos. Impasses e processos esses que, se vistos a posteriori, podem muitas vezes questionar alguns resultados das obras realizadas, reabrindo-as a novas potências inauditas. Por outro lado, se vistos como gesto concomitante e aberto de cada um de nós podem efetivamente transformar o modo mesmo de construção do nosso pensamento, deslocando aquilo que ainda a cultura do literário, do autor e do célebre insiste em manter como sendo da égide do segredinho sujo para um lugar diferente de partilha das vulnerabilidades. Partilhar o vulnerável como vetor de força, independentemente dos segredos que o forjam, é sim um modo de construção de outro espaço do comum. Essa é a segunda linha de minha pesquisa sobre os cadernos. Aquela que busca atualizar esse conjunto de interrogações históricas e estéticas, como as que vimos até aqui explanando, acerca da escrita, da saída do texto, da prática da escrita de caderno como criação de zonas de exterioridade ao literário, que podem efetivamente ajudar a pensar relações micropolíticas do contemporâneo. Que nuance as determinações já caquéticas ou mesmo noções extremamente domadas pelas garras do bipoder nas sociedades contemporâneas6 com as quais vimos dividindo o mundo. Vejam que essa partilha – que pode se dar pelo limite do que é ou não publicável – acaba tendo efeitos sobre os assentos que delimitam o que é subjetivo e o que não é. Isso acaba operando sobre essa linha tênue que desvaloriza o subjetivo em prol de um objetivo tal e qual, ou apenas permite o subjetivo como reino dos segredos e revelações. Fruto podre das sociedades de controle. Sorria você está sendo filmado. O que estou dizendo é um pouco diferente. E nos obriga justo a rever os modos de partilha que estão determinando essas zonas, assim como os comportamentos que lhes estão sendo atribuídos. Por isso mesmo, para essa segunda linha da pesquisa se torna importante buscar nuances que diferenciem o caderno do livro de artista (essa mesma uma noção complexa e instável), tanto quanto da forma diário, pela necessidade de deflagrar um conjunto singular que delimite e construa esse objeto, permitindo um olhar que assegure a possibilidade de novas leituras e, por conseguinte, de novas edições. É importante notar que o conceito de livro de artista (que por um lado amplia ou torna rara a forma livro, através de procedimentos que fazem dele um objeto, uma escultura 6

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Tais como sucesso como competição indiscriminada, afeto como franqueza, e anestesia como força.


ou uma artesania sofisticada de edição numerada) depende do conceito não ampliado de livro ou mesmo de obra, enquanto que o caderno pode questioná-los – por exemplo, quando pergunta sobre o conceito de escrita no Ocidente (desde código, natureza, norma, forma, função e uso), ou quando, fazendo sair a escrita de si mesma, exige que ela se perfaça em sua força de endereçamento ou de presença que, por sua vez, dilui a noção de obra. Se o caderno formula essas perguntas iniciais, esse bê-á-bá na sua relação corpórea com a escrita, é porque ele retém em sua materialidade a necessidade de relação com o mundo e com o próprio corpo de quem “escreve”. Essa relação com o corpo e o mundo é, por um lado, uma maneira de apropriação dos meios de produção e veiculação das escritas. Vejam por aí como proliferam grupos, coletivos de escrita conjunta e em muitos deles feituras de cadernos artesanais, fichários e outras formas alternativas de registro e de “publicação”. Há algo nesse sentido que dá ao caderno uma feição muito atual e distante do velho manuscrito do escritor solitário. Esses cadernos hoje entendem o nosso precário e atuam sobre ele, criando modos de resistência, obviamente efêmeras, na circulação da cultura contemporânea. Em um país como o Brasil, onde o monopólio midiático é instituído e ao mesmo tempo é muito simbólico, dada a aldeia global em que vivemos, essa produção e circulação outra é um fato relevante. Também essa relação com o mundo que propõe o caderno, e nesse sentido ele ainda porta algo de sua “antiguidade”, diz respeito à artesania que o envolve e que, como sabemos, alude à materialidade da escrita, à escrita como um modo de fazer e não apenas de dizer. No entanto, e essa é a atualidade que aqui sublinho, essa artesania hoje vem permitindo que algumas experiências com cadernos não digam mais respeito à forma clássica (ela mesma determinada e determinante da forma livro) e destinem-se à sua saída do papel, à experimentação material da escrita, que pode assumir em muitos desses casos a materialidade do próprio corpo, fazendo com que a noção de escrita apareça já banhada por esse universo pós-performativo de que falei no início. Todas essas indicações só se tornaram mais palpáveis porque decidi – o que acabou deflagrando a segunda linha dessa pesquisa atual sobre cadernos – olhar para os meus próprios cadernos e, ao mesmo tempo, construir uma estratégia para fabricar experiências de escritas e pesquisas com cadernos. Não no seu sentido artesanal, mas em sua potência escriturária, como suporte a ser pensado em sua forma e percurso. Esse vértice da pesquisa se deu inicialmente como acontecimento, com sua dose própria de inesperado, mas também de inevitabilidade. Em 2015, ofereci na pós-graduação, onde leciono há onze anos, de Literatura Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio um curso no qual havia decidido algumas coisas: 1) não separar tanto a minha prática crítica da minha escrita de poe-

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mas, ficções e outras coisas; 2) não consolidar o curso como espaço apenas de leitura e apresentação de textos, deixando que algo outro ali também pudesse se passar; 3) que eu não apartasse a minha formação clínica (há tantos anos abandonada como prática) da minha escuta crítica. Tudo isso um tanto gerado no seio de uma crise consistente com a universidade e suas práticas, e também com a consciência de um tanto que me foi tolhido, por mim e alguns outros, ao longo da construção de minha séria trajetória acadêmica. Era óbvio que com esses ingredientes algo em meio ao meu exercício crítico pedia passagem e ar. Decidi, portanto, nesse curso, efetuar um pequeno conjunto heterogêneo de ações, tais como falas-performances minhas em lugar de aulas, conversas com artistas e escritores sobre seus projetos não realizados ou ainda em processo, e feitura de cadernos de pesquisa, que foram sendo vistos por mim e pela turma ao longo do curso, em vez da entrega da monografia final. Desse curso resultou a exposição e o seminário Cadernos do Corpo no CCJF, e essa cartografia de linhas de força (anexo) com as quais venho trabalhando e que recolocaram um conjunto de novas questões à pesquisa sobre alguns cadernos de autores que venho consultando. Nesse mapa estão todos, vivos ou mortos, conhecidos ou desconhecidos, publicados ou inéditos. Esse gesto vem obviamente pedindo passagem para um desejo de abertura e democratização dos meios de produção e não somente de recepção e acesso à cultura, como muito se pensou até agora. Tudo isso muito singelo e frágil. Larvar e transitório. Tal como vimos entendendo que a escrita é, quando aberto o sepulcro fechado do livro. É bem verdade que com esse caminho tortuoso, aparentemente, não voltei ao mito da criação. Sublinho apenas que a literatura, reino do texto, é desterritorializada pela escrita que, por sua vez, é desterritorializada pelos suportes, esses mesmos já não tão passivos, e incluso quando anacrônicos como mostram ser os cadernos, acabam por deslocar o mito da criação de toda e qualquer origem e centro para essas práticas e experimentações descentradas, que atuam como gestos inconclusos ou até mesmo involutivos, arrastando-nos para algo às vezes um tanto selvagem, mas também tático, local, comum e aberto, quiçá por vir. Ou como disse Sophia de Mello Breyner Andersen: Estilo manuelino Não a nave romântica onde a regra Da semente sobe da terra Nem o fuste de espiga Da coluna grega Mas a flor dos encontros que a errância Em sua deriva agrega.

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Anexo

Corporalidades FC

FF

Modos de subjetivação/dessubjetivação PT MS MFM MF NAL

DF

Inconsciente AT Micropolíticas

BP AA CZ HA MB KJ MM Viagem

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Referências ANDRIEU, Bernard. À l’extrémité de son corps, l’eXtrême? IN: L’art dans tous ses extremes. Paris: Klincksieck, 2012, p. 29-44. ARTIERES, Philippe e POTTE-BONNEVILLE, Mathieu. D’aprés Foucault, gestes, luttes, programmes. Paris: Points, 2012. ARTAUD, Antonin. Oeuvres sur papier. (Catálogo). Musée Cantini, 17 juin – 17 septembre 1945. . 50 dessins pour assassiner la magie. Évelyne Grossman (ed.). Paris: Gallimard, 2004. Barcelò, Miquel. Carnets d’Afrique. Patrick Mauriès (ed.). Paris: Gallimard, La Promeneur, 2003. Barthes, Roland, Variações sobre a escrita. In: Inéditos 1 – Teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174-255. Basbaum, Ricardo. Vivência crítica participante. Arquivo PDF. 2011. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S1678-53202008000100003 Coelho, Frederico. Livro ou livro-me. Os escritos babilônicos de Hélio Oiticica. (1971-1978). Rio de Janeiro : Eduerj, 2010. Combes, Muriel. La vie inséparée – vie et sujet au temps de la biopolitique. Paris: Dittmar, 2011. Deleuze, G. & Guattari, F. Mille Plateaux capitalisme et schizophrénie 2. Paris: Minuit, 1980. Duras, M. & Portes, M. Les lieux de Marguerite Duras. Paris: Minuit, 2012 [1977]. Foucault, Michel. Dits et ecrits, vol. IV. Paris : Gallimard, 1994, p. 415-430. Grinberg, Tatiana. Placebo 01. Catálogo da exposição realizada no Museu de Arte Moderna, curadoria de Luiz Camillo Osório. Rio de Janeiro de 9 de abril a 5 de junho. Rio de Janeiro: Automática, 2011. Grosmman, E. L’angoisse de penser. Paris: Minuit, 2008. Kiffer, Ana. Limites da escrita ou como fazer da escrita uma plástica? Revista Alea, Estudos Neolatinos, vol. 10, n. 2: 212-225, julho/dezembro, 2008. . A escrita e o fora de si. In: Garramuño, F. & Kiffer, A. (orgs.). Expansões contemporâneas – literatura e outras formas. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

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Hélio’cubrações em torno do diagrama André Vallias Poeta, designer gráfico e produtor de mídia interativa

Ensaio visual produzido para o livro. Para acessar o conteúdo da palestra, ver página 330.

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Tem-se inversões de palavras na oração. Porém maior e bem mais eficaz deverá ser a inversão mesma das orações. A colocação lógica das orações, onde a causa (da oração principal) é sucedida pela ação, a ação pelo fim, o fim pelo objetivo, e onde as orações subordinadas vão se encadeando à principal a qual imediatamente se referem – é certamente ao poeta de quase ou nenhuma utilidade. Hölderlin

onde se lê hagoromo, leia-se parangolé Haroldo de Campos

singultâneo Hélio Oiticica

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mudar O valor das coisas Peter Pรกl Pelbart Professor titular de Filosofia na PUC-SP


Criar não é a tarefa do artista. Sua tarefa é a de mudar o valor das coisas.1

Variação 1 – Nietzsche Se abrimos a monografia de Gilles Deleuze sobre Nietzsche, de 1962, a primeira frase diz de maneira lapidar: “O projeto mais geral de Nietzsche consiste em introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de valor”.2 Mas ele logo salienta que uma filosofia dos valores só interessa caso se contraponha a um novo conformismo, e funcione como uma verdadeira crítica dos valores, total, feita a “marteladas” – a saber, uma “transvaloração de todos os valores”. Com efeito, em Nietzsche, o valor de algo depende de uma pesagem comparativa, de uma avaliação, de uma hierarquia. É Nietzsche quem diz que o homem é o animal avaliador por excelência, ele pesa, compara, estabelece hierarquias, dá valor a certas coisas em detrimento de outras, instaura, dessa forma, valores supremos, desejáveis, outros inferiores, indesejáveis, repugnantes – vivemos em meio a tal escala de valores assim como respiramos. Por trás de cada atitude, gesto, fenômeno, pensamento, obra, é preciso buscar o valor que o preside. 1 OITICICA. Hélio. Museu é o mundo. César Oiticica Filho (org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 157. Essa coletânea inspiradora me foi presenteada por Celso Favaretto, a quem devo a inspiração para minhas furtivas incursões no pensamento de Oiticica. Obviamente, não tem ele responsabilidade alguma pelo uso meramente associativo que aqui será feito. 2

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DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976.


Porém, mais decisivo do que detectar o valor ali presente é identificar a avaliação que lhe deu origem. A avaliação é a operação por excelência – avaliar, medir, valorar, dar peso, interpretar é o que fazemos o tempo todo. Se o primeiro passo na apreciação dos fenômenos, sejam eles morais, estéticos ou filosóficos, é remetê-los aos valores que os regem, o segundo passo consiste em remontar às avaliações, ao gesto de avaliação que deu nascimento a tal ou qual valor. Por exemplo, talvez a moral que prega o bem como valor supremo seja fruto mais da inveja e do ressentimento do que do altruísmo. Portanto, isso já nos ilumina sobre a natureza do valor chamado “Bem”, completamente dissimulado quando se apresenta como abnegado ou altruísta. Mas o terceiro passo é ainda mais crucial. A avaliação que cria o valor não provém de um capricho, ela é feita por um ser vivo, e esse ser vivo não é uma entidade abstrata nem um ser alado, está enraizado num corpo, tem seus interesses e desejos, resulta de certa configuração pulsional, constitui um tipo de vida – nobre ou escravo, altivo ou submisso, superabundante ou carente, ascendente ou declinante. Que tipo de vida ou modo de existência precisou criar tal ou qual valor que o expressa e o reitera? Um tipo ressentido avaliará conforme seu ressentimento, rebaixará tudo em função dele, forjará os valores que lhe correspondam, e sustentará aqueles valores que corroborem o ressentimento que lhe é próprio, tratando de disseminar esses valores ou esse veneno e assim expandido seu poderio. Não é outro o caso do cristianismo, exemplifica Nietzsche, com seu desprezo pelo corpo, a desqualificação dos prazeres, a moral de rebanho, o culto ao sofrimento, à tristeza, à obediência, à autonegação que por vezes recebe o nome de humildade ou abnegação. A crítica aos valores vigentes não equivale a um debate de opiniões, nem de doutrinas, mas ao mapeamento dos sintomas que expressam maneiras de existir, sobretudo as esgotadas, enfermiças, doentias. Daí porque a questão dos valores é uma questão de vida, não de especulação, de saúde, não de entendimento. Donde a dupla tarefa de um pensamento que parte de Nietzsche, segundo Deleuze. Referir tudo a valores: qual é o valor que está como que por trás de uma atitude, de um fenômeno, de uma obra, de uma cultura? E qual é o modo de vida que está na origem desse valor? Remontar, pois, do valor até a avaliação, e da avaliação até o tipo de vida. Mexer nos valores, ou na hierarquia dos valores, é mexer com a vida, com os modos de vida, com os estilos de vida. Daí também os inimigos de uma filosofia dos valores nesse sentido radical, segundo Deleuze. Há aqueles que se preocupam apenas em inventariar os valores vigentes, ou em corroborá-los, ou fornecer-lhes fundamentos – e a história da filosofia poderia ser colocada sob o signo dessa vasta

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linhagem. Por outro lado, há os que traçam a gênese desses valores e, ao fazerem sua genealogia, realizam sua crítica corrosiva, desmontando-os, revirando-os do avesso. Mas não se trata de demolir certos valores para substituí-los por outros. Exemplo. Exit Deus, viva o Homem. Se o Homem ocupa o lugar que antes era de Deus, nada muda, substancialmente, já que o lugar do valor supremo idealizado é inteiramente preservado, e pior, o Homem, tal como o conhecemos e fabricamos, ressentido, culpado, mutilado, é alçado ao estatuto de ideal supremo. Nada pior do que endeusar o homem medíocre e doentio que conhecemos, projetá-lo como a meta a ser atingida. Por isso, a morte de Deus é indissociável da morte do Homem para que algo realmente seja revertido. Não se trata, portanto, de substituir um valor por outro, por exemplo, ao invés do Bem, valor supremo que nos vem de Sócrates, colocar o Progresso, ou a Felicidade, ou mesmo a Inventividade, mas pôr em xeque a supremacia do valor supremo, e assim, mais amplamente, questionar o valor dos valores. No fundo disso, o que realmente está em questão é o modo de produção de novos valores. Como não apenas mexer nos valores, não substituir um por outro, não apenas revirar colocando no alto o que antes estava embaixo, mas mexer no modo de produção dos valores, na maneira em que eles são criados, investidos, idealizados, reificados, para que a criação de valores reflita uma relação outra com a instância que os produz. Só, então, toda essa série poderia ser remexida, só, então, faz sentido falar de uma transvaloração dos valores. De nada adianta simplesmente criar novos valores sem inventar novas maneiras de criar valor, uma nova lógica no engendramento de valores, em suma, uma relação outra entre vida e valor, entre interpretação e experimentação. Os valores não deveriam espezinhar a vida que os cria, nem doentiamente sobrepor-se a ela, mas expandi-la, tocar suas notas mais altas, intensificá-la ou prolongá-la. A frase de Nietzsche é por demais conhecida, mas não custa repeti-la. “Em um são suas lacunas que filosofam, em outro suas riquezas e forças”.3 Será possível fazer falar as riquezas e forças? Afirmá-las? A filosofia deixaria, então, de ser um “tranquilizante, brandura e bálsamo, para tornar-se transfiguração”. Sem pressupor a leitura encadeada dessa série por Oiticica, podemos deixar no ar a pergunta: será que mudar o valor das coisas, como ele o enunciou, equivale a transvalorar todos os valores como quer Nietzsche?

3

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Prefácio à segunda edição (1886). In: Nietzsche, obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 197.


Variação 2 – Deleuze O que de mais explícito Oiticica parece ter colhido em Nietzsche, no entanto, conforme as cartas ou apontamentos disponíveis, é o elogio do artista trágico. Segundo seu próprio relato, ele o teria descoberto em meados dos anos 70, através do livro de Deleuze Nietzsche e a filosofia, que lhe fora recomendado por Silviano Santiago. Ora, nesse livro, ao tratar do trágico nietzschiano, Deleuze tenta livrá-lo de uma interpretação por demais dialética e cristã, que nele veria o negativo, com toda a espiral das antíteses e sínteses, contradições e reconciliações, que teria por fundo uma visão profundamente pessimista do eterno sofrimento, sorvida em Schopenhauer. Na contramão dessa visão niilista, Deleuze encontra no trágico de Nietzsche um viés jubilatório, que extrai da dor um prazer, que faz da metamorfose uma afirmação vital. Sendo a vida inocente, nada há a redimir nem a justificar, muito menos a resolver. Dionísio não interioriza a dor, como o faria uma consciência infeliz, mas a exterioriza, lançando-a no jogo do mundo. Eis como o expressa Nietzsche, ao discriminar dois tipos de sofrimento e de sofredores: Aqueles que sofrem de superabundância de vida fazem do sofrimento uma afirmação, assim como fazem da embriaguez uma atividade; na laceração de Dionísio eles reconhecem a forma extrema da afirmação, sem possibilidade de subtração, de exceção, nem de escolha. Aqueles que sofrem, ao contrário, de empobrecimento de vida, fazem da embriaguez uma convulsão ou torpor; fazem do sofrimento um meio de acusar a vida, de contradizê-la e também um meio de justificar a vida, de resolver a contradição.4

Em vez de angústia, a alegria, em vez da existência ressentida, a afirmação múltipla e pluralista, o poder das metamorfoses. “O que define o trágico é a alegria do múltiplo, a alegria plural. Esta alegria não é o resultado de uma sublimação, de uma purgação, de uma compensação, de uma resignação, de uma reconciliação: em todas as teorias do trágico, Nietzsche pode denunciar um desconhecimento essencial, o da tragédia como fenômeno estético. Trágico designa a forma estética da alegria”. O que é trágico é a alegria: “O renascimento da tragédia acarreta o renascimento do ouvinte artista cujo lugar no teatro, por um estranho quiproquó, foi ocupado até agora pelas pretensões meio morais, meio eruditas, o crítico”.5 E Deleuze 4

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976, p. 13.

5

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia, 22, apud DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia, p. 14.

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conclui, reiterando o leitmotiv que atravessará todo seu livro: “Uma lógica da afirmação múltipla, portanto uma lógica da pura afirmação, e uma ética da alegria que lhe corresponde, é o sonho antidialético e antirreligioso que atravessa toda a filosofia de Nietzsche”.6 Em última instância, a vida é inocente, isto é, ela é jogo, o que faz dela um fenômeno estético, e não moral ou religioso.7 Se o tempo (Aiôn) é uma criança que brinca, é preciso assumir plenamente o lance de dados, o acaso, a combinação a um só tempo fortuita e necessária. “Nietzsche identifica o acaso ao múltiplo, aos fragmentos, aos membros, ao caos”. 8 Donde a citação que Oiticica retém: “O artista trágico não é um pessimista, ele diz sim a tudo o que é problemático e terrível, ele é dionisíaco”. E vem a seguir a reprodução do que Oiticica qualifica como “apoteose monumental” no escrito de Deleuze: A mensagem feliz é o pensamento trágico, pois o trágico não está nas recriminações do ressentimento, nos conflitos da má consciência, nem nas contradições de uma vontade que se sente culpada e responsável. O trágico não está nem mesmo na luta contra o ressentimento, a má consciência ou o niilismo. Nunca se compreendeu, segundo Nietzsche, o que era o trágico: trágico=alegre. Outra maneira de colocar a grande equação: querer=criar. Não se compreendeu que o trágico era positividade pura e múltipla, alegria dinâmica. Trágica é a afirmação, porque afirma o acaso e a necessidade do acaso; porque afirma o devir e o ser do devir, porque afirma o múltiplo e o um do múltiplo. Trágico é o lance de dados. Todo o resto é niilismo, páthos dialético e cristão, caricatura do trágico, comédia da má consciência.9

Um leitor de Deleuze não pode ficar indiferente ao fato de Oiticica ter retido, de Deleuze, uma passagem tão decisiva, que traz embutida o núcleo de sua interpretação geral sobre Nietzsche. Obviamente, não está a nosso alcance medir a que ponto tal encontro ressoou com a trajetória já em curso no artista, e é pouco provável que a tenha infletido. Mas o que sempre interessou Deleuze na relação entre a filosofia e as artes foram os encontros, não as influências. Assim, a filosofia, a arte e a ciência entram em relações de ressonância mútua e em relações de troca, mas a cada 6

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 14.

7

Ibid., p. 19.

8

Assim falou Zaratustra, III, “Antes do nascer do sol”, citado por Deleuze em Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 21.

9

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 30.

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vez por razões intrínsecas. É em função de sua evolução própria que elas percutem uma na outra. Nesse sentido, é preciso considerar a filosofia, a arte e a ciência como espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que não cessam de interferir entre si.10 Daí porque não se coloca a questão da fidelidade, antes o contrário – a do roubo legítimo, das núpcias contranatura. Diz Deleuze: “Roubei Félix, e espero que ele tenha feito o mesmo comigo”.11 Ou mais precisamente: “O desejo ignora a troca, ele só conhece o roubo e o dom.”12 Fiquemos, a título de ilustração, com a carta a Mário e Mary Pedrosa, de 1975, quando Oiticica escreve: HENDRIX → INSTAURAÇÃO DO TRÁGICO (q nada tem a ver com RESTAURAÇÃO DA TRAGÉDIA q os diluidores ‘explicadores’ de NIETZSCHE tomam como algo NIETZSCHIANO e não é!: NIETZSCHE foi o anunciador da INSTAURAÇÃO DO TRÁGICO q IN-CORPORA comportamento-mundo-vida numa só genealogia cujo ápice é a concepção do ARTISTA TRÁGICO no qual as consequências mais extremas levam a outras que se extremam e levam a outras etc.

Ao evocar o texto acima, Lisette Lagnado os relaciona com a questão do participador, com o questionamento da representação, com a forma estética da alegria injetada no ambiental. Hendrix despontava como exemplo do artista trágico nietzschiano, “herói alegre, leve, que dança e joga”, em contraposição ao cidadão Kane, herói romântico.13 Paula Braga, por sua vez, ressalta a relação entre acaso e multiplicidade tal como aparece na leitura de Deleuze, de quem cita o seguinte trecho: Nietzsche identifica o acaso com o múltiplo, com os fragmentos, com os membros, com o caos: caos de dados que se chocam e que se lançam. Nietzsche faz do acaso uma afirmação. O reino de Zaratustra é chamado de “grande acaso” [...] Saber afirmar o acaso é saber jogar [...] Que o universo não possui nenhum objetivo, que não existe qualquer fim a esperar, assim como causas a conhecer, é esta a certeza que convém ter para bem jogar.14 10 DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: 34, 1992, p. 156. 11 DELEUZE G. e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 25. 12 DELEUZE G. e GUATTARI, F. O anti-Édipo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: 34, p. 246. 13 DWEK, Zizette Lagnado. Hélio Oiticica: o mapa do programa ambiental. Tese de doutoramento sob orientação de Celso Favaretto, USP, São Paulo, 2003, p. 183 e seguintes. 14 DELEUZE, G. O lance de dados. In: Nietzsche e a filosofia. 2a ed. Porto: Rés, 2001, p. 42-43.

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E ela comenta: “Fazer do acaso o ingrediente fundamental para uma receita exige atitude inventiva de quem recebe um fragmento e um jogador de dados confiante no acaso, que acredita que seu lance será usado numa mistura conseguinte, mas imprevisível”.15 E acrescenta: Até a tentativa que fizemos de aproximar a interpretação de Deleuze a respeito do jogo de dados Nietzschiano das aparições dos dados e do acaso na obra de Oiticica é mera costura de fios soltos, um cozido de fragmentos, pois os conceitos de Nietzsche não são usados por Oiticica pelo que são na obra do filósofo alemão ou de seus comentadores. Como uma cuba de vidro que passa a integrar um bólide e a formar um todo tão íntegro que perde sua característica de “cuba” isolada, noções bastante complexas como o “lance de dados” são empregadas por Oiticica como parte que constituirá um todo a partir da vontade do artista. Mas podemos arriscar a dizer que o acaso que faz um lance de dados cair de volta com uma combinação vitoriosa é uma coincidência muito forte, quase uma necessidade (no sentido de inevitável) que, quando ocorre, sugere um encadeamento mágico ou ficcional de eventos, um “delírio concreto”, capaz de embaralhar lugares e o tempo, como acontece no passeio de Oiticica pelo Rio em 1979,

que ela cita a seguir: [...] eu pego assim pedaços de asfalto na Avenida Presidente Vargas, antes de taparem o buraco do metrô, todos os pedaços de asfalto que tinham sido levantados... Quando eu apanhei esses pedaços de asfalto, eu me lembrei que CAETANO uma vez fez uma música, que disse até que pensou em mim depois que fez a música, que falava o negócio da “escola primeira da mangueira passa em ruas largas, passa por debaixo da avenida Presidente Vargas”. Aí eu pensei assim: esses pedaços de asfalto... soltos, que eu peguei como fragmentos e levei para casa... agora, aquela avenida estava esburacada por baixo, e na realidade a estação primeira da mangueira vai passar por debaixo da Avenida Presidente Vargas... uma coisa que era virtual quando CAETANO fez a música, de repente se transformou num delírio concreto. O delírio ambulatório é um delírio concreto...16

15 BRAGA, Paula. Oiticica. Singularidade, multiplicidade. São Paulo: Perspectiva, 2013. 16 OITICICA, Hélio. Áudio da entrevista a Ivan Cardoso. Museu é o mundo. Op. cit.

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Variação 3 – Viver não é sobreviver No fim dos 60, anos depois de publicado o livro Nietzsche e a filosofia, confrontado com a pergunta o que é ser nietzschiano hoje, e em conformidade com o que espocava da rua, Deleuze preferiu situar o nietzschianismo menos nos livros ou colóquios sobre Nietzsche do que nos gestos políticos e poéticos que desafiavam os valores e poderes vigentes. Eis um exemplo dado por ele: “enunciados particularmente nietzschianos no decorrer de uma ação, de uma paixão, de uma experiência”, tais como Viver não é sobreviver, proferido por um estudante antes de ser ferido pela polícia, em meio a uma manifestação. Ou então, numa outra direção, certo modo de recusar a noção de indivíduo. Diz ele: as forças de repressão sempre tiveram necessidade de Eus atribuíveis, de indivíduos determinados, sobre os quais elas pudessem se exercer. Quando nos tornamos um pouco líquidos, quando nos furtamos à atribuição do Eu, quando não há mais homem sobre o qual Deus possa exercer seu rigor, ou pelo qual ele possa ser substituído, então a polícia perde a cabeça. Isso não é algo teórico. O importante é o que ocorre atualmente. Não é possível livrar-se das inquietações atuais dos jovens, simplesmente dizendo que a juventude passa.17

Desde então muita água passou por debaixo da ponte. Mas nada disso perdeu sua atualidade. Nos movimentos coletivos cujo teor político não se deixa separar de uma aposta vital, o anonimato é um princípio generalizado, que poderíamos classificar de não identitário, antinarcísico, sintônico com a movência multitudinária, na contramão de uma liderança personalista. Mas também é um macete tático, na luta contra a polícia e seu esforço em individualizar a imputação, no ímpeto de criminalização das manifestações ou ocupações. É a força do anônimo que testemunhamos em vários movimentos da última década.

Variação 4 – Movimentos aberrantes Num livro recente de David Lapoujade sobre Deleuze, ele sustenta que o projeto maior do filósofo teria sido detectar os movimentos aberrantes, por toda parte em que apareçam, seja na natureza, no pensamento, na vida, nas 17 DELEUZE, G. A ilha deserta. David Lapoujade (org.), trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 178.

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artes ou na história.18 Um movimento aberrante não é aquele que parece anômalo do ponto de vista de um padrão externo e regular, embora isso também possa acontecer, mas aquele que não pode ser apreendido racionalmente. Quantos movimentos há no pensamento, nas artes, na vida, que não podemos explicar, que não podem ser reduzidos a seus antecedentes, a suas causas, que simplesmente extrapolam nossa capacidade de análise, de deciframento, de tradução? Não significa que eles não tenham sua lógica, sim, eles a têm, eles têm seu modo de funcionar ou disfuncionar, eles têm sua maneira de dobrar-se ou desdobrar-se, eles têm sua gênese singular, mas justamente ela é singular, esquizofrênica, desterritorializante, é mais da ordem de um escape que de um porto seguro. Um quadro de Bacon, um texto de Artaud ou de Beckett, um filme de Visconti ou Godard, uma ciência nômade, o próprio nomadismo na história, máquinas de guerra que percorrem a cidade, todos eles têm sua lógica e, no entanto, liberam um movimento aberrante, produzem ao seu redor um abalo, uma ruptura, uma fissura, um desregramento. Deixam vazar alguma coisa que extrapola nossa capacidade de compreender, ou de sentir, ou de pensar, ou de programar, levando-nos a um limite. Do que esses movimentos aberrantes dão testemunho é de uma potência, uma potência de vida que talvez não caiba no limite de uma vida, de uma existência definida, de uma sensibilidade configurada, de um pensamento possível. Como se essa potência que eles liberam extrapolasse nossa vivência ordinária, nossa existência corriqueira, nossa normalidade cotidiana. Pois de fato, isso que irrompe parece grande demais até para quem o vive, forte demais para quem o experimenta, terrível demais para quem o sofre, belo demais até para quem o admira. Há aí um excesso que já não pode ser domado, domesticado, normalizado, e diante do qual nos sentimos como que impotentes, mas essa impotência não passa do signo de uma potência superior. Segundo Deleuze, é esse limite que o pensamento persegue, bem como certa literatura, certo cinema, por que não certo teatro, certa política? Cito o filósofo no domínio literário: O ato fundador do romance americano, o mesmo que o do romance russo, consistiu em levar o romance para longe da via das razões e dar nascimento a esses personagens que estão suspensos no nada, que só sobrevivem no vazio, que conservam seu mistério até o fim e desafiam a lógica e a psicologia [...] o que conta para um grande romancista, Melville, Dostoievski, Kafka ou Musil, é que as coisas permaneçam enigmáticas e, contudo, não arbitrárias: em suma, uma nova lógica, plenamente uma lógica, mas que não nos reconduza à razão e que capte a intimidade da vida e da morte.19 18 LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1edições, 2015. 19 DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: 34, 1997, p. 13.

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Vidas que desafiam as razões, as razões psicológicas, as razões pragmáticas e, no entanto, nada aí é arbitrário, há nesses personagens uma necessidade imperiosa, como no caso do Capitão Ahab, do escrevente Bartleby, de O homem do subsolo de Dostoievsky, ou de Stavroguin em Os possessos, ou K. Mas poderíamos citar Riobaldo, Rubião, e tantas personagens de Clarice... São o que Deleuze chama de seres originários. Não necessariamente são extraordinários, embora muitas vezes pareçam anômalos, mas no geral estão obcecados por uma ideia incompreensível, mordidos por uma inclinação irrefreável, inexplicáveis, tomados por um movimento arrebatador ou por uma imobilidade enigmática. Embora pareçam doentios, na verdade lançam sobre o entorno uma luz lívida através da qual iluminam as doenças do entorno. Mais do que neuróticos ou psicóticos, são médicos da civilização, diagnosticam as doenças do entorno, dominado pelo homem-branco-ocidental-racional-eurocêntrico-colonialista-machista-heteronormativo, como dizem nossos pós-humanos, ou apenas humano, demasiado humano, como diria Nietzsche. Mas tais experimentos vitais só são possíveis caso impliquem muitas mortes, não dos outros, mas de camadas caducas que obstruem a própria vitalidade. É preciso destruir o organismo, dizia Artaud, o que pode ser aplicado a esferas várias, da dança à política, todo âmbito que se baseia num corpo pensado como um organismo, corpo físico, corpo institucional, corpo social, corpo doutrinário, organismo que precisa funcionar direito – mas o que acontece quando ele é desorganicizado? Certas decomposições abrem seus elementos para outras composições. É preciso fazer morrer, esquizofrenizar, tornar a vida aberrante para livrá-la do que a impede de respirar ou expandir-se, ou atingir seu ponto máximo... Em outros termos, é preciso atingir algo de invivível da vida. Já Foucault dizia que jamais o interessou a experiência vivida, com a qual a fenomenologia se ocupava bem, a saber, o cotidiano, “esta mesa”, “este papel”, “este cubo de açúcar” se dissolvendo na água, “este garçom de café” – mas interessava-o o invivível da vida, esses pontos em que algo do vivencial se rompe – como na loucura, no crime, na revolta, na sexualidade, temas, aliás, que ele pesquisou a fundo. Para retomar o Nietzsche de Oiticica lido por Deleuze: “O artista trágico não é um pessimista, ele diz sim a tudo o que é problemático e terrível, ele é dionisíaco”. Ora, precisamente é a dificuldade maior – ir por uma espécie de necessidade até um ponto-limite, inevitável e ao mesmo tempo inacessível. Mas o que é mesmo esse ponto-limite, essa experiência limite? Que limite é esse? Alguma fronteira de finitude, ou outra coisa muito menos fronteiriça? O pensamento, quando vai ao seu limite, isto é, vai até sua enésima potência, atinge o impensável; a memória, levada ao seu limite, atinge o fundo do tempo, o imemorial; a sensibilidade quando vai a seu limite atinge a

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intensidade; a vida atinge não o vivido, mas o seu invivível que, no entanto, só a ela cabe experimentar. Não se trata de nada místico nem religioso nem esfumaçado, mas de uma passagem ao limite. E o limite aqui não significa limitação, fronteira, mas potência, ir ao máximo de sua potência, desdobrar o grau de potência, a enésima potência. Como o escreveu Oiticica: “o ARTISTA TRÁGICO no qual as consequências mais extremas levam a outras que se extremam e levam a outras etc.” E Lapoujade pergunta: mas o invivível na vida, o imemorial na memória ou o impensável no pensamento, se eles permanecem inacessíveis, se as faculdades, em seu uso empírico, não podem atingi-los, para quê serviria isso tudo? Ou melhor: para que acompanhar os movimentos aberrantes? Porque “os movimentos aberrantes nos arrancam de nós mesmos” e permitem acessar dimensões outras. “Há algo de ‘forte demais’ na vida, intenso demais, que só podemos viver no limite de nós mesmos. É como um risco que faz com que já não nos atenhamos mais à nossa vida no que ela tem de pessoal, mas ao impessoal que ela permite atingir, ver, criar, sentir através dela. A vida só passa a valer na ponta dela própria”, esclarece Lapoujade.20 E se dermos mais um passo, poderemos perguntar: Que direitos esses movimentos aberrantes reivindicam? Em prol de que novas existências testemunham? Que novos seres ou novas existências esses movimentos testemunham, que novos modos de existência, que novas maneiras de viver, mas também, mais radicalmente, que novas populações afetivas, políticas, sonoras, pictóricas, libidinais, aí se liberam e poderiam povoar diferentemente o mundo? Daí porque quando Deleuze e Guattari fazem um arrastão teórico e passam “pelos nômades, os metalúrgicos, os índios, os trabalhadores itinerantes, a geometria arquimediana ou a música” é porque em todos eles há um combate de vida e morte, mas já não apenas com aquela morte positiva da autodestruição necessária de que falávamos acima, mas contra outra morte, “aquela através da qual o capitalismo nos faz passar e que nos transforma em mortos vivos, em zumbis sem futuro” e contra a qual “certos movimentos aberrantes estão sempre lutando, molecularmente, minoritariamente”.

Desvio 5 – Ueinzz Permitam-me fazer uma ponte com a experiência de já 20 anos com a Cia Teatral Ueinzz, que jamais teve o propósito de fazer teatro com T maiúsculo, nem propriamente de fazer algum gênero específico – talvez o melhor nome 20 LAPOUJADE, D. Deleuze, os movimentos aberrantes. Op. cit., p. 23.

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ainda seja o de esquizocenia. Não porque é feito por esquizofrênicos, o que por si só não garante nada – já vi peças feitas por eles e que eram totalmente caretas. É que num tal extremo de vida nua como a dos ditos loucos, de vida precarizada, desapossada de todos os penduricalhos civilizatórios, submetida a todas as exclusões, violências, esmagamentos, como é que justo aí, nesse ponto zero social e psíquico, uma subjetividade esquizo, em vez de obstáculo à criação estética, torna-se precisamente sua fonte maior, a matéria-prima por excelência para a produção de alguma coisa que talvez se chame obra, ou acontecimento, ou apenas desobramento? A vida nua revela seu avesso inesperado: maneiras menores de ver, de sentir, de pensar, de perceber, de vestir-se, de viver. O que é posto em cena é a fronteira onde arte e vida se confundem, uma maneira de representar sem representar, de estar no palco e sentir-se em casa simultaneamente, de associar dissociando, de dar a ver o horror a partir de signos de gagueira, de extravio, de desmanchamento, mas transmutando-os em acontecimento, talvez passível de ser designado por estético. A partir da vida nua, e de um corpo que não aguenta mais as coerções e os adestramentos que sobre ele se exercem, não se trata de recorrer a belas formas que compensem ou camuflem o desmanchamento, mas sondar no âmago dessa passividade, dessa impotência, uma potência superior. “O artista trágico não é um pessimista, ele diz sim a tudo o que é problemático e terrível, ele é dionisíaco”. Claro que a partir desse exemplo restrito é toda uma ética que se desenha, nas antípodas de qualquer fascismo, seja nas suas versões clássicas ou pós-modernas e mesmo pós-humanas: ter a força de estar à altura de sua fraqueza, em lugar de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força... Se eu quisesse me valer do pensamento de Oiticica para justificar o que acabo de evocar, eu diria simplesmente: há uma miscigenação não só das raças que desafia o condicionamento branco, mas outra miscigenação, entre razão e desrazão, sanidade e loucura, vida e morte, razão mestiça, dizem uns (Yann Moulier-Boutang), supraestado cannabiano, diria Oiticica, corpo sem órgãos, diria Artaud. Aí, e agora roubo tudo de Oiticica, nessa área aberta do mito, fios soltos do experimental se cruzam, menos para fazer obra do que para mudar o valor das coisas (da razão, da sanidade, do corpo performático, da linguagem ordenada, ou numa outra ordem, do corpo, das assimetrias, da dissonância, da passividade), num contexto em que coexistem singularidades tão heterogêneas, numa temporalidade estratigráfica, na qual se sobrepõem várias camadas de tempo, afeto, acontecimento, num tempo que também pode ser dito flutuante, quando o corpo pesa na sua presença de chumbo ou levita, onde a gestualidade primeva, imemorial, pré-humana, ou da aranha, diria Deligny, conjuga-se com a caricatura de super-heróis. A subjetividade que se desenha aí tem

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pouco a ver com nosso padrão eurocêntrico, em que devires vários a tomam de assalto e a reconfiguram. É tudo muito pequeno, diminuto, modesto, vagalume, sub-sub, mas não importa o tamanho, somos moleculares ou subterrâneos, os terremotos sempre começam assim, as revoluções também, os desmoronamentos dos grandes impérios idem. O que caracteriza essa esquizocenia, para reutilizar o vocabulário que evoquei anteriormente, é trazer à cena certa experiência-limite em prol de existências menores. Ou modos menores de existir, que não se restringem às minorias concretas necessariamente, como os usuários de saúde mental, uma população excluída e preterida, mas ao devir-minoritário de todos e de cada um – como dizia Foucault, todos temos um lado de plebe, ou como diria Guattari, todos temos virtualmente ao menos um devir-esquizo. Trata-se, com esse grupo e talvez em outros experimentos que tive ocasião de cruzar, mas também na escrita ou no pensamento, de trazer à tona essa dimensão invivível, impensável, imemorial, a partir de certos gestos, ritmos, lentidões, afetos, rupturas de linguagem, devires-menores, gagueiras, que para ganharem alguma visibilidade precisam escapar aos holofotes do grande mercado de arte ou de ideias ou de clichês. É preciso apagar os holofotes fascistas ou espetaculosos para dar a ver a bioluminescência dos vagalumes, como o diz lindamente Didi-Huberman a partir de Pasolini. Para que os vagalumes possam aparecer precisamos de um pouco de penumbra, de um pouco de clandestinidade, de um pouco de lentidão, de um pouco de silêncio, de desconexões, para que os movimentos aberrantes possam aparecer e com eles venham à existência populações moleculares que nos cabe sustentar, na medida exata em que são elas que nos sustentam.

Variação 6 – A invenção Feitos todos esses desvios, já é hora de voltar a Oiticica. Quando indagado “O que é invenção?”, ele responde: Invenção é invenção. Invenção é o que não pode ser diluído e o que não será fatalmente diluído, aliás isso é muito importante dizer, é a primeira vez que eu estou formulando isso desse jeito: antigamente a invenção, depois dos inventores viriam os mestres e os diluidores, quer dizer a invenção seria fatalmente diluída. Agora não, a invenção é aquilo que está imune à diluição. A invenção é imune à diluição. A invenção propõe outra invenção, ela é a condição do que o Nietzsche chamava de “o artista trágico”. A invenção, ela gera invenção. O “artista trágico” de uma consequência que ele chega, ele gera outra consequência, acima daquela e

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diferente daquela; ele nunca volta atrás para repensar uma consequência. Quer dizer, a invenção é a condição do “artista trágico” nietzschiano, isso é muito importante [...] eu não me transformei num artista plástico, eu me transformei num declanchador de estados de invenção.21

Ninguém melhor do que Celso Favaretto para colher os vários sentidos dessa formulação: Para Oiticica, a invenção não se reduz à aplicação de categorias estéticas à vida, o que conduz à mistificação da criatividade. Além da maneira enviesada de reinstalar a arte, tal prática leva frequentemente à complacência moral, pois confunde liberdade de invenção com rituais em que se produzem “catarses psíquicas”. Para Oiticica, o “estado de invenção” é o reencontro com o estado nascente das pesquisas modernas, mas também a libertação da tendência a estetizar a vida.22

Portanto, lembra o autor, é toda uma operação de desmistificação que aí se empreende, inclusive das vivências populares, tão facilmente sequestradas. É Oiticica que o diz, perguntado se vinha ao Brasil reencontrar as “raízes”, ao que ele responde: Odeio este negócio. Pode botar aí, as raízes já foram arrancadas e queimadas há muito tempo. Em Nova York me perguntavam: “Não tem saudades da Mangueira? E do Rio?” Eu respondia que não posso ter saudades da Mangueira, porque sou da Mangueira. Não sentia saudades, porque comi a fruta inteira. Saudades só sente quem deu apenas uma dentada. E Favaretto arremata: A desmistificação consiste, pois, em não procurar reativar experiências como se manifestaram um dia, pois o processo de significação é situado. Trata-se, apenas, de repropor ações fora das expectativas que as tornaram passagem necessária no projeto de desconstrução (da arte, do corpo). Depois do processo de desconstrução, fica a experiência concreta do encontro com as coisas, sem nenhuma busca: “o delírio ambulatório é um delírio concreto”; ele não promete nada, é pura disponibilidade criadora. A busca de uma nova disposição de signos efetiva o “mito de viver”. Oiticica não redescobre as ruas, o morro; reafirma a sua experiência inicial, isento de mito e da utopia.23 21 OITICICA FILHO, César; COHN, Sérgio; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009. 22 FAVARETTO, Celso. A invenção de Oiticica. São Paulo: Edusp-Fapesp, 2000, p. 206. 23 Ibid., p. 221.

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Talvez nessa postura resida um dos aspectos mais desafiadores de Oiticica, aí ele ressoa com os fios soltos que fomos tocando nessa trajetória ziguezagueante. Como preservar a radicalidade da transvaloração, a aposta de mudar o valor das coisas, o modo de engendrar valores, talvez também rastrear as novas formas que toma o “artista trágico” hoje, sem que tal operação fique subordinada a um mito a ser revivido, a uma utopia imperativa, a uma ideia prévia até mesmo do que é o popular ou o povo ou o novo?

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Éden é o mundo. Só têm razão de existir os inventores Rafael Zacca Poeta, crítico e mestre em filosofia pela UFF


Não vestirei o falso parangolé das palavras agradáveis e confortáveis que nos fariam ter aqui qualquer sensação de união em torno de um símbolo-pai comum. Se não posso ter os panos agora e dançar, não vou fingir. Gostaria apenas de ter comigo um dos princípios do parangolé, que foi definido por Hélio Oiticica, em 1972 (está lá no conglomerado new yorkaises), como “programa do circunstancial”. Programa do circunstancial. E, para um moleque do Méier, que transitou sua infância e adolescência entre os bairros de Madureira, Vila Valqueire, Cascadura, Sulacap, Realengo, Bangu, Senador Camará, Engenho Novo, Engenho de Dentro, Água Santa, para esse garoto só seria possível acessar e conversar com o Hélio e o tema da criação a partir de uma desorientação fundamental. E é sempre alguém que está desorientado. Vamos falar de Hélio Oiticica, alguém para quem, desde os primeiros escritos de que temos notícia, a cor foi uma questão central. Tento voltar às obras com o Grupo Frente, aos Metaesquemas, aos Bólides... Não é fácil, realmente, não é nem um pouco conveniente ter apenas os meus olhos daltônicos para levar adiante minha tarefa. Programa do circunstancial. Poderia então elencar algumas definições clássicas e contemporâneas acerca do tema da criação. Uma vez que sou ligado à atividade poética, poderia recorrer a sentenças de poetas e escritores do nosso maior interesse. À de Sophia de Mello Breyner, por exemplo, que disse: “Como Antígona a poesia do nosso tempo diz: ‘Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres’”. À de um personagem de Miguel de Cervantes, Periandro, por exemplo, que afirmou que “o ano que é farto em poesia costuma ser o mesmo em fome.” Ou ainda à célebre definição de Oswald, por exemplo:

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“Aprendi com meu filho de 10 anos que poesia é o descobrimento das coisas que nunca vira antes.” Com essas assertivas, poderia depois recorrer aos escritos de Hélio sobre o novo, seus diálogos diretos ou indiretos com Lygia, com Pound, com os irmãos Campos. Seria talvez um caminho mais direto, correto, ou algo que o valha. É outra coisa, no entanto, que me chama a atenção. Leio o que Mário Pedrosa escreve em 1965, a propósito de uma estranha simbiose do extremo em Hélio: de um “inconformismo estético, pecado luciferiano” e de um “inconformismo social, pecado individual”. Para o crítico, essa fusão de beleza, pecado e revolta resulta em uma espécie de “inconformismo absoluto”. Um poema de Heyk Pimenta: Todas as pessoas que conheço querem ou vão querer ser incendiárias Mesmo as que só querem queimar o vizinho têm como ninguém um plano ideal para o mundo sei de quem junte dinheiro e estoque querosene em casa

Conhecemos as insatisfações mais aparentes de Hélio: sua vontade de recolocação do problema do marginal na sociedade (uma vontade de justiça); seu protesto contra a caretice do cenário artístico nacional; sua revisitação constante às próprias produções; sua acumulação de textos e áudios que parecem ressoar as palavras de Murilo Mendes sobre a intervenção que realizou nos próprios poemas em sua poesia reunida: “não sou meu sobrevivente, mas sim meu contemporâneo.” Waly Salomão ressaltou esse páthos convertido em éthos em Hélio Oiticica com as palavras que podemos ler no parangolé p15 capa11: “incorporo a revolta”. Todos esses são exemplos posteriores a 1960. Gostaria de voltar a 1959. Leio Hélio escrever (está lá no Aspiro ao grande labirinto): A cor Metafísica (cor-tempo) é essencialmente ativa no sentido de dentro pra fora, é temporal, por excelência. [...] Quando reúno, portanto, a cor na luz não é para abstraí-la e sim para despi-la dos sen-

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tidos, conhecidos pela inteligência, para que ela esteja pura como ação, metafísica mesmo. Estranha metafísica, a do jovem Hélio, que se “ativa” de dentro para fora! Para um daltônico, a temporalidade aberta por Oiticica no centro da cor, revelando alguma coisa além de seu pigmento, além de suas ondas, inaugura uma possibilidade. Uma nova imanência, uma nova circunstância. A cor pode ser alguma outra coisa ou cor. Isto é, surge aqui a chance de que a cor seja sempre nova. Nesse sentido, todos são daltônicos, colorblind – ou não existe daltônico algum. A cor, de todo modo, não está mais dada, não é mais um fato consumado. Ela se converte em tarefa. Programa do circunstancial. Um ano depois, Hélio anotaria: “Quanto mais não objetiva é a arte, mais tende à negação do mundo para a afirmação de outro mundo. [...] O que é preciso é que o mundo seja um mundo do homem e não um mundo do mundo.” Inconformismo absoluto. “Se querem antecedentes, talvez este seja um”, disse Mário Pedrosa, “Hélio é neto de anarquista”. O desinteresse pelo que está dado, e o crescente interesse pelas possibilidades levam Hélio a se distanciar do objeto estático (que nunca foi realmente estático diante de seus olhos temporais) e a se aproximar cada vez mais do corpo. Não do seu próprio, nem de seus espectadores; mas de um corpo qualquer, um corpo que ele ansiava emergir experimentalmente de suas proposições. Com a montagem de Éden, uma década depois da concepção da cor-tempo, surge o conceito de “crelazer” que deu a imagem desse corpo iminente sob o signo do lazer-prazer-fazer. O Éden, de 1969, era composto por: penetráveis que convidavam à experiência sensorial com a água, a areia, as folhas, as pedras, a música; bólides preenchidos por pessoas (não mais por cores); um palco para a performance coletiva de uma vida experimental; e um conjunto de ninhos, convidando ao ócio. Um projeto para novas convivências. Segundo Hélio, ao fim de sua própria descrição de Éden, erguiam-se ali “bolhas de possibilidade – o sonho de uma nova vida, que se pode alternar entre o autofundar [...] e o supraformar [...], onde a ideia de Crelazer promete erguer um mundo onde eu, você, nós, cada qual é a célula-mater.” Programa do circunstancial. Que é o artista em Hélio Oiticica? Não é tanto aquele que ergue uma obra, quanto aquele que possibilita uma abertura nas coisas, naquilo que está dado como certo, acabado. É, no fundo, alguma coisa muito mais modesta, e um tanto mais ousada, que o criador: um possibilitador. O que ele possibilita é não o novo em si, mas a emergência do criador em cada um dos envolvidos. Mais que a mera substituição da figura do espectador

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pela do participador, as ações de Hélio engendram a figura do operador, localizado no centro da própria obra. Ora, enquanto o participador toma parte no processo artístico proposto, o operador penetra a máquina com a qual convive. Pensemos no parangolé: não apenas se participa da dança; veste-se o parangolé. O que se dá é a chance de um aprendizado. Chamemos isso de uma pedagogia do inconformismo. A recusa do que está acabado e a procura da “bolha de possibilidades” como promessa das delícias do Éden. “Só têm razão de existir os inventores”, nos disse Hélio. Estamos agora em nova posição para compreender essa sentença. Ela diz respeito não apenas a uma avaliação de Oiticica acerca do valor da vida como imitação versus vida como criação. Trata-se de algo maior: a própria razão da existência é colocada em função da possibilidade de criação que nos foi dada a cada um. O artista como propositor; o espectador como operador – só têm razão de existir os inventores. Penso no que disse Walter Benjamin na década de 1930: Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores.

O primeiro livro a que tive acesso, depois da Bíblia (os livros da escola não contam, eu sempre colei nas provas de literatura), foi O livro de ouro da mitologia. Por causa dos Cavaleiros do zodíaco. Do livro roubei meu primeiro poema; uma cópia para impressionar a namorada, também exilada das estantes. Não me lembro de sua reação ao ver seu nome figurar ao lado de epítetos greco-romanos. Alguns anos depois, li biografias que contavam sobre como poetas liam Rimbaud aos 13 anos, e filósofos participavam de grupos de estudo de Kant aos 14. Ubiratan, ex-aluno meu no Estado do Rio de Janeiro, em Irajá, afeito ao grotesco e à profusão dos detalhes, teria, uma vez dada a oportunidade, gostado do Inferno de Dante? Das algaravias de Waly Salomão? Teria concordado com Auerbach sobre o legado realista do cristianismo? E Geise, negra, lésbica, forte, e extremamente sentimental, teria lido Sapho com entusiasmo? Teria gostado das traduções experimentais para o inglês e para a linguagem dos subterrâneos da autora grega feitas por Anne Carson? O que estou propondo agora é que aquilo que desde o início foi fundamental nas obras de Hélio e que nos trouxe até aqui, hoje, para conversar,

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isto é, que o seu inconformismo, convertido em pedagogia, em seus últimos trabalhos, nos sugere que a radicalização de suas proposições exige a socialização dos meios de produção artísticos, que talvez se tornem, gradualmente, mais importantes do que as poucas obras que terminemos por deixar. Haroldo de Campos sonhava com um laboratório de textos. Penso em fábricas geridas pelos trabalhadores, penso na reforma agrária, na expropriação dos meios de produção, e na sua socialização. Penso em tudo isso analogicamente, claro, mas não apenas. Vamos falar, por enquanto, de relações artísticas de produção. Uma amiga, em uma das oficinas que ministrei aqui no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, travou a mão, parecia não querer ou poder tentar o poema. De tudo, guardou a sentença: “não me faltam ideias, me faltam palavras”. Desde então temos pensado muito na presença do material. Falta o material a muita gente. Mas não apenas: faltam as forças produtivas, de onde pode, realmente, emergir o páthos criador em cada um. O campo experimental da arte, no formato das oficinas, por exemplo, tem a chance de se tornar um laboratório para novas vivências. Programa do circunstancial. Penso na última oficina que ministramos aqui no centro. Envolvia a busca por novas corporalidades, a partir de uma discussão acerca dos animais e de um possível embichamento. Os operadores e as operadoras terminaram a aula tendo de resolver pequenas missões, como: “você é um pássaro de olhos furados, você ouve a gaiola abrir, se vira”; “você é uma formiga e conspira comer Madureira, se vira”; “você é um boi, você é mais forte que o boiadeiro, mas a burocracia não tarda, se vira”; “você é um cachorro rebocado na parede, é lua cheia, se vira”. Menos do que os produtos em si, importam aí as bolhas de possibilidade abertas pelas proposições e pelas soluções encontradas. No entanto, falar em programa do circunstancial, para mim, é também falar nessa redistribuição dos meios para as zonas que estão afastadas do modo de produção artístico, como muitos dos bairros chamados Jardim do Éden pelo Brasil. A sentença “só tem razão de existir os inventores” é possível com uma pedagogia da autonomia também no campo artístico e, para falar com Paulo Freire, isso virá menos de uma transmissão de conhecimentos que de uma facilitação por parte de artistas, educadores, editores, e toda a sorte de entidades da prática criativa. Para isso, o ambiente precisa ser criado de maneira análoga (com relação não tanto a sua aparência, mas a seu motor) a programas de artistas como Hélio Oiticica. Éden é o mundo, e o ensinamento de Hélio talvez seja que o jardim das delícias vem com a criação de autonomia, onde possam surgir não apenas a “bolha de possibilidades”, mas o campo experimental. E é por isso que

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agora estamos aptos a agradecer de verdade à produção deste seminário, Bárbara, Giuseppe, Izabela, Lucas, Rodrigo, ao pessoal geralmente anônimo da fotografia, da limpeza, das tarefas técnicas de som e iluminação, da segurança, da portaria, e tudo o mais, que possibilitam algum grau de abertura nisso tudo. E contra a Prefeitura, dentro da qual este seminário e eu, de alguma forma, contraditoriamente, falamos – contra a política de remoções, contra a gentrificação galopante, contra os incontáveis crimes de Estado e contra a impossibilidade da vida e do novo que tem rolado pelo Rio de Janeiro, o mínimo que posso fazer é responder com mais um trecho do poema de Heyk Pimenta, que nos lembra de que só tem razão de existir os incendiários: Todas as pessoas que conheço querem ou vão querer ser incendiárias a maioria quer nisso um jeito de quebrar os relógios

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Hélio Oiticica: exercícios de autoconstrução de si como artista Ricardo Basbaum Artista e professor-pesquisador do Instituto de Artes da Uerj


É fundamental que se compreenda a vida de um artista como plural – não apenas no sentido em que a cada minuto somos sempre muitos, sob o impacto dos afazeres diários, quando para cada novo papel desenvolvemos personagens variados (para o trabalho, a família, a relação amorosa, o Estado, etc.), cada qual em sua performance – mas que, a partir da intensidade de uma vida de invenções incessantes, ou seja, sob o jogo de afinar as vibrações do desejo com os malabarismos de uma fina recepção, as avenidas que se abrem, incessantemente, seriam aquelas de uma contínua reinvenção de si, a reorganizar-se continuamente sob pressão, em fuga de uma localização estável e impermeável ao entorno. Para o personagem artista, é fundamental o contato com aquele campo social de afetos e forças que legitimam seus gestos, oferecendo-os à negociação coletiva da produção de sentido. Talvez, um nome emblemático para se pensar tal conjunto de questões seja Hélio Oiticica, homenageado neste evento (sem esquecer da epígrafe cravada por seu grande amigo Waly Salomão, citando Maurice Merleau-Ponty: […] toute commémoration est aussi trahison […]1), artista que todos admiramos e celebramos, mas que por circunstâncias trágicas se foi muito jovem, sem que tenha tido oportunidade de se defrontar com o mundo do final do século XX, que iria adorá-lo e amplificá-lo, mas também – por que não? – traí-lo, instrumentalizá-lo. Sua obra-problema, fascinante, está em nossas mãos – de todos nós, aventureiros-intérpretes-vocalizadores-escritores, usuários de sua caixa de ferramentas. “Como ativá-lo, hoje?” – é a questão que percorre qualquer um em contato com sua obra. Pois que a vida de HO está marcada por um incessante processo de reinvenção de si, tecido em paralelo com os avanços e desdobramen1 SALOMÃO, Waly. Hommage. In: Hélio Oiticica. Paris: Jeu de Paume, 1992, p. 240-245.

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tos de sua pesquisa. Diferentes Hélios se reorganizam a cada período de mutação do trabalho, não apenas indicando as reestruturações que o avanço da pesquisa produz em seu corpo – todo artista sabe que é preciso estar na escala correta para assimilar cada nova transformação do trabalho –, mas também sinalizando mutações no quadro geral em que sua produção se situava a cada momento, isto é, negociando diferentes posições diante de sua comunidade de recepção e interlocução, seja o círculo de atuação, seja o circuito de arte em estruturações variadas, em diferentes geografias econômicas e culturais. Não se pode esquecer que o caminho para tal investigação é aquele das exterioridades – não interessa aqui qualquer viés de análise psicológico-interiorizante (a patética imagem de HO no divã); o interessante será perceber também, de modo invertido, como HO é construído pelas forças de um ambiente diante do qual se esforça por se integrar, mesmo se em suas linhas de fuga, linhas-limite indicadoras das bordas de um circuito artístico-cultural no qual – que fique claro – se quer intervir e não permanecer como partícula predeterminada, estável e já composta. Afinal, podemos considerar (lembrando de O anti-Édipo, publicado em 1972, quando HO está em sua temporada nova-iorquina) que o sujeito [é] produzido como resíduo ao lado da máquina, apêndice ou peça adjacente à máquina [...]. Ele não está no centro, ocupado pela máquina, mas na borda, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído a partir dos estados pelos quais passa [...] o sujeito nasce de cada estado da série, [...] todos esses estados [...] o fazem nascer e renascer (o estado vivido é primeiro em relação ao sujeito que o vive).2

Nessa configuração, há a dupla tarefa de construção de uma obra e, junto a ela, a autoprodução de um autor, como forma residual contingente, resultante da encenação da prática artística, componente de sua estratégia. [...] No sistema de funcionamento característico da arte contemporânea, vemos que a função-autor só pode legitimar-se a partir de uma identidade processual, que incorpore o efeito da obra também sobre si, num caminho aberto de autodiferenciação permanente.3

2 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 36-37. Grifo nosso. 3 BASBAUM, Ricardo. Performance: a questão da autoria. In: TEIXEIRA, João Gabriel (org.). Performáticos, performance e sociedade, Brasília: Universidade de Brasília, 1996, p. 47-51.

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O forte desejo e ambição de HO de intervir nos rumos do debate artístico, político e cultural de sua época, deixando sua marca por onde passou, nunca recuou diante desse duplo desafio – produzir a obra e produzir-se a si próprio, colocar-se no mesmo furacão dos problemas produzidos, deixar-se atravessar pelas forças da tarefa coletiva da transfiguração dos valores de uma comunidade –; não é simples a tarefa generosa de se colocar sob tal disponibilidade. Não se trata de ver em Oiticica um iconoclasta maior, em potência elevada (como, por exemplo, Marcel Duchamp percebia a si próprio, através de um dos índices de sentido do período moderno, como fidelidade à liberdade interior do indivíduo livre), mas perceber em sua aventura de vida uma espécie de exteriorização absoluta, em grau quase máximo (tão perto do sol quanto foi possível ali, naquele momento e circunstância), levando-o a reconfigurar-se em linha com a margem de fuga dos acontecimentos do presente máximo de seu tempo, na ânsia de não apenas acompanhar a dinâmica dos fatos mas estar – em tremendo esforço contínuo de superação – sempre convincentemente à frente. Que fique claro: não no pelotão de combate típico da vanguarda histórica, mas nas camadas mais ativas e sensíveis de uma pele coletiva aguçada, lançando-se corajosamente ao entorno – é ali que esse agente hiperintenso buscava se posicionar. Hélio Oiticica como o artista prototípico de uma prática radical de manobras coletivas, em que sua pele hipertrofiada se confunde com – de fato compõe com – as áreas mais sensíveis do tecido coletivo sociopolítico. A imagem aqui poderia se aproximar do Divisor (1968) de Lygia Pape, mas de figuração menos homogeneizante, eventualmente utilizando múltiplos tecidos, materiais e texturas, como os parangolés: rede coletiva compondo imensa superfície ou pele (“o mais profundo…”), órgão coletivo hipersensível: esse era HO, um indivíduo como pura estesia e êxtase, isto é, aguçamento que aciona o gatilho da ação conjunta ao mínimo ativamento. Supra. A tarefa de uma “hermenêutica do artista”4 (em direta paráfrase da expressão foucaultiana “hermenêutica do sujeito”) seria aquela da investigação do processo de construir-se a si mesmo como tal agente peculiar de intervenção político-social, ao mesmo tempo entidade autoral singular e polo de enunciação coletivo – alguém que “experimenta e administra um ‘intervalo’ entre a ‘construção de si’ e a ‘construção de si como artista’” e compreende sua prática como modo de percorrer a linha-limite entre “a produção de um sujeito coletivo [e] em deixar-se ser constituído através de uma alteridade social e seus jogos de legitimação da figura do artista”, 4

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Ricardo Basbaum. “Hermenêutica do artista”, curso de pós-graduação, PPGARTES, Instituto de Artes, Uerj. 2014. Esta e as próximas passagens.


isto é, reconhecendo o conflito entre o artista “que se é ou se quer ser” e aquele formalizado e constituído pelos mecanismos de regulação social comprometidos com a governabilidade e normatização das práticas artístico-culturais – é claro que HO permanentemente aprofundou e tensionou as convergências e divergências entre essas demandas, elaborando uma imagem do artista sempre a explorar os limites da territorialidade disponível. Deve ser notada a precisão de Deleuze e Guattari na elaboração dessa questão (e aqui o “escritor” dos autores franceses se torna o “artista”), quando afirmam que – quando politizamos e desnaturalizamos tais práticas produtivas enunciativas e sensorializantes – “as condições de uma enunciação individual” não podem ser separadas “da enunciação coletiva”, uma vez que “tudo toma valor coletivo”, pois o que o [artista] diz sozinho já constitui uma ação comum, e o que ele diz ou faz é necessariamente político, mesmo que os outros não estejam de acordo. O campo político contaminou todo o enunciado. [...] [S]e o [artista] está à margem ou apartado de sua comunidade frágil, essa situação o coloca ainda mais em condição de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade.5

Ou seja, “Não há sujeitos, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação”6 – quer dizer, interessa-nos perceber que HOs emergem em suas múltiplas formações, consideradas para além da simples individuação iconoclasta, em direção às singularidades transindividuais que o artista se permite compor em sua errância coletiva, seja em sua comunidade de amigos e afetos interlocutores, seja em suas articulações com o sistema de arte e seus agentes (ainda que, como veremos, não é exatamente em torno de um circuito de arte formalizado que HO se move, mesmo que esse lá esteja hiperpresente em suas irradiações). Reconhecer o desejo e a tarefa de reconstruir-se, reinventar-se, seria, de fato, atentar para um processo coletivo em que sujeitos e corpos se lançam uns contra os outros, uns com os outros, em desejo de tocar-se em involuntária e involucrada coreografia coletiva – e é significativa a compreensão de que a obra de arte (materializada, desmaterializada, formal, informe, etc.) atua de modo decisivo como deflagradora e mediadora de tal processo. 5

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é uma literatura menor? In: Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 37-38.

6

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é uma literatura menor? Op. cit., p. 38. Grifo dos autores.

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No percurso da intensa e falsamente breve vida de Hélio Oiticica (que não se veja aqui o desenvolvimentismo de JK – 50 anos em 5 – ocorrido nos tempos do seminal período concreto-neoconcreto como paradigmático do esforço produtivo do artista: este foi muito mais intenso, veloz e múltiplo), suas muitas vidas configuram interessantes percursos: em uma rápida visada pode-se perceber ao menos quatro Hélios: (1) HO neoconcreto, forjado em ambiente de intenso debate cultural e confronto teórico, sob a perspectiva histórica do artista de vanguarda como parte do cânon europeu moderno de superar historicamente o movimento anterior – trata-se de artista universalista, que acredita em uma racionalidade técnica e um idealismo da forma, que se organiza com um futuro aberto e emancipador; (2) HO pós-Mangueira, buscando a diferença cultural, politizado a partir da desigualdade social, enfrentando os limites de seu próprio círculo social, que busca romper e ampliar, recartografando a geografia de seu fazer e existir, articulando outra rede de relações afetivo-intelectuais e operando uma teoria da marginalidade que lhe permite ativar as bordas de contato entre áreas de profundo contraste e desidealizando, desse modo, suas questões teóricas que agora são trazidas para a escala do corpo e da cidade, das ações de relacionamento e de vivência comunitária; (3) HO pós-Whitechapel, percebendo-se em proximidade das ferramentas de comunicação que o tornam cidadão do mundo, ciente da internacionalização de suas questões, que agora derivam em escala continental-planetária, fortemente desidealizadas mas intensamente políticas, no embalo dos problemas de uma sensorialidade corporal urbana não regional; (4) HO em Nova York, em proximidade ao núcleo de poder econômico do planeta, embora se posicionando de modo consciente nas bordas de um circuito de arte cujos jogos de legitimação rejeita, a favor de uma vida de intensificação afetiva e sensorial, com ativação de uma (complexa) política da sexualidade e da economia da droga, em meio a uma forte produção literária, com desdobramentos fotográficos, cinematográficos e arquitetônicos. É claro que HO 1, 2, 3 e 4 não são excludentes7 nem se organizam de forma linear e evolutiva, mas constituem etapas na complexa construção de si e desenvolvimento como artista e intelectual que nunca abriu mão de um estar no mundo em friccionamento permanente contra o anestesiamento e o hábito, atento a um produtivo re-des-construir-se incessante – ser conforme um desejo de produção; que mais pode se querer de um artista, de um intelectual? 7

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“Na minha opinião, quem não sabe relacionar as Cosmococas com a fase neoconcreta de Oiticica não entendeu nem uma, nem outra”. CRUZ, Max Jorge Hinderer. A prima do Hélio, a pemba da marginália, o pó da boemia: anotações – inside the Héliocopter. Tatuí 13, Recife, julho 2012, p. 96.


Na tríplice apresentação do livro Aspiro ao grande labirinto,8 ocupando introdução, texto histórico de apresentação e orelhas, Luciano Figueiredo, Mário Pedrosa e Frederico Morais trazem HO como “teórico”, “pensador ativista”9 (Figueiredo), “adolescente aristocrático” que (ao integrar-se à Mangueira) “deixa sua torre de marfim” e cujo “radical refinamento estético” em simbiose com um “extremo radicalismo psíquico” construiu uma posição de “inconformismo absoluto” (Pedrosa);10 “teórico brilhante”, “um dos maiores inventores do mundo”, realizador através da obra da “teoria de uma marginalidade radical” (Morais).11 HO desenvolveu uma máquina de guerra “contra toda forma de opressão, fosse ela intelectual, estética, metafísica e principalmente social”,12 combatente que poderia ter sido identificado por Michel Foucault como aquele engajado pelo “banimento de todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos envolvem e nos esmagam, até as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas”, trazendo o combate de uma vida inteira do artista para o campo dos embates ético-políticos, por “um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida”, combinando ars erotica, ars theoretica e ars politica como modos de “[introdução] do desejo no pensamento, no discurso, na ação” intensificando o “processo de reversão da ordem estabelecida”. 13 Assim, como eixo principal do esforço de complexificação constante, em fabuloso trabalho incessante de manter-se aberto e em disponibilidade para a vida e suas lutas cotidianas, brilha Hélio Oiticica como incansável combatente pela intensidade na construção das relações afetivas, no jogo com os objetos, nas aventuras por espaços de exteriorização do comum, coletivo e compartilhado. De fato, a leitura dos textos escritos até 1963/64 mostra um eixo argumentativo, núcleos de referência e metodologia de trabalho bastante entremeados de um horizonte teórico idealizante/metafísico que permeou certo acesso ao pensamento moderno, não apenas no Brasil como em outros países latino-americanos – essa é uma discussão bastante conhecida, 8

Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. FIGUEIREDO, Luciano; PAPE, Lygia e SALOMÃO, Waly (orgs.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

9

FIGUEIREDO, Luciano, Introdução. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 5-7.

10 PEDROSA, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 9-13. 11 MORAIS, Frederico. Orelha. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit. 12 Idem. 13 FOUCAULT, Michel. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, v. 1, n. 1, São Paulo, 1993, p.197-200.

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ativada pela presença aparentemente atravessada de uma “modernidade ‘fora de lugar’ na medida em que o modernismo ocorre no Brasil sem modernização”:14 No Brasil, bem como na Argentina ou no México, o modernismo não foi, como na Europa, um desenvolvimento simbólico forjado sobre as mesmas e variadas mudanças perceptivas e materiais de uma sociedade em que as noções de tempo e espaço, bem como as noções sociais de divisão de trabalho, alteravam-se conforme o avanço do moderno capitalismo industrial europeu e, portanto, conforme a respectiva formação de um público burguês específico. O exemplo cultural do modernismo brasileiro e latino-americano, para o azar de certas teorias, não pode ser avaliado como mero reflexo de nossas condições socioeconômicas.15

Não se trata de uma luta pessoal de HO, o esforço em situar suas pesquisas avançadas dos anos 1950 em terreno local consistente, fugindo de certo mal-estar aristocrático: é nessa mesma direção que caminharam as manifestações concretas e neoconcretas, buscando demarcar local desviante próprio para suas ações, mas ainda dentro da genealogia modernista eurocêntrica – os agentes tanto de um lado quanto do outro dessa luxuosa contenda foram incrivelmente bem-sucedidos (se mirarmos retrospectivamente essa história já a partir do século XXI) ao deixar marcas de suas práticas no alto repertório da arte moderna, disponibilizando ferramentas para os embates das décadas seguintes (que nos trouxeram a amarga combinação experimentalismo + ditadura) – sendo, entretanto, imperativo reconhecer os abismos culturais e descompassos entre tais práticas e a sociedade em geral. O artista HO1, que conquista lugar nos debates concretos-neoconcretos logo após sua iniciação intelectual em proximidade com o campo da ciência (trabalhando com o pai entomologista), exterioriza sua pesquisa de modo a articular o discurso objetivo de 14 ORTIZ, Renato. Moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 31. Citado por FREITAS, Artur. Autonomia social da arte no caso brasileiro: os limites históricos de um conceito. ArtCultura, Uberlândia, v. 7, n. 11, jul-dez 2005, p. 202. 15 FREITAS, Artur. Autonomia social da arte no caso brasileiro: ... Op. cit., p. 202. Aqui encontramos ainda uma citação precisa e esclarecedora, de Saul Yurkievich: Praticamos [na América Latina] todas essas tendências na mesma sucessão em que as praticaram na Europa, quase sem termos entrado no “reino mecânico” dos futuristas, sem termos chegado a nenhum apogeu industrial, sem termos ingressado plenamente na sociedade de consumo, sem termos sido invadidos pela produção em série, nem limitados por um excesso de funcionalismo; tivemos angústia existencial sem Varsóvia nem Hiroshima. Em El arte de uma sociedad en transformación. In: BAYÓN, Damion et al. América Latina en suas artes. México: Unesco/Siglo XXI, 1974, p. 179.

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afirmação disciplinar (que se somando ao esforço coletivo de construção da autonomia da obra) com veemente consciência da arte objetiva, concreta, fortemente material em seus limites, que ambiciona o embate com o mundo real, recusando o conforto idealista. Tal conflito é assim expresso pelo artista, por volta de 1962, em uma modalidade de escrita a ser em breve para sempre abandonada: Que é então o mundo para o artista criador? Como estabelecer relações com ele? Duas posições bem definidas aparecem na resolução deste problema: aquela na qual o artista para criar mergulha no mundo, na sua microestrutura, e a sua realidade é determinada pelo movimento divinatório microcósmico da sua intuição dentro desse mundo; a outra na qual o artista não deseja diluir-se e entrar em cópula com o mundo, mas quer criar esse mundo, e a sua realidade seria uma super-realidade baseada no conceito de absoluto, que não exclui também um movimento divinatório, que aqui já possui um caráter macrocósmico. Tanto numa quanto noutra há a tendência em superar a “alternância” entre aparência e ideia, que se colocam aqui como níveis de um mesmo processo dentro da realidade. […] [A] arte moderna tende a ser uma apresentação. Forma é então uma síntese de elementos tais como espaço e tempo, estrutura e cor, que se mobilizam reciprocamente.16

O artista HO neoconcreto é um intelectual que se debate com extenso material teórico, em busca do melhor caminho para operar a intervenção que deseja e busca – ciente da decisiva manobra concreta-neoconcreta que traz para o contexto cultural brasileiro o debate das vanguardas europeias, da qual tira proveito, permitindo que se coloque, desde o início de seu percurso, com uma autoridade de ação no mesmo plano de fala que artistas e críticos para ele referenciais, tais como Mondrian, Malevitch, Mário Pedrosa, Herbert Read e outros. Tal desenvoltura só se torna possível a partir do terreno preparado pelos debates da cultura brasileira na década de 1950, transpondo o problema geral proposto pela Antropofagia (de devoração vitoriosa das matrizes culturais) para um horizonte de enfrentamento real, presente nos interstícios do debate do período. Ainda que enfrentando as questões com brilho, objetividade e lucidez admiráveis, HO1 transmite inquietação e incômodo que necessitarão ser ainda resolvidos – quando conclui o ensaio referido acima com a seguinte indagação:

16 OITICICA, Hélio. A transposição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 61.

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Por que ser pessimista, como o fazem muitos, diante dos testemunhos desses artistas? Não são eles somente representantes da grande arte deste século, ou grandes individualistas, mas abrem os caminhos mais positivos e variados a que aspira toda a sensibilidade do homem moderno, ou seja, os de transformar a própria vivência existencial, o próprio cotidiano, em expressão, uma aspiração que se poderia chamar de mágica tal a transmutação que visa operar no modo de ser humano, e da qual estão por certo afastadas quaisquer teorias de ordem naturalista.17

É um forte mérito de HO colocar-se disponível para abandonar sua “torre de marfim” (palavras de Mário Pedrosa), onde tinha acesso parcial e limitado ao corpo, para “incorporar a dança na [sua] experiência” a partir do que chamou de “necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão”, confessando sentir-se ameaçado por “uma excessiva intelectualização”18 – pode se perceber aí um movimento terapêutico em direção a si próprio, um gesto de cuidado de si que não seria estranho às linhas gerais do trânsito através do qual se gerou o ambiente abstracionista no Brasil: em 1949, Mário Pedrosa escreve que “a atividade criadora repete, inconscientemente, a incessante recriação do milagre da vida no organismo”.19 Entretanto, gostaria de ressaltar o agudo reviramento de Hélio, que, em um mesmo lance e gesto, equaciona os problemas do idealismo teórico distanciado de um modernismo brasileiro fora do lugar e de sua própria corporeidade sentida como incipiente e insuficiente – operando um corte político agudo e sofisticado, quando em movimento contrário ao populismo CPCista desloca-se para a comunidade da Estação Primeira de Mangueira para estabelecer ali seu laboratório afetivo e artístico. É interessante como o texto “Bólides” – pelo qual tenho particular apreço –, já em suas primeiras linhas, articula a palavra “corpo” ao passo teórico necessário naquele momento… Poderia chamar as minhas últimas obras, os Bólides, de “transobjetos”. Na verdade, a necessidade de dar à cor uma nova estrutura, de dar-lhe “corpo”, levou-me às mais inesperadas consequências, assim como o desenvolvimento dos Bólides opacos aos transparentes, onde a cor não só 17 Ibid., p. 63. 18 OITICICA, Hélio. A dança na minha experiência. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 72. 19 PEDROSA, Mário. Arte, necessidade vital. In: MAMMÌ, Lorenzo (org.). Mário Pedrosa, arte, ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p.64. Pedrosa cita a educadora Maria Petrie, para quem “luz, cor, peso, ritmo, forma, movimento, proporção” seriam “vitaminas da alma”.

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se apresenta nas técnicas a óleo e cola, mas no seu estado pigmentar, contida na própria estrutura Bólide.20

…permitindo que se cruzem desde logo as determinantes do cuidado de si, do jogo conceitual, da intervenção política e – de modo interessante – um diálogo com questões dos artistas Jasper Johns e Robert Rauschenberg que faz aportar, também, uma consciência do papel do artista diante dos mecanismos da comunicação de massa e da indústria cultural, fundamentais para HO em seu futuro encontro com músicos populares, cineastas e demais personagens que surgem na superposição dos circuitos da arte com aqueles do mundo da (como se dizia então) cultura de massa (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rolling Stones, Ivan Cardoso, etc.), da qual irá se alimentar em Nova York. A partir de então, HO é já uma figura trans – podemos implicar esse corte transversal de muitos modos, na operação HO sobre HO – e é significativo que o gesto conceitual preciso abranja simultaneamente as matérias da invenção artística e o próprio corpo, em uma lúcida inversão (diagrama que atravessa este texto) da precedência das matérias, construindo obras-dispositivos para exteriorização e instauração de um coletivo. O turbilhão ativado por HO2 o conduzirá até a Whitechapel Experience – e às mutações de HO3 – através de ações fundamentais que definem uma teoria da marginalidade e uma “nova subjetividade brasileira”,21 realocam o artista em dimensão internacional e viabilizam obras como as séries de Bólides e Parangolés, assim como o bólide caixa Homenagem a Cara de Cavalo e o penetrável Tropicália, entre outras. O trânsito de HO2 a HO3 é de grande complexidade e irá estabelecer a imagem do artista com a qual é mais diretamente identificado ainda hoje, reconhecendo-se aí os traços do artista inventor-escritor em permanente enfrentamento de seu presente sociopolítico, ativando seu trânsito através de uma ars erotica, ars theoretica e ars politica – eixos que se recombinam à medida que HO se desloca. Gostaria de enfatizar que o aspecto mais produtivo da teoria da marginalidade de Oiticica seria aquele voltado para uma topologia das bordas e regiões de fronteira, isto é, em contínua negociação entre exterioridade, interioridade e contato: marginal seria o personagem cuja pele, na qualidade de órgão máximo do corpo, estende-se ao redor 20 OITICICA, Hélio. “Bólides”. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 63. 21 Expressão desenvolvida por Rafa Éis em sua pesquisa de mestrado “Deslocamentos antropoéticos: exercícios de devoração de si. Encontros antropofágicos: exercícios de invenção de si”, PPGARTES/Uerj, 2014-2016. Refere-se diretamente ao texto “Esquema geral da nova objetividade brasileira”, publicado no catálogo do evento “Nova objetividade brasileira”, ocorrido no MAM-RJ em 1967. Para o texto, Cf. OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 84-98.

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tal qual tecido rizomático coletivo hipersensível, capaz de deflagrar efeitos e reações ao mínimo toque, em pura intensidade receptiva. Conforme irá indicar mais tarde, entregar-se a tal deslocamento seria ao mesmo tempo um gesto de “togethernassão”, “singultâneo”22 (afiados neovocábulos da safra HO). Ao mesmo tempo, a fórmula “vontade construtiva geral” nos parece precisa, ao articular as noções aparentemente incompatíveis de “racionalidade e construção” com as “energias e forças que produzem corpo, desejo, vontade” – para um campo de conhecimento comprometido com a disciplinaridade moderna, essa imagem estaria associada, talvez, ao “encontro fortuito entre um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecção”, fórmula proposta por Lautreamont e adotada por dada e surrealismo, evocadora de uma pura negatividade, sem qualquer relação com o mundo positivo das coisas e processos e seu compromisso de transformação social. A aparente naturalidade com que HO criva essa proposição seria indicativa da virtuosidade da manobra efetuada, colocando em cena a proposta de uma “nova subjetividade” costurada pelo polo concreto-neoconcreto em complementação de duas tradições, reconhecendo a composição sujeito-máquina e sujeito-desejante – caminho desenvolvido com êxito em (entre outros) O Anti-Édipo.23 HO2, 3 e 4 souberam tirar proveito da fórmula, quando consolidam uma prática exteriorizante, hiperintensa e hiper(supra)sensorial – esse é um artista que não recusa proximidade (amizade, afeto, linhas de contato) ou dinâmicas comunicacionais (mídias de distribuição planetária, estratégias coletivas de encenação); a droga é incorporada como ativadora do trânsito entre os dois polos, em sua materialidade intensificadora de lucidez extática. Finalmente, sob o impacto da importante exposição apresentada na Whitechapel Gallery, Londres (1969), ocorre que as questões trabalhadas até então ganham uma expansão de escala geográfico-comunicativa, na medida em que os problemas se internacionalizam – estar ao mesmo tempo em Londres, Mangueira, Rio de Janeiro, Brasil e América Latina produz impacto, no sentido que é preciso readequar a abrangência desse corpo em nova subjetividade que se percebe em outro trânsito, mais amplo, do 22 FAVARETTO, Celso. Prefácio. In: BRAGA, Paula. Oiticica, singularidade, multiplicidade. São Paulo: Perspectiva, Fapesp, 2013, p. 18, 52-53. 23 Assim como, é claro, os demais herdeiros das mutações da cibernética e da teoria dos sistemas dos anos 1950 que transformam a crítica à representação em uma diagramática e eliminam as distinções entre máquina, animal e homem, liquidando a dicotomia vitalismo/mecanicismo e trazendo para o plano da política os problemas da regulação e do controle. Cf. BASBAUM, Ricardo. Relationality. In: CHOI, Binna; LIND, Maria; PETHICK, Emily; PETREŠIN-BACHELEZ, Nataša (eds.). Dialectionary. Berlin: Sternberg Press and Cluster, 2014, p.207-213.

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artista planetário: “depois da Whitechapel […] depois de Paris […] depois de Los Angeles […] depois de Nova York […] estou again em Londres E NÃO TENHO LUGAR NO MUNDO”.24 A condição de exilado é recusada e o artista positiva o que seria um estado potente permanente, apto a implementar as mutações em seus protocolos de trabalho: será preciso perceber o impacto que a aldeia global, como território de comunicação e afetos, irá impor na revisão das propostas realizadas até ali (processo que ocorrerá em Nova York, de certa maneira) – mais do que isso até, uma vez que os espaços se ampliam em ritmo rápido: “eu sou o astronauta o Brasil é a Lua cuja poeira mostrar-se-á ao mundo sublixo.”25 Não se pode dizer que exista um último Hélio Oiticica, como ponto de chegada, completude ou estação final de percurso – enfim, tantos reviramentos (Waly Salomão escreve: “Um dos passos que o Miro ensinou ao Hélio foi o PARAFUSO, que consiste em o corpo saltar do plano do chão e rodopiar qual um parafuso no ar e voltar de novo ao solo num giro alucinante”26) e tanta intensidade investida produziram um corpo de obra de intricada arquitetura que vai se entregando aos poucos, parecendo inesgotável. Talvez, de modo homólogo a Marcel Duchamp que, com o Grande vidro, teria, segundo Octávio Paz, produzido o “mito da crítica”27 – ou seja, uma obra paradigmática da condição moderna da arte cujas possibilidades de interpretação seriam inesgotáveis, abrindo-se de modo generoso para cada novo intérprete, a partir de sua trama visual-verbal, ativando em seu limite a referência do retângulo-janela e a crise da linguagem representativa –, HO tenha demarcado uma territorialidade igualmente precisa e de qualidade epistemológica correlata, ao sinalizar um mergulho do corpo nas filigranas das intensidades do afeto e da palavra, em suas relações com a arquitetura e os objetos, de modo a fortalecer as relações entre sujeito, coletividade, corpo e entorno, espaço de vida e espaço de produção. Seria possível indicar em Hélio Oiticica um percurso instaurador de outro paradigma, atento às micropercepções e seu papel enquanto produção de intensidades e limiares de transformação…? Atenção: não se trata de construir um “Hélio-modelo”, referencial, mas de ter em sua obra a chave de uma passagem para um estado de vida em que viver não seria possível sem que se ative a sensorialidade de modo radical. É nessa direção que percebo as linhas de força de HO4, em sua temporada em NYC (1971-1978): 24 OITICICA, Hélio. Londucmento. OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 123. 25 OITICICA, Hélio. Subterrânia. OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 125. 26 Salomão, Waly. Hommage. In: Hélio Oiticica. Paris: Jeu de Paume, 1992, p. 240. 27 PAZ, Octávio. O castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 1978.

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ali, seu apartamento-laboratório sempre aberto serviu de base para um último conjunto de manobras em vida, a partir principalmente (mas não apenas) de sua produção textual – HO4 manifesta um “desejo de livro […] por meio da escrita de si, da escrita para e sobre o outro”,28 concretizado no projeto conglomerado-newyorkaises,29 nunca concluído. Reconstruir Oiticica a partir de seus escritos tem sido o principal eixo de condução deste texto, sobretudo por ser possível localizar ali, no enunciado autoral – como vimos, já um processo de coletivização –, os timbres e ritmos indicativos das marcas que HO1, 2, 3 e 4 buscavam imprimir em (nossos) corpos receptores: cada vocábulo, pontuação utilizada, organização no espaço da página, recurso de linguagem gráfica adotado, vem constituir qualitativamente o arquivo e contribuir para a distribuição da carga mnemônica deixada pelo autor – auxiliando a tornar presentes as linhas do complexo diagrama HO que, afinal, constitui e constrói HO: produzir-se como artista-inventor-escritor não é tarefa em curto prazo e demanda a compreensão de um estado de coisas sobre o qual intervir; uma atenção aos trânsitos e camadas afetivas no contato com humanos, não humanos e objetos; o reconhecimento de pertencimento a construções coletivas, grupos ou outras articulações comunitárias; o domínio das proposições conceituais em jogo, assim como os trânsitos históricos e transtemporais implicados; a compreensão das metodologias em andamento em suas performatividades próprias; e, principalmente, a economia em jogo nos termos da produção de uma imagem do artista, ao construir-se e ser construído em público30 – imagem cuja distribuição é imediata, direta, a demarcar uma territorialidade com força singular. Afinal, não devemos nos contentar nem com biografia nem com bibliografia, é preciso atingir um ponto secreto em que a mesma coisa é anedota da vida e aforismo do pensamento. […] Há aí dimensões, horas e lugares, zonas glaciais ou tórridas, nunca moderadas, toda a geografia exótica que caracteriza um modo de pensar, mas também um estilo de vida.31

28 OITICICA, Hélio. “Oiticica liaescrevia constantemente, assim como ouviaescrevia e viaescrevia.” In: COELHO, Frederico. Livro ou livro-me: os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971-1978). Rio de Janeiro: Eduerj, 2010, p. 17, 21. 29 F. Coelho, op. cit. é a principal referência. 30 Tópicos por mim desenvolvidos em “Hermenêutica do artista”. V. nota 4. 31 DELEUZE, Gilles. Décima oitava série: das três imagens de filósofos. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1988, p.132. O autor faz nessa passagem referência a Nietzsche.

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Tendo como referência a primeira versão estabelecida do que seria o projeto conglomerado-newyorkaises,32 torna-se possível trazer à superfície um desenho dinâmico das mutações que se processam em HO4 – que poderia ser caracterizado, de modo resumido e compacto, a partir de algumas linhas principais. Há, inicialmente, a revisão de projetos anteriores (especialmente o Parangolé), com o abandono de um tempo histórico mítico, produtor do novo, para mergulhar em uma esfera de produção voltada para “programas do circunstancial”, com “unidades exploráveis sem produção pensada”; é necessária a “desmitificação do parangolé” que agora é “nada mais que clímax corporal”; “vestir capa é concreção”.33 Afinal, a arte estaria esgotada e agora “estamos interessados na vida! Devemos distribuir nossas forças sobre as formas de vida. Isso o verdadeiro progresso”.34 Trata-se de um evidente corte afirmativo em prol do aqui e agora da experiência, em sua radicalidade existencial – processo já em curso, mas a chave de temporalidade de certo modo se compacta ao “jogo livre do clímax-corpo”,35 passando-se “a uma condição de experimentar em aberto”. Especial atenção é deslocada para o corpo – já elemento central para as manobras de HO 1, 2 e 3, também aqui re-acessado –, agora um “CORPO QUE SE REAMBIENTIZA PELO TATO REINCORPORANDO-SE”, um “CORPO-TATO q vive no momento manipulado”. Abre-se um diálogo direto com Lygia Clark, em que se evoca a força da intensidade sensorial (mobilizada por esta nas proposições em torno da Nostalgia do corpo) que, para HO, reveste-se também de seu esforço político de máxima sensorialização do corpo no dia a dia, em contato com a rua, os meios de comunicação e atividades coletivas do ambiente urbano e da indústria do entretenimento. “MUNDO-ABRIGO” é um conceito que anuncia “a chegada gradativa a uma experimentação coletiva, o dia a dia experimentalizado […] abrigo-proteção coletivo”, que reconhece “o urbano como experimentalmente mais apto a experiências-grupo”36 – mas deve ficar claro que “a autoperformance de cada um seria a tarefa-goal que liga tudo”,37 ou seja, não há conflito entre indivíduo e grupo, uma vez que a produção de subjetividade é tomada sempre como gesto de cons32 OITICICA, Hélio. Conglomerado-newyorkaises. Cesar Oiticica Filho e Frederico Coelho (orgs.). Rio de Janeiro: Azougue, 2013. As citações que se seguem provêm dessa fonte. 33 OITICICA, Hélio. Parangolé-síntese. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 18-22. 34 OITICICA, Hélio. Hafers – Mondrian – FK, Lloyde Weber – Rosselini. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p.104-108. 35 OITICICA, Hélio. Bodywise. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p.24-33. 36 OITICICA, Hélio. Mundo-abrigo. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 34-47. 37 OITICICA, Hélio. Anotações para uma próxima publicação. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 86-91.

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trução coletivizante, exterior e compartilhado. Em uma concisa citação de John Cage,38 HO produz uma interessante apropriação conceitual, ao identificar experimentalismo (a partir da música) com o processo de se construir como “ouvinte”, fazendo um elogio à escuta: a aventura de vida e produção na qual está decisivamente mergulhado não se desdobraria de modo consistente sem que fosse ativada uma atenção em relação a si mesmo e ao outro, com exercícios de mútuo reconhecimento e sensorialização do contato – ou seja, é fundamental um incremento da escuta, sem o qual não haveria experimentalismo possível. É preciso “nega[r] a concentração voltada para si”39 de modo fechado, exclusivo, autocentrado. É interessante, ainda, perceber a fidelidade de HO a suas referências, que ganham camadas interpretativas e reforçam as questões que estão sendo mobilizadas no momento: é notável a repotencialização do branco sobre branco malevitchiano, presente desde os tempos neoconcretos, mas que ali na pulsação das descobertas em NY reforça questões do corpo e recepção como comportamento: “BRANCO NO BRANCO […] premonição da descoberta do CORPO, primeira aparição de COMPORTAMENTO como elemento maior”.40 Vale dizer que o termo “comportamento” atravessa muitos dos escritos do período, indicando o que parece ser um desenvolvimento da compreensão dos processos de produção de novas subjetividades a partir da cifra “vontade construtiva”, isto é, um forte interesse pelo aspecto absolutamente exterior do movimento dos corpos, em contato com as pesquisas da área da comunicação e da indústria cultural, em que passa a reconhecer padrões dominantes e repetitivos (próprios da sociedade do espetáculo) que seria necessário evitar, desconstruir: “MUNDO-SHELTER é o MUNDO tomado como PLAYGROUND e onde o comportamento individual (-coletivo) não se quer adaptar a patterns gerais de trabalho-lazer mas a experimentações de comportamento, mesmo q essas nasçam fragmentadas e isoladas (o q deve acontecer)”.41 Enfim, em uma tentativa de expressar o tom geral daquele período de investigação, vivenciado de forma supraintensa e objeto de imersão total nas questões que se apresentavam e no cultivo de relações com interlocutores, com os quais dialogava de modo regular (como se sabe, os irmãos Campos, Waly Salomão, Carlos Vergara, entre 38 OITICICA, Hélio. Excertos do caderno de notas CTAL PK. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 92-99. 39 OITICICA, Hélio. Hafers – Mondrian – FK, Lloyde Weber – Rosselini. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 104-108. 40 OITICICA, Hélio. Branco sobre branco / White on white. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 68-72. 41 OITICICA, Hélio. Mundo-abrigo. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 34-47.

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outros), HO escreve que sua “atividade criativa” então se configuraria como “desaguadouro (melhor q a saturada ‘síntese’): do q gerei como AMBIENTAL PARTICIPAÇÃO SUPRASENSORIAL: desaguadouro-meta: JOYFUL desaguar: sem ‘buscas’: e compreender”.42 Assim: as conquistas e construções acumuladas em HO1, 2 e 3 estruturam as buscas e experimentações de HO4 – artista-inventor-intelectual-escritor dedicado à aventura de produção de um corpo coletivo, em contato com a territorialidade da indústria cultural e da comunicação, no manuseio de ferramentas conceituais e plásticas de ultra-ativação sensorial, mobilizando a pele sensível ao toque deflagrador de processos de produção e construção de si. Seria ainda pertinente localizar a teoria da marginalidade – tão importante em HO2 e 3 e articulada em lances fundamentais de sua prática – novamente em relação direta com as ações de intensificação sensorial que deflagra, e em expansão rizomática pelas bordas do território que o artista coloca em movimento: mais uma vez, parece ser a intensidade ali produzida e a cuidadosa articulação das fronteiras dessa territorialidade que efetivamente deslocam o artista para as áreas descentradas dos circuitos dominantes. Ao mesmo tempo, estar no centro dos acontecimentos e em suas regiões de borda. Para quem, como eu, começa a desenvolver uma prática como artista a partir dos anos 1980, há uma sombra da ausência de HO: a partir do fim da ditadura, desenvolve-se um ambiente da arte em circuito dominado de modo crescente pela racionalidade neoliberal, sendo marcado pela quase inexistência de embates e pela inclusão positiva de quase todos os espaços e agentes, provocando um inicial desaparecimento de espaços e práticas ditas marginais e alternativas – que iriam retornar, no Brasil, na última década do século fundamentados em noções de coletivos independentes e de autogestão. O personagem típico do período, o artista identificado como “funcionário do galerista”, sempre agenciado pelo seu representante de vendas em seu deslocamento pelo circuito transnacional da arte, seria um antípoda absoluto daquela territorialidade de práticas “desaguadas” por HO em seu último período de trabalho. Entretanto, quando a produção de HO passa a circular novamente, em grande escala, a partir de 1992, a movimentação desse corpo de obra – seu gigantesco arquivo, em grande parte inédito – passa a ser crescente, trazendo à superfície, de modo cada vez mais complexo, suas articulações, tramas, proposições, textos, projetos, etc. E o agente-inventor-intelectual ganha uma recepção aberta, aparentemente sem limites: bienais, retrospectivas, Documenta, publicações e mostras de todos os tipos, a operar HO ostensivamente em modo de 42 OITICICA, Hélio. Texto para Código-Risério-Bahia. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 160-173.

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exposição, prática, como se sabe, pouco explorada em vida. Justo, é claro, para uma produção que acumulou de modo concentrado tanta energia, ser lançada à possibilidade de encontros variados e ricos, construindo novas interlocuções, revelando tramas históricas em novas narrativas e proporcionando a formação de outros territórios de prática. Mas não se trata, com HO, de um percurso qualquer – ao se construir a superposição de quatro diferentes Oiticicas, demarcados pelas mutações que o artista deflagrou em sucessivos momentos de sua vida, em consequência da movimentação incessante e dinâmica do trabalho, ficam claras algumas determinantes que inevitavelmente se esvaziam a partir do processo de institucionalização da obra: intensidade de um campo afetivo em desenvolvimento; teoria da marginalidade; recusa em movimentar a economia da obra em um mercado de arte; processo teórico-crítico incessante; etc. De modo que, nesse caso, emerge a construção de mais outro artista em modulação, HO5 – produzido pelo corpo da obra do artista no confronto com o circuito de arte transnacional que se desenvolve no novo século. De modo breve, a obra parece apontar para três considerações mais imediatas:

1) A inegável importância do legado de HO, que o posiciona enquanto artista emblemático da segunda metade do século XX, tem impulsionado o deslocamento de sua obra pelo planeta, estando algumas peças já definitivamente fixadas em algumas das mais importantes coleções, permitindo uma leitura estável e continuada dos trabalhos e a produção de narrativas crítico-históricas relevantes. Entretanto, a singularidade de muitas de suas realizações – que implicam protocolos participativos, ocupações e utilizações variadas – ainda traz dificuldades para que as proposições sejam apreciadas em sua plenitude. Tal traço é significativo, ao apontar para outros padrões e modos de agenciamento museológico ainda a serem implantados, indicando os limites das instituições de hoje. É sempre fundamental que as obras pressionem instituições no sentido do aperfeiçoamento e da mudança, e é importante que se compreenda que há uma plasticidade institucional a ser ativada – traço que, sem dúvida, é uma das questões fundamentais presentes na obra de HO, principalmente em sua dimensão de articulação comunitária, coletiva. Tanto a partir da obra de Hélio Oiticica como de Lygia Clark, é possível pensar em um redesenho de invenção institucional.

2) Sobretudo nas intricadas tramas das articulações entre texto e obra – e sua trajetória de dedicado escritor –, HO foi bem-sucedido em produzir uma trama plástico-conceitual que densifica sua obra em camadas diversas, de várias espessuras, texturas e modos de acesso. Trata-se

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de gestos complicadores, no sentido do florescimento de dobras que tornam complexa a recepção, fazendo desse encontro um gesto de mobilização, produção e construção significativo – em que não há espaço para indiferença e se exige engajamento. Talvez aí, em proximidade com os trabalhos, compreenda-se que ali reside um núcleo libertário que deve ser deliberadamente cultivado, no sentido de torná-lo inassimilável pelos espaços de dominação, mantendo seu limiar negativo de recusa quase absoluta dos agenciamentos de poder institucionais dominantes. Sabe-se que essa é uma dimensão material da obra de HO necessariamente a ser ativada, ao se exteriorizar os trabalhos – não se trata de tarefa simples e autoevidente, mas de agenciamento que ainda pulsa, a ser considerado.

3) Como se discute amplamente hoje, há uma racionalidade neoliberal dominante que deve ser compreendida e problematizada, no sentido de se desenvolver formas políticas de resistência aos interesses do capital, os quais rapidamente se naturalizam nos ritmos cotidianos, impondo determinações próprias que precarizam a vida e o trabalho. A parir de análises recentes, compreende-se que O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modernidade”.43

Não é difícil identificar no parágrafo acima alguns dos principais temas, questões e problemas enfrentados por HO em NY, em momento radical de vida, em intensidade absoluta (modos e formas de vida, produção de subjetividade, cuidado de si, etc.) – ou seja, ali, naquele laboratório de vida ultraprodutivo, desenvolveu-se radical experimentação de inegável valor, mesmo que ao custo de uma recusa das formas de assimilação positiva que se disponibilizavam naquele período. Imagina-se que, diante de uma dinâmica do capital que se propõe cada vez mais em proximidade ao corpo, reterritorializando pelo planeta dimensões moleculares da existência 43 Pierre DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p.16.

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em sua voracidade de Capitalismo Mundial Integrado, as experiências de intensidade afetiva rizomática de Hélio se configurariam como centrais ao interesse neoliberal, deixando ansiosos seus principais agentes quanto à possibilidade de acessar e normatizar um material tão rico. Pois o artista-escritor-intelectual estava, a seu modo, experimentando, desconstruindo e produzindo ferramentas em torno do núcleo central de interesses do sistema capitalista avançado contemporâneo. Assim, torna-se urgente aproximar-se dessa produção para, o quanto antes, fazer dessas ferramentas materiais de resistência, deslocando-os para as lutas que se fazem mais urgentes – aproximando HO5 de HO1, 2, 3 e 4, ativando a obra através dela mesma e trazendo-a para o contato das novas coletividades que sempre desejou provocar e mobilizar – recuperando traços de sua política, tão singulares e potentes. Haveria traços de uma pedagogia das vanguardas a serem ativados.

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sessão 4

Museu é o mundo. O mito da instituição


Museu é o mundo. O mito da instituição Mário Chagas A sugestão de alta potência poética expressa na sentença “museu é o mundo” nos permite, em sintonia com a experiência circense, dar uma cambalhota e compreender que “mundo é o museu”. Dois substantivos separados por um verbo e um artigo constituem a base dessa expressão poética que pode nos levar, a partir de uma alteração no tempo verbal, a acionar o lúdico e dizer “museu foi o mundo”, “museu seria o mundo”, “museu será o mundo” e assim por diante. E tudo isso continua em diálogo com as posições e proposições de Hélio Oiticica. Admitindo que “museu é o mundo” e que “mundo é o museu” é possível compreender que mundo e museu estão conectados à experiência cotidiana, à arte “in mundo”, à museologia e ao museu “in mundo”. Nessa perspectiva, ou melhor, nessa dimensão, o esgarçamento das fronteiras entre arte e vida é radical.


A compreensão poética e também política de que “museu é o mundo” e de que “mundo é o museu” nos coloca frente a frente com a possibilidade de vivenciar o museu processo, o museu como espaço de encontro e convivência, como espaço social de celebração da potência da vida, do encantamento, da terapêutica social, da criação, da transformação e da luta. Um museu como pretexto, como meio, como corpo de luta, como máquina de guerra, é disso que estamos falando. Uma museologia “in mundo”, impura, indisciplinada, uma museologia social, uma museologia do afeto que não tem medo de afetar e ser afetada, que não teme o amor e a amizade, é disso que estamos falando. O mito da instituição nos leva a meditar sobre as institucionalizações possíveis. Nem todas as iniciativas museais querem se institucionalizar, muitas querem permanecer como processos, como movimentos, como dinâmicas e irradiações potentes. Cada experiência museal precisa ser considerada em sua singularidade “in mundo”. Neste bloco temático contamos com a participação de Izabela Pucu, Lisette Lagnado, Luiz Guilherme Vergara e Max Jorge Hinderer Cruz, em uma mesa-redonda, ocorrida na manhã do dia 7 de julho de 2016, e, também, com a presença de Jesús María Carrillo Castillo e Giuseppe Cocco, na condição de conferencista e debatedor, respectivamente, em atividade que se desenvolveu no mesmo dia, no turno da tarde. Realizando um delírio deambulatório Izabela Pucu colocou em pauta o “po-ético”, destacou a potência crítica das instituições frequentemente mal aproveitadas, colocou-se em diálogo com Carlos Zilio e com Mário Pedrosa e, por esse caminho, chamou para a conversa o Museu da Solidariedade, em Santiago do Chile, cujo processo se iniciou nos anos 1970. Ali, naquele museu, estavam inscritas a potência do “museu ato” e do “museu experimental”. Lá, naquele museu, a doação de obras e projetos realizados pelos artistas era um “gesto revolucionário”. Trazer aquela experiência para o mundo contemporâneo faz todo sentido e aciona o pensamento que nos leva a outro museu, a uma “altermuseologia”. Lisette Lagnado se apresentou em diálogo aberto com Hélio Oiticica, especialmente com o texto “Posição e programa”, sublinhou o planejamento das invenções de Hélio, destacou o Parangolé como um “programa ambiental” e examinou de modo crítico a relação entre as instituições e as vanguardas, considerando que as instituições podem ser instrumentos sociais e que a “democratização da arte não aconteceu”. O desafio está posto: como pensar e praticar outras institucionalizações? Seria possível pensar e praticar o “terreno baldio” e o “ponto de ônibus” como museu? Aí estão desafios contemporâneos que podem contribuir para uma potente articulação entre a arte e a museologia social.

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Luiz Guilherme Vergara trouxe para a cena a mesa-redonda de Santiago do Chile, de 1972, marco da museologia contemporânea, e colocou em movimento a sua própria trajetória de vida e o diálogo que ao longo do tempo vem realizando entre a museologia e a arte, uma conversa entre a arte e a vida, uma conversa ancorada na educação e que parte do princípio de que tanto a arte, quanto a museologia social estão experimentando formas de habitar o mundo, de ser “in mundo”. Max Jorge Hinderer Cruz construiu a sua intervenção em três blocos. De modo franco examinou a construção do mito, sublinhou de modo crítico a narrativa construída sobre Hélio Oiticica como “pacificador” e “homem branco”. Problematizou o discurso de um “exílio voluntário” e colocou em movimento questões contemporâneas sobre as relações entre o macro e o micro, especialmente no que se refere à política. Jesús María Carrillo Castillo e Giuseppe Cocco produziram um debate singular e estimulante. Merece registro especial a participação do público que o tempo todo chamou para si o protagonismo do debate e colocou em movimento questões sobre arte, educação, racismo, feminismo e homofobismo. Esse debate franco, aberto e sem hierarquizações permitiu que entrassem em cena, entre outras, as experiências do Museu das Remoções (na comunidade da Vila Autódromo), do Museu de Favela (nas comunidades do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo), do Museu da Maré (na comunidade da Maré), do Museu Vivo de São Bento (em Duque de Caxias) e do Museu do Samba (na comunidade da Mangueira). As críticas e os questionamentos de duas mulheres negras (uma artista e uma arte educadora) contribuíram para que os participantes se reposicionassem fisicamente, emocionalmente e mentalmente no espaço e no mundo (“in mundo”). Oxalá a leitura que aqui se oferece seja tão estimulante, quanto foi o acontecimento!

Mário Chagas Professor da Unirio e coordenador técnico do Museu da República.

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Fazer instituição como crítica Izabela Pucu Pesquisadora e curadora, Doutoranda PPGAV/EBA/UFRJ, Diretora e Curadora do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica


Estamos passando nos últimos meses por mais um acirramento do estado de crise permanente em que vivemos no Brasil. Muitas vezes, em momentos como esse, somos tentados a esperar que de alguma parte surja uma resposta emancipatória, até mesmo salvadora e, não raro, esperamos que essa resposta venha do campo cultural ou por meio da arte. No entanto, e pelo contrário talvez, o que não cessa de se mostrar nesse momento é que “‘a arte’ também vacila sobre seu sentido do mesmo modo que o ‘mundo’ sobre sua ordenação ou sobre seu destino”,1 como diria Jean-Luc Nancy, ao recomendar que não percamos tempo com julgamentos passionais ou execrações públicas (presenciais ou virtuais). Em momentos como esse, diria Nancy, nós devemos acompanhar o movimento – “nós devemos saber fazê-lo”.2 Ou seja, saber vacilar sobre nossas convicções, ir até o fundo da crise, reconhecer a falência de certas instituições e modelos enraizados em nosso comportamento parece ser a condição primordial para a invenção de outras institucionalidades e formas de vida hoje, mais do que defender posições aguerridas. 1

Nancy, Jean-Luc. Vestígio da arte. In: Huchet, Stephane (org.). Fragmentos de uma teoria da arte. São Paulo: Edusp, 2012.

2 Idem.

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Como diria Mário Pedrosa, a crise não é passageira, não está na moda, é mais profunda. “Está na concepção mesma de arte. Na sua função, na sua missão, se quiserem. Está na relação necessária que se estabelece não somente entre o artista e a sociedade, mas, sobretudo, na relação entre o artista e o mundo...”.3 Hélio Oiticica, com suas proposições e escritos, também nos fala de uma volta radical ao mundo como algo fundamental à arte, e convoca-nos, como Nancy, a saber-fazer o que ele chamou de momento ético, em detrimento do estético, ou melhor do esteticismo, marcado em seu trabalho pela caixa Homenagem a Cara de Cavalo, feita com imagens do famoso bandido morto violentamente pela polícia em 1964. Seu corpo morto estirado no chão refletia para Hélio “uma revolta individual contra todo o tipo de condicionamento social”,4 um inconformismo que ele aprendera com a vida na Mangueira e no submundo, a subterrânea carioca e, posteriormente, a nova-iorquina, que marcaria toda a sua poética e a sua vida – uma alimentada pela outra – a partir de então. Em 1967, no célebre texto “Esquema geral da nova objetividade brasileira”,5 Oiticica menciona que essa “volta ao mundo” se referia ao “ressurgimento do interesse pelas coisas, pelo ambiente, pelos problemas humanos, pela vida em última análise”,6 e implicaria a tomada de posição por parte dos artistas em relação a problemas políticos, sociais e éticos. Nesse texto Hélio aponta também a tendência a uma arte coletiva que estaria ligada diretamente ao problema da participação do espectador, posto como questão central pelo neoconcretismo. Essa tendência, no entanto, somente a partir de meados da década de 1960 se tornaria mais efetiva nas proposições dos artistas e, apenas na década de 1970, também no escopo das instituições.7 Como prossegue Oiticica, essas manifestações tomaram emprestadas soluções e formas de organização do acervo brasileiro das festas populares e de rua, caracterizavam-se também pela 3

Pedrosa, Mário. A Bienal de cá pra lá. Redigido em 1970. In: Gullar, Ferreira. Arte brasileira, hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973. Reeditado em Amaral, Aracy (org.) Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975 (2ª edição, 2007) e em Arantes, Otília (org.). Política das artes. Mario Pedrosa. Textos escolhidos I. São Paulo: Edusp, 1995.

4

Oiticica, Hélio. Cara de Cavalo. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica-Rioarte, 1997. Originalmente escrito em inglês, no catálogo da exposição “Hélio Oiticica”, na Whitechapel Gallery, Londres, 1969.

5

Oiticica, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. Catalogo de exposição. MAM: Rio de janeiro, 1967.

6 Idem. 7

Um exemplo bastante representativo disso foram os Domingos da Criação, organizados por Frederico Morais no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1971.

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popularização do processo de “seriação das obras”,8 referindo-se à reprodução de cartazes, bandeiras, serigrafias, gravuras entre outros objetos que estabeleceriam regimes de circulação de outra natureza. Nesse tipo de manifestação, afirmou o artista, não se trataria mais de introduzir o espectador ingênuo na experiência da arte, mas sim de instaurar um espaço aberto à sua “participação total”.9 Nesse sentido, gostaria de retomar a bela e corajosa contribuição do poeta e escritor Rafael Zacca, que tivemos o prazer de ouvir no segundo dia do seminário. Zacca acionou a noção de inconformismo em Hélio Oiticica nos termos de uma pedagogia que, se bem entendi, nos levaria a tomar o inconformismo como algo que pode ser transmitido e a partir do qual se pode produzir saber-fazer.10 Nessa perspectiva podemos pensar o artístico ou o poético como uma zona em que se estabelecem as condições para o exercício desse inconformismo, ao que parece, decisivo não apenas para a experiência artística, mas para a nossa atuação na vida social e política, na vida privada, na vida. É emocionante pensarmos como a possibilidade de uma pedagogia do inconformismo atualiza de forma muito potente a ideia de participação do espectador, como apontada pelo neoconcretismo, para além dos discursos já estabilizados sobre o assunto.

Nesse ponto quero trazer algumas referências sobre um acontecimento que pensei trazer para o debate desde o primeiro dia do seminário, quando atuei como debatedora, mas que agora me parece oportuno tomar como exemplo. Trata-se de uma dessas proposições “abertas ao mundo”, como escreveu Oiticica, o happening Bandeiras na praça General Osório, ocorrido no dia 18 de fevereiro de 1968, domingo, às vésperas do Carnaval daquele ano. A conhecida praça de Ipanema foi invadida por centenas de pessoas que dançavam agitando bandeiras, que também flamulavam penduradas entre postes de luz ou presas às árvores. Embaladas pela recém-fundada Banda de Ipanema, acompanhavam a ginga dos passistas da Mangueira – entre eles Hélio Oiticica, autor do resquício mais célebre daquele acontecimento, a bandeira Seja marginal, seja herói. Essa bandeira, citada e discutida diversas vezes no contexto deste seminário, foi o fio condutor de um projeto de pesquisa e curadoria chamado Bandeiras na Praça Tiradentes, que resgatou a memória desse acontecimento e deu origem à exposição 8

Oiticica, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. Catalogo de exposição. Op. cit.

9 Idem. 10 O artigo referente à fala de Rafael Zacca está publicado neste livro.

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homônima que aconteceu no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, entre 4 de outubro e 29 de novembro de 2014. No processo de pesquisa para a exposição foram descobertos importantes documentos, dentre os quais, o mais significativo: uma página de contato com 36 fotos feitas por Evandro Teixeira, encontradas no Centro de Pesquisa e Documentação do Jornal do Brasil, onde ele trabalhava à época. A folha era identificada pelos dizeres “Festa das bandeiras”. Além de consistirem em um testemunho fundamental, as imagens de Teixeira foram importantes instrumentos de identificação dos participantes e de suas bandeiras, esquecidas inclusive por seus autores. Não deixa de ser curioso ver esse acontecimento capturado pelas lentes daquele que foi o fotógrafo dos momentos mais emblemáticos da luta contra a ditadura no Brasil, como em sua foto da Marcha dos Cem Mil em que se lê em uma grande bandeira: “Abaixo a ditadura. O povo no poder”. Podemos dizer que o acontecimento Bandeiras na Praça General Osório tem como eixo dois movimentos iniciais. 1) A ação realizada pelos artistas Nelson Leirner e Flávio Motta na esquina da av. Brasil com a av. Augusta, em São Paulo, em dezembro de 1967. Na ocasião, os artistas exibiram bandeiras e flâmulas com elementos impressos em serigrafia, relacionados à cultura popular (Leirner trabalhou com imagens ligadas à religião e ao futebol e Motta trouxe elementos da literatura de cordel). As bandeiras foram rapidamente apreendidas por fiscais da Prefeitura sob o pretexto da ausência de um alvará para venda e exposição de “produtos” em logradouros públicos, e os artistas foram proibidos de exibi-las. 2) As feiras de arte realizadas ao longo do ano de 1967 por um grupo de artistas ligados ao MAM/RJ, muitos deles participantes da exposição “Nova objetividade brasileira”, entre os quais, Carlos Vergara, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica, com a participação especial de Carlos Scliar que trabalhava com serigrafia e gravura junto com Dionísio Del Santo. Essas feiras aconteceram no Aterro do Flamengo e em outras praças do Rio de Janeiro, como a praça Saens Peña, na Tijuca, e se alinhavam a outros movimentos de crítica aos modelos institucionais e autoorganização, diante do esvaziamento cultural provocado pelo Golpe Militar de 1964. Na semana seguinte, depois do happening na praça General Osório foi realizada uma feira com barracas onde réplicas de algumas bandeiras, serigrafias e gravuras sobre papel foram vendidas. Essa feira deu origem à feira hippie de Ipanema, que até hoje acontece naquele lugar. Do encontro desses dois grupos surgiu a ideia de realizar o acontecimento Bandeiras na Praça General Osório, uma grande mobilização coletiva que assumiu naquele momento um caráter ambivalente, entre festa e manifestação. As pessoas naquela praça não imaginavam que meses mais tarde seria editado o Ato Institucional no 5, apesar da atmosfera de

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chumbo que já pairava desde 1964. Naquele momento, quando quaisquer manifestações coletivas e de rua seriam coibidas, a bandeira figurou entre as demais sem grandes sobressaltos, muitas das quais traziam também mensagens claramente contra a censura e a ditadura militar, como as bandeiras de Anna Maria Maiolino, em que se lia “alta tensão” ou o Che Guevara pop de Cláudio Tozzi. Alguns meses depois, em outubro de 1968, os Mutantes realizaram um concerto com Caetano e Gil na boate Sucata, no Rio de Janeiro. Pendurada no fundo do palco estava a bandeira com a inscrição “Seja marginal, seja herói”. Os militares alegaram que ali havia conteúdo subversivo e disseram que Caetano teria cantado o Hino Nacional modificando alguns versos com ofensas às Forças Armadas. Isso serviria de pretexto para que suspendessem a apresentação, prendessem Caetano e Gil, que partiram para o exílio na Inglaterra logo após serem soltos. “Outras bandeiras” foram integradas na exposição para colaborar na construção do discurso curatorial e apontaram para uma genealogia, por assim dizer, do que gostaria de chamar de “fazer instituição como crítica”, proposição que dá nome à minha contribuição neste seminário. A meu ver essa genealogia tem origem primeiro no movimento de saída dos espaços institucionais tradicionais por parte dos artistas, a realização de feiras e outros acontecimentos pautados no modo de organização das festas populares, como diria Oiticica na década de 1960, iniciativas de autoorganização e proposições com ênfase na ida para o espaço público; e também no engajamento de artistas e críticos na reelaboração de espaços institucionais, escolas, museus, universidades, no sentido da constituição de outras institucionalidades necessárias ao desenvolvimento do campo artístico no Brasil, e pontualmente na cidade do Rio de Janeiro. Em um contexto como o nosso, em que não existem condições necessárias para o desenvolvimento das instituições, sejam elas espaços culturais públicos ou organismos independentes, somos levados a pensar, salvo raras exceções, que não há a possibilidade de fazermos “crítica institucional” no sentido estrito, assumido pelo termo na sua acepção mais corrente, que privilegia os contextos e os paradigmas norte-americano e europeu. Isso não quer dizer que não tenhamos episódios, digamos, clássicos, de crítica institucional no Brasil, nem que não incida sobre as instituições no campo cultural os interesses financeiros e de consumo que regem o mercado. Mas não é mera coincidência que os exemplos mais evidentes, hoje e historicamente, tenham ocorrido em confronto com a nossa instituição cultural mais canônica, apesar de todas as suas crises e complexidades: a Bienal Internacional de São Paulo. O boicote internacional à X Bienal de São Paulo, em 1969, marcado pela redação do documento “Non à la Bienale”, que deflagrava atrocidades cometidas pelo regime militar, foi assinado por

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centenas de artistas e críticos em todo o mundo e provocou o esvaziamento completo daquela Bienal. Mais recentemente, em 2006, a recusa do artista Cildo Meireles em participar da 27a edição da Bienal, cuja presidência estava elegendo para o seu conselho o ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, ex-controlador do Banco Santos, condenado em dezembro daquele ano a 21 anos de prisão por crime contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro, crime organizado e formação de quadrilha. Em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo, Meireles declarou: “É ridículo imaginar alguém de dentro da prisão tomando parte nas decisões de uma instituição tão importante”. A repercussão da atitude de Meireles fez com que o Conselho Deliberativo da Fundação Bienal de São Paulo excluísse de sua composição o ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira. Mesmo assim, o artista não voltou à Bienal. Outro caso importante nesse sentido, não contra uma instituição específica, mas contra aqueles que representam visões hegemônicas, institucionalizadas no campo da arte, foi a intervenção do coletivo Seis Mãos integrado pelos artistas Alexandre Dacosta, Barrão e Ricardo Basbaum, na entrevista com Archile Bonito Oliva. O embate ocorreu em uma palestra na galeria Saramenha, que funcionava no Shopping da Gávea, da qual participou também Frederico Morais, em um contexto em que o mercado de arte se aquecia com entusiasmo embalado pela evocação do retorno à pintura, da gestualidade livre, entre outros estereótipos que se colaram à produção da década de 1980. Surgem, então, em cena os artistas do coletivo Seis Mãos, Ricardo Basbaum, Barrão e Alexandre Dacosta, vestidos de garçom, servindo drinks e gravando as reações da audiência, colocando, ao mesmo tempo, em evidência, a subserviência dos artistas em relação a essa visão hegemônica, às galerias, presumida na universalidade de um movimento que Bonito Oliva resumiu na ideia de transvanguarda. Os artistas provocaram a ira do crítico italiano, que reagiu duramente, o que culminou em um confronto físico.

Certamente poderíamos elencar outros movimentos e intervenções nesse sentido, mas o que gostaria de trazer como provocação para a nossa conversa é a ideia de se “fazer instituição como crítica” em contraponto ao conceito de “crítica institucional”, algo mais adequado a meu ver à nossa realidade, aos desafios que enfrentamos cotidianamente. Uma contribuição brasileira para a questão da crítica institucional no campo da arte. Digo isso porque me parece que a possibilidade de crítica institucional entre nós estaria em se fazer instituição à revelia das forças que no ambiente sociocultural em que vivemos atuam de modo a desfazê-las. Em se fazer ou se refazer insti-

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tuições (organismos ou movimentos) no sentido da constituição de outras formas de institucionalidade, capazes de conjugar vontades coletivas e contribuir para o desenvolvimento das sociabilidades, das solidariedades e para a intensificação da democracia. Mário Pedrosa é, sem dúvida, um referencial importante dessa perspectiva que proponho, em nível nacional e internacional, especialmente quando pensamos em projetos como o Museu da Solidariedade, o Museu das Origens,11 proposto por ocasião da reconstrução do Museu de Arte Moderna do Rio, depois do incêndio de 1978, e também o projeto para o Museu de Brasília, de 1960, assim como o que Mário pensou para o MAM carioca, nunca concretizado. O Museu da Solidariedade é um museu-ato, mais do que um edifício ou uma coleção. Um gesto instituinte, uma atuação política no sentido grave da palavra, performado por artistas e críticos de todo o mundo em apoio ao governo popular de Salvador Allende. Implantado por uma comissão presidida por Mário Pedrosa em seu exílio no Chile, em 1972, o acervo do museu foi constituído com obras doadas por importantes artistas, como Alexander Calder, Frank Stella, Joan Miró, Lygia Clark, Joaquín Torres García, entre muitos outros. Consciente da missão que havia tomado para si, Mário apelou a todos os seus amigos e conhecidos que doaram ou ajudaram a trazer doações para o acervo do Museu, entre os quais se destaca a curadora americana Dore Ashton. Pedrosa fez inúmeras gestões diplomáticas, escreveu centenas de cartas, como aquela enviada a Pablo Picasso em que ele pede que Guernica seja transladada do MoMA de Nova York, nos Estados Unidos, para o novo museu que se fundava no Chile. A sinceridade com que Pedrosa se dirige a Picasso nessa carta, mesmo que a tenha lido tantas vezes, é para mim sempre muito comovente. Sendo um documento relativamente desconhecido, gostaria de transcrevê-la aqui: Santiago, 19 de julho, 1972. Al compañero Picasso, saludos! Nosotros, artistas latino-americanos, tus hermanos, tus admiradores, venimos a pedirte una cosa; el translado de GUERNICA, fruto de tu sagrada protesta y de tu genio, del Museo de Arte Moderno de Nueva York, donde se encuentra por tu decisión, para el Museo de la Solidaridad de Santiago, Chile. Qué es el Museo de la Solidaridad? Es el más nuevo de los museos, formado exclusivamente por donaciones de artistas del mundo solidarios al nuevo Chile y su pueblo, que contra el imperialismo y la miseria, buscan la li11 “O novo MAM terá cinco museus. É a proposta de Mario Pedrosa”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 de setembro, 1978. Reeditado em ARANTES, Otília (org.). Política das artes. Mario Pedrosa. Textos escolhidos I. São Paulo: Edusp, 1995.

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bertad, la emancipación, el socialismo. Y por qué te lo pedimos? Porque el país adonde está GUERNICA, símbolo eterno del dolor de los pueblos masacrados del mundo, fue transformado infelizmente en el más grande productor de Guernicas de la historia. El corazón de nuestros pueblos estallará de alegria, al saber que GUERNICA está honrada y decentemente guardada hasta que, según tu voluntad, pueda retornar a su patria natal en nuestro Santiago de Chile, hoy esperanza del continente del Che Guevara, nuestra patria latino-americana. Acá, multitudes vendrán de todas partes y seguirán desfilando delante de tu obra, como en dias del pasado distante hacían los peregrinos de Europa en busca del otro Santiago, el de tu tierra. Nosotros, agradecidos, te besamos, Maestro.12

Entre outras dificuldades para colocar em ato o projeto do museu, Pedrosa buscava uma sede para acondicionar as obras que imediata­ mente começou a receber, quando uma mensagem do crítico e historiador italiano Giulio Carlo Argan chegou trazida pelo poeta Murilo Mendes. Na mensagem Argan, que Mário havia mobilizado em apoio ao museu, questionava a solução de utilizar parte do edifício construído para abrigar a UNCTAD13 para guardar temporariamente o acervo, que necessitaria de condições museológicas adequadas. Em carta, Pedrosa simplesmente “dá uma bronca” no crítico italiano, com a sua polidez e inteligência, em bom francês. Numa atitude absolutamente descolonizada, Pedrosa reafirma que a solução seria temporária e que nada tinha a ver com o desconhecimento das condições adequadas ao acondicionamento de um acervo, mas sim com a situação social e política daquele país, que Argan parecia desconhecer. Item a item Pedrosa situa o crítico e historiador italiano nos conflitos da América Latina, nas necessidades que a luta pelo socialismo impunha àquele e a outros povos. Com firmeza esclarece que o museu era parte do processo revolucionário fabuloso e sem precedentes que tinha lugar no Chile naquele momento. Desculpa-se, mas segue fazendo uma digressão sobre o plano político, pois como afirmaria, “se vamos até o fundo de nosso pensamento, é deste plano que saiu a ideia do museu”.14 12 Carta de Mário Pedrosa a Pablo Picasso. Pertencente ao acervo do Museu da Solidariedade Salvador Allende. Cortesia de sua diretora Claudia Zaldivar, que tive o prazer de conhecer nas pesquisas que realizei por ocasião da edição do livro Mario Pedrosa: primary texts (Organização Glória Ferreira e Paulo Herkenhoff, MoMA, 2016). 13 III United Nations Conference on Trade and Development, realizada em Santiago, Chile, em 1972. 14 Carta de Mário Pedrosa a Giulio Carlo Argan. Santiago do Chile, 31 de julho de 1972. Acervo Museu da Solidariedade Salvador Allende. No item 9 de sua carta, Pedrosa diria a Argan: “Pardonne-moi pour cette digression sur le plan politique. Mais c’est de

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“Se esquecemos disso”, prosseguiu Pedrosa, “perderemos as perspectivas corretas”. Essa passagem para mim é algo memorável, não apenas porque torna claros os objetivos que culminaram na existência desse museu-ato, mas especialmente porque Pedrosa exercita a sua consciência histórica no sentido da descolonização do pensamento e da ação, exercício que nós, para-europeus como diria Paulo Venâncio filho,15 devemos sempre refazer e afirmar, até que um dia, quem sabe, isso não seja mais necessário. Como vimos, nem todos os museus são ou estão fadados a serem máquinas de gentrificação (essa é uma provocação para o Giuseppe Cocco!). Um exemplo importante disso que estou chamando “fazer instituição como crítica” foi a transformação do Instituto Brasileiro de Arte, escola conservadora ligada ao Estado do Rio de Janeiro, em Escola de Artes Visuais do Parque Lage – EAV, por Rubens Gerchman, seu diretor de 1975 a 1979. O projeto pedagógico de Gerchman e seus companheiros trazia um novo desenho à escola, que promoveu a integração entre as áreas e as diversas artes e introduziu entre nós o termo artes visuais, trazido da escola nova-iorquina que inspirou o desenho da nova Escola, na qual ele havia estudado. Foi da EAV que partiu a marcha pela reconstrução do MAM depois do incêndio ocorrido em 8 julho de 1978, um momento trágico na história do museu e no contexto cultural brasileiro. Ocorrido durante a exposição “Geometria sensível” (curadoria de Roberto Pontual), que incluía uma exposição retrospectiva do artista uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949). A maioria das obras em exposição, além de parte do acervo e das instalações do museu, foi destruída. Fotografada por Celso Guimaraes, então professor da EAV, a manifestação, organizada por Rubens Gerchman e por artistas que frequentavam a Escola, reuniu representantes do Pasquim, dos artistas plásticos, dos desenhistas, da Esdi, do Salgueiro, dos Museus do Índio e Histórico, além de Joãozinho Trinta, das baianas da Beija Flor e de uma infinidade de pessoas e representações de grupos culturais da cidade para que desejassem um novo MAM. O cineasta Aurélio Michiles idealizou com o coletivo Ur-gente um ato teatral que fazia alusão à obra ce plan – si on va jusqu’au bout de notre pensée – que l’idée du Musée est sortie. Si on oublie cela on perd les justes perspectives. Et on ne peut plus saisir dans toute son importance la si belle expérience d’un Musée d’art moderne et expérimental, fondé sur la solidarité des artistes et des critiques du monde avec un petit pays qui s’est mis par vents et marées sur la vois d’un socialisme chérissant les libertés humaines. Le succès de cette expérience comptera aussi pour le prochain avenir artistique du monde. Je crois de ma part que l’avenir de l’art est conditionné à l’avenir international de l’expérience socialiste dans le monde, dont le modeste modèle chilien est l’exemple le plus récent et certainement le plus chargé de signification”. 15 VENANCIO FILHO, Paulo. História, cultura periférica e a nova civilização da imagem. Revista Arte & Ensaios no 5. RJ: UFRJ, 1998. p. 94.

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do uruguaio Joaquín Torres García e também críticas à mercantilização da arte e aos interesses comercias crescentes no circuito cultural da época. Um debate foi realizado com a presença de Mário Pedrosa, Ferreira Gullar, Heloisa Lustosa, entre outras pessoas que lotaram os pilotis do MAM, num acontecimento raro de participação social que dificilmente se produziria em prol de um museu nos dias de hoje. Os desdobramentos do caso e as tentativas de se aproveitar da tragédia para refazer o museu sobre outras bases, administrativas e conceituais, estão relatados em uma série de textos publicados pelo jornalista, poeta e crítico Roberto Pontual no Jornal do Brasil, entre eles o texto “MAM, mãos à obra”, em que Pontual afirma com clareza: […] é chegada a hora de se indagar sobre as verdadeiras condições físicas e espirituais em que se processa o trabalho da inteligência e da criação entre nós, traçando um mapa realista das nossas disponibilidades, carências e procedimentos no campo. E, de volta ao desastre do MAM, certeza, especialmente, de que a oportunidade é esplêndida para reconstruí-lo a partir de novos parâmetros, visando não apenas à atualidade de suas instalações e ao aperfeiçoamento de sua segurança, mas, sobretudo, à modernidade de sua concepção como instrumento do fazer, do saber e do prazer de todo um povo. De um povo que somos nós, brasileiros, neste momento.16

Na ocasião foi constituído um comitê permanente pela reconstrução do MAM, e entre as propostas apresentadas a que se destacou foi a de Mário Pedrosa – a fundação do Museu das Origens – que previa o estabelecimento de cinco museus: Museu do Índio; Museu da Arte Virgem (Museu do Inconsciente); Museu de Arte Moderna; Museu do Negro; Museu das Artes Populares. Na contramão do que vivenciamos hoje, a ideia de Pedrosa não seria inventar um novo museu, mas reunir e recuperar os museus existentes no sentido de preservar aquilo que cada um teria de valioso, suprir suas lacunas e potencializar sua existência em conexão em um projeto de museu bastante sofisticado, em que estariam colocados lado a lado artes populares e contemporâneas, recortes antropológicos e outros mais ligados à história da arte. Pedrosa discorreu ainda sobre um programa de cursos teóricos e aprendizado prático com algumas matérias gerais como história da arte, 16 PONTUAL, Roberto. MAM: mãos à obra. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 de julho, 1978. O autor também abordou o incêndio e a reconstrução do MAM-RJ nos textos MAM: reconstrução? Revista Arte Hoje, no 17, Rio de Janeiro, novembro de 1978 e Onde experimentar. Jornal do Brasil, Caderno B, 19 de agosto de 1978. Ambos os textos foram reeditados In: PUCU, Izabela e MEDEIROS, Jacqueline (orgs.). Roberto Pontual: obra crítica. Rio Janeiro: Azougue, 2012.

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antropologia cultural e seções especializadas: cultura urbana, comunidades rurais, comunidades tribais, festas urbanas, Carnaval. Falou ainda da estrutura administrativa e das estratégias de sustentabilidade do museu, em termos que hoje ainda parecem bem atuais: A fundação deve ser pública ou de natureza mista para assegurar sua permanência e solidez, sobretudo quanto a recursos, mas dispor de uma estrutura organizatória autônoma a fim de assegurar uma orientação cultural e artística não só coerente e homogênea, mas não sujeita a variações de orientação e administração, consequência de intervenções políticas extemporâneas e burocráticas não de todo aconselháveis [...]17

Ou seja, tratava-se de projetar outro lugar de visibilidade para as manifestações artísticas no país, que contemplava a sua riqueza cultural e antropológica, e fazia do Museu das Origens não um fim em si mesmo, mas uma pedra fundamental na articulação entre museus existentes e aquele que se queria reinventar. Nesse mesmo sentido, com outra estratégia, não se pode deixar de falar da criação dos cursos de graduação e posteriormente de pós-graduação em arte nas universidades públicas brasileiras federais e estaduais. Esse movimento foi estruturado em meados da década de 1970, sendo pioneira a Escola de Comunicações e Artes da USP, na qual atuava o crítico Walter Zanini e um grupo de artistas, entre eles, Carmela Gross, José Resende, Paulo Baravelli, e outros. Posteriormente, no Rio de janeiro, o movimento foi liderado pelo artista Carlos Zilio e por um grupo de artistas e críticos, entre os quais Ronaldo Brito. Eles iniciaram suas atividades na década de 1990, na PUC, com uma especialização em História da Arte e da Arquitetura, e depois, reunidos com outros companheiros, entre eles Lygia Pape, Paulo Venâncio e Glória Ferreira, criaram o Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais na Escola de Belas Artes da UFRJ. Segundo Zilio, a entrada da arte na universidade era necessária para fazer frente ao mercado que se pronunciava, especialmente em São Paulo, tendo em vista nosso meio social bastante imaturo para a sua instauração. A necessidade de vinculação da arte ao conhecimento formal fez e continua fazendo frente a uma situação específica do ambiente brasileiro, de desvalorização da cultura, haja vista os atuais retrocessos e enganos cometidos na extinção e posterior recolocação do Ministério da Cultura pelo governo interino deste país. Serviu também, 17 O novo MAM terá cinco museus. É a proposta de Mario Pedrosa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro, 1978. Reeditado em ARANTES, Otília (org.). Política das artes. Mario Pedrosa. Textos escolhidos I. São Paulo: Edusp, 1995

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como diria Zilio, “para que se estabelecesse entre nós uma reflexão sobre arte que a colocasse em conflito produtivo com o conhecimento no sentido mais amplo”18 e para demarcar um lugar social. Se a arte está dentro dessa instituição social significa que ela pertence à área do conhecimento e, portanto, não é alguma coisa ligada ao consumo, à diversão ou ao entretenimento. Outro dado favorável da instituição é que ela tem uma dinâmica própria. Quer dizer que a instituição mantém o conhecimento como um acesso permanente entre gerações. Tem uma dinâmica autônoma. Isso tem a ver também com uma questão que ainda contava para as pessoas da minha geração, que é a formulação de uma visão de Brasil, de um projeto de Brasil. Isso era uma questão política.19

Em contraponto a manipular estrategicamente a força de instituições canônicas, como a universidade – mesmo que decadente sob muitos aspectos – e o Museu, o movimento dos coletivos de artistas iniciado em meados da década de 1990, que se estenderia até meados dos anos 2000, significou a produção de institucionalidades minoritárias, como descreveria Ricardo Basbaum,20 baseada em políticas da amizade e em processos de trabalho colaborativos, movimento que passa pela “tomada de consciência acerca da trama institucional do sistema de arte [...] e também por uma reflexão sobre o papel do artista frente ao tecido social e ao circuito”.21 Basbaum argumenta que essas agências de artistas estabeleceram uma modalidade de compromisso de trabalho diferente daquele do funcionário, que passa pelo comportamento e pelo corpo, que não começa e termina com hora marcada, que passa pela relação entre arte e vida. O compromisso “de um tempo de produção e invenção da instituição, de um tempo de institucionalização que passa por esse outro lugar que é também o da convivialidade, comprometido com um tipo de sociabilidade que é parte estratégica da ação”.22 A organização desses artistas em agências, em espaços que misturavam ateliê, residência e escritório, a invenção 18 Zilio, Carlos. Depoimento inédito em entrevista aberta a Chatherine Bompuis, Lívia Flores e Ernesto Neto. Seminário “Formação e estatuto do artista”. Escola de Artes Visuais do Parque Lage, 2012. 19 Idem. 20 BASBAUM, Ricardo. O papel do artista como agenciador de eventos e fomentador de produções frente à dinâmica do circuito de arte. In: Manual do artista e etc. Rio de Janeiro: Azougue, 2013. 21 Ibid., p. 121. 22 Ibid., p. 122.

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de tecnologias de sobrevivência e a produção de redes de colaboração, estabeleceu entre nós uma dinâmica muito produtiva e formadora, que abriu espaço para que os artistas aprofundassem aquilo que já havia sido colocado na ordem do dia por Mário Pedrosa e Hélio Oiticica: a tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos. Como sabemos, a organização em coletivos no campo cultural é um fenômeno cíclico, muitas vezes marcado pela descontinuidade ou pela breve existência, apesar de sua importância. Mas, parece-me importante desfazer certos preconceitos que envolvem a dicotomia coletivos x instituições, e reiterar que a descontinuidade e a precariedade são um aspecto que no Brasil caracteriza também grande parte das instituições, digamos, mais tradicionais.23 Muitas instituições públicas, e não apenas os centros culturais e museus, são sustentadas pelo tipo de compromisso descrito por Basbaum, que passa pela estreita relação entre trabalho e vida, pelo engajamento de pessoas específicas que garantem “na raça, com estratégias de guerrilha”, o desenvolvimento das instituições com qualidade pelo tempo de sua atuação. Algo nesse sentido é o que está acontecendo há dois anos e meio no processo de gestão do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, do qual sou diretora e curadora, desde fevereiro de 2014. Um processo que conta com o suporte do poder público municipal, mas que depende especialmente da participação de diversos grupos sociais, do movimento de diferentes corpos, muitas vezes em conflito. Colaboram e participam ativamente da produção da instituição a comunidade acadêmica, em projetos como o Programa Plataforma de Emergência,24 coletivos como a Oficina Experimental de Poesia, como o Norte Comum, além de artistas, produtores e outras instituições que integram o programa de exposições, seminários, cursos e debates e nos ajudam a tornar esse espaço efetivamente público. Com autonomia proporcional à precariedade, o modelo de gestão que está sendo desenvolvido no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica – um contra-modelo na realidade, um modelo site specific – conjuga a herança de todos os movimentos citados aqui, na direção da implementação de outra institucionalidade capaz de corresponder às vontades coletivas e 23 O exemplo mais recente desse fato entre nós foi a extinção da Casa Daros depois de mais de quatro anos de reformas e apenas um ano de funcionamento, e a própria irregularidade da trajetória do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, que completa 20 anos em 2016 com uma trajetória bastante irregular, intercalada por períodos de crescimento e decadência, sendo o mais penoso entre 2009 e 2013, quando chegou a funcionar inclusive sem gestor. 24 O Programa de Extensão Plataforma de Emergência é realizado pelo Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica em parceria com cerca de 40 professores de UFRJ, UFF, Uerj, PUC-Rio, Unirio e UFRRJ. Saiba mais em https://www.facebook.com/plataformadeemergencia.

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contribuir para o aprofundamento da democracia. É uma aventura o que estamos vivendo na reinvenção de HO, como o espaço é carinhosamente conhecido, baseada na disponibilidade disseminada entre as pessoas em ocupar os espaços e buscar visibilidade para suas práticas e lutas. Essa disponibilidade, a meu ver, é uma reação propositiva, constituinte, que se nota em diferentes pontos do país, a um período histórico compreendido entre as manifestações de 2013, as ações para o acontecimento dos megaeventos esportivos, e o nebuloso processo de impeachment que tornou patente, de forma assustadora, a fragilidade das instituições políticas no Brasil, e da própria democracia. Com certeza outros exemplos poderiam ser relacionados nessa genealogia que busquei desenhar a partir do que estou chamando “fazer instituição como crítica”. Muito pouco explorada e conhecida no campo da arte contemporânea, por exemplo, é a perspectiva trazida pela museologia social, que sob muitos aspectos oferece resposta mais direta à proposição de Oiticica de que façamos esse momento ético, simbolizado pela bandeira Seja marginal, seja herói (1968), ou pelo bólide Homenagem a Cara de Cavalo (1964). Entre eles, o Museu da Maré, no complexo de favelas homônimo, o Museu de Favela (MUF), museu de território com sede na região compreendida entre Pavão-Pavãozinho e Cantagalo; o Museu das Remoções, na Vila Autódromo, em Jacarepaguá, lugares de elaboração e memória dessas comunidades, em sua maioria, paisagens culturais arrasadas por projetos excludentes de sociedade. O professor e museólogo Mário Chagas, atuante nessas instituições, recentemente publicou um relato em uma rede social sobre um acidente ocorrido no MUF, que transcrevo aqui sem qualquer alteração: Hoje estive no Museu de Favela (MUF) pela manhã com os companheiros Antônia Ferreira Soares, Sidney Tartaruga, Rita Santos e seu João. Fizemos um levantamento dos estragos, visitamos as casas atingidas pelas estruturas que foram arrancadas do Terraço Cultural do MUF pelo vento de mais de 123 km por hora. Mapeamos os danos de 10 casas e vamos iniciar uma campanha, tendo por prioridade as casas dos moradores que foram atingidas pelas vigas de metal e pelas telhas arrancadas do Terraço. Felizmente os danos não são graves e ninguém foi ferido. Decisão do Colegiado do MUF: vamos cuidar das casas dos moradores que foram atingidas. Só depois vamos cuidar do MUF. O bom humor de alguns moradores que filmaram com os olhos o trágico acontecimento produziu a seguinte imagem: “Caraca! Lá vai o tapete voador do MUF”. O vento foi tão forte que transformou a cobertura do Terraço Cultural com bem mais de uma tonelada em um “tapete”, em uma

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folha de papel. É incrível como o humor ajuda a suportar certos dramas e tragédias. O MUF não está abatido. O MUF não está sozinho. O MUF está mais forte. Recebemos muitas mensagens de apoio do Brasil e do exterior. O Ibram e a Superintendência de Museus da Secretaria de Cultura do Estado também se manifestaram de modo solidário. Agradecemos a todos e adiantamos que vamos mesmo precisar de todo apoio nesse momento e nesse movimento de reconstrução. Reconstruir! Eis o nosso brado!25

Talvez nos ajude a especificar esse tipo de força social instituinte, que não parte de um governo ou liderança tradicional, sindical, por exemplo, a partir da noção de imaginação radical trazida por Cornelius Castoriadis, em entrevista a Dominique Bolliger, 26 que nos oferece um contraponto muito interessante à ideia de criatividade, tão apropriada pelas indústrias e economias criativas, normalmente focada no artista ou no indivíduo criador. O filósofo e psicanalista greco-francês nos diz que uma sociedade é cada vez mais obra de si mesma, sendo sua ferramenta fundamental de autoprodução a imaginação radical instituinte, que não seria uma coisa que as pessoas possuíssem em quantidades maiores ou menores, mas sim “um processo coletivo, algo que os grupos fazem conjuntamente através de experiências compartilhadas, línguas, histórias, ideias, arte e teoria, força coletiva”.27 Práticas como as relacionadas neste artigo, e não apenas aquelas desenvolvidas em espaços localizados em favelas, reforçam o convite a nos “voltarmos para o mundo”, feito por Hélio Oiticica também de forma magistral na sentença “Museu é o mundo, a experiência cotidiana”, 28 que 25 Tive o prazer de conhecer Mário Chagas no seminário “Hélio Oiticica para além dos mitos”. Causou-me grande admiração a maneira como ele mediou os conflitos surgidos no debate de nossa mesa-redonda (conflito formador e raro, diga-se de passagem, em que finalmente se conseguiu debater na divergência, sem um dos lados romper com o diálogo, em que aprendemos). Tudo o que citei sobre Museologia Social neste artigo deve-se a um encontro que tivemos posteriormente. A ele agradeço por me introduzir nesse campo de trabalho em que desenvolve suas pesquisas de forma tão vigorosa. A postagem a que me refiro não pode mais ser acessada. Informações sobre o MUF Museu de Favela podem ser obtidas na sua página oficial no Facebook https://www. facebook.com/museudefavela/?fref=ts. 26 Entrevista concedida por Cornelius Castoriadis a Dominique Bolliger, em 1992, para o Centre National de Documentation Pédagogique, na França. Disponível em vídeo, dividida em seis partes, no link https://www.youtube.com/watch?v=CVprzAUBqs0 para o YouTube. 27 “Porque os movimentos sociais precisam de imaginação radical”. Artigo de Alex Khasnabish e Max Haiven, publicado originalmente em Opendemocracy.net, republicado no site esquerda.net no link http://www.esquerda.net/artigo/por-que-os-movimentos-sociais-precisam-da-imaginacao-radical/33535. 28 OITICICA, Hélio. Programa Ambiental. In: Catálogo da Exposição Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, 1996, p. 104.

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dá nome à mesa-redonda a partir da qual escrevo esta contribuição. Se DA ADVERSIDADE VIVEMOS,29 como encerraria o artista em seu já citado artigo de 1967, tais práticas nos ajudam a estruturar não apenas outra ideia de museologia, mas, em última análise, são fundamentais para instituir a sociedade que queremos.

29 OITICICA, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. Catálogo de exposição. Rio de Janeiro: MAM, 1967.

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Instituição, programa in progress? Lisette Lagnado Crítica de arte e curadora, dirige, desde 2014, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro


Não irei expor as já conhecidas restrições de Hélio Oiticica (1937-1980) sobre a instituição artística. Por uma razão muito simples: interessa aqui pensar a eficácia – ainda que residual ou corrompida – das proposições de um dos maiores nomes do século XX. Dedicarei, assim, a primeira parte deste artigo a uma compilação sumária de ideias consagradas em torno da instituição, antes de adentrar o aparato conceitual de um artista que, até o final dos anos 1970, planejava cada uma de suas “invenções”,1 com uma rara consciência de quem apenas produz para o sistema da arte se for algo rigorosamente inserido em um horizonte chamado “programa”. O que, entretanto, complica a presente reflexão é que esse programa foi concebido de modo a ficar aberto, em movimento, permeável ao fluxo do tempo e do acaso. A morte de seu autor interrompeu indiscutivelmente a expansão dessa matriz, o que não significa que deva encerrar seu caráter propositivo e negar sua liberdade essencial. Um programa aberto é, antes de mais nada, um programa livre. 1

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“Invenção” é o termo empregado por Hélio Oiticica para designar seu trabalho. No vocabulário controlado desse artista, a terminologia tem um rigor estratégico. O título do primeiro estudo de Celso Fernando Favaretto, A invenção de Hélio Oiticica (São Paulo: Edusp, 1992), faz-lhe justiça.


Ora, a dificuldade reside em identificar como um programa in progress – denominação usada por Oiticica – tem condições de manter uma integridade nos moldes atuais da instituição. Dedico este texto à artista Laura Lima que está enfrentando uma pressão maligna provocada por uma acusação absurda de uma das participantes de seu trabalho The inverse, atualmente no ICA de Miami. Atentados desse tipo colocam em risco a liberdade da arte e mostram o quanto a expressão artística precisa de outro tipo de instituição. A segunda parte será voltada para um estudo de caso, a 27ª Bienal, exemplificado por alguns artistas convidados. Naquela bienal, realizada em 2006, procurei colocar em rotação conceitos enunciados pelo artista em seu Programa ambiental (1966), também chamado Parangolé. Pretendo assim revisitar Oiticica no contexto de uma bienal internacional como exemplo de instituição.

1. Posição e programa A percepção da arte sob uma visada programática é um traço essencial das vanguardas russas, e nesse sentido a consulta aos notebooks de Oiticica confirma o vulto de uma comparação com perspectivas construtivistas, permitindo verificar que havia uma verdadeira vontade projetual à maneira das escolas de arte, arquitetura e design, emblematizadas nos Ateliês Superiores Técnico-Artísticos Estatais (Vkhutemas, 1920-1930), entre outras iniciativas políticas educacionais. Para um artista da envergadura de Oiticica, o projeto artístico não se concebe desvinculado do campo da educação. Ora, insistir mais uma vez no pioneirismo de Oiticica é uma afirmação que, nos últimos anos, atingiu o espesso nevoeiro da mistificação. Se o objetivo dos encontros deste seminário consiste em desconstruir mitos, todo cuidado será pouco. A 27ª Bienal de São Paulo procurou trazer as linhas de “Posição e programa” para a contemporaneidade. Escrito em 1966, esse texto se dirige a um horizonte mais abrangente que os fenômenos da arte. Além de um vasto vocabulário, em que o conceito de “antiarte”2 é positivado, a própria escolha do título corrobora na aspiração de uma finalidade ética, exigindo 2

“Antiarte – compreensão e razão de ser do artista não mais como um criador para a contemplação mas como um motivador para a criação – a criação como tal se completa pela participação dinâmica do ‘espectador’, agora considerado ‘participador’”. In: “Posição e programa”, julho 1966. Todos os textos de Hélio Oiticica aqui mencionados podem ser encontrados no site que organizei. Disponível em: http://www.itaucultural. org.br/programaho/.

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a derrubada de antigos princípios morais: posição é um termo intrinsicamente ligado ao corpo no espaço.3 Por entender o programa de Oiticica como um programa com ênfase no processo (não é uma escola, nem um movimento), preferi adotar este texto ao conhecido manifesto “Esquema geral da nova objetividade” (1967). Muito mais citado, “Nova objetividade” corria o risco de misturar as águas do meu escopo curatorial no caldo cultural do tropicalismo.4 Com maior ou menor voltagem, os artistas convidados a participar da 27ª Bienal atualizaram um repertório de ideais conceituados quatro décadas antes: a superação do quadro de cavalete, a participação do espectador, a tendência para proposições coletivas e o engajamento da arte nos problemas políticos e sociais. A conjugação desses fatores culminou em várias formações singulares de coletivos ou “comunidade” – urbanas, periféricas, religiosas, sexuais, multiculturais ou até mesmo sem identidade, sinalizando o advento da I Bienal de São Paulo sem nenhuma representação oficial de um Estado-nação.5

2. Vanguarda e instituição, mitos siameses Falar do mito da “instituição” é uma tarefa que conduz à Teoria da vanguarda (1974) de Peter Bürger e, consequentemente, implica contestar a noção de autonomia esteticista da arte. De tempos em tempos, dada a relação dialética entre contexto histórico e recepção da arte, os artistas reformulam os objetivos, a definição e a função social a arte. Nas dinâmicas de “vanguarda”, os artistas se empenham em ampliar os limites de atuação. Sua estratégia é de “choque”, de combate aos critérios e diretrizes do sistema normativo. A vanguarda condena formas de negociação com a instituição. Assim sendo, o artista se depara com forças antagônicas: explorar a instabilidade do seu presente e mirar uma qualidade universal, que transcende seu tempo e espaço, sob o risco de ficar datado. 3

As páginas iniciais da publicação 27ª Bienal de São Paulo: como viver junto (São Paulo: Fundação Bienal, 2006) sugerem uma linha transversal de contiguidade entre o fragmento “Fantasia” (Barthes, Roland. Como viver junto, trad. Leyla Perrone-Moisés, São Paulo: Martins Fontes, 2003) com fac-símiles de textos de Hélio Oiticica (“Posição e programa”, julho 1966 e o projeto não realizado de quatro penetráveis para o Central Park de Nova York, subterranean tropicalia projects, de 1971).

4 Hélio Oiticica se manifestou várias vezes contra a associação estabelecida entre seu Programa ambiental (ou Parangolé) e o tropicalismo. 5

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Cf. “A primeira bienal do século”, palestra de Waldir Barreto, Palácio do Café, Vitória (ES), 20/09/2006.


A instituição é o canal que não somente torna pública, mas legitima a produção do artista. Depois de uma obra escrita, uma pintura ou escultura tida por finalizada, esse trabalho deixa o âmbito particular (o que quer que chamemos esse momento de maturação da obra, de “solidão essencial” ou de solipsismo) e busca uma comunicação com o outro. Nesse aspecto, o papel da instituição teria a função de projetar uma ponte entre o dentro e o fora, uma subjetividade e uma alteridade, a vida interior do sujeito e sua relação com o mundo. Na prática, consiste em exibir e difundir a produção artística – função assumida por museus, centros culturais, galerias e publicações especializadas (livros, catálogos e revistas) com seus respectivos agentes (críticos de arte, curadores, editores etc.). Portanto, a instituição não deve ser entendida apenas como um espaço físico: ela é o próprio instrumento social que dá lastro ao fazer artístico. Mas a contribuição de Bürger esclarece o quanto a instituição deve sua engrenagem a uma sociedade burguesa. Ainda que o regime das artes plásticas tenha adentrado a era das massas (exposições financiadas por corporações privadas, atraindo a popularidade do turismo cultural), o fato é que sua distribuição permanece restrita a uma elite. A tão aguardada etapa da democratização da arte não se concretizou; foi, e continua sendo, um sofisma. Enquanto o aparato de Marcel Duchamp foi capaz de instaurar uma ruptura epistemológica, no lugar do choque sobram hoje escândalos oportunistas que apenas replicam as questões mais urgentes nas redes virtuais. A vanguarda que, nos anos 1960, vestiu a roupagem da contracultura perdeu sua conotação programática. Com a indústria cultural, os acontecimentos artísticos se tornaram interdependentes da cultura de massa. O desejo, por sua vez, resiste. O desejo vanguardista de transformação do cotidiano permanece no sentido apaixonado e utópico. A arte política não está morta, ao contrário: ganhou contundência no cinema de arte, na performance e nas instalações de modo geral. Assim, embora a chamada geração da contracultura reconheça Oiticica como legítimo protagonista de seu tempo histórico (o artista aderiu a todos os seus ícones6) e Mario Pedrosa o identi6 A tese de Celso Favaretto, “A invenção de Hélio Oiticica” (1992), foi um dos estudos precursores na elucidação do alcance de uma “nova sensibilidade” e “nova consciência” no complicado cenário cultural do Brasil durante o regime militar. Em 2003, Favaretto orientou meu doutorado, com foco na década de 1970, vivida em Nova York, “Hélio Oiticica: O mapa do Programa ambiental” (não publicada) – ambas foram defendidas no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. No volume 2, dedicado ao glossário do Programa ambiental, aparecem as referências mais recorrentes, tais como Jimi Hendrix, Bob Dylan, Black Panthers, entre outros.

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fique com o momento pós-moderno brasileiro, seus alicerces fundamentais estão inscritos no ideário da vanguarda. 7 Falar do mito da vanguarda remete, portanto, ao seu outro, intrínseco, que lhe assegura o conflito necessário para existir: o mito da instituição. A arte é uma disciplina amparada em códigos normativos. Sua prisão ou sua clínica – a “vigilância disciplinar”, para usar uma terminologia foucaultiana – é a exposição, seja ela realizada em museu, centro cultural ou galeria. O fiscal da arte é encarnado na figura do crítico, iminente porta-voz dos valores da sociedade moderna. Nesse panorama, pensadores como Foucault e Deleuze, ainda que sem se debruçar especificamente sobre valores estéticos, tornaram-se fundamentais no debate do mito da “instituição artística”.

3. Adeus ao esteticismo Gostaria de passar agora para a inserção de trabalhos dessa natureza no cotidiano dos espaços institucionais. Desde a primeira exibição da maquete de Cães de caça (1961), o crítico Mário Pedrosa avaliou o revés causado aos paradigmas modernos por um projeto de jardim público, dotado de cinco Penetráveis, em forma de labirinto.8 Não deixa de surpreender que, até o presente momento, nenhuma instituição tenha conseguido construir esse projeto, baseado no desenvolvimento da cor no tempo e no espaço. Deve-se acolher, calorosamente, o MAM do Rio de Janeiro por acolher uma experiência como a desse jovem artista de talento que é Hélio Oiticica. É que os museus de arte contemporâneos, ou aqueles dedicados a esse mito que é a arte dita moderna, não podem ser confinados às atividades tradicionais da entidade – guardar e expor obras-primas. Suas funções são bem mais complexas. São eles intrinsecamente casas, laboratórios de experiências culturais. Laboratórios imediatamente desinteressados, isto é, de ordem estética, a fim de permitir que as experiências e vivências se façam e se realizem nas melhores condições possíveis ao estímulo criador. O Museu, assim concebido, é a luva elástica para o criador livre enfiar a mão.9

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No presente debate, a neovanguarda constitui uma digressão sem interesse aqui.

8 Além dos cinco Penetráveis de Hélio Oiticica, Cães de caça é constituído do Poema enterrado de Ferreira Gullar e do Teatro integral de Reinaldo Jardim. 9 Cf. Pedrosa, Mário. Catálogo da exposição “Projeto cães de caça”. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 1961.

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Vivenciar a cor é uma proposição de caráter estético e sublime. Mais adiante, à medida que o artista amplia a participação do espectador, a relação com a instituição se torna mais complexa. Oiticica menciona a dificuldade de solicitar que o visitante tirasse os sapatos para se entregar aos aspectos sensoriais do ambiente proposto. Hoje, os obstáculos são formulados pela própria instituição, cujos departamentos jurídicos se encarregam de antever toda sorte de probabilidade de danos, em sua maioria de ordem abstrata e moral. A autocensura, assumida por muitas instituições, não liquidou a arte experimental, porque a experimentalidade faz pouco caso dos sistemas legais para ocupar espaços. Depois de Cães de caça, as propostas colocando em xeque as regras da instituição se tornam mais complexas, pois se de início Oiticica estava concentrado no sujeito-participador (com apenas uma pessoa entrando de cada vez nos Penetráveis), os desdobramentos passam a contemplar uma multidão e, obviamente, toda multidão representa uma ameaça à ordem vigente. Poucos sabem que na inauguração da mostra “Esquema geral da nova objetividade”, no MAM-RJ, o cortejo de passistas da escola de samba da Mangueira, participando da manifestação ambiental Tropicália, seguiu pelo aterro do Flamengo por ter sido dispersado pela polícia na área do museu. Qual regime institucional estaria apto a receber uma invasão de passistas da comunidade da Mangueira sem o protocolo das autorizações prévias? Nesse momento, cabe pontuar que o termo “manifestação” evidencia maior afinidade com “protesto” do que com a linguagem da “instalação”. Da multidão emanam pulsão e imprevisibilidade. Para um neto de anarquista, a subversão e os desvios são palavras de ordem. Seria interessante trazer para este fórum de discussão as sucessivas bienais que sofreram atentados de pichadores, exigindo o reconhecimento de sua expressão e vitalidade. Em última instância, o que está em pauta é a livre germinação de “situações” incontroláveis em um espaço público que não somente prima por valores contemplativos, mas implica preocupações patrimoniais. Não há conciliação entre a multidão – seja ela das encostas dos morros ou das periferias – e o regime de uma instituição. Como combinar a presença coercitiva de vigias e câmaras nas salas de exposição e as instruções de Oiticica rumo à libertação do corpo? Em 1969, convidado a expor na Whitechapel Gallery, o artista consegue, além de reunir um conjunto significativo de sua produção, encontrar a “luva elástica para o criador livre enfiar a mão”. Ora, essa “luva elástica” é parte tanto da obra quanto de sua fruição: o programa de Oiticica não consiste apenas em “deixar tocar” os Bólides ou “deitar” no plano Éden, etapa resolvida na instituição hoje por meio da construção de cópias ou réplicas, mas consiste em garantir o processo de “descoberta do corpo”.

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As reproduções que vemos dos Ninhos no Museum of Modern Art de Nova York (“Information”, 1970, curadoria de Kynaston McShine), um ano depois, mostram que eles foram “habitados” e vivenciados. Na qualidade de espaços institucionais, a liberdade que instituições como Whitechapel e o MoMA proporcionaram naquele tempo desconcerta diante da realidade dos espaços públicos atuais. Obviamente, o ambiente mais vivo que Oiticica encontrou para apresentar suas invenções foi, ao longo de quase uma década, os dois lofts (Babylonests e Hendrixsts, batizados à maneira como o são lugares abertos ao público), onde exibia suas live performances e projetava seus live films. A fusão de filmes com performances deságua nos blocos de imagens e trilhas sonoras das Cosmococas, programa in progress, que Oiticica realiza com Neville d’Almeida.10 Vale refutar os equívocos que foram escritos sobre esse período, insinuando ideias de reclusão em ninhos-casulo, quando na verdade o artista estava antenado com o modus operandi eletrizante de toda uma juventude atuante no baixo SoHo de Nova York. Outro ponto importante: sendo programa in progress, como justificar o tratamento de “instalação” conferido às Cosmococas? A “manifestação ambiental”, exaustivamente conceituada nos escritos de Oiticica, continua ausente nas categorias normativas do display expositivo. O dia em que a instituição souber trabalhar a concepção participativa de Oiticica como parte e sine qua non de sua obra será dado um passe (“passe” e não “passo”!) descomunal. O Programa ambiental dispensa guias e manuais de programas educativos por constituir, em si, um autocaminho para a descoberta do corpo, sua finalidade máxima.

4. Estudos de casos, 27ª Bienal de São Paulo Dois vetores pedagógicos estruturam a 27ª Bienal de São Paulo para trabalhar com as questões antes apresentadas: “projetos construtivos” e “programas para a vida”. A bienal inaugurou oficialmente sem a exposição, sem uma lista de obras, sem uma lista de artistas. O início da 27ª Bienal aconteceu com um seminário em janeiro de 2006, não coincidindo, portanto, com a abertura da mostra em setembro. A ideia consistia em não ficar refém de uma mostra expositiva. O projeto curatorial esboçou cinco jornadas que, ao longo 10 Nunca é demais repetir que o projeto da 27ª Bienal não aderiu à tendência em voga em torno da “estética relacional” de Nicolas Bourriaud e que as afinidades aconteceram por acaso.

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do ano, discutiram conceitos-chave do Programa ambiental, alguns mais implícitos, outros derivados de uma leitura atualizada e mais transversal. Os seminários cumpriam o papel de evocar o regime conceitual de Oiticica sem forçar uma ilustração formal com sua obra. Essa ausência de obras foi a premissa curatorial para poupar os objetos artísticos do excesso de visibilidade (atitude que reforçaria uma retórica aurática do “criador”) e favorecer o campo até então negligenciado de um vasto léxico11 de palavras “novas” que, no meu entender, deveriam ser incorporadas ao vocabulário artístico, lembrando que Oiticica revisitou até os Metaesquemas para calibrar uma sintaxe ambiental. Irei agora tratar rapidamente de cada seminário da 27ª Bienal.12 Iniciar as jornadas de debates com uma homenagem aos trinta anos do desaparecimento de Marcel Broodthaers (1924-1976) pretendia trazer o Musée d’Art Moderne, Département des Aigles (1971) em plano de equivalência com uma iniciativa nunca concluída de Oiticica, Newyorkaises. Pensado para ser um livro de caráter enciclopédico, Newyorkaises, assim como o Département des Aigles, é um compêndio de experiências, oriundas de diversas fontes e diversos autores, resultando em uma ideia corrosiva de acervo já que tanto Broodthaers quanto Oiticica, aficionados por Mallarmé, contestam a produção de objetos de arte fadados a retroalimentar o sistema institucional. Atuaram sem se conhecer (foram contemporâneos um do outro) na confecção de um repertório próprio e provocando agenciamentos. Essa reflexão ganhou consistência na palestra de Ricardo Basbaum, enfatizando um “dispositivo de atuação”.13 O segundo seminário abordou uma disciplina que atravessa toda a trajetória de Oiticica, a arquitetura.14 O planejamento urbano sempre escapa da racionalidade moderna das pranchetas dos arquitetos. Da primeira maquete para um conglomerado de penetráveis aos Magic squares passando por diversas deambulações urbanas de ascendência situacionista, tudo 11 Minha tese de doutorado dedicou um volume ao glossário levantado nos escritos do artista. 12 Havia originalmente um sexto seminário, focando a relação de Hélio Oiticica com o cinema (quase-cinema, mais precisamente), mas esse não se concretizou porque a parceria com a Cinemateca não frutificou. Assim, alguns filmes foram exibidos no próprio edifício da bienal e outros em duas salas comerciais da cidade, sem o seminário. Cabe registrar aqui Gordon Matta-Clark, Ivan Cardoso, Jack Smith, Jean-Luc Godard, Júlio Bressane, Marcos Bonisson, mas também Gerry Schum e Len Lye, entre outros. 13 Cf. Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico. In: 27ª Bienal de São Paulo: seminários (São Paulo, Rio de Janeiro: Fundação Bienal, Cobogó, 2006), p. 57-74. O seminário “Marcel, 30” foi coordenado por Jochen Volz. 14 O seminário “Arquitetura” foi coordenado por Adriano Pedrosa.

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em Oiticica tangencia fortemente uma aspiração para o espaço público da cidade. Cumprindo essa tarefa, a 27ª Bienal trouxe um conjunto vigoroso de obras de Gordon Matta-Clark (1943-1978), a partir da pesquisa nos arquivos revelando linhas de cruzamentos e afinidades com o Parangolé-área. Em 1971, Matta-Clark liderou o boicote dos artistas americanos à Bienal de São Paulo, em repúdio à ditadura militar. Recusou participar como artista oficial dos Estados Unidos e seria apresentado pela primeira vez somente em 2006. Dan Graham foi outro artista importante no segmento que ressignificou a vida dos subúrbios em contrapartida à falência do projeto moderno. A saída do museu, endossada por ambos, corresponde ao slogan “museu é o mundo”,15 reivindicando espaços não consagrados para o fazer artístico e, nesse percurso, valorizando áreas degradadas à margem dos grandes centros. Nesse cenário, a questão que melhor exemplifica o horizonte de preocupações de Oiticica talvez seja a ambivalência que certos trabalhos mantêm entre o interior e o exterior da casa. Naqueles anos da contracultura, devassar a intimidade da esfera do privado fazia parte de um projeto crítico. A alternativa da vida em comunidade, um assunto que nos anos 1960 significava uma tomada de oposição contra a vida burguesa em família, constituía outro “programa para a vida”. Oiticica defendeu o “barracão”, “lugar-recinto-casa-ninho-roupa”, inspirado da arquitetura de favela e na espontaneidade do samba, como projeto ideal de comunidade. Matta-Clark foi também essencial no seminário dedicado à vida coletiva.16 Do restaurante Food a iniciativas sociais organizadas por artistas, esse núcleo talvez tenha sido o mais radical a esgarçar o sentido tradicional da arte. O Taller Popular de Serigrafía, criado em Buenos Aires (2002), foi uma resposta à crise do modelo de desenvolvimento capitalista na Argentina. TPS é o nome do coletivo que surge de assembleias de bairros para veicular pautas sociais, com aulas abertas para ensinar a técnica da serigrafia, gerando uma iconografia específica estampada e veiculada em cartazes, faixas e camisetas, assim como Oiticica imprimiu palavras de ordem em capas, estandartes e bandeiras. “Incorporo a revolta” é um exemplo emblemático. O TPS se notabilizou pela luta das trabalhadoras que recuperaram a fábrica Brukman depois de sua falência decretada. A estratégia de associar o trabalho artístico a uma apropriação técnica antes 15 Cf. artigo “Museum is the world”, que escrevi para o encarte no jornal Valor Econômico, caderno EU&, que acompanhou a curadoria da responsável pela representação francesa, Corinne Diserens, trazendo Jean-Luc Moulène e Anri para a 25ª Bienal de São Paulo (São Paulo, 01/01/2002). 16 O seminário “Vida coletiva” foi coordenado por mim.

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reservada a poucos mestres foi várias vezes adotada por Oiticica por meio de workshops, notadamente na Universidade de Sussex (1969), precedendo a montagem de um grupo de Ninhos. Pensar a existência de um artista vivo, porém não inserido na instituição clássica, autodidata e anônimo, é a pesquisa do Long March Project, reunindo cerca de 250 artistas locais e internacionais. Desde 2004, consistiu em refazer a caminhada da “revolução cultural”, visitando cada vilarejo e cada família, para resgatar a tradição de recortes de papel, com as práticas de contação de histórias e teatro de bonecos. O Programa ambiental reverbera na seguinte pergunta: “O que fazer com os chamados artistas populares que moram na China, cuja vida e profissão são baseadas em uma estética que não valorizamos?” Sua apresentação no Pavilhão da Bienal edificou um gigantesco arquivo, compilando dados relevantes para examinar a realidade chinesa, observando informações relativas a gênero, origem étnica, educação e situação econômica. Da mesma forma que o Long March Project tem uma perspectiva que valoriza o autodidata, a 27ª Bienal olhou para um Hélio Melo (1926-2001), artista, compositor e escritor nascido no Estado do Amazonas. Olhou também para María Galindo, militante anarcofeminista, fundadora do coletivo Mujeres Creando na Bolívia. Como enfrentar o machismo e a homofobia? O convite a María Galindo se fundamentou na farta produção textual de Oiticica contra uma arte “sexista”, ressaltando que Parangolé é experiência coletiva e manifestação performativa. O seminário intitulado “Reconstrução”17 retomou os trabalhos iniciados na jornada sobre arquitetura e antecipou algumas questões que surgiriam no bloco dedicado à vida em comunidade e ao ativismo social. Em síntese, a reunião desses três seminários permitiu atualizar uma série de problemas que Oiticica levantou no fim dos anos 1960, quando se depara com o assassinato de Cara de Cavalo. Não cabe aqui esmiuçar o marginal, mais uma aparição mítica nos escritos do artista, porém cabe recordar que a marginalidade e as diversas periferias do mundo globalizado ganharam uma representação enfática na 27a Bienal, seja na série dos Marcados de Claudia Andujar [série de retratos do povo ianomâmi, nos habitantes do Jardim Miriam com o projeto Jamac ou nos meninos do Morrinho, moradores da Favela Pereira da Silva, com Paula Trope, seja no show do grupo congolês Konono Nº 1, para citar exemplos rápidos. O seminário “Trocas”18 desenvolveu questões relativas ao papel do participador na obra de vários artistas, condição radical para certos projetos 17 O seminário “Reconstrução” foi coordenado por Cristina Freire. 18 O seminário “Trocas” foi coordenado por Rosa Martinez.

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tomarem corpo. A 27ª Bienal convidou o coletivo Eloisa Cartonera, uma casa editorial baseada em Buenos Aires então dirigida por vários artistas, dentre eles Javier Barilaro. No regime “ambiental”, interessava conectar o resultado ao processo de trabalho com os filhos de catadores de papelão, publicando em tempo real novos títulos durante o tempo de duração da exposição.19 Dulcinea Catadora é a célula brasileira que nasceu dessa iniciativa, consagrada hoje na fabulosa Feira Tijuana. Hoje, ninguém acreditaria nas dificuldades encontradas para permitir sua inserção no andar térreo do Pavilhão da Bienal. Além do display de estantes fixas, repletas de capas desenhadas, atuar como “célula viva” foi um desafio institucional. Mais solto do quinto seminário fez do Estado do Acre uma heterotopia que devolveria a floresta amazônica aos povos indígenas.20 O “adeus ao esteticismo”21 de Oiticica permite agregar a arquitetura vernacular das casas populares, e a geometria dos povos indígenas, a pintura de um ex-seringueiro e autodidata, Hélio Melo, e assim por diante. Tratava-se, desde o lançamento da plataforma de uma bienal em consonância com Marcel Broodthaers, de aproximar alguns artistas que trabalharam à margem da instituição artística. Alguns investiram na esfera privada da casa e das ruas para alcançar esse objetivo, propondo formas de trabalho em cooperação por meio de uma instituição apta a acolher encontros entre artistas e não artistas. As residências artísticas em três Estados brasileiros (Acre, Pernambuco e São Paulo) desempenharam uma função mobilizadora nesse sentido. Rirkrit Tiravanija, visivelmente próximo das premissas do Programa ambiental, é um dos artistas cofundadores de The Land Foundation (1998), projeto em processo na Tailândia que “funciona em todas as direções, desde o mundo urbanizado, globalizado e interconectado, até as comunidades rurais, locais, orgânicas e fora da grade”.22 Tiravanija esclarece, contudo, que seu trabalho sempre foi destinado à instituição mesmo criando “uma resistência em relação à estrutura (museus, galerias, cubo branco)”.

19 Cf. entrevista com Javier Barilaro. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/ rede/numero/rev-NumeroOito/oitoentrevistacartonera [último acesso: 4/06/2016]. 20 O seminário “Acre” foi coordenado por José Roca. 21 “Adeus, ó esteticismo, loucura das passadas burguesias, dos fregueses sequiosos de espasmos estéticos, do detalhe e da cor de um mestre, do tema ou do lema”. Oiticica, Hélio. “Crelazer”, Londres, 14/01/1969. 22 Cf. “Contra a nostalgia”, entrevista de Rirkrit Tiravanija para a autora. Disponível em: http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2772,1.shl [último acesso em 05/06/2016].

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5. Concluindo A aquisição gradual e anônima de campos de arroz, a serem cultivados como espaços abertos à comunidade e à experimentação, atividade contínua sem necessidade de aplicar noções de autoria, assemelha-se a outras formas espontâneas de cooperação coletiva. Para Oiticica, o exemplo por excelência é o samba praticado no Rio de Janeiro: independentes da apresentação de um desfile no Carnaval, seus ensaios seguem ininterruptos ao longo do ano.23 De certa maneira, os seminários e as residências da 27ª BSP, estendidos ao longo de um ano, funcionaram como “ensaios”, antecipando a formalização desse conjunto de ideias no formato expositivo. A 27ª Bienal não procurou abolir o artista, nem a arte, nem o mercado, porém “substituir o valor da individualidade autoral pela ação comunitária e o bem comum”. Ora, revendo a posteriori o empenho dispendido para manter vivo um acontecimento internacional centrado nas obras expostas na exposição, é preciso admitir que a duração da experiência e o exercício da liberdade – duas das solicitações fundamentais no Programa ambiental – só conseguem uma vida artificial dentro de uma instituição. Se concordarmos que Oiticica levou a instituição ao seu limite, propondo espaços labirínticos, com vivências sensoriais, deliberadamente abertos a situações de riscos e improvisos, houve uma ingenuidade curatorial na percepção de uma bienal não museológica, que pudesse atuar por meio de plataformas experimentais. Mesmo assim, por sua força natural, o legado de Oiticica permanece tão vivo quanto castigado (pelos próprios mitos que criou). Sua legitimação segue com firmeza a despeito dos problemas que colocou para a instituição e que esta, por sua vez, lhe traz hoje. Se estamos reunidos para discutir o mito da instituição no âmbito de sua obra é porque esse artista abalou de forma inédita, profunda e irreversível, o que entendemos por uma arte maior, e o fez sem concessões a esteticismos formalistas, como única manifestação legítima da sensibilidade, com desdobramentos em esferas marginais (outro termo interpelado no presente seminário), em redes informais e campos transdisciplinares que ignoram a consagração da crítica. O Programa ambiental ecoa na periferia dos centros urbanos (como a Maré e a Rocinha, para dar dois exemplos atuais no Rio de Janeiro), capaz de arregimentar grupos que se comunicam em tempo real, usando desde a pichação (técnica que vários autores remetem às inscrições das cavernas) às mídias digitais. Nada mais legítimo, para citar apenas um exemplo, que o fenômeno do funk que ganhou espaço “sem a ajuda da indústria cultural estabelecida”.24 23 Cf. Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 30/05/1979. Número de tombo: 0080/79. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/programaho/ 24 Vianna, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. 282


A arte como campo possível para resgatar uma humanidade perdida, a arte como instância restauradora da harmonia, a arte contra a razão instrumental – sim, mas para quem? Segundo Bürger, se acreditarmos em apenas um modelo de instituição (e não em uma pluralidade de manifestações), permanecemos pagando tributos à sociedade burguesa. O erro tático da 27ª Bienal, vista com dez anos de distância, foi menosprezar o berço empresarial da Fundação Bienal, cujo mentor, Francisco Matarazzo Sobrinho (o Ciccillo), importou para a São Paulo dos anos 1950 o modelo da Biennale di Venezia, baseada em exposições universais. A impossibilidade da Bienal de São Paulo atualizar sua agenda e seu modus operandi se deve a sua intrínseca origem com ideários modernos, notadamente com a museificação do novo. A Fundação Bienal se insere na ideologia burguesa denunciada por Bürger e, nesse sentido, embora não seja um museu strictu sensu, suas ambições foram historicamente pautadas pela vinda de artistas de renome internacional. A tentativa de testar o Programa ambiental na instituição constituiu uma temeridade, muitos projetos não puderam ser levados a cabo devido a entraves jurídicos, porém a despeito das adversidades encontradas, e a despeito de ter sido chamada de “bienal do terceiro setor”, algumas conquistas continuam repercutindo. Será que não poderíamos pensar uma instituição movente, isto é, que se adapta, absorve e reconfigura a obra de arte do mesmo modo que cada época tem uma produção artística que lhe é própria?

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Utopia Tripartida Brasileira = Terra + Sociedade + Luta HĂŠlio Oiticica, Lygia Clark e Oscar Niemeyer Luiz Guilherme Vergara Professor do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense


Introdução Brasil Diarreia de novo. [...] Hoje cultiva-se o policiamento instituição-cultural, no Brasil. Cultivam-se as tradições e os hábitos ( falam-se em perigos + perigos, mas a maioria corre o perigo maior: o da estagnação desse processo que parece sofrer retrocessos ou borrações no seu crescimento [...]1

Por onde começar, senão pela referência ao estado de diarreia que toma conta do Brasil hoje. Ao mesmo tempo, invoca-se como pertinente o legado crítico de Oiticica como vontade de cura, “aspirina” pela proposta de um “estado de invenção” ou luta contra a curra, ou não “convi-conivência” 2 no contexto social e político nacional hoje. O que significa expor será a questão que permeará todo este documento. Impossível apresentar uma proposta curatorial que reúna três grandes afluentes das raízes utópicas e antropofágicas brasileiras – Hélio Oiticica, Lygia Clark e Oscar Niemeyer, sem atravessar a cortina de fumaça do Brasil hoje. Primeiramente, a forma arquitetônica circular com rampas em espiral já incorpora como fenomenologia do redondo e subterrâneo, em ressonância com as especulações espaciais e éticas do Abrigo poético de Lygia Clark de 1964. 1

Oiticica, Hélio. Depoimento “Brasil Diarreia”. In: Oiticica, Cesar Filho; Cohn, Sérgio; Vieira, Ingrid. Hélio Oiticica. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 113. Publicado originalmente em Ferreira Gullar (org.). Arte brasileira hoje. São Paulo: Paz e Terra, 1973.

2

Ibid., p. 112.

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[...] a condição brasileira, mais do que simplesmente marginal dentro do mundo, é subterrânea, isto é, tende e deve erguer-se como algo específico ainda em formação; a cultura (detesto o termo) realmente efetiva, revolucionária, construtiva, seria essa que se erguia como SUBTERRÂNEA (escrevi um texto cm esse nome, em setembro 69, em Londres); assume toda a condição de subdesenvolvimento (sub-sub), mas não como uma “conservação desse subdesenvolvimento”, e sim como uma ... “consciência para vencer a superparanoia, repressão impotência...” brasileiras [...].3

O PN 15 será literalmente a obra central desta exposição, pois será construída no centro do museu. Como único Penetrável de Oiticica circular, parte da série Subterranean Tropicália projects (1971),4 sua presença ambiental será geradora de irradiações nucleares de performances espontâneas que estarão colocando em questão tanto a natureza da arte como também do museu. É com essa série de penetráveis também chamada de Conglomerados que Oiticica, então morando em Nova York, reposiciona como síntese da sua trajetória “o desenvolvimento da desintegração de conceitos formais (começando pela própria ‘pintura’) da arte, e acima de tudo questionando a natureza da ‘obra de arte’”. Nessa declaração percebe-se um sentido anacrônico de desenvolver artisticamente pelo avesso e fissuras, pela desintegração de conceitos e valores concentrados na virtuose do fazer objetos, por onde a potência ética e dimensão infinita é empoderada pelo descriar da forma. Essa posição e vontade construtiva enunciada por Oiticica já antecipava tendências críticas da arte que problematizam a natureza da obra em sua experiência de recepção expandida como criação e vice-versa. Desde então, várias instalações ambientais vêm reconfigurando o papel do artista como propositor de arquitetônicas multissensoriais de engajamentos públicos. Da mesma forma convergem as práticas curatoriais e artísticas para o sentido político e ético do cuidar do lugar da arte como laboratório de acontecimentos para múltiplas narrativas. Dessas novas zonas (inter)penetráveis de criação-recepção de narrativas, pioneiramente presentes nas memórias conceituais da Subterranean Tropicália, emergem também os dilemas éticos e estéticos para as práticas curatoriais, artísticas e pedagógicas contemporâneas. Três indagações acompanham essa abordagem. Por que museu de arte quando o contemporâneo é regido pela desintegração da atenção isolada no objeto? O que 3

Ibid., p. 117.

4

Documentação do Projeto HO. PN15 – Série Newyorkaises. Título do Projeto: subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. Local de concepção: Nova York. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996.

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significa expor? Quando o museu assume a condição experimental das práticas ambientais, não estaria também invocando uma perspectiva de escola ética de arte?

Arqueologia da criação

Dimensão infinita – utopias ao rés do chão5 PN15 – Série Newyorkaises . subterranean TROPICÁLIA PROJECTS6 Local de concepção: Nova York Ao instalar esse penetrável como território de vivências que ratificam a posição ética de Oiticica de “negação do artista como o criador de objetos, mas que se torna um propositor de práticas”, a própria instituição museu e o papel das interfaces entre arte-situamento e sociedade se alinham a essa desintegração de conceitos formais. Ao mesmo tempo, corporifica-se o espaço expositivo como ágora, praça e mundo, pois que essa série Subterranean foi projetada para o Central Park de Nova York. Os ambientes circulares do PN 15 foram descritos por Oiticica para serem ocupados por proposições de diferentes tipos de performances, público e indivíduos espontâneos, planejadas para grupos como formas críticas sobre o problema da alienação relacionado ao contexto brasileiro, que ele chamou de “metaperformances”. Essa forte sinergia com a crise atual e a vocação espacial do MAC não é apenas formal e precisa ser aprofundada como “posição ética” que parte da vontade construtiva ambiental e dimensão infinita de Hélio Oiticica, em impressionantes aproximações com os Abrigos poéticos e Trepantes de Lygia na arquitetura redonda de Niemeyer. É daí que nasce também uma exigência curatorial de cuidados com as micropolíticas, como utopias ao rés do chão que se alinham à fenomenologia 5

“Utopias ao rés do chão” foi o título do texto para catálogo da exposição “Sudários. Carlos Vergara”, no MAC de Niterói, 2013.

6

Resumo Série Conglomerado subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. Texto enviado para Universidade de Buffalo, na qual Hélio Oiticica descreve seus projetos PN10, PN11, PN12, PN13, que formariam o conglomerado subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. Esse grande projeto havia sido pensado para o Central Park de Nova York. São penetráveis que preveem a possibilidade de performances. HO anuncia um terceiro projeto (o PN15). Junto com a descrição, menciona a inclusão de plantas e fotografias e maquetes. As performances não foram ainda explicitadas porque, segundo HO, dependem do local em que os projetos serão construídos. In: Projeto dos Subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. PN15 – Série Newyorkaises. Título do Projeto: subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. Local de concepção: Nova York. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996. Disponível em: http://54.232.114.233/extranet/ enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=498&tipo=2

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hermenêutica de Paul Ricoeur. Com o legado desses artistas identificam-se conceitos que estão no avesso da superfície formal da arte e, portanto dos museus, ainda centrados na produção, exposição, apreciação contemplativa de objetos. Outrossim, a “dimensão infinita” é adotada como posição que se desenvolve a partir da desmaterialização ou desintegração do objeto pelas relações do corpo/comportamento e a construção do lugar de encontro e criação entre arte – artistas propositores e sociedade em “metaperformances” interpretativas de zonas de contato de si mesmos como o outro. Esta proposta curatorial concentra-se nas quebras do mito desses três artistas pelo acolhimento e pertencimento de suas estruturas de comportamento e arquitetônicas encarnadas no corpo, terra e luta (ou invenção). Arquitetônica aqui é adotada como conceito de Bakhtin,7 que se realiza pela exigência da experiência do outro na criação, não como uma forma dada para um espectador passivo, mas um leitor móvel, como coadjuvante herói da trama do unir partes fragmentadas de sujeitos e sociedade, que experimentam por si mesmos a construção de um texto ou o acontecimento da arte. Hélio Oiticica na sua apresentação conceitual da série Subterrânea Tropicália Projects resume sua trajetória partindo dos penetráveis em 1959, sintetizada como tendência e desenvolvimento de “desintegração de conceitos formais [...] questionando a natureza da obra de arte” ao mesmo tempo em que aponta para uma condição experimental de comportamento e recepção como “forma de contato não contemplativo”. Todo o campo de relações e sentidos de criação e recepção , autor-artista e espectador participante convergem para os estados de proposição, “propor o propor”, confirmando a radicalização e coerência conceitual voltada ao desejo de transformação e dissolução da arte como experiência. Ao mesmo tempo, pelas metaperformances, configura um espaço crítico não literário sobre o problema da alienação relacionado ao contexto brasileiro. [...] buscando por uma forma de contato não contemplativo; a participação do espectador (participante) tocando, vestindo, penetrando o lugar em si, desenvolvido no sentido real de proposições (propor propor): algo como a prática do self espontâneo, não ritualista, como uma posição permanente de antiarte; a negação do artista como o criador de objetos, mas que se torna um propositor de práticas nas quais as ideias e descobertas são abertas e sugeridas diretamente, e realizadas no curso de tais práticas. [...] minha intenção original foi de criá-los como comentário crítico, ao 7

Bakhtin, M. M. Towards a Philosophy of the Act. Texas: The University of Texas Press, 1999.

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máximo possível não literários, sobre o problema da alienação relacionado ao contexto brasileiro, e buscando por relações próximas com os problemas universais; eu penso que estas áreas de performances planejadas devem assumir de fato os problemas relacionados com qualquer que seja o grupo, heterogêneo ou não, que estão sendo colocados no projeto8

Na proposição da série Subterranean (que inclui o PN15), Oiticica revê seus “estados de invenção” dos anos 60 já como proposição de metaperformances e comentários críticos contra a alienação do contexto brasileiro, apontando para um questionamento sobre a natureza da arte a partir do deslocamento do foco isolado no objeto, para a tendência ao ambiental, à vontade construtiva nas formas de criar e estar coletivo que amadurecem como “posição ética”. Ainda hoje, a partilha da criação e a recepção artística experimental se apresentam como grandes dilemas críticos e pragmáticos para o sentido público dos espaços e instituições culturais. Seriam esses os constituintes éticos dos cuidados curatoriais para se ampliar e instituir essa dimensão metacrítica e metaperformática hoje? O que se coloca como o mito das instituições seria a necessidade de cuidar da territorialização e produção experimental da arte contemporânea em um panorama nacional de anemia grave do sentido e política cultura pública brasileira? O que significa expor a produção artística experimental/ambiental para um público diversificado hoje submetido a um estado extremo de alienação e 8

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Oiticica, Hélio. In: Subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. In: Projeto dos Subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. Série Newyorkaises. Título do Projeto: subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. Local de concepção: Nova York. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1997, (p. 143). Texto em inglês. Tradução livre. HELIO OITICICA: subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. This series of projects relate to my former work from 1959 on, in that way that they are a consequence of the invention of what I call penetrable (1960 on); all my work from that period on has been a development of the desintegration of formal concepts (starting with that of ‘painting’ itself ) of art, ultimately questioning the nature of the ‘work of art’, and looking for a form of non-contemplative contact ; the participation of the spectator (participator) touching, dressing, penetrating the actual pieces, developed towards actual propositions (propose to propose): something similar to practices of the spontaneous self, non-ritualistic, as an actual anti-art permanent position; the denial of the artist as a creator of objects, but turned out into a proposer of practices, in which ideas and discoveries are opened and barely suggested, and realize themselves in the course of such practices. […] a) of project 1 […] my original intention was to create them as a critical commentary, as mostly non-literary as possible, on the problems of alienation related to brazilian context, and searching for close relations with universal ones; I think that those planed performances areas should take the actual critical problems related to whichever group, be it heterogeneous or not, is putting on the project: they should be a kind of meta-performances.


acomodação consumista da cultura? Como atualizar ou invocar a atualidade do legado experimental e relacional de Oiticica-Clark sem um compromisso com uma terapêutica social e institucional no contexto arquitetônico do MAC, assumindo sua vocação simbólica com uma trilogia epistemológica e ontológica de sinergias e ressurgências com a utopia antropofágica das raízes brasileiras? Para tanto, o museu é tomado e proposto como laboratório para uma fenomenologia existencial e hermenêutica dos estados de estar juntos, da vontade construtiva e dimensão infinita que incluem a pracialização das “metaperformances” da série Subterrânea, e suas variações em práticas do comum projetadas como tendências da contracultura, do playground.9 O museu assume seus espaços como territórios de jogos e vivências, traduzindo aqui a metáfora para o seu sentido simbólico e público de utopias ao rés do chão. Estaríamos hoje revisitando os contextos dos anos 60-70 quando os programas ambientais eram propostos como tendências críticas e experimentais como formas de ativações de espaços públicos e parques, tais como os Domingos da Criação no MAM Rio em 1971, celebrando o jogo, o lúdico e o coletivo? Ainda hoje, demanda-se um desafio às instituições, com posicionamentos críticos, artísticos e pedagógicos contra a estagnação dos museus de arte regidos ou submetidos pelos modelos estéticos contemplativos neoliberais. Nesse sentido, também, o contemporâneo é anacrônico ao estado dominante de alienação enquanto se assume uma proposta experimental voltada a exibir o intangível estado “suprassensorial”, ainda como antecipação utópica de sua ressignificação como laboratórios do futuro ao rés do chão. Que implicações e mudanças de posições e princípios curatoriais, pedagógicos e artísticos estão em jogo? Que mudanças ou proposições foram ou não suficientemente experimentadas, ainda hoje representam um relicário e repertório do legado de vivências existenciais e coletivas de luta, crelazer e suprassensorial? [...] o sentido de Suprassensorial tornou-se um ponto claro para mim, sinto que a vida em si mesma é o seguimento de toda experiência estética, como uma totalidade [...] um “retorno ao mito” desde a formulação do Parangolé, tornaram-se uma necessidade real, urgente e irreversível. Sinto que a ideia cresce para a necessidade de uma nova comunidade, baseada em afinidades criativas, apesar da diferença cultural ou intelectual, ou 9

Playground foi também um projeto coletivo coordenado por Palle Nielsen para o Moderna Museet como ativismo social chamado também Model for a Qualitative Society. Estocolmo, 1968.

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mesmo sociais e individuais. [...] todo tipo de experiências que poderia se desenvolver em um novo sentido de vida e sociedade [...]10

Acompanhando a dissolução do projeto concreto pelo fim do primado atomista da produção artística, essas indagações compõem uma fundamentação curatorial pautada pela necessidade de situamento da experiência estética. Em outras palavras, todo programa ambiental e posição ética é voltado para uma arquitetônica da geografia de ações (Milton Santos) que simultaneamente invoca a desterritorialização e a reterritorialização deleuzeana de devires. Daí o campo de vivências espaciais é como elo de conectividade encarnado como consciência fenomenológica das relações espontâneas, não diretivas, que se dão nas metaperformances do estar junto, no acontecimento existencial hermenêutico da compreensão de si como o outro ser espaçotemporal coletivo. “Propor propor”, é como reinventar a prática do tempo zero, antecipação de futuros inaugurados através das estruturas de comportamento (inter)penetráveis, da participação coletiva na criação de si, sem deixar de trazer o que Oiticica projeta como dilatamento de capacidades sensoriais habituais. O “Aparecimento do Suprassensorial na arte brasileira” é resgatado não como histórico mas como metalaboratório do público na experiência de si em proposições cada vez mais abertas e espontâneas. é a tentativa de criar, por proposições cada vez mais abertas, exercícios criativos, prescindindo mesmo do objeto tal como ficou caracterizado [...] São dirigidos aos sentidos, para através deles, da “percepção total”, levar o indivíduo a uma “suprassensação”, ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais, para a descoberta do seu centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano.11

Não é apenas do debate desgastado e datado sobre o fim do espectador que se propõe rever esse legado já ultraexposto. Como utopias ao rés do chão, o que está em jogo é a formação de um território de sinergias com o compromisso de se atualizar pela experiência não literária a metacrítica ao contemporâneo. Sem deixar de corresponder à metafísica e à hermenêutica fenomenológica da dimensão infinita, que embasa a posição ética e o aparecimento do suprassensorial de Oiticica. 10 Oiticica, Hélio. Carta a Guy Brett, 2 de abril de 1968. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1997, p. 135. 11 Oiticica, Hélio. O aparecimento do supra-sensorial na arte brasileira. In: Hélio Oiticica (catálogo). Op. cit., p. 104.

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“Propor propor” justapõe trajetórias de desconfortos críticos e estéticos dos ensimesmismos sem outros. Pelo contrário, como arquitetônica propositiva da descriação e da respiração da arte concreta de Lygia Clark no seu deslocamento para a construção do self e seus objetos relacionais para habitar o continente-ilha da própria arquitetura casulo – concha de Niemeyer para o MAC. Para além do mito desses artistas são propostas de quebradas subterrâneas, microgeografias ao rés do chão, como zonas suspensas do contemporâneo, da defesa por contextos públicos do comum, do contato com o corpo-sentidos para a transformação, dobras e desdobras entre arte e antiarte, museu e antimuseu. É preciso também reconhecer os obstáculos que se impõem ao contemporâneo de ir além da condição de seu próprio mito conceitual de espetáculos sem espetacularizações, de exposições de conceitos sem corpos, sem dar densidade e temporalidade para o acontecimento existencial e social do acolhimento da arte como ato público de ser arte total no museu-mundo.

Oiticica além do mito I Em 1954, Hélio Oiticica, então com 17 anos, observa como as formigas12 se desviavam da ponta de seus dedos. Com mais atenção ainda descreve minuciosamente como variam o momento e a distância do desvio da formiga da ponta do dedo de acordo com o dedo, do indicador ao polegar. Imagina-se com essa descrição que o jovem deva estar ajoelhado ao rés do chão. Mais ainda, ele é o sujeito-pesquisador e pesquisado interagindo com a sua mão, seus dedos, enquanto observados como uma experiência sensorial da extensão de si mesmo como estrutura de intervenção no comportamento e afetos no mundo dos movimentos coletivos ou sensoriais das formigas – outras de si mesmo em ação. Sem dúvida, o jovem Oiticica estava também intuitivamente a palmear uma inteligência sensorial ou “suprassensorial” da parte das formigas. Nessa desconstrução, Oiticica já estaria inaugurando o seu porvir científico (como legado do seu pai José Oiticica), sendo a experiência registrada pela escrita encarnada e fluente, o princípio fenomenológico que acompanhará toda a sua trajetória de artista – pesquisador, inventor de programas, estruturas de comportamentos, penetráveis, palavras-conceitos e proposições participativas. 12 Hélio Oiticica registra em texto datado de 31 de março de 1954. Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salomão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 15.

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Esse relato de Oiticica, observando o comportamento das formigas em reação aos seus dedos, já estaria apontando para as bases fenomenológicas do pesquisador propositor, o curador e artista, encarnados nas experiências das interfaces multissensoriais entre arte – estruturas de comportamento e sociedade.

Oiticica além dos mitos II Em 1996, depois de quase 20 anos de convívio com o sobrinho-neto Hélio Oiticica, em um grupo de estudos espiritualistas13, Vera Oiticica soube que eu estava dirigindo a Divisão de Arte Educação do MAC Niterói e também desenvolvia pesquisas no recém-inaugurado Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Foi quando então ela me relatou algumas memórias da infância de Hélio. Uma das que mais me impressionaram foram os desafios que ele, com apenas oito anos, fazia às visitas na casa de seus pais com o Guia Rex.14 Ele havia decorado as rotas das linhas de ônibus e pedia aos visitantes que escolhessem qualquer número de linha que ele descreveria o itinerário por onde o ônibus passava. Essa lembrança compartilhada da Vera também se completou com duas outras que dizem respeito ao seu pai (da Vera), o mestre Oiticica, avô do Hélio. Todos o conhecem como o anarquista, mas poucos como o educador, inventor de uma gramática. Muito menos o conhecem como um mestre da Rosa Cruz. Nessa ocasião pude (re)conhecer nas lembranças de vários membros desse grupo as aulas e meditações do mestre Oiticica. Algumas delas podem também fazer sentido para esta arqueologia da infância do Hélio. O mestre Oiticica costumava andar por uma hora em silêncio nas ruas, sem cumprimentar ninguém antes das aulas – o que já seria um delírio ambulatório meditativo. Como educador presente na alfabetização familiar do próprio Hélio, conta ainda a Vera que seu avô Oiticica inventou um exercício para as revisões gramaticais da escrita dos textos como percurso, sublinhando com círculos, losangos e setas os sujeitos, verbos e predicados de cada frase. Pode se imaginar como escrita e texto se transformavam graficamente em mapa e labirinto de percursos cognitivos espaciais na mesma medida em que se leem se transformam em movimentos simultâneos de transportes entre significação e sentidos. É possível identificar de 13 Fundação Cultural Avatar em Niterói. 14 Oiticica Filho, Cesar. EncontrHOs. In: Oiticica, Cesar Filho; Cohn, Sérgio; Vieira, Ingrid. Hélio Oiticica. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 9.

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imediato essas duas presenças do avô Oiticica nos “estado de invenção” de Hélio, desde a sua infância e aquisição corporal da linguagem, na sua consciência de movimento espacial no ato de fixação do pensamento pela escrita indissociável dos movimentos do espírito e corpo. A prática do espaço se funde ao pensamento como estruturas fenomenológicas da escrita. Assim a prática da linguagem desde a infância de Hélio é também ontológica em que o estado de invenção e também de compreensão de si. Aqui já se podem reconhecer como arqueologia da criação do artista os atributos fundadores dos estados de invenção da arte de Hélio. Não há como não se perceber “caminhando” ao se ler os seus textos, da mesma forma que se experimentam seus penetráveis, cruzando um labirinto espacial de ideias com setas e junções, invenções de palavras e intertextos, como prática existencial da escrita espaçotemporal encarnada em uma metaescrita corporal. Aspirar ao grande labirinto é uma essência da dimensão infinita e metafísica de Oiticica como um transbordamento ontológico de ser na compreensão de si mesmo inseparável da inscrição e escrita reflexiva da prática espacial da existência como ato de linguagem total no mundo-vida. Dos penetráveis à capa mágica do parangolé; dos bólides ao programa ambiental, o delírio ambulatório compartilhado urbano com Lygia Pape; o “aparecimento do suprassensorial”; em todos esses estados de invenção podem-se reconhecer as transbordas para uma gramática cognitiva e motora fenomenológica no mundo indissociáveis do complexo encontro com a invenção e prática ontológica da linguagem como força e sentido da vontade construtiva existencial ou de si mesmo no mundo. Outra unidade tripartida que emerge nessa breve arqueologia da criação de Oiticica é a confluência e síntese entre ciência, arte e uma metafísica do suprassensorial como dimensão infinita. Ainda com 22 anos (1959) escreve: As formas originárias vêm do incomensurável infinito e geram todas as outras. São estáticas, pois as estáticas possuem mais força. São simétricas e transcendem a tudo que se pode imaginar. Concretamente o círculo se enquadra nesses princípios. É a forma transcendente por excelência; é a enunciadora do mais profundo silêncio; é a síntese do próprio Cosmos: por isso, possui um extraordinário vigor.15

Em oposição ao mito, Hélio traz sua invenção da arte para as microgeografias do corpo-suprassensorial na relação com a terra-estrutura-cor 15 Oiticica, Hélio. O problema dos opostos. Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salomão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 15.

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como condição de vontade construtiva. A habilidade de síntese diante do “problema dos opostos” é registrada por ele de forma conceitual e experimental simultaneamente. O núcleo veio revelar, ou melhor, acentuar o problema dos opostos nessa expressão e particularmente dentro da minha estética (sentido estético). O aparecimento de sentidos opostos se dá entre o sentido estrutural e o sentido da cor (desenvolvimento nuclear). A estrutura do núcleo aparece e se gera num sentido totalmente arquitetônico; dir-se-iam estruturas paredes, às quais, acrescentando teto, passariam a ser protocasas.... Integrando-se a essa estrutura rigorosamente arquiteturada, está o “sentido da cor”, resolvido aqui pelo “desenvolvimento nuclear”.16

Nessa fase pré-golpe militar e colapso político existencial global, tem-se um Oiticica mergulhado na elaboração das estruturas experimentais de “compensação mútua das polaridades” entre uma lógica da estrutura (que rompe com o quadro) e sua perturbação espaçotemporal pela dimensão “cor-luz” ou “luminosidade anterior da cor”. Em sua descrição, pode se observar palavras-conceitos-chave da física-biologia, como desenvolvimento nuclear atrelado ainda a uma lógica arquitetônica. O que Deleuze e Guattari elaboram como causalidade reversa17 pode ser adotado para a compreensão e a proposição do lugar relacional de convergências e conciliações mútuas de opostos. A estrutura, propõe o artista, dissolve-se em vibração – irradiação da “cor-luz” ou dissolução do espaço, e simultaneamente “tomou corpo” como fenômeno do “desenvolvimento nuclear, que é na verdade o ponto de ligação indissolúvel em que um não existe sem o outro”.18 Porém, a questão curatorial é também vinculada ao pragmatismo da prática pública da arte como fenomenologia hermenêutica da possibilidade da experiência artística ser também da invenção de si – e da própria instituição. Como a instituição pode assumir o cuidado “com as formigas” ao rés do chão no percurso de processos e proposições experimentais que revertem lógicas de causalidades e reversibilidades entre conceito-experiência 16 Ibid., p. 39. 17 Deleuze e Guattari desenvolvem o conceito de causalidades reversas : “Physics and biology present us with reverse causalities that are without finality but testify nonetheless to an action of the future on the present, or of the present on the past, for example, the convergent wave and the anticipated potential, which imply an inversion of time. (p.431). In: Deleuze, Gilles; GuattarI, Félix. A Thousand Plateaus. Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003. 18 Oiticica, Hélio. O problema dos opostos. Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salomão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 39.

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como síntese de uma fenomenologia do encontro paradoxal ou sistêmico dos opostos, estrutura expositiva, discursos e proposições arquitetônicas de interfaces multi e suprassensorial, articulando o que Oiticica chama de “compensações mútuas”? Quando a experiência estética é deslocada do objeto para o acontecimento espaçotemporal a vontade construtiva imanente também se abre para outra ordem ou campo gravitacional da existência-vida e metafísica, indissociável do seu contexto – acolhimento e hábitat. Nesse sentido a dimensão epistemológica e ontológica funda uma complexa produção de cuidados para o acontecimento ambiental de arte e vida, sendo a quebra dos mitos e hierarquias de poderes e saberes da instituição também desafiada pelo experimental. O desafio de se expor Oiticica, como trajetória do pesquisador-propositor e sujeito da linguagem em ação, é também propor ao público o vínculo entre experiência e compreensão de si pela invenção. Em outras palavras, essa complexidade paradoxal justapõe constantemente o que Paul Ricoeur aborda como fenomenologia hermenêutica.19. É dessa arqueologia da criação que se resgata o conflito de interpretações de Ricoeur, que, por sua vez, aplica-se como posição ética para a investigação ampliada do cuidado curatorial com as relações de significação e compensações mútuas. As instalações ambientais do legado experimental de Oiticica quando dispostas ao público exigem posicionamentos éticos com os cuidados nas interfaces para o desenvolvimento nuclear (formigas ao rés do chão) da dimensão suprassensorial, ou multissensoriais. Cruzam-se camadas da primeira instância fenomenológica da experiência sensorial e semântica com a dimensão infinita, existencial e reflexiva ontológica. [...] seria a vontade de uma posição inteira, social no seu mais nobre sentido, livre e social. O que me interessa é o “ato total de ser” que experimento aqui em mim – não nos atos parciais totais, mas um “ato total de vida”, irreversível, o desequilíbrio para o equilíbrio do ser. [...] A antiga posição frente à obra já não procede mais – mesmo nas obras que hoje não exijam a participação do espectador, o que propõem não é uma contemplação transcendente mas um “estar” no mundo.20

O que Oiticica expressa como posição diante da obra é também campo aberto para a polifonia ou o próprio conflito das interpretações elabora19 Ricoeur, Paul. O conflito de interpretações. Hermenêutica fenomenológica. Porto-Portugal: RËS, 1988. 20 Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salomão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 74.

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do por Ricoeur. Na condição participativa como “ato total da vida” ficam dispostos simultaneamente a arte e antiarte, como vontades mútuas de potência – estética e existência. Oiticica estaria também enunciando em sintonia com a hermenêutica fenomenológica, como Ricoeur aponta para a relação entre a potência e o sentido, entre a vida portadora de significação e o espírito como conector de sentidos. A culminância da arte total é a própria vida proposta então como significante em que o espírito, corpo-alma na consciência perceptiva, é o agente conector. Como territorializar a arte, em sua potência frágil, se possível, como unidade tripartida equivalente ao que Euclides da Cunha aborda como Terra-Homem-Luta? Sem que a instituição deixe de ser mito para ser terra, pertença e participação do indivíduo na sua totalização como brasileiro, formiga e humanidade. Daí expor é promover atualidades e ativações de sinergias do tempo do simbólico e a passagem das décadas, para a sociedade vestir o projeto Parangolé é também tomar consciência do outro de si.

Unidade Tripartida Euclideana – Terra-Homem-Luta Acrescentam-se aqui as dimensões Terra-Homem-Luta, como arqueologia e teleologia dessa crise recorrente brasileira encarnada e antecipada na percepção e transe de Os sertões de Euclides da Cunha. De Os sertões à “Posição ética” de Oiticica, o contemporâneo nacional e global está atravessado de camadas históricas soterradas, subterrâneas de uma consciência coletiva fragmentada que por pulsações e choques faz contato com as ramificações e enraizamentos da alienação de si mesma. Cabe nesse momento de tantas incertezas e riscos de regressão das conquistas sociais brasileiras resgatar através dessa confluência ética, ambiental e arquitetônica entre Oiticica, Clark e Niemeyer, a referência a Euclides da Cunha na sua descoberta de si mesmo (nós mesmos brasileiros) como “o mestiço de três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos”.21 O problema de Canudos, em Os sertões de Euclides, está na atualidade repressiva e regressiva violenta em processo de guarda e vigília da liberdade condicional brasileira como semente e raiz tripartida do Brasil entre a Terra, o Homem e a Luta. É justamente pela Subterranean Tropicália que se recoloca o MAC da intuição de Niemeyer nessa zona marginal e microutopia concreta 21 Euclides da Cunha apresenta de forma contundente “a complexidade do problema etnológico do Brasil”. Cunha, Euclides. O homem. Os sertões. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 73.

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para incorporar à projeção de mitos (vadios) brasileiros dos imaginários recorrentes na forma do herói marginal, de Lampião a Macunaíma, Bispo do Rosário; de Glauber Rocha ao próprio Hélio Oiticica. A síntese tripartida de Cunha para o Brasil de Canudos envolvendo terra-“humanidade”-luta (substituindo Homem por Humanidade) é resgatada como eixo ético-estético curatorial para abordar as diferenças e distâncias dos diferentes Brasis unidos ou fragmentados como habitantes da adversidade. Principalmente em tempos de luta como hoje, ressurgem as miragens ou ressonâncias de utopias ao rés do chão dos Sertões, Éden, Tropicália, assim como Casa corpo e Abrigo poético, na Terra Brasilis. Tal como Cunha, os estados de invenção projetados em Subterranean por Oiticica culminam em formas éticas de reterritorializar a arte, devolver para a terra, “incorporar a revolta”, que devem ser cuidadas como estruturas de transformações de comportamento e consciência do sentido individualista e alienado para a prática instituinte experimental do coletivo – comum – da própria instituição pública para a arte contemporânea. As visões de Niemeyer para o MAC, de Oiticica para Subterranean e de Clark para o Abrigo poético fundam territórios redondos encarnados de sínteses e desafios de pertencimento do futuro antecipado de lutas para além de seus mitos. Como atender aos cuidados éticos com o sentido público da arte e cultura brasileira tal como a ordem tripartida brasileira enunciada por Euclides da Cunha – Terra-Humanidade-Luta? O sentido bakhtiniano de arquitetônicas está igualmente presente para Oiticica e Clark como viradas da arte concreta para as estruturas (inter) penetráveis ambientais e relacionais com bases em interações sensoriais ligadas ao corpo, habitar, jardins coletivos e intervenções urbanas. Ambos buscavam simetricamente do corpo à cidade por novas relações suprassensoriais, construções coletivas de células comunitárias, 22 que entram em confronto com o próprio mito contemplativo da instituição. Duas ordens gravitacionais de mitos operam nessa confluência ética no MAC como um páthos, um coincidatio oppositorum, diante dos conflitos da condição social e cultural brasileira. De um lado sendo uma instituição pública pode ser vista como reafirmando um mito fundador da sociedade brasileira que modela por filtragem e alienação da realidade, quase floresta (em seu sentido antropofágico), sobre a qual se impõe por crenças e modos de percepção do mundo subalternas às doutrinas civilizatórias dos colonizadores e, por conseguinte, alienantes de nós cada vez mais outros de si mesmos. 22 Oiticica, Hélio. The senses pointing toward new transformations. London, 1969. Itaú Programa Cultural. Disponível em http://54.232.114.233/extranet/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cd_verbete=4382&cod=625&tipo=2

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Por outro, o MAC chega a Niterói como uma caravela voadora imemorial, que coloca e transfere a todos para a experiência geográfica e simbólica da projeção de visões do paraíso já descritas por Sérgio Buarque de Holanda. 23 Aqui nessa vista se inscreve o palimpsesto de múltiplas temporalidades desde o mito do descobrimento à vista da Boa Viagem, ao deslocamento europeu-cristão dos jesuítas projetando uma utopia ou miopia do Éden (Evergreen), do êxtase da escrita de Pero Vaz Caminha em face “da fantástica geografia” da floresta, que sugere a imagem de paraíso com a simplicidade e inocência de seu povo, os nativos dessa terra sem pecados originais. O Programa ambiental e o Parangolé são retomados pelo PN15 – Subterranean Tropicália, como pontos de viradas fenomenológicas e hermenêuticas para uma posição ética curatorial e pedagógica que celebra o Brasil das utopias ao rés do chão – Terra-Humanidade (diversidade)-Luta. Assim, a “filosofia do ato” de Bakhtin ressignifica a dimensão ética do propor vestir a capa de arte e magia dos Parangolés, como “arquitetônica é algo-dado como algo a ser conquistado”.24 O que se experimenta e se incorpora é a transferência e transfiguração da potência de ser em ação significante como dimensão ontológica que se desdobra das estruturas semânticas e sensíveis da experiência artística. Como arquitetônica da criação se defende algo dado de possibilidade a ser conquistado, o estado de invenção e libertação. Todas as proposições de interfaces multissensoriais se oferecem como incorporações da vontade construtiva e o horizonte de aparecimento provável e possível do suprassensorial como transbordas simbólicas do corpo, terra e luta na experiência do sentido público da arte, além do mito. O ambiental é deflagrador de desafios do sentido de conectividade entre corpo-instituinte coletivo-abrigo e o seu outro de si, a sociedade e vice-versa. No caso do MAC como escultura e arquitetônica das raízes utópicas antropofágicas brasileiras, a instituição e o instituinte, abrigo e o redondo do mundo, projetam-se o continente, Terra e a estrutura viva do coletivo, Luta, como chão de possibilidades e compromisso com as microgeografias da transformação de si e do outro, nós e outros nós. A sociedade é a terceira margem de fluxo que realiza a existência, a festa e o simbólico, o abrigo redondo do mundo. A utopia ao rés do chão se aproxima a “subterranean tropicália”, como sentido de unidade tripartida entre TERRA – jardim, experiência reflexiva, espelho público de heterotopias, e a margem de si, fora da lei. Porém ao se propor 23 Holanda, Sérgio Buarque. Visão do paraíso. Os motives edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2002. 24 Bakhtin, M. M. Towards a Philosophy of the Act. Texas: The University of Texas Press, 1999, p. 75. [tradução livre].

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como parte do desafio crítico e vocação do MAC projeta-se sua atualidade como lugar de pertencimento trazendo para a instituição museu os paradoxos do contemporâneo pela justaposição entre quebradas baldias e as rampas espirais modernistas e pós-modernistas, de celebração e superação do mito do museu-templo, praça e laboratório de futuros. Ecoam nessa confluência de três margens e marginais do Brasil, Oiticica e Clark, a arquitetura de paradoxos de Niemeyer, uma oca e, ao mesmo tempo, carrossel de polifonias dos manifestos das vanguardas modernistas e pós-modernas inacabadas como lutas contemporâneas. Esse confronto anacrônico de utopias ao rés do chão introduz a conceituação curatorial. Simultaneamente dá tangibilidade e responsividade (Bakhtin, 1999) à terra – luta como intuição e desejo palpável das formas e estados de invenção do contemporâneo desses artistas. Projeta-se um coincidatio oppositorum entre celebração e golpe fatal na estagnação dos museus, trazendo o seu avesso, antiarte e antimuseu, como apropriação do mundo. Dar à Terra e Luta um sentido de jogo, festa e simbólico (Gadamer) é a dificuldade principal que pode justificar o que Ricoeur propõe para a fenomenologia como estrutura de acolhimento com a imagem de jovem planta – viva no solo sobre a qual pode se enxertar a condição hermenêutica indutora do simbólico. Assim se propõe abordar a passagem Subterranean para o Ambiental, “experimentar o experimental” como o enxerto da hermenêutica na fenomenologia. A arte-arquitetônica como estruturas propositivas espontâneas de comportamento acolhe a sociedade, o individuum participante de si mesmo – como possibilidade de experiência dos sentidos ontológica do ser finito que pela vivência encontra o “compreender, já não como um modo de conhecimento, mas como um modo de ser”.25

Indeterminações conclusivas Complementando esse entrelaçamento introdutório entre a trajetória fenomenológica de Oiticica com o percurso dos conflitos de interpretações de Ricoeur. Até mesmo como Husserl, Oiticica passa pela frustração com o empreendimento ou proposta de redução pura do ser e concebe para a série Subterranean a metaperformance, o espontâneo self e as ocupações coletivas como parte de uma escultura parque. Nessas concepções críticas o desfazimento ou descriação da própria natureza formal da arte é antecipado como desafios éticos do contemporâneo para o sentido público 25 Ricoeur, Paul. O conflito de interpretações. Hermenêutica fenomenológica. Op. cit., p. 10.

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de suas instituições – abrigos Terra, Luta e Sociedade – para acolherem a experiência multissensorial do experimental. É daí que: a fenomenologia escapou ao seu projeto inicial; é apesar dela que ela descobre, em vez de um sujeito idealista encerrado no seu sistema de significações, um ser vivo que tem desde sempre como horizonte de todas as suas miras, um mundo, o mundo.26

As viradas ambientais de Oiticica são ainda hoje colocadas como o problema dos opostos entre a passagem ou ruptura de dois mitos, da instituição como confinamento idealista e estrutura de comportamento rígido e normativo e, o outro dela, o mito da própria obra de arte como objeto de criação apresentado como oráculo monolítico. Enquanto a sociedade como terceira margem for colocada à distância de si mesma pelas instituições, o mundo-vida não é tomado como significante, e o indivíduo/sociedade não encontra seu outramento social – existencial, a aliança tripartite da TerraSociedade-Luta não se realiza com cultura viva. Propõem-se a aproximação, o acolhimento e o pertencimento como constructos fenomenológicos hermenêuticos que permeiam a condição e mirada ambiental da arte contemporânea e sua possibilidade de atualização existencial espaçotemporal e ontológica como compreensão de si mesmo como outro. O próprio sentido público da instituição se dá como lugar de possibilidades epistemológicas da criação coletiva e significação social, pois exige o cuidado com os outros enquanto posição ética. [...] Já não nos satisfazem as velhas posições puramente estéticas do princípio, das descobertas das estruturas primordiais mas essas descobertas como que se tornaram habituais e se dirige o artista mais ao estabelecimento de ordens objetivas, ou simplesmente à criação de objetos, objetos esses das mais variadas ordens, que não se limitam à visão, mas abrangem toda a escala sensorial, e mergulha de maneira inesperada num subjetivo renovado como que buscando as raízes de um comportamento coletivo ou simplesmente individual, existencial [...]27

26 Ibid., p. 11. 27 Oiticica, Hélio. A situação da vanguarda no Brasil. (Proposta 66). In: Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salomão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 111.

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TROPICAMP: prée pós-Tropicália ao mesmo tempo. Algumas notas sobre a noção de Tropicamp (1971) de Hélio Oiticica* Max Jorge Hinderer Cruz Crítico cultural (São Paulo)

* Uma primeira versão deste ensaio foi publicada na revista Afterall, no 28, Londres 2011 em inglês. O autor gostaria de agradeçer a Fabiana Faleiros pela ajuda com a adaptação e edição do texto em português.


Em seu texto programático “Bloco-Experiências in Cosmococa – programa in progress”11 (1974),Hélio Oiticica descreve a obra de Jack Smith, cineasta e artista de performance norte-americano, como “precursora” de suas famosas instalações quase-cinematográficas, as Cosmococas: ambientes com projeções de slides múltiplas, trilha sonora, propostas para performance e o uso explícito de cocaína.2 Já uns anos antes, em 1971, destacando a importância de Smith e de Mario Montez, ator ícone da cena de teatro e do cinema queer no underground nova-iorquino dos anos 1960 e início dos anos 1970, Oiticica cunhou o termo “tropicamp” para caracterizar um elemento resistente na gradativa comercialização das estéticas queer à época. Seu texto “MARIO MONTEZ, TROPICAMP”3, publicado na revista Presença, no mesmo ano no Rio de Janeiro, traz uma descrição exemplar de uma atitude que pode ser distinguida na obra do próprio Oiticica desde o início dos anos 1960, e que se tornaria mais e mais aparente em sua produção tardia. Pode-se considerar a noção de “tropicamp” como uma crítica oportuna do quanto o consumismo estava se disseminando também no campo da arte de vanguarda com a que Hélio Oiticica se vê confrontado chegando

1

Vide Hélio Oiticica, “Blockexperiments in Cosmococa – programa in progress”. O texto foi impresso em pelo menos três diferentes publicações: Projeto Hélio Oiticica et al. (ed.), Hélio Oiticica (catálogo de exposição),Paris e Roterdã: Jeu de Paume and Witte de With, 1992; BASUALDO, Carlos (ed.), Hélio Oiticica: quasi-cinemas (catálogo de exposição), Columbus and Cologne: Wexner Center and Kolnischer Kunstverein, 2001; OITICICA, H. e D’ALMEIDA, Neville, Cosmococa programa in progress, Buenos Aires e Belo Horizonte: Fundação E. Constantini e Fundação de Arte Contemporânea Inhotim, 2007. A versão original é mantida no arquivo digital do Projeto Hélio Oiticica Rio de Janeiro (doravante PHO) como Doc. nº 0301.74

2

BUCHAMANN, Sabeth e CRUZ, Max Jorge Hinderer. Hélio Oiticica & Neville D’Almeida: Cosmococa, Rio de Janeiro: Azougue-Capacete, 2014.

3 OITICICA, Hélio. “Mario Montez. Tropicamp”. Presença. Rio de Janeiro, dezembro 1971, Manuscrito original em PHO Doc no 0275.71.

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em Nova York em 1970.4 De fato, nas últimas duas décadas, a recepção na história da arte politizada dos anos 1960-70 tem estabelecido a oposição política de Oiticica diante das tendências imperialistas e culturalistas como um verdadeiro paradigma. No entanto, o último período de sua atividade artística, antes de sua morte em 1980, continua sendo relegado a certo descaso por parte da crítica e a história da arte. Por exemplo, em sua recente obra Conceptualism in latin american art: didactics of liberation (2007), o artista e autor uruguaio Luis Camnitzer conclui seu capítulo sobre Oiticica, cujo tom é predominantemente elogioso, com uma inesperada declaração negativa: Após receber uma bolsa do Guggenheim, Oiticica muda-se para Nova York (1970-78), onde continuou trabalhando na série de Parangolés e outros projetos. Inspirado pela cena disco e pelas drogas, ele também trabalhou com os ambientes de slides, os ‘quase-cinemas’ e as Cosmococas (1973), com resultado menos satisfatório.5

A despeito da motivação que levou Camnitzer a categorizar a obra de Oiticica em duas fases, pré e pós Nova York (além de reprovar a música disco e as drogas erroneamente atribuídas só ao período nova-iorquino), ele parece seguir uma vertente dominante no mundo da arte contemporânea. Também Mari Carmen Ramirez, curadora da grande retrospectiva “The Body of Color” (2007), no Museum of Fine Arts em Houston e na Tate Modern em Londres, estabeleceu uma diferença entre o apogeu (antes de sair do Brasil) e a queda (depois de sair do Brasil) do artista na introdução ao catálogo da exposição: Se Oiticica como um “artista marginal” está associado ao seu período de autoexílio em Londres e Nova York (1969-77), pode-se afirmar que o Oiticica revelado nesta exposição guarda relação com o período otimista e utópico dos anos 1950, com seus impulsos desenvolvimentistas, além do seu radical estímulo às neovanguardas brasileiras. Esta ascensão e queda representou as duas faces de um esforço de modernização sem precedentes, que buscava conduzir o Brasil ao seu ápice.”6 4 Vide PHO Doc. no 0271.71, “anotações para serem traduzidas para inglês: para uma próxima publicação”, 1 de setembro de 1971. In: BRAGA, Paula (ed.). Fios soltos. A arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008. 5

CAMNITZER, Luis. Conceptualism in Latin American Art: Didactics of Liberation. Austin: University of Texas Press, 2007, p. 230.

6 RAMIREZ, Mari Carmen (ed.). Hélio Oiticica: The Body of Colour (catálogo de exposição). London: Tate Publishing, 2007, p.18. É significativo que a mostra foca mesmo nas obras de Oiticica de 1955-65, e a segunda parte da retrospectiva planejada para mostrar a obra tardia de Oiticica terminou nunca acontecendo. 304


Por outro lado, como escreveu Carlos Basualdo, curador da exposição dos “Quase-Cinemas” e editor do pioneiro projeto de publicação homônimo (2001) sobre Oiticica: Rever seus textos não publicados é entender que a última década de sua vida e produção foi seguramente tão prolífica quanto as precedentes, e que as descobertas intelectuais deste período podem inclusive nos obrigar a reconsiderar os trabalhos anteriores em sua totalidade [... e a testemunhar] uma consideração sistemática das relações entre os diferentes regimes de trabalho e as formações subjetivas que aquelas constituem.7

Além do mais, a alegre alienação de Oiticica quanto às normas sensoriais e comportamentais, prática baseada no princípio do prazer, que Oiticica propõe como fundamento do seu programa ético-estético e que persistiu de 1959 a 1980, é, de fato, impossível de entender do ponto de vista da especificidade de meios ou do discurso essencialista sobre o modernismo. Por certo, é difícil categorizar a obra de um artista tão multifacetado como Hélio Oiticica. Ele propõe o desafio da não distinção entre (não)objetos interativos, inúmeros ensaios de fascinante clareza analítica, assim como panfletos e textos polêmicos, bem como a multimídia, instalações “suprassensoriais” e séries incompletas ou de autoria difusa. Portanto, para desenvolver nosso argumento, vamos colocar o foco nos diferentes contextos e coalizões presentes em sua obra, mais do que analisar as obras em seu aspecto objetual. Se alcançarem seu propósito, essas notas podem servir como uma tentativa de mapear uma crítica da ideologia indelével – que é reflexo da mudança de uma condição moderna para uma pós-moderna – presente em toda a obra de Oiticica; e ajudarão a levantar a questão: o que a insistência nessa diferença geográfica e temporal na recepção de sua obra acaba por esconder?

TROPIcamp (Pré-Tropicália) Viva a banda-da-da / Carmen Miranda-da-da-da-da Caetano Veloso, “Tropicália” (1967)

Em 1959, o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar publicou a sua famosa “Teoria do não objeto”8 e Oiticica, que tinha apenas 22 anos, juntou-se ao 7

BASUALDO, C. ‘Waiting for the Internal Sun: Notes on Hélio Oiticica’s Quasi-Cinemas. In: BASUALDO, C. (ed.). Hélio Oiticica: Quasi-Cinemas. Op. cit., pp. 39-40.

8 FERREIRA GULLAR. Teoria do não objeto (1958), publicado em Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, 19-20 de dezembro de 1959.

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recém-fundado Grupo de Arte Neoconcreto, no Rio de Janeiro. Foi esse também o ano da Revolução Cubana e da subsequente inclusão do país na comunidade de estados socialistas na Guerra Fria. As tensões geopolíticas consequentes e a pressão exercida pelo governo norte-americano alteraram os cenários políticos em boa parte dos países latino-americanos, inclusive e drasticamente, no Brasil. Cinco anos depois, em 1964, diversos acontecimentos cruciais e trágicos convergem para Oiticica. Ferreira Gullar, que Oiticica admirava, havia se tornado um ativista do Partido Comunista Brasileiro, envolvido com os Centros Populares de Cultura (CPCs), e publica seu ensaio “cultura posta em questão”, em que ele finalmente rompe os vínculos com a cena de arte vanguardista, taxando-a de elitista e rendida ao sistema e propondo um retorno às raízes populares da produção cultural; estabelecendo assim uma relação dialética entre a arte e as necessidades das classes populares brasileiras. Em julho, falece o pai de Hélio, José Oiticica Filho. Um pouco antes, os militares haviam organizado um golpe de estado, o qual ocupariam até 1985, cinco anos após a trágica morte do próprio Hélio, em 1980. Ainda no mesmo ano, mesmo Oiticica não concordando plenamente com Gullar, ele deseja fugir do ambiente burguês da Zona Sul do Rio de Janeiro, vindo a nutrir o seu celebrado fascínio pelo Morro da Mangueira. Nesse contexto, ele também desenvolve os famosos Parangolés e faz da música popular uma parte integrante de seu trabalho artístico. Três anos depois, em 1967, Oiticica coorganiza a mostra “Nova objetividade brasileira” no MAM RJ, que é também a primeira apresentação de sua instalação interativa Tropicália (1967), que inclui os seus Penetráveis PN2 e PN3 (estruturas geométricas de madeira e tecido), programas de TV, poemas, pássaros e plantas tropicais, cascalho, areia e outros objetos num cenário labiríntico com o mote definido no título do PN2 A pureza é um mito. Um ano depois, o regime militar aprova o Ato Institucional no 5, e com ele a repressão militar atinge seu auge de violência contra a população civil. Com a desculpa de “proteger” as pessoas da corrupção ideológica, a população é privada de seus direitos políticos básicos (direitos humanos, liberdade de expressão, liberdade de reunião etc.), ao passo que a polícia militar adquire o aval para perseguir pessoas e grupos sem suspeitas plausíveis ou permissões judiciais. Por outro lado, desde o início do regime militar, em 1964, havia uma sutil atmosfera de solidariedade da oposição formada por diversos grupos políticos e civis progressistas ou de esquerda, a despeito das fortes diferenças de opinião entre alguns deles. Entretanto, não havia um consenso cultural generalizado que fosse capaz de unir as forças dos grupos politicamente ativos. Ao mesmo tempo, aparecem diversos novos formatos na televisão brasileira, incluindo numerosos programas de entretenimento

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nos moldes dos programas “ocidentais”, entre eles o Festival de Música Popular Brasileira. Na segunda edição do festival, em 1966, o jovem Chico Buarque consagra-se vencedor com sua canção “A banda”. Chico, um rapaz boa-pinta, charmoso e socialista confesso, entoou uma ode à mágica do carnaval, afirmando que quando a banda passa, “cantando coisas de amor”, o velho fraco se esquece do cansaço e põe-se a dançar; o burocrata interrompe o seu trabalho sério; os amantes solitários param de contar as estrelas para unirem-se à passagem; a gente sofrida se despede da dor e a moça feia debruça na janela pensando que a banda lhe faz uma serenata. Sem dúvida, aquelas canções de amor da banda têm a energia de um movimento social que, como o carnaval, pode reverter as condições, suspender a ordem estabelecida e clamar por liberdade. A apresentação de Chico na TV desencadeia um fenômeno sociocultural que desde uma perspectiva midiática e política culmina poucos anos depois na Tropicália. “A banda” sintetiza duas importantes qualidades que imprimiriam à experiência da Tropicália na música popular uma notória intensidade: em primeiro lugar, a apropriação, quer dizer, a funcionalização do conceito de astros da música que são celebrados por grandes parcelas da população para um fim subversivo; e, em segundo lugar, a circulação de conteúdos que tendiam a ser ambíguos ou mesmo explicitamente subversivos, por meio de sistemas de transmissão de alcance nacional, como o rádio e a TV. No Festival de 1967, dois jovens músicos da Bahia e suas bandas levaram essa experiência a um outro nível: Gilberto Gil com Os Mutantes e Caetano Veloso e os Beat Boys incorporam guitarras elétricas, e com seus hits “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, ligam o vigor do carnaval baiano, seus trios elétricos e a realidade social brasileira, com o som dos movimentos juvenis internacionais, os Rolling Stones e Jimi Hendrix. Nesse mesmo ano sai o LP solo de Caetano com a música “Tropicália” e só um ano depois é lançado seu álbum conjunto, Tropicália: ou panis et circences, solidificando a tropicália como movimento, e fazendo referência não apenas aos movimentos da juventude contemporânea e a música pop, mas também a representantes das culturas marginalizadas, a cultura afro-brasileira e indígena, e uma vasta gama de cineastas, poetas e artistas vanguardistas identificados como “contracultura”. No seu livro Verdade Tropical, Caetano nos conta que no processo de sua criação, a inspiração de chamar a canção semiacabada de “Tropicália” veio do fotógrafo Luís Carlos Barreto, que apontou uma grande afinidade com o espírito da instalação homônima de Hélio Oiticica.9 Mais tarde, Caetano diz que nenhum título poderia ser mais 9 VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 188. A tropicália de Oiticica foi apresentada por primeiro em 1967, durante a exposição

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apropriado para uma música que rima “A banda” com “Carmen Miranda”. Ao nomeá-la “Tropicália” dá um impulso decisivo para o que Oiticica mais tarde chamaria de “Tropicália sínteses”, o agenciamento específico de elementos heterogêneos e insurgentes que conseguem pôr em movimento uma massa crítica. É na vibe de 1968, afinado com a atmosfera de protestos e movimentos internacionais de solidariedade dessa época, que Caetano sabe aproveitar a oportunidade e canta: “Eu organizo o movimento / Eu oriento o carnaval / Eu inauguro o monumento no planalto central / Do país / Viva a bossa-sa-sa / Viva palhoça-ça-ça-ça!”10 Entretanto, assim que a tropicália se consolida como um movimento popular nacional de proporções políticas, os militares começam sua empreitada contra ela. O famoso estandarte de Hélio que diz “Seja marginal, seja herói” foi exibido no lendário show coletivo da tropicália no Bar Sucata no Rio de Janeiro, evento que foi interditado pela polícia. Consequentemente, no início de 1969, Caetano e Gil foram detidos por diversos meses, primeiro em presídio e depois em prisão domiciliar. Imediatamente depois do seu período de encarceramento, os dois músicos fugiram para Londres, para onde Oiticica tinha migrado há pouco. 11 Em sua primeira exposição individual numa instituição no exterior, a instalação Éden (1969), trabalho de Oiticica que dá sequência à instalação Tropicália, é exibida na Whitechapel Art Gallery. Junto com Tropicália e Éden, Oiticica inclui o Penetrável PN5 – Tenda de Gil e Caetano (1969), e, com ela, oferece abrigo, literalmente, construindo uma tenda em que revistas podem ser lidas e fitas de música, ouvidas, espaço multimídia de exílio político. Assim, ele incorpora a experiência do exílio à alteração experimental da disposição estética dos visitantes. Dentro de poucos meses, no outro lado do Atlântico, o regime brasileiro empreende uma operação de “limpeza”, removendo da cena da música todos os elementos subversivos e ao mesmo tempo “tropicalizando” a imagem nacional midiatizada, entulhando os meios de comunicação com uma superabundância de pássaros, plantas e outros ícones tropicais. Em breve, uma enxurrada de celebridades midiáticas tomaria os palcos, trans“Nova objetividade brasileira”, no Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro, que foi um tipo de panorama de arte de vanguarda da época. O uso por Oiticica da TV na instalação pode ser considerado no contexto da importância dos festivais de música televisionados para movimentos sociais à época. 10 “Eu organizo o movimento / Eu oriento o carnaval / Eu inauguro o monumento no planalto central / Do pais / Viva a Bossa-sa-sa!” C. Veloso, “Tropicália”, 1967. 11 Uma valiosa coletânea de textos sobre a temporada em que Oiticica morou em Londres, incluindo uma versão fac-similar do catálogo da exposição de sua mostra individual na Whitechapel Art Gallery, com curadoria de Guy Brett, foi publicada em 2007: BRETT, Guy e FIGUEIREDO, Luciano (eds.). Oiticica in London. London: Tate Publishing.

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formando o eletrizante impulso da tropicália num tropicalismo ordinário de confecções de moda excêntrica, que confunde o pop com liberdade e se contenta com vestir calças boca de sino. Em um de seus textos mais marcantes sobre a questão, Oiticica descreve o processo como uma diluição dos elementos críticos da tropicália e das estratégias de apropriação antropofágico-culturais numa grande “Brasil diarreia” (1970).12 Muitos membros da oposição e da contracultura fogem para o exílio, tentando escapar da repressão cada vez mais violenta dos militares e da sociedade civil conservadora. Muitos amigos e artistas próximos a Oiticica começam a circular por diferentes países e cidades, num constante ir e vir. Artistas como Caetano e Gil, Waly Salomão, Torquato Neto, Glauber Rocha, Julio Bressane, Jorge Mautner e Lygia Clark – entre muitos outros – passam temporadas em Londres, Nova York, Milão ou Paris. Alguns conseguem voltar ao Brasil por períodos mais curtos ou longos. Nesses anos, diversas revistas alternativas são criadas, assumindo um importante papel como porta-vozes dessas personalidades em circulação no exterior. Uma dessas revistas se chamava Presença, na qual Oiticica publica seu artigo “Mario Montez, Tropicamp” quando morava em Nova York. Esse exemplar da cena contracultural teve vida curta, sobrevivendo apenas por duas edições. Os nomes das publicações refletem a situação precária e os objetivos programáticos da época: Navilouca, Pólen, Flor do Mal (em alusão à obra de poesia censurada de Baudelaire) e O Pasquim, para mencionar alguns. Ao mesmo tempo essas revistas servem como cartografias das constelações em rápida transmutação, em que figuram tanto os exilados como os que permanecem no país. Assim, ajudam a criar um senso de continuidade que havia sido perdido pelos órgãos de comunicação e culturais aceitos pela oficialidade. A tropicália tinha, então, entrado no underground.

tropiCAMP (Pós-Tropicália) Diarreia, Diarreia, Di-a-rreia, “Diarreia” – Diarreia, Di... Mario Montez, também conhecido como Miss Montez, em Screen Test no 2 de Andy Warhol (1965)13

Olhando a partir da perspectiva dessas redes de comunicação contracultural, é importante notar que o uso de texto, áudio, filme super-8 e fotografia como 12 OITICICA, H. Brasil diarreia, 1970, Doc #0328.70. In: OITICICA FILHO, César e VIEIRA, Ingrid (eds.). Encontros: Hélio Oiticica. 13 Para obter uma descrição abrangente do desempenho de Mario Montez no Screen Test no 2, confira o ensaio original de Douglas Crimp “Mario Montez, For Shame”. In: BARBER, Stephen M. e CLARK, David L. (eds.). Regarding Sedgwick: Essays on Queer Culture and Critical Theory. New York-London: Routledge, 2002.

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suportes artísticos torna relativamente fácil para Oiticica (e para outros também) o envio da sua produção para o Brasil e a disseminação internacional, o que ele faz durante toda a temporada no exterior. Durante essa época, Oiticica preenche centenas de páginas de cadernos, escreve numerosos textos para publicação no Brasil, e manda incansavelmente cartas para a família e amigos, descrevendo a sua vida e seu trabalho durante seu exílio em Nova York. Ocasionalmente envia fotografias e até séries completas de slides e para acompanhar suas descrições. Esse abundante material – as Heliotapes (fitas cassete com áudio de fala do Hélio, entrevistas e músicas, 1971–75), o material em super-8 não editado (1971–76),14 o filme Agripina é Roma-Manhattan (com a participação de Mario Montez interpretando a si próprio, 1972) e os já mencionados “quase-cinemas” (1973–75), incluindo as Cosmococas (1973-74) – fornece impressionantes exemplos de como Oiticica, apesar das condições variantes, produz em articulação com um vasto número de artistas brasileiros, no Brasil e espalhados pelo mundo, como Neville D’Almeida, Antônio Dias e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Alguns de seus textos publicados são redigidos em forma de cartas e trazem um amálgama de descrições de sua obra artística, crítica social, sua homossexualidade, o uso de drogas (e imagens disso), filosofia, rock e sua precária situação financeira. Tudo isso formando um só conjunto inextricável.15 Esse tipo de colagens de texto e imagens ilustram sua sólida habilidade de embaraçar as fronteiras entre vida e trabalho, um projeto já iniciado anteriormente no Rio, e mostram a indissociabilidade entre as condições de vida, as consequências e as possibilidades trazidas por Nova York e a repressão no Brasil. Quando “Mario Montez, Tropicamp” foi lançado, Oiticica não tinha simplesmente saído do armário (uma questão política tanto no Rio quanto em Nova York). Ele também se posicionava como um dissidente sul-americano em exílio nos EUA, com um visto temporário de residência prestes a vencer, ficando frequentemente sem dinheiro, e considerando a ideia de voltar ao Brasil “desastrosa”.16 Mesmo assim ele é veemente ao caracterizar Manhattan como “o único lugar que me interessa”, e ao mesmo tempo, é ambivalente ao chamá-la de “Babilônia”.17Numa carta a Lygia Clark ele escreve: 14 O autor gostaria de agradecer a César Oiticica Filho, o Projeto Hélio Oiticica e Vinícius Nascimento pelo acesso ao material não publicado, tanto super-8 como fitas de áudio. 15 Para mais informações sobre os textos de Oiticica durante o período em Nova York, confira o abrangente livro do crítico cultural e publicitário brasileiro Frederico Coelho, Livro ou Livro-me. Os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971-1978), Rio de Janeiro: Editora da Uerj, 2010. 16 Vide carta a Luís Fernando Guimarães, 11 de abril de 1971, PHO Doc #1107.71-p.1 (original em português). 17 Carta para Lygia Clark, 2 de agosto de 1970 (original em português). Publicado em FIGUEIREDO, L. (ed.), Lygia Clark, Hélio Oiticica: Cartas 1964-1974, Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, pp. 159-66. 310


Hoje estou péssimo, com mil problemas para resolver sem saber como; me sinto como numa prisão, nessa ilha infernal, sem status, tendo que escolher qualquer emprego exploratório que me queiram oferecer, etc.; tudo vai passar, mas é irritante; a cidade vive de emprego escravo: porto-riquenhos ilegalmente aqui, brasileiros, portugueses, irlandeses, e Deus sabe mais o quê.18

Apesar das dificuldades que a vida impôs a Oiticica depois que sua bolsa Guggenheim acaba, em 1972, ele enfrenta as consequências da situação de dissidente e decide permanecer em Manhattan vivendo em condições precárias. Para Oiticica isso significa nada menos que prosseguir com o que tinha começado com Tropicália, agora no underground babilônico de Nova York. Nesse sentido Oiticica dá um passo à frente e reinstala seus Ninhos (1970) – uma classe de bateria de cabines Bólides-camas, estruturas inabitáveis de extensão horizontal que exibiu na mostra “Information” (1970), no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) – no seu loft localizado no Lower East Side, rebatizando-os de Babylonests [Ninhos de Babilônia].19 Seguindo a lógica de PN5 – Tenda de Gil e Caetano, esses espaços funcionam como casulos protetores, nos quais a experiência de vulnerabilidade e desterritorialização pode ser reconfigurada ética e esteticamente. Isso pode ser entendido no sentido do que Mario Pedrosa certa vez definiu como “exercício experimental da liberdade”, ou, dito de forma mais jocosa, como um exercício de alienação da alienação.20 Essa abordagem também pode nos ajudar a entender que, para Oiticica, as oposições sociais e políticas não são constituídas por contrastes bem-definidos ou divisões estéreis, como homossexual versus heteronormativo ou de sul contra norte. Pelo contrário, ele assume uma posição decididamente minoritária e internacionalista diante de ambos os sistemas, a democracia 18 Carta para L. Clark, 24 de janeiro de 1972 (original em português). Publicado em FIGUEIREDO, L. (ed.). Lygia Clark, Hélio Oiticica, op. cit., pp. 215-20. 19 Para descrições e reflexões completas sobre os “Babylonests” de Oiticica, confira o extraordinário trabalho de Victor Manuel Rodriguez sobre o assunto, “Cold War Legacies Otherwise: Latin American Art and Art History in Colonial Times”, tese de doutorado não publicada, Rochester, NY: School of Art and Sciences, University of Rochester, 2009. Um excerto foi publicado como “Eroiticica o Los muchachos de Oro de Babylonests”. Ramona - Revista de Artes Visuales, n0 99, abril de 2010, pp. 59-63. 20 Parafraseando o lema antropofágico de Oiticica de consumir o consumo, entendemos a posição de Oiticica como um programa de alienação da alienação. O autor gostaria de agradecer a Sabeth Buchmann pelos anos de troca e colaboração na pesquisa sobre a vida e obra de Hélio Oiticica, e por compartir sua criteriosa análise do trabalho de Oiticica relativo às implicações da tecnologia e da produção da subjetividade. BUCHMANN, S. Denken gegen das Denken. Produktion – Technologie – Subjektivität bei Sol LeWitt, Helio Oiticica und Yvonne Rainer,Berlin: b_books, 2007, e “Leisure 73”. In: LEIGHTON, Tanya (ed.). Art and the Moving Image. London: Tate Publishing in association with Afterall, 2008. 311


americana e a ditadura militar no Brasil. Nesse sentido, Oiticica aspira a novas formas de alianças, a coalizões subterrâneas que recusam tanto a “normalidade” do liberalismo dos EUA quanto o fascismo civil-militar no Brasil, considerando os dois sistemas repressivos e inaceitáveis. A noção de “tropicamp” pode ser considerada uma importantíssima expressão do espírito de oposição heliano. Porém, a permanência de Oiticica nos EUA depois de 1970 não era a primeira possibilidade aberta por uma bolsa Guggenheim. Graças ao apoio da Guggenheim Foundation em 1947, seu pai,o entomologista e fotógrafo José Oiticica Filho, tinha conseguido levar toda a sua família para Washington D.C. por dois anos.21 Durante a conversa entre Oiticica e Mario Montez, registrada como material de base para o texto “Mario Montez, Tropicamp”, Oiticica recorda sua primeira visita a Times Square aos dez anos de idade, na cidade de Nova York em 1948. Ele conta a Montez a respeito da profunda impressão causada pelo cartaz da Broadway de “Annie Get Your Gun”(1946), musical de Irving Berlin, que foi adaptado para filme alguns anos depois e virou um sucesso internacional. O cartaz mostrava a protagonista Annie segurando um rifle, cujo cano “sobressaía do enorme cartaz” e ficava erguido no espaço aberto como um elemento plástico acima das luzes da Broadway. Ele relembra: “Fiquei muito impressionado.”22 Por diversos motivos, essa tenra memória pode ser considerada essencial para a forma de perceber o trabalho de Oiticica: tanto pela informação biográfica que revela quanto sob um ponto de vista estético-formal. Um elemento fundamental da obra de Oiticica desde os anos 1950 é o desejo da superação do espaço pictórico ilusionista e, provavelmente, a memória da Broadway e um cartaz de musical podem ser considerados a expressão mais antiga da extraordinária sensibilidade plástica do jovem artista que temos conhecimento hoje. Para nós, invocar a imagem do pequeno Hélio, maravilhado e boquiaberto, em meio a Times Square, possibilita imaginar um aspecto de sua perspectiva em 1971 – o ponto de vista de alguém que 21 FIGUEIREDO, Ariane. Helio Oiticica: cronologia (1937-1980). In: BRAGA, P. (ed.). Fios soltos. A arte de Hélio Oiticica. Op. cit., pp. 291-303. 22 As supracitadas “Heliotapes” constituem-se de uma série de entrevistas e conversas que Hélio Oiticica começou em 1971. A conversa de uma hora e meia com Mario Montez, gravada em 1o de setembro de 1971, na casa de Montez no Brooklyn, pode ser considerada parte da série. O autor gostaria de agradecer a César Oiticica Filho e o Projeto Hélio Oiticica por fornecer a gravação. Uma edição reduzida da entrevista traduzida para o português foi publicada na revista Nau n°6, Rio de Janeiro, agosto 2015. Uma transcrição da entrevista integral em idioma original inglês, introduzida por Max Jorge Hinderer Cruz, foi publicada como “Héliotape with Mario Montez”, na revista Criticism, vol. 56, no 2, Jack Smith: Beyond the rented world (ed. Marc Siegel), Wayne University Press, 2014, pp.379 – 404.

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havia acabado de chegar. Ou, fazendo uso das palavras para definir o termo camp do dramaturgo e diretor do lendário The Ridiculous Theatrical Company, Charles Ludlam, “a perspectiva de um estrangeiro, de coisas que os outros aceitam como completamente normais”.23 O amor anacrônico de Oiticica pelos espetáculos da Broadway e a cultura popular dos EUA dos anos 1940 e 1950 é algo que ele partilha com Montez e que estabelece uma grande parte da cumplicidade entre eles. Estrelas como Carmen Miranda e Marilyn Monroe – que faziam parte do repertório de Drag Queen de Mario Montez – eram figuras quase mitológicas tanto no universo da tropicália quanto na cena do underground queer de Nova York: superestrelas rejeitadas pela intelectualidade que, em termos de intensidades e mortes trágicas, antecipam os grandes astros do rock. Figuras que até hoje testemunham que conceitos como “cultura nacional autêntica” e o “verdadeiro e único amor” afinal são conceitos efêmeros e só podem funcionar com a combinação precisa de barbitúricos e anfetaminas. Como Oiticica afirma durante a conversa Mario Montez, “Há muito em comum entre o movimento da Tropicália no Brasil e o trabalho seu e de Jack Smith, sabe”.24 Quando Oiticica vai para Nova York em 1970, ele fica decepcionado com a cena artística local, e não mede palavras em suas críticas. Numa carta a Guy Brett ele escreve: “Eu não sei o que está acontecendo aqui, mas a cena artística é tão burguesa, conformista e reacionária, é inacreditável.” 25 Mas Oiticica encontra uma exceção à regra em Jack Smith, no contexto do teatro queer e no underground de Nova York. Ele fica impressionado com o Ridiculous Theatrical Company (“um grupo importante”) e o Living Theater, e pelos projetos de Mario Montez (“ele é um gênio”), por Ira Cohen, que gostava de se vestir como um califa, e por Stefan Brecht – autor da lendá23 Vide “Camp”, resposta crítica de Charles Ludlam para “Notes on Camp”, de Susan Sontag. Ludlam critica a despolitização do termo unidirecional de Sontag, que inclui a definição essencialista de camp; e, assim, atribui um valor idealista a objetos específicos. Ludlam afirma sobre a reificação da estética queer por Sontag: “Susan Sontag realmente criticou Camp ao afirmar que se tratava de coisas específicas [...] se você adotar a regra de Camp e o Teatro do Ridículo no mercado de ações, você pode ganhar uma fortuna. Você compra quando estão em baixa e ninguém as quer e, em seguida, aumentam. Se você comprar na alta, já o faz sabendo que vão cair.” In: SAMUELS, Steven (ed.). Ridiculous Theatre. Scourage of Human Folly. The Essays and Opinions of Charles Ludman. New York: Theatre Communications Group, 1992, pp. 225-27. O autor gostaria de agradecer Marc Siegel por liberar o texto original de Ludlam. 24 Diversas histórias sobre os encontros entre Oiticica e Smith podem ser encontradas nas cartas de Oiticica de 1971, por exemplo, para G. Brett, L. Clark e Waly Salomão. Vide, em especial, sua carta para seu amigo de longa data Luís Fernando Guimarães, 11 de abril de 1971, PHO Doc #1107.71. 25 Carta para G. Brett, 16 de março de 1971, PHO Doc #1102.71 (original em inglês).

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ria crônica do teatro queer de Nova York chamada Queer Theater (1978) e filho de Bertolt Brecht – que se disfarçava como meio noiva, meio noivo, personificando um hermafrodita numa peça que Oiticica viu, e a quem ele encontrou numa festa. “São as melhores coisas de teatro aqui; sinto-os sempre ‘pensando junto’, em grupo, o que parece tão raro por aqui.” 26 Quanto mais Oiticica admirava o sentimento de comunidade ao redor do Ridiculous Theatrical Company, mais aumentava a sua desconfiança quanto a significativamente mais competitiva atmosfera de The Factory, estúdio de Andy Warhol. Em outra carta, ele escreve sobre a situação abissal de alguns dos astros de Warhol, que basicamente “vivem na rua”, e sobre como ele ofereceu o seu apartamento (os babylonests) para Holly Woodlawn, que não tinha outro lugar para ir.27 Durante a conversa gravada, Oiticica pergunta a Mario Montez diretamente sobre a baixa remuneração das produções da The Factory de Warhol, e quando Montez confirma que é verdade, “US$ 10 por filme”, Oiticica responde, com expressão de descrédito: “Eles [os produtores] devem ser milionários!” Montez, no entanto, vem à defesa de Paul Morrissey, diretor dos filmes de Warhol na época, porque ele havia dado US$ 100 para que ele comprasse algo “bonito” para vestir. Montez responde diplomaticamente: “Costumo obter dele tudo o que quero”, e Oiticica muda de assunto.28 Numa carta para o cineasta Ivan Cardoso, Oiticica escreve: trash [1970] é o filme do morrissey, prod. warhol, comercial: é lindo: comercialização gay-underground (superficialmente): [ ...] toda park avenue pergunta: já viu trash: pensando serem hips: sentindo-se conivente com algo marginal: levar uma atividade marginal a um nível burguês: esse lado reacionário é assumido em trash, o que não impede a fantástica sensibilidade de morrissey mais atores (joe dallessandro, jane forth e principalmente holly woodlawn) de se mostrarem como os melhores mesmo [...]29

26 Carta para L.F. Guimarães, 11 de abril de 1971, PHO Doc #1107.71 (original em português). 27 Oiticica, no entanto, objeta que Woodlawn nunca apareceu, o que o levou à conclusão de que ela deve ter encontrado um local “lucrativo” para passar a noite. Ibid. Outra descrição sobre as condições de vida precárias de Woodlawn é fornecida por D. Crimp numa entrevista: “Holly Woodlawn morou comigo por um breve período em que ele estava produzindo Trash (1970), então, eu conhecia a experiência do outro lado, o lado de uma drag queen que estava sendo explorada por The Factory”. DANBOLT, Mathias. Front Roomt – Back Room: Interview with Douglas Crimp. Disponível emhttp://trikster. net/2/crimp/1.html(último acesso em 31 de julho de 2016). 28 Vide “Héliotape com Mario Montez” (conversa com Mario Montez), 1º de setembro de 1971 (original em inglês). 29 Carta para Ivan Cardoso, 23 de fevereiro de 1971, PHO Doc #1096.71 (original em português).

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Oiticica tem consciência do fato de que a cena underground e a estética queer em Nova York tinham começado a se vender há muitos anos. Porém, na opinião de Oiticica, Smith permanece imune às tendências “reacionárias” e à comercialização: “O lance de Jack Smith é bastante diferente.”30 No início de 1971, Oiticica visita o loft de Smith pela primeira vez e assiste a uma de suas “living performances” [performances vivas]: Claptailism of Paloma Economic Spectacle: Saturdays at Midnight at the Plaster Foundation, 36 Greene Street. Em diversas ocasiões, ele menciona e descreve com detalhes as suas impressões. Numa carta a Brett, ele escreve: Jack e um cara gordo meio afeminado estavam vestidos completamente de árabes (túnicas), e o cara gordo tinha sutiãs em seu peito; eles estavam, quando eu cheguei, sentados numa mesa antiga, onde você deveria sentar junto, após depositar uma moeda numa lata (o fundo da lata era a mão de Jack, e ele ficava checando para ver se você estava depositando dez centavos ou um quarto de dólar), tem que cochichar com ele e com o gordo, havia um clima de mistério como se fossem padres de alguma religião desconhecida; eu disse de onde tinha vindo, e Jack contou que já tinha vindo ao Rio (provavelmente em 1966, porque ele lembrava que a escola de samba que tinha ganhado era azul e branco, a Portela, portanto, ao passo que, em 67 e 68, tinha sido a Mangueira, que era verde e rosa) e tinha tentado fazer filmes, mas tudo era absorvido por eventos inesperados, e este era um importante comentário: as coisas no Brasil são absorvidas, não importando o quanto de planejamento fosse empregado.31

Durante a conversa com Mario Montez, Oiticica conta sobre a visita de Smith ao Brasil. Smith tinha produzido – apesar dos planos de filmagem frustrados – uma série de slides mostrando a arquitetura brasileira, um projeto em que Oiticica parecia ter particular interesse. Entretanto, todas as imagens, o carrossel e o projetor haviam sido roubados, deixando Smith com apenas umas filmagens em 16mm fragmentadas do Carnaval no Rio e dos policiais militares ao redor do evento. Essas imagens foram restauradas com o título Respectable Creatures (1950–66). Depois de apresentar o filme em 2009, na conferência intitulada “Live Film! Jack Smith! Five Flaming Days in a Rented World” em Berlim, o escritor, especialista em cinema e teoria queer Juan A. Suarez, faz referência à tropicália de Oiticica, descrevendo o filme, entre outros, como “Tropicalismo de Smith”.32 30 Carta para G. Brett, 16 de março de 1971. Op. cit. 31 Ibid. 32 “Live Film! Jack Smith! Five Flaming Days in a Rented World” foi apresentado de 28 de

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No texto “Mario Montez, Tropicamp” e na conversa gravada com Montez, Oiticica expressa suas esperanças de que ele volte às telas de cinema através de Andy Warhol, num filme que originalmente receberia o título de Tropicana Heat, como consolidação de uma atitude ético-estética: “tropicalidade como coisas tropicais críticas”, mas comenta que “ninguém pode imaginar como seria o filme até que fosse editado e distribuído”.33 Ironicamente, Warhol produziu Heat em 1972, um ano depois, sem Mario Montez, e sem “Tropicana” no título, e se tornou um enorme sucesso comercial. Foi nessa ocasião que Warhol retirou de circulação seus filmes pré-Morrissey, seguindo os conselhos do próprio Paul Morrissey. Como Douglas Crimp comenta, “Morrissey achou que eles eram pretensiosos e chatos, e eu acredito que ele queria chamar a atenção para os seus próprios filmes”. Assim Morrissey torna indisponíveis até o fim dos anos 1980 todos os filmes de Warhol em que Mario Montez e Jack Smith apareciam.34

O TROPICAMP e Hélio Oiticica Podemos abrir o armário agora, Andy? Vamos abrir o armário? Posso abrir o armário? Jack Smith como Jack Smith, em Camp (1965), de Andy Warhol

É importante deixar claro que as manifestações artísticas e as referências da estética queer na obra de Hélio Oiticica e sua ênfase em políticas de gênero raramente têm sido explicitadas no Brasil e tampouco nos circuitos internacionais da história e crítica de arte. Porém, poderíamos especular que quanto mais atenção Jack Smith receber do público e crítica em geral, mais importante ele se tornará, como uma referência crucial (do universo queer) para os estudos de Oiticica no futuro. Desde a exposição de Smith no P.S.1 Contemporary Art Center em Nova York, em 1997, a sua obra vem outubro a 1o de novembro de 2009 em Arsenal – Institute for Film and Video Art e HAU/ Hebbel am Ufer, em Berlim. O programa contou com a curadoria de Susanne Sachsse, Marc Siegel e Stefanie Schulte Strathaus.A pesquisa de J.A. Suarez apresentada nesta ocasião foi publicada em “Jack Smith: Beyond the rented world”. Criticism. Op. cit. Para mais informações sobre Mario Montez, SUAREZ. J. A. “The Puerto Rican Lower East Side and the Queer Underground”. Grey Room, no 32, Summer 2008, pp. 6-37. 33 OITICICA, H. Mario Montez, tropicamp (1971). PHO Doc #0275.71, publicado originalmente em português em Presença, no 2, Rio de Janeiro 1971 (conforme citado em: COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e o meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 311). Vide também nessa edição, pp. 16-21. 34 DANBOLT, M. Front Room - Back Room. Op. cit. Disponível em: http://www.trikster. net/2/crimp/5.html (último acesso em 1o de agosto de 2016).

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atraindo cada vez mais atenção das instituições em escala internacional, com apresentações de sua obra cinematográfica no Museu Reina Sofía de Madri (2008), no grande festival-retrospectiva “Live Film! Jack Smith! Five Flaming Days in a Rented World”, em Berlim em 2009, e em mostras na Barbara Gladstone Gallery, em Nova York, e no Institute of Contemporary Arts, em Londres em 2011. Nesse contexto, temos que contradizer as sugestões e os medos de que a influência de Smith na obra de Oiticica poderia tê-lo convertido em um artista menos brasileiro. Ao contrário, Oiticica não mudou a sua forma de trabalhar depois de conhecer a obra de Smith, mas, sim, ele finalmente encontrou, em Smith e em Montez, importantes aliados e cúmplices na luta contra as formas de ideologia repressiva (pequeno-burguesa conservadora e liberal niveladora) que dominam o campo da arte, e contra as que ele se rebela pelo menos desde 1964. Dessa forma, a noção de “tropicamp” de Oiticica, como ele detalha em seu texto na revista Presença em 1971, pode ser entendida como “simultaneamente pré e pós-tropicália”35: embora ela derive de suas experiências em sociedades repressoras (tanto liberais quanto fascistas), ela também afirma a experiência de ser desterritorializado (exílio político, perda dos pais e figuras paternas), sempre recusando o olhar nostálgico que procura uma origem verdadeira, ou um destino verdadeiro. Nesse texto, Oiticica, de maneira provocativa, delineia a genealogia de seu próprio trabalho por meio do “Tropicalismo de Smith”, ao invés do “Manifesto Antropofágico” (1928) de Oswald de Andrade, ou das vanguardas brasileiras dos anos 1950 – ambas figurando na genealogia padrão da obra de Oiticica em discursos sobre história da arte. Além do mais, Oiticica desenvolveu uma genealogia diferente e determinada por ele mesmo, que coloca estrategicamente suas raízes próximas da obra de Smith. Isso nos dá a oportunidade de compreender algumas das similaridades estruturais entre práticas antropofágicas e práticas camp: apropriação, humor, desterritorialização de estruturas semióticas e padrões de conhecimento, e sobretudo, a des-essencialização de práticas culturais. O antropofágico e o camp são atitudes estritamente contrárias à hegemonia cultural que, com o desvio de afinidades eletivas que Oiticica nos apresenta, formam uma aliança de emergência histórica e pan-americana. O que nos sugerem as observações de Oiticica é que o desafio que temos de enfrentar hoje em dia é reconsiderar as estratégias antropofágicas e as estratégias camp, no contexto de novas formas de consumismo e de commodities que emergem depois de 1968, em especial no começo dos anos 1970. É importante afirmar que a noção de “tropicamp” implica mudanças 35 OITICICA, H. Mario Montez, Tropicam. Op. cit.

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fundamentais na sociedade e na produção, como a mudança do regime laboral (do fordismo ao pós-fordismo), mudanças na economia global (a dissolução da relação padrão-ouro e dólar americano pelo presidente Nixon), e novas constelações ideológicas depois dos anos 1960 (o impacto dos movimentos de 1968 em nível global). Para um sujeito pós-Tropicália como Oiticica, a cultura marginal posta em voga por um novo consumismo de vanguarda liberal em um mercado livre e desregulado representa uma ameaça, inclusive mais difícil de escapar que a da fábrica, dos hospícios ou dos militares. Finalmente, é importante afirmar a sexualidade gay de Oiticica, mas também ter em mente que sua própria afirmação enfática de politicas queer é só um dos vários aspectos importantes dentro de todo um jogo de propostas que conformam sua atitude ético-estética. Essa atitude revela uma coalizão internacionalista e subterrânea, que recusa estritamente o princípio heteronormativo e o fascismo de comportamento ainda vigente, mas que porém se mantém alerta e suspeita das narrações liberais de progresso social, das modas e do chique distintivo das boemias metropolitanas. Para Hélio Oiticica, assim como sua relação com Manhattan-Babilônia, sua atitude diante das politicas de gênero, a atribuição nacional e os processos de alienação são muito mais complexa do que qualquer oposição binária de “pré- e pós-exílio” possa abarcar, e por fim sugere inter-relacionar as múltiplas camadas e facetas que constituem o processo de mudança aparente em seu enfoque sobre tropicália, sobre sua vida e sua obra.

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A instituição em xeque: trabalhando nas ruínas do museu Jesús Maria Carrillo Castillo Professor titular do Departamento de História e Teoria da Arte da Universidad Autónoma de Madrid e ativista institucional


Em 1964, ao mesmo tempo em que os Bólides de Hélio Oiticica propunham-se a ativar a imaginação de um público que deixava de ser passivo para recriar a obra, Jean-Luc Godard fazia com que os protagonistas de Bando à Parte percorressem às pressas, em apenas nove minutos, as intermináveis galerias do Louvre, dando por encerrado o “tempo dos velhos museus”, deixando entrever, de maneira teatral, barroca, vaga e extemporânea, um novo tempo: o da experiência contemporânea, que demandava novas histórias, novas arquiteturas e disposições subjetivas. No entanto, esta premonição de matizes futuristas e dadaístas não iria assumir a forma que eles conceberam, a reboque dos eventos que sucederam os protestos de 1968 e o ulterior impasse pós-moderno. Foi assim que o chamado “fim da história” acarretaria não só um obscurecimento da possibilidade de prenunciar o futuro, como também a tendência a arremedar modelos obsoletos e a disseminar o pastiche enquanto forma de referência ao passado.

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Apesar das diferentes vertentes da museologia crítica e pós-moderna e da pujança dos modelos participativos e interativos, mesmo hoje em dia, o museu continua representando uma encenação burguesa. A contemplação autônoma das obras de arte em museus era um dos ritos mais ultrapassados por meio do qual o público ilustrado se atualizava. Através da mediação das obras de arte e do juízo estético que elas suscitavam, o indivíduo tomava consciência de sua própria natureza, como sujeito autônomo, além de membro de uma comunidade política, de uma república de “homens” livres. O anacronismo é um traço essencial da atual experiência de um museu, como decerto uma pesquisa de rua confirmaria. O museu, aí inclusa a arte contemporânea, é reconhecido pela população como um dispositivo obsoleto, ainda que a sua atmosfera arcaica aumente o seu apelo como produto cultural de “qualidade”, sem necessariamente torná-lo ilegítimo. No ritual da visita a museus, a esfera pública burguesa é contemporaneamente reproduzida em tom de pastiche, de modo espetacularizado e adaptado ao consumo fácil, partindo da importante missão ideológica de exaltá-la como ápice do processo civilizatório, ao mesmo tempo em que encerra suas promessas de emancipação. No entanto, também é possível identificar a atividade como “espectro”, que torna patente a natureza distópica do presente e sublinha a urgência de conjecturar novas esferas públicas nas quais se articulem tanto o conflito quanto as figuras de emancipação. Em sua Visita ao Louvre, de 2004, o duo Straub-Huillet recupera o tempo da contemplação lenta e perscrutadora que seu colega Godard havia esnobado em sua disparada, há quarenta anos. Os cineastas o fazem, contudo, mediante um gesto anacrônico, invocando um espectro, já que com sua câmera encenam o olhar inquisidor de um jovem Paul Cezanne sobre a pintura dos grandes mestres, a partir do umbral próprio da vanguarda. Eles pareciam querer nos dizer que os limites do olhar contemporâneo são incomensuráveis aos dos museus, e que é necessário provocar um desfasamento temporal que permita religar os olhos e os corpos dos visitantes com a escala de atenção e os ritmos que demanda a apreciação dessa sequência de imagens emolduradas, objetos e documentos sob a vitrine, que são dispostos nas salas. Para ver as pinturas de Veronese, Ingres ou Delacroix, tal como expostas no Louvre, seria necessário personificar os olhares que não derivam de nossa experiência contemporânea. A posição absorta ou inquisidora que o museu de arte requer precisaria ser reconstruída através de ficções, mediações literárias ou cinematográficas, tomando por base as imagens herdadas ou que subjazem o imaginário coletivo. A finalidade dessas ficções não seria necessariamente a de confundir ou ludibriar o visitante com intenções ideológicas, nem o de introduzi-lo em estimulantes simulacros

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em papel machê que lhe propiciassem experiências prontas para o consumo, ou tampouco servir de cenário para a representação das novas e velhas elites hegemônicas. Muito pelo contrário, o dispositivo ao mesmo tempo anacrônico e teatral de exposição tenderia também à virtualidade de produzir no visitante um nível superior de consciência “brechtiana” a respeito do olhar, tornando visíveis as sombras que gera o próprio corpo físico e biográfico sobre qualquer uma das personificações que lhe são propostas. No filme de Straub-Huillet, a voz feminina em off que “recita” as impressões de Cezanne sobre as imagens das pinturas nos protege contra uma identificação com o olhar do artista. O contraste entre o ponderado olhar de Cezanne e o intenso tráfego da Paris atual, que abre o filme, torna patente seu incontornável distanciamento, assinalando o espaço vazio do “público” contemporâneo. O assinalamento desse espaço vazio e a necessidade de instaurar olhares específicos sobre o próprio tempo adquire especial sentido de urgência no caso do Museo Reina Sofía. Por um lado, sua situação periférica dentro das narrativas da modernidade hegemônica teria feito com que sua adesão inerte às mesmas resultasse numa imagem provinciana e colonial de suas coleções, em que qualquer processo artístico local pareceria um eco imperfeito das tendências surgidas nos centros. O protagonismo de seus personagens diaspóricos: Picasso, Miró e Dalí, não fazia mais do que corroborar essa temporalidade subalterna, definida a partir da ansiedade devido à carência ou da nostalgia frente à perda. Por outro lado, o Museu se via assombrado pelos fantasmas de um passado arrebatado por décadas de ditadura franquista e posteriormente enquadrado, a reboque da institucionalização das vanguardas no período democrático, que havia dado lugar a uma narrativa normalizada e canônica. Com a crise sistêmica que se afigurava com particular relevo em 2008, no mesmo período em que começava a trabalhar a nova equipe curatorial, tornava-se imprescindível reivindicar um “aqui e agora” a partir do qual se pudesse projetar um olhar específico e discernível, e com base em que também se tornasse possível agitar as inércias historiográficas e liberar os silêncios e ângulos arcaicos, devolvendo ao visitante o interesse por encarar e descortinar as vicissitudes de um tempo incerto. Isso o obrigava a assumir o risco de entrar em cena ensaiando uma voz distinta, seguindo um roteiro em permanente processo de reescrita e enfrentando um público cujas expectativas ainda eram uma incógnita. O conceito da rede Museos del Sur, cuja proposta programática proveio do Museo Reina Sofía, vinculava o planejamento desses dilemas específicos do museu a uma releitura radical da modernidade global, na qual a visão universalista e imperial se veria necessariamente interpelada pelos

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olhares subalternos, sempre fragmentários, conjunturais, antagonistas e de natureza performativa. Uma genealogia desses olhares nos levaria mais a uma teatralidade barroca, tal como se tornou evidente no projeto Principio Potosí, do que à visão absorta do Iluminismo. As implicações processuais desse modelo “do sul” teriam sido ensaiadas num projeto anterior, Desacuerdos, iniciado em 2002 e limitado ao contexto espanhol. A partir da alusão explícita ao texto de Ranciere, Desacuerdos articulava instituições, ativistas, artistas e pesquisadores num projeto experimental de investigação histórica plural e disfônica, na contramão das narrativas oficiais da chamada Cultura da transição democrática espanhola, entendida nos termos da normalização e do consenso. O desenvolvimento desse projeto explorava as possibilidades de uma proclamação contra-hegemônica no interior da instituição, empreendendo um processo de negociação e conflito, ao mesmo tempo em que ensaiava uma historicidade compatível com a natureza dissonante do projeto. O artista e teórico Marcelo Expósito, um de seus principais pesquisadores, propunha uma ruptura epistemológica na construção da narrativa histórica a partir do religamento político dos fragmentos do passado e desses com o presente a partir de uma história diagramática que “facilitasse a compreensão da forma como os artefatos estéticos carregam as marcas de suas próprias condições históricas”. As noções de “montagem” e “olho variável” extraídas da linguagem cinematográfica, em que Expósito se debruça, poderiam ser facilmente estendidas em direção aos conceitos de encenação e teatralidade pelo viés do Museu. O primeiro gesto curatorial seria romper com a hegemonia do presente abstrato do museu e detonar uma consciência aprofundada do tempo que apresentou ao visitante, para que este se situasse e gerasse cronologias diversas e complexas: o tempo próprio do olhar, a distância com relação ao passado, os tempos e lugares específicos das obras, as sequências: o antes, o momento e o depois. Dessa forma, o museu deveria se converter num espaço heterocrônico, onde entrou em crise a polaridade entre um agora irrefletido e um passado cristalizado, multiplicando-se os tempos possíveis, contraditórios e sobrepostos com o presente, ativando-se as fricções inerentes às políticas da memória. O poder de sedução do objeto de arte original, do documento ou da fotografia “vintage” teria de ser aproveitado com cautela para que pudesse romper a literalidade da experiência do tempo sem cair na tentação de substituí-la por um distanciamento aurático, reverencial, que nos devolvesse imagens reificadas do passado. Esta “presença” devia pôr em movimento uma imaginação do tempo histórico que conectasse o visitante com um “aqui e agora” “outro”, que não o dele, tornando-lhe patente sua própria

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situação em relação paraláctica com aquele. A apresentação dos objetos como resultantes de uma conjuntura, de uma encruzilhada de caminhos nos quais confluíram determinações e acidentes, subjetividades e vontades, e não como monumentos de um tempo encerrado, ou como contas desgastadas de um rosário repetido à exaustão, manifesta a virtualidade de propor ao visitante uma percepção intensa e aberta de sua própria situação histórica e de sua capacidade de agência. Nesse sentido, seria fundamental explorar e moldar os diferentes registros da obra de arte: material, icônico, estético-formal, histórico, biográfico e documental, fazendo com que um ou outro predomine, mas sem anular os demais, em cada encenação concreta. A exploração dessa versatilidade e polissemia não só multiplicaria os recursos narrativos e expressivos à disposição do museólogo, mas também transmite uma sensação de ligeireza e abertura ao espectador, que já não se vê constrangido a reconhecer a mesmice engessada e aurática da obra de arte, mas sim a perceber sua capacidade de veicular a diferença e o contingente dentro de um processo de emancipação. Outro gesto imprescindível seria o de moldar a voz do museu, transmitindo a sensação de uma enunciação localizada e móvel, que suspendesse a ficção de uma verdade autônoma, necessitando apenas se destacar, e evidenciasse uma locução que unisse o narrador ao receptor numa ação comunicativa específica em que o sentido fosse produzido. Este emissor não seria diretamente identificável com a figura do “autor”, entendido como uma voz singular que viria meramente substituir a figura da autoridade abstrata da história da arte canônica por outra singularizada, mas que constituiria um narrador que fala a partir de um “nós” plural, e inclui a busca da cumplicidade do destinatário da história, ajudando a engendrar as condições, como aponta Expósito, para que este “tome a palavra”. Como um bom narrador, deveria estar capacitado a despertar expectativas, gerar tensões, ensejar paradoxos e incógnitas e mostrar as possíveis saídas. Deveria ser capaz de mudar de um registro para outro, de ensaiar esse “olho variável”, deixando de encarnar seus personagens num estilo direto para tecer comentários ou reflexões históricas, de dividir um conhecimento pessoal para transmitir um grito de urgência. Acima de tudo, a narração deveria suscitar o visitante sem saturar sua imaginação e sem bloquear sua capacidade de julgamento e sua agência, cujo estímulo deveria ser a finalidade última do Museu. O último fator fundamental que deve ser considerado no delineamento dessa encenação seria a dinâmica dos corpos. Como dissemos, o ritual do museu moderno identificava o protagonista da esfera pública como o sujeito individualizado cujo corpo e olhar transitava entre outros corpos e outros olhares autônomos entre si, sem ter que se relacionar de forma mercantil,

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sem ter que competir no campo profissional, ou entrar em conflito político. O assinalamento crítico do esgotamento desse modelo disciplinar deixou há muito de ser suficiente. O museu se vê, por um lado, sobrecarregado pelas lógicas especulativas do capital que o perpassam até os ossos, deslocando-o e perturbando até mesmo a sua própria definição: museu como marca da cidade ou como marca do país, museu-franquia (a começar pelo Guggenheim, e seguido pelo Louvre e o Pompidou). Por outro lado, ele se vê cada vez mais ignorado por uma massa social animada por lógicas da produção cultural que são incomensuráveis em termos do valor que o museu é capaz de reconhecer e para as quais o museu é um lugar totalmente alheio. No entanto, este cenário foi também abalado devido à emergência de configurações e das coreografias dos corpos atinentes à definição de uma nova esfera pública, que foi evidenciada pela Primavera Árabe, o Movimento 15-M e o Occupy. A evocação do espectro da esfera pública burguesa ou proletária tem que ser negociada agora frente à presença e à urgência de um “corpo político” que defende com veemência uma saída em direção ao centralismo. Com acentuada rapidez, passou a se contentar em “ocupar” com seus corpos os espaços e instituições organizadas pela ordem estabelecida, trazendo à tona a sua natureza obsoleta, propondo-se a conjecturar novas configurações de corpos e espaços e novas articulações institucionais e, citando Toni Negri numa recente intervenção no museu, abre um novo ciclo político, incerto e complexo, mas certamente irreversível. O lema entoado pelos espanhóis indignados “que não nos representa” não só denuncia a crise das instituições existentes, como também proclama a aparição de um novo sujeito político que exige e que de fato incorpora formas de mediação muito diferentes. Nelas, a relação promíscua entre os corpos que ocupam o espaço social já não é mais aquilo que precisa ser regulado, pautado e, por fim, abstraído na instituição, mas sim o substrato básico para a imaginação de novas formas institucionais. Essa situação revolve os fundamentos próprios do museu, certo que este novo sujeito não tem mais o mínimo desejo de consumir nossos produtos culturais ou de recorrer aos nossos serviços, tal como definidos pelas estratégias de marketing ou nossos refinados especialistas. Não devemos sentir nostalgia desse sujeito unificado ultrapassado, e menos ainda do papel das instituições nos processos de subjetivação ideologicamente orquestrados. Por certo, hoje em dia é impossível e indispensável reconstruir a identidade dos corpos, a simultaneidade dos tempos e a continuidade dos espaços que se afiguravam de forma idealizada numa visita a uma exposição, conquanto esta atenção não justifique o desapego pelo museu de toda a sua base constituinte e o alheamento com relação aos processos

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por meio dos quais atualmente são debatidos os novos estilos de vida e de articulação social. Recentemente, algumas instituições culturais se mobilizaram para pôr em discussão essa situação e a urgência de dar uma guinada que possibilite escapar do abismo que se tornou ainda mais iminente com a última crise financeira. Com este intuito, uma coalizão de museus se formou sob a sugestiva alcunha La Internacional de que participaram SALT (Istambul), Vanabbemuseum, de Eindhoven, Museo Reina Sofía, de Madri, MHKA, da Antuérpia e o supracitado Macba. Com o projeto denominado “Los usos del arte”, La Internacional aborda os desafios das instituições culturais no século XXI mediante um complexo programa de exposições e fóruns de discussão cujo desenvolvimento manifestou tanto a vontade de transformação quanto as dificuldades enfrentadas pelas próprias instituições para conduzir a sua mudança, o que abarcava dispositivos e linguagens, além do entendimento entre instituições para formar uma só frente comum. A alusão aos “usos da arte” pretende voltar à cena do crime e àquele momento no qual a arte burguesa, com a desculpa de resguardar sua autonomia frente à lógica instrumental da produção industrial, à cultura de massa e à propaganda, atirou-se nos braços do mercado de bens de luxo. Por seu turno, o mercado desfrutava do desprendimento da arte do fardo do valor de uso e podia pôr livremente em prática as suas lógicas especulativas. A pergunta que se faz a La Internacional mais uma vez é: E se a arte e suas instituições pudessem ser socialmente úteis sem, no entanto, ser meros instrumentos de obtenção e acumulação de poder? Se assim for, como isso poderia ser posto em prática? Uma das possíveis respostas suscitadas pelas instituições reunidas na La internacional reside no conceito de “usuário”, que substituiria a desgastada noção de público. Esta noção foi recentemente teorizada pelo filósofo Stephen Wright, numa releitura do conceito marxista do valor de uso a partir de uma perspectiva wittgensteiniana, identificando toda a produção de sentido com o uso. A proposta é radical ao eliminar qualquer resquício de idealismo, de transcendência, que poderia servir de legitimação às estruturas materiais de poder. Ela pretende facultar uma alternativa à aparentemente inescapável identificação do indivíduo como consumidor e do valor como algo exclusivamente derivado do mercado oferecendo o uso, sempre sujeito ao arbítrio dos usuários, como única regra do jogo. No entanto, este princípio pode levar a uma ficção ainda maior ao oferecer uma idílica abertura a sua infinita plasticidade com a participação de alguns usuários já completamente emancipados, que não leva em conta as resoluções desses usuários, conquanto estes não sejam mais apenas cidadãos, nem a natureza política dos museus, sua natureza constituída e sua função na

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reprodução ou contestação de modelos hegemônicos. A ilusão do uso livre do museu seria cúmplice ao mascarar a crescente dificuldade dos sujeitos em decidir sem ao menos entender os mecanismos que orientam e afetam a sua vida. Por outro lado, com a restrição ao “uso”, haveria renúncia dessa capacidade de suspensão, de refluxo, de deriva e de dispersão, que faz com que a arte seja “verdadeiramente útil”, quiçá premente. Essa busca de uma utilidade outra, um valor intraduzível em valor de troca, foi a marca da colaboração entre práticas artísticas e movimentos sociais desde os anos 1990, quando o marco do capitalismo pós-fordista e o adensamento dos processos de exploração vinculados à globalização, assim como a luta e a resistência, voltavam seus olhos à potência atinente à reapropriação da linguagem e à imaginação de outros modos possíveis do fazer subjacentes à promessa da arte. Essa nova arte crítica saía do campo da entidade artística e seus processos de crítica interna para definir seus modos de fazer a partir da colaboração direta com os processos de resistência e protesto, situando a reivindicação da arte por autonomia no cerne mesmo da vontade coletiva de emancipação, efetuando uma revolução copernicana na relação entre arte e ativismo, cujos antecedentes são encontrados na cena latino-americana das artes sob o jugo das ditaduras dos anos 1970 e 1980. Nesse contexto, estavam sendo engendrados os primeiros contatos, no início dos anos 2000, entre os museus e algumas práticas cuja importância crítica já extrapolava a entidade artística para ocupar-se dos conflitos que iam do âmbito cotidiano e local ao transnacional e global. Para entrar nessa batalha, o museu teve de ensaiar respostas que iam além do meramente discursivo ou expositivo para ensejar fóruns de negociação por meio dos quais os modos de fazer seriam testados em práticas concretas, e fórmulas e protocolos “úteis” poderiam ser submetidos ao experimento de um novo processo de formação. Os museus, herdeiros do Iluminismo e das revoluções burguesas do século XIX, sentiram-se urgidos a suspender estrategicamente a sua autoridade institucional e apresentarem-se, em troca, como um espaço de negociação, como um cenário em que as personae de uma nova representação pudessem ensaiar suas vozes e onde pudessem mover seus corpos. Para esse efeito, tem de pôr em suspenso o monopólio da autoridade cultural tradicionalmente assumido pelas instituições culturais e levar a cabo um exercício ativo de reconhecimento do outro, do que está formalmente no exterior, para pôr em questão essas distinções. Essa atitude levou à implantação de projetos experimentais entre o Departamento de Atividades Públicas do Museo Reina Sofía e a Fundación de los Comunes e a chamada Red de Conceptualismos del Sur. Com os pri-

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meiros, deu-se início a processos abertos de debates a respeito do sentido das instituições contemporâneas, que combinam o radicalismo do discursivo com a implementação de processos de horizontalidade na tomada de decisões e gestão conjunta de recursos. Além disso, com os outros, foram postos em questão os princípios coloniais da prática de colecionar e da narrativa museográfica, investigando práticas patrimoniais que não passem pela expropriação, nem pela propriedade exclusiva da memória por parte das instituições, mas sim por um “comum” indefinido e aberto. Também foram avaliados dispositivos de acionamento que evitem a cristalização da memória em torno de imagens ideológicas do passado e que permitam uma interpelação contínua do presente. O portal Archivos es uso oferece evidências deste processo. Seu caráter avaliativo, prototípico e experimental enquadra-se na tradição de vanguarda e justifica aqueles que encontram lugar nos museus, embora não estejam associados a meros gestos simbólicos que só circulam no âmbito do artístico. Trata-se, na verdade, de processos reais que pretendem participar de outro processo real que ocorre fora dos muros das instituições e que implica deslocamentos e reconsiderações das lógicas de funcionamento dos museus.

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4 de julho

6 de julho

Seja marginal, seja herói. O mito da marginalidade

Área aberta ao mito. O mito da criação

Abertura

Mesa 3

Barbara Szaniecki, Giuseppe Cocco e Izabela Pucu

Ana Kiffer, André Vallias, Rafael Zacca e Ricardo Basbaum

Conferência 1

Mediação: Patrick Pessoa

Giuseppe Cocco Debatedora: Izabela Pucu

Conferência 3

Peter Pál Pelbart Mesa 1

Debatedor: Tania Rivera

Eleonora Fabião, Frederico Coelho, Gerardo Silva e Luiz Eduardo Soares Mediação: Bruno Cava

7 de Julho

5 de julho

Tropicália. A pureza é um mito Mesa 2

Barbara Szaniecki, Cíntia Guedes, Gonzalo Aguilar e Paola Berenstein Jacques

Museu é o mundo. O mito da instituição Mesa 4

Izabela Pucu, Lisette Lagnado, Luiz Guilherme Vergara e Max Jorge Hinderer Cruz Mediação: Mário Chagas

Mediação: Giuseppe Cocco

Conferência 4

Jesús María Carrillo Castillo Conferência 2

Debatedor: Giuseppe Cocco

Celso Favaretto Debatedor: Luiz Camillo Osório

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PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

CENTRO MUNICIPAL DE ARTE HÉLIO OITICICA

SEMINÁRIO

Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro Eduardo Paes

Diretora e Curadora Izabela Pucu

Realização R&L Produtores Associados

Vice-Prefeito Adilson Pires Secretário Municipal de Cultura Junior Perim Chefe de Gabinete Flávia Piana Subsecretário de Gestão Carlos Corrêa Costa Subsecretária de Artes e Fomento Danielle Nigromonte Subsecretária de Cidadania e Diversidade Cultural Lia Baron Coordenador de Equipamentos Culturais Carlos Cavalcante

Assessor Executivo Antonio Manuel Neves Assessora de Recursos Humanos Lenice Fernandes Coordenadora de Pesquisa e Público Daniele Machado Coordenador de Produção Alessandro Costa Coordenador Operacional Israel Farias Coordenadora Administrativa Neyla Quaresma Recepcionista Especializada Luísa do Valle

Gerente de Centros Culturais Keyna Eleison Van de Beuque

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Direção de Produção Rodrigo Andrade Gestão de Projeto Lucas Lins Assistente de Produção Richards Carino Zaba Azevedo Revisão Letra Guia Tradução Conceito Traduções Fotografia Tahian Bhering Filmagem e Edição Capuzzo Produções Identidade Visual Aline Carrer

Assessoria de Comunicação e Assesoria de Imprensa André Balocco

Patrocínio

Organização Barbara Szaniecki Giuseppe Cocco Izabela Pucu [colaboração]

Impressão J. Sholna

Realização


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP). H 475 Hélio Oiticica para além dos mitos. Hélio Oiticica para além dos mitos. / Barbara Szaniecki, Giuseppe Cocco, Izabela Pucu (orgs.) _ Rio de Janeiro: R&L Produtores Associados, 2016. 332 p. :il. Revisora: Rosalina Gouveia; tradutor: Márcio Soares Pinheiro; Produção e coordenação editorial: Lucas Lins e Rodrigo Andrade; Projeto gráfico: Aline Carrer. Seminário Internacional Hélio Oiticica Para Além dos Mitos, realizado no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, de 4 a 7 de julho de 2016. ISBN 978-85-67067-13-1 1. Arte - Filosofia e estética. 2. Arte brasileira - Séc. XX. 3. Artes – Congressos. 4. Arte e política – Congressos. 5. Arte e sociedade – Congressos. I. Szaniecki, Barbara. II. Cocco, Giuseppe. III. Pucu, Izabela. IV. Título. CDD – 709.04

CDU 7 (81)

Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica Rua Luís de Camões, 68  Centro  Rio de Janeiro Este livro foi realizado com recursos do programa de Fomento à Cultura Carioca / 2015 e produzido para o Seminário Internacional Hélio Oiticica Para Além dos Mitos, realizado no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, em julho de 2016. O texto foi composto em National. Os papéis utilizados foram Duo Design 300 g/m 2, (capa) e Pólen Soft 80 g/m 2 (miolo). Impressão e acabamento: J. Sholna.



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