Revista Gávea - 15ª Edição

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Rio de Janeiro,Fol. 15, n 15, Julho de

O Obji :o Pictural C LÉM EN T ROSI

Ruben IMavarra 2 EPSTEIN GRINBERG

Modernidade Plural C Â N D I D O CA

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Sob a Inspiração de Clio C L A U D I A RICCI

Funcionalismo Hoje T H E O D O R IV. ADORNO

A Estética de Benedetto Croce PATRÍCIA HORVAT

Entrevista com Robert Ryman L RS RAUSSMÜLLER

Robert Ryman Y V E - A L A I N BOIS


Editor Fundador Carlos Zilio Editores Responsáveis João Masao Kamita José Thomaz Brum Roberto Conduru Editor Adjunto Vanda Mangia Klabin Conselho Editorial Anna Maria Monteiro de Carvalho Antonio Edmilson Martins Rodrigues Carlos Zilio Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Maria Cristina Burlamaqui Paulo Sergio Duarte Paulo Venâncio Filho Rodrigo Naves Ronaldo Brito Vanda Mangia Klabin

Secretaria Anair Oliveira dos Santos Cláudio Santiago de Araújo Projeto Gráfico PVDI DESIGN Nair de Paula Soares Christiane Kemper Diagramação e Editoração Eletrônica Gustavo Castro Neto Fotolito e Impressão Ultracolor © Éditions Le Passeur/Cecofop, 1992 para o texto de Clément Rosset

Conselho Consultivo Eduardo Jardim de Moraes Katia Murky Margareth da Silva Pereira Margarida de Souza Neves Ricardo Benzaquem de Araújo GÁVEA:

Revista de História da Arte e Arquitetura Vol. 1, n2 1 (1984) - Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História. Semestral Texto em português, inglês, francês e espanhol ISSN 0103 -1996 1. Arte - História - Brasil. 2. Arquitetura História - Brasil. I. CDD-709.81

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O Objeto Pictural CLÉMENT ROSSET 592

Ruben Navarra PIEDADE EPSTEIN GRINBERG 602

M odernidade Plural CÂNDIDO CAMPOS 622

Sob a Inspiração de Clio CLAUDIA RICCI 632

Funcionalismo Hoje THEODOR W. ADORNO 654

A Estética de Benedetto Croce PATRÍCIA HORVAT 680

Entrevista com Robert Ryman URS RAUSSMÜLLER 698

Robert Ryman - Novas Pinturas YVE-ALAIN BOIS 710


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0 O bjeto Pictural H om enagem a Pierre Soulages A pintura abstrata de Pierre Soulages exibe uma mistura singular de expressão intensa e de austeridade. Ascética, ela contenta-se com o contraste entre duas ou três cores e, atual­ mente, com variações que opõem o preto ao preto. Produzindo signos enigmáticos, suscita uma impressão de simultaneidade e sugere uma suspensão do tempo. Pierre Soulages Pintura Abstrata Signo Enigmático

C LÉ M E N T R O S S E T Tradução de José Thomaz Brum Filósofo, professor na Universidade de NiceSophia Antipolis. E autor de diversos livros, entre os quais: O Real e seu Duplo, Lógica do Pior, A Antimtureza, O Princípio de Crueldade, publicados no Brasil.

A arte do pouco A característica talvez mais notável da pintura de Pierre Soulages, que a distingue imediatamente da dos outros pintores abstratos, é a aliança da veemência e da contenção, de uma expressão intensa e de uma economia de meios que beira a austeridade, para não dizer o mínimo indispensável para sub­ sistir. Esse tipo de ascetismo é reivindicado por Soulages, que lá vê um princípio estético de regeneração e de riqueza e declara, segundo o testemunho de Georges Duby: É preciso saber rejeitar o que agrada em demasia; a verdadeira pintura é continua­ mente renunciar. Duas linhas que se cortam em ângulo reto bastam para conferir a uma igreja cisterciense um estilo impressionante e inesquecível, pela singular­ idade da relação aritmética entre suas extensões respectivas, - e sabe-se que Soulages, ele também, se preocupa com essa questão da relação entre duas retas perpendiculares na escolha do formato de suas telas, sempre inabitual e não comercial. Do mesmo modo Soulages se contenta com o contraste entre duas ou três cores, entre as quais sempre o preto e o branco; levando o gosto pela aus­ teridade, que é também um gosto pela dificuldade, a contentar-se atualmente com contrastes produzidos a partir de uma única e mesma cor preta: opondo o preto ao preto e o mesmo ao mesmo através do jogo conjugado da iluminação exterior e do relevo da pintura (daí, seja dito de passagem, uma impossibilidade técnica de obter reproduções fotográficas satisfatórias das últimas telas de GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Soulages; impossibilidade que não desagrada ao pintor, feliz de propor ao olhar objetos não duplicáveis e portanto absolutamente singulares). Soulages é mestre na arte do pouco, no sentido em que a compreende e a define muito bem Daniel Klébaner: Desejo falar de uma arte em que o homem encontra o brilho no embaçado, a audácia na prudência, a perenidade no precário, a excelência no insignificante. (D Sabe-se que, se a cor predileta de Soulages é o preto, este só vale pela luz que, aqui e ali, o valoriza por efeito de contraste (como sugere aliás bela­ mente a etimologia do nome do pintor: Soulages, ou Solages, que significa sol que age). Mas esse contraste entre a luz e a sombra, no qual freqüentemente e com pertinência se insistiu a propósito de Soulages, é apenas um contraste entre ou­ tros em um artista cuja obra inteira é feita de equilíbrio entre forças opostas, de conciliação feliz dos contrários: aliando constantemente o impulso à contenção como o Moisés de Michelangelo tal como o interpreta Freud -, o movimento à imobilidade, a pulsação dos ritmos à calma das praias silenciosas à noite, a vio­ lência ao rigor, a emoção à serenidade, o frenesi ao controle, a profusão ao despojamento, a sensualidade ao ascetismo, a riqueza à pobreza. Essa combinação dos contrários evoca a seu modo a aliança da ordem e da desordem característica da arte grega. Como repete com pertinência Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, a serenidade grega não consiste em uma refutação da veemência mas em uma confrontação com ela que ao m esm o tempo a exprime e a contém (no duplo sen­ tido do termo): como os deuses frente aos Titãs, os Lápitas frente aos Centauros, os Gregos frente às Amazonas, todos tem as favoritos da escultura grega clássica. A força inerente a uma tal pintura dispensa oportunamente o seu autor de lá estar pessoalmente presente: o efeito produzido por aquela sendo suficiente, este não tem mais o que fazer lá. Uma boa pintura se reconhece no que ela só pede para ser vista, não interrogada quanto a suas intenções ou quanto a pessoa de seu autor, - do mesmo m odo uma boa música, que só pede para ser tocada e não interpretada, segundo o desejo muitas vezes expresso por: iviaunce 1_____ Ravel. Não há outra presença, nas telas de Soulages, senão a das próprias telas. Este é um outro ponto freqüentem ente sublinhado pelos comentadores de Soulages, que insistem no fato de que seus quadros existem de uma certa maneira por eles mesmos, im põem -se com o presença imperiosa e autônoma. E o próprio Soulages gosta de invocar uma fórmula de Victor Segalen, em Stèles (Esteias), que vai no mesmo sentido: Eles não exprimem, eles significam, eles são (eu sublinho). Poderíamos ver aí apenas uma absurda petição de princípio, pois no fundo é a sorte de todo quadro, com o aliás de toda coisa em geral, ser apenas em tima análise o quadro que ele é. No entanto, o caso é mais notável do que P 594

e, e os comentadores de Soulages têm toda razão de insistir nisso. Pois há gávea.

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Pierre Soulages, Pintura, 1964. GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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muita diferença entre um quadro que não sugere nada a não ser ele mesmo (caso mais raro) e um quadro parasitado por uma acum ulação de confidências e de mensagens que lá se encontram, muitas vezes inconscientemente, depositadas (caso mais comum). É evidente que a recusa da figuração, em Soulages, traduz principalmente uma recusa instintiva de tudo o que diz respeito ao anedótico ou ao psicológico. É igualmente verdadeiro que a escolha da abstração não conduz automaticamente, muito pelo contrário, a uma desaparição do anedótico e do psicológico (do mesmo modo que a escolha da escrita dodecafônica ou serial, em música, não conduz necessariam ente a uma renovação da escrita musical, como demonstram as obras de muitos compositores considerados ontem ou hoje como de vanguarda): inúmeros são os pintores abstratos que se propuseram esse mesmo objetivo sem por isso conseguir atingí-lo. Eis porque é notável que Soulages tenha alcançado isso. É desnecessário precisar que essa eliminação dos elementos pessoais e psicológicos é, de qualquer modo, a proeza de todo grande pintor (e de todo criador), quer ele seja figurativo ou não, - que esse velamento da pessoa do artista é paradoxalmente um dos traços maiores de sua originalidade ou do que se chama, não sem algum equívoco, sua personalidade.

O enigma Que um quadro não sugira nada além dele mesmo, como os de Soulages, não basta naturalmente para determinar seu valor. É preciso ainda que ele sugira por sua presença uma significação cuja natureza ambígua - tal como a analisa por exemplo Kant na Crítica da Faculdade do Juízo, a propósito do belo em geral - é ser ao mesmo tempo sensível à imaginação e ininteligível ao entendi­ mento: assegurar em suma ao espectador que algo de essencial lhe é dito, mas não lhe precisar a natureza de seu próprio dizer. Tal com o um signo irrefutável cuja forma significante se reconheceria na primeira olhadela, sem conseguir com isso identificar seu conteúdo significado. Não basta portanto não dizer nada de preciso para produzir uma obra de arte, - senão toda garatuja poderia passar com toda razão por genial, com o aliás acontece às vezes. É preciso ao mesmo tempo não dizer nada de preciso e evocar im periosamente a precisão de um dizer. ladünir Jankélévitch define esse paradoxo da obra de arte, a propósito de abriel Fauré, como paradoxo do rigor evasivo e expressão inexpressiva aliança de ■

c^aro e uma significação inapreensível. Repetindo: a ausência de sigção clara não basta. A ela deve se acrescentar a inscrição, rigorosa e irrecusável, de um signo. •

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^ou^a8 es se destaca precisamente na produção de tais signos e a potência e firm eza de seu traçado, suas telas forçam o recogávea.

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nhecimento de uma ordem sem revelar seu segredo: limitando-se a assinalar a marca de uma ordem de regras desconhecidas @), como diz Bernard Ceysson a propósito de Soulages. Elas dão a saber que algo ali é dito, mas não precisam mais; figurando assim uma série de objetos significantes não identificados, ainda mais perturbadora porque, pela notável unidade de estilo de seu autor, impõese rapidamente o sentimento de que essa coisa que aí se encontra ao mesmo tempo indicada e não explicitada é de resto sempre a mesma. De forma que o espectador se encanta ao mesmo tempo que se irrita consigo mesmo no fundo: entusiasmado por experimentar sempre o mesmo encantamento, mas exaspera­ do também por jamais conseguir elucidar o mistério desse encantamento, que o desafia passando e repassando todo o tempo sob os olhos, como esses desenhoscharadas que dissimulam o chapéu do gendarme ou a cabeça do lobo con­ fundindo-os com os traços inocentes da folhagem de uma árvore ou de um reflexo na água. E o eventual comentador resmunga naturalmente mais ainda, por se ver privado de todo discurso plausível no momento em que justamente se prepara para escrever, - como atesta o próprio Bernard Ceysson, autor de um dos primeiros livros franceses consagrados à pintura de Soulages: Se a obra é esse monumento enigmático, cujo sentido está nele mesmo, é o que ele é, arremessado aí con­ tra nosso olhar e nossa consciência, não há comentário possível senão no risco da metá­ fora (4). Papel difícil realmente o do comentador, que reconhece entre mil uma tela de Soulages mas fracassa em definir sua originalidade, salvo recorrendo à tau­ tologia (Uma tela de Soulages se reconhece pelo fato de que é uma tela de Soulages), ou a uma metáfora geralmente tão menos arriscada quanto pouco esclarecedora (Uma tela de Soulages se reconhece pelo fato que ela evoca um objeto X que evoca por sua vez uma tela de Soulages). Esse reconhecimento assegurado da maneira do artista, conjugado a incapacidade de fornecer uma explicação exata da mesma, exprime aliás uma verdade que vale não apenas para toda obra de arte mas tam­ bém para toda espécie de realidade desde que esta seja de qualidade, como um bom queijo camembert ou um vinho da Borgonha: é sempre - e isso contraria­ mente ao que insinua o senso comum, subordinando pela via de conseqüência mais aparente do que real todo reconhecimento a um conhecimento prévio infinitamente mais fácil reconhecer do que conhecer, distinguir do que definir. Existem, fora do domínio considerado especificamente artístico, objetos portadores de uma tal significação enigmática, isto é, ao mesmo tempo e indiscernivelmente significantes e não significantes. Caso das escritas ainda não decifradas, - mas é verdade que estas se tomam agora raras. Caso também das escritas decifradas mas que entretanto não permanecem menos mudas aos olhos do não conhecedor, que nelas só distingue eventualmente uma evidente beleza GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Pierre Soulages Pintura, 31 de maio 1994.

gráfica. Caso ainda e sobretudo das numerosas construções pré-históricas, como os menires da Bretanha ou os taulas de Minorca, que atestam uma significação funcional ao mesmo tempo indubitável (no passado) e indecifrável (hoje). Eis porque tais vestígios possuem, e atualmente mais do que outrora, um eminente valor estético: por haver perdido tudo de sua significação passada sem nada perder por isso, e bem ao contrário, de seu poder evocativo. O próprio Soulages

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aproxima o interesse suscitado por esses monumentos daquele que o motiva e que ele consegue despertar pela elaboração de suas próprias obras: "Quando estou comovido por um menir, gravado por homens dos quais ignoro tudo, não é porque reencontro nele os seus estados de alma nem a transcrição do que eles são, e que jamais saberei; o que me emociona é, através da organização dos traços, a qualidade da incisão, a vontade obstinada que aí descubro de marcar um traço nessa pedra erguida e elevd-la a dignidade de figura" (5). E ele compara habitualmente, pela mesma razão, o caráter enig­ mático do objeto pictural ao caráter indecifrável da mensagem poética, tal como evoca Guilherme de Aquitânia(6) em um poema muito curioso: Vou compor uma canção sobre o puro nada: Nela não se tratará nem de mim nem de outras pessoas, Nem de amor nem de juventude, Nem de outra coisa (...) Minha canção está composta, não sei sobre o que; Vou enviá-la àquele Que, por um outro, a enviará Para lá longe na direção de Anju Para que ele me faça chegar de seu cofre A contra-chave A contra-chave de que se trata aqui é provavelmente a segunda chave, necessária para a abertura de certas fechaduras, sem a ajuda da qual uma porta permanece sempre fechada e um poema para sempre enigmático.

Pintura e tempo As telas de Pierre Soulages, diferentemente de muitas outras pin­ turas abstratas, esforçam-se por apagar todo traço dos gestos que trabalharam para sua composição. Essa recusa da expressão gestual responde a uma dupla intenção. De um lado, preocupação de eliminar da tela tudo o que denunciaria a mão e a pessoa do artista trabalhando, suas hesitações e seus arrependimentos. Por outro lado, vontade de tirar a obra da temporalidade: de eliminar por con­ seguinte tudo o que traz a marca do tempo, como precisamente o gesto cuja su­ gestão sobre a tela bastaria para evocar o tempo pelo sentimento que ele implica da duração, por breve que seja, de sua realização. É assim que Soulages consegue suscitar uma impressão de simultaneidade fulminante, ou ainda de instantaneidade e de tempo imóvel, para retomar expressões do próprio pintor. Essa renúncia

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a todo efeito que implicaria uma consciência do tempo é um dos segredos de Soulages, contribuindo poderosamente para a impressão de presença e de coesão que emana de suas telas. É verdade que essa vontade de colocar o tempo em xeque pela presença perene do objeto pictural, de prender o tempo através do espaço da tela como diz Soulages, é uma constante da pintura cujas únicas variantes são as de conseguir isso mais ou menos. Schopenhauer não se engana quando caracteriza a pintura por sua aptidão para contestar o escoamento do tempo, para integrar o fugaz no durável (assim como sugere também John Keats, e de maneira mais surpreendente ainda, em sua Ode sobre uma urna grega): "O próprio instante, em tudo o que ele tem de fugaz e de momentâneo, pode ser fi­ xado pela arte; é o que se chama hoje um 'quadro de gêneroessa representação pro­ duz uma emoção sutil e particidar; pois, fixando em uma imagem durável esse mundo fugidio, essa sucessão eterna de acontecimentos isolados que compõem para nós todo o universo, a arte realiza uma obra que, elevando o particular até a idéia de sua espécie, parece forçar o próprio tempo a não mais fugir" (8). Assim por exemplo a música, cuja potência expressiva Igor Stravinski define por sua aptidão para substituir o tempo real e psicológico por um tempo autônomo que Stravinski, para opor à fuga do tempo real, qualifica de ontológico (9\ - tempo rival e paralelo em suma, que escapa à sorte comum da realidade e do tempo real graças a um estatuto particular que garante à música o privilégio de uma espécie de extra-territorialidade e de extra-temporalidade. Observaremos aqui no entanto uma importante diferença entre a expressividade musical e a pictural. Todas as duas têm certamente em comum pretender competir com o tempo; mas elas divergem quanto a escolha dos meios e a natureza do efeito obtido. A música opõe ao tempo um outro tempo: o combate é aqui, de certo modo, com armas iguais (cada um dos adversários dispondo de seu próprio tempo). Ao passo que a pintura não tem nenhum tempo específico a opor ao tempo real, já que todo o seu poder se resume aqui à sugestão, fantasmática e contraditória, de uma suspensão do tempo: combate desigual por conseguinte (já que só um dos dois adversários dispõe da arma do tempo). Daí o caráter ao mesmo tempo onipotente e provisório do efeito musical: sua resistên­ cia ao tempo está garantida, mas somente enquanto dura o seu próprio tempo (a partir do momento em que este cessa, cessa também a resistência: o tempo real retoma os seus direitos). Mas também o caráter ao mesmo tempo mais precário e mais definitivo do efeito pictural: opondo ao tempo uma resistência nula, ele não se expõe de seu lado a nenhuma derrota, já que não participa de nenhum 600

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combate. A pintura se coloca assim paradoxalmente a salvo do tempo por sua incapacidade total de competir com ele: sua falta de dimensão temporal a preser­ va dos estragos do tempo, - falo aqui do efeito pictural e não da materialidade do objeto de arte, este naturalmente mais perecível do que um livro ou uma par­ titura musical. Para repetir em termos talvez um pouco sibilinos: não tendo nen­ huma razão de existir, a pintura também não tem razão de cessar. Percebe-se aqui a natureza da diferença entre o efeito musical e o efeito pictural, do caráter na minha opinião mais poderoso do primeiro, mais persistente do segundo. E possível percorrer o mais prestigioso dos museus sem experimentar a menor emoção; em compensação, é difícil imaginar uma escuta musical que não seja seguida de um efeito qualquer, nem que seja sob a forma do tédio ou de um vago desagrado (que revela por exemplo Kant, impermeável a toda música, na obra citada anteriormente). Mas, por um outro lado, a audição musical é necessaria­ mente passageira, enquanto que a tela permanece. Para contrariar para sempre o tempo, seria preciso que a música não cessasse jamais: proeza impossível, que a pintura no entanto realiza, sem problema e por definição. Pode-se interromper um concerto; não se interrompe nunca um quadro.

Notas ( 1 ) L'art du peu, Gallimard, 1983. ( 2 ) Fauré et L'inexprimable, Plon, 1974, terceira parte, capítulo I. ( 3 ) Soulages, Flammarion, 1979, p.5. ( 4 ) Idem, p. 18. ( 5 ) Cf. B. Ceysson, op.cit., p. 81. ( 6 ) Guilherme IX, duque de Aquitânia, soberano e trovador (1071-1129). ( 7 ) Cf. B. Ceysson, op.cit., p. 14. ( 8 ) 0 Mundo corno vontade e representação, tradução francesa de Burdeau e Roos, P.U.F., p. 297. ( 9 ) Cf. Poética musical, ed. Plon, pp. 21 e seguintes.

Texto publicado originalmente no catálogo da exposição Pierre Soulages realizada no Museu St. Pierre de Lyon em 1987. Republicado na coletânea Matière d'Art - Hommages, ed. Le Passeur - CECOFOP, Nantes, 1992. O tradutor agradece a Yves Douet, diretor da ed. Le Passeur e a Clément Rosset que permiti­ ram gentilmente a publicação desse texto, com exclusividade para o Brasil, na Revista GÁVEA.

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No passeio público, Rio de Janeiro, em 1943. Da esquerda para a direita, atrás: Manoel Martins, Jacques Corseuil, Martins Gonçalves, Judith Cortesão e Carlos Scliar, à frente: Athos Bulcão e Ruben Navarra. Coleção Carlos Scliar


Ruben Navarra c ritic o de arte no Rio de Janeiro nos anos 40 A crítica de arte exerce papel preponderante na formação de uma visão abrangente de arte. Detectar e avaliar o percurso dessa crítica nos periódicos do Rio de Janeiro na década de 40 e a postura de Rüben Navarra como seu exem­ plo, é essencial para compreendermos a história da arte brasileira e o ambiente cultural e artístico dessa época. Rüben Navarra Crítica de Arte Modernismo

PIE DA DE EP ST EI N GRINBERG Pós-graduada no Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, PUC-Rio; Mestre em História e Crítica da Arte, EBA-UFRJ; Diretora do Solar Grandjean de Montigny- Centro Cultural da PUC-Rio.

”A função do crítico é criticar, ou seja, colocar-se a favor ou contra e situar-se situando" (Jean Paul Sartre. Situations, 1947). Tomando por base a atualidade como um dos critérios fundamen­ tais da crítica de arte, que coloca o crítico pertencendo ao seu tempo, refletindo sobre a realidade e descortinando novos horizontes, traçamos uma trajetória da critica de arte dos anos 40 na pessoa de Ruben Navarra, através da leitura de periódicos diários, semanais e mensais. A figura do intelectual que escreve sobre arte, seja ele escritor, poeta ou filósofo, e do jornalista ou cronista que se especializa em assuntos artísticos, adquire, no âmbito cultural do Rio de Janeiro dessa década, uma postura especí­ fica. Nesse momento, um grupo de elite de intelectuais foi convocado para atuar nos mais diversos setores federais e estaduais com uma importante missão política e cultural, ocupando cargos de confiança exercidos em comissão junto à Presidência da República e aos demais órgãos vinculados ao poder central. Vários desses escritores e intelectuais, como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cândido Portinari, Oscar Niemeyer, Raymundo Melo Franco de Andrade e outros, os chamados expoentes da modernidade brasileira (1), ocupavam cargos como funcionários do Governo Federal, especificamente ao lado do Ministro Capanema, prestando diversos tipos de colaboração à política cul­ tural do Regime Vargas, aceitando encomendas oficiais de prédios, livros, concertos, manuais escolares, guias turísticos e obras de arte, participando ativamente das decisões as mais hrjportantes para a nossa cultura nas instituições de difusão cultural, de propa­ GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Ruben Navarra

ganda e de censura, assumindo o papel de representantes do governo em conferências, congressos e reuniões internacionais, em suma, prestando múltiplas formas deassessoria em assuntos de sua competência e interesse. {2) A crítica de arte nos jornais e revistas da década de 40 no Rio de Janeiro, exercida por escritores e poetas do nível de Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Anibal Machado, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Otto Lara Resende, Vinícius de Morais e os já citados, torna-se importante e variada, contribuindo para um jornalismo mais sofisticado. Essa chamada intelectualidade brasileira partilhará com os artistas de uríí processo cultural que começa a ser implantado, no momento em que o país apresenta problemas de afirmação nacional e se mostra descompassado historicamente no contexto de um verdadeiro país moder­ no. A inteligentzia brasileira, na figura desses literatos, e a despeito de vários equívocos políticos, exigia que uma parcela desse projeto coletivo fosse entregue às letras e às artes, numa tentativa de libertar a sociedade brasileira do ranço de um passado colonial. Com esse objetivo, os escritos - assuntos polêmicos ou não - serão muitas vezes discutidos e enfocados diretamente na imprensa de modo a criar um vínculo estreito e permanente entre os artistas, os literatos e o leitor, mesmo que essa atitude tivesse uma conotação elitista por estar sendo direcionada para um público determinado. É possível pensar como o público alvo, uma classe intelectual emergente, formada por uma fatia da sociedade que começava a des­ pertar para as questões artísticas, através de várias exposições internacionais que acontecem na cidade nessa década. É relevante assinalar a importância da vinda de intelectuais e artistas estrangeiros que se estabelecem no Brasil ou que aqui permanecem por certo período, em fins da década de 30 e durante os anos 40. Acostumados a participar em seus países de origens de uma vida cultural mais intensa, forçam, de certa maneira, os meios de comunicação a uma maior divul­ gação de eventos culturais. Mesmo não tendo uma nomenclatura artística específica, essa ativi­ dade jornalística possuía uma qualidade literária excepcional. Os articulistas e ensaístas contribuíam com posições claras e definidas que expressavam o pensa­ mento não só do seu autor, mas também a posição do jornal que, na maioria das vezes, corroborava as idéias dos articulistas, através de seus editoriais, numa adesão explícita aos preceitos modernos contidos na maioria dos artigos e ensaios. Será a partir dos textos desses intelectuais que os leitores serão informados, orientados, educados para um novo olhar e uma nova perspectiva em relação às atividades artísticas que estavam sendo fundamentadas naquele 604

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momento. A crítica de arte, exercida por esses literatos e já quase totalmente livre dos dogmas acadêmicos, adquire um papel fundamental na consolidação da arte moderna no Brasil e na preparação desse público em direção ao que oco­ rrerá de mais contemporâneo: a implantação dos Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro, a Bienal de São Paulo e o advento da arte abstra­ ta e da arte concreta. A partir da análise do conjunto de textos dos intelectuais que escreveram nos periódicos nessa década, destacamos aquele que, de alguma maneira, nos chamou atenção por apresentar alguns aspectos e características especiais. Ruben Na varra torna-se então o exemplo escolhido. Será através de suas críticas, ensaios e crônicas que esse período se definirá de maneira mais clara e objetiva. Detentor de um temperamento perspicaz e de uma bagagem cultural que abrange grande parte da história da arte universal, da arte brasileira, da filosofia e da história, Navarra soube questionar e colocar alguns problemas da arte brasileira apesar de ainda se encontrar preso aos preceitos ideológicos e nacionalistas do modernismo de 22. Herdeiro da tradição intelectual nordestina que durante as décadas de 30 e 40 dotou o Brasil de importantes intelectuais e artistas, Ruben Navarra, pseudônimo do paraibano Rubens de Agra Saldanha (1917 -1955), bacharel em Direito, chega ao Rio de Janeiro no princípio dos anos 40. Possuidor de uma estrutura cultural sólida constatada pela sua rápida absorção ao meio intelectual carioca, incorpora ativamente o papel de crítico de arte em momentos cruciais da arte brasileira, especialmente aqueles que exigiam uma reação imediata de todos os setores da cultura. Participa dos importantes eventos culturais e artísticos do Rio de Janeiro, quando convive com o núcleo dos mais proeminentes literatos, escritores, artistas, ensaístas, profes­ sores da Escola Nacional de Belas Artes, e, junto com eles, postula uma atividade jornalística e crítica que teve um papel preponderante no estabelecimento e na divulgação da arte moderna no Brasil. Os primeiros escritos de Ruben Navarra na imprensa carioca datam de 1940 na Revista do Brasil, sendo que colabora com vários periódicos como a Revista Rio, Revista Acadêmica, Revista Sombra, Revista Leitura e os jornais Diário de Notícias, O Jornal, A Manhã e Correio da Manhã. Ruben Navarra tratará no decorrer de quase uma década de aspec­ tos específicos da arte e da cultura brasileira. Seu mais profícuo trabalho será no Diário de Notícias, onde postulará ensaios e crônicas sobre arte, arquitetura, músi­ ca, teatro, esporadicamente no início da década de 40 e, de 1945 a 1948, aos GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Ruben Navarra

domingos, no Caderno Letras, Artes, Idéias Gerais como titular da coluna Movimento Artístico. Interrompe sua trajetória jornalística no final de 1948, quan­ do viaja para a Europa, não retornando para essa atividade. Reiterando a premissa de que a crítica de arte tornou-se fundamen­ tal para o estabelecimento da arte moderna no ambiente cultural brasileiro, os textos de Ruben Navarra nos colocam diante de um crítico que levanta questões concretas do debate cultural do nosso país baseadas na estética dos artistas modernos de tendências notadamente figurativas. Como ensaísta, adota um sistema e uma técnica única para seu tra­ balho. Seus textos são longos e prolixos, detalhados, minuciosos e descritivos, quando se coloca como intermediário entre a obra, o artista e o público, alertan­ do, algumas vezes intuitivamente, para as inquietações do artista e do intelectu­ al envolvidos nos vários processos que noticia. Dialoga através de um vocabulário correto e inteligente, com as questões específicas de cada vertente artística apresentada nas exposições que analisa sem, no entanto, dispensar uma articulação precisa entre o que ele considera como arte acadêmica e como arte moderna. Autodidata e profundamente atento às possibilidades de divul­ gação dos conhecimentos de sua bagagem cultural, é possível avaliar sua erudição quando insere em suas crônicas, exemplos da história da arte universal, não se detendo somente em temas sobre as questões da arte brasileira ou aque­ les em que a arte internacional apresenta alguma correlação com o que era pro­ duzido ou exposto no país naquele momento. Sua acuidade intelectual é muito vasta e a preocupação em divulgar uma grande variedade de assuntos é muito intensa. Nesse contexto, curiosamente, afasta-se dos preceitos modernistas quando demonstra forte interesse por artistas brasileiros do século XIX. Discorre facilmente sobre a arte clássica e todos os ismos, fazendo relações precisas entre o artista em foco e sua obra. Com certa freqüência aborda os preceitos dos artistas ligados à Escola de Paris, quando reage polemicamente contra a diversidade de tipos nacionais que compreende essa Escola. Para Navarra, a pintura moderna teve como propósito fazer uma revisão sensorial do espaço, oferecendo ao público uma interpretação visual inédita da relação das cores, das linhas e da estrutura sem, no entanto, desprezar uma técnica apurada. Num artigo sobre pintores novos, opina sobre a precisão da técnica e a importância do métier. Não é absolutamente necessário ser um acadêmico para dar à técnica a importân­ cia que deve ter inevitavelmente. Mas andamos tão cansados de artesãos medíocres, 606

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possuidores de uma técnica nos dedos mas de nenhuma arte na cabeça, que às vezes, damos preferência aos talentos instintivos, de sensibilidade à mostra, apesar da pobreza dos meios (a arte naif). Toda arte tem uma técnica - isso é velho como o mundo. Cumpre pois aprender a técnica. A sensibilidade não se gastará por isso. Nem tampouco a falta de técnica dará sensibilidade aos que não a possuem. Esse é o problema"P) Com uma característica particular que desenvolve nos jornais e revistas, discorre sobre o assunto escolhido a partir de longos textos que se inici­ am com aspectos teóricos e conceituais sobre as várias facetas que integram o tema. Faz uma análise sem depender de terminologia específica, esclarecendo e sistematizando uma situação histórica e estética, sem precisar lançar mão de um receituário determinado. Seus textos se destacam sobretudo pela qualidade excepcional de conhecimento da linguagem literária. Parece-nos que Navarra desenvolve mais uma crítica literária de arte, ou um jornalismo especializado em temas artísticos, do que propriamente uma crítica de arte. Daí um certo caráter militante quando permanece vinculado à implantação da arte moderna, na sua afirmação antiacadêmica e na defesa da modernização das instituições artísticas do Brasil. Desde 1940, o autor já privilegia os artistas assumidamente modernos quando escreve sobre o Salão desse ano, reconhecendo desse modo, a importân­ cia do crítico como formador de um pensamento e de uma modificação do olhar viciado no academicismo. Sobre essas questões, escreve em 1940: "O grosso do Salão é obra de acadêmicos. Não sabemos bem o que parece mais penoso naquelle vasto entulhamento: a deficiência de composição ou a pobreza da imaginação. É difftcil encontrar alguma coisa que não seja empastada e confusa, que não seja o reino da "platitude". Uma lição tiramos dessa galeria acadêmica, é essa a gente que fala mal do modernismo em arte, da livre imaginação, dos moder­ nos, que nos dão a fabulosa poesia de um Cicero Dias ou mesmo os recursos de com­ posição de um Portinari... E felizmente ainda é a presença de alguns modernos, em reduzidíssima minoria que salva o Salão. No meio delles, destacando-se logo duas telas de Guignard, umas figuras de moças brasileiras que parecem saídas de algum poema de Manuel Bandeira ..."^ Quando analisa as questões institucionais como os problemas referentes aos Salões de Belas Artes, sua estrutura, os assuntos museológicos e museográficos ou os do ensino artístico e dos docentes da Escola Nacional de Belas Artes, Navarra aborda, durante várias semanas, os detalhes precisos de cada uma das facetas que o intrigam, tentando com isso imprimir ao público a relevância do assunto. Nesse caso específico, retorna muitas vezes ao tema do GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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embate entre os pintores acadêmicos e modernos, determinando teoricamente quais são essas rupturas e de que maneira o leitor poderá constatar essas diferenças dentro da arte brasileira. Suas descrições são detalhadas e minu­ ciosas, tomando muitas vezes o texto cansativo e repetitivo. Porém, quando descreve o trabalho dos artistas emergentes e suas biografias, o faz de modo meticuloso sem, no entanto, criticá-los. Tenta inserí-los como um todo, ou indi­ vidualmente, nas modernas correntes da arte brasileira que estavam sendo dis­ cutidas naquele momento. Por outro lado, quando privilegia com os seus ensaios os artistas que se tornaram os baluartes da arte moderna brasileira, tendo uma destacada produção nesse período como Portinari, Segall, Guignard, Di Cavalcanti, Cicero Dias e outros, recorre sistematicamente à personalidade do artista, tentando uma correlação direta entre o mesmo e sua obra, buscando definir essa interligação através da sua biografia. Apoia os consagrados de modo incondicional, por serem artistas modernos ligados ao figurativismo, recorrendo sempre que pos­ sível a um procedimento analítico através das tendências da arte internacional como o impressionismo, o expressionismo, a Escola de Paris, o muralismo mexi­ cano, entre outros. Como exemplo podemos citar um dos artigos sobre Segall, em 1943, quando Navarra revê as obras que revelam a preocupação do pintor em denun­ ciar as atrocidades da guerra, reiterando sempre em seus textos a total integração do artista ao Brasil. Navarra adota, nesse momento uma atitude nacionalista exacerbada, como se a escolha de Segall pelo Brasil tivesse sido feita para solu­ cionar o que ele chama de os seus problemas espirituais, convergindo para uma com­ preensão menos cerebral e mais viva da arte, demonstrando desconhecimento crite­ rioso da trajetória internacional do pintor e sua inserção no expressionismo europeu. Diz ele: '...Há os painéis bíblicos do Pogrom, do Navio de Emigrantes e da Guerra. Não serei tão pretencioso que me ponha a falar como um estúpido entendido diante dessas obras tão respeitáveis pela grandeza do seu espírito e do engenho que as realizou. Para nós que vivemos nos dias de hoje, os temas que elas incarnam são por demais avassaladoras das nossas almas, para que possamos olhar aquelas ima­ gens com uma lucidez crítica perfeita. É melhor não dizer nada. O prestígio dos temas é absorvente e sufocador...o que nos parecia lei e dogma da estética não era mais do que incio e deformação mental. O europeu (Segall) aprendeu o equilíbrio da alma, a olhar o seu semelhante com uma simpatia menos sinistra, aprendeu a ser mais sincero consigo mesmo, a triunfar dentro de si mesmo, contra todas as forças exteriores da estética e da moral. Acabaram-se os desenhos excessivamente trian­ gulares dos primeiros tempos e o pessimismo gritante "sains contrainte"da crise 608

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expressionista, logo decadente em fórmula morta, máscara sem vida. O europeu rehumanizou-se no sentido do homem e da natureza, não mais o humanismo con­ vencional das fórmulas. No Brasil, Segall aprendeu a ser verdadeiramente livre. A união da sua arte com a nossa terra tem uma significação bem mais profunda do que parece No segmento do seu trabalho sistemático sobre os grandes nomes da arte brasileira, Ruben Navarra escreve longos ensaios sobre Di Cavalcanti no Diário de Notícias e na Revista Rio, enfocando, quase sempre, seus quadros de modelos femininos. "...a pintura de um Di Cavalcanti é dessas que se destinam, forçosamente, a diver­ tir o público porta-voz do senso comum, quanto mais fáceis de assimilar forem as figuras, na sua aparência de uma solidez apenas deformada, mais haverá reações de zombaria e autoridade nesses amadores da arte grega ... mais recentemente, ainda que respeitando a sua visão da figura humana, o pintor tem mudado a fatura, as matérias lisas, como levado pela decisão de dar a si mesmo uma demonstração da sua consciência de pintor..." Assim como a maioria dos literatos que escreviam sobre os artistas, Ruben Navarra, dedica boa parcela de sua produção jornalística semanal a noti­ ciar e assinalar os trabalhos de Portinari, detentor de forte carisma entre os artis­ tas e críticos da época, quando recebia deles atenção redobrada e grandes espaços na imprensa. Navarra analisa todas as vertentes da obra do pintor, acen­ tuando a importância dos retratos, especialmente os de Maria, fazendo uma interessante distinção no regionalismo de Portinari: a pintura documentária, que ele chama de verdade brasileira no caso as pinturas brejeiras e suburbanas, e a pin­ tura surrealista, que o crítico reconhece na série de Espantalhos. No entanto, o crítico exige do pintor uma postura mais coerente em relação à estrutura da com­ posição plástica, reagindo contra os excessos de fórmulas que depõem contra a sua pintura. Assinala ele: "... um vício que não tem passado impune na sua obra - aquele 'laissez aller'por que se deixa arrastar nas tais pinturas 'em série', repetindo os mesmos temas com pequenas variações, sobretudo nos Espantalhos. É cair num puro automatismo o artista que trabalha com espírito de série, só porque um assunto lhe agrada demais ou alguém se agrada dele. A autoridade do exemplo não lhe tira o tom do mau exemplo. Aqueles espantalhos de Portinari acusam esse vício levado ao extremo abuso de uma fórmula ... Mas não posso me conformar com a repetição do clichê azul-amarelo, a terra e o céu, sempre em forma de duas faixas horizontais e lisas, dois planos cobertos por uma pintura superficial e um colorido vulgar demais". ^ GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Fazendo uma trajetória sobre os trabalhos de Portinari, na série de três artigos intitulado Preparativos da Missa, Navarra percorre suas obras monu­ mentais, como os painéis do Ministério da Educação, os murais de Washington, da Rádio Tupi do Rio e de São Paulo, os afrescos da Pampulha, tentando esta­ belecer uma fronteira entre o quadro e o mural e os problemas decorrentes da inserção da pintura no espaço arquitetônico. Assume uma crítica coerente quan­ do compara especificamente o grande afresco do Ministério em 1944 e os painéis da capela da Pampulha. "O grande afresco do Ministério é uma oportunidade para ele rever momentanea­ mente as imagens fagueiras da antiga fase rural e infantil ... Dividiu o enorme espaço em segmentos bem cortados, segundo as diagonais e as oblíquas. As partes luminosas e sombrias estão geometricamente cortadas. Compondo-se com os planos luminosos, há todo um mosaico de manchas abstratas, motivos de xadrez, temas regionais. O painel representa os brinquedos da infância tendo ao centro a “roda", com a cabra-cega. Não sei se por influencia de Guernica todos os meninos são silhuetas brancas. Figuras planas, por vezes como recortes de jornal, mas con­ traditoriamente com pés sólidos e de um realismo chocante para a plástica do con­ junto. A composição porém, é uma bela e vasta orquestração para tamanha massa de instrumentos ... O painel da Pampulha segue a mesma plástica, apenas acen­ tuando os elementos de solidez na figura monumental do São Francisco. A mesma palheta fria e repousante, ascética. Não está solucionado o conflito: de um lado, o velho gosto da solidez e do outro, as solicitações de uma pintura plana, esquemáti­ ca ... nosso mal estar vem daquele conflito, daquela hesitação entre dois caminhos. Mas dentro de uma tal dúvida não é possível chegar a melhor acordo e harmo­ nia"J 8) O que constatamos nesses textos e em outros sobre os mais impor­ tantes artistas brasileiros dessa década é a preocupação de Ruben Navarra em imprimir numa crítica de caráter e sistema pessoal, um pensamento estético definido, acessível ao leitor diário dos periódicos do Rio de Janeiro. Entretanto, o que verificamos como dificuldade nos seus textos e que merece ser ressaltado é a total descrença de Navarra em relação à arte abstra­ ta e a sua validade para a contemporaneidade. Resume a arte abstrata como uma arte cerebral e disforme, reduzindo essa manifestação artística ao que ele chama de receitas e facilidades e discordando do fato de que, na arte abstrata, a reali­ dade deixa de estar indissoluvelmente ligada à forma. Para ele a pintura abstra­ ta moderna é de fato uma arte de tendência decorativa e ilustradora que, em muitos casos, poderia refugiar-se no domínio das artes menores. Reage sempre 610

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negativamente quando reconhece em algum artista jovem suas tendências para o abstracionismo. Observamos também um grande empenho de Ruben Navarra para acompanhar e reafirmar a importância da divulgação da arte moderna nacional e internacional nos meios de comunicação. A marca de sua originalidade estará presente na sua determinação de instigar o público a perceber o discurso ultra­ passado da arte acadêmica e de seus seguidores. Em todas as oportunidades que se apresentam, Navarra discorre de maneira contundente contra os preceitos acadêmicos e sua nulidade para a década de 40, através de um discurso con­ catenado, visando produzir um efeito pontual e preciso no leitor. “Com toda boa vontade e o maior sangue-frio, percorri mais de uma vez as galerias acadêmicas. Meu único desejo era encontrar, de fato, alguma coisa que pudesse jus­ tificar a meus olhos a arte acadêmica. Sd peço que me convença. Adoro a arte clás­ sica e antiga ... vejo neles a plena decadência do antigo. A utilização medíocre, aliás, da experiência técnica dos antigos, sem uma gota de imaginação deles ...Confesso que nada me irrita mais do que o espírito dogmático. Não sou a priori contra nenhuma arte ... É a imaginação do demodé, a inspiração vulgar e de mau gosto, a grosseria decorativa da pintura ... tudo isso é falso ... é, na verdade, a ver­ são botocuda e fora de moda do classicismo..."^ São também conhecidos seus ensaios e estudos sobre o colonial e o barroco e os artistas desse período, a partir de constantes viagens que empreen­ deu a Minas Gerais. Esses textos possuem uma conotação específica que alia a arte e a arquitetura ao roteiro turístico. Navarra era um entusiasta das questões do patrimônio histórico e arquitetônico brasileiro, seguindo os passos, mesmo tardiamente, dos modernistas. Sobre esse seu profundo interesse, escreveu Murilo Mendes: "Tive a sorte de viajar com ele em terras de Minas Gerais. O nordestino identifi­ cado com a atmosfera particular de Minas, onde permanecera longos meses, revela­ va ao mineiro, cedo transplantado para o Rio, as igrejas de Brumado, Serro, Catas Altas, Santa Rita Durão e outras. Nessa viagem Ruben demonstrou um conheci­ mento aprofundado da arte colonial brasileira. Mas não era só um crítico e um his­ toriador do nosso barroco que se manifestava: era também um poeta, um artista que extraía dos monumentos e da paisagem uma lição espiritual, um rendimento máximo de beleza. Essa viagem forneceria muitos elementos ao meu livro 'Contemplação de Ouro Preto ‘, cujo primeiro poema é justa e precisamente dedi­ cado a Ruben Navarra"P0)

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Maria Helena Vieira da Silva, La Partie d'Échecs, 1943, óleo s / tela, 81 x 100 cm. Musée National d'Art Moderne, Paris

Um outro aspecto pertinente da trajetória crítica de Ruben Navarra são suas crônicas sobre o trabalho dos artistas estrangeiros recém chegados ao Rio de Janeiro durante os anos 40. Moradores, como ele, da Pensão Internacional em Santa Tereza e da Pensão Mauá, no mesmo bairro, esses artistas e outros vin­ dos de vários lugares do Brasil, mantinham relações estreitas com inúmeros intelectuais e, junto com eles, promoviam reuniões onde os temas principais eram as questões artísticas, musicais e literárias. O convívio estreito nos ateliers, propiciou a Navarra desfrutar da intimidade e da cozinha de artistas como Maria Helena Vieira da Silva. "Escrevo sob a influência de uma tela que hoje está, se não me engano, num museu de Nova York. Tive-a diante dos olhos cada vez cjue me vi, isto é, quase diariamente, no atelier de Maria Helena Vieira da Silva .. Quanto é bom conviver com uma artista como Maria Helena! Assisti-la na cozinha elaborando a lanterna de todos os dias ! Ainda a vejo diante do cavalete, em alguma rápida visita, o carvão riscando uma larga tela em todas as direções, e particularmente na diagonal, os andaimes sendo montados não para alguma evasão do abstrato, mas para o comício dos fan­ tasmas que surgirão dentre as ruínas do mosaico, valado de sombras se dissolven­ do no espaço alucinação das masmorras de guerra".W Sobre Arpad Szenes, Navarra descreve o seu atelier freqüentado pelo crítico durante muitos anos. Analisa seus trabalhos com grande apuro, porque se atém mais às questões pictóricas e menos às biográficas. Discute para 612

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o público a obsessão do artista em pintar retratos, sua ligação com o expressionismo europeu, a sua formação e as pesquisas da matéria através de naturezas mortas. "Eis uma pintura que desafia os literatos ... ausência total do anedótico. Nenhuma literatura visível, nenhuma história a coutar. Como que zombando do assunto, o pintor se evertua em passar e repassar os mesmos temas, em pintar série de vari­ ações puramente plásticas em torno da mesma cena, da mesma figura ... Isto é uma licão didática para os artistas ... sobretudo para os literatos. É uma dura lição para a crítica. O pintor obriga a falar de pintura e não do assunto em si, pois em face daquelas 'repetições 'a literatura se tornaria insuportável. Não há disfarce pos­ sível. A pintura nos aparece na sua alquimia de métier , na sua linguagem que resiste a toda equivalência de palavras. Ali é a pintura no que ela tem especifica­ mente orgânico em seus meios, em sua linguagem" Apoia também os chamados artistas desconhecidos como Djanira e Pancetti, reconhecendo neles as mais puras raízes da arte brasileira. Porém o crítico terá um papel de inegável responsabilidade quando intui e reconhece em certos jovens artistas, talentos irrefutáveis, onde as possibilidades de seu desenvolvim ento artístico, serão refletidas por Navarra e não somente descritas. É o caso de pintores como Iberê Camargo, Scliar, Bandeira e alguns da chamada Família Paulista. Sua postura será a de um crítico de arte com um pensamento estético próprio e autônomo, onde a permanência desses novos talentos na arte moderna brasileira será projetada de modo quase visionário, através de reflexões e disposições inéditas. É nesse momento que Navarra pode dar vazão à sua liberdade de refletir a atualidade, distante da sedução dos artistas consagrados. Na verdade, esses novos artistas são tão jovens quan­ to ele e, conseqüentemente, testemunham e participam da arte do seu tempo. Dedica a Carlos Scliar uma atenção especial, em quem deposita as maiores esperanças de se tornar um expoente da arte brasileira. Escreve lon­ gos artigos sobre o jovem artista, destacando nos temas dos quadros, a pre­ ocupação do pintor em retratar a figura humana. ‘‘..xis fornias humanas perdidas no deserto, descamadas como folhas ressequidas, flutuan­ do num ritmo quase patético de criaturas fora do mundo... pinta uma espécie de metnória do pesadelo, estendendo um palco de fixação e nele distribuindo seus fantasmas...’^ ) Quando Scliar volta da Itália, depois da guerra, Navarra escreve um longo artigo onde observa a maturidade e a experiência adquiridas pelo pintor.

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"O Scliar que volta agora da Itália é bem diferente... É o olho plástico agora que condia o processo de transcrição artística. Os temas não vêm mais da pura imaginação literária, nem se realizam mais como simples ilustrações. Agora, a imagem vale por si mesma, pela sua estrutura linear e visual, pela vibração que lhe transmite uma técnica caligráfica senão de desenho, pelo menos de observação ... Suas linhas não copiam apenas uma forma: vibram na contemplação lírica; modelam a figura com uma calma emoção, fazendo-a sur­ gir do papel branco, buscando o caminho da forma como se apalpassem o mistério...''<14) Desde 1946, Ruben Na varra chama a atenção em vários de seus tex­ tos para os artistas que, individualmente, se destacarão como prodigiosos. É o caso do pintor Iberê Camargo que merecerá uma crítica premonitória quando o articulista já antevê com acuidade a importância de suas pinturas que, em 1947, culminarão com a obtenção do prêmio de viagem ao exterior recebido no Salão de Belas Artes. Num artigo, destaca sua postura individualista, que per­ manecerá durante toda a sua vida. “Na pintura de Iberê Camargo, tudo, desde o princípio, encaminha-se para uma certa eloquência de expressão nos seus meios. O olho se lambusa euforicamente na floresta pastosa do óleo ... deixa de lado o problema das invenções formais para darse todo aos segredos e prazeres da pintura em sentido estrito. Iberê Camargo exibiu uma enorme bagagem para artista de sua idade, numa prova convincente de que a pintura é um trabalho a que vem devotando sua vida. Não exagero, penso eu, em considerá-lo o melhor pintor brasileiro de sua geração, o tributo que o Sul ainda não lhe tinha pago à nossa pintura moderna ... É que o colorido de Iberê Camargo é desses que só um selvagem poderia ficar indiferente diante dele"/15l Num longo artigo publicado na Revista Sombra em 1942, intitulado A Pintura Moderna, Ruben Navarra argumenta os modernos postulados artísticos interna­ cionais, numa comparação entre os sis­ temas usados pelos pintores antigos e os novos processos de criação. Exalta a oportunidade que os pintores modernos têm de deixar fluir a imaginação, reti­ rando dela todos os elementos necessários para a execução de seu tra Carlos Scliar, Sargento Posando, 13/01/45, nanquim, Porreta Terme, 16,5 x 17 cm. Coleção Carlos Scliar


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balho. Discorre sobre as várias etapas da criação artística, detendo-se na per­ cepção e nos problemas enfrentados pelos artistas na busca de novas experiên­ cias. Levanta questões sobre a repercussão das obras de arte moderna e a inqui­ etação que causam entre o público que se surpreende com o inusitado e o diferente, não aceitando essas obras como manifestações artísticas. "Oartista moderno tem que ser um iconoclasta, antítese natural do "grande públi­ co". Este não se cansa de aplaudir a mesma coisa, aquilo que não vem perturbar o gosto convencional ... É absolutamente inevitável que toda a obra realmente cri­ adora seja chocante para esse público. Que o espectador comum não tem a menor imaginação, é evidente, é da sua condição natural. Devemos admitir, como critério infalível que o desfavor do público já é uma valiosa presunção em favor do artista que traz algo de novo a revelar... O público julga por hábito e através de fórmulas. A opinião do público não tem a menor importância em arte ..P 6* Especifica mente sobre arte brasileira, resgatamos um interessante ensaio publicado em espanhol, na Revista Sur de Buenos Aires, em 1942, três anos antes da exposição de arte brasileira promovida por Marques Rebelo que itinerou pelos países da América Latina e suscitou o livro do crítico de arte argentino J. Romero Brest, La Pintura Brasilefia Contemporânea. Nesse estudo histórico e descritivo, Navarra faz uma trajetória da arte contemporânea brasileira, seu vínculo com a Escola de Paris e o distancia­ mento cada vez mais evidente que o movimento artístico vai tomando dos dog­ mas transmitidos pela Academia. Critica de maneira veemente os artistas acadêmicos e sua posição intransigente perante os artistas modernos. Faz uma rápida comparação entre os artistas modernos brasileiros e os mexicanos, desta­ cando nos dois grupos uma preocupação dominante de criar uma arte com uma atmosfera tipicamente nacional, inspirada num lirismo regionalista. Nesse histórico sobre a arte brasileira, não deixa de destacar as figuras dos nossos mais proeminentes artistas, iniciando por Lasar Segall, Anita Malfatti, Tarsila, Guignard, Ismael Nery, Cícero Dias, Portinari, Pancetti até a nova geração de pintores de São Paulo e do Rio. Registra a importância da difusão artísticoliterária entre essas duas cidades e Recife. "De norte a sul, poetas e artistas andavam descobrindo o Brasil em espírito, impregnando-se de humus brasileiro. Nossos pintores modernos começaram a com­ penetrar-se seriamente com os valores regionais. Tarsila chegou a expor com êxito em Paris sua pintura, toda ela inspirada numa temática cem por cento brasileira ..." (17) Afirma, porém que a pintura moderna nasceu e desenvolveu-se GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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primeiramente em São Paulo, ressaltando que o Rio não possuía um ambiente tão animado e propício para ser o berço da arte moderna brasileira. Termina esse ensaio apresentando alguns pintores residentes no Rio de Janeiro que pela sua postura são representativos da nova geração de artistas modernos brasileiros. O texto que podemos definir como o resumo de todo o pensamen­ to teórico e estético de Ruben Navarra sobre a arte moderna brasileira, intitulase Iniciação à Pintura Brasileira, no qual ele apresenta um criterioso e profundo estudo. Publicado na Revista Acadêmica em abril de 1945 (18), foi escrito em 1943 para ser publicado em inglês no catálogo da Exposição de Pintura Moderna Brasileira, organizada pelo British Council e apresentada na Royal Academy of Arts em Londres, com vendas em benefício da RAF. O prefácio desse catálogo foi assinado por Sacherevell Sitwell, que analisa a moderna arquitetura brasileira como uma grande conquista de um idioma moderno e critica a grande influên­ cia da arte da Europa Central na pintura brasileira. Assinala também que nossos artistas ainda não apresentam uma direção bem definida em relação à arte moderna. Ruben Navarra discorda do crítico inglês e reage, alegando que as influências internacionais são poucas e que nossos artistas já possuem manifes­ tações artísticas coerentes ligadas sobretudo às raízes nacionais. Nesse ensaio, o crítico assume uma retrospectiva teórica dos marcos fundamentais das origens da arte moderna brasileira, reconhecendo as heranças da arte francesa, as influências da Escola de Paris e os postulados que levaram os artistas a desenvolver uma postura própria através de um fazer artístico pre­ ocupado com as questões das raízes brasileiras, discutindo o caráter nacional da produção artística. Traça um paralelo entre os pintores brasileiros e os mexi­ canos, reconhecendo neles o mesmo elemento criador que vai ao encontro de uma imagem mais sincera da realidade nativa. Navarra acredita, porém, que a arte brasileira contemporânea não é derivada diretamente de fatores interna­ cionais. Exemplifica isso através da obra dos mais conhecidos pintores, acres­ centando a esse discurso uma cronologia pessoal e artística, colocando esse artista em relação à produção e ao contexto dessa época determinada. Navarra segue nesse estudo questionando e contextualizando a legitimidade da arte e exigindo dos artistas uma denúncia mais completa dos valores da verdadeira arte brasileira e sua inserção no seu tempo. Ninguém pode falar em pintura brasileira se essa pintura nada diz da terra com a sua paisagem, sua luz, suas cores, nem do homem com sua fisionomia, seus cos­ tumes, tradições. Considerando cada caso isoladamente, a 'qualidade'da pintura há de ser independente do assunto, mas olhando o conjunto do movimento artístico GÁVEA. 15 (15), julho 1997


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numa perspectiva histórica da cultura, é claro c\ue não se pode falar de pintura brasileira se essa pintura não tem raízes na terra, do mesmo modo que para falar de música brasileira, há de haver melodia, ritmo e construção inspirados no folclore brasileiro. A existência incontestável de uma attnosfera brasileira em nossa pintu­ ra moderna - algo que nos fala da terra, do povo, da tradição humana, do cenário social, das luzes e cores dos trópicos - isso já nos dá direito a considerar a existên­ cia de uma pintura brasileira." W* Quando se refere aos pintores de São Paulo e à sua pintura, identi­ fica-se com um certo espírito de escola por reunir um maior número de artistas modernos. Sobre a pintura, destaca o tom emotivo particular, marcado por forte pre­ ocupação social e humana. Faz uma distinção entre o gosto da paisagem mais acen­ tuado em São Paulo do que no Rio de Janeiro, concorrendo para isso a diferença da intensidade da luz. Anteriormente, em outros textos, Navarra já havia se referido a esse problema. Descrevendo os trabalhos de certos pintores estrangeiros recém chegados ao Brasil no início da década de 40, assinala que alguns deles tinham dificuldade em trabalhar ao ar livre por causa da intensi­ dade da luz que, segundo diziam, fazia com que as cores se dissipassem.

Iberê Camargo, Paisagem Guaíba, s/ data, óleo s/ tela, 34 x 43 cm. Coleção Maria Camargo GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Segundo Navarra, Lasar Segall monopoliza o meio artístico de São Paulo que apresenta uma pintura de palheta mais fria. 'A pintura paulista, que principiou pelas orgias nativistas, tipo pau brasil, hoje é discreta, concentrada, grave, de uma solenidade por vezes trágica, indicadora de uma experiência mais humana e universal... No entanto Portinari domina o Rio de Janeiro, com uma tendência para a estrutura mais sólida e uma palheta mais quente...ê onde é possível encontrar o espírito regional, o folclórico e o pitoresco assim como na Bahia, Recife e Belém do Pará ..." (20) O crítico não exclui desse estudo artistas que individualmente demonstram uma nova mentalidade, como Djanira, que, segundo ele, possui um excepcional domínio técnico da matéria e uma ingenuidade desajeitada que é a mais pura visão de mundo. Também destaca os trabalhos de Pancetti, Cardoso Júnior e Heitor dos Prazeres. Ruben Navarra encerra esse ensaio, chamando a atenção para a ligação da pintura com a literatura e com os intelectuais. Para ele é impossível separar as duas manifestações artísticas, porém alerta que a crítica de arte deve ser feita pelo literato, pelo crítico e não pelo artista. "Convenço-me cada dia mais que a regra faz dos pintores de escola os piores críti­ cos do mundo. Eles vêem sob uma influencia de deformação ótica, no mínimo. São homens invariavelmente convencidos de que a razão plástica é a deles. Como pode o homem que vê o mundo de certa maneira ver imparcialmente a visão dos outros homens? Nada mais intolerante do que um ponto de vista do pintor . Um olho exercitado num estilo -ese antes cada pintor queria ter um estilo, hoje cada um pre­ tende ser um pesquisador mudando de estilo cada semana - é por natureza um aparelho deformado e impróprio para fazer justiça aos que vêem de modo diferente a imagem dos seres. Este é o princípio essencial para distinguir entre as qualidades de um bom pintor e as de um bom crítico ... A crítica de uma obra de arte, no entan­ to, sendo um ato intelectual é pelo que reclama da sensibilidade um ato muito com­ plexo. E muito menos nos monossílabos profissionais dos donos do ofício que, como tais, em geral não sabem exprimir-se em linguagem literária, se bem insistam na sua grande autoridade crítica, esquecendo eles que a crítica é um gênero literário". (21)

Podemos então constatar que, no fim deste texto, Navarra faz uma declaração sobre o que ele realmente define como crítico de arte, no qual o que seria mais importante é o modo como se expressa o crítico e não seu conteúdo. Se a crítica de arte é um gênero literário, ela só poderá ser exercida por um escritor, por um literato. Nesse caso é assim que Navarra se considera. GÁVEA. 15 (15), julho 1997


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De um modo geral, a crítica de Ruben Navarra segue os preceitos do modernismo e, particularmente, de Mário de Andrade. Como os mo­ dernistas, viaja a Minas Gerais visando divulgar as raízes coloniais e barrocas da arte e da arquitetura brasileira, apoia incondicionalmente os artistas modernos consagrados, tendo, no entanto, uma abertura para a produção dos artistas das novas gerações dessa década, o que demonstra sua preocupação fundamental de anti-acadêmico. Tudo leva a crer que Navarra é ainda um crítico militante da arte moderna dentro de um entendimento modernista, por ser, por exemplo, contra a arte abstrata e outras manifestações contemporâneas. Isto indica que na década de 40 a luta anti-acadêmica ainda era forte e necessitava de um porta-voz como desdobramento das questões iniciadas em 22. Na verdade, Ruben Navarra ainda não rompeu com sua filiação clássica, com a tradição, com a história da arte universal, com a importância do métier na produção artística, mantendo uma clara postura anti-acadêmica sem, no entanto, entender o moderno e o contemporâneo que já se delineavam nos últimos anos da década de 1940.

Notas ( 1 ) Moacyr Wemeck de Castro. Mário de Andrade no Rio, Jornal RioArtes, Rio de Janeiro, abril, 1993, p.12-3 ( 2 ) Sérgio Miceli. Intelectuais e classe dirigente no Brasil- 1920-1945, São Paulo, DIFEL, 1979, p.152-158 ( 3 ) Ruben Navarra. Temporada de Novos Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 19/m aio/1946. ( 4 ) Idem. Artes Plásticas, Revista do Brasil, Rio de Janeiro, out/1940 ( 5 ) Idem. Segall, Luci e o Boi. Diário de Notícias, op. cit.„ 06/junho/1943. ( 6 ) Idem. O Tenente de 1922. Jornal de Arte, p. 238 ( 7 ) Idem. Casuística sobre Portinari. Diário de Notícias, op.cit.,, 25/julho/1943. ( 8 ) Idem. Preparativos da 'Missa' 1. Diário de Notícias, op.cit, 19/set./1948. ( 9 ) Idem. Salão de 1945 H. Diário de Notícias, op.cit, 23/dez./1945. (10) Murilo Mendes. Ruben Navarra. Jornal de Arte, Campina Grande (PB), 1966, p. 27. (11) Ruben Navarra. Jornal de Arte, p. 190-5 (12) Idem. Arpad Szenes ou a poesia no abstrato. Diário de Notícias, op.cit.,, 14/julho/1946. (13) Idem. Carlos Scliar e a Família Paulista. Diário de Notícias, op.cit.,, 02/julho/1944. (14) Idem. Com a F.E.B. na Itália. Diário de Notícias, op.cit., 02/set./1945. (15) Idem. Salão de 1947 V . Diário de Notícias, op.cit., ll/jan ./1948 (16) Idem. Pintura Moderna. Revista Sombra , Rio de Janeiro, ago/set./1942. (17) Idem. La Pintura Brasilena Contemporânea. Revista Sur, Buenos Aires, set. 1942. (18) A primeira parte desse artigo já havia sido publicada no Diário de Notícias, op.cit., sob o título A Revolução Plástica Brasileira, em 16/abril/1944. (19) Ruben Navarra. Iniciação à Pintura Brasileira. Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, abril/1965. (20) op. cit. p.24/28 (21) Idem. Poesia e Pintura. Jornal de Arte, op.cit., p. 340. GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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M odernidade Plural O artigo propõe uma distinção conceituai entre noções diversas de modernidade presentes no debate arquitetônico e urbanístico: de um lado, a idéia de modernidade urbana e industrial como cultura do capitalismo moderno e da sociedade de massas, e, de outro, a idéia de modernidade artístico-arquitetônica como referência da produção cultural que busca a afirmação do moderno. A partir daí, procura-se esclarecer a ligação entre a modernidade arquitetônica e o paradigma modernista, e entre a modernidade urbana e o processo de modernização, indicando a presença, no âmbito deste último, de outras ordens de pro­ postas de caráter moderno, para além dos limi­ tes traçados pelo modernismo. Modernidade Arquitetura Moderna Modernização Urbana

CÂNDIDO CAMPOS Arquiteto, doutorando em Estruturas Ambientais Urbanas na FAU/USP.

Poucas expressões têm estado tão em voga nos últimos anos como moderno e modernidade. Há como que uma necessidade de reavaliar o que é - ou o que foi - o moderno, e pode-se dizer que o debate em torno do pós-moderno tem o grande mérito de conduzir ao resgate da própria modernidade como tema. Se a crise do projeto modernista levou ao questionamento desse paradigma antes mesmo que uma teoria do moderno pudesse se constituir, a modernidade agora volta à ordem do dia; mas tal debate, polêmico por sua própria natureza, tem um agravante: os conceitos derivados do moderno - tais como modernidade e mo­ dernismo - são vagos e polivalentes. Seus significados e limites permanecem indefinidos. Ao mesmo tempo, percebe-se hoje a necessidade de reavaliar o sig­ nificado do moderno na produção arquitetônica e urbanística - ainda mais em Statler Building, Detroit, 1923. Foto de Knud Lonberg-Holm (publicada por Erich Mendelsohn em Amerika, Bilderbuch eines Architekten. Berlin, 1926.) GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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situações como a brasileira, onde tal produção integrou um panorama caracteri­ zado pelo impacto desigual da modernização sobre o quadro social. Mas o atual esforço no sentido de esclarecer o papel do moderno se depara com dificuldades quanto à interpretação dos termos em jogo. Partimos aqui do princípio de que existe uma distinção conceituai a ser estabelecida para situar adequadamente o debate, contrapondo acepções diversas do que seria a modernidade, originadas em concepções distintas da história e em significados diferentes atribuídos ao termo original. Tal distinção pode abrir o panorama da modernidade, possibili­ tando a incorporação de uma pluralidade de manifestações antes excluídas por interpretações unívocas do moderno. Até no que se refere às manifestações da arquitetura moderna, supostamente tributárias de um mesmo ímpeto modernizante, têm sido identifi­ cadas conotações contraditórias do moderno assumidas ou intercambiadas por diferentes vertentes do movimento. Ampliando-se o enfoque disciplinar, despontam mais claramente as múltiplas versões da modernidade, filiando-se a orientações diversas. Pode ser útil destacar uma noção derivada das ciências sociais, prevalente nos campos da história social e cultural. De acordo com tal orientação a modernidade seria a cultura do capitalismo industrial e da sociedade de massas. Entre suas manifestações principais estariam a transfor­ mação radical da cidade e a criação de um novo espaço urbano - podendo assim ser chamada de modernidade urbana. Na medida em que nos aproximamos da história e teoria da arquite­ tura, tal acepção perde terreno em favor de uma idéia de modernidade mais ligada à história da arte, enquanto atributo e referência da produção cultural que busca a afirmação do moderno —com destaque para a arte e arquitetura moder­ nas —o que nos autorizaria a chamá-la de modernidade artística ou arquitetôni­ ca. Entre os dois pólos, o debate tropeça em indefinições conceituais que talvez mereçam um esforço de delineamento. Trata-se de precisar distinções que muitas vezes permanecem ocultas mas cujas implicações são maiores do que se poderia supor. A partir delas é possível chegar a uma visão plural do moderno, traçan­ do-se, na origem e formulação dos conceitos derivados desse qualificativo, indí­ cios das relações entre modernidade, arquitetura e cultura.

O moderno: atualidade ou modelo? Dos conceitos em discussão, o termo de origem é o mais consensual. Embora seja uma palavra bastante antiga, moderno sempre teve conotações semelhantes às que lhe são hoje atribuídas. Neologismo do século V, o latim modernus denota, hteralmente, aquilo que pertence ao agora, e desde então a idéia do 622

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moderno caracteriza os traços da época presente em contraposição àquilo que se percebe como anterior ou passado. Na formulação já clássica de Habermas, pensa-se ser moderno cada vez que uma relação renovada com a Antiguidade faz nascer a consciência de uma nova época. É um moderno que se manifes­ ta da época carolíngia à Baixa Idade Média, da Renascença ao Iluminismo, e sua afirmação frente ao antigo ressurge sempre, para triunfar no século XX, quando se toma conceito central da cultura e da sociedade. Mas a mesma origem etimológica traz outro significado para o que é moderno. A raiz latina do termo é derivada de modus, que significa "medida" e por extensão medida certa ou norma. Assim, moderno não deixa de estar ligado à idéia da justa medida e, portanto, atrás de seu sentido dominante, temporal, como portador do novo, subsiste um sentido latente ligado à idéia de modelo. Não é por acaso que o impacto do modernismo, com suas propostas explicita­ mente modelares, tendeu a monopolizar nossa visão do moderno.^ Não obstante, para além desse modelo hegemônico podem ser buscados outros sig­ nificados e imagens concorrendo no campo vasto e muitas vezes contraditório do moderno. Para conferir sentidos mais amplos aos temas ligados a esse campo será preciso enfocar aquele conceito nascido do moderno, como aprofundamen­ to, disseminação e cisão da idéia original - a idéia de modernidade. Aparentemente, esta nada mais seria que o estado, ou o caráter essencial do ser moderno. Mas tal acepção tende a minimizar aspectos centrais do conceito de modernidade, seu surgimento e aplicação à sociedade e à cultura. (5) É preciso explicitá-lo e localizá-lo historicamente; e, ao se verificar os trata­ mentos dados ao termo, percebe-se uma verdadeira babel conceituai, tal a divergência de acepções. Como poderíamos traçar linhas indicativas para situar esse debate? Propõe-se aqui uma distinção entre duas grandes matrizes conceituais, relacionadas com as diferentes raízes do moderno: a atualidade, de um lado, e a justa medida, de outro - a transformação e o modelo.

O moderno como transformação: a modernidade abrangente ou urbana Podemos identificar um grupo de interpretações da noção de mo­ dernidade que parte do sentido temporal do moderno enquanto atualidade. Tal caráter de atualidade recorrente, por sua vez, só pode ser compreendido dentro de uma perspectiva histórica que localize o novo em cada momento. Baseia-se, portanto, numa visão historiográfica e materialista da história, onde a cada com­ plexo histórico-social corresponde um complexo cultural que revela, ainda que indiretamente, suas características estruturais internas. Temos então uma acepção do conceito mais ligada às ciências sociais, que conceberia a moGÁVEA. 15 (15), julho 1997

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dernidade como cultura que acompanha a ascensão das formações sociais hoje vigentes. Tal concepção leva, por exemplo, à visão da modernidade como complexo de idéias e formações sociais, político-institucionais e intelectuais, identificável a partir do Renascimento e das revoluções científicas e políticas dos séculos XVII e XVIII. (7) Ao mesmo, ela também implica na visão da mo­ dernidade como complexo cultural específico da moderna sociedade capitalista, industrial, urbana e de massas, indissoluvelmente ligado a uma transformação estrutural de base econômica (8). Sua afirmação ocorreria quando a Revolução Industrial cria uma realidade social e cultural própria, ou seja, a partir do século XIX nas grandes cidades européias e norte-americanas, chegando posterior­ mente, com a industrialização, aos outros centros urbanos emergentes, e tornando-se cultura universal durante o século XX. Assim, enquanto a acepção moderno seria aplicável, a rigor, a todos os momentos de renovação cultural da Idade Média em diante, e mesmo que as raízes da modernidade possam ser buscadas no século XVI, XVII ou XVIII, a problemática da modernidade propriamente dita só surgiria entre o século pas­ sado e o atual, na esteira das transformações trazidas pelo capitalismo industri­ al - ou seja, quando a experiência do mundo moderno passa a não mais poder ser dissociada de suas inovações estruturais e sua face urbana. E a visão da modernidade urbana, ao se dar conta do caráter estru­ tural de tais transformações, torna-se essencialmente crítica. De Engels a Baudelaire, de Marx a Benjamin, configura-se uma consciência ligada ao choque produzido na sensibilidade contemporânea pelo quadro urbano irremediavel­ mente alterado com a industrialização. Assim, a percepção desse complexo cul­ tural será sempre intermediada por aquilo que se pode chamar de reação crítica à modernidade urbana e industrial. Os testemunhos dessa passagem variam entre a fascinação, a per­ plexidade e a indignação. Com efeito, a nova realidade social, produzida pela transformação econômica, se encontra marcada pelo estigma da irrealidade. A ruptura cultural não leva a um estado superior de verdade, como havia sido pre­ conizado pelo Iluminismo, mas sim a um estado eternamente transitório. O espetáculo da mudança incessante mascara e revela terríveis fraturas sociais e implacáveis determinantes econômicos. A metáfora inicialmente usada para transmitir a experiência do moderno coloca justamente esse contraste entre mul­ tiplicidade e inexorabilidade, entre a infinitude do possível e a prisão do indiví­ duo. trata-se da imagem da multidão, signo perturbador e inequívoco de uma situação social radicalmente deslocada. 624

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Erik Gunnar Asplund, Biblioteca Municipal, Estocolmo, 1924- 1927 Foto: Fabio Galli.

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No entanto, esse espetáculo não se limita às novidades comportamentais e visuais da vida metropolitana e burguesa do século XIX, por trás do caleidoscópio de imagens, das belas passantes e da multidão de transeuntes, o flâneur vislumbra o quadro traumático da modernidade enquanto desastre social.(11) Embora as transformações sociais e econômicas sejam saudadas pelos espíritos progressistas à luz dos princípios do racionalismo, a situação vivida pela sensibilidade moderna aponta na direção contrária. A paisagem ao mesmo tempo fragmentada e indistinta da grande cidade do mundo industrial é um indício assustador da fratura entre razão e realidade. O processo de transfor­ mação social passa a ser descrito por meio de imagens de calamidades naturais: terremoto, erupção, turbilhão; enquanto que ruptura, conflito, precariedade, multiplicidade, transitoriedade e fragmentação passam a ser os termos-chave para descrever a experiência da modernidade. O ímpeto vanguardista que irá nascer do choque da modernidade urbana almejará a projeção de vetores definidos de ação e sentido no âmbito desse turbilhão perturbador. Para isso ele terá de recorrer ao outro significado original do moderno, resgatando a referência do termo modus enquanto denotador de certeza e adequação. Trata-se portanto de transformar o contínuo devorar do passado na afirmação da qualidade universal do presente: ou seja, buscar o eterno no transitório, o modelar no novo.

O moderno como modelo: a modernidade exigente ou arquitetônica A visão da modernidade como transformação está implícita na raiz do moderno e pressupõe uma atitude crítica, quando não condenatória, em relação a tal mudança, além de se ligar desde a origem com o urbano. Por sua vez, a idéia do moderno como justa medida, norma ou modelo está mais pre­ sente em outro grupo de interpretações. A noção de modelo remete a uma con­ cepção da história idealista ou hegeliana, que pretende identificar na evolução social um sentido de busca de concretização de um ideal histórico potencial. Assim, chega-se necessariamente à identificação da modernidade com aquilo que, na época moderna, caracterizaria tal ideal. Ora, a noção de um ideal subjacente a ser buscado para além da experiência imediata é central para a noção de produção estética, e portanto esta seria o locits privilegiado para a expressão de uma tal modernidade. Assim, a modernidade seria vista, ao mesmo tempo, como atributo de manifestações cul­ turais e artísticas que buscam a ruptura com a tradição e a afirmação do novo, e, por extensão, o contexto cultural que acompanha tais manifestações, possibili­ tando as l sendo influenciado por elas. Derivada da história da arte, será essa 626

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visão que influenciará a história da arquitetura. A3) Tal concepção não pressupõe, como a outra, a idéia de uma reação crítica à modernidade - urbana e industrial - surgida no século XIX; para ela a própria reação constituiria a verdadeira modernidade, e não aquilo contra o que se está reagindo. Assim, a arte moderna a princípio não integraria o programa de modernização social em si, mas antes surgiria como uma reação a este.(14) E, se a modernidade está na própria reação, ela se materializaria como proposta, ou seja, trata-se de uma acepção da modernidade que a vê como contexto referen­ cial de uma proposta consciente de renovação representando o moderno - o que se pode chamar de modernismo. <15)

Os limites do moderno: o modernismo Pode-se dizer que a noção de modernidade artística ou arquitetôni­ ca, partindo da idéia do moderno como modelo, nos conduz ao modernismo enquanto paradigma. Se para muitos o modernismo não tem status de conceito, mas consiste apenas em um fato ideológico(16), não se pode negar que sua própria força como concepção mais clara, coesa e difundida faz com que, nesse movi­ mento, a idéia de modernidade tenda a ser absorvida por ele, e passe a ser vista como mero atributo referencial do modernismo, para que este possa se colocar como verdadeira expressão da modernidade. A perplexidade e fascínio ante o terrível espetáculo da cidade mo­ derna são substituídos por um discurso confiante estruturando um projeto subs­ titutivo para a realidade material, para a produção cultural e artística e mesmo para a sociedade como um todo. As metáforas de calamidades naturais são subs­ tituídas por imagens militares: entra-se agora no campo dos embates, das van­ guardas, das explosões, dos líderes, das tropas de choque. O modernismo enquanto impulso - embora seja formado por uma miríade de movimentos que se dividem, subdividem, entram em atrito, se devoram e se sucedem - caminha em última instância numa só direção, a da afirmação do moderno e sua própria auto-afirmação como expressão do moderno. Para Alan Colquhoun, se a historiografia moderna havia eliminado a noção de um ideal a priori subjacente à história, a arquitetura modernista retoma o determinismo historicista hegeliano, propondo um ideal potencial como objetivo da evolução social e cultural. (17) Face ao impasse relativista pre­ sente no historicismo não-determinista - que se refletia na arte acadêmica e no ecletismo arquitetônico - o modernismo não tinha outra alternativa, para possi­ bilitar a concretização de seu ideal histórico, senão se contrapor a toda tradição. Sua modernidade se define portanto em oposição à tradição e em referência a um GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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ideal do moderno, ao moderno como modelo; a modernidade ganharia corpo ao se aproximar deste ideal, que por sua vez —em se tratando de arte e arquitetura - tende a assumir o caráter de uma estética idealmente apropriada ao moderno. A linha divisória da modernidade passa a flutuar então em função do nív el de exigência adotado ao se conceber o projeto moderno, e a estreita relação entre os modernismos artístico e arquitetônico tenderá a situá-la no limite da arquitetura erudita e de vanguarda, a única que partilhava os princípios estilísticos e formais da arte moderna. A paisagem descontrolada e chocante da urbanização industrial, elemento central na outra versão da modernidade, não corresponde a tal nível de exigência, e não pode ser abarcada pela ótica modernista, que a ela contrapõe o seu sonho de modernidade arquitetural como paradigma da cidade e edificação modernos - paradigma que, nos raros momentos em que se concretizou, o fez em nítido contraste com um quadro urbano indiferente ao seu ideal, e que per­ manece majoritário. Assim, a posição central do modernismo na historiografia da arquitetura e urbanismo no século XX, da transformação do gosto assinalada por Bruno Zevi às vanguardas enfocadas por Tafuri(18) tem um efeito limitador: se tal formulação da modernidade se revela a mais adequada para enfocar a pro­ dução da arquitetura e urbanismo eruditos e de vanguarda, ela é insuficiente para se compreender o urbano e a produção arquitetônica e urbanística como um todo.

As necessidades do moderno: a modernização Para além do moderno como modelo e da modernidade exigente da produção arquitetônica e urbanística modernista, existe toda uma constelação de propostas e intervenções integrantes de uma modernidade mais abrangente. Uma vez transpostos os limites traçados pela perspectiva do modernismo, podese tentar passar da nostalgia de um projeto moderno inacabado e inatingível —o novo mundo que se negou a nascer, nas palavras de Colin Rowe (19> - para a per­ cepção das múltiplas versões assumidas pelo moderno no ambiente construído e no espaço urbano do último século e meio, onde a vontade modemizadora não deixa de se realizar, inclusive em situações periféricas como a brasileira. Não seria mais produtivo, ao invés de enfocar essa modernização efetiva como reflexo parcial ou abortado de um ideal potencial, vê-la como expressão em grande medida réussie da modernidade na sua acepção mais ampla? Assim, é preciso destacar o objetivo m odemizador da prática arquitetónica e urbanística do último século como um todo. Pode-se dizer que seu caráter moderno se referia especialmente à implantação das transformações 628

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espaciais integrantes de um processo mais amplo de modernização, no qual o urbano assume um papel central, e onde o modernismo formava apenas um entre vários elementos, versões e visões concorrentes. Pode-se então dizer que o modelo modernista surge no âmbito de um conjunto mais amplo de propostas ligadas ao moderno. Por um lado, tais propostas podem trazer a perspectiva da reação crítica à modernidade e aos graves problemas urbanos que a acompanham; por outro, elas tendem a refletir a busca da modernização enquanto processo transformador acompanhado pela afirmação de um novo quadro urbano e novos espaços edificados. São con­ cepções e intervenções que podem trazer em maior ou menor grau a marca do modernismo, mas que também podem passar ao largo deste, sem por isso deixar de ter um sentido de modernidade. Assim, as implicações desse esforço de revisão conceituai sugerem que o estudo dos complexos mais amplos da modernidade pode lançar luz sobre uma produção que ocorre à margem do modernismo, e que, não obstante, abrange momentos, figuras, obras e situações marcantes, que assumem um papel central na formação da cultura e da cidade modernas. Modernidade plur­ al, que abre mão da coerência e auto-suficiência, e por isso mesmo ganha em perspectivas e possibilidades.

Notas ( 1 ) Anthony Vidler aponta duas interpretações da modernidade convivendo em precário equilíbrio no interior do Movimento Moderno: a preocupação com a renovação da forma e linguagem arquitetônicas em moldes condizentes com o mundo moderno - ou seja, configurando uma reação ao ecletismo e à cidade burguesa - e a busca de uma utopia material e social baseada na transformação do ambiente construído. Psychometropolis. VIDLER, Anthony. The Architectural Uncanny: Essays in the modem unhomely. MIT Press, Cambridge/London, 1992, página 189. ( 2 ) A conferência de Frankfurt, pronunciada em 1980, continua sendo a referência basilar na discussão dos significados do moderno. Os temas lançados então definiram os eixos principais do debate envolvendo modernidade e cultura que vem ganhando corpo ao longo dos últimos quinze anos; não é por acaso, aliás, que o prólogo dessa alocução tratava de arquitetura. HABERMAS, Jürgen. Modernidade versus pós-modemidade. In: Arte em Revista na 7 (vol. V), 1983, pági­ na 86. ( 3 ) 0 neologismo latino modernus resultou da junção do advérbio modo com a desinência emus. Modo é derivado do substantivo modus, medida norma - como em modelo - assim, modo corresponde a na justa medida e, adquirindo um caráter temporal, a um determinado ponto no tempo: o momento imediatamente anexo ao presente. Ernus como sufixo indica aquilo que pertence ao termo modificado; modernus portanto denota aquilo que pertence ao agora, mas também, mais literal­ mente, aquilo que corresponde ao momento certo ou à medida certa.Veja-se a explicação etimológica compilada por Tomás Maldonado, a partir de uma série

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M o d e rn id a d e Plural

de outras fontes, em seu livro II Futuro delia Modemità. Feltrinelli, Milão, 1987, (4 )

idéia justa medida atemporal comparece com extrema clareza na obra de Le Corbusier onde as melhores medidas recorrentes na construção e anatomia humanas'são reinvindicadas para o mundo moderno. El Modulor. Poseidon,

Barcelona, 1976, página 57. ( 5 ) Em artigo recente, Peter Burke (As máscaras seculares do moderno, FSP, 14 de Julho de 1996), assim como Maldonado, trata modernidade e moderno como termos praticamente sinônimos - colocação que na verdade passa por cima de aspectos fundamentais do conceito de modernidade, seu surgimento, sua inserção histórica e sua aplicação na produção cultural dos últimos cento e cinquenta anos. A concepção histórico-social de modernidade não nasce junto com a qualifi­ cação moderno na Alta Idade Média (a palavra em si é cunhada apenas no sécu­ lo passado). Ela surge no ponto de confluência entre a história das idéias e a história do processo social, no momento da formação de uma nova estrutura sócio-econômica e de uma nova consciência, ligada a essa realidade transforma­ da - ou seja, acompanhando a afirmação da civilização industrial. ( 6 ) Nelson Mello e Souza é um dos que denunciam a divergência existente no trata­ mento do conceito. Vide Modernidade, Desacertos de um Consenso. UNICAMP, Campinas, 1994, páginas 14 a 18. ( 7 ) Anthony Giddens, por exemplo, em As Consequências da Modernidade. UNESP, São Paulo, 1992, assume que a modernidade seria a organização social surgida na Europa no Renascimento e no século XVII com a Revolução Científica e o Estado Moderno, trazendo visões de mundo, instituições e formas de inter­ venção que assumirão vigência mundial ao longo dos três últimos séculos; ou, segundo David Harvey (Condição Pós-Moderna. Loyola, São Paulo, 1991) e Habermas, a modernidade seria o projeto de transformação da sociedade, do homem e seu meio inaugurado pelo Iluminismo, integrando esses mesmos ele­ mentos num programa abrangente. ( 8 ) MELLO E SOUZA, Nelson: op. cit., páginas 31 e 32. Marshall Berman (Tudo o que é Sólido Desmancha no Ar: A aventura da modernidade. Companhia das Letras, São Paulo, 1987, páginas 15 a 35) usa uma acepção semelhante, mas confunde mo­ dernismo com modernidade. ( 9 ) Para Henri Lefebvre (Introdução à Modernidade: Prehídios. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1969, páginas 4 e 5) a modernidade relaciona-se antes de tudo com a auto-reflexão e a crítica. (10) É flanando em meio à multidão da grande cidade que o artista procura no am­ biente urbano algo de indefinível e de impalpável, que lhe inspire um trabalho artístico à imagem de sua própria época; para definir este aspecto ao mesmo tempo fugidio e onipresente, Baudelaire inaugura o uso do termo modernidade. Para ele, esta seria é o transitório, o ft4gidio, o contingente, a metade da arte, da qual a outra metade é o eterno e imutável. Para o artista, alcançar a modernidade signifi­ ca, em última instância, extrair o eterno do transitório. BAUDELAIRE, Charles: Le peintre de la vie moderne. In Curiosités Esthétiques et autres Écrits sur l'Art. Hermann, Paris, 1968, página 131. Neste artigo, Baudelaire elabora uma crítica à arte acadêmica: para ele a representação de temas atuais sob roupagens históri­ cas e através de uma linguagem clássica derivada dos grandes mestres é um anacronismo, um equívoco. A beleza daquilo que é atual só pode ser extraída ptla observação direta da realidade presente, sem recurso aos subterfúgios dos estilos históricos. Aquilo que parece ser apenas o reflexo de uma moda pas­ sageira - as imagens e os aspectos fugidios da vida moderna - na verdade esconde uma verdade mais autêntica do que a que pretendem exprimir os pinores aca êmicos, preocupados com a precisão histórica e com a legitimidade 630

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dos estilos clássicos. O pintor da vida moderna, pelo contrário, tiranizado pela cir­ cunstância, absorve sem cessar o fantástico real daquilo que o cerca; o espetáculo incessante da nova vida urbana enche a sua memória e seus olhos. Ibid., página 134. (11) A exteriorização da pobreza como motivo determinante na formação do novo olhar sobre a cidade é demonstrada por Maria Stella Bresciani A cidade das multi­ dões, a cidade aterrorizada. In: PECHMAN, Robert (org.): Olhares sobre a Cidade. Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1994, páginas 14 a 23. Contudo, a despeito do perigo entrevisto nas multidões, a redenção revolucionária esperada das massas urbanas não se realiza. Nesse sentido, Lefebvre sublinha a alienação levada ao cúmulo e a deturpação do projeto de revolução social através das revoluções cari­ caturais da modernidade. LEFEBVRE, Henri, op. cit. página 268. (12) A atualidade de tais formas de consciência e sensibilidade fica clara em escritos recentes que resgatam o olhar do século XIX sobre a cidade trazendo visões análogas para a cidade pós-industria\. Rafael Argullol, por exemplo, fala da selvageria inexlirpáveX e da interiorização absoluta da guerra na grande metrópole. Vide A cidade turbilhão. In: Revista do IPHAN ne 23, 1994, página 68. (13) Segundo Argan, a história recente da arquitetura cedeu com demasiada frequência à tese da estética idealista. Vide ARGAN, Giulio Cario: Arquitetura e cultura. In: História da Arte como História da Cidade. Martins Fontes, São Paulo, 1992, página 247. O próprio Argan propõe uma outra base para a história da arte, mais desvinculada de sua raiz hegeliana e da tendência a enquadrar a realidade num esquema a priori, racionalista e teleológico. Vide o ensaio História da arte. Ibid., pági­ na 18. (14) Essa idéia é elaborada por David Kolb Postmodern Sophistications: Philosophy, architecture and tradition. University of Chicago Press, Chicago/London, 1990, páginas 4 a 5. Analogamente, para Otilia Arantes a arquitetura moderna consti­ tui uma resposta ao choque da modernidade apontado por Benjamin, integran­ do uma estratégia global de neutralização do choque pelo hábito através dos princí­ pios do racionalismo e funcionalismo. Arquitetura simulada. In: O Lugar da Arquitetura depois dos Modernos. Studio Nobel/EDUSP, São Paulo, 1993, pági­ na 57. (15) Colin Rowe, entre outros, tem destacado o papel de modelo da arquitetura do Movimento Moderno e a predominância da perspectiva modernista na histori­ ografia da arquitetura neste século. Vide ROWE, Colin: La modernità a parole. In: Casabella nu 621 (vol. LIX) Março de 1995, página 49. (16) LEFEBVRE, Henri: op. dt, página 4. (17) COLQUHOUN, Alan: Three kinds of historicism. In: Modernity and the Classical Tradition. MIT Press, Cambridge, 1991, páginas 14 e 15. A mesma raiz hegeliana do modernismo na arquitetura é apontada por Colin Rowe e Fred Koetter em Ciudad Collage. Gustavo Gili, Barcelona, 1981, páginas 31 a 34. (18) Vide ZEVI, Bruno: Historia de la Arquitectura Moderna. Emecé, Buenos Aires, 1954; e TAFURI, Manfredo: Projecto e Utopia. Presença, Lisboa, 1985. (19) ROWE, Colin & KOETTER, Fred: op. cit., página 12.

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Sob a in s p ira ç ã o de Clio: o historicism o na obra de M orales de Los Rios A presença da história como disciplina capaz de ordenar o passado e, assim, possibilitar a constituição de um projeto de futuro, norteia as atividades desenvolvidas por Adolfo Morales de los Rios. Em sua trajetória, tanto a produção dis­ cursiva quanto a arquitetônica, encontram-se organicamente relacionadas pelo lugar ocupa­ do pela prática historiográfica, apontando para uma reflexão que estabeleça a estreita relação entre a narratividade histórica e arquitetônica no final século XIX e inícios do XX. Adolfo Morales de los Rios Ecletismo arquitetônico Historicismo

CLÁUDIA THURLER RICCI Arquiteta graduada pela FA U /U FRJ, pós-gradua­ da pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura e Mestre em História Social da Cultura pela PUC-RIO.

Em inícios do século XX, Adolfo Morales de los Rios foi o arquiteto responsável pelo projeto e construção de 17 edificações no eixo viário que se tornou símbolo de um Rio de Janeiro modernizado e civilizado, a Avenida C entral.(1>Entretanto, atualmente seu nome é lembrado como o autor de apenas uma destas edificações - o edifício do Museu Nacional de Belas Artes. Porém, ao contrário do que hoje ocorre, o reconhecimento a ele conferido neste início de século não decorreu tão somente desta edificação ou de sua atividade como arquiteto. Adolfo Morales de los Rios era apontado pela revista Fon-Fon como um nome que dispensa apresentações (...) um espírito culto, possuindo as qualidades literárias que já o consagraram como publicista de valor. (2) Portanto, seu nome não figurou somente nos inúmeros edifícios que projetou e construiu, ajudando a compor a paisagem da Belle Epoque carioca, mas também nos jornais e revistas para os quais escreveu ou foi solicitado a opinar. A erudição de Morales de los Rios era sua maior característica e, por não estar circunscrita à sua principal atividade, a arquitetura, lhe garantiu a presença em todo e qualquer debate ou polêmica estabelecida nos meios intelectuais do Rio de Janeiro. Era esta erudição que lhe permitia dissertar sobre os mais variados assuntos, como atesta sua vasta documentação, alocada hoje no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Manuscritos como Oka, Taba, Tabajaras, no qual GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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o autor estudou a habitação indígena brasileira e a etmologia das palavras que a designavam, ou S um ée Santo Tomé, dedicado ao mito indígena Sumé, podem ser encontrados. Esta multiplicidade de interesses avançou por campos outros, e Morales deteve-se no estudo aprofundado da mitologia, da magia negra e da feitiçaria. Em Os caraíbas: feiticeiros, Magos e Trogloditas, o objeto de estudo é a hierarquia da feitiçaria no Brasil e nas Antilhas,' Estudo sobre Diabo-Bruxo também é peculiar, versa sobre personificações do diabo em épocas e povos diversos, seus nomes nas várias línguas e sua presença nos autos sacramentais espanhóis. Contudo, seu interesse não ficou centrado somente no estudo de temas de caráter exótico. O Rio de Janeiro mereceu de Morales de los Rios uma atenção particular, resultando no Plano para escrever a história do Rio de Janeiro, apresentado à Comissão do Centenário da Independência. Foi este conhecimen­ to aprofundado sobre a cidade, que animou a famosa polêmica que Morales manteve nas folhas cariocas com o historiador Vieira Fazenda sobre o local exato da fundação do Rio de Janeiro. (3) O jornal não foi o veículo por ele utilizado somente para dar vazão às suas polêmicas, valiosas foram suas contribuições para a arquitetura e a arte brasileira, publicando artigos nos quais detinha-se na crítica da produção nacional e também no estudo detalhado de sua história. Mas o prestígio alcançado pelo arquiteto nesta virada de século, e que hoje se faz necessário rememorar, não ocorreu de forma imediata. Autor de obras importantes em seu país, como o Gran Cassino de San Sebástian e o Gran Teatro de C ádiz, (4) Adolfo Morales de los Rios chega ao Brasil, com 31 anos, por puro acaso... Na verdade, ele havia sido convidado pelo Representante do Governo Chileno na Espanha para fundar uma escola de arquitetura no Chile. Entretanto, a notícia da tumultuada situação política deste país o faz abandonar tal projeto e o arquiteto decide por radicar-se no Brasil. Tão logo chega ao Rio de Janeiro Morales coloca a sua disposição os conhecimentos adquiridos na École des Beaux Arts de Paris, onde estudou, transpondo para esta cidade de feições ainda coloniais as vantagens do progresso que havia experenciado no continente europeu. Assim, debruça-se sobre a cidade, tornada abstração geométrica, e propõe organizar e ordenar sua malha urbana e seus serviços. Elabora amplas reformas urbanas, projeta mercados cen­ trais e uma ponte em estrutura metálica ligando o Rio a Niterói. Ampliando sua escala de atuação dedica-se ao projeto de desbravar o interior do país e propõe a construção de uma estrada de ferro. Mas estes empreendimentos, embora o acompanhem por toda sua carreira, não ganham a concretude da realização e, aos poucos, Morales se vê impelido a assumir seu lugar dentro da prática con­ vencional dos arquitetos da época. Sua prancheta passa a ser ocupada por GÁVEA. 15 (15), julho 1997


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Adolfo Morales de Los Rios, Arco Triunfal da Comemoração do IV Centenário do Descobrimento do Brasil, Rio de Janeiro, 1900.

pequenos projetos, reformas e casas de vilas. Contudo, alguns acontecimentos mudam esta trajetória. O primeiro é o concurso para lente de estereotomia (5) da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), realizado em 1897. Morales participa e obtém o primeiro lugar, tornan­ do-se então professor da mais renomada instituição de ensino artístico brasileiro. O segundo acontecimento é sua posse como Diretor da Associação do IV Centenário para o Descobrimento do Brasil. Sua presença nesta associação, que havia se comprometido a organizar uma nova sede para a ENBA, aliada ao rela­ cionamento estreito que mantinha com o então diretor desta escola, Rodolfo Bernardelli, o faz autor do projeto do futuro Palácio das Belas Artes a ser construído na Avenida Central. (6) O terceiro fato, ocorrido em 1904, é o Concurso de Fachadas para esta mesma avenida, cujo objetivo era estabelecer as boas normas de composição, preceitos estéticos e higiênicos que deveriam ser seguidos nas edificações a serem construídas neste importante eixo viário. Morales obteve o segundo prêmio e várias menções honrosas.

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A associação destes três fatores fizeram com que se tornasse um dos arquitetos mais solicitados do período. Foi nesta virada de século que Adolfo Morales de los Rios passou a conhecer e a ser conhecido nos meios intelectuais brasileiros e, a partir de então, sua atuação se fez sentir em todos os campos. Tornou-se sócio de renomadas instituições cariocas como o Clube de Engenharia, o Instituto Politécnico e o IHGB, e iniciou a sua participação em diversas folhas cariocas. Inserindo-se nas instituições e fazendo-se presente em diversos jor­ nais, pode mostrar uma de suas maiores características e através da qual ficou conhecido: a multiplicidade. Uma lista poderia ser redigida com todas as ativi­ dades que desempenhou para além da arquitetura: romancista, cartunista, histo­ riador, crítico de arte, publicista, urbanista, construtor e professor... Diante de tão grande diversidade de atividades, percebe-se que para Morales de los Rios não se colocava a questão da delimitação dos saberes. Para ele, ser era conhecer. Mesmo não havendo limites em sua atuação, um domínio do saber se mostra constante em sua trajetória e perpassa toda a sua produção: a história. Nenhum campo do conhecimento poderia escapar ao jugo desta disciplina, pois sua percepção de mundo pressupunha o conhecimento histórico das questões às quais se dedicava. A estreita relação entre atividade arquitetônica e discursiva nos é fornecida pelo lugar assumido pela história em ambas produções, que são informadas pela mesma concepção de cultura. Assim, a arquitetura se faz construção histórica e a história construção arquitetônica, e é neste ponto que reside a especificidade da atuação de Morales, tornando-o obje­ to particular de estudo.

História como arquitetura

I

Sua produção discursiva fazia-se tão presente em sua carreira quan­ to a produção arquitetônica, constituindo um domínio específico de sua tra­ jetória, pois dela Morales não se aproxima com o mero intuito de aprimorar seus conhecimentos e conseqüentemente utilizá-los na construção arquitetônica. A prova mais concreta da forma de organização mental de Morales de los Rios nos é fornecida por sua documentação escrita. A encontramos corta­ da, recortada e enxertada de extratos e observações que parecem surgir de um desejo de que todos os dados referentes ao tema tratado devem estar presentes, de que cada nova descoberta ou estudo não pode ser esquecido. Este minucioso trabalho de pesquisa possui um certo ar detetivesco: o menor indício não era desprezado, pois significaria incorrer no grave erro de não abarcar a totalidade do assunto tratado. Entretanto, se todo e qualquer início - seja uma fábula, uma 636

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lenda, um relato de viagem ou um trabalho científico - é tratado como "vestígio histórico', isto não implica na crença passiva de sua validade. O que garante seu estatuto de verdade é sua capacidade de ser testado e comprovado ou seja, ter sua lógica interna esquadrinhada, num trabalho obsessivo de comparação de dados e cruzamento de fontes documentais. Seu texto é construído a partir de um intermitente e cerrado confronto de depoimentos e citações, pois o docu­ mento, tendo sua veracidade comprovada, é tornado subsídio e substância do trabalho do historiador, garantia de que a história vivida se iguala à história nar­ rada. Neste desejo de abarcar a totalidade, a origem dos fenômenos é a grande incógnita perseguida por Morales, como se, ao estudá-la, afastasse de si a possibilidade de ser devorado pelo tempo, que tudo apaga e tudo destrói. Decifrar a origem significa dominar a causa primeira, compreender a sucessão e assim, tornar-se senhor do tempo. O que o faz conhecer o sentido do universo em que vive é sua vontade de compreender aquilo que o move no presente, e compreender é saber sobre suas "causas e motivos " . (7) O passado toma-se por­ tanto garantia da objetivação do futuro, posto que é neste movimento de buscar as origens que podemos encontrar a efetivação do presente. A modernidade é construída sobre os alicerces que o passado fundamentou. Se a origem é o ponto inicial de qualquer estudo, após sua determi­ nação faz-se necessário acompanhar as transformações pelas quais passam um comportamento, hábito ou costume, chegando-se por fim a um quadro geral dos processos ocorridos nesta variável que é o tempo. A história que redige é guiada pelas transformações incessantes na qual um dado fenômeno se constrói e se dis­ solve, num movimento permanente de influências e trocas. Assim, nas reflexões de Morales, não há espaço para saltos ou rupturas, pois o mundo é resultado dos fenômenos que vão paulatinamente se transmutando em outros. "Não podemos porém, de chofre, desprender-se e tomar-se (sic) independente em absoluto dos processos que durante séculos consecutivos tem sido a norma constru­ tiva dos arquitetos, ela se satisfaz timidamente recobrindo os traçados e a disposição dos aparelhos da arte gótica com as formas e com os perfis da arquitetura romana

O processo de transformação percebido pelo arquiteto na prática construtiva permeia também seus estudos sobre outras manifestações humanas, vistas por ele como resultado deste movimento de cobrir e recobrir timidamente os traçados, gerando sempre algo novo que, entretanto, permanece atrelado às

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manifestações anteriores. O fato de sua reflexão ser pautada por esta lógica nos aponta para a sua crença de que as experiências nunca se repetem; ao contrário, somam-se, constituindo uma espiral onde conhecer é adicionar, e adicionar significa conce­ ber a possibilidade do reconhecimento e aceitação do diferente. Aliás, foi esta busca da compreensão do diferente que o aproximou de temas tão exóticos, que em suas pesquisas eram valorizados nos aspectos mais positivos, pois tendo garantido seu lugar específico de ocorrência, passavam a ter reconhecido o seu pertencimento à história, adquirindo simultaneamente um estatuto de experiên­ cia humana, e como tal tornavam-se detentoras de um significado, devendo por­ tanto ser estudadas. É o que nos mostra em seu trabalho sobre Diabo-Bruxo . "Qualquer que seja o valor histórico destas aparições e possessões do diabo elas estão em muito de acordo com a fé e o dogma da existência desses seres angélicos e decaídos e com as tradições da época" Desta forma, tem-se como premente o desejo de historicizar cada fenômeno, conferindo-lhe um tempo e espaço determinado, entendendo-se por isto sua correta inserção na trama constituída pela história, criando-se assim a possibilidade de pensar a especificidade de cada cultura neste todo que é for­ mado pela História Universal. Embora o diferente fosse compreendido quando explicado racional­ mente, de forma alguma pode-se pressupor que seus estudos eram desprovidos de um juízo de valor, que a tão desejada objetividade da história tivesse se consubstancializado através da crença na objetividade dos fatos. Há que se separar o desejo do autor de sua prática historiográfica. Morales procura compreender o outro mas, nutrido que estava por um modelo de civilização, por vezes nos mostra que trilhar tal caminho se apresenta como um esforço sobre-humano, pois resvala em padrões ditados pela cultura ocidental, que deseja encontrar o igual naquilo que sabe diferente para que tenha total compreensão do fenômeno. Portanto, a lógica do diferente só ganha corpo e existência quando estruturada a partir da criação de uma árvore genealógica que reconstrói laços intermináveis de filiação. Reservando a cada cultura um lugar, detalha-as minu­ ciosamente, procurando oferecer o maior grau de exatidão sobre a especificidade daquele povo. Em seguida, num movimento inverso, acrescenta as semelhanças existentes entre os diferentes povos, enredando-os em uma trama de trocas e influências que ultrapassa inclusive os limites físicos dos continentes. É assim que apresenta nos as semelhanças entre a atitude de um devoto indiano, que faz 638

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pedidos a Naja, e as atitudes romanas e dos paiés brasileiros, diante dos deuses de forma ofídia. A cada citação, toma-se mais evidente a diversidade de assuntos tratados por Morales de los Rios. Seu olhar vasculha cada milímetro do mundo, nada lhe escapa, todas as manifestações humanas devem ser compreendidas em sua totalidade. Conhecer é desvendar mistérios, é deter a possibilidade de ser devorado pelo tempo. Portanto, o conhecimento constitui a percepção da existência de um lastro que ampara e sustenta o homem em seu agir, posto que toda manifestação humana é dotada de um significado: "(...) a obra iconográfica de um fetiche não é apenas a imagem forjada a capricho de um artífice, que o não poderia apreciar nessa forma senão como um simples boneco, produto da sua fantasia e de suas mãos e sim materialização de um modelo divino, no barro, ou no lenho, cujos traços conservam a lenda e a tradição, cada vez mais apagada e desvirtuada em razão do tempo".

O que significa pensar a cultura, incluindo usos e costumes, artes, lendas, mitos e linguagem, como representação humana, que é em si a expressão do conteúdo de uma tradição, do que se mantém como terreno que já foi alicerça­ do e que portanto deve ser compreendido e aproveitado. A busca deste significado se faz através da história. É ela a disci­ plina capaz de assegurar o conhecimento do mundo, tão necessário posto que é a ele que Morales atribui a função de motor deste próprio mundo. Conhecer é colocar o mundo em movimento, é adicionar e, adicionar compreendendo o diferente, transformando incessantemente as experiências. Pensar a história torna-se desta forma o encontro com a possibilidade de sistematizar e organizar o saber, pois Morales acreditava que o domínio da história vivida o tornaria apto a constituir um projeto de história a ser vivida.

Arquitetura como história Fácil é compreender a função de relato histórico da qual um texto pode estar imbuído, afinal às letras sempre foi reservado o papel de organizar e dar forma à experiência humana. Entretanto, a associação entre arquitetura e narrativa histórica não se apresenta como uma constante. Tal relação encontra seu lugar em um momento específico da história da arquitetura - século XIX e inícios do XX -, que tomou para si a preocupação de organizar as formas tal qual um relato, permitindo que a história de uma nação fosse lida nas edificações. Para Peter Collins, Ensaios sobre os costumes e o espírito das nações, de Voltaire, publicado em 1754, (12) foi a principal fonte a suscitar a percepção das GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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formas plásticas como contenedoras de um significado, pois congrega em si os usos e os costumes de um determinado período histórico. Nesta obra, Voltaire desenvolve a noção de transformação - não de permanência - como característica da natureza humana, podendo ocorrer gradualmente, por evolução, ou repenti­ namente, por revolução, como resultado da ação e vontade do homem. Ao se apropriarem desse conceito de evolução, os arquitetos começaram a vislumbrar a arquitetura como uma seqüência de formas, loca­ lizadas geográfica e temporalmente, desenvolvidas conforme as características dos povos. Assim, a história da arquitetura passou a ter como idéia central a pos­ sibilidade da interferência do homem no processo de constituição das formas arquitetônicas. Esta percepção conduziu a uma outra leitura da linguagem arquitetônica que, inserida na linha evolutiva da história, foi estudada como resultado do estágio cultural e material alcançado por uma civilização, tornando-se portanto marca imprimida na edificação. Desta forma, uma questão se tornou urgente para os arquitetos do período: criar um estilo que fosse identifi­ cado como representativo da época em que viviam, e que pudesse ser posterior­ mente identificado como tal. História e arquitetura formam neste período um dueto indissociável, uma vez que o próprio ato projetual se reconhece como inscrição capaz de fornecer uma leitura da civilização que o produziu. Adolfo Morales de los Rios compartilhava desta visão, desejava no ato projetual concretizar uma história. A edificação era para ele suporte das ma­ nifestações humanas, história cinzelada na pedra, impossibilitando não só seu esquecimento, mas principalmente perpetuando-a como linguagem tectônica. Como afirma, Com os estilos foram criados os caracteres peculiares, os traços próprios, (...) o cunho com que os povos marcam seus costumes nos edifícios por eles levantados. (13) Ao traçar esta estreita ligação entre arquitetura e cultura, Morales de los Rios encontra seu lugar dentro do universo artístico, pois justifica sua produção arquitetônica ao se reconhecer, a exemplo de seus antepassados, como artista que molda na pedra a história de seu tempo, cumprindo o dever de criar uma arte que fosse a expressão do século em que vive. Se em seus escritos detinha-se de forma metódica em tudo o que foi produzido sobre o tema tratado, esta preocupação se fazia sentir também em sua pesquisa da linguagem plástica. A possibilidade de constituição de um projeto, fosse ele arquitetônico ou de sociedade, pressupunha o conhecimento do que foi outrora produzido. Como se estivéssemos atrelados à nossa história de forma tão inexorável que qualquer passo a ser dado deveria pressupor o conhecimento profundo do passo anterior. Afinal, como afirma:

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"Nada é novo aqui! (...) Tudo que parece inédito é tirado do passado. Com um pouco menos de processo mecânico (...) Lembre-se você que para irmos para frente pre­ cisamos olhar muito para o pas­ sado. Construir é aproveitar ter­ reno que já foi alicerçado". (14)

I

A observação dos projetos de Morales de los Rios nos leva a perce­ ber que sua composição espacial é pau­ tada pelos ensinamentos herdados da École des Beaux-Arts, estando atrelado a tradição clássica. Ao compor suas edifi­ cações, não trabalha com a síntese, sacando da história elementos formais produzidos ao longo dos tempos e reor­ ganizando-os de maneira a configurar um novo espaço, e sim com a eleição de um modelo que a seu ver possui as qualidades espaciais de clareza e totali­ dade que considera adequado aos tem­ pos modernos. A relação do arquiteto com este modelo é percebida na análise dos edifícios onde este é bem aplicado, e naqueles em que, ao buscar adaptá-lo, obtém soluções que sugerem um descompasso entre as regras compositivas e as contingências com as quais se depara. O partido ao qual recorre em seus projeto, na maioria das vezes, tem a configuração de uma cruz cir­ cunscrita em um retângulo. Ao reduzir Adolfo Morales de Los Rios, os espaços a esta configuração e adotar Associação dos Empregados no Comércio, a presença de núcleos centrais, Morales Rio de Janeiro,1906. (Arquivo Nacional) cria figuras geométricas que ecoam esta figura central básica, gerando um espaço que se desenvolve do interior para o exterior, como anéis que vão se mul­ tiplicando. A origem desta configuração espacial de quadrados concêntricos resulta da divisão da área a ser construída, através da utilização de uma rede GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Adolfo Morales de Los Rios, Palácio Arquiepiscopal, Rio de Janeiro, 1905. (Arquivo Nacional)

modular: tramos no sentido transversal e longitudinal perpassam a edificação nos oferecendo a leitura de retângulos que se sobrepõem numa configuração em cruz. Sendo a rede modular trabalhada posteriormente, a partir dos quadrados concêntricos, usufrui-se de um espaço que é lido como o interpenetrar e o arti­ cular entre si de uma clara rede de circulação que acompanha o cruzar dos tramos. A edificação ganha uma clareza geométrica, onde o ato de circular por seu interior é baseados no encontro ortogonal das duas direções oferecidas pela rede modular que dá suporte à composição. Situado no eixo principal, como resultado da interseção dos tramos transversal e longitudinal, o núcleo central é um ponto de destaque da com­ posição. Nele, geralmente, situa-se a escada de acesso aos pavimentos, tendo ao fundo uma área de ventilação ou um pátio. Tal recurso é muito utilizado pelo 642

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arquiteto, acentuando sua função de ponto de referência da composição espa­ cial. Exemplo claro e primoroso deste tipo de composição é o edifício para a Associação dos Empregados no Comércio. Ao dividir o terreno no senti­ do longitudinal e transversal em três tramos, Morales obtém a configuração em cruz, permitindo o estabelecimento do núcleo central e, consequentemente, gerando uma edificação que resulta do crescer contínuo deste espaço. Embora simplificado, o edifício para a Equitativa do Brasil, segue o mesmo princípio compositivo que na Associação apresenta-se Adolfo Morales de Los Rios, Palácio Arquiepiscopal, Rio de Janeiro, 1905. em toda a sua complexidade. (Arquivo Nacional) Poderíamos pensar que a situação do terreno na malha urbana induziu à escolha do partido descrito, pois sua forma era afeita à presença de eixos direcionais e da divisão em tramos. Entretanto, tal afirmativa é desmentida quando observamos a presença da mesma composição espacial no edifício para o Palácio Arquiepiscopal, cuja forma e situação urbana do terreno possibilitaria ao arquiteto grande liberdade na escolha do partido. Morales confirma portanto a sua crença nesta conformação espacial que tem no homem seu princi­ pal motor, pois a ele a edificação mostrase claramente, numa percepção que tem a guiá-lo eixos principais e secundários cortados por sua vez, por outros eixos que lhe são paralelos, originando desta maneira um espaço pacificamente des­ frutado. Quando a situação urbana do terreno não possibilita a adoção ime­ diata do modelo compositivo preferen­ cial de Morales, percebe-se a presença de soluções que requerem uma certa dose GÁVEA. 15(15), julho 1997

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Adolfo Morales de Los Rios, Sociedade Equitativa do E.E.U.U. do Brasil, Rio de Janeiro, 1904. (Arquivo Nacional) 643


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Adolfo Morales de Los Rios Edifício das Águias, Rio de Janeiro, 1905. (Arquivo Nacional)

de malabarismo. O edifício para o Jornal O Paiz, surge como um exemplo, em­ bora a espacialidade e a organização das funções sejam bem reSolvidas. Como o lote destinado à edificação possuía a forma de um polígono irregular, o arquite­ to valeu-se de uma operação geométrica, dividindo-o e subdividindo-o, de maneira a tomá-lo apto a receber a aplicação do modelo. A menor dimensão do terreno, na m a Sete de Setembro, foi rebatida na fachada voltada para a Avenida, obtendo uma figura onde todos os lados possuíam a mesma dimensão. Somente após esta operação teve inicio a composição espacial propriamente dita. Assim, o edifício ocupa somente a área tornada equivalente, sendo a pequena fatia de terreno colada longitudinalmente à divisa - que constituía um entrave á com­ posição simétrica -, ocupada pela circulação de serviço. Quando a aplicação das regras com positivas é realmente impossí­ vel, surgem obras que mais parecem adaptações em decorrência, da impossibi­ lidade de conferir ao espaço uma organização racional. Este é um dos limites com os quais o arquiteto se depara. Aqui, Morales não consegue aprender com a história, não é possí­ vel para ele operar uma configuração espacial que seja ao mesmo tempo substan644

gávea.

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ciada pelo passado e aprimorada pelo conhecimento que o presente lhe propi­ ciou. Este é o momento em que, devendo escrever sua própria história, Morales insiste em procurar em seus alfarrábios um único modelo no qual possa se apoiar. E não o encontra. Fórmulas e princípios não se prestam mais aos novos programas ou as novas configurações dos terrenos da cidade moderna. Isto é percebido no edifício das Águias, uma edificação destinada a abrigar armazéns, lojas e apartamentos e de situação urbana peculiar pois loca­ lizava-se na praça circular formada pelo cruzamento da Avenida com a rua Marechal Floriano, possuindo portanto uma fachada côncava. Certamente, Morales se deparou com a seguinte questão: como agenciar uma unidade espa­ cial que comporte tal diversidade de funções e ao mesmo tempo conferir uma leitura espacial precisa a uma edificação cujo terreno possuía forma tão pouco regular e, portando, pouco afeita aos princípios compositivos? Ao tentar minimizar a configuração do terreno, Morales divide-o em dois blocos, ambos funcionando independentemente. No bloco correspon­ dente à Avenida tem-se uma divisão espacial simétrica, através da utilização da caixa de escadas, solução utilizada por Morales em vários projetos. No outro, uma composição tão clara não é mais possível pois, embora os ambientes sejam guiados por uma certa racionalidade, o mesmo não ocorre com sua disposição. Adolfo Morales de Los Rios Sociedade Anônima O Paíz, Rio de Janeiro, Sendo o volume da edificação ditado 1904. (Arquivo Nacional) por sua situação urbana, os cômodos não possuem forma e dimensão con­ fortáveis, parecendo mais o resultado de uma adequação do que do estudo da espacialidade que se deseja criar. <15> A presença de corredores distributivos, que organizam o fluxo e a circulação não encontra lugar e os corredores tornamse quase que tortuosas passagens. Tortuosa como deve ter sido a trajetória de Morales ao procurar estabelecer uma espacialidade que fosse o elo entre a tradição da qual se reco­ nhecia herdeiro e a transformação do que julgava incorreto, e da qual desejava ser senhor. Talvez não tenha reconheci­ do que este era o limite com o qual se GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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deparava. Uma composição espacial que, por não se libertar do modelo, por não ter possibilidade de sustentar-se enquanto questionam ento crítico, tornou-o herdeiro, mas não senhor pleno desta transformação que buscava operar. II

Para Morales de los Rios, as formas plásticas são resultado do sis­

tema de idéias - usos e costumes - que as gerou; entrando o sistema em colapso, novas formas recobrirão as antigas. Assim, a evolução do homem e das formas que elabora, é caracterizada pelo eterno religar de elos que comportam duas noções: permanência, pois não se pode esquecer os elementos essenciais da beleza (ordem, proporção e sim etria), e transformação, porque as idéias transmutam e, se a forma é resultado da transcodificação das idéias na matéria, ela também é mutável, tal qual a idéia que a gerou. Como em sua narrativa histórica, M orales tenta instituir uma trama de influências e trocas, procurando estabelecer ligações entre a cultura européia e a brasileira. Logo, o mundo assem elha-se a uma árvore genealógica cujos ga­ lhos e ramos, ligados ao tronco de origem, comportam semelhanças mas tam­ bém, diferenças. os povos que tem o m esm o tipo arquitetônico e peculiar, ainda que com mo­ dificações de detalhes, são aqueles que tem as m esm as crenças e costumes, ainda que pertençam a diversas fam ílias" ^ 6 )

Ao determinar os laços de parentesco que unem o Brasil à Europa, Morales está na verdade instituindo um certo percurso histórico. Aloca o país em um ramo da árvore que lhe possibilite valer-se da linguagem plástica apreendi­ da na Ecole e, também, constituir uma história que indique uma continuidade. Refaz a ascendência e propõe uma descendência construindo uma genealogia que, ao apontar as semelhanças deste país com a Europa Mãe, garanta um futuro tão promissor quanto o que coube a este continente. Seja na Escola Nacional de Belas Artes ou no Parque de Diversões para a Exposição de 1922, Morales junta e unifica em um só tronco a cultura, apontando o que há de nosso e o que foi her­ dado, o que é transformação e o que é continuidade. E na fachada das edificações que se pode ler com facilidade esta narrativa. Nela Morales escreve uma história feita com pedras utilizando-se de elementos arquitetônicos sacados da história e tornados símbolos e signos de uma civilização. Uma das m aneiras adotadas pelo arquiteto é a teoria associasta, na qual uma função encontra-se associada a um estilo que a representa. É caso do Palácio Arquiepiscopal, destinado a abrigar uma instituição religiosa, 646

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Adolfo Morales de Los Rios Casa Persa, Rio de Janeiro, 1905. Foto: Marc Ferrez

merecendo por isso características inspiradas no (...) estilo romano dos edifícios pon­ tifícios da Renascença (17), ou o Café Mourisco em estilo persa, pois se destinava a uma casa de diversão. (18) Ao valer-se desta teoria, Morales vai pontuando a cidade com uma história da civilização, sua malha urbana é tornada caderno de anotações, e sua ruas são linhas que servem de suporte para esta narrativa. Ela se torna também síntese histórica, já que estas linhas-ruas vão sendo preenchidas com elementos da história universal. É na concretude das edificações que Morales nos aponta que a Arquitetura grega idealizou o homem e demonstrou a existência da justiça e da lei GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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ou que A arquitetura árabe cantou os prazeres. Um passeio pela cidade significa um passeio pela história, significa identificar as instituições que ela possui, ler no caminho percorrido as crenças e costumes cinzelados por cada povo em suas edi­ ficações. Entretanto, nesta história, a arquitetura brasileira não tem seu espaço. Morales não se utiliza da linguagem tectônica local, mas se apropria de signos e símbolos capazes de gerar a percepção de uma ligação entre Brasil e Europa. Não deseja impor uma forma, mas sim constituir uma arquitetura que, mesmo salpicada de cores locais, continue sendo sedimentada pela veia da tradição ocidental. A construção desta árvore genealógica tem no projeto para a Escola Nacional de Belas Artes, seu exemplo mais concreto. Convém lembrar que com a proclamação da República, a Imperial Academia de Belas Artes torna-se Escola Nacional de Belas Artes, mudança que ocorre também nos seus estatutos e no quadro de professores. Fazia-se necessário a construção de uma edificação na qual, segundo Rodolfo Bernardelli, (...) com proveito e rapidez se pudesse desenvolver o novo programa do ensino que deve guiar os jovens artistas. (20>

Adolfo Morales de Los Rios, Escola Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, 1910. Foto: Marc Ferrez 648

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Adolfo Morales de Los Rios Parque de Diversões, Exposição do Centenário da Independência do Brasil, Rio de Janeiro, 1922.

A história construída e redimensionada por Morales neste edifício deveria oferecer uma sensação de continuidade, de raízes ancoradas no passado, mas que apontasse também para uma transformação. Assim, duas direções merecem sua atenção: demonstrar que o país participa do mundo civilizado e construir uma identidade artística nacional. O nome de Dürer, Fra Angélico e Rubens, literalmente escritos na fachada, ou os painéis representando Leonardo da Vinci, Vignola, Winckelman e Sthendal, inserem o ensino artístico no mundo civilizado e legitimam a instituição ao apontá-la como herdeira destes grandes mestres. O retrato dos membros da Missão Artística Francesa apontam o início do ensino artístico no Brasil. E os frutos gerados em terras brasileiras também são agraciados nesta construção histórica: Bethencourt da Silva, Pedro Américo, Maximiano Mafra e Manuel de Araújo Porto Alegre, discípulos da Missão Artística, operam a transição entre o passado herdado, o passado construído pela nação brasileira e o futuro a ser realizado. Esta narrativa edificada na pedra, que se pretende um contínuo histórico, é construída de forma seletiva. Ao criar um certo passado, e criá-lo o GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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mais glorioso possível, podemos apontar para um porvir igualmente glorioso, o que justifica a ausência dos primeiros artista brasileiros, ainda não comandados pelos ensinamentos civilizadores da Missão Artística Francesa. Portanto, constrói se uma certa história, que nomeia e que esquece, atrelada que está a um determinado projeto de constituição de um futuro. Se, como afirma Morales, é m edificação cjue os povos marcam seus costumes, nada melhor do que redimensionar este passado e assegurar às gerações futuras um Palácio das Belas Artes que, vinculando a tradição nacional à tradição européia, garanta às artes um des­ tino tão promissor quanto as origens redigidas na edificação. Na Escola Nacional de Belas Artes, Morales tece uma composição que torna a edificação um espaço da memória artística que deseja fundar. Já no projeto do Parque de Diversões, construído para a Exposição do Centenário da Independência do Brasil, em 1922, é a memória popular que se torna alvo do mundo quimérico a ser narrado. "Qaiz nessa construção relembrar o riso em todas as suas manifestações possíveis, em se tratando de obras arquitetônicas; quiz rir em tudo, inclusive em arte de con­ creto armado e até rir de mim mesmo, porque, na frase de Rabelais, é preferível escr­ ever do riso em vez das lágrimas, porque o riso é próprio do Iwmem. O arquiteto escreve em páginas de pedra, de cimento ou de frágil argamassa, para rir da arte e de si próprio" ^ 2)

Alinhavando figuras do mundo grotesco, fosse do universo zoológico ou folclórico, o arquiteto compõe uma edificação que bem atendia a função a que estava destinada. Em uma composição simples dispõe figuras grotescas, criando uma arte que ri de si mesma. O mundo da fantasia é tomado elaboração erudita, e Morales une, desta vez através do popular, o universo brasileiro ao universo europeu. A função unificadora cabe ao riso que, por ser próprio do homem, não vê fronteiras, sendo igual em todos os continentes. Assim, esta manifestação do espírito humano é apreendida em seu aspecto mais universalizante, mas também em sua faceta mais regionalista. Pícaro, personagem bufona da cultura espanhola, divide seu espaço com Polichinelo, o palhaço da comédia italiana, que por sua vez está ao lado do Curupira, índio travesso que habitava as matas e a crendice brasileira. Um mundo que comporta a união destes personagens da cultura popular é construído em um mesmo suporte, apontando para uma convivência pacífica e, porque não, risível das tradições de todos os países. Além das figuras o cloricas, há a presença dos menestréis, como o alemão Hanz Wurttz, que não 650

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CLAUDIA RICCI

A dolfo Morales de Los Rios Casa dos Elefantes, Rio de Janeiro, 1904. Foto: Marc Ferrez

sendo personagens da literatura, são ao contrário, os que propagam as estórias, no simples ato de memorizá-las e recontá-las. Mas sempre inserindo algo de pe­ ssoal neste universo, tal qual fez este arquiteto que escolheu a pedra para contar e recriar uma história. Mesmo utilizando-se de leis compositivas severas, os antigos e sérios ornamentos são substituídos pelo jocoso da fantasia. Morcegos, papagaios, urubus e elefantes representam a liberdade no manuseio dos elementos decora­ tivos criando uma arquitetura que é na verdade o riso do arquiteto para a própria arte de construir. Um tipo semelhante de licença poética é perceptível na Casa do Elefantes, edificação de uso misto, na qual à linguagem compositiva clássica são adicionados elementos decorativos não encontrados nos modelos eruditos ou nos exemplos da arquitetura corrente. São os famosos elefantes, escolhidos para substituir as mísulas, que tinham na figura humana, torso de homens ou mu­ lheres, a sua forma preferencial. Certamente decorre desta liberdade compositiva o fato de Artur Azevedo ter chamado de Moralino, o estilo do arquiteto. (23) Mas, poderíamos afirmar que tal tratamento resulta de uma escolha puramente formal na com­ posição de sua fachadas, que o estilo Moralino era um pastiche arquitetônico. Mas na verdade, ele nos aponta para o limite com o qual o arquiteto se deparou: como

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Sob a Inspiração deClio

operar uma composição que dê conta de um interior, se este não possui a unidade de usos existentes em uma escola ou um parque? ou ao menos uma única função que se sobreponha às demais? O anônim o surge como única po­ ssibilidade, e Morales projeta fachadas nas quais vem os expostos elementos de­ corativos sacados da história, ou elementos que, a exem plo dos elefantes, con­ ferem à edificação um reconhecimento. Reconhecim ento que se encontra atrela­ do, numa inversão operada por Morales, à própria polivalência de usos da edi­ ficação. Neste ato de redim ensionar o anonim ato do edifício, ao valer-se de ele­ mentos exóticos, Morales torna-o conhecido pela sua decoração, criando um caráter que não surge por sua função, nem por sua história, mas pela persona­ lização. Esta é a Casa dos Elefantes! Optar por com por uma fachada em estilo próprio, era certamente a única saída capaz de superar o limite com o qual se deparou: que história contar sobre uma edificação que não tem história ou que caráter imprimir a uma edifi­ cação com múltiplos caráteres? Mas uma coisa é certa: Morales aqui conta a sua própria história. A partir do m om ento em que faz esta releitura, em que organi­ za a história da arte neste novo suporte sem um caráter definido, está assinando seu nome, está mais uma vez contando uma história das formas arquitetônicas e transformando o edifício, tal qual faz na escala da cidade, em uma enciclopédia da civilização. Só que desta vez tem os claramente o seu nome assinado na pedra, no estilo Moralino.

Notas (1 ) A Avenida Central passou a ser denom inada Avenida Rio Branco no ano de 1912, em homenagem ao Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Governo Rodrigues Alves, morto neste m esm o ano. ! \ ! 3 f port.a8ens íntimas". Fon-Fon. Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1917. s/p . artigos escritos por Morales de los Rios foram publicados no jornal A Noite, nos dias 25, 26, 27, 28, 30 e 31 de janeiro d e 1915. ( 4 ) O Cassino resultou de um concurso, realizado em 1881, no qual Morales e Luís Aladren participaram e obtiveram o lo lugar. O teatro atualmente recebe a denominação de Gran Teatro Falia. ( 5 ) Estereotomia era uma disciplina ministrada na ENBA, na qual se ensinava a " encia do corte exato de materiais com o a pedra e a madeira. O primeiro projeto de Morales para o edifício da ENBA, em 1900, previa o aproveitamento do edifício do antigo M ercado da Glória. Em 1902 seguem-se c is ois projetos para o mesmo terreno. Som ente entre 1905 e 1906, tendo o ,7 i

edificará CC * u ° tei7 en0 na Avenida Central, é que Morales inicia o projeto da ? Ç ° T 6 h° ,e abriga ° Museu Nacional de Belas Artes p °o \ RÍOS' Ad0lf°- M 0 Í r ' M a m C a ■ Documentação manuscrita, IHGB.

m

p Is 652

E s,m o,om '« da Escola Nacional de Belas Aries. RU, de Janeini. 1897.

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( 9 ) Morales de los Rios, Adolfo. Diabo-Bruxo. Documentação manuscrita, IHGB. p.7. (10) Morales de los Rios, Adolfo. Zoologia Sagrada. Documentação manuscrita, IHGB. p.19. (11) Morales de los Rios, Adolfo. Fetiches e ídolos. Documentação manuscrita, IHGB. p. 35. (12) Collins, Peter. Los ideales de la arquitetura moderna: su evolucion (1750-1950). Barcelona, Gustavo Gili, 1970. (13) Morales de los Rios, Adolfo. Tese Apresentada .... op.cit. p.14 (14) Morales de los Rios, Adolfo."Presentes do passado". O Imparcial. Rio de Janeiro, 2 de julho, 1916. p.05. (15) Cf Leonce Reynaud em "Traité d' Architecture": Um apartamento, por exemplo, é bem distribuído se todas os cômodos que o compõem são planejados de forma a mais favorável para os usos aos quais se destinam,... mas pode ser ao mesmo tempo mal disposto se não se tirou todas as vantagens possíveis da sua localização, se um ou mais cômodos não possuem as formas e dimensões necessárias e, se as paredes e as aberturas foram realizadas de forma a complicar a execução, e não simplificá-la e, se finalmente, a composição do interior não se manifesta no exterior através de uma configuração satisfatória.. In: 'Drexler, Arthur (org.) The Architecture of the Ecole des Beaux-Arts. New York, Museum of Modem Art, 1977. p. 112. (16) Morales de los Rios, Adolfo. Tese apresentada... Op.cit. p. 12. (17) Morales de los Rios Filho, Adolfo. Adolfo Morales de los Rios... Op.Cit. p. 182. (18) Cabe aqui lembrar que Morales fez questão de apontar a exata origem deste estilo em seu artigo de sugestivo nome: "O Restaurante Assírio é persa... e o Café Mourisco também", no qual nos oferta uma verdadeira aula acerca das influen cias árabes, persas e mourisca. "O Restaurante Assírio é persa ...e o café Mourisco também". O Jornal, Rio de Janeiro, 09 de junho, 1921. p.02. (19) Morales de los Rios, Adolfo. Tese apresentada... Op.Cit. p.27 (20) A Academia funcionava no edifício projetado por Grandjean de Montigny, membro da Missão Artística Francesa. (21) Morales de los Rios, Adolfo. Tese apresentada... Op.Cit. p.14 (22) Morales de los Rios Filho, Adolfo. Adolfo Morales de los Rios... Op. Cit. p.193. (23) Idem. p. 182.

Bibliografia ARGAN, Giulio Cario. El Passado in el Presente. Barcelona, Gustavo Gili, 1984. DREXLER, Arthur (org). The Architecture of the Ecole des Beaux-Arts. New York, The Museum of Modern Art, 1977. MOMIGLIANO, Amaldo. The Classical Fundation of Modern Historiography. Bekerley, University of California Press, 1990. MORALES DE LOS RIOS, Adolfo. Tese apresentada no Concurso para o lugar de Lente de Estereotomia da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1897. MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolfo. Adolfo Morales de los Rios - Figura, Vida e Obra. Rio de Janeiro, Borsói, 1959. PATETTA, Luciano. L'Architettura dell'Ecletismo - fonti, teorie, modeli (1750-1900). Milano, Città Studi, 1991.

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Funcionalismo Hoje A partir da crítica ao ornamento efetuada por Adolf Loos, Adorno problematiza a noção de funcionalidade. Funcional, para o autor, seria o atributo da obra moderna (com ou sem finalidade), pois só a ela cabe indagar sobre o que é essencial e o que é supérfluo à sua constituição. Mas a diferença entre o essen­ cial e o supérfluo é intrínseca à obra e não definida pela sua relação com o que lhe é externo. Logo, a questão da funcionalidade não pode ser simplesmente reduzida a questão da função prática. Arquitetura Moderna Funcionalismo Adolf Loos.

THEODOR W. ADORNO (1903-1969) Traduzido por Cesar Ribeiro Filósofo, músicólogo, crítico literário, Theodor W. Adomo é um dos maiores representantes da cultura humanista européia neste século. Profunda mente marcado por Hegel, compo­ nente da "Escola de Frankfurt", Adorno tem sua obra marcada, sobretudo, pela reflexão sobre a crise da cultura e da razão burguesa.

Primeiramente, gostaria de expressar minha gratidão pela confi­ ança demonstrada por Adolf Arndt em seu convite para falar hoje aqui. Ao mesmo tempo, devo expressar também minhas duvidas quanto a ter realmente o direito de falar diante de voces. Afinal, o métier, o conhecimento especializado tanto em questões de habilidade artesanal quanto de técnica, conta muito nos seus círculos. E nada mais justo. Se há uma idéia de influência duradoura que se desenvolveu a partir do movimento Werkbund, é precisamente essa ênfase na competência concreta em oposição à uma estética distanciada e isolada das questões materiais. Estou familiarizado com este princípio a partir do meu próprio métier, que é a música. Neste, ele se tornou um teorema fundamental graças a uma escola que cultivou relações pessoais íntimas tanto com Adolf Loos quanto com a Bauhaus, e que tinha portanto plena consciência dos seus laços in­ telectuais com a objetividade (Sachlichkeit) (1>nas artes. Não posso entretanto ale­ gar competência em questões de arquitetura. Ainda assim, não posso resistir à tentação e devo encarar conscientemente o perigo de que vocês possam me to-

Adolf Loos, Casa Tristan Tzara, Paris, 1925-26. GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Funcionalismo ^

lerar tão somente como um diletante para me descartar logo em seguida. Faço isto em primeiro lugar pelo meu prazer em apresentar algumas de minhas reflexões em público e a voces em particular e, em segundo lugar, pelo comen­ tário de Adolf Loos de que enquanto uma obra de arte não precisa exercer um apelo sobre quem quer que seja, uma casa é da responsabilidade de todos e de cada um.l1! Ainda não estou certo de que esta afirmação seja de fato válida mas, por enquanto, não há necessidade de ser mais real que o próprio rei. Percebo que o estilo da reconstrução alemã me causa uma insatis­ fação perturbadora , que muitos de vocês devem certamente compartilhar comi­ go. Uma vez que eu devo, não menos que os especialistas, me deparar constan­ temente com esse sentimento, sinto-me justificado ao examinar os seus funda­ mentos. Os elementos comuns à musica e à arquitetura já foram discutidos repetidamente, chegando quase ao ponto do tédio. Ao unir aquilo que vejo na arquitetura com o que entendo dessas dificuldades na música, posso não estar transgredindo a lei da divisão do trabalho tanto quanto possa parecer. Mas para realizar esta união, devo me distanciar mais desses temas do que seria de se esperar. Parece-me realista pensar que, às vezes , em situações de crise latente, possa ser útil distanciar-se mais dos fenômenos do que o que normalmente seria permitido pelo espírito da competência técnica. O princípio de adequação ao mate­ rial (Materialgerechtigkeit) <2) repousa sobre o fundamento da divisão do trabalho. No entanto, seria aconselhável até mesmo aos especialistas levar ocasionalmente em conta o quanto o seu conhecimento especializado depende precisamente dessa divisão do trabalho, pois a ingenuidade artística que subjaz tal divisão pode impor suas próprias limitações. Permitam-me começar com o fato de que o movimento anti-orna­ mental afetou também as artes livres de uma finalidade (zweckfreie Kütiste) ®). É da natureza das obras de arte indagar sobre o essencial e o necessário nelas mesmas e reagir contra todos os elementos supérfluos presentes. Após a tradição crítica ter se recusado a oferecer às artes um cânone do certo e do errrado, a responS' abilidade de fazer tais considerações recaiu sobre cada obra individual, cada uma devendo ser testada a partir de sua própria lógica imanente, independente' mente de ter sido motivada ou não por alguma finalidade externa. Esta não em de modo algum uma nova posição. Mozart, embora sendo ainda claramente um portador dos padrões e representante crítico da grande tradição, respondeu a objeção de um membro da família real após a estréia do seu Rapto - Mas tartVfi otas, meu caro Mozart... - da seguinte maneira: Nem uma nota sequer além necessário, Vossa Majestade. Kant, em sua Crítica da Faculdade do Juízo, fu n d a rá ' tou filosoficamente esta norma com a fórmula de uma finalidade sem f * 656

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THEODOR W. ADORNO

(Zweckmassigkeit ohne Zweck) -

a fórmula reflete um momento do juízo de gosto.

Ainda assim , ela n ão explica a dinâmica histórica que lhe é inerente. Baseada em uma linguagem d erivad a da esfera dos materiais, o que essa linguagem define com o necessário p od e posteriormente se tom ar supérfluo, até m esm o terrivel­ mente ornam ental, tão logo não possa m ais ser legitimada numa segunda espé­ cie de linguagem que é com um ente cham ada de estilo. O que era funcional ainda ontem p od e p ortan to se tornar o oposto amanhã. Loos estava perfeita­ mente ciente d esta dinâm ica histórica contida no conceito de ornamento. Até m esm o elem entos representativos , suntuosos, pomposos e num certo sentido burlescos podem ap arecer em certas form as de arte como necessários e de modo algum com o caricatu ralm ente imitativos. Criticar o Barroco por essa razão seria filisteísmo. A crítica do ornam ento não quer dizer nada alem da crítica daquilo que perdeu o seu significado funcional e simbólico. O ornam ento se tom a então um m ero vestígio orgânico em decom posição e portanto venenoso. A nova arte se opõe a isto, p ois isto representa a ficção de um romantismo depravado, uma ornam entação em baraçosam ente enredada em sua própria impotência. A músi­ ca e a arquitetura m odernas, ao se concentrarem estritamente na expressão e con­ strução, em p en h am -se ambas com igual rigor na eliminação de todo ornamento. As inovações em com posição de Schoenberg, a luta literária de Karl Kraus con­ tra os clichês jornalísticos e a denúncia d o ornam ento de Loos não são vagas analogias na história intelectual; elas refletem precisamente a m esm a intenção. Essa percepção torna necessário uma correção da tese de Loos que ele, em sua abertura a n ovas idéias e opiniões, provavelm ente não teria rejeitado: a questão do funcionalism o não coincide com a questão da função prática. As artes livres de finalidade (zweckfrei) e as artes com finalidade (zweckgebunden) não formam a oposição radical q ue ele lhes atribuiu. A diferença entre o necessário e o supér­ fluo é intrínseca a um a obra e não é definida pela sua relação - ou ausência de relação - com algo que lhe é externo. N o pensam ento de Loos e no período inicial do funcionalismo, os produtos esteticam en te autônom os e aqueles com finalidade estavam separados entre si p or um fato absoluto. Esta separação, que é de fato o objeto de nossa reflexão, surgiu d a polêm ica contem porânea dirigida contra as artes aplicadas e artesanais (Kimstgeiverbe) (4). Embora elas tenham determinado o período do desenvolvim ento d e Loos, ele logo escapou do seu alcance. Loos estava assim situado historicam ente entre Peter Altenberg e Le Corbusier. O movimento da arte aplicada teve o seu início com Ruskin e Morris.

Revoltando-se contra a

informidade d as form as pseudo-individualizadas produzidas em massa, ele organizava-se em torno de novos conceitos com o vontade de estilo, estilização, dar GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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F u n cio n a lism o

Hoje

forma (shaping), em torno da idéia de que a arte deveria ser aplicada, deveria ser reintroduzida na vida para que a vida lhe fosse restaurada. Os seus slogans eram vários e tiveram um efeito poderoso. No entanto, Loos observou bem cedo a implausibilidade de tais esforços: os artigos de uso perdem o significado tão logo sejam deslocados ou desengajados de tal modo que o seu uso não seja mais requerido. A arte, com o seu protesto definitivo contra o domínio da finalidade sobre a vida humana, sofre uma vez que seja reduzida àquele nível prático ao qual se opõe, nas palavras de Hoelderlin : Pois jam ais, de agora em diante /Servirá o sagrado ao mero uso. Loos achava a arte artificial dos objetos práticos simples­ mente repulsiva. De modo semelhante, parecia-lhe que a reorientação prática da arte livre de finalidade eventualm ente a subordinaria à destrutiva autocracia do lucro à qual até mesmo o m ovim ento de artes artesanais (arts and crafts), pelo menos em seu início, havia se oposto. Indo em sentido contrário a tais esforços, Loos pregava o retorno a um trabalho artesanal honesto (5), que se colocaria a serviço das inovações técnicas sem ter que pegar as formas emprestadas da arte. Seus argumentos sofrem de uma antítese dem asiadam ente simples - o seu ele­ mento restaurador, de modo semelhante ao que aparece na individualização das artes artesanais, tornou-se desde então igualmente claro. Ainda estão, até os dias de hoje, presos às discussões sobre a objetividade. Em um dado produto qualquer, a liberdade com respeito a um fim e a finalidade não podem jam ais ser separadas absolutamente uma da outra. As duas noções estão historicamente interligadas. A fin a l, os ornamentos que Loos expulsou com uma veemência fora do comum são frequentemente de fato vestí­ gios de modos de produção obsoletos. E, de maneira inversa, vários fins como a sociabilidade, a dança e a diversão se infiltraram na arte livre de finalidade; foram, de maneira geral, incorporadas às suas leis formais e genéricas. A finali­ dade sem fins é assim realm ente a sublimação dos fins. Nada existe como um objeto estético em si, mas apenas dentro do cam po de tensão de tal sublimação. Não há portanto uma finalidade quimicamente pura postulada como o oposto da estética livre de finalidade. Até mesmo as form as mais puras de fins são nutridas por ideias - como a transparência formal e a compreensibilidade - que sa° de fato derivadas da experiência artística. Nenhum a forma pode ser deterada exaustivamente pelo seu fim. Isto pode ser visto mesmo em uma das revolucionárias de Schoenberg, a Primeira Sinfonia de Câmara, sobre a qual screveu algumas de suas palavras mais penetrantes. Ironicamente, um tema ornamental aparece, com uma batida dupla lembrando de imediato um motivo central do Crepúsculo dos Deuses de Wagner e o tema do Primeiro ovimento da 658

gávea.

SétimaSinfonia de Bruckner. O ornam ento é a invenção s 15 (15), julho 1997


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da, poderíamos dizer, objetiva por si mesmo. Precisamente este tema de tran­ sição se torna o modelo de uma exposição canônica no contraponto quádruplo, e assim, o modelo do primeiro complexo construtivista extremo na música mo­ derna. A crença de Schoenberg em tal material foi extraída da religião da Kunstgewerbe(4), que venerava a suposta nobreza da matéria; ela ainda continua a fornecer inspiração mesmo na arte autônoma. Ele combinou com esta crença as

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Funcionalis

idéias de uma construção adequada ao m aterial. A ela corresponde um conceito não dialético de beleza, que envolve a arte autônom a como uma proteção nat­ ural. Que a arte aspire à autonomia não significa que ela se livre incondicional­ mente de elementos ornam entais; a própria existência da arte, julgada pelo critério do prático, é ornam ental. Se a aversão de Loos ao ornamento tivesse sido rigidamente consistente, ele teria tido que estendê-la à totalidade da arte. Para seu crédito, ele parou antes de chegar a essa conclusão. Aliás, em sua circun­ specção, ele é semelhante aos positivistas. Por um lado, eles baniriam da esfera da filosofia qualquer coisa que considerassem poética. Por outro, eles não sentem qualquer incidência da própria poesia sobre o seu tipo de positivismo. Assim, elés tolerarm a poesia se ela perm anecer em uma esfera especial, neutralizada e inquestionada, uma vez que já enfraqueceram a noção de verdade objetiva. A crença de que uma substância com porte em si mesma sua própria forma adequada supõe que ela já esteja investida de significado. Tal doutrina tornou possível a estética do sim bolismo. A resistência aos excessos das artes aplicadas se referia não apenas às form as ocultas nos materiais mas também ao culto destes . Ela criou uma aura de essencialidade em tomo desses materiais Loos expressou p recisam en te essa noção em sua crítica do batik. Simultaneamente, a invenção de produtos artificiais - de materiais originários da indústria - não permitia m ais a fé arcaica em uma beleza inata, a fundação de ma magia ligada a elem entos preciosos. A lem disso, a crise surgida dos últimos esenvolvimcnt05 da arte autônoma dem onstrava como uma organização signia pouco dependia do próprio m aterial. Sem pre que os princípios organis dependem excessivam ente do m aterial, o resultado se aproxima do i ^ tC m 0 r A seu

adequação ao m aterial na arte voltada para fins não m dlferente a tais críticas. De fato, a ilusão da finalidade como

ter finalidade aq u fe W »ra

sente AinHa

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à realidade. SOCÍal mais slmPles Al8 ° 50 ^ se Possulr tal finalidade em termos da sociedadepre-

era faux f r a k ^ ™ ' C° rtaS lrracionalidades - o term o que Marx usou para estas despeito deT o d ^ eSSendaÍS à SOdedade; o Processo social sempre procrie, a

propósito e irracioM taentT T a p rtlCUlar' ^

fins e propósitos e assim /

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PrÓPrÍa naturezain,erna Sem

lrraci°n ah d ad e deixa a sua marca em todos os

para alcançar esses fins A ^ ^ C° m * raci°nalidade dos meios concebida da onipresença dos anún SSlm/ Uma contradiçâo ridiculamente imitativa surge entanto, toda finalidade ' ° S C^eS Sua finalidade em função do lucro. E no material. Se um a n ú n ^ J Cmcamente definida pela medida de sua adequação ornamental, ele não v

Z ^ * * " * * * '“ «l, sem qualquer excesso P a mais a sua finalidade como anúncio. Certamente,

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o medo da tecnologia é em grande parte ultrapassado e antiquado, e até mesmo reacionário. Ainda assim, ele tem a sua validade, pois reflete a ansiedade senti­ da diante da violência que uma sociedade irracional pode impor aos seus mem­ bros e mesmo à tudo aquilo que é obrigado a existir dentro de seus limites. Essa ansiedade reflete uma experiência comum de infância que Loos parece não reconhecer, muito embora seja fortemente influenciado pelas circunstâncias de sua juventude: a nostalgia de castelos com grandes aposentos e tapetes de seda - a utopia do escapismo. Algo desta utopia sobrevive na aversão moderna à esca­ da rolante, à célebre cozinha de Loos, à fumaça da chaminé da fábrica, à faceta decrépita de uma sociedade antagônica. Ela é reforçada pelas aparências exter­ nas. A desconstrução de tais aparências, no entanto, tem pouco poder sobre a esfera com pletam ente degradada onde a práxis continua como sempre. Poderíamos, por exemplo, criticar as torres desses falsos castelos modernos (que Thornstein Veblen desprezava), ou os ornamentos acrescidos aos sapatos; mas isso, mesmo quando possível, só faz agravar uma situação já horrenda. Este processo também tem implicações para o mundo dos quadros. A arte positivista,

A dolf Loos, Casa Steiner, Viena, 1910. GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Funcionalismo

prosDertooH d° eX1Stente' substituiu a verdade estética. Pode-se vislumbrar os prospectos de uma nova A ckerstrasse (6). guesia em cp»,,

^u n c ^o n a b s rn o foram até o presente os limites da bur-

° í ”^ 0 ' M esmo Loos, o inimigo jurado do kitsch ramos a guns traços notavelm ente burgueses. Uma vez que a

Vienense e n c o n t ^ 662

g á v ea . 15 os),

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Hoje


THEODOR W. ADORNO

estrutura burguesa já havia permeado tantas formas feudais e absolutistas em sua cidade, Loos acreditava poder usar seus princípios rigorosos para se livrar das fórmulas tradicionais. Os seus escritos, por exemplo, continham ataques à desajeitada formalidade vienense. E mais, suas polêmicas são marcadas por uma espécie singular de puritanismo que borda a obsessão. O pensamento de Loos, como boa parte da crítica burguesa da cultura, é o ponto de intersecção de duas direções fundamentais. Por um lado, ele percebeu que esta cultura não era de fato de modo algum cultural. Isso formou acima de tudo a sua relação com o seu ambiente nativo. Por outro lado, ele sentia uma profunda animosidade em relação à cultura em geral, o que requeria não somente a proibição do verniz cul­ tural como também de todos os toques suaves e gentis. Nisto ele desconsiderou o fato de que a cultura não é o lugar para a natureza indomada nem para uma implacável dominação da natureza. O futuro da objetividade (Sachlichkeit) só poderia ser liberador se ela se despojasse dos seus traços bárbaros. Ela não mais infligiria aos homens - a quem ela supostamente mantinha como sua única medi­ da - os golpes sádicos de bordas agudas, ambientes calculadamente nus, escadas, e outros equivalentes. Virtualmente todo consumidor havia provavelmente sofri­ do de forma aguda a impraticabilidade do implacavelmente prático. A partir disto formulamos nossa amarga suspeita: a absoluta rejeição do estilo se torna o estilo. Loos retraça a origem do ornamento até os símbolos eróticos. A sua rígida rejeição da ornamentação é por sua vez aliada ao seu desgosto com o simbolis­ mo erótico. Ele considera a natureza irreprimida tanto regressiva como embaraçosa. O tom das suas condenações do ornamento ecoam uma raiva, muitas vezes expressa abertamente, contra a delinqüência moral; "Mas o homem do nosso tempo que, por uma compulsão interna, suja as paredes com símbolos eróticos é um criminoso e um degenerado." ^ O insulto degenerado liga Loos a movimentos que ele certamente não teria aprovado. Pode-se, diz ele, medir a cultura de um país pela quantidade de graffiti nas paredes dos banheiros. í3] Mas nos países do sul e nos países mediterrâneos em geral, encontra-se muito disso. De fato, os Surrealistas fizeram amplo uso de tais expressões irrefletidas. Loos certamente teria hesitado antes de atribuir uma falta de cultura a essas áreas. O seu ódio pelo ornamento pode ser melhor enten­ dido pelo exame de um argumento psicológico (7). Ele parece ver no ornamento o impulso mimético, que vai no sentido contrário da objetificação racional; ele vê neste uma expressão que, mesmo na tristeza e no lamento, está relacionada ao princípio do prazer. Argumentando a partir desse princípio, deve-se aceitar que GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Funcionalismo Hoje

existe um fator de expressão em todo objeto. Qualquer restrição especial desse fator somente à arte seria uma simplificação excessiva. Ele não pode ser separa­ do dos objetos de uso. Assim, mesmo quando falta expressão a esses objetos, eles devem pagar tributo a esta tentando evitá-la. Por essa razão, todos os objetos de uso obsoletos eventualmente se tomam uma expressão, um quadro coletivo da época. Não há uma única forma prática que, juntamente com a sua adequação ao uso, não seja também um símbolo. A psicanálise também demonstrou esse princípio com base nas imagens inconscientes, entre as quais a casa figura de maneira proeminente. Segundo Freud, a intenção simbólica rapidamente se associa às formas técnicas, como no avião, e segundo a pesquisa americana con­ temporânea em psicologia de massa, frequentemente com o automóvel. Assim, as formas com finalidade são a linguagem dos seus próprios fins. Por meio do impulso mimético, o ser vivo se iguala aos objetos à sua volta. Isso ocorre muito antes dos artistas começarem a imitação consciente. O que começa como símbo­ lo se torna ornamento, até que finalmente parece supérfluo; no entanto, ele teve suas origens nas formas naturais, às quais os homens se adaptaram através de seus artefatos. A imagem interna que é expressada neste impulso foi uma vez algo externo, algo coercitivamente objetivo. Este argum ento explica o fato, co­ nhecido desde Loos, de que o ornamento, e mesmo a forma artística em geral, não podem ser inventados. A realização de todos os artistas, e não somente daqueles interessados em fins específicos, é reduzida a algo incomparavelmente mais modesto do que a arte-religião do século XIX e com eço do séulo XX estaria disposta a aceitar. A base psicológica do ornamento portanto frustra os princí­ pios e fins estéticos. No entanto, a questão de como a arte seria possível sob qual­ quer forma se a ornamentação não fosse mais um elem ento substancial - se a própria arte não pudesse mais inventar quaisquer ornam entos verdadeiros esta questão não se encontra de forma alguma decidida. Esta última dificuldade, que a Sachlichkeit inevitavelmente encon­ tra, não é um mero equívoco. Ela não pode ser corrigida de maneira arbitrária. Ela se segue diretamente do caráter histórico do tema. O uso - ou consumo - se encontra bem mais mtimamente ligado ao princípio do prazer do que um objeto da representação artística, que responde somente às suas próprias leis formais. Ele significa o desgaste, a negação do objeto, que ele não deve ser. O prazer aparece, segundo a ética burguesa do trabalho, como energia desperdiçada. A formulação de Loos deixa claro o quanto ele estava inicialm ente, enquanto críti­ co cultural, ligado fundamentalmente àquela ordem cujas manifestações critica­ va sempre que estas deixavam de seguir seus próprios princípios: 664

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"O ornamento é energia de trabalho desperdiçada e, portanto, saúde desperdiçada sempre o foi. Mas hoje ele também significa material desperdiçado, e ambos signifi­ cam capital desperdiçado." Dois motivos irreconciliáveis coincidem nesta asserção: a economia - pois onde mais, senão nas normas de rentabilidade e lucro, é afirmado que nada deve ser desperdiçado - e o sonho do mundo totalmente tecnológico, livre da vergonha do trabalho. O segundo motivo aponta para além do mundo estri­ tamente comercial. Para Loos ele assume a forma da percepção da incapacidade freqüentemente lamentada de criar ornamento e da extinção da assim chamada energia estilizadora (que ele denunciava como uma invenção dos historiadores da arte) como implicando em um avanço nas artes. Ele percebeu, além disso, que estes aspectos de uma sociedade industrializada, que pelos padrões burgueses são negativos, de fato representam o seu lado positivo: "O estilo costumava significar ornamento. Então eu disse: não lamentem! Vocês não vêem? É precisamente isto o que torna a nossa época grande - que ela seja incapaz de produzir novos ornamentos. Nós conquistamos o ornamento, nós lutamos até chegar ao estágio da não-ornamentação. Vejam, a hora se aproxima. A realização plena nos aguarda. Logo as ruas das cidades brilharão como paredes brancas. Como no Sião, a cidade sagrada, a capital do paraíso. Então, será nossa a salvação." ^ Segundo esta concepção, o estado livre de ornamento seria uma utopia da presença concretamente realizada de maneira plena, não mais necessi­ tando de símbolos. A verdade objetiva, toda a crença nas coisas, se agarraria a esta utopia. Esta utopia permanece oculta para Loos por sua experiência cmcial com o Jugendstil: "O homem individual é incapaz de criar a forma; portanto, o arquiteto também o é. O arquiteto, no entanto, tenta o impossível repetidamente - e sempre em vão. A forma, ou o ornamento, é o resultado da cooperação inconsciente dos homens, per­ tencendo a toda uma esfera cultural. Tudo o mais éarte. A arte é a vontade do gênio imposta a si mesmo. Deus lhe deu a sua missão." ^ Este axioma, de que o artista realiza uma missão divina, não é mais sustentável. Uma desmistificação geral, que começou na esfera comercial, se apossou da arte. Com ela, a diferença absoluta entre a finalidade inflexível e a liberdade autônoma também foi reduzida. Mas aqui encontramos uma outra contradição. Por um lado, as formas puramente orientadas com respeito a fins foram reveladas como sendo insuficientes, monótonas, deficientes e estreita­ mente práticas. É claro que às vezes certas obras-primas individuais realmente se GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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destacam; mas então, tende-se a atribuir o sucesso ao gênio do criador, e não a algo objetivo pertencente à própria realização. Por outro lado, a tentativa de tra­ zer para a obra o elemento externo da imaginação com o um corretivo, de ajudar a questão com esse elemento que vem de fora dela, é igualmente desproposita­ da; ela só serve para ressuscitar equivocadamente a decoração, que foi criticada de maneira justificável pela arquitetura moderna. Os resultados são extrema­ mente desanimadores. Uma análise crítica da m odernidade medíocre do estilo da reconstrução alemã por um verdadeiro especialista seria extremamente rele­ vante. A minha suspeita em M inima Moralia de que o m undo não é mais habitáv­ el já foi confirmada; a pesada sombra da instabilidade recai sobre a forma con­ struída, a sombra das migrações em massa, que tiveram o seu prelúdio nos anos de Hitler e de sua guerra. Tal contradição deve ser apreendida conscientemente em toda a sua necessidade. Mas não podemos parar por aí. Se o fizermos, estare­ mos cedendo ante uma catástrofe continuamente ameaçadora. A catástrofe mais recente, os ataques aéreos, já levaram a arquitetura à uma condição da qual ela não pode escapar. Os pólos da contradição são revelados em dois conceitos, que pare­ cem ser mutuamente excludentes: artesanato e imaginação. Loos rejeitou expres­ samente esta última no contexto do mundo do uso: “A construção pura e limpa teve de substituir as formas imaginativas dos séculos anteriores e a florescente ornamentação das épocas passadas. Linhas retas, bordas retas e agudas: o artesão trabalha somente com estas. Ele só tem um propósito em mente e somente materiais e ferramentas diante de si." I71 Le Corbusier, entretanto, sancionou a im aginação em seus escritos teóricos, pelo menos em um sentido relativamente geral: A tarefa do arquiteto: o conhecimento dos homens, a criação imaginativa, a beleza. Liberdade de escolha (homem espiritual)." lfil Podemos assumir com segurança que, em geral, os arquitetos mais avançados tendem a preferir o artesanato, ao passo que aqueles mais retrógrados e sem imaginação prontamente elogiam a imaginação. Devemos ter cuidado, no entanto, para não aceitarmos simplesmente os conceitos de artesanato e imagi­ nação no sentido vago em que foram empregados na polêmica em curso. Somente então poderemos esperar alcançar uma alternativa. A palavra artesana­ to que ganha o assentimento imediato se refere a algo qualitativamente diferente. Somente o diletantismo pouco razoável e um flagrante idealismo tentariam 666

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Hans Scharoun, Casa Schmincke, Löbau, 1933.

negar que cada atividade autêntica e artística no sentido mais amplo requer uma compreensão precisa dos materiais e técnicas à disposição do artista, e isso cer­ tamente no nível mais avançado. Somente o artista que jamais se sujeitou à disciplina de criar um quadro, que acredita nas origens intuitivas da pintura, teme que a proximidade dos materiais e o entendimento técnico destrua a sua originalidade. Ele jamais aprendeu o que está disponível historicamente e jamais poderá fazer uso disso. E assim ele conjura , a partir das supostas profundezas de sua própria interiori­ dade aquilo que é meramente o resíduo de formas ultrapassadas. A palavra arte­ sanato (handicraft - trabalho feito à mão) remete à esta verdade tão simples. Mas acordes bem diferentes ressoam inevitávelmente junto com esta. O radical hand

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F u n cio n a li

(mão) expõe um meio de produção ultrapassado; ele sugere uma economia sim­ ples de produtos. Estes m eios de produção desapareceram desde então. Desde as propostas dos precursores inglêses do estilo m oderno eles foram reduzidos à um baile de máscaras. A ssocia-se a noção de artesanato ao avental de um Hans Sachs, ou possivelmente à grande crônica do m undo. As vezes não consigo eli­ minar a suspeita de que tal ethos arcaico de m atizas iit tamisa sobrevi\a ate mesmo entre os defensores m ais jovens da artesanalidade; eles desprezam a arte. Se alguns se sentem superiores à arte é som ente porque jamais a experimentaram como Loos. Para ele, a apreciação tanto da arte com o da sua forma aplicada le­ vava a um amargo conflito em ocional. Na área da m úsica, eu sei de um defen­ sor do artesanato que falava, com um anti-rom antism o obviamente romântico, de uma mentalidade de cabana. Um a vez o flagrei pensando em artesanatos como fórmulas estereotipadas, práticas, com o ele as cham ava, que supostamente de­ veriam economizar as energias do com positor; jam ais lhe ocorreu que hoje em dia a singularidade de cada tarefa concreta exclui tal formalização. Graças a ati­ tudes como a dele, o artesanato é transform ado naquilo que ele próprio quer repudiar: a mesma repetição reificada e sem vida que o ornamento havia propa­ gado. Não ouso julgar se um tipo sem elhante d e perversidade está em jogo no conceito de produção da form a quando visto com o uma operação separada, independentemente das dem andas im anentes e das leis do objeto a ser formado. De qualquer modo, im agino que a paixão retrospectiva pela aura do artesão socialmente fadado ao desaparecim ento seria bem com patível com a atitude des­ denhosamente fraudulenta do seu sucessor, o especialista. Orgulhoso do seu conhecimento especializado e tão im polido qu anto as suas mesas e cadeiras, o especialista é indiferente às reflexões necessárias nesta época que não apresenta mais nada a que se possa agarrar. É im possível sobreviver sem o especialista; é impossível nesta epoca dos m eios com erciais de produção recriar aquele estado anterior à divisão do trabalho que a sociedade aboliu de maneira irrecuperável. Mas do mesmo modo, é im possível elevar o especialista à medida de todas as coisas. A sua modernidade desiludida, que alega ter se despido de todas as ide­ ologias, e facilmente apropriada pela m áscara da rotina pequeno-burguesa. 0 artesanato se torna então habilidade técnica. O bom artesanato significa então a adequaçao dos meios a um fim. O s fins não são certam ente independentes dos meios. E estes últimos têm sua própria lógica, um a lógica que aponta para além to n r r f : eqUaÇâ° dOS mei° ” u,n J e m s, mesmo, ela se s e n te n c io o d° ar,esâo «>m eça a produzir o efeito oposto da __ ngina , quando ela servia para lutar contra o smoking de seda e a boina. Ela frustra a razão objetiva que está por trás das forças produtivas, ao 668

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invés de permitir que ela se desenvolva. Hoje, sempre que o artesanato é esta­ belecido como norma, deve-se examinar detidamente a sua intenção. O conceito de artesanato tem íntima relação com a função. Suas funções, no entanto, de modo algum são necessariamente esclarecidas ou avançadas. O conceito de imaginação, assim como o de artesanato, não deve ser adotado sem uma análise crítica. A trivialidade psicológica - a imaginação somente como a imagem de algo não ainda presente - é claramente insuficiente. Como interpretação, ela explica meramente aquilo que é determinado pela ima­ ginação nos processos artísticos e, presumo, também nas artes com finalidade. Walter Benjamin uma vez definiu a imaginação como a capacidade de interpo­ lar ao nível do mínimo detalhe. É inegável que tal definição satisfaça bem mais do que as visões correntes que ou tendem a elevar o conceito à um céu imaterial ou a condená-lo com bases objetivas. A imaginação na produção de uma obra de arte representativa não é o prazer na livre invenção, na criação ex nihilo. Não existe tal coisa em arte, mesmo na arte autônoma, a esfera à qual Loos restringiu a imaginação. Qualquer análise penetrante da obra de arte autônoma concluirá que os acréscimos inventados pelo artista acima e além de um dado estado dos materiais e formas são minúsculos e de valor limitado. Por outro lado, a redução da imaginação a uma adaptação antecipada aos fins materiais é igualmente ina­ dequada; ela transforma a imaginação em uma eterna mesmice. E impossivel atribuir totalmente as poderosas façanhas imaginativas de Le Corbusier à relação entre a arquitetura e o corpo humano, como ele mesmo faz em seus próprios escritos. Existe claramente, talvez imperceptível nos materiais e formas que o artista adquire e desenvolve, algo mais que o material e as formas. A imaginação significa animar este algo. Isto não é uma noção tão absurda quanto possa pare­ cer. Pois as formas, e mesmo os materiais, não são de modo algum simplesmente dados pela natureza, como um artista irrefletidamente poderia facilmente pre­ sumir. A história neles se acumulou , e o espírito os permeia. O que eles contêm não é uma lei positiva; ainda assim, o seu conteúdo emerge como uma figura nitidamente destacada do problema. A imaginação artística desperta esses ele­ mentos acumulados ao tornar-se ciente da problemática interna do material. O menor avanço da imaginação responde à questão sem palavras que lhe é coloca­ da pelos materiais e formas em sua linguagem silenciosa e elementar. Os impul­ sos separados, e mesmo a finalidade e as leis formais imanentes são por meio desta fundidos em um todo. Ocorre uma interação entre a finalidade, o espaço e o material. Nenhuma dessas facetas constitui qualquer proto-fenômeno único a que todos os outros possam ser reduzidos. É neste ponto que o insight fornecido pela filosofia de que nenhum pensamento pode levar à um início absoluto - de GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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que tais absolutos são produtos da abstração - exerce a sua influência sobre a estética. Assina a música, que há tanto havia enfatizado a suposta primazia do tom individual, teve que descobrir finalmente as relações mais complexas dos seus componentes. O tom só ganha significado dentro da estrutura funcional do sistema, sem o qual ele seria uma mera entidade física. Somente a superstição poderia esperar extrair dele uma estrutura estética latente. Fala-se, e com toda razão, de um sentido do espaço (Raumgefühl) na arquitetura. Mas este sentido do espaço não é uma essência pura e abstrata, não é um sentido da própria espacialidade, já que o espaço só é concebível como espaço concreto, dentro de dimensões específicas. Um sentido do espaço está assim intimamente ligado aos fins. Mesmo quando a arquitetura tenta elevar este sentido para além da esfera da finalidade, ele ainda continua sendo simultaneamente imanente ao fim. O sucesso desta síntese é o critério de princípio da grande arquitetura. A arquite­ tura pergunta: como uma certa finalidade pode tornar-se espaço ? - através de que formas, que materiais ? Todos os fatores se relacionam mutuamente e recip­ rocamente. A imaginação arquitetônica é, segundo esta concepção, a capacidade de articular o espaço com a finalidade. Ela permite que os fins se tornem espaço. Ela constrói as formas de acordo com os fins. Inversamente, o espaço e o sentido do espaço podem se tornar mais do que um fim empobrecido somente quando a imaginação os impregna com a finalidade. A imaginação surge das relações ima­ nentes de finalidade, às quais deve sua própria existência. Tenho plena consciência da facilidade com que conceitos como um sentido do espaço podem se degenerar em clichês, e acabar finalmente até mesmo sendo aplicados às artes e técnicas. Sinto aqui os limites do não-especialista que é incapaz de tornar estes conceitos suficientemente precisos , embora tenham sido tão esclarecedores na arquitetura moderna. Ainda assim, me per­ mitirei um certo grau de especulação: o sentido do espaço, diferentemente da idéia abstrata do espaço, corresponde, na esfera visual, à musicalidade na esfera acústica. A musicalidade não pode ser reduzida à uma concepção abstrata do tempo - por exemplo, a capacidade, não importa o quão útil, de conceber as unidades de tempo de um metrônomo sem precisar ouví-lo. De modo seme­ lhante, o sentido do espaço não está limitado às imagens espaciais, muito embo­ ra estas sejam provavelmente um pré-requisito para todo arquiteto, se é que ele lê seus croquis e plantas do mesmo modo que um músico lê a sua pauta. Um sen­ tido do espaço parece exigir mais, a saber, que algo pode ocorrer ao artista a par­ tir do próprio espaço. Isto não pode ser algo arbitrário no espaço e indiferente ao espaço. De modo análogo, o músico inventa as suas melodias, de fato todas as suas estruturas musicais, a partir do proprio tempo, a partir da necessidade de 670

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organizar o tempo. As meras relações de tempo não bastam, já que são indife­ rentes ao evento musical concreto; como também não basta a invenção das pas­ sagens musicais individuais ou dos complexos musicais, já que suas estruturas temporais e relações temporais não são concebidas juntamente com estes. No sentido produtivo do espaço, a finalidade assume em grande parte o papel de conteúdo, opostamente aos constituintes formais que o arquiteto cria a partir do espaço. A tensão entre forma e conteúdo que torna possível toda criação artísti­ ca se comunica através do fim especialmente nas artes orientadas com respeito a fins. O novo ascetismo objetivo realmente contem, portanto, um elemento de ver­ dade - a expressão subjetiva não mediatizada seria de fato inadequada para a arquitetura. Quando somente tal expressão é buscada, o resultado não é arquite­ tura mas sim sets de filmagem - e às vezes, como no velho filme do Golem, até mesmo bons sets. A posição da expressão subjetiva é então ocupada em arquite­ tura pela função em prol do sujeito. A arquitetura alcançaria um padrão tanto mais elevado quanto mais intensamente mediasse reciprocamente os dois extremos - a construção formal e a função. A função do sujeito, no entanto, não é determinada por alguma pes­ soa de natureza física imutável generalizada, mas por normas sociais concretas. A arquitetura funcional representa o caráter racional, em oposição aos instintos suprimidos dos sujeitos empíricos que, na sociedade atual, ainda buscam a sua sorte em todos os nichos imagináveis. Ela recorre a um potencial humano que é alcançado em princípio pela nossa consciência avançada, mas que se encontra sufocado na maioria dos homens, que foram mantidos espiritualmente impo­ tentes. Uma arquitetura digna de seres humanos tem uma opinião mais elevada dos homens do que eles de fato são. Ela os vê do modo que poderiam ser segun­ do o status de suas próprias energias produtivas tal como encarnadas na tecnolo­ gia. A arquitetura contradiz as necessidades do aqui e agora tão logo passe a servir estas necessidades - sem representar ao mesmo tempo qualquer ideologia absoluta ou duradoura. A arquitetura ainda permanece, como o título do livro de Loos reclamava há setenta anos atras, um grito no vazio. O fato dos grandes arquitetos de Loos a Le Corbusier e Scharoun terem sido capazes de realizar somente uma pequena parte da sua obra em pedra e concreto não pode ser expli­ cado unicamente pelas reações de empregadores e administradores pouco razoáveis (embora tal explicação não deva ser subestimada). Este fato é condi­ cionado por um antagonismo social sobre o qual a grande arquitetura não tem poder: a mesma sociedade que desenvolveu as energias humanas produtivas até proporções inimagináveis também as acorrentou às condições de produção que lhes foram impostas; assim, as pessoas que na verdade constituem as energias GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Le Corbusier, Immeubles-villas, 1922 (projeto).

produtivas são deformadas de acordo com as medidas de suas condições de tra­ balho. Esta contradição fundamental é visível de maneira mais nítida na arquite­ tura. E tão difícil para a arquitetura se livrar das tensões que esta contradição pro­ duz quanto para o consumidor. As coisas não são universalmente corretas na arquitetura e universalmente incorretas nos homens. Estes sofrem injustiça o sufi­ ciente, pois sua consciência e inconsciência estão presas a um estado de minori3 e' ^ n<^a não se emanciparam, por assim dizer. Esta minoridade impede a sua nh cação com as suas próprias motivações. Porque a arquitetura é de fato ônoma quanto orientada com respeito a fins, ela não pode simplesmente negar os omens tal como eles são. Ainda assim, isto é precisamente o que deve .

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ontnlnoi

<f~e deVe Permanecer autônoma. Se ela ignorasse a humanidade tel que\, 30 ^ acomoc*and0 30 que seria uma antropologia, e mesmo uma

beu nrotóH UeStK°náVeiS Na° Í01 meramente Por acaso que Le Corbusier concee convenci Uman° S' ° s homens que vivem, até mesmo os mais retrógrados muito e r l Z T ente ° dÍreÍto à satisfa^ o de suas necessidades, ponha de lado neCeSSldades Possam ser falsas. Uma vez que o pensamento dades t d a d e Sem “ “ “ ° S de^ OS ^ j e t í v o s em prol de necessiverdadeiramente objetivas, ele se transforma em opressão brutal. 0 672

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mesmo se dá com a volonté générale contra a volotüé de tous. Mesmo nas falsas necessidades de um ser humano existe um pouco de liberdade. Ela é expressada naquilo que a teoria econômica chamou uma vez de valor de uso, enquanto opos­ to ao valor de troca. Portanto existem aqueles para quem a arquitetura legítima aparece como inimiga; ela não lhes permite aquilo mesmo que eles, por sua própria natureza, querem e até mesmo necessitam. Para além do fenômeno do atraso cultural, esta antinomia pode ter sua origem no desenvolvimento do conceito de arte. A arte, para ser arte segun­ do as suas próprias leis formais, deve se cristalizar na forma autônoma. Isto constitui o seu conteúdo de verdade; de outro modo, estaria subordinada àquilo que ela nega por sua própria existência. Ainda assim, como produto humano, ela não é jamais eliminada inteiramente da humanidade. Ela tem como seu elemen­ to constitutivo algo daquilo a que naturalmente se opõe. Quando a arte apaga sua própria memória, esquecendo que ela lá está somente para os outros, ela toma-se um fetiche, um absoluto por demais ciente de si e por isso relativizado. Assim foi com o sonho da beleza Jugendstil. Mas a arte também é compelida a buscar a pura auto-imanência se é que não deve ser sacrificada à fraudulência. O resultado é um quid pro quo. Uma atividade que concebe como seu objeto virtu­ al uma humanidade liberada e emancipada, possível somente em uma sociedade transformada, aparece no estado atual como uma adaptação à uma tecnologia que se degenerou em um fim em si mesmo, em uma finalidade voltada para si. Tal apoteose da objetificação é o oponente irreconciliável da arte. Isto, no entan­ to, não é mera aparência. Quanto mais consistentemente as artes, tanto a autônoma quanto a assim chamada arte aplicada, rejeitarem suas próprias ori­ gens mágicas e míticas e seguirem suas próprias leis formais, maior se torna o perigo desta adaptação. A arte não possui nenhum meio seguro de fazer face a tal perigo. A aporia de Thorstein Veblen é assim repetida: antes de 1900 ele exi­ gia que os homens pensassem de maneira puramente tecnológica, causal e mecânica para superar a farsa viva do seu mundo de imagens. Sancionava assim as categorias objetivas da economia que criticava. Em um estado livre, os home­ ns não mais estariam subordinados à uma tecnologia que, de fato, existisse somente para eles - ela lá estaria para serví-los. No entanto, na época atual os homens foram absorvidos pela tec­ nologia e só deixaram cascas vazias em seu lugar, como se houvessem passado para ela a sua melhor parte. Sua própria consciência foi objetificada em face da tecnologia, como se a tecnologia objetiva tivesse de algum modo o direito de criticar a consciência. A tecnologia existe para os homens: esta é uma proposição plausível, mas ela se degradou ao nível da ideologia vulgar do regressionismo. GÁVEA. 15(15), julho 1997

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Isto é evidente no fato de que basta invocá-la para ser recompensado com uma compreensão entusiástica vinda de todos os lados. Toda essa situação é de algum modo falsa; nada nela pode atenuar a contradição. Por um lado, uma utopia imaginada, livre dos fins restritivos da ordem existente se tornaria impotente, um ornamento solto, uma vez que deve derivar seus elementos e estrutura dessa mesma ordem. Por outro, qualquer tentativa de banir o fator utópico, como uma proibição de imagens, imediatamente cai vítima do feitiço da ordem dominante. A questão do funcionalismo é a subordinação à utilidade. O que não é útil é atacado sem questionamento porque o desenvolvimento das artes expôs a insuficiência estética que lhe é intrínseca. O meramente útil, no entanto, se encontra entrelaçado às relações de culpa, aos meios de uma devastação do mundo, à uma desesperança que nega tudo à humanidade, exceto consolações enganadoras. Mas mesmo que esta contradição jamais possa ser completamente eliminada, deve-se dar um primeiro passo para tentar compreendê-la; na sociedade burguesa, a utilidade tem sua própria dialética. O objeto útil seria a mais elevada realização, uma coisa antropomorfizada, a reconciliação com obje­ tos que não estariam mais isolados da humanidade e que não sofreriam mais humilhação nas mãos dos homens. A percepção infantil das coisas técnicas promete tal estado; elas aparecem como imagens de um espírito próximo e solí­ cito, isento da motivação do lucro. Tal concepção não era desconhecida dos teóri­ cos das utopias sociais. Ela oferece um agradável refúgio do verdadeiro desen­ volvimento, e permite uma visão das coisas úteis que perderiam a sua frieza. A humanidade não sofreria mais do caráter coisificante do mundo (8), e, de modo semelhante, as coisas se realizariam e alcançariam seu pleno reconhecimento. Uma vez redimidas de sua própria característica de coisa, as coisas encontrariam a sua finalidade. Mas na sociedade atual toda utilidade é deslocada, enfeitiçada. A sociedade nos engana quando diz que permite que as coisas apareçam como se lá estivessem pela vontade da humanidade. Na verdade, elas são produzidas em função do lucro; elas satisfazem as necessidades humanas apenas incidental­ mente. Elas invocam novas necessidades e as mantém segundo o motivo do lucro. Uma vez que o correto seria o que é útil e benéfico ao homem, despojado da dominação e exploração humanas, nada é mais insuportável estéticamente do que a forma atual das coisas, subjugadas e internamente deformadas até pas­ sarem ao seu oposto. A razão de ser de toda arte autônoma desde o nascimento da era burguesa é que somente os objetos inúteis atestam aquilo que pode ter sido útil em algum momento; ela representa o uso correto e feliz, um contato com as coisas para além da antítese entre utilidade e inutilidade. Esta concepção implica que os homens que desejam uma melhora devem se revoltar contra a 674

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A d o lf Loos, Casa Möller, Viena, 1927-28.

praticidade. Se eles a supervalorizam e reagem a ela, passam para o campo do inimigo. Diz-se que o trabalho não degrada. Como a maioria das expressões proverbiais, esta encobre a verdade inversa; a troca degrada o trabalho útil. A maldição da troca se abateu também sobre a arte autônoma. Nesta, o inútil é con­ tido em sua forma limitada e particular; ele.é assim tornado indefeso e exposto à critica feita pelo seu oposto, o útil. Inversamente, no útil, aquilo que ocorre na atualidade é vedado às suas possibilidades. O segredo obscuro da arte é o caráter fetichista de bens e produtos. O funcionalismo gostaria de se desembaraçar deste

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nó; ainda assim, ele só consegue se debater em suas correntes em vão, e isto enquanto permanecer preso à uma sociedade também ela enredada. Tentei fazê-los perceber certas contradições cuja solução não pode ser esboçada por um não-especialista. É de fato duvidoso que elas possam ser simplesmente resolvidas hoje em dia. Nesta medida, eu poderia esperar que vocês me criticassem pela inutilidade da minha argumentação. Minha defesa estaria implícita na minha tese de que os conceitos de útil e inútil não podem ser aceitos sem as devidas considerações. Passou-se a época em que podíamos nos isolar em nossas respectivas tarefas. O objeto em vista exige o tipo de reflexão que a objetividade geralmente rejeitava de maneira claramente não objetiva. Ao exigir a imediata legitimação de um pensamento, ao exigir saber para que serve agora este pensamento, este é geralmente levado a parar no ponto em que pode oferecer insights que um dia poderiam até mesmo contribuir para melhorar a práxis de uma maneira imprevisível. O pensamento tem o seu próprio impulso coercitivo, semelhante àquele que vocês conhecem no seu trabalho com o seu material. O trabalho de um artista, quer esteja ou não voltado para uni fim par­ ticular, não pode mais proceder de modo ingênuo por um caminho preestabele­ cido. Ele manifesta uma crise que exige que o especialista - a despeito de sua orgulhosa habilidade técnica - vá além do seu cam po de atividade para satisfazêla. Ele deve fazer isso de duas maneiras. Primeiro, com respeito às coisas sociais; ele deve prestar contas da posição de seu trabalho na sociedade e dos limites sociais que ele encontra por todos os lados. Esta consideração se torna crucial nos problemas de planejamento urbano, para além até mesmo das tarefas de reconstrução, em que as questões arquitetônicas colidem com as questões sociais tal como a existência ou inexistência de um sujeito social coletivo. Nem é preciso mencionar que o planejamento urbano será insuficiente enquanto estiver centra­ do nos fins sociais particulares ao invés de nos coletivos. Os princípios práticos meramente imediatos do planejamento urbano não coincidem com os de uma concepção verdadeiramente racional, livre das irracionalidades sociais; falta-lhes aquele sujeito social coletivo que deveria ser a principal consideração do planento urbano. Aqui se encontra uma razão pela qual o planejamento urbano ç ou se degenerar no caos, ou impedir a realização arquitetônica produti­ va dos indivíduos. m segun o lugar, gostaria de ressaltar este aspecto para vocês, de refle ~ ^ - e*Ura' e, de fato, toda arte voltada para fins, exige uma constante talvpy n kem Se* como a palavra estética deve lhes soar suspeita. Vocês leis form ar f ^ Pro*essores que, com os olhos voltados para o céu, vomitam is as a eleza eterna e permanente, que não são mais do que receitas 676

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Adolf Loos, Chicago Tribune Tower, Chicago, 1923 (projeto).


Funcionalismo Hoje

para a produção do efêmero kitsch classicista. Na verdade, o que ocorre com a verdadeira estética deve ser o oposto disso. Ela deve absorver precisamente aquelas objeções que ela uma vez levantou em princípio contra todos os artistas. A estética se condenaria se continuasse irreflexivam ente, especulativamente, sem uma incansável auto-crítica. A estética com o um a faceta integral da filosofia aguarda um novo impulso que deve vir de esforços reflexivos. Daí a praxis artís­ tica recente ter se voltado para a estética. A estética se torna uma necessidade prática tão logo fique claro que conceitos com o a utilidade e a inutilidade na arte, como a separação entre uma arte autônoma e um a arte voltada para fins, como imaginação e ornamento, devem uma vez m ais ser discutidos antes do artista agir positivamente ou negativam ente de acordo com tais categorias. Quer goste­ mos ou não, somos em purrados diariam ente para considerações, e consider­ ações estéticas, que transcendem as nossas tarefas im ediatas. Nossa experiência faz lembrar o Monsieur Jourdain de M olière que, ao estudar retórica, descobre para seu espanto que esteve falando prosa a vida inteira. Uma vez que nossa atividade nos compele às considerações estéticas, nos rendemos ao seu poder. Não podemos mais conjurar ou abandonar as idéias arbitráriamente em nome do puro e exaustivo conhecim ento do especialista. O artista que não persegue enérgicamente o pensamento estético tende a recair nas hipóteses diletantes e justi cativas desajeitadas na defesa de sua própria construção intelectual. Na usica, íerre Boulez, um dos com positores contem porâneos mais competentes ecmcamente, estendeu o construtivism o até o seu lim ite em algumas de suas composiçoes; logo em seguida, no en tanto, ele proclam ou enfaticamente a neces­ sidade da estetica. Tal estética não , * , , teria a presunção de anunciar os pnncipios que estabelecem a chave da própria k ^i . V j■ - .. P P a beleza ou da própria feiura. Somente esta discnçao ja permitiria colocar o prohl«™ , r beleza hoje não pode ter outra m ed id a 01™ ™ n t o «*> uma nova luz. A resolve as contradições. Uma obra d e 3 profundidade com ^ue uma obra superá-las, não de modo a e n c o b ri-la . 6 VenCer 3 resistência das contradições e mal, o que quer que seja, é vazia e sem P ersegum do-as. A mera beleza forperdida no prazer sensual pré-artístico * ‘8 n ‘flcado; a beleza de seu conteúdo é de vetores de força ou não é realm d<> ° bservador' A beleza ou É resultante reforçaria os contornos de seu p ró p rio "1^ " 16 n3d3 Um a eStética transformada começasse a sentir m ais in te n s a r^’ ,eto com clareza crescente à medida que

Diferentemente da estética tradicional de arte como o seu correlato dado. O

necessidade de investigá-lo. ? ° na° Veria necessaria™ente o conceito

a arte pensando-a. Estaria assim u l t r a ^ 1^ ™ 6 0 *0 estético hoíe deve ultrapassar dade e autonomia, na qual o produtor^ ssan d ° a corrente oposição entre finaliev e sofrer tanto quanto o observador. 678

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THEODOR W. ADORNO

Notas do texto: Funcionalismo Hoje ( Functionalismus Heute ) foi originaria mente uma palestra dada por Theodor Adomo em um encontro do \Nerkbund alemão em Berlim a 23 de outubro de 1965 - primeiramente publicado em alemão na revista Neue Rundschau, vol. 77, No. 4 -1966. Sua tradução em inglês saiu na publicação Oppositions - Summer 1979 - No.17 - Cambridge, The M.I.T. Press, feita por Jane O. Newman e John H. Smith. A versão alemã consultada na presente tradução é a dos Schriften 10. I Kulturkritik und Gcsellschaft vol. I - p. 375-95. [ 1 1 Ver AddfLoos, SdmtlicheSdtriften, I, FranzGlück, ed. ( Vienna /Munich, 1962),p314ff [ 2 ] Ibid., p. 277. [ 3 ] Ibid. [ 4 ] Ibid., p. 282 ff. [ 5 1 Ibid., p. 278. I 6 ] Ibid., p. 393. [ 7 J Ibid., p. 345. [ 8 J Le Corbusier, Mein Werk , ( Stuttgart, 1960 ) , p. 306

Notas da tradução americana: ( 1 ) 0 movimento da Neue Sachlichkeit, uma das principais correntes pós-impressionistas na arte alemã, é geralmente traduzido como Nova Objetividade. A palavra sachlich , no entanto, carrega uma série de conotações. Juntamente com a sua ênfase na "coisa" ( Sache ), ela implica um modo de ser direto, prático, com os pés na terra. ( 2 ) Gerechtigkeit implica não somente adequação, qualidade de ser próprio, como também uma justiça superior, legal ou moral. ( 3 ) A palavra Zweck aparece ao longo de todo o texto de Adomo, tanto separada como em várias combinações. Ela permeia a tradição da estética alemã desde Kant. Ainda que ela basicamente signifique propósito, deve às vezes ser traduzi­ da como objetivo ou fim ( como em meios e fim- Mittel und Zweck ). Há portanto uma certa consistência no uso que Adomo faz da palavra que não pode ser sem­ pre mantida. ( 4 ) Kunstgewerbe sugere uma maior seriedade que o termo equivalente estabelecido em inglês arts and crafts. O termo cobre todo o campo das artes aplicadas. ( 5 ) A palavra Handiverk em alemão significa tanto trabalho manual ou artesanal como habilidade técnica. Como Adomo enfatizaria mais tarde o aspecto manual, opta­ mos por este sentido sempre que possível. ( 6 ) A referencia não é clara. Significa literalmente "rua (ou campo) do Acre". Talvez esteja se referindo à uma rua real, um movimento, um lugar ou evento históri­ co. Não pudemos traçar a sua origem. ( 7 ) Não é claro no texto original o quanto o argumento que se segue é de Adorno ou de Loos. Tentamos preservar a ambiguidade. ( 8 ) A palavra Ding (coisa) está ligada também à varias tradições no pensamento alemão, tendo portanto uma certa importância filosófica ou poética (daí a "coisidade das coisas"). Heidegger e Rilke, por exemplo, tentaram elevar a noção de Ding à um novo status essencial e existencial.

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Antonio Piccinni, retrato de Croce, desenh Foto: Iggy Wanderley S n h ° a bico de pena, 1908


A Estética de Benedetto Croce A Estética de Benedetto Croce é o resultado de um longo percurso especulativo que se propõe a equacionar filosoficamente a questão da autonomia da Arte, ou seja, da independência desta da Lógica e da Ética tendo, com isto, enunciado uma solução para o problema da natureza do fato artístico. Foi Croce quem deu à Estética a primeira síntese unitária com rigo­ rosa sistemática, desenvolvida como parte da sua Filosofia do Espírito. A Estética de Croce, de caráter antropológico, localiza a arte, a poe­ sia e a expressão na instância da cognição poé­ tica, o topos ideal denominado Intuição Pura. Benedetto Croce Estética e historiografia contemporâneas Arte - Intuição

PATRÍCIA h o r v a t Escultora graduada pela Escola de Belas Artes da UFRJ, pós-graduada pelo Curso da Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil (PUCRJ). Restauradora, diretora técnica da Arte Cidade Restauro.

A época de formação de Croce d) coincide com a afirmação do cientificismo positivista. Na Europa em geral, nos diversos campos do pensamento, além do filosófico e do científico, desenvolvia-se a metodologia científica, inau­ gurada pelo positivismo, e constituía-se o conceito de que as ciências tem valor prático e operativo, e não especulativo. Era o ambiente em que De Sanctis,(2) estreitamente ligado a Croce, desenvolvia uma crítica literária plena de interrogações acerca da natureza da arte e da história. Suas primeiras experiências críticas e seus estudos históricos sobre o contexto napolitano, geraram uma abordagem metodológica que amadureceu na idéia de redutibilidade da História sob o conceito geral da arte. Ao contrário do que pretendia a abordagem positivista, que propunha uma relação invariável de sucessões e semelhanças entre os fatos, tal que qualquer fato humano era visto como produto de uma combinação mecânica de causas, no caso das manifestações artísticas, redutíveis às fontes e aos influxos ambientais, neste trabalho Croce dizia precisamente que a historiografia e a arte eram con­ cernentes ao conhecimento do individual concreto e pertenciam a uma mesma instância da atividade teórica. "A Arte, categoria genérica, englobaria a arte no sentido estrito e a historiografia, GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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sendo a arte a representação do possível e a história o gênero de produção artística que tem por objeto o realmente acontecido. (3) Para Croce a história não tem realidade fora do espírito do histo­ riador que a pensa: ela estabelece uma unidade com o sujeito pensante e muda necessariamente quando m udam os interesses que estimulam o historiador à pesquisa e as idéias que o guiam na sua reconstrução. Assim também, os juízos históricos, síntese de sujeito e predicado, ao se transformarem, determinam a orientação historiográfica. A história, ainda que remeta a períodos passados, nasce de um interesse presente e se torna contemporânea através da consciência julgadora e, impregnada de particularidade, não deve ser considerada como documento de verdades, m as como uma coerente construção do possível, ou seja, constituída de elementos do acontecido com forma verossímil.*4) Ignorando as tendências do positivism o, de usar como fundamen­ tos a causalidade e a funcionalidade, Croce associou seu discurso à obra de De Sanctis e às meditações de Vico/5) desenvolvendo um característico pensamento historiográfico que, em paralelo com suas reflexões sobre arte, convenceram-no da heterogeneidade destes produtos do espírito, em confronto com as ciências naturais. Croce questionava, sem grandes polêm icas, a ingenuidade filosófica do positivismo, que há décadas se punha a sistem atizar a história no âmbito das ciências naturais, das quais devia absorver a ordem, a coerência e a legalidade, e investiu maciçamente contra o cientificismo, utilizando um princípio lógico no qual se basearia com rígida coerência e clareza ao longo de sua obra, o critério da distinção, segundo o qual a arte e a história não se contrapõem à ciência natural e não a negam, simplesmente distinguem-se dela com o atividades de natureza diversa. Este critério de distinção entre arte e ciência, aplicado à história, postulava que há componentes artísticos residuais na historiografia, mas man­ tinha uma relação de autonomia entre arte e história, autonomia instituída na categorização das instâncias do espírito, que Croce equacionou na Teoria dos Distintos S® A Estética de Croce, desenvolvida durante toda a sua vida, dividese em duas partes, em uma ele considera o problema da natureza do fato artísti­ co, na outra ele traça o esboço geral do seu sistem a filosófico, uma gnoseologia tuição e do conceito, imprescindível para que se compreenda a sua obra.

O Sistema de Croce Croce e um idealista que reformou o Idealismo. As principais dife­ 682

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renças na concepção do que é arte, para Hegel e Croce são: para Hegel a arte é subjacente à reflexão, é o espiritual sensibilizado, e não é senão aparência, através da qual se toma consciência do real; para Croce a arte não é reflexão, mas intuição pura, sentimento na sua forma inaugural, e a aparência concerne à obra artística, ao objeto material, não à Arte. Croce construiu, como Hegel, uma filosofia do espírito, mas sem que anteriormente tivesse constituído uma filosofia da natureza, pois considerava que no ato consciente de pensar, no filoso­ far, já estava consumada a redução do cosmos; e seria no pensar mesmo, e não na relação de alteridade que o pensamento estabelece com a coisa, que o espíri­ to estabelece, por sua vez, a consistência dos fatos e dos valores. Croce não se furta a uma análise do saber, que ele entende como gnoseologia verdadeira, mas ao repensar o mundo, admite que a crítica gnoseológica já operou uma recon­ dução do real ao espírito, não sendo necessário um novo sistema de mundo para que se compreenda a evolução espiritual como uma sucessão de diferentes for­ mas, ou para que se construa uma filosofia. No sistema de Croce, a metafísica é a doutrina do real em geral, a lógica é a doutrina do conceito, que é a realidade mesma, transcrita em termos de pensamento, e a história é a atividade que repensa o real em suas transfor­ mações e seu contínuo desenvolver. Torna-se superado o pensamento que cindia as oposições de maneira dualista, contrapondo-as como irredutíveis: "a realidade é nexo de opostos, e não se dissipa por causa da oposição, ainda que se regenere eternamente nela e dela. "(7) O método de Croce é o da distinção: o ritmo da vida espiritual pro­ cede por diversidade. O devir de Croce não é infinito, nem finito, mas indefinido. O círculo da vida espiritual não se detém jamais sobre si mesmo e poderia ser representado sob a forma de uma espiral.

A Estética como categoria Na Estética, Croce dirige sua atenção para a primeira forma da atividade teórica, ou seja, para o conhecimento intuitivo, identificando-o com a atividade artística. O que Croce denomina conhecimento intuitivo, absolutamente não se refere à sensação confusa e indefinida denominada intuição pelo senso comum. A intuição, para ser verdadeiramente tal, deve objetivar-se em uma expressão, isto é, em uma imagem, produto da imaginação, de outro modo seria uma ilusão, afloramento incoerente de desejos recônditos. Assim, aquilo que não se objetiva em uma expressão não é intuição ou representação, mas sensação e GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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fluxo natural inconsciente. Para que o sentim ento estético não seja confundido com sensação ou sentimentalismo, Croce o categoriza logicamente, identifican­ do-o com o momento inaugural do processo de conhecimento. O espírito tem duas atividades fundam entais: a teórica, ou cognoscitiva, e a prática, ou volitiva, que se dirigem respectivamente ao particu­ lar ou ao universal, dando origem a quatro distintos, ou categorias, estética, lógi­ ca, econômica e ética. O aspecto teórico, que se refere ao conhecimento, origina as categorias da fantasia, ou conhecimento intuitivo, e do intelecto, ou conheci­ mento lógico. O primeiro remete ao individual, singular, o segundo remete ao universal, relacional. O aspecto prático não produz conhecimento, mas produz ação, e origina as categorias da atividade econôm ica e da atividade moral. A primeira é a volição direcionada para um fim m eramente útil, a segunda é a volição direcionada a um fim racional. Para Croce as categorias são eternas e nenhuma opera isolada, sendo cada qual uma articulação do espírito, e não são originárias uma da outra em um movimento ascensional do espírito, em direção a uma forma suprema. As atividades cognoscitiva e prática não são opostas e não são passíveis de entrar em dialética, nem são opostas à imaginação e ao intelecto, ou à atividade econômica e à atividade ética. Pode se colocar com o opostos somente elementos inerentes a um mesmo distinto ou categoria, por exemplo, não se pode conside­ rar como opostos o belo e o verdadeiro, pois belo é um elemento inerente à ativi­ dade estético-intuitiva e verdadeiro é elemento inerente ao distinto que se refere à atividade lógico-intelectiva, conhecimento do universal, e teria seu oposto em um elemento inerente a esse mesmo distinto. As categorias de Croce são formas irredutíveis da realidade espiritual, possuem valor concreto. E por valor concre­ to se entenda o motivo graças ao qual o ato lógico universal é, ao mesmo tempo, pensar a realidade. O pensamento, assim, tem uma significação realista e embora tudo seja sempre e exclusivamente pensamento, este transcreve em termos de logicidade um mundo efetivamente real. Há uma síntese de distintos que, no inces­ sante devir do espírito, liga de modo intrínseco o real e o saber, operando a idade do diverso e a diferenciação contínua do idêntico. Constitui-se deste mo o um instrumento para o discernim ento das diferentes esferas do real e para uma clarificação e sistematização do saber.

A intuição estética como síntese do conhecimento , tn re m 684

Antecipada na Scienza Nuova (1725) de Vico, a distinção e a correw çaoe conceito , é experimentada na Lógica por Croce, onde ele GÁVEA. 15 (15), julho 1997


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especificou a distinção entre conceitos puros e pseudoconceitos, os primeiros elaborados pela razão especulativa, os outros constituídos pelo intelecto abstra­ to. Os conceitos empíricos, próprios às ciências naturais, estariam privados de universalidade e seriam a classificação geral dos fenômenos observados pela experiência. Os conceitos abstratos pertenceriam à atividade prática, com valor instrumental. A abordagem da realidade é feita por Croce de modo harmônico, com os distintos se ordenando circularmente de modo rítmico, diferente da dialética de Hegel, que sublinha o momento de luta e de contraste entre os ele­ mentos que dão estrutura à realidade. Croce considerou que o erro de Hegel con­ sistia na ilegítima extensão da oposição entre distintos, e denominou de ingenuidade historiográfica a elevação dos problemas de empenho mundano ao plano da eternidade metafísica. A história possui uma simplicidade que valoriza a particularidade e está impregnada da consciência de uma comunidade perma­ nentemente humana: excluídas estão as atitudes geniais e as superstições bramânicas. A arte também não é produto de um gênio individual que repousa no espírito de um ser humano . O conhecimento intuitivo ou arte é próprio de cada ser humano comum, e o artista deste se distingue apenas por conseguir conhecer e exprimir certas coisas simples com nitidez, vivacidade e complexi­ dade maiores. Daí a possibilidade de qualquer um compreender a arte, com­ preensão esta subjacente ao seu próprio gosto, que há de ser substancialmente idêntico ao gosto de quem a criou. O cunho universal da arte, explicado pela capacidade de um observador reproduzir internamente em si mesmo o ato cria­ tivo que produziu a obra observada, deriva da proposição de Vico, segundo a qual se conhece somente o que se experimenta. De Sanctis, resgatado sob protestos por Croce, tem o mérito de haver destacado como problema maior da estética, a cognição poética.(8) Ambos, partindo de Vico, colocaram o sentimento estético na instância da contemplação, uma espécie de Anima Mundi, e acreditaram que a arte pertenceria a um patamar supra da factualidade, desvinculando-a de finalidades objetivas de cunho práti­ co; e admitiram que a experiência estética se dá quando o indivíduo, destituído de sua categoria de ente para a mundaneidade, é, num intervalo de tempo, sujeito eterno da consciência. De Sanctis e Croce foram considerados depreciativamente metafísi­ cos por seus antagonistas, devido ao método especulativo que guiava suas inves­ tigações e por suas reconstruções inadequadas ao clima cientificista e positivista. Mas ambos não pretendiam metafísica alguma, posto que as realidades das quais tratavam situam-se ao alcance dos sentidos e, embora tenham alto grau de ge­ GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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neralidade, comportam materialidade e remetem de modo imediato à forma. Para eles a consciência humana não tem fundamentos transcendentais e o estu­ do da mente não procede, se apartado da experiência e dos fatos da psique das leis de seu desenvolvimento e história. Nos seus escritos a crise do hegelianismo encontra-se manifesta nas expressões de reconhecimento da derrocada do otimismo romântico, o qual garantia em nome da razão, do absoluto, da idéia, ou da humanidade, o sentido da história, fundando valores estáveis que asseguravam um progresso seguro e constante. Reafirmam a não identificação da realidade com a racionalidade, em um momento existencial que pressupõe a Vontade schopenhaueriana, e que fomenta as noções de inconsciente de Freud, ambas vertentes de caráter ine­ xorável. Aquela prevalência do conteúdo sobre a forma, que implicava em uma valorização do que concerne ao eminentemente humano, ou seja, os conteúdos espirituais e sensíveis, que no romantismo reiteravam a tipologia clássica, entra em conflito com o contexto telúrico que se instaura nas ciências naturais após Darwin. Um exemplo deste estado de ânimo está no comentário de Croce, segundo o qual a alma solicita à história a nobre visão das lutas humanas e, ao invés disto, recebe a imagem de fantásticas origens animalescas e mecânicas da humanidade, e com ela o sentimento de desconforto e de depressão e quase de vergonha, quando nos reconhecemos descendentes daqueles antepassados e substancialmente semelhantes a eles e, apesar das ilusões e da hipocrisia da civilização, tão brutais como elesS9) Assim, as idéias de realidade como espírito, possíveis em Hegel, uma vez que inserido no contexto romântico, tornam-se passíveis de revisão em uma tentativa de reposicionamento do ser humano em relação ao abstrato e ao concreto.

O fenômeno estético A estética de Croce resgata a atividade do sujeito no âmbito do fenô­ meno estético, e foi útil no com bate às estéticas psicológicas que, sob influência da lei de Fechner, se baseavam na receptividade dos processos estéticos, pois ela é caracteristicamente ativista, contrapondo-se à passividade daquelas. Enquanto os estudos de Fechner (1()) se relacionam aos fenômenos de reprodução a partir da assimilação de percepções adquiridas, as estéticas da intuição referem-se a fenômenos reativos. Na tentativa de deslocar o fenômeno estético da receptividade perptiva para uma atividade necessária e subjetiva, estetas contemporâneos a e, acusados de resgatar o idealismo, falavam da necessidade intuitiva na arte, o simbolismo evocativo do fato estético, explicando que, para se viver intema686

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mente um objeto, é necessário ocorrer uma intuição que o apreenda na sua natureza. A originalidade de Croce está em sua afirmação de que a arte é só intu­ ição e de que cada intuição pode ser arte. dD Segundo a doutrina de Vico e de Croce, a concomitância de imagem e sentimento na experiência estética é concebida como uma relação entre cognoscente e conhecido, como se na imagem atuasse a emersão do sentimento que, de outra maneira, permaneceria oculto no fundo da personalidade. Isto se assemelha a uma gnoseologia da intuição, constituída de representações sen­ síveis e não de conceitos, que vem a ser ao mesmo tempo uma ativa elaboração do objeto ele mesmo e uma elevação dele desde a obscuridade até a primeira luz da consciência e da verdade. Croce resolve as contradições intrínsecas ao estopim-intuição, ao excluir os elementos-chave da estética do âmbito da causalidade, estabelecendoos como apriorísticos: o sentimento, a intuição, a expressão e a imagem são o complexo inaugural de inseparável unidade.

O conceito de arte: intuição Croce tem a convicção de que o ser humano tem um tipo de com­ preensão, ou pré-compreensão, das verdades fundamentais. A filosofia desem­ penharia o papel de trazer ao nível da clareza crítica, as compreensões vagas, e a arte, sendo intuição ou visão, processada no estado de contemplação, trans­ portaria a mente à esfera atemporal e alógica. Assim, o artista produz uma imagem ou fantasia e o observador que gosta de arte, dirige o olhar ao lugar que o artista assi­ nalou, e vê pela janela que este abriu, e produz a imagem deiítro de si mesmo(12). Intuição quer dizer precisamente indistinção entre realidade e irrealidade, a imagem em seu valor de simples imagem, a pura idealidade da imagem. d3) A intuição é explicitamente independente da intelecção. É uma objetivação de impressões. O que dá coerência à intuição é o sentimento que percorre toda obra de arte. A poesia é a contemplação do sentimento, ou intuição lírica, ou in­ tuição pura, enquanto é isenta de qualquer referência histórica ou crítica à realidade ou irrealidade das imagens das quais se entrelaça. (14) A arte é conhecimento intuitivo autônomo, que prescinde de padrões, alógico e inaugural, anterior à construção do pensamento e precedente ao conhecimento lógico e, como categoria do espírito especificamente inerente ao conhecimento do individual, é irredutível, a princípio, a outra categoria qual­ quer. E como esse conhecimento intuitivo é da ordem teórica, não pode ser iden­ tificado com aspectos da ordem prática, como sensações e volições que precedem um ato material com finalidade. A arte é fantasia que não persegue idéias ou verdades, GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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e não é jo g o de imaginação que passa de imagem em imagem (15) e que une o sensível e o inteligível em direção à construção de uma frase ou conceito que se queria demonstrar, pois aí reside a pressuposição de um conhecimento da verdade, o que já é um juízo estabelecido a partir do discernimento crítico e tendenciosa­ mente volitivo. A arte se constitui de gestos, palavras ou imagens que trans­ portam a intuição lírica e seu objetivo é exclusivamente este. Embora a percepção possa ser apreensão intuitiva, a intuição artís­ tica não é percepção. Percepção é este ato de apreensão de fatos ou eventos reais, é uma ordenação no sentido da cognição conceituai de caráter universal. Assim, a percepção, quando inaugural, é intuição pura, relativa ao sentimento estético, e em um segundo m om ento já poderá ter se tom ado intelecção. Quando inter­ rompido o estado contem plativo, a percepção deixa de ser a vaga intuitiva e passa a ser concernente à lógica, ao concatenar seus perceptos no sentido de dis­ cernir entre realidade e irrealidade.

Expressão Uma outra proposição cardeal da estética de Croce é que cada in­ tuição estética é também expressão: A atividade intuitiva tanto intui, como exprime. A expressão dá forma teórica ao sentimento c o converte em palavra, gesto ou figura. (16> Expressão é quando o sentim ento experimentado passa a ser sentimento con­ templado. Intuição é expressão, pois é a forma que adquire o sentimento lírico ao tomar-se representação. Esta representação pressupõe um sentimento cósmico e oferece uma universalidade concebida e constituída por associação de conceitos. A expressão não é comunicação, pois esta concerne à fixação da intuição-expressão em um objeto material. A arte não é uma virtude (habitus) prática, que tem por finalidade a obra a realizar, pois a arte reside na represen­ tação contemplativa, que vem a se associar posteriormente à capacidade comu­ nicativa, que é uma capacidade técnica. A obra seria apenas um objeto no qual repousa a arte, mas não é a finalidade desta, pois a arte não tem o sentido de finalidade. A obra é um produto da técnica e a técnica é, em geral, uma cognição endereçada ao uso da atividade pratica, a qual forja objc tos e instrumentos que fixam a intuição e viabilizam a sua com unicação e embrança, ou seja, a tradução que permite tomar o fato estético relativam ente iradouro. A diferença entre fato estético e fato artístico é que o primeiro é o estágio terno, o segundo e o estágio externo e prático, que poderá seguir o primeiro ■^ imDn«scívoi -i 688

nC*° 1 *ntuiÇão-expressão um fato estético totalmente interno, e ser subm etido à seleção e à escolha, estão solucionadas as questões g á v e a . 15 (1 5 ), jUih o 1997


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referentes à independência e à sinceridade na arte. O que um ser humano vê e expressa não é necessariamente relacionável em um nexo lógico e conseqüente que desemboca na vontade. Para Croce, a arte reside no inefável que está por trás da metáfora, é o invisível que pode tomar-se manifesto no mundo das aparências, através da linguagem, d8) "Os objetos artísticos são assim denominados no sentido metafórico, posto que não são mais do que fatos físicos onde as expressões artísticas estão confinadas com a finalidade de reprodução. E a arte não pode ser fenômeno físico, pois os fatos físicos não tem realidade, são irreais. Afirmativa esta, paradoxal para o senso comum, mas não para a ciência, que, se não for exclusivamente naturalista, reconhece que os fenômenos físicos são concebidos como produtos que escapam à experiência, remon­ tando ao átomo e ao éter, e como manifestação de um incognoscível: a mesma matéria dos materialistas é um princípio supra material. Existe uma confusão entre os termos expressão e exteriorização física da expressão", d9) Pertence também ao senso comum tratar as palavras expressão, linguagem e comu­ nicação, como se fossem sinônimos. Isto se deve à dificuldade habitual em dis­ cernir com clareza o significado dos termos, e ao problema concernente à classifi­ cação empírica e naturalista que implantou um dualismo estanque entre fato interno e externo, alma e corpo, imaginação e expressão, como se os fatos internos não fossem ao mesmo tempo externos e os externos pudessem ser sem interioridade.(20)

Expressão e Linguagem No que concerne à inserção da linguagem na economia geral do pensamento, seria ilusório acreditar que haveria uma linguagem, por assim dizer, normal e paradigmática. A linguagem é, vez ou outra, absolutamente indi­ vidual e irrepetível, e quanto mais individual ela for, tão maior será seu alcance no âmbito da universalidade. Croce retoma a proposição de Vico, que prioriza a linguagem poéti­ ca em relação à linguagem oratória, (21) ou seja, a prioridade da linguagem nascente no ânimo, como pura expressão-intuição do sentimento, justificada em si mesma, em relação à linguagem-signo, instrumento da eloqüência prática que se fundamenta na necessidade de comunicação. A linguagem é a estrutura linguística particular, que dá forma ao conhecimento do individual, pertence a uma esfera complexa da atividade intercomunicativa e é diferente da fala, que é a emissão de elementos previamente codificados e se refere às articulações através de um sistema convencional de

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símbolos. Sobre a índole ativa da linguagem pode-se dizer que é uma criação espiritual em sua origem e que não sofre acréscimos por associação. As expressões já produzidas devem tornar-se impressões, para dar lugar a novas expressões. Ao produzir novas palavras ou imagens, transformamos as antigas, variando e ampliando seu significado em um processo criador que utiliza as impressões, não do hipotético homem primitivo, mas do ser humano que vive em sociedade desde séculos e acolheu e conserva muitas coisas em seu organis­ mo físico e, entre elas, muita linguagem.

O caráter de unicidade e cosmicidade da arte A expressão é um todo indivisível, como um organismo expressivo de sentido com pleto.(22) A expressão artística poderia ser comparada a um con­ ceito ou termo que não se referisse a um evidente eidos do intuível, cuja capaci­ dade referencial comum não instituísse um significado indiscutível, ou seja, o remetimento semântico a um objeto. Neste caso, a semanticidade pertenceria à esfera da experiência pessoal do sujeito que fenomeniza a metáfora, e não pode ser transformada em uma experiência pessoal e análoga do observador com a mesma facilidade com que se explicaria a ele conceitos produzidos na instância intelectiva , própria do distinto lógico, referente ao conhecimento do universal. Heráclito disse, que durante a vigília os seres humanos compartilham um mundo, e que no sono cada qual tem seu mundo próprio. ^ Croce, no entanto, entende que cada consciência tem um mundo próprio também na vigília, que é a intuição direta do que habitualm ente se denomina realidade externa sensível. Mas a vida mesma prova que há coincidência destes mundos em um único mundo comum. O curso da ação humana, com todo o seu conteúdo de imagens assemânticas e seus pressupostos e programas, determina pontos de partida comuns para a ação de uns e outros, e determina percursos semelhantes de mun­ dana cotidianeidade. Estas com plexas experiências de vida, que produzem os significados e que viabilizam o senso comum no que tange ao pensamento intelectivo, viabilizam também uma comum instância da contemplação, onde os seres humanos, sub especie intuitionis compartilham uma intuição poética. Na comunicação de conceitos lógicos estabelecidos, há uma clara impossibilidade de firmar um ponto de compartilhamento, uma vez que subsiste o hiato entre a periência de vida direta dos interlocutores e a compreensão dos conceitos em si, e assim o processo hermenêutico jamais se finaliza. ^'roce re^era a assemanticidade da arte, com o intuito de deixar que ela não é um objeto que remete o observador ao senso comum, do qual P 690

o o artista. Seria uma abordagem simplista, ver a arte como uma g á v e a . 15 (15), ju lh o 1997


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heráldica popular. Assim como destituir a arte de todo o seu potencial de reme­ timento subjetivo, considerando-a como visibilidade, tactilidade ou audibilidade puras , implicaria em que houvesse artes, e para Croce a arte é uma só, e expres­ sa totalidade no infinitamente variado. Uma suposta diversidade das artes não seria intrínseca, seria apenas a diversidade das formas destinadas a exteriorizar a expressão artística.(24) Submeter a uma elaboração lógica o que antes só se apresentava esteticamente é destruir o estético pelo lógico. É necessário distinguir a expe­ riência estética da experiência semântica, para que não se proceda a uma identi­ ficação da estética da intuição com a linguística da expressão, constrangendo esta última a uma gnoseologia impossível. Existiria então uma impossibilidade crítica fundamental em relação à arte, não fosse pelos equívocos da lógica, que destruiria o fenômeno estético ao torná-lo conceituai, seria porque uma crítica não se faria necessária, uma vez que não poderia haver crítica isenta e imparcial, pois qualquer crítica estaria imbuída de um procedimento ético: o de comunicar certas idéias sobre arte a quem tivesse demonstrado não saber distinguir poesia de não-poesia. E como disse Croce, nenhuma filosofia e nenhuma crítica de arte pode fornecer um aparelho auricular a quem não o possu i.(25) A comunicação artística é intersubjetiva, se dá em uma instância poética, com caráter de totalidade e cosmicidade. O sentimento que o artista expressa é o sentimento das coisas, lacrimae rerum, cada representação artística é ela mesma e é o universo. Quando a representação se afirma no particular, no abstrato individual, no finito em sua limitação, ela ou não é artística, ou não alcançou a consecução artística. Na ânsia de efetuar o trânsito do sentimento imediato à sua mediação ou resolução na arte, ou do estado passional ao estado contemplativo, ou no desejo prático da descoberta do conhecimento estético, o indivíduo se coloca no final do processo, sem ter percorrido o caminho. Artistas que se valem da arte não só para contemplação e alivio de suas paixões, mas como paixão mesma e como desafogo dela, deixam penetrar na representação que elaboram, os gritos e latidos da sua leviandade, dando à arte, com esta contaminação, aspecto particular e fini­ to. A finitude não é predicado do sentimento puro - individual e particular, por sua vez, como todo ato do real - nem da intuição - individual e universal - mas de um sentimen­ to contaminado pela volição, coisa da instância prática. ^ Croce crê nesta instância de intersubjetividade em cujas profun­ dezas habita o sentimento autêntico, passível de ser compartilhado por seres humanos que o contemplem com liberdade total do espírito, ou seja, em uma pausa total da ação, como momento da vida espiritual no qual se abandona o tumulto do agir pela serenidade do conhecer. GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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A estética como ciência da expressão A distinção entre criação artística e gosto estético não se reduz à proposição de que uma coisa é o fazer do artista, outra é o perceber do obser­ vador ou crítico, posto que a suspensão de ânimo no estado de contemplação é a mesma. A questão é como se efetua a condução espontânea a este estado: a sus­ pensão estética se encontra objetivada na imagem, e sobre esta imagem operou o artista. Resolve-se a controvérsia gnoseológica que paira sobre a existência de um sentimento sem imagem, de uma imagem sem sentimento, ou sobre como um sentimento sem imagem poderia vir de súbito e objetivar-se em um senti­ mento com imagem. O artista opera sobre o eidos do pathos , transformando-o; e o seu poiein, o seu operar, não muda por inteiro a face do mundo, mas sempre move qualquer coisa, conservando uma outra parte, o que não é uma criação ex nihilo. O artista parte de um sentimento-imagem inicial que impulsionou seu espírito, e o modifica dando-lhe ritmo tal, que a mesma experiência estética ocor­ ra a partir da contemplação do fato estético plasmado. Os seres humanos são um caráter e um pensamento que constituem sua maneira de sentir e pensar e de se reconstituir a todo momento diante de novas situações dadas pela alteridade. Assim, o pathos está ligado a uma estru­ tura de funcionamento interno, e o eidos ao processo de apreensão e interiorização de si e do mundo. Ao pathos se contrapõe sempre novamente um eidos, o que a princípio deflagra um conflito, uma dissonância cognitiva que pulsa até que aconteça o equilíbrio: uma interiorizaçào que acomoda o eidos novo a um novo pathos. O constante ressurgir do conflito provoca no poeta o sentimento de inexorabilidade, da fatal não consecução da placidez de ânimo, que precisa vez ou outra ser mitigada pela elaboração poética, que é a busca do equilíbrio lírico. sentimento de perfeição que a arte sugere procede do fato de que na intuição p a não ocorre a representação de um patético unilateral , o que seria uma mimesis emotiva, um pathos sem a contraposição a um eidos. A suspensão conP hVa °^orre através da solução do conflito e de um sentimento momentâ^ 7 _ a ^ue Passageir° , se assemelha à verdade, posto que é a intuição de 6 na COnClUSâ° de CrOCe na Te0ria dOS

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Giacomo Baila, Sincero e Falso, óleo sobre m adeira, 65 x 240 cm (destruído)

épocas artísticas que permanecem obscuras, isto significa que nos faltam atual­ mente condições de revivê-las interiormente e de entendê-las, assim como nos faltam condições de entender idéias, costumes e ações de tantos povos e épocas. A humanidade recorda algumas coisas e esquece muitas outras, e renova em si as lembranças quando o curso do seu desenvolvimento espiritual as traz nova­ mente à baila, apresentando-as como necessárias.(27^ A m ar ou procurar as expressões poéticas como coisas ou como pessoas ( o que é o mesmo ), quer dizer procurar as imagens fora do seu nexo próprio, destacadas e abstratas. E adm irá-las, acariciá-las e fechá-las em sons articulados, cuidando que cada qual seja perfeita, é um virtuosismo daqueles que professam a "arte pela arte", cujas pági­ nas perfeitas em cada particularidade, tornam-se capazes de levar à impaciência e ao fas­ tio um espírito poético, este mesmo que está sempre pronto a lançar longe tudo, em troca do exprimir-se com espontaneidade, eximindo cada palavra do peso de um ressalto exce­ 693 GÁVEA. 15 (15), julho 1997


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ssivo que lhe conferisse um caráter legitimado de imagem ou de palavra, e querendo que fluam e voem. Em meio a tantos ressaltos e ornatos, falta à imagem a vida poética que lhe daria a medida e a proporção que lhe são próprias, e o que está em seu lugar são imagens singulares, como ídolos, que o artista adora. Estas imagens, trabalhadas e desfrutadas como coisas que se deseja, e os sons articulados que as exprimem, são antes virtuosismos de uma estilística da beleza, cuja matéria chega a ter aparência de um "spunto" poético, mas permanece como um cabide no qual se pendura esplêndidos vestidos e preciosas peliças. O refinamento estilístico é um artifício que surge de uma mistura de sen­ timento de reprovação e de atrativo pela intensidade da poesia pura, e produz um objeto coberto por excesso de vitalidade que excita todos os sentidos de uma só vez. Na estética de Croce está constantemente patente a impossibilidade da arte não ser autônoma. Para ele, uma teoria desenvolvida em tomo de uma arte que se produza através de redemoinhos retóricos é uma teoria de quem duvida da existência da arte, posto que, tratar com o se fosse arte aquilo que não é realmente arte, é declarar-se inconsciente em relação à arte mesma. ^ Existe também o constante tormento que reside na poesia pura, da inadequação da expressão ao sentir, o qual perm anece sempre inexprimível no seu ser real e, por causa disto, na expressão parece não ser verdadeiro. A poesia, que tudo exprime, expressou muitas vezes o tormento do inexprimível. É claro que a poesia é a superação do sentimento e a elevação deste à esfera da teorese, e um sentimento só pode ser sentido ou vivenciado, e expressá-lo é resguardar seu real sofrer e mantê-lo na sua inefabilidade, ainda que isto seja um tormento diante desta suposta traição por parte da linguagem. A filosofia da arte, ou estética, vive imersa em seu tempo, à mercê das vicissitudes históricas e de acordo com estas desenvolve seu percurso. E embora a produção artística pareça ter adquirido uma fisionomia geral de con­ fissão, ao acusar em abundância temas pessoais, particulares, práticos, autobi­ ográficos, os quais Croce cham a de desabafo, o que é diferente de expressão, este caráter confessional não se legitima pelo fato de que a sociedade moderna esteja mais aten­ ta às lutas diárias dos negócios e da política. Predomina uma abordagem afetiva e prátia poética em geral, em um frenesi de sinceridade que, por ser frenesi, não é sinceri­ dade, mas é ficção de falsas aparências. (30) Cada poeta im agina com o pressuposto das palavras do seu povo, conhecimento de certas disposições do seu ambiente, assim como o e^qui eto imagina com os pressupostos das pedras do terreno, do espaço, e das u m su P° 694

6 V^ a ^ es*es m otivos práticos que operam no ânimo do artista são para a obra, m as o momento essencial e dominante no qual o artista g á v e a . 15 (15), ju lh o 199 7


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conseguiu uma visão ou imagem próprias, imprescindível para a transformação de um trabalho prático em trabalho artístico, é a síntese artística, que transforma o trabalho prático em trabalho artístico e que faz com que um observador, diante de uma obra, reviva a emoção original, sem a qual a obra se torna um mero rela­ to, descrição literal. (31) Croce é um idealista, pois acredita que o espírito tenha a qualidade de absoluto. No que diz respeito à arte, no entanto, ele não a considera como a auto-revelação de um espírito abstrato - a idéia, o absoluto. A arte pode existir antes que exista a idéia e pode até prescindir da manifestação ou da aparência sensível. Isto porque para Croce, a arte se identifica com a intuição poética e reside no distinto estético intuitivo, que se refere ao conhecimento do individual. Uma vez submetida à razão, a arte se transformaria em idéia, passando a per­ tencer ao distinto teórico, relativo à intelecção. Quando a arte, através da ação humana, se transforma em objeto, torna-se um fato artístico e, como ta l, passa a a pertencer ao aspecto prático do espírito, assemelhando-se ao fato histórico. Nos seus ensaios críticos, Croce procura verificar se este ou aquele fato artístico remete a um sentimento estético, autêntico e inaugural, caracterís­ tica imprescindível à arte, ou se é a realização de uma idéia com a intenção de provocar este ou aquele efeito. A estética de Croce, de caráter antropológico, não oferece a possi­ bilidade da arte ser um ato de escolha do juízo para alcançar determinado fim, tampouco a de ser um ato de reflexão do espírito. A arte é uma experiência humana de conhecimento crítico, porque é um a priori que deflagra o devir do espírito. Croce procura tornar evidente a substância empírica da arte e da poéti­ ca, através de um discurso filosófico no qual, discorrendo sobre a essência da arte, reverte os conceitos periféricos constantemente para a proposição primeira, que é a constatação de que o fato estético está localizado na instância da intuição. O ponto central da estética croceana é o estabelecimento da arte, da poesia e da expressão em um topos ideal denominado intuição pura. Intuição, expressão e sentimento são definitivamente invisíveis e impalpáveis e passíveis de se tomarem manifestos através da ação de comunicação, a qual tem que ser autêntica e não retórica. Em um momento cultural impregnado de visualidade e de exterioridade, os textos estéticos de Croce constituem uma sombra incômoda de algo difícil de alcançar e mais difícil ainda de refutar.

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Notas (1 ) Benedetto Croce, filósofo e crítico, nasceu em Pescasseroli, Áquila, em 25 de fevereiro de 1866 e morreu em Nápoles, em 1952. Foi educado por Jesuítas, estu­ dou Direito, dedicou-se à pesquisa histórica e à filosofia. Senador a partir de 1910, defendeu a neutralidade italiana em 1914-15, foi Ministro de Estado(19201921) e um fervoroso anti-fascista. Fundou com Giovanni Gentile a revista Critica (1903-1945) e foi editor dos Quaderni delia Critica a partir de 1945.0 pen­ samento de Croce exerceu profunda influência sobre a cultura italiana e européia. Na sua obra estão estabelecidos os subsídios para a Estética e a Historiografia contemporâneas. ( 2 ) De Sanctis (1817-1883), vizinho e amigo da família de Croce, famoso principal­ mente por sua Storia delia letteratura italiana (1870-72), escreveu inúmeros tra­ balhos sobre crítica literária e artística, filosofia da história e psicologia. ( 3 ) Ver B. Croce, Primi Saggi, Laterza, Bari, 1927, p. 36. Sobre o desenvolvimento deste conceito croceano, ver também B. Croce, Lógica come scienza dei conceito puro, Laterza, Bari, 1947, pp 210-211. Cumpre lembrar que a Estética de Croce é uma sistematização acerca da natureza do fenômeno estético, enquanto repre­ sentação mental. O objeto artístico é, para ele, um fato, produto da ação, semel­ hante ao fato histórico e, como tal, assunto da Filosofia delia Pratica e da La Storia come pensiero e come azione. ( 4 ) Croce, B., Theorie und Geschichte der Historiographie, Mohr Vlg., Tübingen, 1915. p.6-32; 46-125. Editado pela primeira vez em alemão, Teoria e storia delia storiografia, é o quarto volume da obra fundamental de Croce, a Filosofia dello Spirito, composta também pela Estética, pela Lógica come scienza dei concetto puro e pela Filosofia delia pratica. A colocação do objeto artístico e da historiografia como pro­ dutos da representação acompanha toda a obra de Croce. Attisani, em Omaggio a Croce, diz que quem conhece o complexo monumental da obra de Croce sabe que não hd livro ou ensaio de Croce que não seja ao mesmo tempo obra de história, de teoria historiogrdfica e de história da historiografia. ( 5 ) Giambattista Vico (1668-1744), opunha à ciência recente a antiga sabedoria dos povos itálicos. Afirmou que os primórdios de toda civilização são marcados pela preeminência da imaginação sensível sobre as experiências racionais. Para ele a arte é conhecimento intuitivo, obra da fantasia, e constitui o ato livre e espontâneo pelo qual o ser humano contempla ingenuamente as coisas singu­ lares, prescindindo dos conceitos de real e fantástico que lhe adviriam da filosofia, e sem finalidade externa. Donde o caráter pré-lógico, a inocência e a autonomia da arte. ( 6 ) A Teoria dos Distintos está delineada no tratado sobre o conhecimento conceitu­ ai, ou conhecimento do universal (atividade lógica, ou filosofia), intitulado Lógica come Scienza dei concetto puro. ( 7 ) Croce, B., Nuovi Saggi, Bari, Ed. Laterza, 1948. ( 8 ) 0 termo cognição significa a aquisição de um conhecimento tomado consciente através da sua interiorização como realidade dotada de sentido, é usual em psi­ cologia cognitiva e social, sociologia do conhecimento e áreas afins. Cognição poética significa a consciência de que a poesia é uma forma de conhecimento rel­ ativa à realidade e dotada de sentido próprio. rui! ^aJnvi'as Croce citadas por Reale e Antiseri, no trecho referente a Darwin. ei e Fechner é a interpretação matemática, com base logarítmica, dos sis­ temas sensoriais, generalizando-os em termos psicofísicos (Elemenle der Psychophysik, 1860). (

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) Intuição para Croce, é a imaginação criadora. A imaginação é a formação ou sinízaçao mental de objetos ou idéias em imagens ou configurações diferentes de

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todas as que estão abrangidas pela experiência e pelo conhecimento prévio. Há duas espécies de construções imaginativas: as criadoras, quando iniciadas e organizadas pela pessoa que imagina, e as imitativas, quando exploram uma construção iniciada e organizada por outrém. Croce, B., Breviário de estética, Madri, Ed. Mundo Latino, 1923. p. 23. Croce, B., Breviário de estética, Madri, Ed. Mundo Latino, 1923. p. 33. Croce, B., Aesthetica irt Nuce, Bari, Ed. Laterza, 1969. p. 7. Croce, B., Aesthetica in Nuce, Bari, Ed. Laterza, 1969. p. 12. Croce, B., Filosofia dello Spirito - Estética come Scienza deli Espressione e Linguística Generale, Bari, Ed. Laterza, 1902. p.92. Croce, B., Estética, Bari, Ed. Laterza, 1908. p.137. A Estética de Croce teve inúmeras reedições e traduções, a cada vez Croce desenvolvia o seu conteúdo teórico em direção a uma sistematização filosófica mais rigorosa. Arendt, H., A Vida do Espírito, Rio de Janeiro, Ed.Relume Dumará, 1991. pp. 8595. O trecho referido não trata específicamente da arte, mas da metáfora e do inefável. A idéia é, no entanto, muito semelhante ao que diz Croce em La lotta cort Vineffabile in La Poesia, postille, p.262. Croce, B., Breviário de Estética, Madri, Ed. Mundo Latino, 1923. pp. 24-25. Croce, B., Aesthetica in Nuce, Bari, Ed. Laterza, 1969. p. 28. Vico, em De Antiquíssima Italorum Sapientia (ca.1710), tece indagações etimológ­ icas e pesquisa temas semânticos interpretando-os como documentos de ati­ tudes espirituais do passado. Croce, B., Estética, Bari, Laterza, 1908.pp. 230-232. Heráclito, Fragmentos, DK 21 B 98. Croce, B., Aesthetica in Nuce, Bari, Ed. Laterza, 1969. p. 36. Em Indagini su Hegel e Schiaramenti filosofici, no capítulo sobre poesia e não poesia, p. 258, Croce reafirma a incompetência de um discurso explicativo para definir a poesia: Procura-se vez ou outra um sinal, através do qual reconhecê-la com segu­ rança; mas como este sinal não pode ser alguma coisa externa e diferente da poesia mesma, a sua definição será um termo utilizado pelo filósofo para definí-la. Mas esta definição mesma pressupõe a espontaneidade do reconhecimento fundamental, que é experimentado no alto prazer do gosto. A quem não sabe, por esta via direta, o que é poe­ sia, as definições não serão de nenhuma ajuda. Croce, B., Breviário de Estética, Madri, Ed. Mundo Latino, 1923. pp. 191-221 e pp. 204-205. Croce,B„ Aesthetica in Nuce, Bari, Ed.Laterza, 1969. pp.53-55. Croce,B., La Poesia, Bari, Ed. Laterza,1963.p.51-54. Croce,B., La poesia, Bari, Ed. Laterza, 1963.p.250-256. Croce,B.,Quadcrni delia crítica, Bari, Ed. Laterza,1949.12 p.104. Croce,B.,Quaderni delia crítica, Bari, Ed. Laterza,1949.12 p.104.

Este texto é parte da monografia apresentada como trabalho de conclusão do Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC-RJ. Agradecimentos: Prof. José Thomaz Brum, pela orientação e apoio; Prof*. Margareth da Silva Pereira, pelo incentivo. GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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E ntrevista com Robert Ryman Entrevista concedida a Urs Raussmüiler, rea­ lizada no estúdio Robert Ryman em Nova York, em 04 de abril de 1992, em que são abordadas questões da pintura, em geral, e do trabalho de Ryman, em particular, bem como estabelecidas relações com os trabalhos de Matisse, Mondrian e Barnett Newman. R obert Ryman P intura A rte Contem porânea

DOSSIÊ RYMAN Introdução

Na edição do número 4 da Revista Gávea sugeri ao seu Conselho Editorial a publicação de um dossiê sobre a obra de Barnett Newman. Para este número, proponho um segundo dossiê abordando o trabalho de Robert Ryman. Existe uma grande especulação sobre o fim da pintura. Minha convicção é que, devido à sua grande tradição, ela ganha importância na medida em que se tornou um suporte ultra reativo aos improvisos e às manobras do mercado. Newman situa exemplarmente esta capacidade de renovação da pintura e da sua positividade na ampliação dos limites da investigação plástica (lembrar, por exemplo, a importância de sua obra para a Land Art e Minimal). Ryman evidência a continuidade da potência da pintura através da minuciosa indagação dos meios constituintes da sua lin­ guagem. Dois caminhos que abrem propostas instigantes para o novo milênio. Carlos Zilio, abril de 1997 URS RAUSSMÜLLER Tradução Ricardo Quintana

UR

Bob, acabo de reler seu texto sobre pintura que publicamos conjun­ tamente com suas exposições em Schaffhausen e Paris (1). Ele contém infor­ mações verdadeiramente fundamentais e muito precisas. Você demonstra clara­ mente que como pintor tem três abordagens diferentes. Uma delas é representar alguma coisa por meio da pintura. A segunda é também representar uma coisa, mas fazendo isto em níveis de abstração, enquanto ainda conta uma história ou pStüdio de Robert Ryman em Nova York °to: Jon and Anne Abbott GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Entrevista com Robert Ryman

expressa algo. E então existe a terceira forma, que você escolheu e chama de rea­ lismo, onde não deseja mais representar algo, mas criar a coisa em si, a pintura como objeto. Conseqüentemente, você nos mostra tudo que pertence a uma pin­ tura. Mostra os diferentes materiais com os quais está trabalhando, o que acon­ tece com a pintura sob a luz, como ela age no espaço e assim por diante. Neste instante estou olhando suas novas pinturas, as Versões, pela quarta vez. Elas são obviamente diferentes de sua última série de trabalhos entre 1989 e 1990, que foram expostas na Pace Gallery <2). Acho que a diferença mais essencial entre estas e as pinturas anteriores é a abertura extrema na forma como as Versões foram pintadas, e também no modo como agem no plano da parede. O material de suporte que você usa é extremamente fino e evita qualquer coisa que pudesse funcionar como moldura. A pintura não fica mais na frente da parede e cria uma sombra, como algumas de 1989 e 1990 o fazem, mas se encontra tão rente à parede que não há quase nada entre ela e a pintura. A fibra de vidro que você usa agora é muito fina - quase um milímetro. O efeito disto é que a pintura propria­ mente quase que se encaixa diretamente na parede. Acho que isto é importante para o caráter destes quadros. Os traços grossos de tinta sobre a fibra de vidro fina combinam-se com as áreas não pintadas no meio para criar uma abertura completa, que também abre as margens do suporte. O uso adicional de papel encerado, que estende as pinturas pelas margens superiores enfatiza seu aspec­ to plano, enquanto cria um outro nível que intensifica seu impacto espacial. Ao falar sobre abertura, não existe apenas o artista, mas também sua vida, seu pensamento e foco. Olhando estas pinturas e pensando no caminho que esco­ lheu, parece que agora você obteve bastante liberdade. Pode fazer as coisas muito abertamente, você tem controle, pode se soltar, obter realmente o resulta­ do que quer ou que deixa acontecer. E o resultado afeta aqueles que param na frente dele. Cria emoções e isto gera uma sensação trem enda de liberdade, onde tudo está aberto e qualquer coisa é possível. Acho que para obter esta liberdade, você tem de adquirir conhecimentos. Mas precisa também estar de posse de energia física, capacidade e sensibilidade. Então pode ocorrer o momento quando você consegue estar em foco. Neste exato momento, a concentração de todos os seus poderes dispara alguma coisa no que você está fazendo. Acho que este é um estado de ser muito importante. RR Para mim, o que é muito importante na pintura é não pensar enquanto pinta. Você pode pensar antes de pintar, depois de ter pintado, mas enquanto está pintando, pensar e a pior coisa que se pode fazer. É como alguém datilografando, cujos dedos estão se movendo pelas teclas automaticamente, 700

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sem pensar sobre as letras da máquina. Ele ou ela sabe exatamente o que fazer, e provavelmente não conseguiria dizer como está fazendo aquilo. Isso acontece por causa do conhecimento que tem da máquina de escrever. Da mesma forma que quem datilografa não fica pensando sobre a máquina de escrever, o pintor não fica pensando sobre pintura ou arte, ou com o que poderia ser feito com o quadro. O artista apenas faz aquilo. Acho que isto só pode acontecer, natural­ mente, quando você compreende os seus materiais e não tem de pensar sobre aspectos técnicos. Assim como quem datilografa tem controle sobre a máquina, o pintor tem controle sobre os pincéis, as tintas e a maneira como esses aspectos técnicos funcionam. É claro que se você ainda tem de brigar com os aspectos téc­ nicos, não consegue ficar livre para deixar a pintura surgir. UR (...) deixar a pintura surgir levanta uma questão básica tremenda: o que é a pintura? Como dizemos, não é uma representação, abstração ou qualquer outro aspecto ideológico. Através da história sabemos como as pinturas são feitas, que materiais podem ser usados, mas a questão maior e mais importante continua: o que é a pintura? RR Isso é sempre muito interessante - simples de certa forma, mas tam­ bém nem tão simples. Acho que a coisa mais difícil de se fazer é explicar a alguém porque uma pintura é boa, ou porque uma outra não é tão boa. Isto é mais verdadeiro se a técnica for perfeita. Por exemplo, se for a pintura de uma figura e alguém a fez em perfeitas proporções, e ela puder ser vista como figura, isto não significaria necessariamente que fosse uma boa pintura. Mas explicar a alguém por que poderia não ser uma boa pintura é extremamente difícil. Eles poderiam muito bem dizer, é uma figura perfeita, o pintor a fez muito bem. É possível, naturalmente, que seja uma boa pintura, mas o que estou dizendo é que a execução perfeita da forma numa pintura não significa necessariamente que ela seja bem sucedida. Tem mais coisa envolvida. Mas o que é a pintura? É iluminação e é experiência. É um daqueles empreendi­ mentos que só podem ser explicados a alguém pela experiência direta. Acho que isto não pode ser dito, não pode ser escrito numa fórmula, como em A + B = a uma boa pintura. É algo a ser experimentado diretamente. E quando uma pessoa consegue experimentar isso, ela vai saber imediatamente o que é. UP

já me perguntaram muitas vezes, no Hallen für neue Kunst em

SchaffhausenW, 0 que são suas pinturas. Tento então fazer uma introdução sobre o que as pessoas vão ver, e passar a incrível variedade e riqueza do seu trabalho.

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Mostro como por vezes você fez pinturas em metal, trabalhou com esmalte sobre cobre, pintou diferentemente sobre algodão, usou telas grandes e pequenas, pin­ tou sobre papel e plexiglass, inventou prendedores especiais, etc. No final algu­ mas pessoas pensam, bem, isto se resume a experimentar a escala completa de possibilidades dentro de um tipo de situação fechada. E então tenho de deixar claro que é muito mais. Tenho de explicar que não é que você, Robert Ryman, tenha um ponto de partida e um ponto de chegada, e o meio você preenche como nas palavras cruzadas. É que toda vez você faz a última pintura. Você confia em tudo que já pintou antes e em tudo que sabe e experimentou em relação à pintu­ ra, através do próprio trabalho, assim como do trabalho de outros, tanto de seus contemporâneos quanto dos predecessores. O que você faz com qualquer pintu­ ra nova é, na verdade, pôr então tudo isto junto na experiência última do que uma pintura pode ser, confiando numa condensação de todo seu conhecimento e habilidade. RR É, bem, acho que muitas vezes as pinturas são descritas e comen­ tadas por meio dos aspectos materiais, como você disse: o metal, o algodão e as diferentes tintas, os diferentes suportes. É claro que não é exatamente isto o que elas são. Acho que algumas vezes é interessante falar sobre estes aspectos técni­ cos, e pode ser um pouco esclarecedor ver como as coisas são juntadas, mas isso nunca chega ao cerne do que é uma pintura. Tenho de repetir que com toda a pintura, é necessária uma experiência direta. É um sentimento de espanto e bem estar que é projetado pela arte, seja a música, a pintura ou a poesia. Não é algo que se possa descrever analiticamente. Não se refere ao simbolismo, a histórias ou referências a partes da sociedade, da política ou do que quer que seja. São coisas incidentais apenas. É a necessidade muito imediata que todo mundo tem de prazer e admiração - só consigo pensar neste tipo de palavra - e é por isso que a arte é tão importante, é por isso que as pessoas vão a museus e ouvem música, por causa dessa necessidade que temos. Bem, eu penso em como me sinto toda vez que estou na exposição de Paris no RENN Espace(4>. É tão estimulante a um nível emocional, que deixa a gente num humor criativo. O que acontece nesse lugar é que ele abre todos os tipos de visão e de possibilidades criativas. Acho que toda a boa arte tem a capacidade de despertar o espectador - que, naturalmente, toma-se então mais “jue um espectador - a sensação de que ele ou ela é um criador em potencial, este estado de expansão mental, acho eu, é a função da pintura e da arte. Essa é a melhor coisa que pode acontecer. Quanto isso acontece, 702

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você entende então o que é. É uma coisa que não se consegue dizer a alguém como fazer exatamente. Pode se dizer, o.k., mas como me aproximar disso, como sentir isso, como eu obtenhc^essa experiência? Experimentar uma pintura é uma questão de se abrir para ela ou para a música. É preciso se estar aberto e deixar a pintura vir até você, o que é uma coisa muito difícil de explicar. É uma coisa que não pode ser forçada. Se você tenta forçar, não funciona. Se alguém se apro­ xima de uma pintura a partir de uma posição analítica preconcebida não vai entendê-la nem experimentá-la, porque vai estar tentando forçar uma coisa. Tem que deixar acontecer, deixar a pintura falar por si própria. Se você consegue fazer isso, aí a experiência pode acontecer.

UR

Bem, acho que o nosso lado racional muitas vezes tenta tomar conta. Você pode se expor a uma situação e saber imediatamente o que sente, mas no instante seguinte seu lado racional tenta explicar que alguma coisa dife­ rente está acontecendo, a partir do que se está realmente experimentando ou sentindo. E então pode demorar muito, anos talvez, até você voltar ao ponto onde estava nos primeiros dois segundos. Enquanto construía o RENN Espace em Paris, sempre disse que queria torná-lo um tipo de capela - da forma como a Sainte Chapelle funciona. Um lugar onde você pode ir e tudo se torna claro e evidente. Quando se sai, pode-se começar a ler e conversar, mas enquanto se está lá, não é preciso, por causa da presença forte e convincente de tudo que está lá. Estes grandes momen­ tos de consciência não são freqüentes e são difíceis de acontecer. E, naturalmente, existe a tendência de se voltar aos lugares onde isso aconteceu para tentar fazer que aconteça novamente. Acho que quanto mais velho se fica, melhor se sabe o que fazer a fim de chegar a esse estado, podendo se chegar a ele com mais freqüência. Quando você é mais jovem, é mais difícil. Acho que algumas vezes, nos primeiros trabalhos dos artistas, esse equilíbrio especial consegue estar presente, mas então, por um longo tempo, eles não são capazes de recriá-lo. É apenas mais tarde, quando conseguem simplificar, que ele aparece várias vezes. Estou pen­ sando em Matisse, por exemplo, e seu quadro, relativamente um dos primeiros, A dança, que é absolutamente extraordinário. Ele levou tanto tempo para voltar a essa grande simplicidade nos extraordinários trabalhos posteriores. PR É, na verdade vai acontecer uma grande exposição de Matisse no Museu de Arte Moderna, em outubro, e ela vai abrir os olhos de muita gente, acho eu. De fato, não é sempre fácil mexer com os próprios sentimentos.

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Refiro-me a se deixar ser livre e trabalhar com a técnica que se entende melhor. É uma questão apenas das dificuldades da vida. À medida que se avança há tan­ tas interferências acontecendo todo o tempo, e todo mundo sente isso, natural­ mente, não é exclusividade dos artistas. As vezes, as coisas não funcionam tão facilmente. Você pode sair e ver pinturas, ou ouvir música com a qual você não está em sintonia naquele momento, por causa dessas interferências na vida que se está experimentando. Isso sempre acontece. Você tenta não deixar isso acon­ tecer com muita freqüência ou se tornar algo extremo demais. Algumas vezes, depois que se termina uma pintura, ou quando olho quadros mais antigos que pintei, digo para mim mesmo que talvez não con­ siga fazer aquilo de novo, ou não consigo entender como pude tê-lo feito, ou como posso prosseguir às vezes, mas felizmente esses momentos passam e eu resolvo as coisas, consigo retornar. Acho que talvez alguns artistas ficam toma­ dos por preocupações e prazos, nos quais têm de terminar alguma coisa muito rápido e forçar a pintura. É claro que ela não sai boa, e depois o trabalho tem de ser descartado. Felizmente isso não acontece comigo freqüentemente, mas estou sempre consciente que quando acontece, preciso pôr o trabalho de lado e começar de novo.

UR

Agora, Bob, eu gostaria de falar sobre uma coisa especialmente ca­ racterística do seu trabalho. É o fato de que suas pinturas agem espacialmente, da parede em direção ao espectador. Inicialmente você tomou duas importantes decisões a fim de simplificar o que está fazendo. Escolheu, mais ou menos, o for­ mato quadrado e não lidar com o problema da cor contra a cor. Estas decisões lhe permitiram se concentrar sobre a forma de pintar e estruturar a superfície toda. Em geral, a maioria das pinturas são lidas de uma margem para a outra, a maio­ ria freqüentemente da esquerda para a direita. Há uma ligeira tendência em algumas de suas pinturas de serem lidas da direita para a esquerda. Mas em geral, elas não revelam nenhuma direção composicional. Funcionam como um todo e agem diretamente para fora da parede em direção a quem está olhando. Elas também continuam por sobre as margens no plano da parede. Mas o que é realmente extraordinário é com o funcionam diretamente, envolvendo o especta­ dor. Ontem, no Museu de Arte Moderna, vim os as ótimas pinturas de Barnett Newman. Elas têm uma tendência diferente. Desenvolvem-se de baixo para cima, e não se movimentam para a frente com o as suas. Em comparação com estas, suas pinturas relacionam-se imediatamente com tudo ao redor, relaam se com o espaço todo onde existem, e onde existe o espectador. Você tem 704

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plena consciência disso? RR Em parte, isso tem a ver com minha sensibilidade ou com o modo como tendo a me aproximar das coisas. Trabalho conscientemente com o plano da parede. Isso se tornou muito importante para a minha pintura. Nestes quadros recentes, o próprio plano da tinta e a estrutura, sendo tão fina, são partes importantes da estética dessas pinturas. E então tem o papel encerado tão fino, e o modo como isso funciona com a luz e o plano da tinta, e o espaço do ambiente no qual a pintura está. Tudo isso tem a ver com o modo pelo qual a pin­ tura reage com o plano da parede. Talvez a maioria dos pintores não estejam tão envolvidos com esse aspecto. Geralmente, isso é mais uma abordagem a partir de um ponto de vista de se fazer a pintura, de se trabalhar dentro do plano da tinta num quadro. Mas de novo, é uma questão de abordagem, do foco dos pintores, como abordam os problemas, sejam eles de cor ou composição, ou trabalhando com o espaço den­ tro do plano da pintura. Eu acho que a maioria dos pintores está mais envolvida com o espaço dentro da pintura, e menos envolvida com a parede em si... UR Essa é uma questão difícil. Não quero me deter em Barnett Newman, mas a comparação aponta algumas diferenças interessantes. Por exemplo, Barnett Newman tinha uma idéia filosófica básica que ele queria expressar simbolicamente através da pintura. Isto, acho eu, não é importante para você. Comparando estruturas básicas, acho que as estruturas que seus quadros têm estão muito mais próximas aos últimos trabalhos de Mondrian. Aí, também, você tem este modo central de trabalhar na direção do espectador. As pinturas de Mondrian não funcionam além das margens, ou para cima ou para a direita, mas se movem realmente para a frente, na direção de quem quer que esteja em frente a elas. Toda vez que instalávamos seus trabalhos, sempre víamos como era tremendamente importante para a instalação de cada pintura saber exatamente como o quadro era concebido e feito. Algumas obras são extremamente calmas e, na verdade, absorvem tudo. Outras podem ser virulentas e funcionarem muito para fora. Elas podem ser de tamanho pequeno, mas grandes na força de ação. Toda vez que trabalhávamos com elas, experimentávamos de novo como cada pintura funciona diferentemente sob as circunstâncias únicas de espaço e luz. E só quando permitíamos que cada pintura exibisse seu caráter e sua força ao não restringirmos suas possibilidades, é que elas se tomavam vivas e ativas. É muito surpreendente ver como os diferentes estágios envolvendo

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as pinturas se relacionam uns com os outros. Em primeiro lugar, e acima de tudo, está a criação de uma pintura que, em si mesma, seja uma compressão de dife­ rentes estágios e decisões. Mas, como você disse no seu texto, a pintura ainda não está completa então. Ela tem de ser apresentada no mundo de um modo que deixe a estética clara (5) Este é o próximo estágio. É aí que outra pessoa entra em ação, como eu fiz com nossas instalações comuns. E esta pessoa tem de saber exata­ mente com o quê ele ou ela está lidando a fim de apresentar a pintura de uma forma apropriada. Aí o quadro começa a viver a própria vida, interagindo com o meio. Este é o estágio final e decisivo, onde a pintura funciona como um obje­ to independente em relação com um espaço. E isso, acho eu, é na verdade uma abertura para novas possibilidades na pintura. Isso permite que elas se tornem ativas de um modo que está excluído na pintura representacional. Agora que acabamos com a representação, o simbolismo ou a abstração, podemos final­ mente nos concentrar na coisa em si, a pintura como um objeto operante. Descobrimos que só o tipo de ativação que está estabelecido na complexidade do próprio quadro consegue abrir essa nova dimensão para a pintura. E acho que a sua contribuição para esta expansão de possibilidades é extremamente impor­ tante. Na verdade, ela cria uma curiosidade imensa sobre como a pintura se desenvolverá no futuro. RR Existem certamente outras possibilidades, não há o que questionar sobre isso. Tenho certeza de que existe muito a ser feito com a pintura, e sinto algumas vezes que não estou fazendo o tanto que poderia. Mas então me dou conta de que tenho de deixar que isso se processe naturalmente. Não quero forçar nada. Se não sai naturalmente, então tenho só que esperar. E espero, talvez, que eu possa ir adiante mais tarde em algum momento. Não é o tipo de coisa com a qual me preocupo ou que planejo. A pintura acontece no ato de fazêla, e é então que as descobertas são feitas. Quando comecei pela primeira vez estas pinturas recentes, as Versões, eu não tinha idéia de que iriam sair desse modo. Eu não sabia como iam ficar e tive de deixar que se desenvolvessem. Eu tinha que deixar as pinturas me dizerem como elas iriam ser. Isso soa estranho, eu sei, mas não é com a intenção de que soe como se fosse uma experiência mística, porque não é. Estou falando da surpresa que acontece através do ato da pintura. Isso é importante. ^ as alguma coisa estava clara para você desde o começo. Você sabia que queria que as pinturas ficassem bem finas. Esta idéia se desenvolveu de alguma maneira durante os últimos anos, por exemplo, com Roll <6>, que tam706

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bém demonstra esse tipo de pintura aberta. Roll também está pintada sobre um material muito fino. Mas ela fica na frente da parede e cria sombras por ter esta estrutura atrás. Agora as pinturas vão diretamente de volta para a parede nova­ mente. RR Eu estava trabalhando com papel quando comecei as Versões, e o papel era muito fino. Mas a estrutura da pintura sobre o papel não era exata­ mente o que eu queria. O papel pareceu realmente desnecessário a uma certa altura. Então tudo começou com o papel sendo muito fino, até se transformar no uso que fiz dos painéis de fibra de vidro, que são um material melhor e uma situação mais estável. Consigo manipular os tamanhos com muito mais facili­ dade, embora não possa dizer de antemão como essas coisas vão ficar.

UR Falamos anteriormente sobre a abertura das Versões, que fica evi­ dente no modo como as superfícies estão pintadas. E então você estendeu essa abertura ao acrescentar o papel encerado.. Acho que ele é importante na medida em que não só estende os limites do quadro e cria outro nível - parede, papel encerado, fibra de vidro, tinta - ele também acrescenta outro elemento à quali­ dade da tinta, algo muito delicado, translúcido e aperolado. Isso levou ao uso de tinta translúcida em duas das Versões. A luz refletida no papel encerado também aparece agora na superfície pintada.

RR É, o papel é meio nebuloso no sentido de que não é permanente. Não é como a tinta, que dura muito tempo, ou a estrutura, que é muito forte. O papel encerado, sendo muito macio e impermanente, cria um aspecto de fragili­ dade, o oposto da força. É claro que o papel pode ser substituído, e ele é muito diferente de todos os outros aspectos da pintura. Não só por causa da luz refleti­ da, mas, como você diz, da extensão da estrutura. Há também os pregos que seguram o quadro, e o tornam uma parte essencial do plano da parede propriamente. Usei os pregos simplesmente porque pareceu o modo mais direto de por os quadros na parede. Mas os pregos tam­ bém tomam as pinturas parte da parede. Então, mais uma vez, usei algumas vezes os pregos como elemento de composição. Em outras pinturas, eles não são tão importantes a esse respeito.

UR

Algumas vezes você põe pregos no alto, às vezes no canto esquer­ do, na margem esquerda ou na de baixo. Isso confere à estrutura uma presença física muito viva. O quadro não fica colado à parede. Algumas sombras são visíveis enquanto partes da pintura projetam-se para fora da parede. É preciso GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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ter muito cuidado em relação a onde prender os pregos, já que são uma parte conceituai do quadro.

RR

É verdade. Não é só uma questão de pregar o quadro na parede, mas também de dar aos pregos um lugar definido na pintura e no próprio plano. Eles precisam ficar onde estão.

UR

A profundidade com que você prende os pregos na parede também importa. Eles não estão colocados planos sobre a superfície pintada, mas são uma fração fora dela, criando um ponto de sombra. Algumas vezes o efeito dos pregos é muito próximo do efeito dos números que você pintou em algumas dessas pinturas - como 1 e 9 para 1991. Nesse caso, acho que eles são parte da composição.

RR

É. Algumas vezes mais do que em outras. Usei pregos mais escuros para alguns quadros do que usei em outros, de forma que eles são vistos mais claramente. Mas há uma outra coisa que era muito importante para mim. Eu queria trabalhar mais diretamente com a tinta do que havia feito antes. É claro, eu sempre tinha trabalhado com tinta, mas nas Versões eu quis que a própria tinta tivesse mais importância em termos de como ela funcionava, em oposição aos modos como eu havia usado a tinta no passado. Ao pensar numa pintura como Pair Navigation (7), por exemplo, que tinha uma estrutura mais complexa com o uso da gravidade, onde a tinta tinha um tipo de função diferente, eu estava tra­ balhando com a tinta de uma maneira diferente. UR Na verdade, o modo como você usa a tinta nas Versões mostra uma extrema sutileza de pintor, e um modo muito mais livre de manusear a tinta. É isso o que você queria? Como aconteceu? RR Isso acontece desde o início e, de uma certa forma, deixei que a pin­ tura se desenvolvesse ela mesma. E então vejo com o me sinto em relação ao que está em progresso, e como o espaço está funcionando. É uma abordagem contro­ lada sem controlá-la, se isso faz algum sentido. Eu simplesmente tento e deixo acontecer, deixo que se desenvolva. Tem uma coisa que sempre quis perguntar a você: se você tem uma grande superfície vazia à sua frente e está pronto para pintar, como você começa? Onde começa a pintar e como continua?

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RR Esta é uma pergunta particularmente interessante, que é encarada por todos os pintores até certo ponto, dependendo da abordagem. Vejo que você usa o termo superfície vazia, o que poderia implicar em que alguma coisa devesse preencher o espaço sob forma de algo para se ver. A superfície que está na frente do pintor não é necessariamente vazia. Ela tem a própria presença e estrutura que podem ter uma certa beleza, se a superfície puder ser vista como uma forma em si. E numa abordagem realista da pintura, ela é uma forma em si. Essa é a razão, na minha pintura, porque o processo não começa com a aplicação da tinta sobre uma superfície, mas em vez disso com o material da superfície e a cons­ trução da própria superfície. Quando a aplicação da tinta começa, não é só um caso do que a tinta faz em si mesma e de si mesma, mas também como a tinta vai transformar a superfície em algo para se ver. Estas pinturas, as Versões, não são feitas de uma vez só, elas são tra­ balhadas durante um período de tempo. Algumas vezes um bom número de semanas ou até alguns meses. E a superfície é construída devagar e pode se expandir através do espaço da estrutura. Em certas áreas, ela pode se tornar mais opaca pelo acréscimo de mais tinta. É difícil dizer exatamente como faço isso, porque é algo que se desenvolve por si.

Notas ( 1 ) Christel Sauer, Urs Raussmüller: Robert Ryman. RENN Espace d'Art Contemporain, Paris/Hallen neue Kunst, Schaffhausen. Sehaffhausen 1991. ( 2 ) The Pace Gallery, 32 East 57, Nova York: Robert Ryman, Novas Pinturas. 6 de abril - 10 de maio (catálogo da exposição). ( 3 ) Hallen für neue Kunst, Schaffhausen, Suíça: exposição permanente dos trabal­ hos de Robert Ryman (1957-1982) desde 1983. ( 4 ) RENN Espace d'Art Contemporain, Paris: Robert Ryman, Pinturas 1958-1991. 27 de outubro de 1991 - 25 de julho de 1992. ( 5 ) C, Sauer, U. Raussmüller, op. cit., pág. 57. ( 6 ) Robert Ryman, "Roll", 1989. óleo sobre gaterboard e alumínio, 2 5 1 / 8 ' 2 5 1 / 8 / 6 4 ' 6 4 cm. ( 7 ) Robert Ryman, "Pair Navigation", 1984, óleo sobre fibra de vidro com aço e alumínio, 9 ' 4 7 1 / 2 ' 4 7 1 / 2 " / 22,8 120,7 120,7 cm.

Entrevista publicada no catálogo da exposição “Versões de Robert Ryman Hallen Für Neue Kunst, Schaffhauser, 10/05/92 a 31/10/92 GÁVEA. 15(15), julho 1997

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Robert Ryman, C ontext, Oleo sobre lin h o e aรงo 1989 297.2 x 281 9 cm.


R o b ert Ryman - Novas Pinturas O trabalho de Robert Ryman, ao contrário do que se poderia supor, nâo se funda num processo de exclusão, cujo fim último seria alcançar a essência da pintura. Trata-se, sim, de uma operação que procura acolher tudo no campo pictórico, pois nesse processo nada é dispensável. Daí a preocupação com as dife­ renciações mínimas, mas significativas; dai, como afirma o autor do artigo, a inclusão de "pequenas coisas simples" que em geral não são considerados. Esse sentido de abertura e disponibilidade só se detém, contudo, perante aquilo que, naturalmente, o nega. No caso, a submissão da pintura ao mito, à imagem, ao trágico. Robert Ryman Pintura Arte Contemporânea

YVE-ALAIN BOIS tradução Ricardo Quintana Crítico e historiador de arte, professor associado da John Hopkins University e da Universidade de Harvard, fundador da revista Macula, autor do livro "Painting as model" (MIT Press).

Surpresa e Equanimidade "A tragédia não é nada mais que um meio de recuperar a infelicidade humana, de reuni-la, justificando-a assim sob a forma de necessidade, sabedoria ou purificação: rejeitar esta recuperação e buscar algum meio técnico de não sucumbir a ela (nada é mais insidioso que a tragédia) é hoje um empreendimento singular e, quaisquer que sejam seus desvios "formalistas", importante." . - Roland Barthes É possível escapar à tragédia?, perguntou Alain Robbe-Grillet, após citar este parágrafo que Barthes havia terminado de escrever sobre seu trabalho. (1) A pergunta, feita em 1958, um ano sombrio na história da França, era muito pertinente. O caos político engendrado pela guerra da Argélia encontrara a própria solução na invenção de um líder carismático; o único recurso contra a violência de um golpe militar fora mais um golpe de estado. Eram tempos difí­ ceis aqueles, permeados por um sentimento de fim. Entretanto, Robbe-Grillet, GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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com sua coragem e ingenuidade, ofereceu uma resposta positiva à ansiosa per­ gunta: Hoje a tragédia prevalece, estendendo-se por tudo que sinto e penso; sou condicionado por ela, dos pés à cabeça (...) Acho que esta infelicidade está situada no espaço e no tempo, como todas as infelicidades, como todas as coisas neste mundo. Acho que um dia o homem se libertará dela, mas não tenho provas deste futuro. Para mim tam­ bém ele é uma aposta. O homem é um animal doente, escreveu Unamuno em The Tragic Sense o f Life*; a aposta consiste em pensar que ele pode ser curado e, neste caso, seria inepto confiná-lo a suas mazelas. Não tenho nada a perder. Em todo caso, esta aposta éa única sensataS2) Qualquer um familiarizado com o projeto literário de Robbe-Grillet, e com o empreendimento cham ado então de Nouveau Roman, reagirá certamente com um sentimento inicial de surpresa a esta declaração de otimismo, à sua aparente implicação de que a função da literatura é a cura da humanidade. Esta posição, fosse ela expressa por um romancista realista socialista, por um escritor de novelas ou histórias policiais, ou por um humorista, não surpreenderia ninguém - pois é inteiramente consistente com uma crença corrente de que a catarse aristoteliana é o objetivo essencial da produção literária. Mas dita por um homem cujos primeiros trabalhos publicados foram saudados por uma campa­ nha dura contra sua desumanidade destrutiva? Não há volta, entretanto. Entender o otimismo de Robbe-Grillet é entender também sua luta contra a tirania do humanismo. Ele nos aproxima, da mesma forma, de uma compreensão da arte de Robert Ryman. Não que a estética de Robbe-Grillet deva ou mesmo possa ser vista como uma fonte para Ryman (é muito improvável que Ryman sentisse sim­ patia por algo como um programa declaratório). Contudo, quando os dois começaram a trabalhar, encararam os mesmos inimigos e adotaram estratégias semelhantes. Os inimigos: os bardos do trágico. Para Robbe-Grillet era o existen­ cialismo (Sartre) e a declaração do absurdo da condição humana (Camus). Para Ryman (embora o próprio conceito de inimigo seja inteiramente estranho a seu modo lacônico), era a tradição expressionista abstrata e a recém-chegada Pop Art. Para entender o porquê, poderíamos olhar brevemente a avaliação de Robbe Grillet sobre a situação. Ela começa como uma resposta a seus críticos: seu crime era afirmar que existe algo no mundo que não é o homem, que não envia sinais ao ornem, não tem nada em comum com ele; o crime era afirmar esta ruptura, esta disd, sem tentar sublimá-la nem um pouco. (3) Como o crime foi cometido? Com a recusa de qualquer m etáfora, pois a metáfora é sempre antropomórfica ( o ç~o da floresta, o tempo instável, um sol impiedoso). Postulando uma soli­ 712

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dariedade entre a interioridade do homem e as supostas profundezas ocultas do universo, a metáfora inventa uma natureza humana abrangente. Mas este humanismo é uma teofania disfarçada: A idéia de natureza leva infalivelmente àquela de uma natureza comum a todas as coisas, isto é, superior. W A estratégia de Robbe-Grillet foi desmetaforizar, por assim dizer, e esta tem sido constantemente, em maior escala até, a de Ryman: O homem segura o martelo (ou uma pedra que escolheu) e bate na estaca que deseja fincar. Enquanto o está usando, portanto, o martelo (ou a pedra) é meramente forma e matéria: o peso, a superfície que golpeia, o outro lado para segurar. O homem, então, pousa a ferramenta à sua frente; se não precisa mais dele, o martelo é simplesmente uma coisa entre coisas: à parte o uso, não tem significação. (5) Aqui, alcançamos o ponto crucial do argumento de Robbe-Grillet: não é esta falta de significação, esta destruição da solidariedade entre o homem e o mundo, esta ausência, esta fissura, a própria condição do sentimento moder­ no do trágico (a náusea de Sartre, o absurdo de Camus)? Exatamente, e deve-se estar consciente de que: Esta ausência de significação não é experimentada pelo homem de hoje (ou de amanhã...), como uma ausência ou uma fissura. Ao confrontar este vazio, ele não sente então nenhuma vertigem. Seu espírito não busca mais um abismo para moradia. Pois se rejeitar a comunhão, rejeitará também a tragédia. (6) A tragédia é assim definida como uma tentativa de recuperar a distân­ cia entre o homem e as coisas, como um valor novo, uma nova provação, cuja vitória estaria em ser derrotado, como a última conquista do humanismo: uma forma nova de solidariedade, o próprio divórcio tornando-se um caminho importante para a redenção. O trágico moderno, em resumo, representa a última defesa do ilusionismo, da ilusão humanista. Omitirei aqui a longa análise de Robbe-Grillet sobre a tendência trágica na literatura, que formou o contexto de seus primeiros romances. Não abandonarei esta digressão literária, entretanto, sem notar sua insistência na difi­ culdade de evacuar o trágico sem retomar à sua contraparte simétrica, a metáfo­ ra humanista, a imagem antropocêntrica. Como combater a tragédia sem sucumbir à mesma, o romancista pergunta-se ao fim de seu ensaio. A mera idéia de uma luta não resulta imediatamente em retórica, pathos, militância ideológica, teatro, todos eles outros nomes para o trágico? Precisamente, e é nesta conjuntu­ ra que Ryman, em constraste, dá uma lição: se Robbe-Grillet falhou, na minha opinião, em cumprir seu programa, foi em parte porque sua negação era afirma­ tiva, sua atitude demonstrativa, sua posição veemente. Em uma palavra, porque não conseguiu defender o programa agonisticamente. Com Ryman, não há nada • .GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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disso; a negativa mais alta que se ouve dele é a famosa frase de Bartelby, Eu preferiria que não. Em vez de encenar seu repúdio à retórica expressionista abstra­ ta, por exemplo, como Rauschenberg fez em 1951 através de sua White Painting, e em 1953 com Erased de Kooning Drawing, Ryman simplesmente preferiu "evi­ tar" a confusão da interação de cores. Não foi nunca uma rejeição, diz ele, só uma abordagem diferente da pintura. Os artistas não pensam do jeito de rejeitar uma coisa. (7) (eu faria uma correção: não foi nunca uma rejeição encenada. Foi exatamente aquele Eu preferiria que não). Não houve um valor afirmativo ou negativo na escolha de Ryman do branco como pigmento emblemático; foi apenas um meio de impedir que questões composicionais fizessem sombra na superfície de suas telas, e de permitir que o humanismo e o ilusionismo se insinuassem. Outra coisa interessava-o; ele simplesmente não queria que cores e formas ficassem no ca­ minho. Não houve um hino malevicheano ou até mallarméliano à brancura nem uma tábula rasa neo-Dada. A arte de Robert Ryman é um apelo murmurado con­ tra o pathos, mas sua não violência representa um dos meios mais eficientes de desestabilizar a tragédia (ou seja, a metafísica). O empreendimento mais difícil é ser consistente ao evitar a metáfo­ ra (isto é: qualquer transcendência, alegoria, mito, imagem ou conotação). Os títulos representam um perigo, assim como qualquer coisa que fuja à estrita materialidade do trabalho: o moinho hermenêutico encontra-se mais do que pronto para compreender até o menor das firulas que possa estar semantica­ mente carregada, e fazer uma defesa a partir dela. Ryman, como todos os comen­ taristas notaram, sempre foi cuidadoso com títulos. Precisa deles para propósitos de identificação, mas receia qualquer alegorização possível que possam induzir. Por esta razão eles costumam se referir a seus materiais da forma mais literal Winsor, por causa da marca de tinta; General, por causa do lugar onde ele conseguiu o aço. Mas se não quisesse ser condenado a trocar de fornecedor constantemente, outros artifícios tinham de ser encontrados. No dicionário, quase ao acaso. Quase ao acaso; isto é, na verdade, nem um pouco ao acaso. Da mesma forma como Duchamps, em sua busca por possíveis coisas prontas, achou difícil aparecer com objetos suficientemente indiferentes, Ryman tem de ser cuidadoso para se esqui­ var de conotações indesejáveis. (E qualquer conotação que possa parecer rele­ vante é indesejável. Para uma das pinturas nesta exposição, ele escolhera o nome de Source. Quando mostrei-lhe não apenas a nuance fundamentalista desta palavra [pureza, origem, etc.], mas também seu fundo histórico artístico [Ingres, Courbet], ele recuou horrorizado e retirou o título). Mas mesmo títulos casuais são ainda um impedimento muito frágil: a língua é muito rica, espessa, densa. É impossível pedir-lhe que mantenha as palavras castas; seus significados proli714

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feram infinitamente, de qualquer jeito. Na pintura, a batalha contra as metáforas, a tragédia, requer uma estratégia mais elaborada. Em vez disso, tem que se buscar algum meio técnico de não sucumbir a ela, como diria Barthes. Manter-se na superfície, na física (em oposição à metafísi­ ca), mas sem permitir que esta falta de profundidade, este vazio de significação, tome-se a significação de uma ausência - esta tem sido a tarefa de Ryman desde que começou a pintar. Ela é quase intransponível. Não demonstrou toda a tradição da arte abstrata, especialmente a arte que poderia parecer mais próxima de Ryman, de Malevich a Rothko, a fatalidade do significado, da transcendência? O trágico não tem sempre sido vitorioso? Daí as perguntas com as quais Ryman confrontou-se repetidamente. O seu uso do branco tem algum significado simbólico ou místico? Quando alguém olha para as pinturas, digamos, sobre papel CORRUGADO/ONDULADO, você acha que eles deviam só ver gestos brancos sobre uma superfí­ cie escura, em vez de arranha-céus ou estudos sobre neblina? (8) Qual é então o conteú­ do da pintura abstrata? (...) Que tipo de " mensagem" você tem em mente quando tra­ balha? (9) Você está dizendo alguma coisa filosófica, assim como alguma coisa que seja uma preocupação tradicional da pintura? (10) A resposta inflexível de Ryman (a pin­ tura é exatamente o que você vê) parece nunca aplacar a inquietação dos entrevista­ dores. Contudo, suas dificuldades tautológicas têm uma força única de persuação (na verdade, ela geralmente acalma os inquiridores por um momento), uma vez que impedem a reserva radical de Ryman de expôr sua natureza polêmica. Através da tautologia, com seu falso poder de evidência, seu tom de cândida resistência passiva, Ryman invariavelmente evita encenar a luta contra o trágico. Evita a atitude programática, ideológica, a explicação (pergunte a ele por que, ele sempre responderá como). Leia, por exemplo, a perplexidade de Marian Verstraeten quando pergunta a Ryman se existe uma diferença fundamental para ele entre um tra­ balho portátil (uma pintura, um desenho) e alguma coisa executada sobre e para uma parede específica (como seu trabalho no Palais des Beaux-Arts em Bruxelas, em 1974). Ela tinha na cabeça, como afirmou claramente, a questão ideológica do mercado. A resposta de Ryman? Cada técnica requer uma abordagem um pouco dife­ rente. (11) Ou então, após comparar seus trabalhos com os de Dan Flavin, no que diz respeito ao relacionamento com a parede: Mas estou meio cansado desse negócio de parede.(12) Isto é, se o que poderíamos chamar de um certo tipo de especifici­ dade de lugar toma-se uma questão ideológica, a necessidade mais urgente de Ryman é a de se dissociar destes assuntos. Nenhum mito, nenhuma legitimação. Nenhum desejo de ser herói. Ou antes, um desejo de não ser herói. É necessário estar constantemente em guarda para se impedir que qualquer mito aglutine-se, GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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é necessário mesmo evitar declarar este anti-heroísmo como tal (pois este seria então heroicizado, mitologizado). Até o Eu preferiria que não de Bartelby levava à tragédia. A melhor coisa é escapar de qualquer tipo de cenário: quando não há roteiro, não existe mito. Isso também explica a desconfiança de Ryman em relação à história, ou antes, à historicidade. Não há evolução estilística em seu trabalho (já obser­ vou?) cada vez que a mesma pergunta sobre os limites da pintura é feita, mas cada vez Ryman responde-a por meios diferentes. A historicidade, que foi a maior fornecedora de estética e significação ideológica para o modernismo (e, do mesmo modo, embora negativamente, para o que é chamado de pós-modemismo), é gentilmente abandonada como sendo irrelevante: RS Por muito tempo escreveu-se sobre a pintura abstrata como se ela tivesse uma direção clara. Até Mondrian, de certo modo o mais radical dos pintores, sentia que a arte envolve questões de progresso. Você acha que a pintura abstrata requer um senti­ do de direção completamente histórico ou estético? RR Não sei, acho que talvez não. Ela o requer de tempos em tempos e requer de uma forma pequena. Existem problemas que você trabalha e existe uma consciência do que já foi feito; o que os outros já trabalharam e como abordaram a pintura, e as soluções às quais chegaram. Mas não é uma coisa histórica do tipo unilateral, na qual todos estão envolvidos. Acho que cada um tem de dar pequenas mordidas, tirar pedaços e trabalhar sobre eles. RS Você poderia dizer, então, que aquilo que você faz não é tanto considerar os problemas históricos gerais, mas ter uma conversa ou diálogo com grupos específicos de trabalho, ou artistas específicos em relação a questões básicas da pintura? RR Bem, sim - embora você esteja consciente de um grupo de trabalho global. Entretanto, acho que todos os pintores são um pouco isolados. Mesmo estando con­ scientes do que está acontecendo e do que já foi feito, eles não estão muito preocupados com isso. Pequenas coisas que você vai pegando aqui e ali disparam intuições. É só depois que você consegue olhar para uma quantidade de pintores diferentes do mesmo período, e juntar os fios do que as pessoas estavam pensando na época. E isso nem sempre funciona também. Elas podem ser mal interpretadas. (13> Nenhum grande esquema, nenhum posicionamento. O único relanamento possível com a história é fragmentário, limitado pelo ponto de vista de cada um, incerto. Pedacinhos aqui e ali. A narrativa pode no final vir depois 716

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do fato, mas mesmo então é provável que seja enganadora. Ryman não quer tomar nenhuma parte nisto. (Quando lhe perguntei se poderia haver algum rela­ cionamento entre um certo retomo à sua problemática do final dos anos 50, em alguns trabalhos da exposição em cartaz - por exemplo, Roll, Match, Locate e o fato de que acabara de fazer uma retrospectiva na Dia Foundation, em cuja preparação deve ter gasto muito tempo revisitando sua produção passada, ele disse-me simplesmente que não havia pensado nisto desse jeito. Uma resposta típi­ ca dele: firme em sua trivialidade e mais uma vez não enfática, não violenta). A mesma casualidade permeia seu começo. Nascido em Nashville, Tennessee, em 1930. Veio para Nova York como músico de jazz em 1952, assim que saiu do exército. Descobriu os museus. Trabalhou como guarda no Museum of Modern Art (Eu aceitava qualquer coisa que visse (...) Sentia que havia alguma coisa nos museus que fazia valer a pena estar lá). Decidiu tentar um dia: Havia uma pequena loja de materiais artísticos na esquina. Fui lá e com­ prei umas duas telas e um pouco de tinta a óleo - não havia tinta acrílica naquele tempo - e alguns pincéis, e pensei que iria tentar e ver o que acontecia. Eu queria ver o que a tinta ia fazer, como os pincéis funcionariam. Era o primeiro passo. Fiquei só mexendo. Eu não tinha na verdade nada em mente para pintar. Estava só descobrindo como a tinta fun­ cionava, as cores, o grosso e o fino, os pincéis, as superfícies. (15) O mais anticlimático dos primeiros passos. Nenhuma iniciação sofri­ da e gloriosa, nenhuma conversão dramática: Ryman tornou-se pintor por impregnação e pura curiosidade. Ele estava em meio a pinturas todos os dias, e queria descobrir como era pintar. Contudo, este ficar só mexendo simples, despre­ tensioso, este encantamento infantil face a um universo desconhecido, levou a uma das mais regulares carreiras de um pintor em Nova York. Não para se expressar, de acordo com o programa tradicional do período, mas para descobrir como as coisas funcionavam: o moto de Ryman foi totalmente entregue no primeiro manuseio do pincel. Porque ele retira-se da tragédia, porque evita as metáforas como a uma praga, porque descarta imagens, Ryman é visto por alguns de seus críticos como iconoclasta, reducionista, defensor calvinista da pureza. Seu trabalho é fre­ quentemente lido como baseado na exclusão, d6) Pelo contrário, nenhum traba­ lho parece-me mais inclusivo; que tudo conta em uma pintura tem sido sua posição inflexível por mais de trinta anos. Se preferiu não se meter com cores e formas, isto é, se queria impedir relacionamentos hierárquicos, foi só para tornar explícito este democratismo fundamental. Aí jaz a lição de Ryman: nada é insigni­ ficante nos gestos institucionais da prática pictórica, qualquer coisa pode se tornar uma parte integral do trabalho. Pode ser a assinatura (deslocada para o GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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meio da tela, aumentada, multiplicada ou afixada na borda) ou a data (como na recente Correspondent); pode ser a elasticidade da tela, ou a escolha do pincel e a quantidade de pigmento que pode conter (na série Winsor, as faixas horizontais que enchem a tela de uma m aneira abrangente estão ritmicamente divididas por pinceladas indicando com m étodo esta quantidade); ou pode ser a moldura, ou o modo de prender na parede (cada vez mais desde 1976, e em todas as telas expostas aqui); poderia ser a escolha do suporte (Ryman pinta sobre paredes, papéis de todo tipo, papelão, fibra de vidro, aço, folhas de plástico e assim por diante, e, naturalmente, sobre tela de algodão - provavelmente a melhor superfície ainda, disse ele a certa altura); <17) algumas vezes é a própria escolha do pigmen­ to (óleo, caseína, esmalte, todas as variações permitidas pelo acrílico); ou nova­ mente, pode ser a luz ou todo o ambiente arquitetural da pintura (Ryman não faz trabalhos ambientais ou, propriamente dizendo, trabalhos de lugar específico ele gosta que suas pinturas viagem, sejam expostas a luzes diferentes - mas insiste na interação entre a pintura e o espaço real onde é exposta como parte da experiência estética. Este espaço pode variar e a natureza da interação mudar, mas o seu fato permanece com o um fato estético). O projeto de Ryman parece-me inusitadamente bem dotado de um sentido de abertura e disponibilidade (a este respeito, sua equanimidade é com­ parável apenas à de Warhol, embora eu esteja certo de que uma comparação deste tipo soará totalmente estranha para Ryman). Da mesma forma como absorvia tudo enquanto era guarda do Museu de Arte Moderna, ele aceita tudo no campo da pintura, todas essas pequenas coisas simples que não são consideradas em geral. (18) Todas, naturalmente, exceto aquelas que proibiriam uma hospitali­ dade tão generosa (a imagem, a metáfora, o trágico). Olhar para essa questão mais de perto exige uma volta rápida através de uma análise da posição de Ryman a respeito do modernismo. Para seus detratores, ele é apenas um representante atrasado de uma posição mo­ dernista dognática, o último cavaleiro quixotesco de uma batalha há muito per­ dida. A dotrina central do m odernism o era a de que a arte tinha de se libertar da arbitrariedade das convenções, que não eram essenciais a ela, daí sua redução das condições de pintar ao plano e à delimitação do plano, como apontou Clement Greenberg. Essencial é a questão chave aqui: a teoria modernista era um historim° ' mas também um essencialismo. Ela baseava suas exigências no pressu­ posto de que havia algo com o uma natureza da pintura, e a tarefa do artista moa buscá la (por interm édio desta idéia de uma natureza a ser procurada Santo Graal, o m odernism o, embora inconscientemente, abraçava o mo). Para Ryman, todavia, a pintura não tem natureza e nada é natural 718

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para ele. Desde o final dos anos 50, depois de ter abandonado qualquer preten­ são fundamentalista com uma virada irônica rara em seu trabalho (The Paradoxical Absolute, uma pequena caseína sobre papel, data de 1958), ele esforçou-se para demonstrar que qualquer coisa que parecesse natural no ato de pintar poderia ser historicizada ("situada no tempo e no espaço), questionada, transformada e tornada o elemento ativo na elaboração de um quadro. (Outro ponto, só de passagem, para registro. Greenberg declarou que o meio de cada arte como o critério para se julgar a dispensabilidade de uma convenção. No entanto, como Jean Clay notou há muito, Greenberg discute rara­ mente o verdadeiro caráter de qualquer trabalho artístico [ou quando o faz oca­ sionalmente, é com erros grosseiros: é sabido que Bamett Newman ficou enfure­ cido, e com razão, ao 1er a avaliação de Greenberg sobre suas telas campos-decor como ostentando um efeito de tintureiro]. (19) o extraordinário aqui é que, neste caso, a teoria modernista andava de mãos dadas com a de Sartre. Para o escritor existencialista, o único objeto de percepção estética é a imagem repre­ sentada, à qual se pode relacionar: O que é real, como nunca se deve cansar de dizer, é o resultado das pinceladas, a camada de tinta sobre a tela, sua textura e o verniz que é aplicado sobre as cores. Mas tudo isto é precisamente o que não convém ao objeto da apre­ ciação estética. Tudo isto é precisamente o que Ryman, contra Greenberg e Sartre, recuperou como objeto de apreciação estética). O sistema de Ryman é indefinidamente aberto, afirmo eu. Na ver­ dade, ele está baseado na surpresa. Existem muitos tropos de surpresa no pro­ cedimento de Ryman. O mais comum, que acabo de descrever sem dar-lhe nome, é o que os formalistas russos chamaram de ostranenie (deslocamento, desfamiliarização, tomar estranho. Observado primeiro pelos críticos formalistas nas obras dos escritores realistas do século XIX, como um deboche dos clichês metafóricos que preenchem a linguagem de uso diário (a natureza retórica destes clichês é revelada quando são tomados literalmente), o ostranenie tomou-se logo, para os próprios formalistas russos, o marco do moderno, do reflexivo: ele impli­ cava uma nova atitude em relação à língua, tanto de dúvida quanto veneração. Mas o conceito foi cunhado através do encantamento da pintura - mais precisa­ mente, do Cubismo, cujas obras-primas eram muito admiradas na mansão de Sergei Shchukin pelos jovens teóricos da Rússia pré-revolucionária. A função principal da arte, de acordo com Victor Skhlovsky, é a de desfamiliarizar nossa percepção, que se tornou automatizada. Isto corresponde exatamente à tentativa de Picasso: Naquela época as pessoas diziam que eu fazia os narizes tortos, até em Demoiselles d'Avignon, que eu tinha de fazer o nariz torto para que eles pudessem ver que era um nariz. Eu tinha certeza que mais tarde eles veriam que não era torto.(21) A GÁVEA. 15(15), julho 1997

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declaração de Picasso fornece até uma indicação sobre a evolução da teoria do ostranenie, sua transformação por Roman Jakobson e a nova exploração nos papiers collés cubistas. Enquanto inicialmente dizia respeito ao relacionamento entre arte e percepção do mundo, o ostranenie mais tarde referia-se à transfor­ mação histórica efetuada por uma forma de arte em relação à outra anterior. Cada artifício artístico novo é entendido como o fim de outro antecedente, que se tornou automatizado, ou como a revelação (desnudamento) de um dispositi­ vo que estava aí o tempo todo, mas não era percebido. Pense no uso deslocado do claro-escuro por Picasso, em sua transformação de letras para figuras, em seu uso de um pente decor de pintor para traçar o cabelo de O poeta (1912); pense em suas numerosas inversões. Ryman, ostranenie e Cubismo: este poderia ser o tópico de outro ensaio. É suficiente aqui notar que através de sua retirada bartelbiana (Eu preferiria não colocar ênfase em cores e form as), Ryman liberou todas as pequenas coisas simples que não são consideradas em geral, que temos como certas, que são plenamente comuns. Ele liberou-as, desinstrumentalizou-as, recuperouas, deu-lhes uma função ativa. Um exemplo: os prendedores. Em certos casos, como os pinos salientes em alguns dos papiers collés de Picasso, eles terminam bem no meio do trabalho (ver o recente Condition, por exemplo). A idéia para os prendedores tem a ver com o modo como uma pintura é pendurada na p a r e d e ; geralmente as pinturas, particularmente se são quadros, estão penduradas invisivelmente na parede, porque não estamos muito interessados nisto. E para a imagem que estamos olhando no espaço limitado. ^ Comum, invisível através da força do hábito, tido como certo, naturalizado, tranformado em clichês: estes são os numerosos códigos e procedi­ mentos pictóricos para os quais Ryman deu um novo olhar, e pacientemente reinventou para nós através da desfamiliarização. Mas o hábito também pode, na dialética de Ryman, tom ar-se um instrumento de deslocamento: o truque, novamente, consiste em uma certa disponibilidade. As características mais mar­ cantes de lnitiql, por exemplo (uma das menores pinturas nesta exposição), são os minúsculos pinos cúbicos de madeira sobre os quais a superfície pintada des­ cansa. Perguntado sobre eles, Ryman observa simplesmente que estavam segu­ rando a pintura enquanto trabalhava nesta, que ficou tão acostumado a eles a ponto de se tornarem inseparáveis do trabalho, uma parte da obra. Outra figura de surpresa na prática de Ryman é o serendipismo. Ele mencionou a palavra uma vez apenas numa entrevista (sobre Company, uma daquelas pinturas de 1988, onde a linha ia até o primeiro plano, como muitas na exposição em cartaz). A margem da superfície é muito estranha e gosto dela um bocao, o modo como aquela linha simplesmente aconteceu (...) Eu não tinha idéia de como na sair exatamente. Não foi nada planejado com precisão. Aconteceu daquele jeito. 0 720

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Robert Ryman, Tribune 1989 óleo sobre alumínio 78.7 x 63.5 cm.

linho é muito forte. O linho foi mergulhado na água, colocado perfeitamente sobre a tela, e encolheu. A força do linho repuxou-a a partir das bordas, de forma que quando secou, ficou desse jeito. Eu sabia que teria aquela linha indeterminada algumas vezes encostan­ do na borda e outras não, mas não sabia o quanto (...) Isso foi realmente um (23) serendipismo. Serendipismo, de acordo com o Oxford English Dictionary, é uma palavra cunhada por Horace Walpole; que diz (...) que havia formado-a no título de um conto de

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fadas The Three Princes of Serendip, cujos heróis 'estavam sempre fazendo descobertas, por acidentes e sagacidade, de coisas que não estavam à procura. Se Ryman não estivesse trabalhando no domínio das diferenças infinitesimais, poderia-se argu­ mentar que não está usando a palavra apropriadamente aqui (afinal de contas, ele estava procurando algum tipo de linha). Mas ele ficou surpreso de fato; não havia esperado de modo algum aquela linha em especial, a qual era, para ele, totalmente acidental. As declarações de Ryman estão cheias deste paradoxo: Geralmente sei com que material vou trabalhar e conheço muito bem o resultado que estou procurando. E ainda: Nunca estou certo do resultado, no começo. Depois, se o tra­ balho é bem sucedido, sempre aprendo alguma coisa ao fazê-lo. <24) Nenhuma poética do acaso (nenhum neo-dada, como já foi observado acima), mas nenhum a priori, nenhum processo inteiramente pré-programado também (nenhuma arte con­ ceituai). Em vez disso, uma estética do acidente e da sagacidade (requiria sagaci­ dade ver os dois pinos de madeira pequenos, por exemplo). É quase essencial para mim que me surpreenda no que faço, diz Ryman. Se fico surpreso, então sei que alguma coisa está acontecendo. (25) Talvez este sentido de disponibilidade na arte de Ryman ajude a explicar o que parece ser um retorno à composição em alguns de seus trabalhos recentes, um retorno insinuado especificamente pela semelhança formal destes trabalhos com algumas de suas primeiras pinturas. (Por exemplo, pode-se iden­ tificar as linhas horizontais repetidas de Locate com três trabalhos Untitled de 1961;(26) pode-se comparar Roll, com sua combinação de formas suaves [não pin­ tadas] e duras [geométricas], a Untitled, um óleo sobre linho de 1960;(27) pode-se associar o canto não pintado de Context com o de um outro Untitled, um óleo sobre Unho de 1961; (28) e assim por diante). À época da estréia de Ryman, a palavra composição era um lema da velha retórica que se tomara suspeita para o Expressionismo Abstrato e para a maior parte (européia) da arte abstrata. Frank Stella e Donald Judd iriam logo chamar o modo de pintura tradicional, composicional, de relacional e vinculá-lo diretamente ao humanismo.(29) A com­ posição está baseada no equilíbrio, equilíbrio de constrastes, constrastes em luta: mais uma vez, pathos, tragédia. A composição era vista como uma convenção arbi­ trária, como o último refúgio da subjetividade e do ilusionismo que o mo­ dernismo teve de abolir, na longa busca por purificação dos meios pictóricos: a história da arte no final dos anos 50 e nos 60 é a história de várias tentativas desta erradicação. Neste coro de vozes descontentes, a de Ryman surpreende pela falta de triunfalismo. Vamos preferir não compôr, diria ele, e assim abandonar os con­ trastes de cores e todos os tipos de manipulação formal; vamos usar o quadrado, pois ele impede melhor a assimilação do formato da pintura com as formas mun­ 722

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danas (portas, telas de cinema); vamos dessacralizar o gesto autográfico pela mera repetição. Vamos nos retirar, mas sem nunca esquecer que não se pode evi­ tar completamente o arbitrário, não se pode evitar completamente a composição. Pode-se apenas aniquilar seu caráter trágico esvaziando-se os heróis (assim a composição, no trabalho de Ryman, foi sempre deixada ao encargo das pequenas coisas simples). Este sentido de fronteira é absoluto no projeto de Ryman e, paradoxicalmente, no seu otimismo. (Ele é irônico em relação às notificações periódi­ cas sobre a morte da pintura; para ele a pintura está na infância). Por que? Porque esta fronteira é suave, ela pode ser puxada para trás interminavelmente, na verdade, ela é definida apenas pelo seu questionamento, e cada vez dife­ rentemente. Nenhum fechamento patético, nenhum huis cios metafísico. A fron­ teira está aí, com certeza, sempre aí, mas ela é o que fazemos dela. O jogo é deter­ miná-la puxando-a para trás o máximo possível, cada vez diferentemente. Na série Standard, sobre aço, por exemplo, a escolha de suporte deter­ mina a escolha de pigmento (esmalte), o que, por sua vez, determina a escolha do pincel, que determina o tamanho da tela, coincidindo com a abertura máxima de movimento do braço do artista (o esmalte deve ser aplicado alia prima; nenhum retoque é possível). A justificativa, a supressão da arbitrariedade de escolhas vem descansar aqui, neste limite das possibilidades físicas do artista. Apesar das aparên­ cias, este limite é na verdade arbitrário (vários trabalhos de arte, neste século, foram produzidos sem a mão do artista). Outro exemplo desta determinação da fronteira: em 1974, a fim de conseguir pensar sobre a pintura mural que estava encarregado de executar em Bruxelas, Ryman pediu que lhe mandassem não apenas as dimen­ sões da sala, mas também um pequeno pedaço da própria parede. Ele tinha de con­ hecer a textura, mais importante porém, estava apontando o elemento de arbi­ trariedade, heterogeneidade, que não conseguiria erradicar, e fez disto seu começo. Em cada um de seus trabalhos, diferentemente cada vez, somos confrontados com o reconhecimento do limite onde o projeto modernista de motivação (de eliminação do arbitrário, de aniquilação da composição) cede. Isto leva na verdade a uma com­ pleta inversão de toda a idéia modernista: a preocupação de Ryman não é eliminar as convenções dispensáveis, como teria dito Greenberg, mas pelo contrário transfor­ má-las em operações pictóricas, começando novamente do zero a cada vez. Muitas vezes rotulei Ryman de o guardião da tumba do modernismo.(30) Se o modernismo era de fato um projeto de motivação, de expurgar da arte a arbitrariedade daquelas convenções não essenciais a ela, então Ryman é o último pintor modernista, no sen­ tido de que põe definitivamente um fim a esta tradição, ao manter sua chama acesa: a redução da arbitrariedade é um trabalho infinito. GÁVEA. 15 (15), julho 1997

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Notas ( 1 ) Alain-Robbe Grillet. "Nature, humanisme, tragédie (1958), em Pour un nou­ veau roman, 2° ed. (Paris: Gallimard, 1967), pág. 83. O texto de Barthes, entitulado "Não existe nenhuma escola Robbe-Grillet" ("There Is No Robbe-Grillet School"), data também de 1958; ele está re-editado em Critical Essays (Ensaios críticos), de Roland Barthes, trad. Richard Howard (Evanston: North-western University Press, 1972), págs. 91-95. Estou imitando Robbe-Grillet aqui ao escolher esta passagem do artigo de Barthes, como epígrafe para meu ensaio. ( 2 ) Robbe-Grillet, op. cit., págs. 83-84. ( 3 ) Ibid., pág. 58. ( 4 ) Ibid. pág. 65. ( 5 ) Ibid., pág. 66. ( 6 ) Ibid. ( 7 ) Citado em "A magia branca de Robert Ryman" ("Robert Ryman's White Magic", Art News 185, nu 6, (Verão de 1986), pág. 89. ( 8 ) Phyllis Tuchman, "Uma entrevista com Robert Ryman" ("An Interview With Robert Ryman"), Artforum 9, nu 5 (maio de 1971), págs. 46, 53. ( 9 ) Robert Storr, "Robert Ryman: Uma abordagem realista da pintura" ("Robert Ryman: Une approache réaliste de la peinture"), Art Press, n° 112 (Março de 1987), pág. 21. (10) Barbaralee Diamonstein, "Robert Ryman", em Inside New York Art's World (Nova York: Rizzoli, 1979), pág. 336. (11) Citado em "Robert Ryman, o gesto" ("Robert Ryman, Le Geste"), + - 0 Revue d’art contemporain, Novembro de 1974, págs. 10-11, re-editado em Macula, nu 3 /4 (1978), pág. 144. (12) Citado em Tuchman, op. cit., pág. 47. (13) Citado em Storr, op. cit., pág. 89. (14) Ibid. (15) Citado em Grimes, op. cit., pág. 20. (16) Ver, por exemplo, Donald Kuspit, "Ryman, Golub: Dois pintores, duas posições" ("Ryman, Golub: Two Painters, Two Positions"), Art In Ameria 67, n° 4 (JulhoAgosto de 1979), págs. 88-89. (17) Citado em Diamonstein, op. cit., pág. 337. (18) Robert Ryman e Gary Garreis, "Uma discussão técnica das novas pinturas ("Technical Discussion of New Paintings"), em Robert Ryan (Nova York: Dia Art Foundation, 1988), pág. 20. (19) Para as idéias de Greenberg sobre a "relativa indiferença ao processo material de elaboração do trabalho e seu relacionamento com a noção de "opticalidade", ver o artigo de Jean Clay sobre Ryman, "A pintura EN CHARPIE" (La peinture en charpie"), Macula, n° 3 / 4 (1978), págs. 171-172. (20) Jean-Paul Sartre, L’imaginaire (O imaginário) (Paris: Gallimard, 1940), pág. 240. (21) Citado em Daniel-Henry Kahnweiler, My Galleries and Painters, conversas com Francis Crémieux, trad, de Helen Weaver (Nova York: Viking Press, 1971), pág. 59. Para uma explicação do ostranenie (assim com o de outras noções tomadas aos formalistas russos) no Cubismo de Picasso, ver Yve-Alain Bois, "Cubism's Semiology", em Picasso and Braque: Pioneering Cubism, vol. 2 (Nova York: Museum of Modem Art, a sair em breve). (22) Citado em Diamostein, op. cit., pág. 334. (23) Ryman e Garreis, op. cit., pág. 30. (24) Citado em Diamonstein, op. cit., pág. 333. (25) Citado em Achille Bonito Oliva, "Interview With Robert Ryman", Domus, n° 519 (fevereiro de 1973), pág. 49.

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(26) Para reproduções destes três trabalhos de 1961, ver Robert Ryman (Zurich: Halle für Internationale Neue Kunst), págs. 37, 49 e 51. (27) Ver ibid., pág. 43. (28) Ver ibid., pág. 61. (29) Ver Bruce Glaser, "Questions to Stella and Judd" (1964), em Gregory Battcock, Minimal Art: A Critical Anthology (New York: Dutton), págs. 148*64, passim. (30) Ver Yve-Alain Bois, "Ryman’s Tact", October, n° 19 (invemo 1981), págs. 93-104, a ser re-editado numa antologia de meus ensaios sobre pintura, Painting as Model (Cambridge, Mass.: MIT Press, a sair no outono de 1990

Gostaria de agradecer a Melissa Brooks, Rosalind Krauss, Annette Michelson e Nancy Troy por revisarem este texto. Texto publicado no catálogo "Robert Ryman - New Paintings". April 6 - may 10,1990. The Pace Gallery, New York.

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Arquitetura Civil no Rio de Janeiro Setecentista ANNA MARIA F. MONTEIRO DE CARVALHO OPasseio Público e o Chafariz das Marrecas de Mestre Valentim SUELY DEGODOY WEISZ UmEstudo da Imaginária Setecentista Carioca VERAREGINA LEMOS FORMAN Dois Mestres Imaginários: Simão da Cunha e Pedro da Cunha CLAUDIAMORENODE PAOLI LlJIZ ANTONIOLOPES DE SOUZA Do Riode Janeiro no Século XVIII UmOlhar sobre a Arquitetura Religiosa MARIAMESQUITA Azulejaria Setecentista no Rio de Janeiro HeLOISAMAGALHÃES DUNCAN ATalha Religiosa da Igreja do Mosteiro de São Bento JJARia EDUARDACASTRO MAGALHÃES MARQUES EHa BEATRIZCORDEIROSIQUEIRA A História da Construção da Capital

MA ;arbth da silva pereira iitetura Brasileira e o Mito ILEytfvIAPÄADILLACERÓN stagneto: OJogo do Ambíguo TITOMARQUES PALMEIRO A Estética de Kant ROBERTOCONDURU "OPaís Inventado" de Antonio Dias GERDA. BORNHEIM Introdução à Leitura de Winckelmann NOEMI SILVARIBEIRO AObra Gráfica de Goeldi OEsboço de uma Cronologia BERNARD BLISTÈNE Fontana: OHeliotrópio Contemporâneo ENTREVISTA AnselmKiefer - Pintar como Feito Heróico LOOSÓRIODE ALMEIDA 'a Romântica e Joseph Beuys A FABRIS ábola do Semeador JOÃOMASAOKAMITA Mira Schendel: ODesafio do Visível CECÍLIA COTRIMMARTINS DE MELLO Goeldi e Iberê: Romantismo e Atualidade DAVIDCURY Reverso Ser noContemporâneo (arte conceituai, body art, land art) LUIZ COSTA LIMA OControle do Imaginário e a Literatura Comparada ELIANNE ANDRÉA CANETTIJOBIM ORisco e o Olhar: Sobre a Imagemda Cidade do Rio de Janeiro ALAN COLQUHOUN Racionalismo: UmConceito Filosófico na Arquitetura


}RIT<3 |>omc o brasileiro ICY ^d^Kssis, umIntempestivo JORGE CZAJKOWSKI A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira CARLOS ZILIO OCentro na Margem ANNA MARIA FAUSTOMONTEIRO DE CARVALHO A Madeira como Arte e Fato ANTONIO EDMILSON MARTINS RODRIGUES OAto de Descobrir ou a Fundação de um "Novo Mundo" JOSÉ THOMAZ BRUM Arte e Ascese emSchopenhauer HUBERT DAMISCH A Astúcia do Quadro É _« CARIVÛÍNMA OIívesso ( i Coisas amâtI DIOM JEL DOS SANTOS pticos de Leandro Joaquim na Pintura do Rio de Janeiro Setecentista ICLÉIA BORSA CATTANI As Representações do Lugar na Pintura Moderna Brasileira: as Obras de Tarsila do Amaral e Ismael Nery MARISA FLÓRIDOCESAR OTranstorno da Matéria no Maneirismo CARLOS EDUARDO DIAS COMAS Teoria Acadêmica, Arquitetura Moderna, Corolário Brasileiro JOSÉ ANTONIO B. FERNANDES DIAS Algumas Considerações Antropológicas sobre o Ensino Artístico STÉPHANE HUCHET Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger

MARIA FERNANDA TERRA MALUF O Universalismo Construtivo de Joaquin Torres-Garda RUTH NINA VIEIRA FERREIRA LEVY Três Mestres na Igreja da Ordem3* do Carmo do Rio de Janeiro - Ênfase no Altar-Mor RICARDO ANDRADE Arte e Ascese emCaspar David Friedrich NATHALIA C. DE SÁ CAVALCANTE A Poética Intimista de Antonio Bandeira KENNETH FRAMPTON Rappel a L'Ordre: Em Defesa da Tectônica GLÓRIA FERREIRA Greenberg, umCrítico na História da Arte Entrevista comJean-Pierre Criqui YVE - ALAIN BOIS As Emendas de Greenberg

?IAS LESSA ie Design JM Palavras para a Imagem RAQUEL QUINET PIFANO Rococó: a Expressão do Instante SONIA GOMES PEREIRA Espaço - Uma Categoria a ser Repensada nos Estudos Urbanos sobre o Rio de Janeiro HELIANA ANGOTTI SALGUEIRO Augustin Rey - UmArquiteto "Beaux-Arts" naCruzada do Urbanismo Moderno ANTHONY VIDLER Pós-Urbanismo CLAIRE BRUNET E GILLES A. TIBERCHIEN Entrevista com Rosalind Krauss

iDArtdJCH 5an»mento da Imagem ÜEDljpLSON MARTINS RODRIGUES nhos-Wkiascentistas: Cidades Ideais e Cidades Utópicas FRANZ WEISSMANN Entrevista CHRISTINA BACH O Lugar Beuys FERNANDA JUNQUEIRA Sobre o Conceito de Instalação CESARE BRANDI Morandi


O C u rso de E specialização em História da A rte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia U n iversid ad e Católica d o R io de Janeiro, em nível d e pós-graduação lato sensu, foi form ad o há 16 anos. O C u rso se inscreve em uma visã o da História da Arte e da A rquitetura com o um processo de ru p tu ras, o que implica um a relação entre a produção da arte e a tram a global da cultura brasileira. A proposta d o curso objetiva não apenas d esen vo lver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira aprendidas em seu contexto universal, m as insiste na form ação d e um a visão am pla do cam po cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa d e arte são encam inhados juntam ente com outras áreas de conhecim ento, favorecendo um a form ação interdisciplinar.

C oordenador A cadêm ico Jo ã o M asao Kam ita Professores

A n n a M aria M onteiro d e C arvalh o A ntonio Edm ilson M . R odrigu es Fernando Cocchiarale Jo ã o M asao Kam ita Jo sé Thom az Brum Roberto C onduru R onaldo Brito Sheila Cabo G eraldo


A BSTRACTS

th e ir character and go beyond th e lim its set by M o dernism .

THE P IC TO R IA L OBJECT A TR IB U TE TO PIERRE SOULA G ES

M o d e r n ity M o d e rn A rc h ite c tu re U rb a n M o d e rn is a tio n

Pierre Soulages's abstract paint­ ings reveal a singular m ixture of intense expression and austerity. In the ir asceticism , his pictures look quite at ease bearing the contrast o f o n ly tw o or three colours. N owadays he added variations as he opposes black to black, brin ging about enigm atic signs tha t im press us w ith the idea of sim ulta neity and suggest a suspension o f tim e. P ierre S oulages A b s tra c t P a in tin g E nig m atic Sign

RUBEN N A VA R R A A N A RT C R ITIC IN RIO DE JA N EIR O IN TH E 1 9 4 0 'S A rt criticism plays an im portant role in the form a tio n of a com ­ prehensive v ie w on art as a whole. It is essential fo r the understanding o f Brazilian art history, as w e ll as the caals, w hich are m odern in their char­ acter and go beyond the lim its set by M odernism . Ruben N avarra A rt C riticis m M o dernism

PLURAL M O D E R N IT Y The article proposes a conceptu­ al distinction am ong the d iffe r­ ent notions o f m o dern ity that are part o f th e a rchitectu ral and urban debate: on the one hand, the idea o f urban and industrial m odernity as a by-product of m odern c a p ita lis m and mass societies, and on the other, the idea o f a rc h ite c tu ra l-a rtis tic m odernity as a reference to a cultural p ro d u ctio n that seeks a ffirm a tio n o f the m odern. Based on that, one can try to explain the links between archi­ tectural m o dern ity and the m od­ ernist paradigm , and between urban m o dern ity and the m od­ ernisation process, pointing out the presence fl in the latter's area o f influence fl o f others kinds of proposals, w hich are modern in

U N D E R C L IO 'S IN S P IR A ­ T IO N : H IS T O R IC IS M IN TH E W O R K S O F M O R A L ES DE LO S R IO S The presence o f H istory as a d is ­ c ip lin e ab le to set the past in o rd e r and, thus, make possible th e c o n s titu tio n o f a fu tu re p ro ­ je c t g u id e s the activities de ve l­ oped by A d o lfo M orales de Los Rios. In his career both d iscu r­ sive and architectural p ro d u ctio n fin d th e m s e lv e s o rg a n ic a lly related by the place occupied by h is to rio g ra p h ic a l practice, p o in t­ ing o u t to a reflection tha t estab­ lishes the close relation betw een his to ric a l and architectural nar­ rative in the late nineteenth-cen­ tu ry and e a rly tw en tieth. A d o lfo M o ra le s de Los Rios A rc h ite c tu ra l E clec ticism H is to ric is m

F U N C T IO N A L IS M T O D A Y From th e c ritic is m d ire c te d to w a rd s o rn a m e n t m ade by A d o lf Loos, A d o rn o discusses th e n o tio n o f fu n c tio n a lity . A c c o rd in g to him , fu n ctio n a l is the a ttrib u te o f the m o dern w o rk (w ith o r w ith o u t inte ntion), since o n ly the w o rk itself is supposed to q u e s tio n w h a t is essential and s u p e rflu o u s to its ow n c o n s titu ­ tio n . B ut th e difference betw een w h a t is essential and su p e rflu ­ ous is in trin s ic to the w ork, and it is n o t d e fined by its re la tion to th a t w h ic h is external. Thus the issue o f fu n c tio n a lity can not be m e re ly treated as a m a tter o f practical fu n c tio n .

an sw e r philo soph ica lly the ques­ tio n o f A rt's autonom y, th a t is, its independence fro m Logic and A esthe ticism , fin d in g a solutio n to the problem o f the nature of th e a rtistic fact. It w as Croce w h o gave A estheticism the first rig o ro u s ly system atic Unitarian synthesis, developed as a part o f h is P h ilo so p h y o f th e S p irit. C roce's an th ro p o lo g ica lly o rie n t­ ed A e sth e ticism d e tects art, p o e try and exp ression in the instance o f poetical cog n itio n , th e idea l to p o s called Pure In tu itio n . B e n e d e tto C ro ce C o n te m p o ra ry A e s th e tic is m a n d H is to rio g ra p h y A r t - In tu itio n

A N IN TE R V IE W W ITH RO B ERT R Y M A N In te rv ie w g iven to Urs R a u ssm u lle r in R ym an's New York stu d io on 4th June 1992, in w h ic h general p a in ting issues and Rym an's w ork pa rticularly are approached. They also deal w ith the relations between his w o rk s and th o se o f M atisse, M o n d ria n and Barnett New m an. R o b e rt R ym an P a in tin g C o n te m p o ra ry A rt.

RO B ERT R Y M A N - NEW P A IN T IN G S

B E N E D E TT O C R O C E'S A E S ­ T H E T IC IS M

R o b e rt R ym an 's w o rk is not based on a process o f exclusion, as m a n y people say, w hose u lti­ m ate aim is to reach the essence o f p a in tin g . It is a w ork tha t tries to sh e lte r everything in the p icto ­ rial fie ld , since nothing is dis­ pensable in th is process. Hence th e p re occup ation w ith m in o r b u t m e a n in g fu l d iffe re n tia tio n , th e reason fo r includ ing such 's im p le sm all th in g s' that are not u su a lly taken in to account. This sense o f openness and a va ila bil­ ity o n ly vanishes in the face of th a t w h ich na tura lly negates it. In th is case the subm ission of p a in tin g to m y th , im age and tra ged y.

Benedetto Croce's Aestheticism is the result of a long speculative way of thinking that seeks to

R o b e rt R ym an P a in tin g C o n te m p o ra ry A rt.

M o d e rn A rc h ite c tu re F u n c tio n a lis m A d o lf Loos


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GÁVEA R e v i s t a de H i s t ó r i a da Ar t e e A r q u i t e t u r a

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