Revista Gávea - 12ª Edição

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Rio de Janeiro, Vol. 12. nV 12, Dezembro de 1994

P in ta r = Queimar LEILA I )A \ / I( 11 K

A Q u e s tã o da Morte e sua Representação na Arte W AÍ I I K I AA\1 I II I JO

O Universalismo Construtivo de Joaquin Torres-García MAKI \ I I K\ W D A TERRA MALUF

Três Mestres na Igreja da Ordem 3” do Carmo do Rio de Janeiro - Ênfase no Altar-Mor RUT I I \T\ A \ Il IRA FERREIRA LEVY

A rte e Ascese em Caspar David Friedrich RICA KI ) 0 W D K A D I

A P o e tica Intimista de Antonio Bandeira NAT I I AI I AC

DI SA C A VA LCA N TE

R appel a L'Ordre: Em Defesa da Tectônica KEN NI II I I KAMI’ I ON

G re e n b e rg , um Crítico na História da Arte E n tre v is ta com Jean-Pierre Criqui GLÓ RIA I I RRI IRA

As Emendas de Greenberg

YVES-A LAIN BOIS


Editor Responsável Carlos Zilio Editor Adjunto Anna Maria Monteiro de Carvalho

Projeto Gráfico PVDI DESIGN Nair de Paula Soares

Editor Assistente Vanda Mangia Klabin

Desenvolvimento Gráfico/Diagramação PVDI DESIGN Christiane Kemper

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Apoio Program a de A p o io a Publicações C ientíficas SCT/PR

{§ ) C N P q

Conselho Consultivo Eduardo Jardim de Moraes Katia Muricy Margarida de Souza Neves Ricardo Benzaquem de Araújo

HJ F IN E P J

GAVEA: Revista de História de Arte e Arquitetura Vol. 1, n? 1 (1984) - Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História. Semestral Texto em português, inglês, francês e espanhol ISSN 0103 -1996 U Afte - Historia - Brasil. 2. Arquitetura História - Brasil. I. CDD-709.81


P in ta r = Q ueim ar LEILA DAN ZIGER 224

A Q uestão da M o rte e sua Representação na A rte W ALTER TA A M FILHO 242

O U niversalism o C o n stru tivo de Joaquin Torres-García M A RIA FERNANDA TERRA MALUF 260

Três M estres na Igreja da O rdem 3® do C arm o do Rio de Ja neiro - Ênfase no A lta r-M o r RUTH NINA V IEIRA FERREIRA LEVY 270

A rte e Ascese em Caspar David Friedrich RICA RD O ANDRADE 288

A Poética Intim ista de A n to n io Bandeira NATHALIA C. DE SÁ CAVALCANTE 296

Rappel a l'O rdre : Em Defesa da Tectônica KENNETH FRA M PTO N 306

G reenberg, um C rítico na H istória da A rte E ntrevista com Jean-P ierre C riqui GLO RIA FERREIRA 320

A s Em endas de Greenberg YVES-ALAIN B O IS 336



"Pintar = Q ueim ar" Aceito para publicação em maio de 1994. O artigo destaca o "vir-a-ser" como movimento cons­ tituinte na obra de Anselm Kiefer. Em sua trajetória, a reflexão sobre o conceito de arte é indissociável do questionamento da germanidade. Sua particular re­ lação com a História — estrutural em sua obra — e as afinidades e divergências com Joseph Beuys são algumas das questões abordadas. Anselm Kiefer A rte Contemporânea Pintura

LEILA D A N Z IG ER Artista plástica. Graduada pelo Institut d'Arts Visuels d'Orléans (França), formada pelo Curso de Especia­ lização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil (PUC/RIO) e aluna do Programa de Mestrado em História Social da Cultura (PUC/RIO).

Na obra de Anselm Kiefer, uma única afirmação não é contrabalança­ da por sinal contrário: a crença na pintura. O artista reinveste positivamente no fazer pictórico, embora seu gesto seja animado por um paradoxo: é simultaneamente identificado aos atos de construir e destruir. Na série de livros “C auterização do distrito rural de Buchen" (1975), as fotografias do campo queimado pouco a pouco cedem lugar à pintura negra e saturada, à superfície efetivamente queimada e esté­ ril. O perigo anunciado pela tocha, em " H om em na floresta", tela de 1971, perde assim sua dimensão meramente simbólica e concretiza-se no “real" estético. Ação, pintura e instalação são modalidades entre as quais Kiefer de­ clara não fazer distinções. Mas em "Zweistrowland" — a biblioteca de livros de chum­ bo e nos aviões (“M ohn und Gedächtnis"), o aspecto pictórico predomina; parecenos possível afirmar que sua obra é informada essencialmente pela pintura. Se os trabalhos iniciais possuem indiscutível caráter conceituai, o progressivo envolvimento com a atividade pictórica não significará o abandono da dimensão auto-reflexiva da arte. O pintor não evita as “p ro v o ca çõ es da retina" e afirma: “Meus quadros sã o totalm ente com preen síveis pelos sentidos. (...) Mas som ente a experiência dos sentidos é algo m uito d esbotad o. Procuro a integridade"M l Em suas imensas telas, Kiefer demonstra a consciência que percorre inexoravelmente a arte contemporâ­ nea: o pensamento plástico é indissociável de sua inteligência conceituai. Negar à arte sua irônica e corrosiva capacidade auto-crítica implicaria cegá-la e emudecêGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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P in ta r= Queimar

la, condená-la ao isolamento e à obsolescência. O trabalho plástico realiza-se pelo estabelecimento de conexões — renovado, desesperado, mas também

hum orado

esforço de produzir sentido —; seus atos partem da consciência de que a Totalidade está irremediavelmente perdida. Tam pouco a subjetividade "g en ial" do artista seria capaz de reanimar o cosmos esfacelado com o parecia possível ao Romantismo. O artista distancia-se, há descontinuidade entre ele e a matéria pictórica: seu modo de ação será estratégico ou não será. Assumidamente impura, a pintura de Kiefer não reflete apenas sobre a condição da arte e do artista. Sua tela assemelha-se a um campo magnético cuja força de atração é a História — compreendida de forma simultânea e não linear. A simultaneidade seria exatamente a tentativa para revelar a possível atualidade dos muitos nexos do passado, e não a vontade de neutralizá-lo. O entrelaçamento de momentos históricos a evidenciar tensões, reviravoltas e potentes relações sub­ terrâneas materializa-se em muitas de suas obras. A epopéia de Gilgamesch, a caba­ la e lendas germânicas associam-se a episódios da história recente numa verdadeira purgação da identidade alemã, talvez o ponto nevrálgico de toda a cultura ociden­ tal. Seria demasiado simplista culpar Hitler por todos os desastres da história recen­ te. O desejo de Kiefer é sondar, numa perspectiva já anunciada por Joseph Beuys, o subterrâneo da cultura alemã, reencontrar as forças obscuras que convergiram para a explosão da barbárie. O artista partilha com Beuys, também com Heinrich Heine, Thomas Mann, Paul Celan e outros, o sentimento de amor e ódio ("Hasslie­ b e ) em relação à cultura na qual, problematicamente, se insere.

Anselm Kiefer Página de "O cupações", 1969 Fotografia e texto datilografado

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"Cauterização do distrito rural de Buchen" Fotografias 64 x 45 x 3 cm, 210 páginas Coleção Particular

Beuys e Kiefer A m ortizam a culpa: seu sop ro d e origem , pagam e pagam , a uma palavra, que existe, ilegítima, com o o verão. Uma p alav ra um ca d á v er

tu sabes:

V am os lavá-lo, Vam os p en teá-lo, V am os virar seu o lh o para os céus.

Paul Celanté) Nascer na Alemanha, no início dos anos 20, assinala uma predestina­ ção à guerra. E quase impossível escapar ao jugo das organizações de jovens hitleristas que, desde 1928, começam a surgir e que, em 1936, impõem a adesão obriga­ tória sob a forma de lei. Considerando-se uma comunidade educativa para a qual devem convergir todos os jovens alemães (obviamente arianos), a "Hitlerjugend" pretende promover o soldado de uma idéia. Do jovem hitlerista é esperada uma ade­ são total aos ideais nacionais-socialistas e uma crença incondicional no império que deveria durar mil anos. Em "D outor Fausto", Thomas Mann descreve, pela voz de Serenus Zeitblom, seus sentimentos ambíguos em relação à iminente derrota alemã — ardentemente desejada e temida. Ao comentar sobre o destino de seus filhos, o narrador se refere à geração de alemães à qual pertence igualmente Joseph Beuys e fala sobre suas crenças e alegrias insanas — o "son ho abjeto" por eles comparti­ lhado e, em seguida, suas desilusões, o abismo e a profunda decadência moral a GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Pintar = Q ueim ar

que se vêem condenados. A Beuys, ex-membro da "Hitlerjugend", ex-oficial da “Luftw affe" , ferido de guerra e curado pela medicina primitiva dos tártaros, caberá en­ carnar o artista europeu do pós-guerra — derrotado, cindido, doente — e buscar, pela aceitação crítica da barbárie, curar o mal pelo mal. Paul Celan, poeta judeu de língua alemã, nascido numa remota locali­ dade do império austro-húngaro, faz parte da mesma geração de Beuys. Ao recusar uma oposição sumária entre vítima e carrasco, somos levados a reconhecer que am­ bos foram atingidos pela dor dilacerante originada no mesmo acontecimento. Diante da experiência da guerra, o quase silêncio parece a única possibilidade. A morte tudo envolve, tudo contamina; ambas as obras realizam-se no embate com sua for­ ça dissolvente. Celan mantém-se obstinada e problematicamente fiel à "língua on de se pronunciou Auschwitz"^-, Beuys explora as forças subterrâneas que fertilizam a cultura alemã, expõe seu verso e reverso: a alta espiritualidade e a barbárie. A obra de Beuys — e toda a cultura européia do pós-guerra — deve fazer face à célebre, tão mal compreendida e terrivelmente banalizada questão de Adorno: é ainda possível a poesia após Auschwitz? Quais serão as condições de possibilidade do fazer artístico numa sociedade que produz, ou no mínimo aceita, a exterminação metódica e a bomba atômica? I

Joseph Beuys “ A M orte e a G arota", 1957 Tinta diluída sobre envelope, com a inscrição "A u s c h w itz " 1/,o x 25,2 cm

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Para o pensador alemão, a mortandade ocorrida durante a segunda grande guerra seria apenas o entreato e não a própria catástrofe. O aforismo 33 de Mínima Moralia formula a tenebrosa dúvida: a quantidade de vítimas de guerra não converte-se-ia numa nova qualidade de sociedade? Como a vida poderia pros­ seguir após a guerra senão como vida danificada, mutilada? Nos mínimos gestos da vida moderna, nos objetos do quotidiano, mesmo nas pequenas alegrias inscrevese o signo daquilo que é contrário à vida. "A liberdade contraiu-se na pura negatividade". "N ão há vid a correta na falsa". "N orm al é a morte". Eis algumas das sen­ tenças que caracterizam, para Adorno, a retomada da vida no pós-guerra — mar­ cada pela implacável consciência da negatividade. Como a arte poderá subsistir em um meio tão sombrio, onde a idéia de humanidade que permitiu sua autonomia encontra-se profundamente abalada, prestes a dissolver-se? Se a autonomia da arte é um fato incontestável, se o gesto de Duchamp — introduzir um objeto industriali­ zado no circuito oficial de arte — só é viável no contexto dessa irrevogável autono­ mia, seu lugar no mundo torna-se cada vez mais incerto. Apenas assemelhando-se ao sombrio, confrontando-se de forma quase suicida à violência e a morte, a arte poderá subsistir. Como diz Adorno, as obras de arte, ao realizarem um mundo com es­ sência própria, distinto e oposto ao mundo empírico como uma outra realidade, tendem para a afirmação, mas de maneira trágica. " Perante aquilo em que se torna a realidade, a essên cia afirm ativa da arte, esta essência inelutável, tornou-se insu­ portável. D eve v oltar-se contra o que constitui o seu próprio conceito e torna-se, p o r conseguinte, incerta até o mais íntimo d e sua textura" Em entrevista já ao final de sua vida, Beuys declara, em termos que encontrariam talvez certa ressonância no pensamento de Adorno, que o ser huma­ no, ignorando aquilo quer lhe é essencial, já estaria morto, e pior, contente com o fato. A proximidade da morte seria vista como a experiência fundamental à qual Beuys retorna e sempre se referencia. A permanente luta com a morte constituiria a essência da natureza humana. Beuys concorda com Nietzsche quando este afirma: "O ser hum ano é o ser d oen te" .<5>A arte, liberando as forças inerentes à decompo­ sição, deteria propriedades terapêuticas capazes de regenerar a matéria, restituir sua vitalidade, provocar um renascimento. A obra de Beuys visa basicamente agir no mundo, reformulá-lo, purificá-lo, conectando todas as esferas da atividade humana, todas as dimensões da existência. "Eu tento realizar configurações no espaço social"(6>, afirmou o ar­ tista. O próprio conceito de obra torna-se extremamente problemático. Precária e dispersa, sua obra viveria da própria dissolução — esta sua grande qualidade, esta sua eventual fraqueza. Tornou-se um truísmo o romantismo de Beuys. Com os românticos, GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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a arte, e mais especificamente a poesia, tem a tarefa de educar a Humanidade. A força estética é a força criadora — o ato supremo da razão é um ato estético*?1. Pa­ ra Beuys, a arte possui igualmente a função de dar forma à sociedade. Na tentativa de criar um conceito ampliado de arte, ele formula a idéia de

Escultura Social ,

definida como a forma pela qual modelamos o mundo em que vivemos. Ações, pen­ samentos, objetos, materiais visíveis e invisíveis relacionam-se num fluxo contínuo de transformações. O bjetos e materiais funcionam como estimuladores, catalizado­ res de energia. Depois de utilizados em performances — acontecimentos rituais — são muitas vezes dispostos em vitrines que revelam a calculada dispersão de seu tra­ balho. A conjugação do disforme e do simétrico, o enquadramento de materiais pre­ cários e o planejamento de suas performances nos levam a duvidar do caráter es­ pontâneo, ou predominantemente irracional, de seu processo de formalização. Há um reenvio incessante entre as diferentes intervenções, objetos e desenhos — im­ pregnados de forte carga simbólica — que, estreitamente relacionados, estabelecem um diálogo contínuo. As mesmas operações são constantemente refeitas (recobrir, empilhar, dispor, relacionar) e oscilam entre os pólos negativos e positivo — morte e ressureição. No catálogo da exposição "H om en agem a Beuys", realizada em Muni­ que em 1986, ano da morte do artista, Armin Zweite ressaltou as diferenças entre Beuys e a geração que lhe sucedeu. Apesar das admirações suscitadas, as divergên­ cias entre Beuys e os artistas mais jovens aparecem em alguns depoimentos, como num trecho da discussão entre Beuys, Kiefer, Janis Kounellis e Enzo Cucchi*8>. A catedral se constituiria, de forma consensual, o símbolo das forças criadoras, mas faltaria, segundo Armin Zweite, um ponto de partida básico compartilhado pelos três artistas. O conceito expandido de arte — o projeto de remodelar todo o orga­ nismo social privilegiando o ato estético — não parece ter encontrado seguidores, mesmo entre os seus alunos, tão diferentes entre si como Immendorf, Immi Knoebel e Anselm Kiefer. Beuys permaneceria, segundo Armin Zweite, apegado a ideais utó­ picos da modernidade, enquanto Kounellis e K iefer — a p osição d e C ucchi distinguese com m enos clareza

parecem há m u ito tem p o ter p erd id o a c o n v ic çã o de p od er

dar, com a arte, um a con tribu ição p a ra a A u fk lä ru n g ".W Apesar das divergências básicas entre Beuys e seus sucessores, seria impossível compreender a arte realizada na Alemanha a partir dos anos 60 sem to­ mar em conta sua polêmica presença. Kiefer não compartilha, é certo, a visão de Beuys que tem no ser humano o centro de todas as preocupações. Conserva-se pró­ ximo, no entanto, pela insistência em confrontar-se igualmente ao elemento obscu­ ro e recalcado

o mito

rechaçado na modernidade mas atuante de forma sub­

terrânea. "O sem elhan te se cura p elo sem elh an te'W , máxima da medicina homeo­ pática transformada em estratégia artística por Beuys (leia-se curar o mal pelo mal), 230

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LEILA DANZIGER

segue uma atitude igualmente importante para o desenvolvimento da obra de Kie­ fer: o perigo iminente da destruição ou a própria catástrofe são ás únicas fontes de renovação. Tanto quanto Beuys, Kiefer emprega materiais que, além da forte carga simbólica, agem concretamente no "real" estético. Plantas secas, areia, pa­ lha, cabelos e principalmente chumbo são materiais recorrentes. O chumbo é pri­ vilegiado por sua ambivalência. Extremamente pesado, é também maleável, fundindo-se a uma temperatura relativamente baixa. A importância do chumbo na obra de Kiefer — substância dedicada pelos alquimistas a Saturno e associa­ da à melancolia — talvez possa ser comparada aquela do feltro com Beuys, que utiliza igualmente chapas de raio-X, curativos, ossos, sangue, cabelos e animais mortos. Se tais materiais apontam para práticas arcaicas, não pretendem con­ tudo reatualizá-las: devem ser compreendidas como agentes estimuladores de no­ vos estados de consciência. O seu caráter repulsivo e disforme, a proximidade da dor e da doença visam a cura, aspiram ao sentido pleno da existência humana que parece sempre escapar ao sujeito cindido da modernidade. A poética de Beuys extrai sua força da experiência da guerra (inicialmente como invasor, em segui­ da como derrotado), mas nos expõe a algo muito anterior à barbárie recente — ou seja, o presente, tecnicista e asséptico, permanece ligado a forças obscuras, sinistras e irracionais. Ao contrário de Beuys, cujo pensamento plástico busca realizar-se di­ retamente no espaço social, desvinculando-se do atelier e dissolvendo a idéia de "obra", Kiefer retoma a disciplina pictórica e revaloriza o atelier, transformando-o numa referência recorrente em seus livros e pinturas. As estratégias desenvolvidas pelos dois artistas são consideravelmente distintas; suas poéticas contudo surgem do confronto com a mesma perplexidade, a mesma dor e o mesmo luto, embora em graus diferentes. A geração de Beuys pode, de fato, ser responsabilizada por seus atos durante a guerra; a de Kiefer deve conviver inelutavelmente com o ocorri­ do. De modo compulsivo, ele deseja apropriar-se da identidade germânica, construindo-a e desconstruindo-a simultaneamente. "O que é a lem ã o ?" ("VJas ist deutschV ), questão obsessiva, repetida em cada obra. A exploração de sua identi­ dade, ou de forma mais distanciada, da germanidade, confunde-se à própria deci­ são de ser artista. Segundo G.C. Argan, o fazer artístico possui, acima da exatidão técnica, uma exatidão moral: seu movimento é aquele do "vir-a-ser" . O progressi­ vo envolvimento com a disciplina pictórica é, para Kiefer, inseparável da apropria­ ção da história; é preciso iluminá-la, reconstruí-la, lhe conferir sentido. Identificamos facilmente um conceito de história materializado nas obras de Kiefer, fundado sobre a simultaneidade e a assimilação do elemento míti­ co. O singular é o fato do artista buscar efetivamente reviver a história, transpô-la GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Pintar = Queimar

diretamente para a sua vida. As obras do final dos anos 60 indicam o esforço para compreender o ponto de vista do nazista. Explorar o caráter do mal. encarnando o criminoso, será o ponto de partida. O artista afirmou: "Eu n ã o m e identifico com H itler ou N ero, m as d e v o fa z er p a rte d o ca m in h o q u e fo i o d eles p a ra com preender essa insanidade. É p o r isso qu e fa ç o essa fa lsa ten tativa d e se r um nazista" MD “ Ocupações" "A n selm K iefer. Entre o v e r ã o e o o u to n o d e 1969. eu ocu p ei a Suíça, a França e a Itália. A lgu m as fo to g ra fia s" . Este é o título de um dos primeiros traba­ lhos de Kiefer, um livro contendo fotografias e breves frases datilografadas, conhe­ cido apenas por "O cu pações" ("B esetzu n g en "). Ocupar no caso significa, em cada praça ou monumento escolhido, repetir o gesto daqueles que, há apenas trinta anos, tentavam efetivamente ocupar o mundo. Nas fotos, um homem jovem levanta o braço direito na inconfundível saudação hitlerista. Enquadrada de forma simétrica, usando botas e calças militares, sua figura, às vezes minúscula, estabelece diferen­ tes relações com as paisagens, praças e monumentos ao redor, em face do coliseu em ruínas, o "invasor" mostra o quanto os símbolos do poder podem tornar-se irri­ sórios ou mesmo ridículos. E o que acontece quando a saudação é realizada no atelier do artista, na banheira, onde Kiefer dá a impressão de andar sobre a água. No entanto, o ambiente contradiz a solenidade do gesto, e o ridiculariza. De costas para o espectador e saudando de forma grandiloqüente o mar, Kiefer traz à lembrança o " A n darilho s o b r e um m ar d e neblinas" {"Wanderer iiber dem N ebelsee") de Caspar David Friedrich. O que era melancólico triunfo em Friedrich, transforma-se em imagem da prepotência graças à rigidez da postura de Kiefer. O A n d arilh o" , de Friedrich, vestindo uniforme do destacamento militar a serviço de Friedrich Wilhelm III, ergue-se em face a uma paisagem irreal e fragmen­ tada, cuja unidade é conferida apenas pela figura do soldado, com a qual o especta­ dor é levado a se identificar. A imagem do Romantismo alemão se endureceu na figura do nazista encarnado por Kiefer; o ideal iluminista de racionalidade cristalizouse, emancipou-se dos ideais humanistas, virou-se contra o próprio homem e colocouse a serviço do poder ensandecido. O cu p a çõ es foi, sintom aticam ente, realizada no mesmo ano em que Joseph Kosuth publicava o manifesto "A rte d e p o is da filo s o fia ", onde afirmava que à arte cabe unicamente a tarefa de refletir sobre o seu próprio conceito, ou seja, a arte e uma tautologia. Para o americano, nascido como Kiefer em 1945, as propo­ sições artísticas exprimem unicamente definições de arte ou as conseqüências for­ mais dessas definições. Kiefer se interessa igualmente em repensar o conceito de ar­ te, mas o faz questionando simultaneamente sua trágica herança. Sua trajetória re­ sume o esforço para tornar-se artista e alem ão, esforço que visa redefinir essas iden232

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tidades. Tornar-se alemão não deve ser algo reacionário, incompatível com as pre­ missas das linguagens modernas que recusam afirmações nacionalistas, e sim, na perspectiva de Adorno ao final de seu texto "Sobre a pergunta: o que é alemão" — transição para a humanidade. Paisagem Sem medo de exagerar, constatamos que a floresta é um signo onipre­ sente no imaginário alemão: na pintura dos românticos e nos contos de fadas, de Hölderlin a Robert Musil. Em "Massa e Poder", Elias Canetti associa floresta e exército, que se apresenta para os alemães como "uma floresta em m archa". "Ne­ nhum outro país m od ern o teria guardado tão vivam ente quanto a A lem anha o sen­ timento da floresta. O paralelism o rígido das árvores erguidas, sua densidade e seu núm ero preenchem o co ra çã o do alem ão de uma profunda e m isteriosa alegria. Ele procura ainda h o je com prazer a floresta na qual viveram seus ancestrais e se sente unido com as árvores" M2> Em "G erm ania", primeira obra consagrada ao mundo alemão (século I d.c.), Tácito conta que ao germano só era permitida a entrada na floresta, consi­ derada sagrada, se amarrado por um laço, símbolo de sua dependência e testemu­ nho da potência da divindade. Se ele cai, não é permitido levantar-se. Deve rolar pela terra, afirmando assim que "ali é o berço da nação, ali reside o deus mestre d o m undo"S13) Em "H om em na floresta" (1971), o óleo é dotado de claridade rara en­ tre as obras de Kiefer, assemelhando-se à aquarela bastante utilizada no período. A natureza parece investida ainda de leve sentimento nostálgico, que desaparecerá por completo das obras posteriores, e, embora não aparente nenhum sinal de des­ truição, encontra-se ameaçada. Diante de um maciço e ordenado grupo de troncos de árvores, um ho­ mem ergue um galho em chamas; seu traje é alegórico, a postura solene. Seus traços fisionômicos, embora esquemáticos, assemelham-se aos do artista. A figura destaca-se por contornos nítidos enquanto a verticalidade da chama confunde-se à verticalida­ de das árvores. Três troncos à esquerda, no primeiro plano do quadro, sugerem um espaço semi-circular, aproximando-nos da cena. A qualidade auto-referencial da pintura, à primeira vista, afirmaria o caráter demiúrgico da atividade artística para Kiefer. O artista é aquele que orga­ niza a matéria, lida com a criação e a destruição. Sua ação, auto-reflexiva, é a única capaz de efetivamente dar sentido. "O artista estabelece conexões qu e ninguém p o ­ de produzir. Ele produ z sentido, fazendo algo sem sentido"S™) Recorrendo a Novalis, identificaríamos a chama de "Homem na flo ­ resta" ao destino da figura que a sustenta. Para o poeta alemão, a ação da chama GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Anselm Kiefer "P in ta r” , 1974 Óleo sobre tela, 118 x 2254 cm Coleção Família H. de Groot, Holanda

ao se consumir simboliza a transform ação do ser auto-satisfeito em ser que vive em liberdade. Alguém se torna livre apenas se consumindo para se libertar, "entregando-se a seu d estin o d e ch am a"

É impossível vencer o impasse do fo­

go, ora visto como destruição, ora com o criação. A simbologia da chama em No­ valis anuncia um movimento talvez similar ao do fazer artístico segundo Argan: um tipo de ação que, ao interrogar ininterruptamente o sentido do agir humano, realiza a liberdade.<16) Compreendemos assim as ações de Kiefer ao encarnar o na­ zista, simular catástrofes, minar suas pinturas com símbolos de destruição e utilizar materiais de onde toda a vida ausentou-se — areia, palha, flores e galhos secos. A terra queimada é um m otivo constante nas paisagens de 1974, onde inexistem quaisquer vestígios de idealização ou nostalgia. Kiefer enfatiza a degra­ dação, a esterilidade da natureza, ou mais precisamente, do solo alemão. Não há nenhum naturalism o em suas paisagens, nenhum conflito entre natureza e cultu­ ra. A terra queimada é densamente cultural. Em M a ik ä fer flieg" ("B esouro voa"), um verso infantih17* inscrito so­ bre a linha do horizonte situa a paisagem, ainda fumegante, na Pomerânia, região que pertencera à Alemanha e tornou-se parte da Polônia após a segunda grande gueria. Em outra série de obras do mesmo ano, os títulos "M ärkisch e Sand" e "Mär­ kisch e H eide

remetem à região de Brandenburg, carregada de associações ambí­

guas. de um nacionalismo ainda humanista, próprio do século XVIII, até as mani­ festações nazistas de apego ao solo. Em Pintar , uma paleta de pintura e o título "m alen" são associados a uma estranha chuva que parece "fertilizar" a paisagem e, ao mesmo tempo, GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994


LEILA DANZIGER

contrapor-se à profundidade da trilha que divide a tela. A presença da trilha indi­ ca ainda vestígios construtivos da ação do homem enquanto em "Pintar= Queimar", a destruição é total. A linha de horizonte situada no alto da tela, e um pequeno tronco de árvore no canto superior direito, são os únicos elementos que a caracteri­ zam como paisagem, circunscrita pelo contorno de uma imensa paleta que identifi­ ca a terra queimada (o solo alemão) à pintura. A utilização da fotografia por Kiefer em diversas séries de livros e pin­ turas reforça, paradoxalmente, o caráter não naturalista das paisagens. Manipula­ das e adensadas por materiais diversos, as fotos recusam-se terminantemente a se tornar imagens. A obra de Kiefer parece nos submeter a um tempo lento, denso, viscoso. A relação estabelecida entre os materiais é marcada pela resistência recí­ proca. Palha, tinta e tela ou fotos, areia e chumbo, entre outras combinações, estranham-se, rangem, travam conflitos nunca pacificados. Em "Nuretnberg" (1982), a ilusão de profundidade sugerida pelas li­ nhas de perspectiva é imediatamente negada pela presença contundente da palha, que confere à pintura caráter planar. Se escondermos o terço superior do quadro, toda sugestão de profundidade desaparece. A tela revela um descentramento radi­ cal como na pintura de Pollock. Mas a pronta associação diante de "Nuretnberg" é com Van Gogh, par­ ticularmente "C ham ps de blé aux C orbeaux". Nas paisagens de Kiefer os trigais de Van Gogh ressecaram irremediavelmente. Todavia o seu espaço dramático e ambí­ guo readquire especial atualidade. Meyer Schapiro, em sua bela análise de " Cham ps d e blé aux Corbeaux"^8K afirma que, diante da tela, o espectador se encontra desorientado. Ne­ nhum dos caminhos dá acesso ao imenso horizonte. O caminho central perde-se no trigal, os outros dois conduzem para fora dos limites do quadro, cuja horizonta­ lidade torna impossível uma completa visão da paisagem. Van Gogh inverte a pers­ pectiva utilizada em obras anteriores, nas quais o campo era representado por nu­ merosos sulcos que permitem ao espectador aceder ao longínquo. Em " Cham ps de blé aux C orbeaux", as linhas convergem do horizonte para o primeiro plano, como se o céu e o campo fossem de encontro ao espectador. Nas últimas obras de Van Gogh — "Champs de blé" foi realizado no ano de seu suicídio — o olhar do espectador encontra sempre um obstáculo que impede a amplitude, o que o aproximaria curiosamente de Caspar David Friedrich, especialista em criar barreiras visuais que conservam o olhar cativo do primeiro plano da pintura. Friedrich utilizou a perspectiva de forma bastante singular, raramente centrada em um ponto de vista único e sim organizada através de uma sucessão de sistemas. Arbustos, muros de pedra, portões de madeira ou a própria superfície da pintura — lisa — vítrea, capaz de refletir a luz — agem como barreiras dimenGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Anselm Kiefer "Pintar =Queimar", 1974 Óleo sobre tela, 220 x 300 cm Coleção Jerry e Emily Spiegel, New York

sionando a complexidade do ato de olhar.d9* A complexidade da paisagem desses dois artistas ou talvez, a impossi­ bilidade da paisagem revelada em suas obras, readquire particular senso de contemporaneidade na obra de Kiefer. Suas paisagens, verdadeiros palimpsestos, im­ pedem a visão panorâmica, e nos prendem irremediavelmente ao solo destruído. O pintor procede por acumulações, superposições de camadas aplicadas muitas ve­ zes com intervalos de anos. Seu aspecto volumoso — imensamente saturado — reatesta o impacto de evidência da pintura na modernidade. Ao contrário dos quadros de Caspar Friedrich, onde os personagens de costas, com os quais o observador se identifica, definem a escala da pintura a partir do interior, nas paisagens de Kiefer, as grandes dimensões, a ausência da fi­ gura humana e a apropriação de materiais estranhos envolvem por completo o es­ pectador. A escala da pintura é assim determinada do exterior, pela relação do es­ pectador ao quadro, não mais espaço de representações, algo separado da vida, e sim espaço existencial.<20> A perspectiva nas paisagens de Kiefer é excessivamente terrestre, espé­ cie de sobrevoo rasteiro que não leva a parte alguma. Embora o fogo, a água e o ar sejam elementos presentes, a terra detém o privilégio. A profundidade insinuada pelas linhas de perspectiva é simultaneamente negada pela desagregação e descontinuidade das superfícies. Encontramo-nos à deriva, imersos na terra, minada por signos que remetem à Alemanha. 236

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Anselm Kiefer "N u re m b e rg ", 1982 Acrílico, emulsão e palha sobre tela 280 x 380 cm Coleção Eli and Edythe Broad, Los Angeles

Religião e Teatralidade Em 1973, Kiefer realizou uma série de pinturas em que aparece o atelier do artista. Nestas obras, entre as quais se encontra a monumental e controverti­ da "Heróis Espirituais da A lem anha", o aspecto linear predomina. A madeira que constitui os ambientes parece ser "K iefernholtz" — pinho silvestre. As árvores que aparecem em pinturas como "Pai, Filho e Espírito Santo' e “Resurrexit" — pinturas ainda divididas entre os domínios externo e interno — são coníferas, família a qual pertencem "die K iefern" — os pinheiros. Segundo Donald Kuspit, a superioridade e a autenticidade germânicas fundam-se na pretensão de uma relação mais íntima com o "Ser" (compreendido como a natureza).(21) A madeira com o nome do artista atestaria a íntima ligação com a terra e a floresta. Se essa afirmação fosse apenas positiva resultariam perti­ nentes as acusações de uma arte nacionalista e retrógrada. O interesse dessas pintu­ ras encontra-se, porém, na iminente ameaça de destruição que nelas pairam, na dú­ vida e na negação que convivem com o caráter afirmativo. O atelier presente nestas obras é identificado, por Mark Rosenthal, à própria mente, filtro através do qual conceitos são ponderados, inventados ou trans­ formados. Ao mostrar seu atelier constituído pela madeira que remete a seu nome, Kiefer reforça o caráter auto-referencial de suas ações. A densidade do interior nessa série de pinturas, onde o espaço do ate­ lier parece sempre transformar-se em palco de rituais diversos, evoca as raras cenas GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Pintar = Queimar em que Caspar David Freidrich se esquiva à paisagem e mostra também seu atelier — espaço ascético e religioso, indevassável. Apesar da importância conferida à ja­ nela nessas imagens, o espaço interior se revela invariavelmente incomunicável com o domínio externo. A janela, em Caspar Friedrich, problematiza seu uso como me­ táfora da pintura desde Alberti e evidencia a difícil relação entre sujeito e mundo. Em "M u lher na jan ela", a figura de costas não impede a visão de uma imagem parcial, estreitada pela pequena janela, e sim a vista de fragmentos incon­ gruentes que tornam inútil todo o esforço humano em recom pô-los visando à Uni­ dade. A imagem se obstina a frustrar o olhar; "M ulher na ja n e la " é a própria nega­ ção do quadro. A ênfase recai na interioridade que parece correr o risco de fecharse em si mesma. A pintura poderia ser vista como um altar — a postura devocional da mulher em face a impossível paisagem se integra de forma perfeita à intimidade agreste do local. Na pintura de Friedrich, somos ainda capazes de nos identificar com a figura da mulher de costas e a frustração advém da paisagem

mais do que bar­

rada a paisagem é negada. O quadro, em pequeno form ato, está impregnado por um sentimento ainda humano, apesar da austeridade, parece dotado de uma leve umidade acolhedora. Nos ambientes fechados e sufocantes das pinturas de Kiefer, predomi­ na o caráter solene e monumental, em bora a solenidade seja simultaneamente saboAnselm Kiefer "H e ró is Espirituais da A le m a n h a ", 1973 Oleo e carvão sobre tela, 307 x 683 cm Coleção Bárbara e Eugene S chw arz, N ew York


LEILA DANZIGER

tada. Em "Heróis Espirituais da A lem anha", a amplitude (307 x 682 cm) e a organi­ zação em um ponto de vista central provocam a sensação de estarmos sendo aspira­ dos para dentro de seu vácuo. O espaço se mostra rústico, seco, rigorosamente ordenado. O teto é ritmado por pesadas vigas. Dez chamas que parecem nem iluminar nem aquecer distribuem-se nas paredes laterais, inserindo-se em nichos. Apenas do lado direito, há janelas que nos deixam perceber que é dia; a luminosidade uniforme não parece emanar de nenhuma fonte em especial. Obscura e sinistra, vem de uma pequena porta para onde converge o ponto de fuga e para a qual somos fortemente atraídos. Através dela, no entanto, não entrevemos luz ou saída. O que autorizou a comparação entre as pinturas de Friedrich e Kiefer foi unicamente o espaço do atelier visto como o domínio da mente, da interiorida­ de, local de processamento de experiências e conceitos. As obras escolhidas reve­ lam inegavelmente um distanciamento gigantesco. "Heróis Espirituais da Alemanha" encarna os pesadelos do Romantismo. Não percebemos um sentimento verdadeira­ mente religioso e sim teatral; não apenas os deuses desapareceram, mas também toda a Humanidade. E difícil determinar o que de fato anima a pintura; a única resposta possível talvez seja: a própria ausência. Próximo ao solo, obedecendo à perspectiva e ao mesmo tempo intro­ duzindo um elemento inusitado em seu caráter ilusionista, numa escrita manual e regular, quase infantil, encontram-se treze nomes.<22) O grupo heterogêneo (artis­ tas, escritores, um governante e um místico) não adquire unidade através do título grandiloqüente da pintura. Eles não foram contemporâneos, seus nomes evocam tempos diversos — do século XIII ao século XX — embora a maior incidência seja de personalidades do século XIX. Seria viável buscar relações entre eles, mas não o faremos. A evocação desses nomes não é capaz de dar vida ao espaço, cujo vazio permanece intacto e estéril. O perigo do fogo e seu ambíguo potencial de destruição e renovação ameaça os supostos heróis da Alemanha. Uma intenção ritualística sub­ siste sem forças contudo para realizar-se. Em oposição à solidez da estrutura em madeira, o interior mostra-se oco e fantasmagórico; o aparato grandioso volta-se contra si mesmo. Margarete e Sulamith Na obra de Kiefer, as referências a poesia de Paul Celan são uma cons­ tante. "M ohn und G edächtnis", seu primeiro livro, publicado em 1952, é também o título de um grupo de aviões em chumbo de Kiefer — sobrecarregados, inúteis, arcaicos. A tecnologia do século XX, que tanto permitiu a realização do lendário sonho humano de voar quanto o pesadelo das guerras, vê-se transformada em ver­ dadeiro fóssil. GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Anselm Kiefer "M a rg a re te ” , 1981 Óleo e palha sobre tela, 280 x 380 cm Coleção Saatchi, Londres

Em “M ohn und G edächtnis" (que significa papoula — a flor do esque­ cimento — e memória), inclui-se o mais famoso poema de Celan, "T odesfuge" ("Fu­ ga de m orte"), que se refere à experiência nos campos de concentração. No poema, os cabelos de Sulamith e Margarete são verdadeiras figuras da ausência. ("Seus ca­ belos de ouro M argarete /seu s cab elos d e cinza Sulam ith'.) Colocadas lado a lado, Sulamith, a judia e Margarete, a ariana, parecem indicar o quanto a purgação dos judeus acarretou uma descaracterização, um empobrecimento da germanidade. Nas pinturas de Kiefer, Margarete é sempre associada à palha, mas não na forma disse­ minada empregada em "N uremberg", tomando todo o quadro, pulverizando a pai­ sagem. Se o seu efeito permanece o de adensar e fragmentar a superfície pictórica, nas obras dedicadas a “T odesfuge", a palha forma feixes sobre os quais pairam pe­ quenas "chamas". O artista associa a palha ao calor, ao adubo, a forças positivas, mas a alusão ao fogo próximo a um material de tão fácil combustão sugere a des­ truição da identidade germânica, ameaçada pelo mesmo perigo ao qual os judeus foram submetidos — virar cinzas, esvair-se em fumaça. “40

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Notas ( 1 ) KIEFER, Anselm. "Pintar com o feito heroico". Entrevista. Revista GÁVEA, n" 8. PUC/RIO, p. 120. ( 2 ) CELAN, Paul. "Nächtlich geschürzt", in "Von Schwelle zu Schwelle", Gedichte, Deutsche Verlags — Anstalt, Stuttgart, 1964. Tradução de Carlos Abbenseth. ( 3 ) LACOUE-LABARTHE, Philippe. "La poésie comme expérience", Ed. Bourgeois, Paris. ( 4 ) A D O R N O , Theodor. "Teoria Estética", Livraria Martins Fontes, Lisboa, p. 12. ( 5 ) BEUYS, Joseph. "Multiples", teil 11. Ed. Schellman, München/N.Y. ( 6 ) ZW EITE, Armin. "Dintanz und Nähe". In "Beuys zu Ehren", catálogo da exposição realizada na Lembahaus, Munique, 1986, p. 9. ( 7 ) "Le plus ancien programme de l'idealisme allemand", in "L' Absolu littéraire". O rg. e trad. Lacoue-Labarthe, P. e Lang, A .M ., Ed. du Seuil, Paris, 1982. ( 8 ) ZWEITE, op. cit. ( 9 ) ZW EITE, ibid. (10) ZWEITE, Armin. Joseph Beuys. "Natur/Materie/Form ", Ed. Schirma/Mosel, Munique, p. 27. (11) ROSENTHAL, Mark. "Anselm Kiefer", The Art Institute of Chicago/Philadelphia Museum of Art, 1987, p. 17. (12) CA N ETTI, Elias. "Massa e Poder", Ed. Universidade de Brasilia, 1983. (13) T Á C IT O . "La Germanie", Ed. Les Belles Lettres, Paris, 1949. (14) KIEFER, op. cit., p. 116. (15) BACHELARD, Gaston. "La flamme d'une chandelle", PUF, Paris, 1982, pp. 65 e 66. (16) NAVES, Rodrigo. Prefácio de "A Arte Moderna" de G .C . Argan. Ed. Companhia das Letras, 1992. (17) ROSENTHAL, Marc. op. cit., p. 32. "M aikäfer flieg, der Vater ist im Krieg, die Mutter ist in Pommerland, Pommerland ist abgebrannt” ROSENTHAL, Marc. op. cit., p.116. (18) SCH A I’ IRO, Meyer, "Un tableau de Van Gogh", in "Style, Artiste et Société", Ed. Gallimard, Paris, 1982. (19) KOERNER, Joseph-Leo. "Caspar David Friedrich and the subjet of landscape", Reaktion Books, London, 1990. (20) G O O SEN , E. "A Grande T ela" in "A Nova Arte", Ed. Perspectiva, Rio de Janeiro, 1986, p. 91. (21) KUSP1T, Donald. "Anselm Kiefer: l'art moderne et le mythe", in Art Press n° 81, p. 18. (22) Avançando do fundo do quadro para a frente, lemos, do lado esquerdo: Hans Thom a, Robert Musil, Friedrich II, Caspar David Friedrich, Joseph Beuys, Richard Wagner; e do lado direito: Theodor Storm, Nikolaus Lenau, Mechthild von Magdeburg, Arnold Böcklin, Adalbert Stifter, Joseph Weinleber. Richard Dehmel. Significativo apenas é sabermos que em sua maioria, ou foram utilizados pela ideologia nazista, ou assumiram claramente posturas antisemitas. Acima de qualquer suspeita ou tentativa de recuperação apenas Robert Musil e também Beuys, pelo que se tornou ao longo de sua vida.

Este texto é parte da monografia apresentada como trabalho de conclusão do Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC/RIO. Agradecimentos: Prof. Ronaldo Brito, pela orientação do trabalho, Carlos Abbenseth, pela tradução de Paul Celan feita especialmente para este texto e Instituto Goethe do Rio de Janeiro, pelo apoio e incentivo.

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A Questão da Morte e sua Representação na Arte Aceito para publicação em maio de 1994. Os seres humanos constituem a única parcela entre as espécies vivas a possuir a consciência de sua fra­ gilidade e a ter uma clareza inapelável de sua finitude. Em qualquer sociedade, a imagem da morte, an­ tecipação sócio-cultural de um acontecimento cer­ to mas de data imprevista, é moldada pelas estrutu­ ras institucionais, pelos mitos, pela tessitura social. É papel essencial de toda cultura, em qualquer épo­ ca, fornecer chaves para a interpretação da ameaça mais íntima e fundamental do ser humano: a morte. Neste contexto, a arte, em todos os períodos, é ex­ tremamente sensível aos aspectos que norteiam as relações do homem com sua vida e com a morte. A rte /M o rte Dança Macabra Arte Medieval e Renascentista

W A LTER T A A M FILHO Graduado em Medicina (UGF), pós-graduado em His­ tória da Arte e da Arquitetura no Brasil (PUC-RIO).

A Morte como Sono Desde a Antigüidade, sobretudo desde a epopéia de Homero, a cultu­ ra ocidental traz em si o estigma da brevidade do tempo, do tempo instantâneo. "C rono" , ou "Pai dos Dias", aparece na Ilíada como o momento sin­ gular e fugaz. Aos homens, mortais, restaria a cotidianidade, enquanto aos deuses cabia o gozo de uma potência vital de longa duração. A noção de dia guarda implicações modelares para a concepção grega da idéia de duração da vida (Aiôn), substância da força vital que abandona o ho­ mem no dia de sua morte. É esta força vital que distingue homens e deuses, determi­ nando a extensão e duração de sua existência. Face aos imortais, a espécie humana revela apenas sua congênita impo­ tência em encontrar recursos contra o envelhecimento, ou o remédio contra a morte. Conta-nos Hesíodo, em sua T eogonia, que "Nix" (noite), velha divin­ dade nascida do Caos, gera por partenogênese, isto é, somente com sua participa­ ção, os gêmeos T ânatos e Hipno (morte e sono), entre outras entidades também ge­ radas neste momento. Fig. 1 - Guyot Marchand (Impressor) “ Dança dos M ortos", 1485 Gravura Paris

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A Questão da M orte e sua Representação na Arte Tânatos, em sua raiz indo-européia, tem a conotação de extinção ou dissipação, sendo o sentido de morte uma inovação grega. É fundamental compreendermos que a morte para os gregos continha o significado de ocultação, "ser como sombra", uma vez que na concepção cultural grega o morto tornava-se "eídolon", um corpo sem substância. H ipno, o outro gêmeo, provém do indo-europeu aquietar-se, dormir, daí derivando a forma latina "somnus". Tânatos e Hipno eram gênios, entidades que simbolizavam o aspecto espiritual dos indivíduos, espécies de anjos tutelares. Eles surgiriam ao mesmo tem­ po do que o ser ao qual estariam ligados, participando, em especial, dos fenômenos da geração e da morte. Distinguiam-se, deste modo, do "daim on", espírito interior do homem. Na iconografia antiga, poucas são as representações disponíveis des­ sas entidades, que, de forma geral, eram apresentadas como gênios alados adoles­ centes portando um archote. De acordo com a posição apresentada pelo archote, poderíamos fazer a distinção entre H ipno (sono) que o portaria para cima, e Tâna­ tos (morte), que o traria de forma invertida. Na verdade eram representadas como imagens especulares, que através de detalhes seriam identificadas e reconhecidas. E interessante observar que os antigos não representavam a morte co­ mo esqueleto ou figura similar, mas de acordo com a idéia homérica, como gêmeo do sono, guardando portanto a mesma aparência. Lessing, em 1769^), trava acirrada polêmica com Klotz, defendendo a tese de que as imagens de esqueletos que apareciam na Antigüidade, não eram a imagem da morte, mas sim representação dos "larvas", gênios acompanhantes dos mortos insepultos ou que cometeram crimes imperdoáveis durante a vida. As alusões poéticas à morte descrevem-na como uma figura "terrível, lívida e pálida(2), com dentes vorazesW e unhas sangrentas(4>, possuindo estatura monstruosa capaz de cobrir cam pos d e b a t a l h a e vilas inteiras" (6). Permanece, no entanto, uma indagação crucial: por quê a representação plástica na antigüidade grecoromana difere desta horrível descrição? A resposta quanto a isto torna-se clara se nos detivermos no fato de que os antigos procuraram banir imagens que pudessem evocar a morte em sua fealdade.-As imagens poéticas na verdade se referiam às "que­ res", gênios alados também filhas da noite, mas representativas da morte prematura, violenta, inoportuna, bem como da necessidade de morrer. As imagens plásticas so­ mente mostravam " T ânatos" que, em sua aparência idêntica ao seu gêmeo "Hipno", acentuava uma caracterização menos de morte e muito mais de uma saída da vida. Com isto, guardava-se nesta relação a concepção do poder da regeneração que coe­ xiste entre o aspecto perecível e destruidor da vida trazido pela morte, e a possibili­ dade desta mesma morte ser um fator de liberação e despertar das energias espirituais. 244

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WALTER TAAM FILHO

A Morte Anunciada Se, para as sociedades antigas, a morte resultava de uma intervenção estranha e maléfica de um agente externo, durante toda a Idade Média cristã, a morte continuou sendo aceita como resultado da participação pessoal e intencional da divindade. A familiaridade tradicional com a morte, que o homem medieval apre­ sentava, era uma implicação oriunda de uma concepção coletiva de destinação. Li­ mites eram impostos ao homem em sua relação com a natureza, sobre a qual a úni­ ca intervenção possível se daria através do milagre. Deste modo, a intimidade com a morte constituía uma forma de acei­ tação da ordem natural. Esta sujeição acontecia sem qualquer intuito de evitá-la ou exaltá-la, mas simplesmente acatando-a como uma das leis inexoráveis da espécie. Os cavaleiros medievais, nos mais antigos romances, não morriam sem haver recebido uma espécie de advertência prévia, através de sinais naturais ou, com maior freqüência, por uma convicção íntima, mais do que por alguma premo­ nição sobrenatural ou mágica. Havia o reconhecimento espontâneo, no qual não havia espaço para a omissão deliberada ou blefes protelatórios. Dom Quixote, por exemplo, mergulhado em sua loucura, não foge da morte que sabe ser iminente, mas tem sua razão despertada pelo sinais premonitórios da morte: "minha sobri­ nha, sinto-m e p róxim o da m orte A morte medieval, portanto, era aguardada no leito ou no solo, e o moribundo, sabedor de seu destino, imprimia à cerimônia gesto rituais, e antigos costumes se processavam. O cerimonial era público e organizado pelo próprio doente, que o presidia através de um protocolo do qual era conhecedor. A solenidade trans­ corria sem ostentar um caráter dramático ou emoção excessiva, de tal forma que os ritos eram aceitos e cumpridos com simplicidade. E importante constatar que, apesar da familiaridade com a morte, a proximidade dos mortos era motivo de temor para o homem medieval. O mundo dos vivos era separado do mundo dos mortos, e os cultos funerários possuíam a finalidade precípua de impedir que os defuntos retornassem para perturbar os vivos. Remontam à tradição pagã os rituais nos quais os participantes, des­ pojados de suas vestes, cantavam e proclamavam sua alegria em estar vivos, fazendoo de forma frenética, nos cemitérios, sobre os túmulos daqueles que não podiam mais compartilhar desses prazeres. Essas "danças” continuaram a ser praticadas por vários séculos, porém no final do século XIV alterações significativas acontecem no sentido destas "danças", que perdem o caráter de celebração da vida para assumi­ rem características de meditação introspectiva. Em nenhuma época como no declínio da Idade Média se atribuiu tan­ to valor ao pensamento da morte(8). Toda a fragilidade da glória terrena era exGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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pressa em dois motivos básicos: O horn............................ .... , , vel espetáculo da beleza humana caída na

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decrepitude, e a dança da Morte (Fig. 1), arrastando homens de todas as condições e idades.<9) A alma medieval não se sa­ tisfazia somente com a lembrança violen­ ta que a morte ihe suscitava, incorporan­ do por esta exigência uma imagem mais concreta do perecível: o cadáver que apo­ drece. Nos fins do século XIV, a pintura já havia atingido uma força de expressão

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na morte quase se entrelaça com a exorta­ ção profana a que se desfrute o melhor possível da juventude. Um pensamento que vincula de forma tão intensa a morte

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a um sentido terreno dificilmente pode ser considerado como autêntica religiosidade. Denota mais uma espécie de reação espas­ módica contra o que era considerada uma

Fig. 2 - Guyot M archand (Impressor) "Dança dos M o rto s ", 1485 Gravura Paris

excessiva s e n s u a l i d a d e . O sentimento expresso não provêm de uma sabedoria religiosa, mas muito mais de um desencan­ to materialista que considera inúteis tanto a beleza quanto a felicidade, porque am­ bas estão destinadas a terminar com brevidade. Ao final do século XV, um novo meio de introduzir o temível pensa­ mento em todos os espíritos veio juntar-se às palavras dos pregadores: a popular gravura em madeira. Nos estertores da Idade Média, a visão total da morte pode ser resu­ mida na palavra m a ca b ro , sendo a idéia da dança m acab ra o ponto central de todo um grupo de concepções associadas. As gravuras em madeira com as quais o impressor Guyot Marchand ornamentou a primeira edição da "D ança dos M ortos” (Fig. 2), em 1485, tiveram como provável inspiração a mais célebre delas, a pintada em 1424 nas paredes do claustro do Cemitério dos Inocentes, em ParisdP. A personagem dançante origi­ nalmente não representava a própria morte, mas um cadáver: o homem vivo tal 246

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WALTER TAAM FILHO

como ele será. É a confrontação feita com o próprio reflexo decrépito e putrefato do homem. Nesta época os espelhos assumem importante papel na vida diária e, vista no "Espelho da Morte", reflexo do que virá, a vida se reveste de extrema mordacidade. O incansável dançarino reproduz nas estâncias o próprio homem vivo em sua forma futura, um duplo terrível da sua figura. O homem que dança é cha­ mado "O Morto", numa mais apropriadamente dança dos mortos, e não da morte. A denominação de dança refere-se mais à seqüência que se sucede como numa pro­ cissão, do que à atividade física em si. E fundamental observar que a ordem seguida guarda rígida relação com a hierarquia medieval em sua estratificação social, na qual a importância do papel social exercido caminha em ordem decrescente (Fig. 3). As figuras foram feitas para pessoas iletradas, mas que possuíam olhos. A dança lembrava aos espectadores a fragilidade das coisas terrenas, mas ressaltava que ela, a morte, era o fator de nivelamento de todas as categorias sociais, pois para reis ou campesinos o final era o mesmo. Enquanto anteriormente dançava-se sobre os túmulos dos defuntos e com eles, agora o homem dançará com sua própria mortalidade por meio da repre­ sentação de um mundo no qual ele já se insere e se percebe de forma distinta. O homem do fim da Idade Média, rico, poderoso ou letrado, possuía a consciência clara de que era um morto em suspensão condicional. A morte era vista como uma interposição sempre possível a interferir nas ambições e desejos de realização pes­ soal. Esta evidente mudança cultural assumiria feições definidas no que denomina­ mos de Renascimento. Estabelece-se uma relação entre a morte de cada indivíduo e a cons­ ciência que este tomava de sua individualidade, fenômeno fundamental para o de­ senvolvimento da modernidade, com repercussões até à contemporaneidade.*12) O pensamento dominante, portanto, do qual o macabro é representa­ tivo, é egoísta e terreno, não deixando que o sentimento relativo à morte afaste-se dos dois extremos: a lamentação pela brevidade das glórias terrenas e o júbilo pela salvação da alma. A Morte Contestada Durante todo o período medieval, houve uma prevalência de um con­ ceito estático do homem, limitador de potencialidades tanto na vida social quanto na individual. Com o Renascimento, o indivíduo passa a ter sua própria história de desenvolvimento pessoal. O tempo e o espaço humanizam-se. A auto-realização e autofruição da personalidade tornam-se objetivos comuns. O homem redescobre o segredo da sua individualidade, mas ao mesmo tempo experimenta um novo senGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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timento movido pela consciência da sua fi-

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nitude: o medo da morte associado ao fra­ casso pessoal. A morte torna-se o lugar no qual o homem melhor adquire a cons­ ciência de si mesmo. A corrida contra o tempo é motivo de permanente sensa­ ção de angústia. A morte se torna o pon­ to onde o tempo linear mensurável acaba e o homem enfrenta a eternidade. A pro­ liferação dos relógios simboliza essa mu­

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mais o fim de um todo, torna-se ruptura da seqüência. Os temas macabros ainda en­ contram inusitada aceitação através das D an­ ças M acabras, nas quais já agora a morte em

Fig. 3 - G u yo t M archand (Impressor) “ Dança dos M o rto s ", 1485 Gravura Paris

pessoa substitui então o morto individual. A mais popular e definitiva "Dança M acabra" da época foi a criada por Hans Holbein, o jovem, publicada em 1538, com o título "Les Simulacres et Histoires Faces de La Mort . São quarenta e uma ilustrações nas quais os persona­ gens, nobres ou plebeus, inocentes ou culpados, são situados em seus meios, ocupa­ dos em suas tarefas cotidianas, porém lembrados pela figura da morte, de forma satírica, da igualdade que todos assumiam quando se defrontavam com ela (Fig.4). Guardava, portanto, uma significação de âmbito moral, social e mesmo política em sua época. É com Holbein que a figura do grande dançarino se celebriza como um esqueleto. A dança criada por H olbein, de acordo com sua vivência de homem do Renascimento, traz inegavelmente seu toque pessoal, ao contrário da publicada por Guyot Marchand, que possui na impessoalidade uma de suas mais notáveis características. a outra evidência significativa das m udanças ocorridas neste pe248

C.ÁVEA. 12 (12), dezem bro 1994


Srvilrehac no<5t< rrprfunt anu mam tuam, ÔC q u * paraît! cuius eruntí L V C í

ríodo pode ser observada nas denomina­ das "Ars Moriendi", manuais preparató­

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rios para uma boa morte, muito popula­ res nos séculos XV e XVI. Através da ico­ nografia das “Ars Moriendi", podemos de­ tectar importantes alterações conceituais quando comparamos o "Juízo Final" em re­ lação a épocas precedentes. Ao analisar­ mos a Figura 5, temos ainda uma apresen­ tação do modelo tradicional da morte no leito, com o moribundo conduzindo o ri­ tual, cercado pelos amigos e familiares. Po­ rém, algo distinto está reservado unicamen­ te ao enfermo, algo que a assistência não

Cefte niiicf la M ort te prendra, Et demain feras enchaiTe. M aisdy moy,fol,a qui uiendra Le bien que tu as amaiTeC' F

n

pode ver e que ele contempla indiferente. Anjos e demônios, a Família Sagrada e Sa­ tã encontram-se e comprimem-se à cabe­ ceira disputando aquela alma. Desta forma, a imagem cristã primitiva de julgamento no final dos tempos sem haver lugar para a res­ ponsabilidade individual desloca-se para o

Fig. 4 - Hans Holbein, o Jovem " 0 Homem R ico", 1538 In: "Les Simulacres et Histoires Faces de la M o rt" Gravura

quarto do enfermo. A conotação medieval de “balanço de uma vida" a ser julgada por Cristo no último dia, transfere-se pa­

ra o momento da morte. Há assim, uma supressão do tempo escatológico entre a morte e o final dos tempos. A luta entre o bem e o mal definirá a posse do moribun­ do, e Cristo assume um papel mais testemunhal que julgador. O enfermo será testa­ do no decurso desta última prova, repudiando as tentações ou tendo suas boas ações invalidadas, no caso de ceder. O último ato substitui o juízo final. Esta representação reúne em uma mesma cena a segurança do rito coletivo, através da morte no leito, à inquietude de uma interrogação pessoal, pois o juízo era particular e pertinente a ca­ da indivíduo. Estreita-se a relação entre morte e a biografia de cada vida particular. Como forma de expressão, as alegorias encontram neste período enor­ me difusão, distintamente do período medieval, no qual a visão simbólica do mun­ do era predominante. As alegorias personificavam entidades abstratas, que assu­ miam um caráter antropomórfico típico do pensamento no qual o homem ocupava o lugar mais importante. Nas obras de Albrecht Dürer, temas como “A Morte" ou o “Juízo Fi­ nal" surgem com freqüência como conceitos merecedores de expressão através de GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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A Questão da M o rte e sua Representação na Ar imagens que obedecem já aos modelos renascentistas, embora em muitas delas ain­ da impregnadas pela imaginação do final da Idade Média. Numa gravura datada de 1498, "Os Quatro Cavaleiros do Apocalip­ se" (Fig. 6), a figura da morte não é representada por um esqueleto, mas por um velho com um físico em decomposição, coerente com a preocupação do homem renascentista com a finitude e os limites de sua vida, das quais a velhice era sua evidente expressão. O esquálido cavalo aparece como guia para o reino dos mor­ tos, ostentando os mesmos sinais de decadência da juventude, da força, da sexuali­ dade e da virilidade. Abaixo do animal, o dragão representa a continuidade do caos e a extensão de Satanás, personificando as forças primordiais demoníacas que precisam ser dominadas. É interessante notar que a figura da morte segura um tri­ dente, símbolo das três qualidades do mundo empírico: o devir, o ser e o perecer. Em outra gravura, de 1513, uma alegoria sobre a fé cristã intitulada "O Cavaleiro, a Morte e o Demônio" (Fig. 7), Dürer demonstra todo o seu domínio sobre a técnica da gravação. O cavaleiro representa a predição bíblica do Apóstolo São Paulo sobre a força da fé cristã. Em sua marcha ele sobrepuja e atravessa incó­ lume, quase ignorando, a presença da morte e sua ampulheta, símbolo do esvair do tempo e da proximidade do fim, temor presente no homem da época. A Idade Média concebia como atributos do diabo os chifres e patas de bode, e é dessa forma que o demônio é personificado, ostentando ainda um fálico corno. De acordo com a tradição simbólica advinda do Período Medieval, mas bastante explorada no Renascimento, Dürer expressa em cada elemento ou fi­ gura uma metáfora a ser decodificada por um observador familiarizado com esta linguagem. Deste modo, surge, de forma notadamente não aleatória, a salaman­ dra, animal que segundo a lenda podia viver no fogo sem ser consumido, tal qual o justo que não perde a paz interior apesar das atribulações a que é submetido. O cão, símbolo da fé e fidelidade acompanha o cavaleiro que nada teme por que crê. O porte do elmo lhe confere potência e invulnerabilidade, bem com o a espada fir­ memente embainhada faz do seu possuidor um representante do comedimento. Ou­ tra virtude, a coragem, tem na lança empunhada sua representação, pois seu uso trespassaria os vícios a serem superados. Seu

São Jerônimo", de 1521 (Fig. 8), ao retratar o santo meditando

sobre um crânio, nos posiciona diante de uma concepção renascentista impulsiona­ da por Nicolau de Cusa, na qual criava-se um paralelismo entre o microcosmo e o macrocosmo. Freqüentemente o crânio era comparado simbolicamente à abóba­ da celeste, em uma analogia entre o microcosmo humano e o macrocosmo univerval. Este despertar para a autoconsciência, humanizar-se uma segunda vez, consti­ tuía condição prévia para o conhecimento do mundo. Na medida em que o homem despertava para sua humanidade, tornava-se capaz de reproduzir o universo no 250

GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994


pensamento e refletir sobre sua transitoriedade. Dürer consegue, através da forma como trata os volumes em perspec­ tiva saliente, como faz com os livros e a caveira, e, sobretudo, pela força psicoló­ gica da expressão do rosto do santo, exaus­ to pela meditação, transmitir a con­ cepção humanística que permeia toda a sua obra. A M orte Transgressora Ao final do século XV e no limiar do XVI, novas transformações ocor­ rem, e o tema da morte começa a ser re­ presentado com uma carga de erotismo desconhecida até então. Do século XVI ao XVIII instaura-se uma estreita aproxima­ ção entre Tânatos e Eros. A associação en­

Fig. 5 - Anônimo "A rte de Bien M orir", 1493 Gravura Barcelona

tre morte, individualidade e decomposição vai se atenuar no decorrer do século XVI. Neste período, as representações macabras

perderão sua carga dramática, tornando-se quase abstratas, exibindo porém um acen­ tuado erotismo. A "M orte”, de Hans Baldung Grien, no quadro "A Morte e a Jovem” (Fig. 9), não se contenta em discretamente tocar o corpo dos vivos, como nas dan­ ças macabras, mas agarra firmemente os cabelos da jovem nua, inteiramente subju­ gada a seus caprichos. No "Triunfo da Morte" de Pieter Bruegel, torna-se difícil ignorar em meio ao aniquilamento inapelável da vida pelo exército da morte que, apesar da decomposição física das figuras, várias delas exibem genitálias intactas, enquanto outra tem em seus braços uma jovem que é segura firmemente pelos seios. Do mesmo modo que o ato sexual, a morte torna-se uma transgressão da vida regular e ordenada da sociedade. Mais explícito é o suíço Nicklaus Deutsch em sua tela "A Morte e a Rapariga" na qual o tema é mostrado de forma tão ostensiva que toca nos limites da obscenidade. Outros artistas, como Hans Tebald Beham, também exploram a sen­ sualidade do corpo feminino em contato com uma representação da morte que exiGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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i < be uma vitalidade extremamente erotizada em sua atitude. (Fig. 10) A utilização do tema morte/mulher já havia sido feita anterior­ mente nas chamadas "Danças dos Mor­ tos de Mulheres". Elas apresentavam algu­ mas variantes das tradicionais, pois por não existirem suficientes atividades pro­ fissionais sendo desenvolvidas por mulhe­ res a ponto de ilustrarem um livro, a solução encontrada foi reproduzir os di­ ferentes "estados" da mulher: a virgem, a mãe, etc. Além da predileção pelos te­ mas erótico-macabros, uma outra catego­ ria de temas encontra grande aceitação: a dos temas mórbidos, cujo agrado se dava através do espetáculo físico da morte e do sofrimento. O corpo morto e nu constituise em objeto, ao mesmo tempo, da curiosidade científica e do deleite mórbido. Esse

: 0s Quatro Cavaleiros do

fascínio pelo corpo morto, chocante no

Fogg Museum o f A rt, Cambridge, Mass.

Fig. 6 - Albrecht Dürer Apocalipse” ,

1498

século XVI, foi mais discreto no século XVII, ressurgindo como obsessão no século XVIII. O conhecimento sobre a estrutura do corpo humano faz com que a imagem do esqueleto assuma uma dimensão nova. Proliferam as "Lições de Anato­ mia" retratando pesquisas que se pretendem científicas, e abrem espaço para as "ana­ tomias moralizadoras", aquelas nas quais o corpo humano, independente da evoca­ ção artística, contém o sentimento sobre o destino do homem. Desde a popularizaçao, na Idade Média, dos temas macabros um símbolo não deixa de estar presente: a caveira, alusão à morte e ao poder que esta pos­ sui de reinar onde esteja. No Barroco porém, a caveira será fundamentalmente um símbolo da piedade*14), sentimento estimulado especialmente pelos jesuítas, segui­ dores fiéis dos exercícios inacianos. Estes preconizavam a meditação na presença de uma caveira, pois esta excitaria a imaginação. Crânios, tíbias, esqueletos com­ pletos eram inspiração para que através do temor infundido no espectador este en­ tendesse a mensagem de que a morte triunfaria sempre ante o fútil e o terreno. A imagem da morte era o mais eficaz antídoto contra a vaidade do mundo. A beleza, as riquezas, a glória, nada são frente a morte. A representação do esqueleto tem, GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994


pois, múltiplas funções no Barroco, e, se não podemos negar que a principal delas possui sentido ascético-religioso, nunca faltam ressonâncias que aludem aos peri­ gos do mundo social e político. Se nos detivermos no quadro “São Jerônimo" (Fig. 11), pintado em 1607 por Michelangiolo Merisi (Caravaggio), ve­ rificamos que a preocupação com o realis­ mo físico do santo supera a preocupação expressiva evidenciada no rosto do “São Jerônimo" de Albrecht Dürer. O corpo nu assume importância como manifestação de uma sensualidade que tem seu contra­ ponto no crânio situado à sua frente, co­ mo que a lembrar insistentemente a fragi­ lidade da vida terrena. Podemos observar que, em quase todas as representações ar­ tísticas de santos no período da contrareforma, eles exibem em suas mãos ou pró­ Fig. 7 - Albrecht Dürer " 0 Cavaleiro, A Morte e o Demônio", 1513 Gravura Fogg Museum of A rt, Cambridge, Mass.

ximos de si caveiras sendo contempladas. Este segundo desabrochar do macabro, nos séculos XVII e XVIII, tra­

duz um sentimento do nada, bem diferenciado do lamento e apego à vida surgido no final da Idade Média. Se, durante a Idade Média, a morte é, na arte e no pensamento, uma idéia teológica; e se nas danças macabras havia um evidente caráter didático, agora ela é uma experiência dolorosa que afeta a cada um em particular. A Morte Idealizada Se, durante o período medieval, a morte apresentava um caráter de familiaridade, sem ser apavorante e obsessiva, agora torna-se motivo de um pensa­ mento particularizado no século XVIII. Gradativamente, o mundo das fantasias eróticas vai sendo sublimado e reduzido à noção de beleza. A morte não mais será desejável, mas admirável pela beleza: a morte romântica. A complacência com idéia da morte é um dos traços do Romantismo do final do século XVIII. Ao retirar a morte da vida habitual, o homem do fim do século XVIII e do início do XIX, lhe reconhece um novo papel do domínio do imagiGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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nário, papel este que persistirá através do Romantismo até o Surrealismo, já no século XX. Este deslocamento para o imaginário traz com o consequência uma dis­ tância que antes não existia entre a morte e a vida cotidiana. John Everett Millais buscou inspiração na descrição da morte de Ofé­ lia, no ato IV do H am let de William Shakespeare, para pintar seu quadro "Ofélia (Fig. 12), em 1851. Sua pintura é um notável exemplo da idealização da morte no período romântico. Na tragédia de Shakespeare, Ofélia suicida-se ao saber da mor­ te do pai, assassinado por Hamlet. Sua representação pictórica não nos apresenta a morbidez e crueza da morte, mas um corpo que flutua imerso em flores, conser­ vando uma beleza que ainda faz questão de sobressair em todo o contexto trágico de sua morte, sem em momento algum tender para a particularidade dramática. Com "Marat Assassinado", David explora o fascínio que a morte de cadáveres atléticos, heróicos, provocavam em sua época. A beleza confere à morte do mártir uma atração quase necrófila, acusando a inevitável presença do destino mas conduzindo, porém, o pensamento para uma motivação supe­ rior capaz de fazer os homens sacrificarem suas vidas. Se o corpo de Marat jaz inanimado, sua vontade se eterniza. A submissão do revolucionário a uma fina­ lidade que consubstancia a essência do homem, a liberdade, o faz pagar o preG Á V EA . 12 (12), dezembro 1994


WALTER TAAM FILHO

Fig. 9 - Hans Baldung Grien " A Morte e a Jovem ” , 1517 Ôleo Museu de Arte da Basiléia

Fig. 10 - Hans Tebald Beham "Dança da Morte das Mulheres” , 1541 Gravura

ço exigido por tudo aquilo que não é liberdade, ou seja, a morte.<15) Através de sua morte, Marat realiza sua liberdade, colocando-a fora de qualquer alcance. A idealidade da morte, neste, não é de inspiração poética, mas expressão de um mo­ delo ético e exemplar. A morte, no século XVIII, como vimos, tem para o homem das socie­ dades ocidentais um novo sentido. Ele já se ocupa menos de sua própria morte, e desta forma, a morte passa a ser, antes de tudo, a "morte do outro". A dramatização, a exaltação são constantes, para que a finitude seja sentida como impressionante e arrebatadora. O século XIX é a época dos "lutos his­ téricos". Se o moribundo ainda mantém o papel principal, as atitudes da assistência se encontram bastante distanciadas da passividade de outrora. Não temos mais fi­ gurantes passivos, mas sobreviventes que aceitam com mais dificuldade a morte do outro. GÁVEA. 12 (12). dezembro 1994

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Fig. 11 M ichelangiolo Merisi (Caravaggio) "S ã o Je ro n im o ", 1607 Óleo Museu da Catedral de São João, Malta

A M orte Escamoteada Se, na época romântica, a exaltação da morte era a regra, no século XX o homem recusa a morte. Da complacência observada no século XIX, agora a morte é tabu. Já no fim do século anterior, esboça-se o modelo contemporâneo da morte burguesa, caracterizado pela incapacidade em admitir abertamente seu pró­ prio fim e o do outro, e pelo isolamento moral imposto ao moribundo, implicando na medicalização do sentimento da morte. O homem, que durante séculos fora senhor de sua morte e das circuns­ tâncias da mesma, deixa de sê-lo. A noção da iminência da morte, e o caráter de solenidade pública do momento fatal, não mais se manifestam. A dissimulação pas­ sa a ser a tônica dominante. O solene é substituído pelo escamoteamento. A nova regra moral exige que se deva morrer na ignorância da própria morte. Nas relações sociais, falar da morte tornou-se uma ousadia que pro­ voca uma situação sempre dramática. A morte não é mais a figura familiar de an­ tes, e sua simples menção é capaz de desencadear tensões que se desdobram em alte­ rações da vida diária. Na arte, esta interdição também é manifesta, e a morte como tema praticamente desaparece, refletindo a mentalidade da época. Apesar disso, alguns exemplos se destacam. O renovado Romantismo do*século XIX tornou-se a base imediata do Expressionismo Moderno. James Ensor, com sua técnica intencionalmente chocan­ te, foi um dos modelos expressivos mais significativos para o Expressionismo e seus 256

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WALTER TAAM FILHO

Fig. 12 - John Everett Millais "O phelia", 1851/1852 Oleo Tate Gallery, London

artistas no século XX. Em seu quadro "As Máscaras e a Morte", de 1897, Ensor re­ toma a representação da caveira que curiosamente é a única figura a não ostentar uma máscara (Fig. 13). Envolta num sudário, integra-se num carnaval tragicômico, no qual homens disfarçados com máscaras representam degradantes imagens da mal­ dade e repugnância da espécie humana. A sociedade de sua época é causticamente criticada por ele, em seus vícios, superstições e no obsessivo medo da morte. Ensor expunha este pavor de forma quase prazerosa. Sua pintura tocava nas profundezas do inconsciente de uma sociedade que se recusava a admitir a morte. Na segunda década do século XX, o inconsciente era para os integran­ tes do Movimento Surrealista o objeto e base teórica. Partindo do pressuposto de que no inconsciente pensamos por imagens, que são em última análise o resultado do trabalho artístico, o acesso a ele seria o meio mais adequado para que conteúdos fossem trazidos à tona, e a arte seria este caminho. Do mesmo modo que na teoria psicanalítica, na arte surrealista a ex­ periência onírica assume extrema importância. Por meio dos sonhos o verdadeiro funcionamento do pensamento seria expresso, uma vez que estaria ausente qual­ quer cerceamento exercido pela razão. A arte, deste modo, não era meramente representação, para os surrea­ listas, e sim comunicação vital, psíquica do indivíduo por meio de símbolos. Paul Delvaux nos conduz a este mundo de sonhos, uma estranha e mis­ teriosa dimensão, em sua tela "Vénus Adormecida", de 1944 (Fig. 14). Um efeito inquietante de contraste e mistério expõe o sono sereno de Vénus, tendo ao fundo o templo clássico, a figura nua e agitada à direita. A imagem medievalista do esqueGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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mB

Museu de Belas Artes de Liège

Fig. 14 - Paul Delvaux "V é n u s Adorm ecida” , 1944 Óleo Tate Gallery, London

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WALTER TAAM FILHO

leto reaparece não mais como lembrança aterrorizadora da morte iminente, mas mais uma vez nos remete à relação sono e morU, Hipno e Tânatos. Retomando esta cor­ relação, como que fechamos um ciclo iniciado na Antigüidade greco-romana e revisitado agora com conotações e concepções distintas, embora trazendo em seu cerne uma genealogia mítica e cultural profundamente enraizada. E significativo que a destruição das linguagens artísticas tenha coinci­ dido com o aparecimento da psicanálise. Sob esse ponto de vista, a atitude desses artistas assemelha-se mais à regressão primitiva ao caos do que a uma verdadeira d e s t r u iç ã o .E le s compreenderam que o verdadeiro reinicio não pode existir se­ não após o fim, pois somente assim o homem vai poder, de forma simultânea, exis­ tir, contemplar e sonhar. Notas ( 1 ) LESSING, G. E. C om m en t les A n cien s Reprèsentaient la M ort. Paris, Ed. Hermann, 1990, pp. 200 a 227. (Escrito, composto e impresso em 1769, incluído na obra Laocoon). ( 2 ) A expressão "pallida. lurida m ors" Aparece na Obra C arm ina, do poeta Horácio, I, 4 e 3. ( 3 ) A frase "mors avidus pallida dentibus" é citada por Sêneca em "Hércules Furioso". ( 4 ) "Praecipuos annis anim isque cruento ungue motat". Stace, Thebald, VIII, v. 380. ( 5 ) "Fruitur caelo, bellatorem q u e v o la n d o cam pum operit". Ibid, v. 378. ( 6 ) "Captam tenens fert m anibus urbem", Id. Thebald, I, v. 633. ( 7 ) CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. "De como Dom Quixote Adoeceu, e do Testamento que fez, e sua Morte" In D om Q uixote d e la M an cha, capítulo LXXIV, São Paulo, Editora Abril S.A ., 1978, p. 601. ( 8 ) HUIZINGA, Johan. O D eclínio d a Id ad e M édia, São Paulo, Ed. Verbo, p. 129. ( 9 ) Idem, p. 129. (10) Ibidem, p. 131. (11) MÁLE, Émile. LArt Religieux d e la Fin du Moyen Age en France. Paris, Librairie Armand Colin, 1949. (12) ARIÉS, Philippe. História da M orte no O cidente. Ver Capítulo VII, no qual o autor se utiliza das obras de HUIZINGA, J. "O Declínio d a Id ad e Média"; e de TENENTI, A. La Vie et la M ort à Travers LArt du XVe Siécle, em sua análise quanto à tomada de consciência do homem do fim da Idade Média em relação a sua individualidade. (13) ILICH, Ivan. A Expropriação d a Saúde. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1975, p. 166. (14) Cf. MÁLE, E. citado por SANTIAGO, Sebastian. C ontrarreform a y Barroco, Madrid, Alianza Editorial, 1981, p. 100. (15) STAROBINSKI, Jean. 1789, O s E m blem as da Razão. São Paulo, Companhia das letras, 1989, p. 79. (16) ELIADE, Mircéa. M ito e R ealidade. São Paulo, Editora Perspectiva, p. 20.

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Joaquin Torres-García "C om posición Universal", 1937 Óleo sobre cartão, 1 0 8 x 8 5 cm Coleção do Museu de A rte M oderna, Paris


O Universalismo Construtivo de Joaquín Torres-García Aceito para publicação em maio de 1994. A autora propõe uma crítica de um período da obra do artista uruguaio Joaquín Torres-García denomi­ nado Universalismo Construtivo. Atem-se à análise da relação criada pelo artista entre a abstração geo­ métrica e as formas simbólicas na construção de sua idéia e arte plástica. Realiza, especificamente, uma abordagem crítica das pinturas e as influências pela as quais passaram. Este período compreende o final da década de 20 até a morte do artista em 1947. Sinopse A rte Moderna A rte Latino-Americana Universalismo Construtivo

M A RIA FERN ANDA TERR A MALUF Graduada em Arqueologia pela UNESA, pósgraduada em História da A rtee Arquitetura no Bra­ sil PUC-RJ. Artista Plástica.

Neste artigo, pretendo realizar uma crítica de um período da obra do artista Joaquín Torres-García correspondente à fase de amadurecimento e concreti­ zação de sua proposta plástica: o Universalismo Construtivo. Analisarei especial­ mente o que tange a relação entre a abstração geométrica e a forma simbólica na construção de suas pinturas '^ e a s influências pelas quais passou. Este período com­ preende o final da década de 20 de nosso século até o fim dos anos 40. Joaquín Torres-García, artista uruguaio, nasceu em 1874 e mudou-se pa­ ra Europa com 17 anos. Quando de sua estadia em Paris, manteve contato com os mo­ vimentos construtivos, principalmente com o Neoplasticismo Holandês. Organizou, jun­ to com Michel Seuphor, o movimento Cercle et Carré na década de 30. Voltou ao Uru­ guai em 1934 onde abre o Atelier de Arte Construtiva Universal e funda a Associação de Arte Construtiva, no intuito de divulgar sua teoria e prática de arte. Sua importân­ cia deve-se ao fato de ser considerado como o precursor e influenciador de inúmeros movimentos latino-americanos de arte não-figurativa, tais como, Arturo de 1942, Arte Concreto Ivencion de 1945, Grupo Madi de 1946, dentre outros.*2) No Brasil, sua obra foi exposta na V Bienal de São Paulo em 1959, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1978 e recentemente na XXII Bienal de São Paulo em 1994.*3) O que define a arte de Torres-García é a palavra construção. E, para torná-la possível, ele tinha em mente um ideal de arte onde estruturavam-se, a par­ tir de uma ordem criada por ele, leis pelas quais pressupunha chegar a uma arte GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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O Universalismo Construtivo de Joaquin Torres-García de caráter purametne abstrato. Vejam os o que ele tem a nos dizer no artigo Vouloir Construire", escrito em 1930, quando de sua participação no movimento Cercle et Carré: "Desde que o homem abandona a cópia direta da natureza e faz de sua maneira uma imagem, sem querer recordar-se da deformação visual que impõe a perspectiva, ou seja, já que se desenha preferencialmente a idéia de uma coisa, e não a coisa no espaço mensurável, inicia uma certa construção Se no mais se or­ dena essas imagens, procurando harmonizá-las ritmicamente de maneira que elas pertençam mais ao conjunto do quadro que ao que elas querem exprimir, tem-se já atingido um degrau mais elevado de construção. Mas isso ainda não é a constru­ ção tal qual a encaramos. Antes de aí chegar, devemos ainda considerar a forma. Como representação das coisas, essa forma não tem um valor para ela mesma e não se pode chamá-la plástica. Mas logo que essa forma contém um valor em si quer dizer pela expressão abstrata de seus contornos e de suas qualidades — ela ga­ nha uma importância plástica, e se pode dizer de uma obra assim concebida que ela participa já de uma certa construção. Pode-se ir mais longe — considerar a uni­ dade da superfície. Essa superfície vai ser dividida, essas divisões vão determinar o espaço, esses espaços devem ser em relação: deve existir entre eles uma equivalên­ cia a fim de que a unidade do conjunto fique inteira. Por em ordem já seria alguma coisa, mas pouca coisa. Criar uma ordem é o que é necessário."(4) "Vouloir Construire", de Torres-García, pertence ao espírito dos mo­ vimentos construtivos do início do século. Desde o processo de romprimento da arte do século XIX com a perspectiva renascentista, passando pela busca de Cézanne que visaria construir sobre as sensações visuais, um estado de consciência dado no empenho mesmo da operação pictórica até, o processo de decomposição formal dos cubistas, a arte ingressou na formalização epistemológica de sua linguagem e assumiu sua autonomia. É com essa intenção de fincar paradigmas no campo da arte, que os movimentos construtivos foram os que mais se aproximaram de uma estética de caráter racional e abstrata, rejeitando o contemplativo da representação. O movimento construtivo Cercle et Carré foi de máxima importância para o desenvolvimento do Universalismo Construtivo de Torres-G arcía. E a partir de sua organização proposta por Michel Seuphor e pelo próprio Torres-García, que se reúnem toda as tendências de arte não-figurativa, na intenção de colocar às cla­ ras os fundamentos do pensamento construtivo e combater o Surrealismo, simpáti­ co à maior parte do público e imprensa parisienses da época. Segundo Ronaldo Bri­ to: O Surrealismo privilegiava a metáfora como recurso de representação enquan­ to os construtivos lutavam justamente para romper o espaço metafórico em que es­ tava encerrada a pintura e para estabelecer uma teoria de produção visual, desliga­ da da representação."!5) É neste momento que Torres-García, se aprofunda nas idéias construtivas e especialmente se seduz pela teoria neoplástica da arte. 262

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MARIA FERNANDA TERRA MALUF

A pintura de Torres-García, antes mesmo de ingressar na busca de um espaço plástico puro e em uma linguagem abstrata da arte, tem como base as pinturas de Puvis de Chavannes, onde o tempo e o espaço reais são deslo­ cados para um simbolismo de dimensão mítica. Torres-García, neste momen­ to, aproxima-se de uma linguagem visual simbólica longe da realidade objetiva. Antes mesmo de se influenciar pelos conceitos de estrutura e teorias univer­ sais do Neoplasticismo; absorveu as inovações plásticas do Cubismo, especi­ almente o Cubismo Sintético que inaugura, de acordo com Ive Alain Bois, "a moderna investigação semiológica da arte; a a b s t r a ç ã o " .C o m o Cubismo, Torres-García pode concretizar a decomposição do espaço segundo um único critério estrutural (que será reforçado quando de seu encontro com o Neoplas­ ticismo), a não-distância entre a figura e o fundo, a cor como componente es­ trutural da pintura e a utilização de tons como resolução cromática. TorresGarcía leva a termo a discussão inaugurada pelos cubistas sobre a não-substanciação do signo e sua arbitrariedade, quando propõe a utilização de formas simbólicas destruindo qualquer referência à realidade objetiva. Por fim, TorresGarcía influencia-se pelo Naoplasticismo Holandês, principalmente com a figura de Piet Mondrian, na busca de um espaço plástico puro revelando, no entanto, par­ ticularidades expressivas. Na pintura de Mondrian do período neoplástico observamos o emprego de elementos primários em uma estrutura planar geometrizada: as or­ togonais compõem o quadro e as cores primárias: o vermelho, o azul, o ama­ relo, além do preto e do branco resolvem as tensões da tela. Com os puros elementos, estabelece não uma relação de semelhanças, mas uma relação de equivalências obtendo o equilíbrio da composição através da proporção justa dos opostos. Mondrian não parte de uma noção prévia do espaço. Ele formu­ la uma hipótese de espaço. Com isso, seu quadro apresenta-se puro de todos os sentidos que não seja a abstração. Diria Mondrian no artigo Arte Plástica e Arte Plástica Pura de 1937: "Enquanto os cubistas, partindo de uma base naturalista, possibilitam o uso vigoroso dos meios plásticos, mas ainda meio objeto, meio abstrato; a base abstrata da arte plástica pura resulta no uso de meios plásticos puramente abstratos."<7) Já Torres-García constrói em seu espaço plástico uma malha geometri­ zada a partir do emprego de retângulos áureos. Como podemos observar no quadro "Construction" de 1933, do período construtivo universal, a superfície do quadro está totalmente preenchida de linhas verticais e horizontais formando retângulos de diferentes tamanhos, que obedecem a lei matemática da medida áurea, mantendoos dentro de um ritmo a partir das subdivisões dos segmentos de l i n h a .E l e consGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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trói sua malha geometrizada à mão-livre. Dentro de cada retângulo, ou melhor, subespaços do quadro, o artista cria for­ mas simbólicas, as quais, pressupõe co­ mo sendo formas puramente geométricas e abstratas. Estas também são desenha­ das à mão-livre. Na utilização de cores, ele opta por não usar as cores primárias tão decisivas para a construção neoplástica. A variação ou matizagem das co­ res é o que introduz o elemento pictó­ rico no Universalismo Construtivo: o tom. Torres-García explica que: "O tom, por suas gradações estruturais, contribue a for­ ma arquitetônica e agrega pontos na su­ perfície pintada. Porque é algo quantita­ tivo ao invés de qualitativo, pode criar uma síntese entre o positivo e negativo do branco e preto."W No caso em que esta­ mos analisando, o tom cinza distribuído por todo o espaço do quadro, vem estimu­ lar sua planaridade e unir as linhas verti­ cais e horizontais com as formas simbóli­ cas, tornando o quadro um todo único. A variação ou matizagem das cores e o en­

Joaquin Torres-G arcía "C o n s tru c tio n ", 1933 Òleo sobre madeira, 5 7 ,8 x 3 3 ,6 cm Coleção Royal S. M arks Gallery Ltd., Nova York

contro com o tom trariam a subjetivi­ dade desejada pelo artista. Portanto, as linhas, as formas simbólicas e as áreas de cor são elementos unificados na superfície do quadro de maneira sistemáti­ ca e, como pretendia Torres-García, abstratos como um todo. Em Mondrian, Torres-García compreende a importância da questão abstrata para a arte moderna, assimila a concepção de estrutura e espaço do quadro com o agregação formal. No entanto, ele pretende uma arte onde a subjetividade se apresente. Enquanto M on­ drian atua sobre a materialidade dos meios plásticos na construção de sua tela, TorresGarcía parte de um ideal de espaço que, por sua vez, atende a um ideal de arte, que por fim atende a um ideal de homem que se encontra no equilíbrio da sua facul­ dade mental ou racional e emocional. Considera o homem não com o representação do universo, mas sendo o próprio universo, sendo a geometria a forma universal e ideal de expressão humana. A arte não deve ser descrição ou imitação da nature­ za, mas sim conjuntos dentro de uma ordem estética. A vida plástica virá, assim, 264

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do funcionamento destes conjuntos atendendo a uma ordem estética abstrata que, por sua vez, foi formulada por esse Homem-Universo idealizado pelo artista.(10) A arte concorrerá para o equilíbrio entre o racional e o emocional, abrindo espaço para expressividade e subjetividade em suas pinturas. Podemos observar que Torres-García introduz elementos de sua teo­ ria sobre o homem e o universo dentro do espaço plástico, afasta-se do plano pura­ mente pitctórico para privilegiar um plano metafísico concebido por ele. Essa dis­ cussão será agora ampliada na análise das formas simbólicas. Para Torres-García, forma simbólica ou "símbolo puro" deve ser en­ tendido como forma geométrica sem valor algum de significação a não ser a pró­ pria abstração. Constrói, em um primeiro momento, ou seja, até 1929, nas suas pin­ turas, as formas simbólicas a partir das formas do quadrado, do triângulo e do cír­ culo. A disposição dessas formas geométricas dentro de um sistema e suas varia­ ções surgem-nos como forma simbólica. Por exemplo, um círculo poderá ser um sol, um relógio ou uma roda: de um quadrado e um triângulo surgirá uma casa e de dois quadrados menores portas e janelas. E somente a partir de 1930 que o artis­ ta incorpora, ao seu universo de formas, símbolos de culturas arcaicas, como pode­ mos observar no quadro "Composición Universal" de 1937. Quando o espectador vê-se diante de uma tela construtiva universal da primeira fase, ele não poderá deixar de reconhecer algumas das formas simbóli­ cas criadas pelo artista. Na verdade, as formas simbólicas são signos gráficos per­ tencentes a uma semântica decodificada pela cultura ocidental européia. Roman Jakobson, ao analisar a distinção entre significante e significado de todo signo lin­ guístico estabelecido por Peirce e Saussure, discerniu três variedades fundamentais do signo: "O ícone, que opera pela semelhança de fato entre o significante e o signi­ ficado; por exemplo, entre a representação do animal e o animal representado: a primeira ou a representação do animal equivale ao segundo ou animal representado simplesmente por se parecer com ele. O índice, que opera pela contigüidade do fato vivido, entre significante e significado; por exemplo, a fumaça é índice de fogo. E o Símbolo, que opera por contigüidade instituída, apreendida, entre o significante e o significado. Esta conexão consiste no fato de que constitui uma regra e não de­ pende da presença ou ausência de qualquer similitude ou contigüidade de fato. O intérprete de um símbolo, qualquer que seja, deve obrigatoriamente conhecer esta regra convencional e "é só e exclusivamente por causa desta regra" que o signo será efetivamente interpretado. Por exemplo, o símbolo da justiça, a

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As formas simbólicas da primeira fase do Universalismo Construtivo de Torres-García são, de fato, signos icônicos, tais como: a representação gráfica do relógio, do peixe, da casa, etc. Não obstante, deixaram de ser apenas signos icô­ nicos quando o artista, já na segunda fase de sua proposta plástica, apropria-se de GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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O Universalismo Construtivo de Joaquin Torres-García símbolos de culturas que não a européia; misturando-os com os signos icônicos da primeira fase. Dois são os motivos pelos quais o artista une os signos icônicos com símbolos de culturas arcaicas na construção de sua pintura. Primeiro, porque TorresGarcía acreditava que as culturas arcaicas, tais como a cultura pré-colombiana, afri­ cana, egípcia, caldéia, grega, etc. possuíam a noção da verdadeira arte, quando ma­ nifestavam uma síntese baseada em uma visão abstrata da realidade. Nenhuma des­ sas culturas realizavam uma arte de caráter mimético, não se prestavam a um olhar renascentista da arte. As formas plásticas atendiam à noção de bidimensionalidade, planaridade, à não-volumetria. Para Torres-García, manifestavam o verdadeiro es­ pírito da arte. Segundo, quando Torres-García reúne os signos icônicos ou formas simbólicas” e os símbolos de outras culturas em um mesmo espaço plástico, ele não o faz de forma aleatória. Esvazia os símbolos de suas semânticas originais e depois os re-semantiza para criar uma nova sintaxe. Tem como meta criar uma ordem, construir. Ele coleta, penera e purifica a argila em tijolos puros, e depois os funde a outros materiais num lógica de arquitetura. Torres-García vê nos símbolos a pos­ sibilidade da forma pura ideal, material básico para a significação que viria a impor em sua construção. Tal significação é evidente quando o artista cria um vocabulário for­ mal para as formas baseado em um ideal metafísico da existência. Segundo Barbara Duncan<12) ele possui uma concepção de mundo e de arte ideal que se revela a par­ tir de três planos que podem ser vistos no desenho "Composición Cósmica com hombre abstrato”, de 1933: o plano mental ou racional, do domínio da razão, do abs­ trato, das idéias — o mundo dos números, das leis e das regras geométricas, o mun­ do do macrocosmo do artista representado pelo triângulo. O plano emocional, do domínio da emoção — o mundo intuitivo e da moral representado pelo coração, o mesocosmo da alma. E o plano da matéria, do domínio do material — a realidade aparente — a vida instintiva: a vida vegetal, animal e o reino mineral representado pelo peixe. Todos esses planos compreendem uma totalidade e correspondem a uma linguagem metafísica do artista. Em outros dois desenhos, intitulados "Plano Intelectual" e "Forma Sím­ bolo" de 1930, podemos observar que o mesmo processo de estruturação ideal ser­ ve para a elaboração dos símbolos. Eles também sugerem os três planos da existên­ cia do homem, dentro de um plano total, universal e ideal. Torna-se ainda mais clara essa ordenação semântica através de um ideal metafísico quando tomamos novamente como exemplo o quadro "Construction", de 1933. Notamos que os símbolos estão agrupados nos subespaços da tela de ma­ neira a se referenciarem a cada plano da ordem proposta pelo artista. Da metade 266

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da; no meio do quadro estão os símbolos que compõem a concepção do mundo emocional, intuitivo, tais comno: o cora­ ção, o sol, a mão, a escada, a balança; e os símbolos desenhados na parte inferior do quadro enquadram-se na concepção do mundo material: animal, vegetal e mine­ ral, tais como: o caranguejo, o caramujo, o homem, a mulher. Fica-nos clara também a ordenação hierárquica dos planos e sím­ bolos dentro da composição pictórica. Conclui-se que as pinturas do período universalista construtivo nos

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chega como uma tentativa de reestrutu­ ração das linguagens construtivas; onde

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Joaquín Torres-García "Composición Cósmica Con Hombre A bstract", 1933 Têmpera sobre cartão, 74,9 x 10,2 cm Coleção Familiar, Montevidéo

Torres-García, através da criação de uma metafísica própria e do emprego de sub­ jetividade, resgata a expressão contra a objetividade de uma arte puramente racionalista.

No entanto, se a estrutura geométrica dos retângulos áureos o mante­ ria nos limites plásticos das propriedades expressivas sem fim e da arte em si, o alegorismo poético e espiritualista das formas simbólicas constróem menos uma lin­ guagem plástica que um discurso impregnado de ideais éticos e morais, quando da construção de um homem-universo ideal, e ideológico quando de sua volta à Amé­ rica do Sul. Neste momento, intensifica-se a utilização das formas simbólicas de cul­ turas pré-colombianas, na intenção de criar uma codificação própria para a arte latino-americana, frente à grande dependência cultural e artística européia que se encontrava a comunidade artística uruguaia. Torres-García abre o Atelier de Arte Construtiva Universal e funda a Associação de Arte Construtiva, no intuito exausti­ vo de fazer compreender os conhecimentos teóricos e plásticos do que ele considerava a única e verdadeira artes plásticas: o Universalismo Construtivo. Volta para o Uru­ guai em 1934. Em um momento de crise da sociedade capitalista moderna, entre as duas grandes guerras, parece ao artista que o homem moderno constrói para destruir. GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Joaquín Torres-García "Plan Intelectual", 1930 Lápis sobre papel, 15,2 x 10,2 cm Coleção Familiar, Montevidéo

Joaquin Torres-Garcia "Form a S im b o lo ", 1930 Lápis sobre papel, 22,6 x 14,0 cm Coleção Familiar, M ontevidéo

A Arte construtiva universal de Torres-G arcía estava tomada de um humanismo motivado por um conceito mítico-metafísico da história universal, ar­ rebatando assim o artista e suas pinturas dos domínios próprios e exclusivos das artes plásticas. Torres-García, em carta escrita para Guilherme de Torre em novem­ bro de 1937, deixa escapar a dimensão que ele propunha para seu trabalho artísti­ co: "Mas, o mais interessante é o grupo que formei. Não é uma sociedade artística como qualquer uma... sabe que minha arte não quer ser apenas uma manifestação estética, mas que tem outra base que pretende compreender a toda ordem de coisas por um sentido universal. Pois bem, em tal plano descansa esta instituição, que trans­ cende o mero aspecto artístico quase bordeia o religioso."(13) Por fim, gostaria de ressaltar que a análise realizada neste artigo se mantém no tocante às pinturas do período universalista construtivo. Torres-García agirá de forma menos dogmática, no que se refere às construções escultóricas do mesmo período, mkntendo-se no campo plástico, onde podemos perceber uma ten­ tativa de reestruturação das linguagens construtivas a partir de uma releitura das 268

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diversas propostas modernas de aproximação teórica com a arte. Quando TorresGarcía aproxima-se do objeto plástico em sua concretude material, ele cria um sis­ tema de interações conceituais que busca, no interior das dessemelhanças existentes nos movimentos históricos modernos, uma síntese possível para eles. Torres-García possui, ambiguamente, duas grandes preocupações, ao lidar com a arte plástica: a vontade de construir uma arte verdadeira, que só poderá existir na presença de um Homem-Universo ideal, e a vontade de construir uma verdade da arte, que se dará no embate com a matéria plástica em sua concretude. Notas ( 1 ) Neste artigo, ateremo-nos apenas à análise crítica das pinturas de TorresG arcía, sem problematizar as construções escultóricas, já que estas necessitam de uma outra abordagem e não haveria espaço para apresentá-la neste artigo. Deixamos tal análise para uma segunda oportunidade. ( 2 ) Uma detalhada descrição destas e outras influências estão em: DUNCAN, Barbara. Joaq u ín T orres-G arcía, 1974-1949, C ron ologia e C a tálog o d e la c o le c c ió n Fam iliar. Austin, The University of Texas at Austin, 1974, p. 138. ( 3 ) Grande parte da obra de Torres-G arcía foi destruída no incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978. ( 4 ) Traduzido por Waldir de Mello Barreto Filho do artigo: TORRES-GARCÍA, Joaquín. "Vouloir Construire". In: VVAA, Cercle et Carré, org. por SERS, Philippe, Paris, Pierre Belfond, 1971, p. 45. ( 5 ) BRITO, Ronaldo N eocon cretism o, Vertice e Ruptura d o P rojeto Construtivo B rasileiro. Rio de Janeiro, FUNARTE/Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1985, p. 27. ( 6 ) Traduzido pela autora, do artigo: BOIS, Ive Alain. "Kahnweilers Ixsson". In: Panting as M odel. Cambridge, The Mit Press, 1990, p. 79. ( 7 ) CHIPP, Herschel B. Teorias d e A rte M odern a. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1988, p. 27. ( 8 ) Pitágoras descobre a medida áurea e Euclides demostra com retângulos áureos as propriedades interativas da secção áurea. Ver, BOYER, Cari B. e MERZBACH, Uta C. A H istory o í M athem athics. 2ed., New York, J. Wiley, 1990, p. 57 e 124. ( 9 ) Traduzido pela autora, do livro: DUNCAN, Barbara, op. cit., p. 117. (10) Para Homem-Universo ver, TORRES-GARCÍA, Joaquín. U niversalism o C onstru tivo. Madri, Alianza Editorial, 1984, p. 147. (11) JAKOBSON , Roman. Linguística e C om u n icação. Editora Cultrix. Ed. da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1969, p. 101 (12) DUNCAN, Barbara, op. cit., p. 95. (13) Carta de Joaquín Torres-García a Guilhermo de Torre de 18 de novembro de 1937, traduzido pela autora, do livro: GRADOWCZYK, M ário H. Joaqu ín T orres-G arcía. Buenos Aires, Ed. de Arte Gaglianone, 1985, p. 62.

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3? do Carmo do Rio de Janeiro — Ênfase no Altar-Mor Aceito para publicação em maio de 1994. Três mestres toreutas se destacam na produção da talha da Igreja da Ordem 3a do Carmo do Rio de Ja­ neiro: Luiz da Fonseca Rosa, Valentim da Fonseca e Silva e Antônio de Pádua e Castro. Suas interven­ ções são aqui identificadas, analisadas e compara­ das. Dando ênfase ao Retábulo-mor, buscamos es­ tabelecer o momento colonial principal a ser privile­ giado, inclusive para neutralizar modificações pos­ teriores que interferiram na sua composição visual. A questão do Estatuto do Artista no Brasil Colonial, e sua alteração durante o século XIX, é discutida atra­ vés do caso exemplar destes três mestres. Talha Religiosa Estatuto do Artista Rio de Janeiro Sete e Oitocentista

RU TH NINA V . FERREIRA LEVY Formada em Arquitetura pela UFF, Museologia pela UNI-RIO e pelo Curso de Especialização em Histó­ ria da Arte e Arquitetura no Brasil PUC-RIO; é museóloga da Fundação Cultural Eva Klabin.

1. Introdução A talha da Igreja da Ordem Terceira do Carmo do Rio de Janeiro (fig. 1) passou, em seu primeiro século de existência, por três diferentes momentos, com a intervenção de três mestres entalhadores. No primeiro, registra-se a atuação do mestre Luiz da Fonseca Rosa, a respeito de quem pouco se sabe e cuja obra não foi suficientemente estudada, até mesmo em função da reduzida documentação existente. O segundo inicia-se em 1780 com a intervenção de mestre Valentim da Fonseca e Silva, tendo esta sido já maté­ ria de aprofundados estudos*1). O terceiro momento, que se dá já no século XIX, acontece com a contratação do mestre Antônio de Pádua e Castro para completar a talha da Igreja. A obra deste mestre foi tema de tese recente*2) que, contudo, não trata especificamente de sua produção no Carmo. Consideramos de fundamental importância o estudo de cada um des­ tes momentos, com a identificação, análise e comparação da intervenção de cada um dos artistas, bem como do resultado das mesmas enquanto unidade do conjun­ to, a fim de buscar o momento colonial principal, sua visualidade e expressão. Nes­ te sentido, mesmo tendo sido enfatizado em nosso trabalho o estudo do Altar-mor, impôs-se a necessidade de abranger a obra dos três artistas na igreja como um todo. Interessou-nos ainda chegar a modificações posteriores sofridas especificamente por este altar, a partir do final do século XIX, e que vieram a descaracterizá-lo em sua GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3? do Carmo do Rio de Janeiro - Ênfase no Altar-mor feição original, afastando-o. em sua visualidade, daquele momento principal que buscamos privilegiar. Consideramos ainda a importância de também tratar, através do caso exemplar desses três mestres toreutas, a questão do estatuto do artista no Brasil Co­ lonial e analisar o quanto se alterou, durante o período de um século, o reconheci­ mento social a ele conferido. 2. Os Três Mestres no Carmo 2.1 Mestre Luiz da Fonseca Rosa

O pouco que se sabe sobre o mestre Luiz da Fonseca Rosa deve-se a um depoimento seu, dado quando serviu de testemunha nos autos de um litígio en­ tre marceneiros e entalhadores no Rio de Janeiro*-'1. Português, nascido por volta de 1700, teria aprendido o ofício de entalhador na cidade de Lisboa, tendo ali traba­ lhado durante muitos anos. Sua presença como entalhador na Igreja da Ordem 3 d do Carmo está comprovada, sendo a ele atribuída a autoria dos retábulos laterais. O comendador Serzedello afirma que "a 11 d e d e z e m b r o d e 1768 (...) o rd en o u a M esa se desse a fazer a o b r a d e talh a(...) a o m estre Luiz d a Fonseca R o sa " [4) e Rodrigo Mello Fran­ co cita um lançamento em seu favor de "despesas c o m v á rio s m im o s"*5h Foi-nos também possível localizar um documento que liga o seu nome à feitura de um "altar qu e se fez na n o v a C apela d o Sr. d a Cruz as c o s ta s " ^ (fig. 2). A respeito do A ltar-m or propriamente dito, a única referência que se tem do que teria sido o risco' de Fonseca Rosa, é dado justamente quando a Mesa decide, em 1780, a colocação do último Passo da Paixão no Altar-m or "fazendo-se o throno, tiran d o-se as colu m n as d ireitas e p o n d o o u tras retorcidas"W , de acordo com risco de mestre Valentim. A descrição desta intervenção nos leva a crer que, possivelmente, houvesse um risco' definido por Fonseca Rosa para todo o Altar-mor, e que determinava as colunas de fuste reto, mas que ele não estivesse executado em sua totalidade até a data referida. Para analisar o que teria restado do trabalho de Fonseca Rosa neste al­ tar, estudamos os altares laterais do templo, na busca de uma definição do que seria o seu vocabulário formal e a visualidade por ele proposta. Levando-se em conta a informação do aprendizado lisboeta do ofício torêutico de Fonseca Rosa, nos parece fundamental tentar buscar, a partir daí, origens para algumas das características da sua produção artística. Sabemos que ele atuou na capital da Metrópole durante o período joanino, que se caracterizou pela importação de modelos estrangeiros, com enorme receptividade ao barroco italiano, aos elementos do barroco da corte de Luis por fim, ao vocabulário ornamental do rococó. Consideramos essencial a Cj ÁVEA. 12 (12), dezembro 1994


influência dessas correntes estilísticas na formação artística de Fonseca Rosa. Sua produção prioriza a linguagem ornamen­ tal do rococó e simultaneamente mostrase ainda fortemente ligada às questões es­ truturais do barroco. Os seis altares laterais da na­ ve, que formam a primeira encomenda de talha para o interior do templo, possuem riscos praticamente idênticos, diferindo apenas em detalhes relativos à iconografia correspondente a cada Passo da Paixão. Apresentam pouca profundidade mas pos­ suem uma estrutura baseada em certa mo­ vimentação, numa dinâmica ainda franca­ mente ligada ao barroco. Cada um destes altares está inscrito em um arco pleno so­ Fig. 2 - Altar Lateral do Senhor com a Cruz às Costas de autoria de Luiz da Fonseca Rosa e pilastras de autoria de Antônio de Pádua e Castro na Igreja da Ordem 3® do Carmo, RJ Fotografia: IBPC

bre pilastras, possuindo um par de colu­ nas torsas de terço inferior estriado e par­ te superior com as espiras decoradas com

motivos florais, suporte característico do barroco berniniano. Abaixo do nicho, um corpo saliente abriga o sacrário e, no coroamento, um frontão curvo interrompido sustenta duas figuras angélicas de corpo inteiro, tendo ao centro uma carteia. Con­ trastando com esta decoração marcadamente barroca, aparecem em abundância fi­ guras de querubins, elementos fitomorfos, com predomínio das flores, em guirlandas ou bouquet, e ainda rocalhas, volutas e chinesices, com douramento nos relevos sobre fundo claro, o que confirma a tendência de conjugá-la à ornamentação roco­ có. Vale ainda salientar a presença discreta de um motivo em xadrez que orna um pequeno trecho das laterais do sacrário. Este motivo, de origem francesa, ligado ao período da Regência, aparece em pormenores da decoração do coche de D. João V, obra que, no dizer de Robert Smith, pode ser considerada a primeira grande expres­ são do rococó na talha portuguesa(8). Para analisar o que teria levado Fonseca Rosa a abandonar as colunas torsas, já adotadas para os altares laterais, e idealizar um retábulo-mor baseado em colunas de fuste reto, cabe aqui introduzir a questão da ordem racionalizante, im­ posta pelo gosto pombalino para a arquitetura da reconstrução de Lisboa, após o terremoto de 1755. Realizada à luz do Iluminismo, esta arquitetura foi marcada pela GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3? do Carmo do Rio de Janeiro - Ênfase no Altar-mor simplificação formal e ritmo classicizante. O estilo pombalino, mesmo privilegian­ do o neoclassicismo de Luigi Vanvitelli — arquiteto romano que reintroduz em Por­ tugal o uso da coluna clássica, de fuste reto — permitiu conjugar, para portadas de templos e palácios, elementos da ordem clássica acadêmica com algumas formas bar­ rocas de linhas ondulantes*^). A influência deste estilo, que passa a ser registrada em alguns elementos ornamentais dos nossos templos, certamente orientou a pri­ meira escolha das colunas direitas para o Altar-mor da Igreja do Carmo, que rece­ beria assim, um tratamento mais sóbrio e monumental que os altares laterais. 2.2 Mestre Valentim da Fonseca e Silva

É bem mais o que se sabe sobre o mestre Valentim, filh o d e um fidalgote português, con tratador de diatnatites, e de um a criou la d o Brasil (lll) que, leva­ do por seu pai para Portugal, a fim de se educar, logo regressou, passando a viver no Rio de Janeiro até a sua morte. Nair Batista, em 1940, levanta documentos comprobatórios de impor­ tantes trabalhos seus e, mais recentemente, entre os de outros pesquisadores, destaca-se o trabalho de Anna Maria M. de Carvalho, que muito contribuiu para o conheci­ mento sistemático da obra de Valentim e para a análise de suas características for­ mais e estilísticas. Nos documentos da Ordem 3? do Carmo, o nome de Valentim aparece ao lado do de Fonseca Rosa em 1772 e, no ano seguinte, já com o mestre nas obras de talha da capela do Noviciado*1D. Valentim foi chamado a intervir no Altar-mor da Igreja em 1780, portanto já depois da obtenção de resultados satisfatórios na C a­ pela do Noviciado (fig. 3). Maria Luiza Salgado*12* levanta a hipótese de que estes resultados tenham sido de tal forma satisfatórios que o A ltar-m or da Igreja tenha parecido, em termos estéticos, não estar à altura dessa Capela, e daí ter a Mesa re­ solvido encomendar a Valentim sua alteração. Estudos comparativos realizados por Anna M aria M. de Carvalho*13* acerca dos retábulos-mores de autoria de mestre Valentim, mostram que o partido por ele adotado para o Altar de N. Sra. do Carmo apresenta elementos formais de estru­ tura e composição ornamental que se repetem em praticamente todos os seus retábulosmores, marcados pelo trono piramidal, "um a das constantes d o retábu lo barroco qu e persistem no rococó carioca"<14>, aparecendo a imagem da invocação principal à ba­ se da pirâmide e a do último Passo da Paixão no topo. A devoção ao Calvário, que remonta às estações da Via Crucis na Ida­ de Média, com a peregrinação de substituição'*13*, teve papel de grande relevância no Barroco, com a construção dos 'Sacros Montes', obedecendo a tendência de con­ ferir caráter sagrado não apenas aos espaços interiores mas também aos exteriores. Entretanto, para que fosse mais acessível e portanto mais abrangente e persuasivo, 274

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o desenvolvimento deste programa icono­ gráfico exigiu que o modelo fosse levado também para o interior das igrejas. Na Or­ dem 3? do Carmo é possível comprovar esta tradição, expressa desde a definição de seus primeiros estatutos que já determina­ vam a "visita a sete estações cham adas comumente — Sete Passos, que se veneram em a igreja de nossa O rdenfõà)t aparecendo os seis primeiros nos altares laterais e a ima­ gem do Senhor do Calvário no fundo do Altar-mor, representando o sétimo Passo. Considerando a modificação do risco de Fonseca Rosa por Valentim, le­ vantamos duas hipóteses: o Altar-mor não estava pronto, e já que o artista foi cha­ mado a intervir, resolveu adotar um risco próprio; porque houve imposição por parte Fig. 3 - Altar-m or da Capela do Noviciado da Igreja da Ordem 3? do Carmo, RJ Fotografia: IBPC

da Ordem em colocar a imagem do últi­ mo Passo no topo do altar, que aliás já fo­ ra encomendada desde 1762 (mais tarde

Valentim adotou este partido em outras igrejas). Na talha de Valentim para o Altar-mor (fig. 4) é possível sentir a in­ fluência de seu mestre, tanto na escolha do repertório formal quanto na solução de alguns elementos. No entanto, diferenças de risco e lavra vão distinguir a grafia plás­ tica valentiniana, bem como a introdução de elementos formais originais que se con­ solidam como próprios do vocabulário do mestre. E marcante a semelhança entre as colunas torsas berninianas adotadas por Valentim como suporte principal do retábulo-mor e as de Fonseca Rosa nos altares laterais. Os elementos de composição são praticamente os mesmos mas, em termos de grafia plástica, o tratamento de Va­ lentim é mais detalhado e precioso. O retábulo-mor, inscrito em arcada triunfal pela marcação curvilínea do teto, tem tratamento estrutural em profundidade. Entre as colunas, há semi-pilastras com apliques rococós emoldurados sobre fundo apainelado formando com a proje­ ção dos corpos das colunas um jogo de saliências e reentrâncias, de cheios e vazios. Esse tratamento em profundidade continua a partir da abertura da tribuna, em arco pleno, e do desenvolvimento do trono em pirâmide escalonada, terminando com a composição do dossel que coroa a imagem do último Passo da Paixão. Marca a su­ gestão de teatralidade bem como determina para o retábulo o caráter de porta de GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3? do Carmo óo 1 Rio de Janeiro - Ênfase no Altar-mor

Fig. 4 - Aspecto do Retábulo-m or da Igreja da o rd e m 3? do Carmo, RJ Fotografia: IBPC

passagem para o mundo do sagrado, do divino. Toda a dinâmica que este tratamen­ to estabelece, confere a esse altar a característica salientada por Maravall(17) de que a obra barroca parece assinalar algo colocado adiante dela mesma, como se ela não fosse mais que uma preparação. O olhar do espectador (aqui o fiel) movimenta-se até o que a obra propõe — o caminho de passagem do terreno para o divino — uma retórica que cria a possibilidade de ação sobre o ânimo de seu destinatário. A movi276

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mentação e o jogo de cheios e vazios são acentuados pela abertura dos nichos late­ rais, que abrigam as imagens de Santa Tereza e Santa Emerenciana, marcando cor­ pos salientes sobre os planos parietais oblíquos, o que reforça a idéia de profundidade. No coroamento, composto de fragmento de frontão em curva, "onde apontam m od ilh ões em volutas acentuadas, remate em perfil à chinesa e fech o deco­ rativo, tendo duas grandes figuras angélicas posternadas dispostas nos fragmentos de fron tão e grande tarja a o centro em oldu rada ern glória e resplendor"*18*, é nítida a influência do 'risco' de Fonseca Rosa, dada à semelhança que apresenta com os coroamentos dos altares laterais. Podemos entretanto verificar que, enquanto este tra­ balha com frontões interrompidos em seus altares, Valentim vai adotar apenas frag­ mentos de frontão em sua composição, dando mais destaque para a parte central que recebe um tratamento monumental. Concordamos com Anna Maria M. de Carvalho quando considera que o coroamento do Altar-mor esteja marcado pelas linhas sinuosas da portada (pom­ balina) da fachada do Carmo. Esta portada, vinda de Portugal em 1760, com meda­ lhão italianizante e perfil à chinesa, possui em sua composição elementos que foram reproduzidos não apenas nos coroamentos dos altares como também em outras por­ tadas da igreja. Valentim faz uso de elementos ornamentais "ambiguamente represen­ tativos da estética rococó e da sim bologia cristã", conciliando os símbolos iconográ­ ficos e a hierarquia angélica com o repertório rococó de conchas, volutas, festões de folhas e bou qu et florais, penachos, feixes de palmas, laçadas de fita, além das espanholetes' "numa apreensão form al simultaneamente sagrada e profana"*19*, con­ jugação esta menos presente na obra de Fonseca Rosa. 2.3 Mestre Antônio de Pádua e Castro

Nascido em 1804 em Magé, foi trazido por seus pais para o Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro. Ficando órfão começou a estudar arte torêutica com Brás de Almeida e posteriormente com Francisco de Paula Borges e Francisco Xavier Soares, discípulos de Valentim, ingressando depois na Academia Imperial de Belas Artes. Além de ter freqüentado a classe de Escultura de Ornatos, provavel­ mente recebeu também na Academia alguma formação na área de Arquitetura, uma vez que realizou obras de ampliação de várias igrejas, além de ter atuado como res­ ponsável pela reforma do prédio da Academia em 1867. Em 1863 passou a professor de Escultura de Ornatos na Academia Imperial. Suas primeiras obras datam da dé­ cada de 1840 e se referem à escultura de peças acessórias. A partir da década de 1850, trabalhou na talha de quatorze igrejas, desempenhando um papel de grande relevân­ cia no cenário artístico do Rio de Janeiro no século XIX, tendo sido o torêuta mais GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3? do Carmo do Rio de Janeiro - Ênfase no Altar-mor

atuante do período. Na Igreja da Ordem 3 a do Carmo, Pádua e Castro completou a deco­ ração da nave, revestindo de talha os espaços compreendidos entre os seis altares late­ rais e por sobre os mesmos, bem como as laterais da arcada da Capela-mor. No Altarmor, realizou consertos no trono, introduzindo algumas modificações na talha de Valentim, e abriu sobre o mesmo um lanternim, valorizando o efeito da luz natural sobre a imagem do Senhor Crucificado. Esta solução por ele adotada também em outras igrejas em que trabalhou, mostra que as intervenções do artista, em grande parte dos casos, não se limitaram unicamente à talha. Ao se dedicar a uma forma artística profundamente ligada à estética setecentista, já que seu trabalho foi feito de modo a harmonizar sua obra com a já existente<20), Pádua e Castro, que por sua formação acadêmica e pela vivência de sua época já era sensível à tendência classicizante, desempenhou a tarefa de executar uma obra coerente com o legado recebido do século anterior, mas buscando uma adequação ao gosto oficial de sua época: o Neoclássico. Se nas talhas de Rosa e Valentim encontramos uma mesma linguagem, apesar das características particulares de cada artista, na de Pádua e Castro é nítida a diferença, principalmente no que diz respeito ao tratamento da superfície: enquan­ to a talha setecentista parece surgida da própria movimentação das superfícies, a sua caracteriza-se por uma decoração que parece aposta, aplicada ao plano parietal. Pádua e Castro, incumbido de ornar de talha espaços de marcante ver­ ticalidade, partiu fundamentalmente do tratamento dessas superfícies como pilastras (fig. 2), adotando elementos do vocabulário formal setecentista, reinterpretados se­ gundo a linguagem neoclássica. Estas possuem capitéis coríntios, de acentuada rigi­ dez formal, e são emolduradas por uma guirlanda composta de sucessivas flores com pétalas fechadas, em relevo, enroladas' por uma ramagem que sobe no sentido de espiral, numa possível referência às colunas torsas de Fonseca Rosa e Valentim. A parte interna é decorada com apliques formando medalhões. O central é composto de duas figuras angélicas (querubins), dispostas verticalmente, tendo ao centro uma carteia trazendo símbolos da iconografia cristã. No inferior, que fica na altura dos olhos do observador, Pádua e Castro criou o motivo mais elaborado, de maior volumetria e complexidade formal. Sua figura principal é uma cabeça de fisionomia angélica que possui formas abstratas curvilíneas sugerindo e ocupando o espaço de asas. Demonstram que, apesar do inevitável compromisso do artista com o tema re­ ligioso, existe já uma liberdade maior conferida através do tratamento mais despido do caráter angélico (fig. 5). Aqui vale um paralelo com as 'espagnoletes' de Valentim (fig. 6), cujo aspecto de figuras cortesãs estaria resguardado de uma conotação aber­ tamente profana pela presença das asas. Pádua e Castro não completou a talha da igreja; a do teto e da parede 278

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Fig. 5 - Talha de Antonio de Pádua e Castro nas pilastras da nave da Igreja da Ordem 3 a do Carmo, RJ

Fig. 6. - "Espagnolete" de autoria de Mestre Valentim na Capela-mor da igreja da Ordem 3? do Carmo, RJ

do fundo do coro foram, seguramente, terminadas após a sua intervenção, caracterizando-se por uma decoração esparsada, menos detalhada e minuciosa, que em nada se compara ao tratamento majestoso anterior. E provável que a falta de re­ cursos tenha determinado este tipo de produção. Se parte do trabalho de Pádua e Castro já não havia recebido douramento, essas outras áreas são totalmente despo­ jadas de decoração em ouro. Isto não chega a comprometer a unidade ornamental do interior do templo, mas faz com que este trabalho posterior não consiga o grau de inteiração com a talha setecentista que a obra de Pádua e Castro foi capaz de con­ quistar, apesar da diferença de tratamento de superfície que confere a algumas de suas composições o aspecto de estuque. Acreditamos poder atribuir essas características da obra de Pádua e Cas­ tro principalmente à forte influência de sua formação acadêmica como aluno e de­ pois professor da cadeira de Escultura de Ornatos, que parece ter imprimido no ar­ tista a questão do ornato enquanto elemento autônomo em relação à superfície que vai recebê-lo.3 3. A Questão do Estatuto do Artista Para introduzir esta questão é interessante fazer uma comparação entre o tratamento recebido por parte da Ordem, na mesma ocasião, pelo mestre construtor/administrador da obra, Manoel Alves Setúval, e pelo mestre entalhador, Luiz da Fonseca Rosa, revelando a posição privilegiada que desfrutava o construtor, na figura do arquiteto/engenheiro, perante as demais profissões na execução de uma obra. Mesmo a Ordem considerando que já "tinha satisfeito ao mestre MaG ÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3? do Carmo do Rio de Janeiro - Ênfase no Altar-mor noel A lves Setúval o trabalho q u e tivera na adm in istração d a o b ra da C apela nova", ele é brindado "não com bens m u n danos, m as sim com um a pren da a tfiais ven erá­ vel e estim ada qu e era o E scapulário d a N ossa M ãe Santíssim a aceitan do-se p o i Ir­ m ão d esta Venerável Ordem terceira". Na mesma ocasião Fonseca Rosa é agraciado com 'mimos': "e p orqu e tam bém fo i a d v ertid o qu e su p osto o m erecim ento d o m estre Luiz da Fonseca n ão era igual a o d o dito M an oel A lves S etú val sem pre se fazia m ere­ cedor de algum a rem uneração d a O rdem pela p erfeição d a sua obra, se resolveu que o dito Irm ão p rocu rad or a custa d a m esm a O rdem lhe m an d asse um corte d e vestido de fazenda de lã honesta, (...) um ch apéu fin o e um p a r d e m eias de s e d a S 2n Cabe considerar que estes presentes eram artigos valiosos na época, mas nada se comparava ao imenso prestígio que era tornar-se irmão de uma Ordem res­ peitável, de brancos notáveis, como a Ordem 3*? do Carm o no Rio de Janeiro colo­ nial. Mesmo levando em conta o maior volume de trabalho do mestre administra­ dor, é sintomática esta diferença de tratamento que aí se manifesta. No caso específico dos entalhadores, tentamos estabelecer o estatuto dos três artistas sob a ótica de uma mesma função e analisar como e o quanto mu­ dou esta condição durante o período de um século. Na Metrópole, apesar da categoria dos entalhadores formar uma clas­ se à parte, já que estes podiam constituir loja, estava obrigatoriamente submetida ao grêmio geral dos ofícios mecânicos, a Casa dos Vinte e Q uatro, e aos seus regi­ mentos, pertencendo, até 1771, à Confraria dos M arceneiros e Carpinteiros de mó­ veis, sob a Bandeira de São José e passando depois, com os carpinteiros de móveis, para a de N. Sra. da Encarnação. A formação dos entalhadores se dava através do contato do aprendiz com um mestre, após o qual o candidato podia requerer o exa­ me perante os juízes de ofício, recebendo da Câmara uma C arta de Oficial ou Certi­ ficado de Mestre que lhe permitia abrir sua loja. Isto não o dispensava da visita bi­ mensal de inspeção feita pelo juízes, a fim de verificar a perfeição das obras e a qua­ lidade das madeiras empregadas*22), o que demonstra o estatuto de artesão que o entalhador possuía em Portugal e pode, de certo modo, explicar o motivo pelo qual o mestre Fonseca Rosa, mesmo sendo português, parece não ter desfrutado de posi­ ção privilegiada na sociedade colonial. No Brasil cada ofício tinha o seu juiz que, por sua vez, era controlado pela Câmara Municipal. Competia a estes fornecer, após exames, a Carta de habilitação que dava direito ao exercício da profissão. No litígio entre marceneiros e enta­ lhadores no Rio de Janeiro, entre 1759 e 1761, que "exem plifica um d o s a sp ecto s m ais interessantes d o regim e a qu e esta v a m su jeitas as classes d e o fíc io s durante o Brasil colonial", são autores os juízes dos ofícios embandeirados de carpinteiros e marceneiros, e réu um entalhador que estaria realizando serviços que competiam aos mar­ ceneiros, ,a que "por seu o ffic io co m p etia execu tar tão s o m e n te tra b a lh o s d e talha. 280

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oratórios, retábulos e lanternas destinadas a igrejas e d o m ic ílio s Os autos deste lití­ gio trazem informações que enriquecem a análise do que era condição do entalhador naquele momento. Os entalhadores trabalhavam sem carta, não estavam sujeitos a exames e nem tinham juiz de ofício, "sendo-lhes perm itido (...) cuidarem das ocupa­ ções pertencentes a o s marceneiros". Porém, ao mesmo tempo, "os entalhadores se sen­ tiam prejudicados p o rq u e os marceneiros ajustavam serviços para o preparo de retá­ bulos de capelas, lanternas, e outras obras de talha, valendo-se dos entalhadores que davam o risco ou consentiam que se fizessem em suas lojas e que não só os marcenei­ ros, com o os ou tros oficiais se aproveitavam dos entalhadores, qu e lhes faziam os riscos ou lhes ensinavam a fazê-lo O que este depoimento parece revelar é que, por um lado, o entalhador seria um profissional mais independente, talvez por exercer atividade que propicias­ se maior liberdade de atuação e de expressão, mas, por outro, fazia também serviços de marcenaria, provavelmente por necessidade, visto que só com a execução de servi­ ços artísticos talvez não fosse possível ao entalhador se manter. O fato dos entalha­ dores possuírem lojas-oficinas indica uma certa posição e, o de eles serem procura­ dos para fazerem riscos e modelos ou ensinarem a fazê-los, demostra-os também artistas, ainda que não reconhecidos, e não meramente técnicos, executores ou reprodutores. Este é o caso de Mestre Valentim que, segundo relata Araújo PortoAlegre possuía oficina própria para onde "corriam todos os artistas d o Rio de Janei­ ro, m orm ente os ou rives e lavrantes para obterem desenhos e m oldes de (...) tudo o que dem an dava luxo e gosto" Este texto é importante porque introduz, em 1856, a discussão da questão do estatuto do artista, com o olhar de então, em plena meta­ de do século XIX. Sobre Valentim, comenta ele como "seria difícil há 15 anos fazer o elogio d este artista, sem desafiar os ân im os daqu eles que seguiram a escola cha­ m ada clássica,"<24) Esta dificuldade de reconhecimento adivinha de que, em grande parte dos casos, como no do próprio Valentim, o artista era mestiço e proveniente de um meio social inferior, de que sua formação se dava através da prática na execu­ ção de tarefas, supervisionadas pelo mestre, e não de uma formação acadêmica. Os conhecimentos técnicos e estéticos eram adquiridos de forma empírica e os trabalhos não eram assinados, sendo apenas a marca individual deixada na obra o elemento capaz de distingui-la das demais. Por outro lado, a produção artística era fortemente comandada pela igreja e, mesmo nas oficinas laicas, era ela que direcionava a encomenda. O artista, ao se ver obrigado a emprestar "a sua ação àqueles que quisessem agir sobre o espí­ rito de seus sem elhantes para edificá-los, instruí-los ou com andá-los"í25*, tinha li­ mitada sua liberdade criativa, sobretudo na questão temática, o que leva a pensar nos limites de uma arte que era também ofício. GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3? do Carmo do Rio de Janeiro - Ênfase no Altar-mor Valentim estaria justamente neste " a m b íq u o estatu to d e artista/arte­ são"™ ). Possuía loja aberta e seu nome aparece, na maioria das vezes, precedido da palavra entalhador ou mestre, mas, ao mesmo tempo, ele não pertenceu a nenhu­ ma das Ordens Terceiras, as ricas e poderosas confrarias, privilégio dos brancos no­ táveis, tendo pertencido outrossim à Irmandade dos I ardos de N. Sra. do Rosário e São Benedito. Assim como o vice-rei Luiz de Vasconcellos foi mais pródigo em palavras d o qu e em ouro"^27) com mestre Valentim, as Ordens souberam apreciar seu trabalho, mas não o elevaram à categoria de Irmão. Coube a Porto-Alegre, no século seguinte, resgatar sua obra como arte, e a figura do Mestre como um grande artista" cujo "nom e d ev e ser v en era d o Para discutir a profunda diferença de estatuto entre esses dois primei­ ros mestres e Pádua e Castro, é necessário introduzir a questão das mudanças sociais e culturais ocorridas no Brasil, com a vinda da corte portuguesa, no início do século XIX, que determinaram a implantação do ensino artístico oficial, nos moldes do academismo francês, sob a orientação dos mestres da M issão Artística, aqui chegada em 1816. Após a vinda da Missão Francesa e a criação da Escola Real de Ciên­ cias, Artes e Ofícios, mais tarde Academia Imperial de Belas Artes, começa a se pro­ cessar a mudança do reconhecimento social do artista, de seu estatuto e de sua con­ dição. A posição de respeitabilidade que Pádua e C astro desfrutava na Academia Imperial e no cenário artístico do Rio de Janeiro se revela por opiniões como a de Porto-Alegre que diz que "a arte toreutica está em d eca d ên c ia e n ão p od erá ser res­ taurada, p o rq u e o Sr. Pádua, único q u e m erece o n o m e d e artista, não poderá d om i­ nar o espírito m ercantil da ép o c a e nem infundir o g o s to d e b ello em hom ens com o são os qu e form am a m aioria d as M ezas das nossas co n frarias relig iosas" ^ )_ PortoAlegre afirma ainda que "se o Sr. Pádua n ão restaurar esta arte, m uito terão que sofrer o s n ossos tem plos em co n clu sã o n u m paiz (...) n o q u a l se n ão com preende a form a e orn ato das igrejas s en ã o c o m o p a s s a d o '/30) De fato, com o ensino acadêmico cada vez mais integrado às nossas ar­ tes e norteando a produção dos artistas, boa parte da produção setecentista foi des­ valorizada e considerada ultrapassada. E, sem dúvida, a talha religiosa foi uma for­ ma de expressão artística que se ressentiu com a mudança de gosto. Pádua e Castro, dedicando-se tanto à talha religiosa como à escultura de ornatos na Academia, viveu a dificuldade de dividir-se entre as duas áreas de atuação e tentar conciliá-las. Nas igrejas teve, muitas vezes, sua liberdade criativa cerceada por imposições das irmandades e pelo compromisso com o passado. Na Academia distinguiu-se, em diversas ocasiões, como artista e professor de grande respeitabilidade. Em 1865, participando da Exposição geral, recebeu prêmio de me­ dalha de ouro e foi nomeado, pelo Imperador, Cavaleiro da Ordem da Rosa. 282

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O que podemos concluir é que o seu estatuto de artista foi legitima­ do através da posição adquirida via Aca­ demia, um órgão oficial capaz de, aos olhos dos leigos, conferir o título a um toreuta que sem este respaldo não passaria de um artesão. E sintomática ainda a dife­ rença do tratamento recebido pelo artista por parte da Ordem Terceira do Carmo e da de São Francisco de Paula. No caso da primeira, não é possível sentir uma mudan­ ça significativa; foi contratado como Mes­ tre e não consta ter ele recebido nenhum privilégio especial. Provavelmente por exe­ cutar uma atividade semelhante a dos mes­ tres do passado, "no mesmo estylo" e "igua­ lando seu trabalho ao que já existia", bem Fig. 7 - Imagem original de N. Sra. do Carmo, atualmente recolhida a um dos aposentos da Igreja da Ordem 3? do Carmo, RJ

como por sua formação inicial não acadê­ mica e cremos, principalmente por não ter ainda a categoria de professor, a Ordem

Terceira do Carmo não lhe conferiu o mesmo estatuto que iria desfrutar, dez anos mais tarde, na Ordem de São Francisco de Paula. Ali recebeu o título de definidor, cargo administrativo revelante, e foi chamado artista', homenagem que demonstra a posição privilegiada que alcançou, e que certamente seria inatingível no século an­ terior por um dos mestres entalhadores que passaram pela Ordem.4 4. Intervenções Posteriores Recentes trabalhos de restauração mostraram que todos os nichos da Igreja, que estavam recobertos com papel decorativo, possuíam seus fundos pinta­ dos. A recuperação destas pinturas, além de trazer à vista um testemunho artístico do período colonial, criou um marcante contraste com o tratamento liso, monocro­ mático e "frio" que o fundo do Altar-mor possui atualmente. Levantamos a hipótese de que o fundo do Altar-mor possuísse um tra­ tamento mais próximo ao dos outros nichos da Igreja; relatórios da primeira grande reforma por que passou a igreja, entre 1880 e 1883, dão conta de que "as divisões d o alto d o trono qu e fo rm ã o o camarim d o Senhor da Agonia que erão d e madeira, foram substituídas p o r estuqu e para serem pintadas, em vez de forradas a papel co­ m o até aqui"^>l \ mencionando também que o interior de todos os nichos foram "forGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3* do Rio de Janeiro - Ênfase no m d o s d e p a p el d o u ra d o (...) d e q u a lid a d e eq u iv a len te a o q u e tem atualm ente M . Estes trechos nos levam a crer que, assim com o forraram os nichos com papel, co­ brindo pinturas, é provável que o mesmo tenha acontecido com o fundo do Altar-mor. Questionamos então o por quê desta intervenção? O excelente estado de conservação das pinturas elimina a possibilidade de que tenham sido cobertas por estarem destruídas. A mudança de gosto parece ser a hipótese mais provável. A primeira forração, que padronizou o fundo de todos os nichos destituindo-os de sua ornamentação diferenciada, data de 1852 e, de fato, em plena metade do século XIX, depois da Missão Francesa e do predomínio das regras estabelecidas pela Aca­ demia, a produção colonial foi muitas vezes desvalorizada. O Barroquismo" foi con­ denado como "um d elírio d o espírito hu m an o Como na reforma de 1944 foram retirados definitivamente os fundos de madeira existentes nas laterais do trono(34>, perdeu-se aí qualquer possibilidade de se estabelecer como realmente eram, já que não restaram registros. Outra questão importante a ser aqui abordada é a de que neste século o altar foi alterado em um de seus elementos fundamentais: o orago principal. A substituição, em 1935, da imagem original de N. Sra. do Carmo (fig. 7) por outra, bem como a retirada de seu oratório, interferiu na estrutura visual da composição do altar, já que alterou proporções. O oratório não foi retirado de imediato, o que se comprova por relatos de despesas com o "aum ento e pintura d o n icho qu e guarda a im agem de N. S. d o C a rm o e restau ração a o u ro d o dito"^ 5\ certamcnte para se adaptar à nova imagem, bem como por fotografias da época. Mas, na reforma de 1944, quando "os a sso a lh o s d o p iso d o tron o foran i reb a ix a d o s e a sso a lh a d o s d e no v o , tudo indica que ele não mais compusesse o altar. O relatório da obra dá conta de estar pronta, devendo ser colocada "quando o p e r m ita o d esen volvim en to das obras, a gran de p eça escu ltu rada d a face in ferior d o tro n o junto a o A ltar-m or, desti­ nada a substituir a qu e antes existia e retirada in ex p licav elm en te, p o r m ãos inhâbeis, qu e assim inutilizaram e fizeram d esap arecer tã o rico o rn a m en to arquitetônico".^ ' Este trecho e as plantas da reforma (fig. 8) nos levam a duas hipóteses: ou esta peça foi danificada quando o nicho foi retirado, ou talvez não houvesse ali ornamentação, justamente por estar atrás do mesmo. O fato é que, depois da refor­ ma, a peça colocada ocupa o lugar que deveria ser do oratório. Estas questões são importantes porque ao analisarmos o retábulo-mor, temos que faze-lo considerando a imagem original e seu nicho, já que a retirada des­ tes veio modificar o aspecto do altar, quebrando a unidade do conjunto estabelecido por Valentim. ■ , .I . .. a®em P r ' m h i v a , de roca, com características naturalistas e trajan­ do habito carmelita, cumpre bem o papel de figura centralizadora da atenção, per­

suadindo a fe, sendo ao mesmo tempo a Senhora inatingível e o exemplo vivo da 284

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Fig. 8 - Projeto para a restauração do Trono e Altar-m or da Igreja da Ordem 3? do Carmo, RJ, durante a reforma de 1944. Arquivo IBPC

experiência carmelita. Dentro desta hierarquia iconográfica, sua presença na boca do trono desempenha o papel de elemento de ligação entre os fiéis e a figura do Cris­ to, criando assim o que poderíamos chamar de um ritual de passagem', numa forma eficaz de comunicação dirigida para o sentimento.5 5. Considerações Finais

O momento principal do Altar-mor é, sem dúvida, aquele estabeleci­ do pela intervenção de Mestre Valentim. Voltando às colunas torsas usadas por Fon­ seca Rosa nos altares laterais e por ele mesmo na Capela do Noviciado, o artista reafirma esse elemento como uma das características de sua grafia plástica. Considerando a questão da decoração em talha da igreja como um to­ do, entendemos que a principal consideração a ser feita é a de que estamos diante de um espaço predominantemente barroco — fechado, de marcante suntuosidade e monumentalidade, trabalhado através das proporções em altura e profundidade, onde a Capela-mor e seu altar são elementos fundamentais — apesar da inserção ornamental do rococó. A talha de Pádua e Castro, mesmo feita de modo a harmonizar-se com o legado recebido do século anterior, apresenta diferenças de tratamento, o que não chega, contudo, a comprometer a unidade decorativa do interior do templo, que preservou-se ao longo do período considerado. Podemos concluir que o fundo do Altar-mor possuiu mesmo um trataGÁVEA.

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Três Mestres na Igreja da Ordem 3? do Rio de Janeiro • Ênfase no mento mais próximo aos dos demais nichos não tendo ficado, no entanto, qualquer testemunho de como realmente era. Esta modificação e, principalmente, a retirada da imagem primitiva de Nossa Senhora do Carmo, e do seu respectivo nicho, da boca do camarim, afastaram o altar do seu aspecto primitivo, interferindo na estru­ tura visual da composição estabelecida por Valentim. Afirmamos, portanto, a ne­ cessidade da recondução da imagem primitiva, com seu oratório, para o Retábulo-mor. A propósito da reflexão sobre o ‘Estatuto do Artista' verificamos a po­ sição social de ambigüidade — artista/artesão

que os entalhadores, e artistas de

um modo geral, gozavam no Brasil Colonial, nos sendo também possível acompa­ nhar como essa situação se modificou no século XIX, com a Academia de Belas Ar­ tes legitimando a posição do artista perante a sociedade. Notas ( 1 ) PORTO -A LEG RE, M anuel de Araújo. "Valentim da Fonseca e Silva Revista IHCB, towo XIX. Rio de Janeiro, 1942, pp. 3 6 9-375. BATISTA, Nair. "Valentim da Fonseca e Silva", Revista do SPHAN. n 4 Rio de Janeiro, 1940, pp. 291-306. CARVALHO, Anna M aria M onteiro de. "A Talha de Mestre Valentim na Igreja de São Pedro do Rio de Janeiro", in Requiem pela Igre/a de São Pedro: Um Patrimônio Perdido. M EC/SPH AN , julho de 1987, pp. 24-36. ------------------------- -- A Arte de Mestre Valentim na Capital do Vice-Reino. Rio de Janeiro, 1989 (inédito), p. 79-90. ---------------------------- "A Madeira com o Arte e Fato", Revista Gávea n? 10 Rio de Janeiro, PUC, 1993, pp. 54-77. ( 2 ) FERNANDES, Cybele Vidal Neto. A Talha Religiosa da Segunda Metade do

séc XIX no Rio de Janeiro, através de seu Artista Maior. Antonio de Padua e Castro. Tese de M estrado defendida na EBA -U FRJ em março de ISpl. ( 3 ) NORONHA D O S SA N T O S, Francisco A genor de. "Um litígio entre Marceneiros e Entalhadores no Rio de Janeiro", Revista do SPHAN n ° 6 Rio de Janeiro, 1942, pp. 295-317. ( 4 ) SERZEDELLO, Bento José Barbosa. Archivo Histórico da Venerável Ordem Terceira do Carmo. Rio de Janeiro, Typografia Perseverança. 1872, p. 107. ( 5 ) ANDRADE. Rodrigo M ello Franco de. "Luis da Fonseca Rosa" In Artistas Coloniais. Rio de Janeiro. MEC. 1958, p. 43. ( 6 ) Livro de Receita e Despesa da Ordem 3 J do C arm o, que encontra-se no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, (O C .C O .31) ( 7 ) SERZEDELLO, Bento José Barbosa, op. cit' p 115 ! o ! ^ I , ^ . RO,ber' A ™ ' a e '" P o ' ,u S “ >- Lisboa.' L ivros H o rizo n ». 1962. * C * ' , ° Se Au« usto- V sboa Pombalina e o llam im sm o. Lisboa. Horizonte. 1965, p. 116. m í h? t ^ A m G R E - M anuel de A raui°- op. cit. p. 370. (11) BATISTA, Nair. op. cit. p. 292. U2> *

W o t a ? MaJ iaM UiZa

5

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de Nossa Sr», do Monte do Carmo „

das O bras realizadas na V. O . T.

C u ,tu rm s- Fundaçao N acional Pró-M em ória, 1990

eloCen

p. 5

(14) CARVALHO A ^ ° nleÍr° de' ° * c iL (1 9 8 7 > PP- 24-36. (15 SEBA STí A M Anna 13 M onteiro de- op. cit. (1989) p. 84 SEBASTIA N . S a n ,,ago. Contrarreforma y Barroco. Lee,uras iconográficos e

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RUTH NINA VIEIRA FERREIRA LEVY

icon ológ icas. Madri, Alianza Editorial, 1981, p. 330. (16) SERZEDELLO, José Bento Barbosa, op. cit. p. 27. (17) MARAVALL, José Antonio. La Cultura dei Barroco. Barcelona, Ariel, 1981, p. 445. (18) CARVALHO, Anna Maria Monteiro de. op. cit. (1989) p. 86. (19) lb i d . p. 87. (20) PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo, op. cit. p. 371. (21) SERZEDELLO, José Bento Barbosa, op. cit. p. 111. (22) SM ITH , Robert, op. cit. pp. 11-13. (23) NORONHA SANTOS, Francisco Agenor de. op. cit. p. 295. (24) PORTO-ALEGRE, Manuel de Araujo, op. cit. p. 371. (25) FRANCASTEL, Pierre. A realid ad e Figurativa. São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 25. (26) CARVALHO, Anna Maria Monteiro de. op. cit. (1989) p. 21. (27) PORTO-ALEGRE, Manuel de Araujo, op. cit. p. 371. (28) lb id . p. 375. (29) lb id . p. 374. (30) lb id . p. 370. (31) Relatório da Venerável e Arquiepiscopal Ordem 3a de N. Sra. do Carmo no ano de 1882, p. 91, grifo nosso. (32) Relatório da Venerável e Arquiepiscopal Ordem 3 a de N. Sra. do Carmo no ano de 1880, p. 50, grifo nosso. (33) PORTO-ALEGRE, Manuel de Araujo, op. cit. p. 370. (34) Relatório da Venerável e Arquiepiscopal Ordem 3? de N. Sra. do Carmo no ano de 1944, p. 82. (35) Relatório da Venerável e Arquiepiscopal Ordem 3 a de N. Sra. do Carmo no ano de 1935, p. 139. (36) Relatório da Venerável e Arquiepiscopal Ordem 3 a de N. Sra. do Carmo no ano de 1944, p. 82.

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Arte e Ascese em Caspar David Friedrich Aceito para publicação em maio de 1994. O artigo parte da questão sobre a concepção de as­ cese na obra pictórica de Caspar David Friedrich. Ini­ ciando com uma biografia suscinta do pintor, tem com o ponto de partida a A n a lític a d o S u b lim e , da T e rc e ira C ritic a , de Kant. Caracteriza aí a função da A rte como forma de acesso privilegiada ao sublime. Em continuidade, examina o lugar que ocupará esta noção na F ilo s o fia d a N a tu re z a de Schelling. Tendo como base o P rin c ip io d e Id e n tid a d e deste filósofo, chega a uma maior precisão sobre a noção de ascese na pintura de Caspar David. Estética Ascese Romantismo Sublim e

R IC A R D O A N D R A D E Professor do Departamento de Psicologia da UFF e psicanalista, doutor em Teoria da Psicanálise pela Universidade Paris VII.

As páginas que se seguem são motivadas não somente pelo excelente artigo de José Thomaz Brum: "Arte e A scese em Schopenhauer"(V como também pela recente exposição do M etropolitan^), na qual as telas de Friedrich são um dos pontos centrais. No artigo acima citado, o autor deixa bastante claro ser o binômio dram a-m úsica a forma privilegiada pelo filósofo no processo de ascese. Seus argu­ mentos, no entanto, são ilustrados pelos belos quadros do pintor de Dresden, de quem Schopenhauer, seu contemporâneo, era admirador. Ao final da leitura, fica a per­ gunta: qual a relação entre o processo de ascese schopenhaueriano e a modalidade de representação p ictórica, aí exemplificada pela obra deste pintor? Talvez pudés­ semos formular esta questão de uma outra forma: que concepção de ascese estaria implícita, ou orientaria a obra de Caspar David? Gostaríamos de tentar aprofundar um pouco mais esta questão. Inicialmente vejamos alguns dados sobre o pintor<3h nascido em 1774, em Greiswald, na Pomerânia, então vinculada à Suécia, teve uma infância infeliz, marcada pela morte da mãe quando tinha 7 anos e, logo após, pela de seu irmão mais velho ao tentar salvá-lo de um afogamento. De 1794 a 1798, faz sua formação na Academia de Arte de Kopenhagen. Neste mesmo ano, muda-se para Dresden, pasFig. 2 - "Neubrandenburg", c. 1817 Fundação Pommern, Kiel

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Arte e Ascese em Caspar David Friedrich ' sando a expor regularmente com relativo sucesso e enviando obras a várias exposi­ ções. Em uma delas ganha o primeiro prêmio, obtendo com isso a admiração de Goethe, que o visitará em 1810. A partir daí, uma série de sucessos se seguem. O m on g e na praia e A a b a d ia n o b o s q u e têm uma ótim a receptividade na academia de Berlim; Heinrich Kleist escreve a seu respeito uma ótima crítica; Friedrich Wi­ lhelm II, da Prússia, com pra-lhe quadros. Caspar David é então eleito membro da Academia de Berlim. Nesta mesma época, conhece Schopenhauer, assim como Cari Gustav Carus, também filósofo, médico e pintor am ador. Surge então uma grande amizade com este último, que perdurará até a morte de Friedrich. Graças a seu ami­ go e discípulo em pintura, a m aior parte de suas concepções foram preservadas nas N o v e cartas s o b r e a pintura d e p a isa g em (4>. Em 1824, é nomeado professor da Aca­ demia, mas, doente, acometido de constantes crises depressivas, não assume o car­ go. Seu nome começa a ser conhecido no estrangeiro. O crítico francês David d'Angers o visita em 1834, sendo fam osa sua observação: "Eis um homem que descobriu a tragédia da paisagem"^5). Friedrich falece em 1840. Se fôssemos classificar o seu romantismo, já teríamos de início um pro­ blema, já que este termo serve de epíteto para uma série de produções que se desen­ volveram ao longo de todo o século XIX. Alguns classificariam Friedrich como protorom ân tico, mas preferimos utilizar uma classificação toponímica, i.e., de localida­ des onde um determinado grupo de pessoas desenvolveram uma produção denomi­ nada rom ân tica. Assim sendo, este pintor pertenceria ao romantismo de Dresden, que se caracteriza exatamente por sua produção p ic tó r ic a , juntamente com C. G. Carus, P. O . Runge, etc.. Este grupo mantém uma relação e uma correspondência intensa com o rom an tism o d e len a, cuja produção não se caracterizará pelo viés da pintura. Seus membros — os irmãos Friedrich e August Schlegel, Novalis, Tieck, entre outros e, tendo como porta-voz o filósofo Schelling, professor na faculdade de lena — desenvolverão uma produção que se caracterizará mais por uma teoriza­ ção sobre a produção intelectual e artística do que pela própria produção em si. Esta teorização do grupo de lena é que servirá de respaldo para a produção pictóri­ ca do grupo de Dresden. Através do exame de alguns pontos desta teorização pode­ remos entender melhor a noção de ascese em C aspar David. Tal como Schopenhauer, Schelling também é discípulo de Kant. No entanto vejamos sinteticamente, de que forma ele assim ila em sua obra os ensina­ mentos do mestre de Königsberg. Como sabemos, a crise desencadeada por Kant centra-se sobre a questão do sujeito. Se, anteriormente partia-se, com o em Descartes de uma pura consciência intelectual de si. ou com o em Hume, da pura sensibiliade empírica, em Kant, nada permite o conhecimento do sujeito, seja ao nível do divino, seja ao nível do humano, pois não pxicHria „m-, , , , ” 30 existiria uma intuição intelectual suscetí­ vel de permitir um verdadeiro conhecimento do eu p e n s o . 290

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RICARDO ANDRADE

Na Estética Transcendental, centrada sobre o sensível, i.e., sobre a in­ tuição, Kant abole todo substancialismo. A partir do momento em que o sujeito é privado de toda substância, esta forma que ele se torna reduz-se a uma simples função de unidade ou síntese. O cogito kantiano é portanto um cogito vazio, irrepresentável a si mesmo. Decorre daí uma crise que expressa uma teoria do incognoscível do sujeito. É somente na Crítica da Faculdade do Juízo que o filósofo tenta esboçar, ele próprio, uma resposta a esta crise. Propondo aí uma apresentação esté­ tica da problemática da Razão, Kant atribui à arte um estatuto filosófico, o que permitirá ao movimento romântico abrir uma passagem em direção á filosofia. A Terceira Crítica será assim dedicada em sua primeira parte à Analítica d o belo, em sua segunda parte à A nalítica d o sublim e. O pensamento kantiano se coloca aí ao nível da imaginação transcendental, no interior da qual a unidade do sujeito está garantida pelo julgamento do gosto, ou seja, pelo livre jogo da imaginação e das outras faculdades. O sublim e, este, irrepresentável, não pode ser contido em ne­ nhuma forma sensível. Desprovido de forma (Form losigkeit), ele se manifesta so­ mente por sua negatividade, podendo ser evocado apenas através do símbolo, das analogias e da obra de arte<6h Se a representação estética é a forma privilegiada de se aceder ao su­ blime, caberá à arte e portanto ao artista a possibilidade de realizar esta síntese: "o poeta ousa dar urna fo rm a sensível às idéias da razão que são os seres invisíveis, o reino dos santos, o inferno, a eternidade, a criação e t c ...“^ . Vemos assim que o ato estético torna-se o ato suprem o da razão. Neste contexto a arte torna-se o organon da filosofia. A natureza desempenhará aí um papel fundamental no que concerne à sua capacidade de elevar a imaginação, de torná-la sensível ao que é propriamente sublime. Mas vemos também aí o cuidado do filósofo em não transformá-la em uma legitimação como via direta de acesso ao sublime, o que será afirmado mais adiante por Kant, em seu texto: “esta representação pura, sim ples­ mente negativa, qu e elev a a alm a, não acarreta em troca nenhum perigo de 'Schwär­ merei' (entusiasmo, fanatismo), que é a ilusão qu e consiste em ver qu alqu er coisa para além de to d o s os lim ites da sen sibilid ade... '. Ora, este temor do filósofo (a ilusão de que se pode atingir algo para além dos limites da sensibilidade) é exatamente a posição que assumirão os român­ ticos do grupo de lena, liderados pelos ensinamentos de Schelling, que, em sua Filo­ sofia da Natureza, se apropriará das teses kantianas, a partir de uma interpretação bastante particular, onde a fonte principal de inspiração será exatamente a natureza e sua vinculação com o su blim e. Em seu trabalho A Alma d o M undo, a natureza será a chave da tentativa de totalizar a compreensão da realidade em uma visão de mundo, através de uma união íntima e profunda do espírito humano com o prin­ cípio fundamental do ser. GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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A rte e Ascese em Caspar David Friedrich Contrariamente a Kant, que negava a imanência de uma finalidade na­ tural e não via nesta senão um produto do nosso próprio julgamento, Schelling pos­ tulará a existência de uma teleologia interna dos produtos da natureza. Ele defende­ rá a existência de um hilozoísmo, i.e., de uma matéria dotada de uma vida imanen­ te, agindo em função de causas internas. Esta seria a base do seu Princípio de Iden­ tidade, segundo o qual a n atu reza d e v e ser o esp írito v isív el e o espírito a natureza invisível(8). Para Schelling, se tudo, inicialmente, se apresenta sob a forma de dife­ renças e antinomias, estas oposições baseiam-se no fundo em uma unidade absolu ­ ta. Em um processo evolutivo, da matéria inorgânica chegaríamos à matéria orgâ­ nica, estando o homem no topo desta escala. Em síntese, para os românticos, a na­ tureza não ofereceria apenas uma a p resen ta çã o n eg ativ a d o su blim e, mas o sublime está na natureza e o saber rom ântico almeja ter acesso a ele, sendo a arte neste pro­ cesso a via privilegiada. Eis aí a ponte que os pintores românticos esperavam para elevar a pin­ tura d e p aisag em , gênero secundário em relação às pinturas religiosas e históricas do século XVIII, ao primeiro plano. Para eles, será de especial importância o pará­ g rafo 52 da Terceira Crítica, referente ao papel das Belas-Artes na apresentação do sublime: “Entre as artes figu rativ as, eu daria p referên c ia à pintura, em parte p or­ que, c o m o arte d o d esen h o, ela s erv e d e fu n d am en to a to d a s as outras artes figura­ tivas e em p arte p o rq u e ela p o d e p en etrar m ais p ro fu n d a m en te na região das Idéias e am p liar assim o cam p o d a in tu ição, bem m ais d o q u e a s dem ais artesS9\ Para os românticos, portanto, através da pintura, as Idéias podem reintegrar o sensível; a pintura torna-se assim a arte d e a p resen ta çã o d as Id éias. Temos agora condições de melhor entender a pintura de Caspar David Friedrich que em suas telas tentará desenvolver, a nosso ver, uma sim bólica do su blim e. Esclareçamos melhor o que entendemos por esta afirm ação utilizando as palavras do próprio Friedrich: a arte se apresen ta c o m o m ed ia d o ra entre o hom em e a natureza. O m od elo prim itivo e d em asiadam en te su b lim e p a ra ser abarcad o "(10). Sublim e, neste contexto, parece assumir a conotação de ab so lu ta m en te gran de em Kant. ch a m a m o s su blim e o q u e e absolu tam en te g r a n d e ... D izer qu e algum a coisa é grande não é o m esm o qu e d iz er q u e ela é a b so lu ta m en te gran de. N este últim o caso, trata-se d o qu e é g ran d e fo r a d e tod a e q u a lq u e r c o m p a r a ç ã o ”(H). Se para Friedrich o modelo primitivo é d em a sia d a m en te gran de para ser representado, através de sutis artifícios de sua arte, ele destruirá o suporte material de suas telas expandindo-as ao infinito, tornando-se assim um dos precursores do abstracionismo (um dos inspiradores, por exemplo, de M ark Rothko*12»). Em acréscimo, quebrando sutilmente os cânones da perspectiva renascentista, criará em suas telas uma atmosfera de

su rrea lid a d e,o que o torna também um dos artistas prediletos

dos surrealistas«». Destes artifícios evidenciaremos aqui apenas alguns exemplos: 292

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— Nas linhas de força e nas massas de cores de vários de seus qua­ dros, evidenciam-se curvas hiperbólicas opostas, contrastes de céu e terra, produzindo-se entre elas devido a este jogo de oposição, uma tensão; o que tem como efeito uma p ressã o central e uma d ilatação lateral (figura 1). O oposto tam­ bém pode ocorrer, a pressão se dá nas laterais e a expansão ou dilatação, no centro, como é o caso do V iajante con tem p lan d o um m ar de nuvens<14), ou de N eubran­ denburg (figura 2). — Estes dois últimos exemplos servem também para demonstrar um outro artifício desenvolvido por Friedrich para subverter o espaço pictórico, expandindo-o, o que chamaríamos de efe ito esférico. O volume produzido pela di­ latação central produz uma inversão do plano de fundo em direção ao espectador, precipitando-o por cima de sua cabeça. As massas sólidas, envoltas na névoa, desa­ fiando a lei da gravidade, como em certos quadros de Magritte, flutuam. — Este espaço em expansão, na maioria das vezes, não será represen­ tado pelo pintor através da luz homogênea do dia, mas, colocando-se nos antípo­ das da tradição racionalista, Friedrich escolherá a noite, o entardecer, ou o ama­ nhecer, momentos fusionais que, com sua luminosidade mística, abolem os parâ­ metros da realidade, esvanecem os referenciais da perspectiva central e dissolvem a representação do homem (do microcosmo) no macrocosmo da natureza. Ilustra­ ção perfeita do prin cíp io d e identidade de Schelling; em suas telas, homem, natureFig. 1 - " A Grande Reserva” , c. 1832 Gemäldegalerie, Dresden

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A rte e Ascese em Caspar David Friedrich

Fig. 3 - "O Monge à beira do M ar” , Nationalgalerie, Berlim

Fig. 4 - "M ulher e Por-do-sol' Museu Folkwang, Essem

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za e Deus, tornam-se Um, como em O m on g e à beira d o m ar (figura 3). O que nos remete à denominação bastante pertinente dada por seu discípulo Cari Gustav Carus às suas L an dshcaften : “E rdeleben bildku nst", literalmente: arte de representação da vida da terra. — Esta topografia fantástica é, às vezes, habitada por personagens bas­ tante curiosos, pois representados sempre de costas (R ückenfiguren — figura 4 e também figura 3). Tragicamente isolados e deslocados mas, ao mesmo tempo total­ mente integrados à paisagem. Quem são eles? o que fazem eles ali? o que vêem eles?... Estes personagens produzem no espectador uma sensação de ambivalência estranha­ mente inquietante. Inicialmente, em um movimento centrípeto, espectador e perso­ nagem, colados e identificados, contemplam juntos o absolu tam en te grande que se descortina à frente. Em um segundo momento, suas costas nos expulsam do qua­ dro, denunciando veementemente, com este movimento centrífugo, que algo ali es­ capa ao controle de nosso olhar, transcendendo-o. Nestes personagens de costas não existe nenhum movimento. Monoliticamente paralisados, aguardam a chegada ou a partida de algo. O que contem­ plam parece ser o próprio tempo, ou, talvez, sejam eles o próprio tempo incorpora­ do. C orpos-natureza, de onde forças centrípetas e centrífugas emanam. Paisagenssujeito onde nada e tudo se passa e a violenta acalmia do instante imóvel do olho do ciclone reina. Rostos sem olhar e no entanto vêem; corpos inteiros transforma­ dos em visão: visão interior, visão onírica, visão do sublim e. N o ta s ( 1 ) in Gávea, março de 1993, pp. 89-97. ( 2 ) Caspar David Friedrich to Ferdinand Hodler: A Romantic Tradition —

Nineteeth-Century Paintings and Drawings from the Oskar Reinhart Foundation, Wintenthur, 10 de fev. a 24 de abril de 1994. ( 3 ) Eimer, Gerhard, Caspar David Friedrich, Auge ung Landschaft, Insel Verlag, Frankfurt-am -M ain, 1974. ( 4 ) Brion, Marcel. C. G. Carus — C. D. Friedrich, De la Peinture de Paysage dans L Allemagne Romantique. Klincksieck, Paris, 1983. ( 5 ) Rosen, Charles. Romanticism and Realism, The Vicking Press, N. Y., 1984. ( 6 ) Kant, E. Critique de la Faculté de luger, Vrin, Paris, 1968, p. 85. ( 7 ) Idem, Ibdem. p. 144. ( 8 ) Schelling, Essais, Aubier-M ontaigne, Paris, 1946, pp. 86-87. ( 9 ) Kant, E. Opus cit., p. 164. (10) C . D. Friedrich, Escritos Póstumos, publicados por C. G . Carus, in Friedrich der Landschaftsmaler, 1841, Dresde. (11) Kant, E. Opus cit., parágrafo 25. (12) A este respeito 1er — Rosenblum, Robert. Modem Painting and the Northern Romantic Tradition; Friedrich to Rothko, 1975, N. Y. (13) Béguin, Albert. L'Ame Romantique et le Rêve. Rosé Corti, Paris, 1939, pp. 124/145. (14) Vide ilustração em artigo de Brum, in opus cit.

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A Poética Intimista de Antonio Bandeira Aceito para publicação em maio de 1994. Esse te xto é o resultado de uma reflexão acerca da " p o é t ic a " do artista Antonio Bandeira, a partir da aproxim ação com a imagem da "Im ensidão Íntim a" elaborada por Gaston Bachelard na "Poética do Es­ p a ço ", onde destacam-se os seguintes itens: 1. as im agens da imensidão segundo a subjetivida­ de do artista 2. leitura de algumas obras escolhidas 3. Bandeira e a Escola de Paris do pós-guerra 4. Bandeira no contexto artístico brasileiro da época 5. os pequenos formatos 6. Bandeira: um artista abstrato? A n to n io Bandeira Gaston Baschelard A rte M oderna Brasileira

NATHALIA C. DE SÁ CA V A LCA N TE Formada em Com unicação Visual pela PU C -RIO e pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil P U C -R IO (Pós-graduação, lato sensu).

"A im en sid ã o está em nós. Está p resa a ex p an são d o ser q u e a v ida refreia, qu e a p ru d ên cia d etém , t)ias q u e v o lta d e )iov o na so lid ã o ; qu a n d o estam os im óveis, es ta m o s além ; so n h a m o s num m u n do im enso. A im en sid ão é o m ovim etito d o h o m e m im óvel. A im en sid ã o é um a das características dinâm icas d o d ev a n e io tran qu ilo."

Gaston Bachelard

1

Pensar a obra de Antonio Bandeira, implica no desafio de investigar

sua ' poética”, sua singularidade, num passeio por imagens presentes no seu voca­ bulário plástico, como também no estudo da imagem poética no momento que emerge da alma à consciência. Tal investigação baseia-se numa aproximação entre a obra de Bandeira e as imagens elaboradas na "Imensidão Intima por Gaston Bachelard na "Poética do Espaço”PL Alguns aspectos da obra do artista revelam uma dimen­ são de intimidade através de imagens ligadas à imensidão. A própria expressão do espaço pictórico remete ao profundo e ao infinito através de sua subjetividade . A imensidão, segundo Bachelard, é uma categoria filosófica do devaneio capaz de promover uma experiência do infinito. Imensidão e intimidade, idéias aparentemente contraditórias, encontram-se segundo uma dimensão poética. Dimensão que, reve­ lada em imagens — a floresta, a noite — indica caminhos que levam a consonân­ cia da imensidão do mundo com a profundidade do ser íntimo (-K A Imensidão GÁ VEA . 12 (12), dezembro 1994

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A Poética Intimista de Antonio da Floresta"*3*, por exemplo, trata da experiência do mundo sem limites, do primi­ tivo, onde a imensidão local e a interior unem-se. De fato, Bachelard vê na floresta muito mais do que uma imagem, percebe "um estado de alma . Árvores ou cidades, bosques ou vilas, seriam imagens através das quais Bandeira desejaria alcançar a experiência estética do homem diante da imensidão do mundo? As questões pertinentes à pintura orientam -no para uma aproximação entre "form a" e "poesia". Num diálogo a portas fechadas, o artista e a tela criam um universo plástico de imagens poéticas. Imagens que ultrapassam lembranças ou registros do passado, que encontram no ato de pintar o sentido que lhes é próprio: uma urgência da linguagem. Sob o efeito de tintas escorridas ou de pequenas pince­ ladas, revela-se um sentido de descontinuidade. Bandeira define sua poética: íntima como a imensidão. Bandeira pinta "A Á rvore", uma composição centralizada onde estru­ turas manifestam-se num movimento de expansão e crescimento. Não há a árvore do mundo. Há, na tela, a presença da árvore tomada por valores de expansão. Ban­ deira toca algumas questões pertinentes ao território da existência ainda que isto tenha sido através de uma maneira tímida e, por vezes, ingênua. Cidades ou bos­ ques temas impessoais, adquirem uma esfera intimista na sua tentativa de "recriar" o mundo pela sua subjetividade poética. Em "Árvores em Raízes", um Bandeira no­ turno mergulha na obscuridade. O negro marcado pelas pinceladas, surpreende o olhar ao revelar presenças de cor e matéria. A ambigüidade existente entre a ampli­ tude apresentada por essa fração do noturno possibilita incursões pela poética inti­ mista do artista. Essa tela se difere pela dinâmica do gesto, substituindo a perpetua­ ção de células cromáticas e apresentando assim, uma profundidade singular a partir da variação de tons. Outra feliz experiência do artista ocorre em "Cidade Anoite­ cendo onde tintas escorridas formam uma grade por toda a extensão da tela. Diluí­ da, a tinta cai verticalmente como a noite que abrange a cidade. Essa tela remete ao trabalho de Soulages que de uma maneira mais enérgica cria uma barragem de espessas faixas negras, deixando algo como fendas ao fundo. A teia escura de Ban­ deira também esconde, um fundo difuso com algumas pequenas incisões cromáti­ cas e, como um voyeu r, o olhar liga-se ao universo pictórico na tentativa de invadir o território do não-revelado. Ao pintar, muitas vezes Bandeira dirige a força compositiva para o centro do quadro, como se capturasse uma estrutura no instante mesmo de sua frag­ mentação. O confronto entre a delicadeza da expansão e o limite do suporte freia a propagação das pequenas pinceladas. A composição apresenta um processo de dêsconstrução da realidade e reorganização em novas células de cor e matéria. Ban­ deira procura uma espacialização através dessa desaceleração das formas, dando origem a uma margem que funciona como fundo. Quadros como "London Houses" !98

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A n to n io Bandeira "C idade A n o ite ce n d o ", 1964 Óleo sobre tela, 81 x 100 cm

e “Luares sob Cidade Negra" revelam por exemplo, uma compreensão do espaço moderno e da desconstrução do espaço perspectivado renascentista, uma constru­ ção pueril em sintonia com as perspectivas perpetuadas de Maria Helena Vieira da Silva. Os azuis predominantes asseguram o destaque de pequenas incisões ver­ melhas que espalham-se do centro para todo o quadro. Trata-se da elaboração de uma malha composta por extratos formais fragmentados e reorganizados numa di­ nâmica geometrizada. De uma maneira geral, Bandeira elabora um tipo de movi­ mento caracterizado por um sentido de "reconversão"^4) que sugere uma tensão re­ lativa ao que está prestes a. Prestes a romper o retângulo da tela? A questionar a estabilidade visual assegurada pela margem? Essa margem não possui a função da veduta renascentista, no entanto, promete ao olhar uma tolerância em relação aos limites do quadro, do centro para o seu fim. Planos sobrepostos, nuanças e varia­ ções tonais, respingos e pequenas pinceladas provocam o olhar, fazendo duvidar da realidade dos fatos para passear na realidade das dimensões intersubjetivas. Em relação a cor, ao tonalismo e a exploração de gamas, Bandeira ela­ bora uma atitude própria em relação a questão da luminosidade. A cor, como qua­ lidade de luz, revelada pela saturação obtida na sobreposição de pequenos gestos, adquire autonomia. Pequenos ritmos compõem um só corpo em extensão. A pro­ fundidade sugerida pela centralização é acentuada pelas cores, ao possuírem qualiGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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A ntonio Bandeira "L on d o n Houses", 1955 Óleo sobre tela, 76 x 100 cm

dades autônomas na tela, espacializam as formas nesse espaço. A composição frag­ mentada parte da observação mas não se detém na representação mimética do obje­ to. Trata-se da experiência subjetiva do artista articulando relações próprias de es­ paço, cor e matéria que desencadeia um processo de ruptura com a representação. A sua abstração é muitas vezes denominada de "impressionista", o que impõe uma reflexão acerca da pertinência desse termo para a sua ação como pintor. As pequenas pinceladas formando imagens fragmentadas, podem, num primeiro mo­ mento, confundir o olhar com o modo impressionista de construção do espaço. No entanto, o fundamento da pintura impressionista se dá ao ar livre, na busca da cap­ tação do instante diante do fenômeno, da paisagem e da luz atmosférica. E Bandei­ ra, ainda que vise uma instantaneidade no seu pintar, não a busca no exterior. O seu movimento é introspectivo, pinta no atelier, isolado, num diálogo com o pró­ prio eu. Recria o mundo a partir da intimidade do fazer, das cores de sua palheta. As pequenas pinceladas não visam a construção de uma forma reconhecível mas de um corpo sujeito a livres associações do observador. O s impressionistas que acen­ tuaram o processo de autonomia da arte, desenvolveram questões específicas a sua época e ao seu processo histórico. Bandeira está presente na sua contemporaneidade, participando de um determinado período da história da arte, na explosão da abstração informal na Europa. Nesse sentido, faz-se necessária, uma reflexão acerca desse momento histórico onde o artista brasileiro desembarcou, contextualizando-o na cultura eu-


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ropéia, na qual relaciona-se e interage. ^ A arte européia após a Segunda Guerra se processa num clima de pro­ fundo desencanto. A Europa vive um momento de crise e deixa de ser o centro da cultura artística moderna. Trata-se da crise de um sistema cultural sustentado em paradigmas da racionalidade. O sentimento de perda e o niilismo configuram uma nova relação entre arte e sociedade numa Europa desmembrada que experimenta a constatação de sua crise, inclusive de seu historicismo. Os valores do passado que estruturavam a racionalidade européia perderam o sentido diante dos fatos que desconstruíram uma sociedade baseada no telos. Num primeiro momento, a retoma­ da dos ideais marxistas parecia suprimir esse impasse. No entanto, a frustração diante do conservadorismo, ampliou a repercussão dos ideais existencialistas de Satre. O niilismo francês interioriza as questões ligadas à perda de um passado e à ausência de um projeto para o futuro. Tal perda de sentido esvaziou a força de qualquer conceito ou teoria em relação à arte. No encontro com a exaltação poética, assim como com as mani­ festações do inconsciente, nasce uma possibilidade de refúgio pelas expressões da ima­ ginação. Desta forma, o abstracionismo informal começa a tomar corpo em Paris, principalmente com a primeira exposição realizada pelo espanhol Michel Tapié sob o título V éhm ences C o n fro n te. Seguiram-se outras mostras como Peinture nonabstraite et signifiants d e l'in form el e um álbum manifesto intitulado Un art autre. A partir de então, um novo vocabulário plástico difunde-se pela Europa seja pelo gesto, pelo signo, ou pela matéria. A arte informal encontra-se no pólo aglutinador de tendências estrangeiras, o que caracteriza a capital francesa desde o seu esplen­ dor cultural. “Devido a Paris ter sido o oposto do nacional na arte, a arte de todos os países cresceu através de Paris" diz Harold Rosemberg*5*. A Escola de Paris vem sendo o lugar de encontro e convivência das diferenças, desvinculadas de uma bus­ ca nacionalista, o que se acentua ainda mais com o fim da Segunda Grande Guerra. Paris vive um momento de “morte” onde os artistas questionam a sin­ gularidade e a inexplicabilidade diante da incontestável realidade da existência. Tal procura ocorre não pela via da teoria mas pela via da poética. O Informal é mais do que uma corrente, é a própria crise, a crise da arte como ciência européia ^). Um processo de decadência no qual a Europa submerge, que diferencia-se do movi­ mento da arte americana, o qual estabelece tanto a sua hegemonia como afirma a sua autonomia. A América é nesse momento o contraponto de Paris. Nova York, centro de uma sociedade constituída sem a preocupação de um passado a zelar, glorifica-se pelo seu sucesso econômico através da ação. Há uma espécie de transfe­ rência de poderes. Enquanto em Paris renuncia-se à linguagem para reduzir-se ao ato puro, na América, num processo dialético, a ação produz uma nova linguagem. GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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A Poética Intimista de Antonio Bandeira Na efervescência do abstracionismo informal, Bandeira encontra-se em Paris. Por que esse artista brasileiro identifica-se tão intensamente com tal contexto de desencanto, perda e morte? Parece estranho, numa primeira reflexão, pelo fato de sua obra diferenciar-se essencialmente dessa carga "negativa” relativa a arte eu­ ropéia do pós-guerra. Nos seus quadros, o artista celebra a vida, não compartilhan­ do, pelo menos nesse sentido, do espírito de morte e terror que impregna a obra de uma de suas grandes influências. Wols trabalha com o se estivesse em "transe", fora de referências da razão, marcado tanto na sua vida com o em sua morte, pelo desespero e pela dor. Bandeira se posiciona a favor da vida, elege imagens que o levam a um mergulho na dimensão do indizível, ampliando ainda mais a sua rela­ ção com o mundo, com o outro. Ao ingressar no informalismo, determina os rumos de seu processo co­ mo artista, inclusive como artista brasileiro. Durante o século XIX dificilmente os artistas brasileiros que estudavam na Europa, vinculavam-se a algum movimento artístico. No entanto, a partir do início do nosso século, Ismael Nery, Di Cavalcan­ ti, Antonio Gomide e Vicente do Rêgo Monteiro form aram a primeira geração de artistas "modernistas" brasileiros na Escola de Paris, num momento de predomínio da representação realista. Posteriormente, Cícero Dias rompe com a representação, tornando-se o primeiro artista abstrato brasileiro. Alguns anos mais tarde, Bandei­ ra participa do abstracionismo informal, mais especificamente do tachismo, repre­ sentando um elo entre as novas concepções artísticas européias e a cultura brasilei­ ra em busca da própria configuração. No âmbito da pintura brasileira, a década de cinqüenta caracterizouse pela disputa entre o abstracionismo informal e o geométrico. Há um momento de crise a partir da afirmação do racionalismo existente nas tendências geométri­ cas e o esvaziamento das questões pictóricas pelos princípios ecléticos da Escola de Paris, que influenciaram muitos artistas brasileiros. Bandeira representa uma das vozes que defendem a pintura, revelando sua renúncia aos princípios da figuração e do academicismo que ainda vigoravam. Em sua obra os valores estéticos adqui­ rem autonomia em relação aos compromissos político-ideológicos pela negação ao realismo. Enquanto Bandeira participa da formação do grupo BANBRYOLS com Bryen e Wols em Paris, os primeiros núcleos abstratos aparecem no Brasil. Mais uma vez as preocupações próprias ao fazer artístico confundem-se com divergên­ cias ideológicas. O grupo geométrico e o informal estabelecem uma rivalidade a pre­ texto do confronto entre razão e expressão \ Embora pertencesse ao grupo infor­ mal. Bandeira não se inibe com os limites dessa disputa. Durante toda a sua trajetó­ ria ressalta a importância da pintura, encontrando no ato poético a possibilidade de revelação de uma forma de pensar esteticamente o mundo. I ossivelmente seja o processo de busca de identidade a questão que *02

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o faz estabelecer uma aproximação com o abstracionismo francês. Não ter um pas­ sado a negar e portanto, com essa falta que situa-o num grau zero que o permite par­ ticipar intensamente de uma cultura que nesse momento nega seu próprio passado. Não ter referências de tradição e romper com o compromisso de um passado para­ digmático, transportam tanto o artista bra­ sileiro como seus colegas da Escola de Pa­ ris à uma esfera atemporal. Interessante ressaltar a sua atuação artística fora de uma temática "nacionalista”. Numa pri­ meira leitura é possível supor um distan­ ciamento de suas obras em relação a va­ lores tradicionais, como se pertencesse a uma esfera indefinida de "não-tempo" e de "não-lugar"*7), característica também da Escola de Paris. A obra rompe com a expec­ tativa de uma temática específica, sugerin­ do ao olhar do observador uma dimensão Antonio Bandeira ''Composição em Cinza e Rosa", 1960 Mista sobre papel, 15 x 17 cm

cosmopolita. Bandeira desenvolve uma postura mais universal diante da atuação artística, a partir de um ambiente pro­

pício a tal atitude. Compreende a dimensão poética de imagens que não se res­ tringem ao regionalismo, ao contrário de seus contemporâneos Aldemir Martins e Inimá de Paula — os três fizeram parte do Grupo Cearense — que detêm-se num universo pretensamente nacionalista. Bandeira busca o entendimento intrínseco a subjetividade artística. A universalidade é tratada sob um olhar intimista. III

"A m iniatura é a m orad a d a gran deza

Gaston Bachelard Bandeira ao mesmo tempo em que exercita uma inexpressiva interpre­ tação acerca do fenômeno americano da Tela Grande, realiza incursões pelo imagi­ nário restrito. O s pequenos quadros apresentam o encontro da experiência técnica com a delicadeza própria ao desenvolvimento de sua linguagem. Anunciam, assim, esse sentido intimista, quase secreto do artista diante do mundo. Como miniaturas, os pequenos form atos provocam os limites da lógica para vivenciar as possibilida­ des do que há de grande no pequeno. As pequenas telas de Bandeira aliam a preciGÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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A Poética Intimista de Antonio Bandeira

são e a força pulsante concentrada em ca­ da pequena incisão sobre a tela. A concen­ tração de suas potências possibilita um longo e tranqüilo passeio por imagens de um microcosmos pictórico. M om ento de delicadeza e sofisticação, quando Bandei­ ra encontra a oportunidade de detonar ex­ plosões poéticas. São nestas microtelas que a imensidão pode ser experimentada nu­ ma pequena fração da sensação

do ar­

tista, na sensação do mundo. Um movi­ mento oposto as grandes telas americanas, procura em dimensões mínimas, potencia­ lizar as esferas do indizível que envolvem o ser e o estar no mundo. "A arte de Ban­ deira muito se aproxima da glíptica e da miniatura. Inegável é o poder de fascina­ ção de muitas dessas telas, idêntico ao que exercem certas pedras preciosas, certas jóias finamente trabalhadas.'' diz Mário Pedrosa^h Sobre a tela ou sobre o pa­ pel, a investigação plástica do artista, amplia-se em cada experiência. Muitas

A n to n io Bandeira "Á rv o re s ", 1960 Mista sobre cartão, 25 x 17,2 cm

pinturas são resultado de estudos, dese­ nhos e ensaios em papel. Bandeira realiza uma série de guaches e aquarelas que re­ velam uma fase mais segura e livre para penetrar no exercício da abstração "pura". E possível que tal liberdade seja fruto de um maior descompromisso em relação ao papel. Não é à toa que a primeira obra abstrata realizada por Kandinsky, foi sobre papel. Desta forma, os pequenos papéis, assim como as telas, tornam-se a extensão do ser do artista e a realidade passa a ser tomada por uma dimensão universal e lírica. Os guaches expressam a síntese das afinidades plásticas e poéticas presentes em toda a sua obra. Artista e obra se processam. Com desenvoltura, inicia um pro­ cesso de ruptura com os compromissos temáticos. Nomeados de "Composição ", mui­ tos de seus papéis evidenciam a exploração por outros cam inhos da abstração in­ formal. Trata-se do momento em que o imaginário das idéias encontra a surpresa do acaso. Acaso obtido por efeito da tinta espalhada nas aguadas por linhas e cores manifestadas na superfície úmida do papel. Tudo se expande e se mistura. As aguadas ou pinturas de câmara oferecem ao olhar a oportunidade de envolver 304

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NATHAÜA CAVALCANTE

toda a obra e, aos poucos, degustar cada intervenção, fazer uma viagem ao cen­ tro da miniatura. Diante dessa escala, o silêncio faz-se necessário para “ouvi-las” com nossa imaginação. A fenomenologia da experiência artística imprime à obra uma totalidade que antecede qualquer discurso ou análise. A obra de Bandeira revela um outro espaço, um espaço poético, uma possibilidade de reflexão acerca da própria criação, em que o sentido de poesia assume a essência do fazer. A obra difere dos outros objetos do mundo pois abre novos “mundos” fora da uni­ dade da técnica e da ciência. A questão que se coloca trata da ação do espectador em relação a obra. Ao exercer a livre associação não procuraria o reconhecimento de alguma figura, questionando inclusive o próprio conceito de abstração? E Bandeira seria ou não um artista abstrato? A discussão acerca de um conceito de abstração se apresenta a partir da ambigüidade da obra de Antonio Bandeira. Ao mesmo tempo em que pretende romper com a representação, ele também mantém-se ligado ao mundo do qual extrai as referências para a sua abstração. Os temas relativos as grandes cida­ des, vilas ou bosques não visam, no entanto, uma representação naturalista, mimética ou a captação de um fragmento da realidade. São imagens elaboradas segundo a força do ato poético e das pesquisas plásticas do artista mas que ainda trazem vestígios naturalistas. Não parece significativa a definição quanto a Bandeira ser ou não um artista abstrato mas sim, pensar sobre as possibilidades desse estado de passagem entre a figuração não representacional e a abstração propriamente dita. Transitan­ do por esse momento da pintura moderna, Bandeira desenvolve a sua linguagem. Seria possível pensar a abstração em sua obra segundo um diálogo entre forma e poesia, entre o limitado e o dizível, entre o íntimo e a imensidão? N o ta s ( 1 ) BACH ELA RD, Gaston. A Poética do Espaço, Cap. VIII, tradução de Frankün Leopoldo e Silva, Col. Os Pensadores, Abril Cultural, 1974. ( 2 ) _________ op. cit., p. 478. ( 3 ) _________ op. cit., p. 475. ( 4 ) M A RQ U ES, Luiz, In: Catálogo da Exposição "Antonio Bandeira 70 anos" na Dan G aleria, São Paulo, 1992/93. ( 5 ) RO SEM BERG . Harold, A Q ueda de Paris, Col. Estudos, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1974, p. 155. ( 6 ) A RG A N , Giulio Cario. A Crise da A rte como Ciência Européia, Arte M oderna, São Paulo, Cia. das Letras, 1992 p. 507. ( 7 ) R O SEM BERG , op. cit. p. 156. ( 8 ) PED R O SA . Mario, In: Catálogo da exposição "Antonio Bandeira" no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1969.

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Carlo Scarpa Banco Popular de Verona Verona, 1973-84

Detalhe da uniĂŁo das colunetas com o entablamento.


Rappel a 1'Ordre: Em Defesa da Tectônica Contra a tendência contemporânea de redução da arquitetura à cenografia, o autor propõe o retorno à tectônica, ressaltando a articulação construtiva en­ quanto substância irredutível e ponto de condensa­ ção ontológica da arquitetura. Neste sentido, a re­ valorização da tectônica serve com o elemento críti­ co tanto para uma revisão da história da arquitetura q uanto para estabelecer uma base de resistência à mercantilização da cultura. Tectônica A rquitetura Moderna Pós-Modernismo

KENNETH F R A M P T O N Tradução Roberto Conduru Revisão Carlos Emílio Corrêa Lima Arquiteto, crítico, professor de diversas instituições (entre as quais. Columbia University e Berlage Institute), presidente do Com itê Internacional de Críti­ cos de Arquitetura (CICA ) e autor de M o d e r n A rch itectu re: a C ritica i H is to r y , além de vasta obra crítica.

A tectônica volta à tona hoje como categoria crítica devido à ten­ dência de redução da arquitetura à cenografia. Esta reação eleva-se do triunfo do abrigo decorado de Robert Venturi, isto é, da tendência contemporânea em tratar a arquitetura como se fosse mercadoria. Entre as seduções do cenográfico está o fato dos resultados serem rapidamente amortizáveis, com todas as conseqüências deletérias que isto acarreta para o futuro do ambiente. Esta perspectiva degenerati­ va é acompanhada pela dissolução geral das referências estáveis atualmente. Com a exceção singular da tecno-ciência, os preceitos que governam quase todos os dis­ cursos parecem repentinamente terem se tornado extremamente tênues. Crande parte disso foi com certeza previsto meio século atrás por Hans Sedlmayr, quando ele escreveu em 1914: A m u d an ça d o cen tro d e g ra v id a d e espiritu al d o hom em em d ireção ao inor­ gân ico, sua in clin ação sen sível d irecio n a d a a o m undo in orgân ico p o d e, de fa ­ to, ser leg itim am en te ch am ad a d e d istú rbio cósm ico. É, antes d e tudo, um dis­ túrbio n o m icro co sm o d o h o m em , q u e a g o ra com eça a ev id en cia r um desen­ v o lv im en to p a rcia l d e suas facu ld a d es. ...N o extrem o o p o s to , existe um dis­ túrbio d a s rela çõ es m acrocósm icas, resu ltado da preferên cia e da p ro teçã o es­ p ecial d e q u e o in orgân ico a g o ra usufrui — qu ase sem p re em prejuízo, para não d iz er ruína, d o orgân ico. A ex p lo ra ç ã o e destruição d a terra, a nutridora d o h o m em , é um ex em p lo ó b v io , e um ex em p lo que, p o r su a vez, reflete a d isto rçã o d o m icro co sm o h u m an o d e um m o d o tal que o la d o espiritual do GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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Rappel a L'ordre: Em Defesa da Tectônica

h o m em p a g a e x a ta m en te a q u ele tip o d e p r e ç o e está su jeito a um processo si­ m ilar d e ruína, e o resu lta d o é q u e o h o m e m , ten d o n eg a d o a realidade das fo r m a s elev a d a s d o ser. fica to ta lm en te e n r a iz a d o na esfera inorgânica .tt>

Frente a esta perspectiva, nós somos remetidos a certas posições de re­ taguarda de modo a encontrar uma posição de resistência. Nos encontramos quase na mesma situação do crítico Clement Greenberg que, no seu ensaio "M odernist P ain tin g " , de 1965, reformulou a base de resistência em pintura nos seguintes termos: F oram -lhe n eg ad as p e lo llum inism o to d a s as tarefas qu e p od iam levar a sério; parecia qu e (as artes) seriam assim iladas c o m o en treten im en to pu ro e simples, e o p ró p rio en treten im en to p arecia p ro n to a se r assim ilado, co m o a religião, à terapia. As artes p o d ia m salv ar-se d este n iv ela m en to p o r baixo som en te pela d em on stração d e q u e a esp écie d e ex p eriên cia q u e forn eciam era válida em si m esm a, n ão d ev e n d o ser o b tid a através d e q u a lq u er ou tra espécie de atividade . (21

Um lugar de resistência para a arquitetura comparável a este precisa por necessidade ser corporificado na forma estrutural e construtiva. Minha ênfase sobre este aspecto, mais do que sobre o invólucro espacial, deriva de uma tentativa de valorizar a arquitetura moderna deste século mais em termos de continuidade e de inflexão do que nos termos da originalidade com o um fim em si mesma. No seu ensaio “A v an t-G ard e an d C on tin u ity " de 1980, o arquiteto ita­ liano Giorgio Grassi tinha o seguinte comentário a fazer sobre o impacto da arte de vanguarda na arquitetura: ...N o q u e diz resp eito às v an g u ard as d o M o v im e n to M od ern o, elas invaria­ velm en te segu em os p a ss o s das artes fig u r a tiv a s ... C u bism o, Suprem atism o, N eop lasticism o, etc., to d a s sã o fo r m a s d e in v e stig a ç ã o n ascidas e d esen v olv i­ das no d o m ín io d a s artes fig u rativ as, e a p e n a s em seg u n d a instância transla­ d ad as à arqu itetu ra ta m b ém . É rea lm en te p a t é t ic o v e r os arqu itetos daqu ele p er ío d o h eró ico , e o s m elh o res en tre eles, te n ta n d o co m d ificu ld a d e se a co ­ m od arem à q u eles ism os ; ex p erim en ta n d o d e m a n eira co n fu sa p o r con ta da fascin ação co m as n o v a s dou trin as, a v a lia n d o -a s . p a r a ap en as m ais tarde com ­ p re e n d e r a in efetiv id a d e d as m e s m a s .. .(3)

Enquanto é desconcertante ter de reconhecer a ruptura fundamental entre as origens figurativas da arte e a base construtiva da forma arquitetônica, isto é liberador no sentido que fornece um ponto a partir do qual desafiar a invenção espacial como um fim em si mesma. Ao invés de entrar na recapitulação corrente dos tropos vanguardistas ou retroceder ao pastiche histórico ou à proliferação su­ pérflua de gestos escultóricos, nós podemos retornar ao elemento estrutural como a substância irredutível da forma arquitetônica. Entretanto, nós não estamos simplesmente aludindo aqui à revelação mecanica da construção mas, antes, à sua manifestação poética, no sentido grego de Poes,s como um ato de fazer e revelar. Conquanto reconhecem os as conotações conservadoras da polem,ca de Crassi, sua percepção nos impõe, todavia, o questio­ 308

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namento do culto do novo como um fim em si mesmo, numa época que oscila entre o cultivo de uma cultura de resistência e uma descida a um esteticismo livre de valo­ res. Talvez, a avaliação mais equilibrada de Grassi tenha sido feita pelo crítico ca­ talão Ignasi Sola Morales, quando ele escreveu: A arqu itetu ra é p o stu la d a cotu o o fic io , isto é. co m o a p lic a ç ã o p rática de um con h ecim en to e s ta b elec id o p o r m eio d as regras d os d iferen tes n íveis d e inter­ venção. A ssim , n en hu m a n o çã o d e arqu itetu ra c o m o so lu çã o d o s p roblem as, com o in o v a ç ã o ou c o m o in v en çã o e x - n o v o está p resen te n o p en sa m en to de Grassi já q u e ele está in teressado em m o stra r o caráter d a d o . ev id en te c p er­ m anente d o co n h ec im en to na p r o d u ç ã o d a arquitetura. ...O tra b a lh o d e G rassi n asce d e u m a re fle x ã o so b r e as fo n te s essen ciais da disciplina e cen tra so b r e o s m eios e s p e c ífic o s qu e determ in am n ão ap en as es­ colhas estéticas m as tam bém o c o n te ú d o ético d e su a co n trib u içã o cultural. A través d estes can ais d e v o n ta d e étic a e p o lítica , a qu estã o d o Uuministno ... é en riqu ecid a n o seu tom m ais crítico . N ão é so m en te a su p e rio r id a d e da ra­ zão e a an álise d a fo r m a q u e sã o in d ica d o s tnas. antes, o p a p e l critico (no sen ­ tido K an tian o d o term o), isto é. o ju íz o d e v alores, cuja fa lta è m u ito sentida na so c ied a d e h o je ... No sen tid o d e q u e a arqu itetu ra é u m a m etalinguagem . uma reflex ã o s o b r e as cotitra d içõ es d e su a p róp ria prática, seu tra b a lh o a d ­ quire o a tra tiv o d e alg o q u e é tan to fru stran te qu an to n o b r e . . . ^

Desde sua emergência consciente em meados do século XIX com os es­ critos de Karl Bottischer e Gottfried Semper, o termo tectônica não apenas indica a integridade material e estrutural de uma obra mas também conotações poéticas subjacentes ao modo específico de sua construção. O começo do Moderno, datado de pelo menos dois séculos, e o adven­ to muito mais recente do Pós-Moderno estão inextrincavelmente ligados às ambigüidades introduzidas na arquitetura ocidental pela primazia dada ao cenográfico no mun­ do burguês. Entretanto, a edificação permanece de caráter mais tectônico do que ce­ nográfico. Alguém pode argumentar, primeiro e sobretudo, que este é um ato de cons­ trução mais do que um discurso predicado sobre a superfície, o volume e o plano, para citar os 'Três Lembretes aos Senhores A rquitetos", antecipados por Le Corbusier no seu Vers une A rchitecture, de 1923. Assim, se pode asseverar que o ato de construir tem um caráter mais ontológico do que representativo e que a forma cons truída é antes uma presença do que a representação de uma ausência. Na terminolo gia de Martin Heidegger, nós poderíamos pensá-la primeiro como uma

coisa do

que como um "signo". Entretanto, com isto não se nega, como Bottischer e Semper deixam claro, que a tectônica não incorpora também um aspecto representativo. Eu escolhi me engajar neste tema porque acredito que os arquitetos ne cessitam de um reposicionamento hoje, dada a tendência dominante em direção à mercantilização. Tanto quanto uma tal resistência tem poucas chances de ser am piamente aceita, esta polêmica favorece mais uma abordagem formal de retaguarda, GÁVEA. 12 ( 1 2 ), dezembro 1994

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Rappel a L'ordre: Em Defesa da Tectônica blicação foi seguida por três volumes subseqüentes que apareceram com intervalos até a década seguinte, o último aparecendo em 1852, o ano de The Four Elements o f A rch itectu re de Semper. Bottischer elaborou o conceito da tectônica com nume­ rosos significados. Em um prim eiro nível, ele vislumbrou a construção como a co­ nexão apropriada de dois elementos construtivos. Simultaneamente articuladas e integradas, estas conjunções foram vistas como form as-corpos, como KorperbUden que não apenas garantem o acabam ento material de um edifício, mas também per­ mitem a esta forma adquirir significado simbolico. Em outro nível, Bottischer dis­ tinguiu K em fo rm , ou núcleo estrutural, de K u n stform , ou cobertura decorativa, a última tendo o objetivo de representar e simbolizar a condição institucional do pri­ meiro. De acordo com Bottischer, este invólucro ou revestimento devia ser capaz de revelar a essência íntima da tectônica. Ao mesmo tempo, Bottischer insistiu que se deve sempre tentar distinguir a forma estrutural indispensável do seu enriqueci­ mento, independente do último ser meramente a modelagem dos elementos técni­ cos, como no caso da coluna dórica, ou ser o cobrim ento de sua forma básica com revestimento. Semper irá posteriormente adaptar a noção de K unstform à idéia de Bekleidung, isto é, ao conceito de "vestir" literalmente o arcabouço de uma estrutura. Bottischer foi imensamente influenciado pela visão do filósofo Josef von Schelling de que a arquitetura transcende o mero pragmatismo da construção em virtude de assumir significação simbólica. Igualmente para Schelling e Bottis­ cher, o inorgânico não tinha qualquer significado sim bólico e, portanto, a forma estrutural podia apenas adquirir valor simbólico em virtude de sua capacidade de engendrar analogias entre a forma orgânica e a tectônica. Entretanto, qualquer tipo de imitação direta da forma natural devia ser evitada, pois ambos os autores tinham uma visão da arquitetura como uma arte imitativa apenas enquanto imitava a si mesma. Esta visão tende a corroborar a contenda de Grassi de que a arquitetura sempre esteve distante das artes figurativas, ainda que suas formas possam ser vis­ tas como paralelas às da natureza. Nesta condição, a arquitetura serve simultanea­ mente como metáfora e anteparo do naturalmente orgânico. Seguindo retrospecti­ vamente o rastro deste pensamento, pode-se citar

T h eo ry o f Form al B eauty" de

Semper, de 1856, onde ele não mais agrupa a arquitetura com a pintura e a escultu­ ra como uma arte plástica, mas sim com a dança e a música enquanto arte cósmica, o que significa dizer que ele a vê com o arte ontológica criadora de mundos ao invés de forma representativa estática. Semper tem em vista tais artes não apenas porque elas são simbólicas mas também porque elas encarnam o estímulo erótico-lúdico básico do homem para soar uma batida, fabricar um colar ou tecer um padrão, e assim decorar de acordo com uma lei rítmica. The Four Elements o f A rchitectu re de Semper, de 1852, fecha o círculo da discussão porquanto Semper acrescenta uma dimensão antropológica específi­ Cj ÁVEA.

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KENNETH FRAMPTON

ca à idéia da torma tectônica. O esquema teórico de Semper constitui uma ruptura fundamental com a regra humanista de 400 anos de utilitas, firm itas, venustas, que primeiro serviu como tríade intencional da arquitetura romana e, depois, como sus­ tentáculo da teoria arquitetônica pós-Vitruviana. A reformulação radical de Sem­ per surgiu de sua observação de um modelo de uma cabana caribenha na Grande Exposição de 1851. A realidade empírica deste simples abrigo fez Semper rejeitar a cabana primitiva de Laugier, aduzida em 1783 como a forma primordial do abri­ go com o qual substanciar o paradigma do frontão triangular da arquitetura neo­ clássica. The Four E lem ents de Semper revogava esta afirmação hipotética e propu­ nha, ao contrário, um constructo antropológico compreendendo: 1 - uma lareira, 2 - um terrapleno, 3 - uma armação e um telhado, e 4 - uma membrana envoltória. Apesar do modelo elementar de Semper repudiar a autoridade neo­ clássica, nem por isso deixava de dar primazia à armação sobre a massa sustentante. Ao mesmo tempo, a tese quatripartida de Semper reconhecia a importância pri­ mária do terrapleno, isto é, de uma massa telúrica que serve, de um modo ou de outro, para ancorar a armação, a parede ou M auer no sítio. Cabana indígena de Trinidad Grande Exposição de 1851

Esta marcação, conformação e preparação do terreno por meio de um ter­ rapleno tinha numerosas ramificações teó­ ricas. Por um lado, isolava a membrana envoltória como um ato diferenciador, de tal modo que o textural podia ser literal­ mente identificado com a proto-lingüística da produção têxtil, que Semper reconhe­ cia como a base de toda civilização. Por outro lado, como Rosemary Bletter apon­ tou, enfatizando o terrapleno como forma básica fundamental, Semper dava impor­

I M U im illH I M I ld U t lM I llllliH I M il* O h io *

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tância simbólica a um elemento nãoespacial, a saber, à lareira, que era inva­ riavelmente uma parte inseparável do ter­ rapleno. A expressão "preparar o terreno" e o uso metafórico da palavra fundação são ambos, obviamente, relacionados à primazia do terrapleno e da lareira. Em mais de um sentido, Semper baseou sua teoria da arquitetura em um elemento fenomênico com acentua­

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das conotações sociais e espirituais. Para 313


Rappel a L'ordre: Em Defesa da Tectônica Semper, a origem da lareira estava vinculada à do altar e, como tal, era o nexo espiri­ tual da forma arquitetônica. Neste sentido, a lareira traz em si conotações significantes. Ela deriva do verbo latino a esd ifica re que, por sua vez, está na origem da palavra inglesa ed ifice, significando literalmente "fabricar uma lareira . As conota­ ções institucionais latentes tanto em lareira como em edificar, são posteriormente sugerida pelo verbo to e d ify , que significa educar, fortalecer e instruir. Influenciado pelos insights linguísticos e antropológicos da sua época, Semper estava interessado na etimologia da edificação. Assim, ele distinguia a massividade de um muro de pedras fortificado, como indicada pelo termo M auer. da armação leve e preenchida — taipa, digamos — da construção doméstica medieval, para a qual é usado o termo W an d. Esta distinção fundamental não tem expressão gráfica melhor do que a reconstrução de uma cidade alemã medieval feita por Karl Gruber. Tanto M auer quanto W an d são reduzidos à palavra ivall em inglês, mas o último termo em alemão está relacionado à palavra para vestir, G ew and, e ao termo W inden, que significa bordar. Em concordância com a primazia que dava aos têxteis, Semper sustentava que o artefato estrutural básico primitivo era o nó, o qual predominava na forma construtiva nômade, especialmente na tenda beduína e em seu interior têxtil. Podemos notar aqui, valendo-se da análise da casa beduína feita por Pierre Bourdieu, que o tear é identificado com o o lugar de honra femini­ no e o sol interior. Como é bem sabido, há conotações etimológicas presentes aqui, das quais Semper era totalmente cônscio, sobretudo a conexão entre nó e junção, o primeiro termo sendo em alemão d ie K noten e o último, d ie N aht. Em alemão moderno ambas palavras estão relacionadas a d ie V erbin du n g, que pode ser literal­ mente traduzido como "a lig a ç ã o T o d a s estas evidências tendem a confirmar o ponto de vista de Semper de que o constituinte fundamental da arte de construir é a junção. A primazia concedida por Semper ao nó parece ser sustentada pela pes­ quisa de Gunther Nitschke sobre rituais japoneses de união e separação, como ex­ posto no seu ensaio seminal Shi-M e, de 1979. Na cultura Shinto estes rituais de união proto-tectônica constituíam ritos de renovação agrária. Eles apontam para a asso­ ciação intrínseca entre construir, habitar, cultivar e ser, observada por Martin Heidegger em seu ensaio "Building, D welling, Thinking", d e 1954 . A distinção de Semper entre tectônica e estereo to m ia nos leva aos argu­ mentos antecipados pelo arquiteto Vitorio Gregotti, que propôs que a marcação do solo, mais do que a cabana primitiva, é o ato tectônico primordial. ...A p io r inimiga da arqu itetu ra m od ern a é a id é ia d o e s p a ç o con sid erad o s o ­ m ente em term os d e su as exigên cias técnicas e eco n ô m ic a s, indiferente à idéia d o sítio. O am b ien te con stru íd o q u e n os cerca é. acred ita m o s, a rep resen tação física d a su a historia, e o m o d o p elo q u a l acu m u lou d iferen tes n ív eis d e sig n ificad o para 314

CÁVEA.

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KENNETH

fr a m p to n

Vista ideal de uma cidade medieval Karl Gruber Die Gestalt der Deutschen Stadt, 1937. A diferença didática entre M a u e r e W a n d é indicada muito claramente neste desenho.

form ai a q u a lid a d e esp ecífica d o sítio, n ã o ap en as p elo q u e ap aren ta ser, em term os p ercep tiv o s, m as p e lo q u e é em term os estruturais. A G eo g ra fia é a d escriçã o d e c o m o os sig n os d a história s e torn aram form as, p o r con segu in te o p rojeto a rq u itetô n ico ê en carreg ad o d a tarefa d e revelar a essência d o con tex to g eo -a m b ien ta l atra v és d a tra n sfo rm a çã o d a fo rm a . O a m ­ bien te é, p o rta n to , um sistem a n o q u a l d isso lv er a arqu itetu ra. P elo con trá­ rio, n ão é o m ais im p ortan te m a teria l a p a rtir d o qu a l se d e s e n v o lv e o projeto. De fa to , p o r m e io d o co n ceito d e sítio e d o p rin cíp io d e assen ta m en to , o a m ­ biente se torn a a essên cia d a p r o d u ç ã o arqu itetôn ica. D este p o n to privilegiado, n ovos p rin cíp io s e m éto d o s p o d e m ser o b s e r v a d o s para projetar. P rincípios e m étod os q u e d ã o p reced ên cia à s itu a ç ã o em um a área esp ecífica , (sic) Este é um ato d e co n h ecim en to d o con tex to q u e surge d a su a m o d ific a ç ã o arquitetô­ n ica Im in has itálicas / A origem d a arqu itetu ra n ão é a ca b a n a prim itiva, a ca­ verna ou a m ítica 'Casa d e A d ã o n o Paraíso'. A ntes d e tran sform ar um su porte em coluna, um telh a d o em tím p an o, antes d e p o r p ed ra s o b r e pedra, o hom em colocou u m a p ed ra no s o lo p a ra reco n h ecer o sítio no m eio d e um universo d escon h ecid o, d e m o d o a d a r-se co n ta d e le e m od ificá-lo. C o m o em tod o ato de assentam ento, este requeria a çõ es radicais e sim plicidade aparente. Deste ponto de vista, existem ap en as duas atitu d es im p ortan tes em rela çã o a o contexto. As ferram entas d a prim eira s ã o a m im esis, a im itação orgânica e a ex ib içã o da com ­ p lexidade. A s ferram en tas d a seg u n d a s ã o a v a lo riz a çã o d a s relações físicas, a d efin içã o fo r m a l e a in terio riz a çã o d a co m p lex id a d e .

Com a tectônica em mente é possível ver a história da arquitetura mo­ derna sob uma luz diferente. Assim, a evolução da expressão tectônica pode ser se­ guida através do século servindo para unir de outro modo obras diversas. Neste pro­ cesso, afinidades familiares serão ainda mais reforçadas enquanto outras irão receder, e até conecções não percebidas irão também emergir, asseverando a importân­ cia dos critérios que jazem além das diferenças estilísticas superficiais. Assim, por todas as suas idiossincrasias, um nível muito similar de articulação tectônica liga a GÁVEA.

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Rappel a L'ordre: Em Defesa da Tectônica Bolsa de Valores de Hendrik Petrus Berlage, de 1895, ao Edifício Larkin de Frank Lloyd Wright, de 1904, e aos Escritórios da Central Beheer de Herman Hertzberger, de 1974. Em cada um destes exemplos há uma concatenação similar de vão e supor­ te que implica em uma sintaxe tectônica na qual a força gravitacional passa da ter­ ça à tesoura, à mísula, ao modilhão, ao arco, ao pilar e ao contraforte. A trans­ ferência técnica desta carga passa através de uma série de transições e junções apro­ priadamente articuladas. Em cada uma destas obras a articulação construtiva en­ gendra a subdivisão espacial e vice-ver­ sa, e este mesmo princípio pode ser en­ contrado em outras obras deste século Frank Lloyd W rig h t Edificio Larkin Buffalo, 1904 Herman Hertzberger Central Beheer Apeldoorn, 1974

com aspirações estilísticas completamen­ te diferentes. Assim, nós encontramos uma preocupação semelhante com a re­ velação das junções tanto na arquitetura de Auguste Perret quanto na de Louis Kahn. Em cada exemplo a junção garan­ te a probidade e a presença da forma to­ tal apesar de aludirem a antecedentes ideológicos e referenciais distintos e dife­ rentes. Assim, onde Perret se volta para o classicismo racionalizado estruturalmen­ te do ideal Grego-Gótico, datado na Fran­ ça do início do século XVIII, Kahn evoca um “arcaísmo atemporal", ao mesmo tem­ po avançado tecnologicamente e antigo es­ piritualmente. Pode-se dizer que a inspira­ ção primordial por trás de todas estas obras deriva tanto de Eugene Viollet-le-Duc quanto de Semper, apesar de ser evidente que a concepção de Wright da forma cons­ truída como uma trama têxtil ampliada e pe­ trificada, mais evidente em suas casas de blocos texturizados dos anos 1920, deriva


KENNETH FRAMPTON

diretamente da prioridade cultural que Semper dava à produção têxtil e ao nó como a unidade tectônica prim ordial. Pode-se argumentar que Kahn foi influenciado tan­ to por \\ right quanto pela linha Beaux A rts franco-americana, derivada de Eugene \ iollet-le-Duc e da Ê cole d e B eaux Arts. Esta genealogia particular nos permite re­ conhecer os vínculos que ligam o Laboratório Richards de Kahn, de 1959, ao Edifí­ cio Larkin de Wright. Em cada exemplo existe uma "tartana" similar, uma preocu­ pação têxtil em dividir o volume encerrado e suas várias unidades em espaços servi­ dores e servidos. Acrescente-se a isto uma preocupação muito similar com os rendi­ mentos expressivos do equipamento mecânico, como se eles tivessem a mesma im­ portância hierárquica do arcabouço estrutural. Assim, os monumentais tubos de ventilação em tijolos do Laboratório Richards são antecipados, como o foram, pelos bastiões de tijolos, dúcteis e ocos, que estabeleciam os quadriláteros monumentais das quinas do Edifício Larkin. Apesar de desmaterializada, existe uma discrimina­ ção semelhante entre espaços servidores e servidos no Centro de Sainsbury de Norman Foster, de 1978, com binada com uma tendência similar para o potencial expres­ sivo do equipamento mecânico. E aqui novamente encontramos prova adicional de que a tectônica no século XX não pode envolver apenas a forma estrutural. A abordagem altamente tectônica de Wright e sua influência nas últi­ mas fases do movimento moderno têm sido subestimadas, já que Wright é, segura­ mente, a influência primária por trás de figuras européias diversas como Cario Scarpa, Franco Albini, Leonardo Ricci, Gino Valle e Umberto Riva, para citar apenas a linhagem Wrightiana na Itália. Uma conexão Wrightiana semelhante atravessa a Escandinávia e a Espanha, servindo para conectar figuras diversas como Jorn Utzon, Xavier Saenz de Oiza e, mais recentemente, Rafael Moneo, que, como de fato sucedeu, foi discípulo de ambos. Algo deve ser dito sobre o papel crucial da junção no trabalho de Scarpa, para notar a natureza sintaticamente tectônica de sua arquitetura. Esta dimen­ são foi caracterizada brilhantemente por M arco Frascari em seu ensaio Tale Detail

louis Kahn Laboratório Richards Philadelphia, 1957-61 Note as torres aumentando de seção à medida que sobem em oposição às colunas que, de um modo inverso, se alargam à medida que descem.

The TelT


Rappel a L'ordre: Em Defesa da Tectônica A arquitetura é un ia a rte p o r q u e é in teressada n ã o a p en a s p ela n ecessidade ori­ g in al d e ab rig o m as ta m b ém p ela a rticu la çã o d e es p a ço s e m ateriais d e unia m an eira rica d e sig n ifica d o s. Isto o co rr e p o r m e io d e ju n ções verdadeiras e for­ m ais. A junção, isto è. o d eta lh e fértil, é o lu g ar o n d e tan to a construção quan­ to a sig n ificação d a arqu itetu ra tem lugar. A lém disto, é útil para com pletar n o sso en ten dim en to s o b r e o p a p e l essen cial d a ju n ç ã o c o m o o lugar d o proces­ s o d e sign ificação, reco rd a r q u e o sig n ifica d o d a raiz in d o-eu rop éia original da p a la v ra arte é a r tic u la ç ã o ... (6)

Se o trabalho de Scarpa assume suprema importância por sua ênfase na junção, o valor seminal da contribuição de Utzon para a evolução da forma tectô­ nica moderna reside em sua interpretação dos "quatro elementos" de Semper. Isto é particularmente evidente em todas as suas peças " p ag od e/p ód iu m " que invariavel­ mente se dividem entre o terrapleno e a lareira que dão corpo ao pódiurn e o telhado e o preenchimento têxtil encontráveis na forma do "pagode", independente deste ele­ mento de cobertura em coroamento compreender uma casca curva ou uma placa do­ brada (cf. a Opera de Sidney, de 1973, e a Igreja Bagsvaerd, de 1977). É revelador da aprendizagem de Moneo com Utzon que uma articulação similar de terrapleno e telhado seja evidente no Museu Arqueológico Romano de Moneo, concluído em 1986 na cidade de Merida na Espanha. Como nós já indicamos, a tectônica fica suspensa entre uma série de opostos, sobretudo entre o ontológico e o representativo. Entretanto, outras condi­ ções dialógicas estão envolvidas na articulação da forma tectônica, particularmente o contraste entre a cultura do pesado — estereotomia, e a cultura do leve — tectô­ nica. A primeira implica na alvenaria sustentante e tende em direção à terra e à opa­ cidade. A segunda implica na treliça desmaterializada e tende em direção ao céu e à translucidez. De um lado da balança, nós temos o terrapleno de Semper, reduzi­ do nos tempos primevos, como nos lembra Gregotti, à marcação do terreno. Do outro lado, nós temos as aspirações desmaterializadas, etéreas, do Palácio de Cris­ tal de Joseph Paxton, que Le Corbusier uma vez descreveu com o a vitória da lüz sobre a gravidade. Já que poucas obras são inteiramente uma coisa ou outra, podese alegar que a poética da construção se desprende, em parte, da inflexão e do posi­ cionamento do objeto arquitetônico. Assim, o terrapleno se estende verticalmente para se transformar em um arco ou uma abóbada oi , alternativamente, recuar, pri­ meiro para se transformar no suporte transverso para uma simples treliça, e depois para se transformar em um p ód iu m , elevado da terra, no qual uma armação inteira se ancora. Outros contrastes servem para articular este movimento dialógico mais adiante, como polido versus bruto, ao nível do material (cf. Adrian Stokes), ou es­ curo versus luminoso, ao nível da iluminação. Finalmente, algo deve ser dito sobre o significado da disjunção articulada em oposição à junção. Estou aludindo ao ponto no qual as coisas rompem umas GÁVEA.

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Rafael Moneo Museo Arqueológico Romano, Merida, 1980-85

com as outras ao invés de se conectarem; aquele fulcro significante no qual um sis­ tema, superfície ou material abruptamente acaba por ceder a outro. O significado pode ser então cifrado através da interação entre "junção" e "rompimento", e neste sentido a ruptura pode ter tanto significado quanto a conexão. Postscriptum: Forma Tectônica e Cultura Crítica Com o Sigfried Giedion observou na introdução de seu estudo de dois volumes — T he Eternal Present, de 1962, entre os impulsos mais profundos da cul­ tura moderna na primeira metade deste século estava o desejo de retornar à atemporalidade de um passado pré-histórico; de recuperar alguma dimensão de um pre­ sente eterno subjacente ao movimento da história e ao processo de progresso ins­ trumental. Este impulso retorna à superfície hoje como uma base eficaz a partir da qual resistir à mercantilização da cultura. No campo da arquitetura, a tectônica se apresenta como uma categoria com a qual sustentar uma certa permanência pela qual a presença das coisas irá novamente acompanhar a experiência e a aparência pública. Além das aporias da história e do progresso e além das limitações do His­ toricismo e do Neo-vanguardismo, reside o potencial para uma cultura crítica de resistência. Esta é a história pela a qual Vico se direcionou em sua N uova Scienza. É uma marca da natureza radical do pensamento de Vico que ele tenha insistido que o conhecimento não é apenas a província do fato objetivo mas também da ela­ boração coletiva, subjetiva, do mito arquetípico, isto é, um repositório da verdade simbólica ascendendo das profundezas da experiência geradora. O mito que pode ser corporificado na tectônica nos faz retornar exatamente a uma tal atemporalidade na continuidade do tempo.

Notas (1 ) (

2

)

(3 ) (4 ) (5 ) (6 )

SEDLMAYR, Hans. Art in Crisis: The Lost Centre. New York, London: Hollis jnd C arter Spottiswoode, Ballantyne & Co. Ltd., 1957, p. 164. 3REEN BERG , Clement. "Modernist Painting", 1965. In: BATTCOCK, Gregory editor). The New Art. New York: Dalton Paperback, 1966, p. 101-102. 3R A S S I, Giorgio. "Avant-Garde and Continuity". Oppositions, IAUS & MIT ^ress nV 21, 1980, p. 26-27. SOLA M ORALES, Ignasi. "Critical Discipline". Oppositions. IAUS & MIT ’ress, n? 23, 1981, p. 148-150: „ c . jR E G O T T I, Vittorio. " Lecture at the New York Architectural League , Section V, M ontreal, v. 1, nu 1, fev./mar. 1983. :R A SC A R I, Marco. "The Tell-Tale Detail". VIA. University of Pennsylvania, n. 7.

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I

Mark Tansey "T riu m p h o f the N ew York S ch o o l", 1984 Óleo sobre tela N ew York, The W h itn e y M useum of A m erican A rt 0 quadro mostra a rendição da Escola de Paris à Escola de Nova York. André Breton, cercado por Picasso, Matisse, M iró , D ucham p (mais ao fundo, um tanto à parte) e o u tro s representam os franceses. Do lado americano temos Clement Greenberg recebendo a rendição, vendo-se ainda Pollock, De Kooning Newm an, M otherwell e outros.


Greenberg, um Crítico na História da Arte Entrevista com Jean-Pierre Criquid) A entrevista discute as posições teóricas de Clement Greenberg e o seu papel na form ulação da crítica de arte no século XX e na relação com a Escola de No­ va York, analisa, ainda, a repercussão das concep­ ções de Greenberg sobre a critica de arte em geral e francesa em particular. História da arte Critica de arte

G LÓ R IA F E R R E IR A É formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil P U C -R IO e é douto­ randa em História da A rte na Université Paris I - So r­ bonne Pantheon.

Introdução Para Jean-Pierre Criqui, que junto a Daniel Soutif organizou o coló­ quio "Greenberg”, em maio de 1993, no Centre Georges Pompidou, começa a ser possível tratar o legado de Greenberg da mesma forma como se faria um colóquio sobre Baudelaire. Ou seja, através do uma diversidade de abordagens, tratar o lega­ do greenberguiano com o objeto de história. Foi, porém, sob o signo de sua ausência que o colóquio se realizou. Ausência, em parte, suprida por um vídeo de Ann Hindry, tradutora de Art and Culture para o francês, gravado em Nova York nas vésperas da abertura do encon­ tro. Estrategema dos organizadores que não deixou de causar efeito tanto no públi­ co como nos participantes. Especialmente em Rosalind Krauss: "Ele está sentado, exatamente co­ mo na minha lem brança... O rosto não mudou, sempre assim flácido, mas a passa­ gem do tempo, com sua crueldade habitual, o tomou mais enrugado, avermelha­ do.'^) Se seu discurso traz a marca do impacto causado pelas imagens do vídeo, é a lembrança "corrigida" por Greenberg do seu encontro com Pollock em 1942 que servirá de fio para o "Qui a peur du Pollock de Greenberg. Embora em nada hagiográfico, o tom do colóquio estava longe das po­ lêmicas passadas. "Um crítico na história da arte" e "A herança de um crítico" fo­ ram os dois grandes temas abordados por críticos, historiadores da arte e f.losofos G Á V E A . 12 (12), dezembro 1994

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Greenberg, um Crítico na História da Arte Entrevista com Jean-Pierre Criqui _americanos e franceses.*3) Não estava em jogo a atualidade de sua crítica, isto é, seu poder de avaliar, de aceitar ou negar tal obra, mas a avaliação de sua fortuna crítica enquanto parte da história da arte. Lançado no último inverno, o número 45/46 do Les C ahiers du M usée N ation al d'Art M o d ern e traz o conjunto das inter­ venções e se soma, como valioso material, à extensa bibliografia sobre Greenberg, a começar pelos quatro volumes de seus ensaios e críticas, editados por John 0 '0 b r ia n .* 4> Tomando um certo recuo desta atual leitura histórica da crítica greenberguiana, dois trabalhos de artistas americanos nos remetem ao tom de real polê­ mica a que esta se viu confrontada: E rased De K o o n in g D rawing, 1953, de Rauschenberg e Sem título (C ita çã o , s o b r e tela, d e um p en sa m en to d e Clem ent Greenberg)(5), 1967 de John Baldessari. O primeiro prenunciava o esgotamento da Esco­ la de Nova York. O trabalho de John Baldessari, por sua vez, se inscreve no contex­ to dum amplo debate promovido por A rtforum , e nos remete a um dos momentos da polêmica que terminou por colocar o formalismo em xeque. Trata-se de uma série de artigos sob a rubrica P ro b lem s o f C riticism ,<6> iniciada em 1967. "Complaints of an Art Critic", artigo de Greenberg, foi o segundo da série. De fato, trata-se de queixas, e claro, também de acusações. Queixas de ser chamado "formalista", o que declara não compreender a não ser como "this is a vulgarity with a vengeance ; queixas quanto à acusação de seus julgamentos de­ correrem de uma posição ou linha preestabelecida; e por último, como teria sido constante a tendência a imputar-lhe coisas que nunca disse, se diz na obrigação de reiterar as regras de referência, em especial sobre o julgamento estético. Suas reclamações revelam um Greenberg acuado, embora mantenha — como Rosalind Krauss reconhece nas imagens do vídeo de Ann Hyndry —, o tom implacável e definitivo’ das suas afir­ mações: a melhor arte do momento conti­ nua a ser abstrata; a qualidade, e a histó­ ria como qualidade, como a mais direta denotação do efeito — "quality is content", negação do conteúdo — pura iconografia; e, advertência aos iconógrafos' para não se reclamarem como críticos. Os ensaios, por vários críti­ cos, historiadores e artistas, segundo A rt­ forum "concernem o contexto, estilo, di­ ficuldades e obrigações do crítico de arte hoje".*7) O tom do "Complaints of an Art Critic indica que Greenberg estava bem 322

te


GLÓRIA

f e r r e ir a

consciente de que era seu sistema que estava em jogo, que uma nova reflexão so­ bre a crítica de arte se gestava então sob o impulso das diferentes novas estratégias artísticas. Embora os anos 60 marquem o período de seu apogeu como personalida­ de do meio de arte americana, a sua crítica se tornara quase um esteriótipo — o início da década é marcado pela difusão do célebre "Modernist Painting” pela Voice o f Am erica e do lançam ento de A rt an d Culture. Esta consciência transparece na acusação feita a Robert Goldwater. Não ao seu artigo "Varieties of Criticai Experience" que inicia a série, onde Goldwater, sem fazer alusões específicas, propõe outras bases para a crítica. Em especial que a crítica se faça a partir da arte ("grow out of the art”). Chama também atenção para a diferença entre dois objetos de estudo — arte e processo de criação —, e para a impossibilidade de se elaborar um sistema crítico estruturalmente fechado com alguma validade no momento — ”it would be litle likely to have a long life". Greenberg ataca uma suposta abordagem literária feita, num outro con­ texto, por Goldwater ao trabalho de Kline. Tentava assim levar o debate para as suas questões, digamos, de princípio. Sutileza, sem dúvida, que teve algum efeito pois desta série resultou uma polêmica, através de cartas ao editor de Artforum, entre ele, Robert Goldwater e Max Kozloff. Entretanto, não conseguiu impedir que o consenso em torno das bases do modernismo por ele proposto, e da lógica de sua interpretação do desenvolvimento artístico no século XX, fossem questionadas. Prevista inicialmente para o volume VI (67/68) da revista, a série du­ rou até 1971, sendo o último artigo o de Rosalind Krauss — Pictoral Space and the Question of Docum entary”. Ainda não estamos no tom do "A View of Moder­ nism" de 1972, também na A rtforu m , onde ela remete em questão os fundamentos historicistas do form alism o. Neste artigo, é questionada a abordagem modernista da natureza do espaço pictórico como um ;

fato, 'irrefutável fato', capaz de enunciar ■

imediatamente uma nova estética. Entrá­ vamos, sem dúvida, na era do Other Critheria preconizado por Leo Steinberg. O outro percurso de "Com­ plains of an art Critic", como elemento de uma obra de arte, no ano mesmo da sua publicação, talvez seja ainda mais revela­ dor. O seu primeiro parágrafo em caixa alM ark Tansey "T h e M yth of D epth", 1964 Ôleo sobre tela Coleção Norton Landowne Cortesia Curt Marcus Gallery, New York Greenberg cercado pelos seus apóstolos, expressionistas abstratos, apontando pa­ ra Pollock o caminho sobre a água.

323


Jasper Johns "T h e Critic Sees", 1961 Metal esculpido sobre gesso com vidro Private Collection, N ew York

ta, e apresentado no suporte da pintura tornava ainda maior o abismo entre as refe­ rências estéticas do julgamento estético que Greenberg se diz obrigado a reiterar, e o questionamento da natureza da arte por Baldessari. Com o se referir então à 'quali­ dade', à imediatez do olhar (retiniano, acrescentaríamos) como garantia do gosto, ou a solução de problemas formais internos em relação a seus antecedentes históricos? Jean-Pierre Criqui, em sua entrevista, assinala uma espécie de bloqueio a que se viu confrontado Greenberg e sua impossibilidade quase dramática, após a Escola de Nova York, de reconhecer qualquer coisa interessante na arte. Respondendo à Ann Hyndry sobre a arte contemporânea, Greenberg diz: “Você cita Serra e De M aria... Não há muito talento nisso aí... Eles não são nem bons desenhistas, nem bons escultores. Eles utilizam grandes pedaços de aço e às vezes funciona, porque é tão grande... De M aria tem algum talento, mas ele é muito convencional. Flavin, também, é demasiado convencional, de demasiado bom gosto". Sua recusa, de último momento, em participar do colóquio, propor­ cionou sem dúvida o distanciamento necessário para uma avaliação crítica de teor histórico, não só de sua trajetória, mas dos aportes do formalismo. Até porque, uma estratégia possível diante da crise tanto da história da arte como da crítica se­ ria "Vive le formalisme", como, num outro contexto, afirmou Yve-Alain Bois: "Mas em vez de tomar Greenberg com o modelo, olhar sobretudo do lado de Riegl ou dos formalistas russos (não o do início mas este de Tynianov e de Jackobson nos seus textos de 1927-29), quer dizer de um formalismo para o qual uma missão essencial era precisamente da definição de mediações entre o espaço semântico da obra, suas estratégias formais e tudo que não é ela (o mundo, a história, a luta de classes, a biografia, a tradição, todo o resto)<8>. Glória Ferreira Abril, 1994 324

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Notas ( 1 ) Esta entrevista foi realizada em junho de 1993, em Paris. ( 2 ) K R A U SS, Rosalind. "Q ui a peur du Pollock de G reenberg?", in: CLEMENT G REEN BERG Les Cahiers du Musée National d'Arl Moderne. n‘.’ 45/46, ou tono/ inverno 1993, pp. 159-171. ( 3 ) No dia 21 de maio, sob o tema "Un critique dans I'histoire de I’art" participaram : Arthur Danto, C laire Brunet, Hubert Damisch, Yve-Alain Bois, Bradford C ollins e John O 'B rian "L h éritag e d un critique ", no dia 22, contou com : Jean-M arc Poinsot, C aroline A . Jones, Thierry de Duve, Rosalind Krauss, Dom inique Chateau e Elisabeth Lebovici. ( 4 ) Clement Greenberg — op. cit. Além das intervenções, foi transcrita parte da entrevista de Greenberg a Ann Hindry, bem com o foi reeditado o seu prim eiro texto publicado em francês. "L a rt américain au X X 1' siècle", no Les Tent ps modentes. em 1946. O ’BRIA N , John. ed. Clement Greenberg. The Collected Essays and Criticism. Volume I: Perceptions and Judgments, 1939-1944; Volume 2: Arrogant Purpose, 1945-1949, C h icago/ Londres, T he U niversity of Chicago Press, 1986. ibdem. Volume 3: A ffirm ations and Refusals, 1950-1956; Volume 4: Modernism with a Vengeance. 1957-1969, Chicago/Londres, The University of Chicago Press, 1993. Cada urn dos volumes traz a bibliografia de seus livros e traduções, assim como dos textos sobre ele. Segundo O Brian a m aior parte da literatura sobre Greenberg é posterior à publicação de Art and Culture, em 1961. Entre outros títulos. citam os: K U SPIT. Donald B. "Clement Greenberg Art Critic Wisconsin, The University of W isconsin Press, 1979. ( 5 ) Reproduzido no texto de Pierre Restany, "Notes de voyage -

Houston, New

Y o rk ", Donuts, nV 498, m aio 1971, p. 46. ( 6 ) Problems o f Criticism, série de artigos na revista Artforum : I G O L D W A T E R , Robert — "V arieties of Critical Experience" (set. 1967); II G REEN BERG , Clem ent — "C om plains of a Art Critic" (out. 1967); II — KOZLOFF, M ax. "V enetian Art and Florentine C riticism " (dez. 67); IV — R O SE, Barbara — "T he Politics of A rt, Part I", (fev. 1968); V - ROSE, B. "The Politics of Art. Part II". (jan . 1969); VI - R O SE, B. "T h e Politics of Art, Part III" (maio 1969): VII SC H O R R Justin. "T o Save P ainting", (dez. 1969); VIII — LADERM AN, Gabriel. "N otes from the Underground" (set. 1970); IX - BURNHAM. Jack. "It is not the art w orks which are under attack, but, the epistemological structures through wh.ch the illusion of high art is consecretaed" (jan . 71); X - KRA U SS Rosa me "Pictorial Space and the Question of Docum entary", (nov. 1971). Na falta de urn index da A rtforum . nossa pesquisa cobriu o período de 1967 a 1974 nao tendo sido publicado, até então, outro ensaio da série apos o de Rosalind Krauss. nem sido anunciada o seu fim . , _ ( 7 ) "V olu m e Six of Artforum . w hich begins with this issue, will feature by continuing series articles on the subejet. Problem of C n hcsm This essays, various critics, historians and artists, concern themselves with the con ext, style, purposes, difficulties and obligations of art critic today Nota do , A rtfn m m v Vi nu 1. setem bro 1967, p. 1. BOIS? Y ve-A lain. ' Vive le form alism e (bis)". Ar, Press, n” 149. iulho/a8 „s,o

(8 )

1990, p. 51.

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Greenberg, um Crítico na História da A rte -Entrevista com Jean-Pierre Criqu Entrevista GF

"Um crítico na história da arte" e "A herança de um crítico" forarn

os dois grandes eixos do coloquio. Como se situariam estes dois termos, critica e história da arte, no que diz respeito a Greenberg? JPC

Nos apareceu, a mim e a Daniel Soutif, organizadores deste colóquio,

que já era tempo de fazer alguma coisa sobre Clement Greenberg — ele está com 84 anos — , antes que se torne algo póstumo. A publicação em francês de A rt an d C u ltu re em 1988, contribuiu para torná-lo melhor conhecido e a relançar um pouco o seu pensamento no meio intelectual da França. Anteriormente, Greenberg era conhecido sobretudo de segunda mão. O seu primeiro texto em francês só foi publicado em 1946, na revista de JeanPaul Sartre, les Tem ps m o d ern es. Trata-se do artigo A arte am ericana no século XX. Greenberg perdeu o texto original por isso ele não faz parte da atual coletânea Writings. Foi esta a primeira aparição de Greenberg na França. Só nos anos 60 haveria uma continuação através da revista P reuve, hoje desaparecida, e pouco depois na revista Peinture, cahiers th éoriqu es do movimento Supports/Surfaces, e de Marcelyn Pleynet. Depois foram feitas algumas traduções, em particular de M odem ist Painting. Por tudo isso nos pareceu que era tempo de assinalar a recepção de Clement Greenberg em francês. O título "Um crítico na história da arte" é uma maneira de designar duas coisas: crítico' que remete à prática de Greenberg que sempre disse que não era um historiador da arte, seja do ponto de vista de sua formação, ou de seus escritos. De fato, Greenberg encarna bastante bem uma figura talvez em via de desapareci­ mento: a do crítico de arte no sentido baudeleriano do termo. A história da arte', mais do que sua prática e formação, que são preci­ samente de um crítico, destaca a sua inscrição real na arte dos últimos trinta, qua­ renta, ou mesmo, cinquenta anos. O que mostra que, efetivamente, Greenberg se tornou um ator preponderante e incontornável da arte em geral e mais especifica­ mente da arte americana a partir de 1940. Quem teria na França desempenhado um papel similar ao de Green­ berg nos Estados Unidos? e Daniel Soutif também nos colocamos esta questão. Não há uma comparação possível entre a cena americana na qual atuou Greenberg e a cena fran­ cesa. Houveram certos críticos-empresários, no sentido que Greenberg pode ter si­ do. No entanto, nao conhecemos ninguém com a mesma influência, até porque a te francesa, a partir do pré-guerra, não teve a mesma importância da arte americana. Talvez possamos citar Michel Tapié, que nos anos 50 cristalizou uma posição similar ■^6

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glória ferreira

em torno do movimento informal. Seuphor, para uma geração anterior, e Pierre Restany, que desempenhou um papel de empresário em relação aos Nouveaux Réalistes. Fora da cena francesa poderíamos pensar em Germano Celant e sua relação com a Arte Povera. A grande força de Greenberg são seus escritos, bem superiores aos dos críticos que acabo de citar. Ele não foi apenas um empresário, mas também um teórico e um crítico no sentido mais nobre do termo, mesmo que ele tenha afirmado várias coisas que não se pode estar de acordo hoje em dia. Aliás, ele mesmo reviu uma parte de suas próprias afirmações. Eu diria que Greenberg é a combinação do empresário, que representava uma nova arte e cristalizava em torno de si uma arte contemporânea que estava se fazendo, e ao mesmo tempo um crítico articulado, que não produzia apenas textos de apoio, mas de reflexão teórica. São realmente poucos, na França, os casos similares: o mais próximo (me guardando de todo julgamento), é o de Marcelin Pleynet e a sua coletânea de artigos reunidos em A rt et Littérature. Em Pleynet existe uma espécie de síndrome de clown quase greenberguiano. Esta é, sem dúvida, a tentativa mais consciente para fazer algo a partir do modelo greenberguiano. GF

A que se deve, segundo o senhor, o atraso na tradução de Art and

Culture, só publicado 27 anos depois de seu lançamento nos EUA? Sua edição faria parte do atual interesse pelos textos da crítica americana, alguns lançados simultaneamente em diferentes antologias? JPC

De fato, não se traduziu muito a crítica americana. E um fenômeno

recente. Eu diria, para precisar, que se a França conheceu um atraso, ela tem um mérito, que não tem nenhum outro país, de o ter- traduzido. Greenberg está traduzido apenas em francês. Nem os alemães ou os italianos o traduziram, tampouco os espanhóis etc. Não deixa de ser surpreendente que a França apesar do atraso, tenha sido o primeiro país a traduzir A rt a n d Culture. No que diz respeito a edição pela Macula, (à qual estou ligado, tendo inclusive trabalhado na preparação desse livro), a tradução tomou um tempo enorme. Entre o momento da decisão e a publicação se passaram 10 anos. Atrasos, em parte, devido à realidade de uma pequena editora. Apesar de não poder confirmar, soube que a Gallimard recusou a proposta de editálo nos anos 70. Não é gratuito que tenha sido a Macula que o tenha publicado, quer dizer, que o maior crítico americano do século XX seja lançado por uma pequtna editora que publica apenas seis ou sete livros por ano. Isto diz também alguma coisa sobre a relação bem absurda, em que as proporções são invertidas entre a cultura

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Greenberg, um Crítico na História da Arte -Entrevista com Jean-Pierre Criqu moderna americana e a cultura moderna francesa. Nosso meio de homens-de-letras não está pronto a recebê-lo facilmente. Greenberg no Nouvelle Revue Française não é verdadeiramente possível de ser imaginado... GF

Ao mesmo tempo não é surpreendente que seja a Macula, que edite

Greenberg e Rosalind Krauss... JPC

A revista M acu la fundada no final dos anos 70 por Jean Clair e Yve-

Alain Bois foi, efetivamente, muito importante no meio da arte francesa. Tanto para o desenvolvimento da reflexão teórica, como na im portação de outros discursos, especialmente o americano, não disponível até então. No número 2 de M acula foi publicado um dossiê com todos os textos de Clement Greenberg sobre Pollock, o que nunca havia sido feito antes, mesmo nos Estados Unidos, e que teve uma grande importância. É também na Macula que Rosalind Krauss teve os seus primeiros textos editados na França. Isto se deve a uma pequena equipe que em Paris, nessa época, estava ligada ao meio americano e que queria romper com a postura de homem de letras, tipo NRF-Gallimard-Jean Paulhan. Apesar de toda a admiração que se possa ter, esta tendência passou, de uma certa maneira, completamente ao largo do modernismo no sentido americano do termo. Além disso, houve também a recusa da versão Pleynet que era uma mistura de Motherwell e de Lacan. Havia essa recusa e a vontade de propor um novo front teórico. GF

Segundo Yve-Alain Bois, embora tenha se falado muito em pós-

modernismo na França, são raras as referências ao modernismo. Ambas teorias, no entanto, se reclamam de Kant. Como o senhor considera estas diferentes leituras: de um lado a reivindicação da análise crítica por parte de Greenberg e por outro a teoria do sublime por parte do pós-modernismo? É verdade que na França, nos anos 80, se falou muito do pós-moderno e do modernismo simplesmente porque as idéias internacionais, e as especialmente americanas, se alastraram e que o meio de arte contemporânea estando mais desenvolvido na França repercutiu o debate internacional. Anteriormente, não se falava de modernismo simplesmente porque a França estava, no campo da história e da critica de arte, com raras exceções, endêmica de toda cultura modernista no sentido greenberguiano ou no sentido americano do termo. Teríamos, ^ vez' apenas Hubert Damisch que escreveu sobre Pollock no final dos anos 50 e algumas outras pessoas que poderiam ser suscetíveis de saber o que era o modernismo. Este não era um elemento do debate intelectual francês. No que diz respeito a Kant, eu diria que, embora um pouco esquemático, C.ÁVEA. 12 (12), dezembro

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glória ferreira

me parece que a filosofia de Greenberg sempre foi bastante curta. É um grande crítico de arte mas não um filósofo. Seu recurso a Kant, e eu digo isto no meu artigo, é uma espécie de guarda-chuva que o permitia afirmar o seu próprio julgamento da experiência estética ou de se refugiar no seu próprio gosto. É algo terminal, nada de muito aprofundado (e mesmo não há porque levar o kantismo muito longe quando se trata de crítica de arte). Então, que o pós-modernismo seja um poskantismo ou uma nova leitura de Kant, eu não sei se isto realmente contou em relação a Greenberg. E certo que a teoria do sublime voltou ao debate através de alguém como Lyotard, embora este não tenha feito referências específicas a Greenberg. Por outro lado, na teoria de Greenberg não há lugar para a teoria do sublime. O que não deixa de ser um caso interessante. A teoria do sublime de Kant é um dos traços mais desta­ cados pela estética e disso Greenberg não se serve. Na verdade, penso que não haja nos seus textos alusão alguma ao sublime. Seria então de um outro Kant que o pósmodernismo teria se servido, um recurso diferente à Faculdade do Juízo. Greenberg se restringe simplesmente a expressão da beleza desinteressada e do julgamento do gosto. Ele tentou dar, em invocando Kant, uma legitimação filosófica a seus próprios julgamentos de gosto. Isto dito, não creio que se deva levar muito longe a análise de Kant em Greenberg. Ele mesmo se encontrou num impasse quando, no início dos anos 70, publicou uma série de textos sobre a rubrica de Seminars — Sem inar One, Two etc. nos quais ele abordava questões puramente estéticas e voltava especialmente à análise de Kant. É justamente nesse momento que se sente bloqueado e pára de escrever. Eu diria que ele se defrontou com um impasse quando quis abordar este campo. A sua grande força é de ser um crítico de arte no sentido de uma expressão da subjetividade e não de ser um teórico, alguém passível de refletir sobre a essência da arte ou sobre a experiência do julgamento. Não deixa de ser surpreendente que nos 4 volumes de escritos organizados por John 0'B rian não estejam os Seminars, cuja publicação se termina um pouco antes de 68. Parece, então, a menos que esteja prevista uma publicação futura, que este período que o conduziu a uma espécie de impasse tenha sido colocado entre parênteses. GF

No seu texto sobre Greenberg, Le M odernism e et la v oie lactée<>>, o

senhor diz que o que é preciso reter em Greenberg é a sua qualidade de atenção', mas que é também isso que é preciso superar. Seria então justamente esta valonzaçao dos efeitos ópticos-formais por parte de Greenberg que o teria impedido de apreender o aporte de Duchamp? jp ç

a

lição de Greenberg é ao mesmo tempo magistral e incompleta.

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Greenberg, um Crítico na História da Arte-Entrevista com Jean-Pierre Criqui Efetivamente, a primeira coisa que se deve dar a uma obra de arte é a atenção. E esta atenção, por definição, para Greenberg, só pode ser visual. Parece-me ser aí onde Greenberg tropeça porque são inúmeras as maneiras de se dar atenção a alguma coisa. Eu diria que ele separou um pouco o olho do espírito. Uma espécie de olho onisciente, onissensível. Quando se está diante de uma peça de Lawrence Weiner — um enunciado sobre o muro — a atenção a ser dada é também visual senão não a poderíamos perceber, mas efetivamente numa peça de Weiner ou de Duchamp ou de vários outros artistas do século XX, a passagem pela experiência visual é apenas um momento e não o fim em si mesmo. Por isso Duchamp foi contra o retiniano, não porque fosse contra o olhar, mas porque pensava que o estado de apreensão visual de uma obra devia se abrir sobre outra coisa. Greenberg não pensa assim. Ele acredita que a experiência visual, o puro olhar, seja um fim em si mesmo. A experiência encontra sua justificação e seu fim na apreensão visual da obra. Então, efetivamente, isto o impede de dar a atenção devida a Duchamp, ao surrealismo e muitas outras produções onde os dispositivos operatórios supõem outra coisa que a apreensão de um objeto pelo olhar. GF

Nos quatro volumes de Writings, Greenberg se refere apenas quatro

vezes a Duchamp, sendo que entre 45 e 56 não o cita jam ais... JCP

Na verdade ele o cita como contra-exemplo, como uma espécie de diabo,

d iabolu s. Greenberg sempre pensou que Duchamp fez os ready-mades e todas as suas obras porque ele não era um bom pintor, porque não conseguia pintar suficien­ temente bem, e isto o impedia de considerá-lo seriamente. Além disso, para Greenberg, Duchamp é o representante do avantguardismo em oposião a av an t-garde. A avan t-garde é conotado positivamente, é a pesquisa, a exigência; o avant-gardismo é o contrário, o épate-bourgeois, a chantagem à intelectualidade, a facilidade dissimulada em dificuldade etc Não poderia deixar de ser, então, refratário a esse gênero de obra. ^ Greenberg, nos anos 60, é, de uma certa maneira, forçado a enfrentar as questões levantadas por Duchamp, até mesmo numa espécie de defesa de áreas de influência... JCP Quando Greenberg escrevia sobre Pollock nos anos 50 a presença de Duchamp não era muito invasora. Era quase discreta. É certo que com Fluxus, com os primeiros trabalhos de Robert Morris, com a Pop, e toda essa geração americana que surge a partir dos anos 60, Duchamp retorna a atualidade. Embora ele estivesse em New York nas duas décadas anteriores, é só então que Duchamp se torna uma personagem de referência, um pouco como John Cage. Nesse momento, então, GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994


GLÓRIA

f e r r e ir a

Greenberg Foi obrigado a considerá-lo como uma espécie de adversário, de contraexemplo. GF

Rosalind Krauss na sua intervenção no colóquio falou, quase em forma

de denúncia, da operação de enquadramento, de verticalização de Pollock por parte de Greenberg. O próprio Pollock não teria feito parte déssa verticalização de sua pintura? JPC

Se eu compreendi bem o que Rosalind Krauss censurava a um certo

número de críticos, em especial a Greenberg, é de ter considerado como se Pollock tivesse pintado seus quadros tradicionalmente enquanto que os fazia no chão, com uma relação a horizontalidade. Se é verdade que os fez no chão, também os fez sabendo e querendo que estes fossem expostos na parede. Creio que talvez seja preciso nuançar mais. Pollock separou claramente o processo do modo de produção das obras. Era efetivamente sobre a tela livre, no chão, que ele pintava e, às vezes, recortava. No entanto, Pollock nunca perdeu de vista que estas eram feitas para serem dependuradas nas paredes. Houve uma só exceção, quando ele expôs na galeria Sydney Janis em 51: uma tela foi colocada no teto. Foi uma iniciativa de Sydney Janis, Pollock apenas consentiu — foi uma bizarrice. A diferença entre Pollock, e digamos, as peças Scattered de Robert Morris, dos anos 70, é que não há mais distinção entre o processo e o modo de exposição. O modo de fazer corresponde a maneira que deve ser exposto e visto. Algo feito no chão é para ser mostrado assim. Em Pollock é a mesma idéia que em Klee: sabe-se que Klee pintava sobre uma mesa ou que Dubuffet fazia coisas no solo, mas sempre com uma intenção de pendurar na parede, na vertical. Rosalind Krauss queria dizer algo também em termos metafóricos, quer dizer esse enquadramento de Pollock no sentido de uma correção moral. Sem dúvida, as pessoas que comentaram Pollock, nem sempre, e Greenberg entre os primeiros, levaram em conta essa espécie de selvageria ou de transgressão que havia na produção horizontal. De qualquer maneira, Greenberg não se interessa pelo processo. Greenberg é alguém que vê sem se interessar pelo processo. Mesmo quando fala de Picasso, ou de qualquer outro artista, trata-se da análise do objeto que vê. Ele não vai contra corrente em direção ao processo, à densidade do procedimento, por isso mesmo ele não poderia levar em conta a dimensão transgressora presente no gesto de Pollock. Além do mais, eu não penso que esta dimensão transgressora tenha sido a finalidade de Pollock. A sua finalidade era de fazer quadros. GF

Leo Steinberg no seu texto "A arte contemporânea e a situação de seu

público", de 1962, diz que a obra de Jasper Johns fez que os padrões estéticos já testados GÁVEA. 12 (12). dezembro 1994

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Greenberg, um Crítico na História da Arte Entrevista com Jean-Pierre Criqui parecessem, repentinamente, obsoletos. Seria, então, possível dissociar uma crítica ao modernismo de Greenberg de uma crítica a que foi submetido o próprio expressionismo abstrato por parte da nova geração de artistas americanos? j£ P

Seria extremamente redutor de ver no minimalismo apenas um anti-

greenberguismo'. Eu creio que seja também uma reação muito forte contra o expressionismo abstrato, contra o lado demiúrgico, contra a expressividade e o mito da expressividade. E talvez algo ainda mais amplo que isto. A referência a Pollock em artistas como Robert Morris, por exemplo, guarda sempre um caráter subterrâneo, marginal, em relação a oposição clara e franca ao conjunto do expressionismo abstrato. GF

No seu texto citado acima o senhor diz que o pensamento de Greenberg

cultiva, o tempo todo, uma conjugação extremamente particular de pontos fortes, ambivalências e aporias. Quais seriam esses pontos fortes, essas ambivalências e essas aporias? JCP

O ponto forte, como dito há pouco, é estar atento ao que está diante

de si e olhar — creio que na França, particularmente, nós conhecemos uma crítica de arte que poderia dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa na medida que não havia uma ligação entre o texto e o objeto tratado. A força realmente de Greenberg, embora ele não estivesse atento ao processo, era antes de tudo de olhar as obras e de não ter dito a mesma coisa de Picasso e de Léger, ou de Pollock e de Barnett Newman (embora tenha cometido certas subestimações em relação à Barnett Newman). A atenção visual, eu diria, é então o seu ponto forte. A ambivalência está ligada ao fato que é sempre um julgamento de gosto. E sempre o julgamento do connaisseurship. O ponto forte é a atenção visual e a ambivalência é que é a atenção visual d e Greenberg. É ambivalente porque o fato de ser a atenção visual pessoal de Greenberg me coloca numa situação dúbia em relação ao objeto e posso nem sempre concordar com suas análises e julgamentos. Ao mesmo tempo, e por isso é uma ambivalência, é também o seu ponto forte. O que é exigido de um crítico não é de nos dizer o que nós devemos gostar, mas porque ele gosta, porque julga interessante, e demonstrar da maneira a mais convincente. Está aí a ambivalência: na subjetividade afirmada desse olhar. Afirmada e às vezes transvestida. Às vezes, Greenberg tende a aplicar a frase de Rémy de Gourmont, re­ tomada por Eliot: o objetivo do crítico é fazer valer com o uma lei geral as suas impressões pessoais. Greenberg termina caindo seguidamente nesse desvio de generalizar em lei, ou em quase lei, o que não passa de suas próprias impressões pessoais. Está aí a ambivalência: sua fraqueza quando ele tende a generalizar uma impressão subjetiva e também sua força porque é o reconhecimento dessa subjetividade. 332

GÁVEA.

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GLORIA FERREIRA

As aporias são de duas ordens: é a impossibilidade quase dramática a partir de uma certa data, após a Escola de Nova York, após os anos 50, de reconhecer qualquer coisa de interessante na arte que se faz. Se olharmos a que Greenberg se interessa há 25 anos são sub-Olitski ou sub-M orris Louis. Chega até ser dramático. Esta é a primeira — aporia de uma evolução bloqueada. A outra seria a da estética, a que fiz alusão há pouco: Greenberg, durante um período, quis passar por filósofo e esteta. Tentou racionalizar a experiência e tudo que preside filosoficamente a apreensão da arte, o que o colocou numa situação dúbia e em contradição com a sua subjetividade crítica. O que deveria suscitar uma abertura terminou por bloqueá-lo definitivamente, terminou por enrijecer e fossilizar o seu sistema. Esta é, sem dúvida, a aporia mais flagrante — essa espécie de bloqueio. Isto talvez se deva a um apelo à estética e à filosofia que não foi bem ajustado, até mesmo porque o próprio da estética, sem conotação pejorativa, é que os estetas não olham as obras. Em geral, nos livros de estética, estas são citadas a cada 100 páginas — é o máximo, mesmo nos grandes, como em Adorno. Como não se trata de análise das obras, a estética é algo que se passa ao lado das obras de arte. Mesmo se todos os museus desaparecessem, os estetas continuariam a se colocar questões. Ora, em Greenberg, a força e a motivação principal de sua prática é essa relação de experiência visual das obras. Se voltar para a estética era se defrontar com algo para o qual ele não era feito, ou não estava preparado. Era ir para o lado oposto ao qual ele tinha sempre se situado. GF

Uma das controvérsias no colóquio foi o caráter essencialista da teoria

de Greenberg. Qual o seu ponto de vista? Seria esta a causa do atrofiamento do sistema greenberguiano? JCP

Há uma espécie de armadilha na idéia do essencialismo de Greenberg.

É uma questão difícil porque se observarmos Malevitch, Mondrian, Kandinsky, veremos que eles eram muito essencialistas. O início da arte abstrata se faz a partir da idéia de um mergulho no âmago da pintura. A abstração seria uma pintura mais verdadeira que a figuração: liberada do simulacro da mimesis, reencontraria a essencia pura da pintura. Sem dúvida, em Greenberg, há uma influência dessas idéias da primeira abstração. E isto teve um papel importante e frutuoso para compreender Pollock, mas depois se fechou como uma armadilha. Não se pode dizer que o interesse de Andy Warhol seja a essência da pintura, tanto quanto o de Robert Smithson a essência da escultura. Eu diria que o essencialismo seria o que Jean-Claude Lebensztejn<2> lembra num dos seus textos: a comparação que faz Dubuffet entre a arte e a cebola. Dubuffet diz que tentou en­ contrar o coração da cebola e para isso retirou todas as cascas uma a uma, e quando GÁVEA. 12 (12). dezembro 1994

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Greenberg, um Crítico na História d a A r t e - E ntrevista com Jean-Pierre Criqui e quando retirou a última não havia mais nada. N ão passava de uma seqüência de peles, não havia essências. O essencialismo foi importante para Greenberg enquanto herança do pensamento da primeira abstração que permitiu analisar obras como a de Pollock, embora eu não ache que Pollock seja mais a essência da pintura que qualquer uni outro, ou que isto o torne mais interessante. Q uando se tem uma tela esticada com uma marca em cima, se esta na essência da essência e, no entanto, não se está forço­ samente diante de um quadro interessante. Mas é claro que é uma idéia modernista. M odern ist Painting é preto sobre branco, é um texto essencialista, embora já seja um início do fim. GF

No debate por ocasião do recente lançamento da tradução francesa do

seu livro T he originality o f th e A v a n t-G ard e a n d O th er M odern ist Myths, Rosalind Krauss declarou, sob sua instigação, "Sim, eu sou formalista ... Em relação ao formalismo como se situaria a crítica de arte hoje? JCP

Sim, eu a fiz dizer isto porque achava importante que ela o declarasse.

Creio que o formalismo em relação ao qual Rosalind Krauss se referiu é um formalismo ampliado, no sentido do campo ampliado. Quer dizer, finalmente é preciso continuar a prestar atenção às obras. O formalismo de Greenberg é um formalismo bastante limitado, estreito. Não dá conta do form alism o russo, por exemplo. O formalismo ao qual se refere Rosalind Krauss diz respeito à uma posição crítica que presta uma atenção analítica às obras; que continua a considerar importante que haja inovação; que se propõe não a nos dizer qual é o sentido das obras, mas a nos mostrar como elas produzem sentido. Seria esta a diferença: a verdadeira crítica formalista, creio que Barthes diz isto em algum lugar, não é a crítica que nos explica o sentido das obras, mas como as obras produzem sentido. E aquela que responde a questão "como e não a questão "porque". Não há razão para ser um sistema fechado, mas algo aberto que pode ser aplicado em relação a Pollock, a Duchamp ou a qualquer outro. GF

Para finalizar, qual a sua avaliação do colóquio?

^ ten^arnos fazer um colóquio não conflituoso. O momento o permitia pois Greenberg já está suficientemente inscrito na história da arte. Sua obra passou P omínio da história, para que nós a possamos considerar sobre múltiplos aspectos e não através de embates; de prós ou contras. Assim apelamos a pessoas as ma.s d.versas: críticos, historiadores, estetas, ex-alunos. Creio que o ponto forte

rém em CT

lu a diwrsidade de a f a g e m , e que se fez independentemente de qualquer remvtd,cação positiva ou negativa em relação a Greenberg. Eu diria que 334

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G L Ó R IA F E R R E IR A

o ponto forte foi a prova que é possível, a partir de agora, tratar o legado de Greenberg da mesma forma como se faria um colóquio sobre Baudelaire. Talvez isto revele um lado inconveniente para Greenberg, pois evidencia a sua inatualidade. Embora não se trate simplesmente de ser atual ou não: certas questões levantadas por ele necessi­ tam ainda serem pensadas. Estamos, no entanto, suficientemente longes e a arte mu­ dou tanto desde que ele escreveu os seus textos mais importantes para que se possa considerá-lo como um objeto heurístico. Não se trata de se ser adversário ou não, o problema não é mais este. Não se pode mais ser greenberguiano. Ou, por exem­ plo, se definir como leninista; podemos nos interessar por Lenin como objeto de histó­ ria, mas não seria o caso de fundar uma atitude política a partir daí. E parecido. Mes­ mo se o paralelo é forçado, não deixa de ser um objeto sobre o qual se precisa refletir. O problema, atualmente, é agenciar um discurso que seja fiel a uma exigência teórica de produção de sentido das obras; a atenção, a pesquisa de todos os elementos suscetíveis de nos informar; a investigação sobre a maneira como ela foi produzida; o investimento pessoal. Rosalind Krauss não o diria, mas eu digo, uma atenção também em relação ao investimento pessoal, biográfico, que pode ter em certas obras. Algo que Greenberg não levou em conta, mas que a meu ver é preciso ser considerado. Sem se tratar de escrever a vida dos artistas — há alguma coisa da vida dos artistas, que passa às vezes nas suas obras. E preciso encontrá-lo, fazer a arqueologia e se servir. Penso ser esta a exigência a se ter hoje. A referência a Greenberg me parece também importante num outro as­ pecto: a exigência do texto, quer dizer é necessário ser o mais claro possível. Talvez seja esta uma das lições das mais duráveis de Greenberg. As grandes idéias podem ser ditas na linguagem do dia a dia, como dizia o pintor da vida moderna.

Notas ( 1 ) Jean-Pierre CRIQU I. "Le modernisme et la voie lactéé (note sobre Clement Greenberg)". Les C ahiers du M usée N ational d'Art M odern e. n\‘ 22, dezembro 1987, pp. 99-107. ( 2 ) Jean-Claude LEBENSZTEJN. "L'espace de l'art", in: ZigZag, Paris, Aubier/Flammarion, 1981, pp. 19-47.

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Loredano/Levine


As Emendas de Greenberg Analisando o percurso da obra do crítico norteamericano Clement Greenberg, o autor discute — tendo em vista as diversas correções feitas por Green­ berg em seus textos e, sobretudo, na interpretação do cubismo — a profunda transformação por que passam suas idéias na década de 50. De uma visão da arte moderna pautada, nos anos 40, no conceito de "positivism o estético" — com ênfase na mate­ rialidade dos meios e na superação do ilusionismo — o crítico passa, nos meados dos 50, a desconfiar da planaridade, valorizando a "opticalidade" e a "transcendência das m iragens". Positivismo estético Opticalidade Cubismo

YVES-ALAIN B O IS Tradução Paula Mousinho Martins Crítico e historiador de arte, autor do livro Painting as Model, M1T Press, professor da Universidade de Harvard.

Se excetuamos sua participação em 1964 num colóquio parisiense so­ bre "a crise da arte abstrata", intervenção que o meio de arte ao qual ele se dirigia apressou-se em esquecer, se é que dela teve algum conhecimento, um quarto de sé­ culo separa o primeiro texto de Greenberg publicado em francês (em Les Temps M o­ dernes de 1946) do seguinte ou, antes, dos seguintes, já que se tratava de um con­ junto de traduções publicadas em diversos números da revista Peinture, Cahiers Théo­ riques no início dos anos 1970(D. Impossível não ficarmos impressionados pela di­ ferença de tom e propósito. O texto de 1946, intitulado "A Arte Americana no Sé­ culo XX", oferecia um balanço bastante sinistro da arte em questão, insistindo no que se poderia chamar uma espécie de "retorno à ordem" a partir dos anos trinta. Sobretudo, aí estava claramente estipulado que a salvação só viria da Europa: "Du­ rante os dez últimos anos", escreveu Greenberg, "mostramo-nos absolutamente in­ capazes de originalidade intelectual ou estética em quase todos os domínios. Não obstante a franqueza, com que muitos dentre nós confessam sua impotência e pe­ dem socorro à Inglaterra e à França, possa ser considerada um sinal bastante encorajador"*2). O artigo retomava em suas linhas gerais o argumento do célebre en­ saio de 1939, "Avant-garde and Kitsch", concernente ao papel da vanguarda en­ quanto resistência à indústria cultural, e aquele de "Towards a Newer Laocoon", de 1940, que fazia de toda a arte moderna uma longa marcha dirigida ao que Green­ berg chamaria o "positivismo estético" (a saber, uma rejeição do ilusionismo sob GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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As Emendas de Greenberg

todas as suas formas e uma atenção crescente com respeito aos fatos, aos meios ar­ tísticos -

ao "medium")«». Em seu texto de 1946 G reenberg chegava mesmo a atri­

buir de modo explícito a inexistência de uma verdadeira vanguarda artística ameri­ cana à falta de uma tradição positivista autóctone (no dom ínio da arte, entendase), na qual ela poderia ter-se fundado. Um tal positivism o artístico, como ele as­ sim deliberou chamar na A m érica, Greenberg detectava então apenas na produção da Escola de Paris após M anet e Cézanne, de Picasso e M atisse a Mondrian e Miró. As obras dos imitadores am ericanos dessa linhagem

são estéreis, diz ele, e feitas

as contas, a estas Greenberg prefere, por ser mais autêntico, o neo-expressionismo gótico e literário" inspirado no surrealismo (pelo qual ele contudo sempre nutriu o maior desprezo). Se ele m enciona de passagem alguns dos jovens artistas que co­ meçava a defender em Nova Iorque, a saber, P ollock, G orky e Baziotes, não deixa de lembrar que seu neo-expressionismo, "que faz pensar em Poe e comprova uma "sensibilidade sádica e escatológica", só pôde ir adiante porque, ao contrário de tantas outras tentativas contem porâneas, ele "é disciplinado pelas ambições formais e res­ peita a maior parte das restrições às quais M atisse, Picasso e Miró submeteram o uso da ilusão da profundidade"^4). Diagnóstico final: "nossa incapacidade para pro­ duzir uma arte maior na A m érica do século XX provém , creio eu, de nossa repug­ nância em admitir ou em provocar o positivismo estético"^5). Se deve haver uma arte moderna americana, cum pre-lhe passar por esse aprendizado, e disto ainda es­ tamos bem longe. O respeito de Greenberg por Paris iria abrandar bem rapidamente — embora em 1952 ainda o vejam os afirmar, contra todas as evidências, que "se Pol­ lock fosse francês, estou certo ... de que o trataríam os por 'mestre' e especularíamos sobre seus quadros em vez de perguntar se ele é ou não um charlatão.(6) Desde essa época todavia ele está convicto de que a "pintura à am ericana" marca o ápice de toda a tradição modernista após M anet e que à Europa só resta remendar-se. Daí a arrogância que estupefaz nos textos publicados por Peinture, Cahiers T h éo riq u es ("Picasso at Seventy-Five" de 1957 e "M aster Léger", de 1954, am­ bos revistos e corrigidos em A rt a n d C ulture, editado em 1961; depois "Modernist Painting , de 1960, que não foi republicado na fam osa com pilação de ensaios, mas que fixou uma vez por todas, eu diria mesmo congelou, o pensamento de Green­ berg). Por um lado, nos dois textos m onográficos, o respeito incondicional pelas grandes figuras da Escola de Paris é definitivamente abandonado: a arte de Léger e a de Picasso, nos diz Greenberg, pulverizam-se inexoravelmente após 1925 (é de se crer que Picasso estivesse mesmo quase caduco depois de G uernica). Por outro lado, as realizações de I ollock, Newman e alguns outros tendo, segundo todas as ^ aS' con^rmac^° as proposições gerais, tingidas de historicismo, enunciadas desde "Para um novo Laocoon", a longa marcha na direção de um "positivismo arC.ÁVEA. 12 (12), dezembro 1994


YVES-ALAIN B O IS

tístico" se vê dotada, em “Pintura Modernista", de um estatuto dogmático compa­ rável, diz o próprio Greenberg, ao da empresa crítica de Kant (note-se, contudo, e isto é importante para a seqüência de minha intervenção, que o termo positivis­ mo artístico" não aparece nesse texto). A modernidade é, feitas as contas, uma coi­ sa bastante simples, parece dizer Greenberg: cada arte visa, por pura reflexividade crítica, à parousia de sua essência plena e, portanto, a eliminar as “convenções que não lhe sejam necessárias", a saber, a fazer a triagem e demonstrar qual é o “seu próprio medium"<7>. "Do fato de que a planaridade seja a única condição que a pin­ tura não partilha com nenhuma outra arte", diz Greenberg, “a pintura modernista orienta-se acima de tudo na direção da planaridade"*8*. Ergo: todo quadro que não exiba sua planaridade não é moderno. Desnecessário dizer que uma tal redução da prática reflexiva e da noção de meio exclui de saída uma quantidade de experiências da modernidade: um Duchamp, por exemplo, será abominado por Greenberg (so­ bretudo durante os anos sessenta, à luz da Pop Art), por ter considerado a conven­ ção institucional, relativa ao valor de exposição de toda obra de arte, como uma condição tão necessária à existência do quadro, senão mais, que a planaridade, e nesse sentido, como tudo o mais, igualmente digna de análise reflexiva. Tudo isso é bem conhecido e o texto-fetiche de Greenberg, facilmente caricaturável, deu lugar a uma quantidade de discussões acerbas e refutações pas­ sionais (a mais célebre, e a mais eficaz, sendo aquela de Leo Steinberg, "Other Criteria")*9*. Curiosamente, se as críticas desse panorama geral se esforçam em demons­ trar o caráter fraudulento de bom número de seus argumentos, nenhuma que eu saiba insistiu sobre sua pouca originalidade — embora encontremos as mesmas idéias, inclusive a de historicismo, em Malévitch desde 1915, em Mondrian um pouco de­ pois e em Strzeminski, quase palavra por palavra, por volta de 1925. Não preciso me estender sobre este ponto. Gostaria antes de insistir sobre o tom peremptório, responsável em parte por aquilo que Greenberg considerou sem descanso, privada e depois publicamente quando acrescenta um post-scriptum ao texto em 1978, um erro de interpretação*^0*. Segundo ele, no momento em que descreve a longa mar­ cha na direção da planaridade e fala da pureza dos meios como daquilo que fez a condição essencial de toda pintura viva há um século, ele apenas testemunha: seus leitores o tomam erradamente por um advogado. "Quando Strzeminski diz 'deve' <ought> eu digo 'foi' <has been> ou 'é' < is>"<11*. Há muito tempo eu considero esta nota bene de Greenberg, reiterada em quase todas as suas entrevistas, como uma simples astúcia de retórica (eu des­ crevo o que amo e ignoro tudo que não amo — isto é, eu não só defendo mas tam­ bém julgo e condeno, sem assinalá-lo a meus leitores — e como por acaso o vasto roteiro histórico que construo introduz uma a uma as pérolas de meus amores). Ora, hoje estou pronto a conceder a Greenberg o direito da dúvida; até mesmo a afirmar GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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As Emendas de Greenberg que ele falava a verdade quando dizia lam entar dever manter intacta sua ficção essencialista da planaridade com o alfa e ômega da pintura. Apoiando-me na analise no­ tável que dá Thierry de Duve de seu desinteresse, à primeira vista surpreendente, pelos quadros negros de Stella, eu diria que, em 1960, em bora essa mudança de ru­ mo se apresente desde 1955, Greenberg está bem longe de aderir à posição "reducionista" que ainda lhe atribuem seus críticos, assim com o eu mesmo fiz de início*U). Retornarei a esse ponto, após ter m encionado esse outro avatar da re­ cepção de Greenberg na França que constituiu a publicação, no segundo número de M acula, em 1977, de "A m erican-Type Painting" e da totalidade de seus textos sobre Pollock (pelo menos aquilo que nós pensávamos ser a totalidade: percebi bem mais tarde que havíamos esquecido "How Art C riticism Earns Its Bad Name , de 1962, um ataque feroz contra a leitura de Pollock proposta por Harold Rosenberg e, numa medida menor, as de Lawrence Allow ay, H erbert Read e Michel Tapié). Impressionáva-nos o dogmatismo pouco generoso dos textos sobre Picasso e Léger: para contrabalançar esse efeito, resolvemos publicar ao mesmo tempo AmericanType Painting", texto canônico de Greenberg sobre o expressionismo abstrato, e os textos sobre Pollock onde o crítico ainda procurava a si mesmo. Apresentar si­ multaneamente os instantes hesitantes do processo e o veredito definitivo, nos pa­ recia a melhor homenagem a prestar a um pensamento que fora móvel antes de se erigir em dogma. Pensávamos, ademais, que observar Greenberg diretamente em confronto com uma obra ela mesma em gestação poderia levar a tomar como exem­ plo aquilo que ele possuíra de mais apaixonante em seus melhores anos — essa inte­ ligência visual quase perdida na França depois do suicídio de Félix Fénéon. Para dizer a verdade, ficam os surpresos com o grande número de hesi­ tações, e eu faço alusão rápida a isto na nota que apresentava nosso "dossier Green­ berg , mas nos faltava na época muitas peças a juntar ao dossier para que pudésse­ mos justamente começar a ver o quanto aquilo, que eu nomeava então as hesita­ ções do crítico, formava um sistema. A idéia ocorreu-m e mais tarde, e gradualmen­ te. A primeira indicação veio-me de Rosalind Kraus quando, em um artigo sobre Anthony Caro*13>, ela nota que ao republicar em A rt a n d C ulture o artigo intitula­ do The New Sculpture , de 1949, Greenberg havia cuidadosamente eliminado uma frase onde ele falava da literalidade positiva da escultura, que uma escultura corre sempre menor risco de ser ilusionista do que um quadro por possuir de imediato uma realidade física tão palpável, autônoma e presente quanto aquela das casas nas quais vivemos e dos móveis de que nos servimos"(14). Em A rt an d Culture o argumento está quase invertido: por mais que a escultura seja plana, diz então Green­ berg, jamais poderemos tom á-la verdadeiramente por uma pintura. Melhor ainda, a escultura deve aproveitar a vantagem de tender o mais possível à pintura, a saber, para se desembaraçar o melhor que possa de toda referência à sua tactilidade, ao 340

GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994


YVES-ALAIN B O IS

seu peso e à sua impermeabilidade. De uma posição que não renegava os minima­ listas (e que ele mesmo tratava como materialista e positivista em 1946), Greenberg passou, sempre sob o pretexto da descrição, a uma defesa do ilusionismo escultu­ ral: "Não é mais a ilusão das coisas mas aquela das modalidades o que se nos impõe daqui por diante: a matéria é incorpórea, desprovida de peso e só existe em termos ópticos, como uma miragem'!15). Quem é familiar a Art and Culture conhece bem a nota liminar onde Greenberg explica por que ele teve por bem corrigir a maior parte dos textos aí re­ publicados, assinalando este fato na maioria das vezes — mas não sempre — com uma dupla data. Tendo sido alertado sobre uma dessas emendas por Rosalind Kraus, eu deveria ter ido observar mais de perto essas correções. Mas o impulso só me veio mais tarde, após uma segunda surpresa. Notei que o mito da planaridade essencial recebe seu bemol em "Modernist Painting": "Ter-se-á compreendido, espero, que ao traçar o roteiro geral da pintura modernista, precisei simplificar e exagerar. A planaridade à qual tende a pintura modernista jamais poderá ser absoluta. A sensibi­ lidade acrescida ao plano do quadro interdita doravante a ilusão escultural, ou o tromp-loeil, mas ela permite e deve permitir a ilusão óptica. Por menor que seja, a primeira marca sobre uma tela sempre destrói sua planaridade literal, e o resultado das marcas que um artista como Mondrian traça é ainda uma espécie de ilusão a sugerir uma espécie de terceira dimensão. Só que se trata agora de uma terceira di­ mensão estritamente pictural, estritamente óptica'!16). Impressionou-me o fato de que Mondrian servisse de exemplo a Greenberg para esse discreto sepultamento da idéia de "positivismo artístico". De uma certa maneira, Greenberg fazia sua a críti­ ca que já formulara Gabo em relação ao pintor: seja lá o que você faça, dizia Gabo a um Mondrian extenuado sobre um de seus planos brancos, jamais conseguirá fa­ zer completamente chapado^). A surpresa que acabo de mencionar veio-me ao ler o elogio fúnebre de Mondrian redigido por Greenberg em 1944: "seus quadros, escreveu ele, não são mais janelas em paredes mas ilhas que irradiam a claridade, a harmonia e a grande­ za (...). O espaço que os circunda foi transformado por sua presença'!18). Em resu­ mo, Greenberg insistia, como o próprio Mondrian não cessou de fazê-lo, sobretudo em seus anos nova-iorquinos, no estatuto de objeto de suas pinturas. Nada de ilu­ são e sim presença tangível, fato positivo: mais uma vez se vê que a virada entre os anos quarenta e "Pintura Modernista" foi de 180 graus. A partir de então comecei a comparar os textos de Art and Culture com sua versão inicial — tarefa ingrata por certo, já que nenhum volume da formi­ dável edição de John O'Brien havia aparecido ainda. No conjunto, minha intuição de uma reviravolta fundamental confirma-se totalmente, mas sobretudo por peque­ nos toques, em parte porque um bom número dos textos publicados no volume é GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

341


As Emendas de Greenberg mais ou menos contem porâneo, em sua prim eira versão, à reviravolta em questão, que eu situo nos meados dos anos cinqüenta. T ra ta -se mesmo, na verdade, de uma espécie de equilibrismo -

Greenberg cerca o problem a pelas duas pontas para dar

mais unidade ao conjunto: os textos anteriores à ruptura sao bastante emendados, mas os textos da reviravolta, sempre tão violentam ente opostos a tudo que ele ha­ via escrito até então, o são em sentido inverso. C om pare-se, se for o caso, a primei­ ra e a segunda versão de "Picasso at Seventy-Five". Uma e outra dizem a mesma coisa (em ambas trata-se de um ataque em regra con tra a interpretação "positivista" do cubismo, que por longo tempo foi, para o bem ou para o mal, a de Greenberg), embora a primeira seja direta, a segunda mais alam bicada. Poupo-lhes aqui do exer­ cício e só cito a primeira versão. Greenberg lam enta, aí, que todo traço de criação espontânea foi apagado” de A C o z in h a de 1948, uma obra que iria fascinar um Ellsworth Kelly precisamente por essa razão, com o se Picasso tivesse procurado antes de tudo fazer de tal obra "um o b je t o mais bem acab ad o ". O ra, eis aí, aos olhos de Greenberg, o grande erro: "Tem os aí um outro índice do que vai mal <what is w rong> na arte recente de Picasso. A pintura m odernista, mais explicitamente decorativa, chama a atenção pelas qualidades físicas imediatas de seu médium, mas tão-só para que elas se tra n scen d a m enquanto tais. C om o qualquer outro tipo de quadro, um quadro modernista só tem êxito se sua identidade enquanto quadro, enquanto experiência pictural, servir de obstáculo à consciência que se possa ter de sua existência como objeto físico”^ 9). O conteúdo dessa passagem será atenua­ do em A rt an d Culture (a noção de transcendência é evitada). Greenberg aplica aí entretanto este golpe fatal: "Se tal não é o caso, o quadro torna-se na melhor das hipóteses escultura, na pior, um sim p les objeto"(20). Antes de prosseguir, e como que para introduzir à discussão mais detalhada que se segue, eu gostaria de traçar um paralelo entre essas poucas linhas e a passagem de um artigo favorável de Green­ berg sobre a célebre reunião da coleção de Peggy Guggenheim por Frederik Kiesler, em 1943:

Uma tendência dom inante da pintura depois do cubismo é aquela que,

pelos meios da abstração, da colagem, da construção e do uso de elementos estra­ nhos tais como papel, tecido, areia, cimento, madeira, corda, metal e assim por dian­ te, tenta quase literalmente estripar o quadro. Seu conteúdo pictural — tanto quan­ to o próprio fato físico do quadro — consiste em penetrar a presença do espectador to enter the actual presence of the spectator^* da mesma maneira e tão completa­ mente quanto as paredes, os móveis e as pessoas. O que transcorre no interior dos limites do quadro possui o mesmo estatuto de imediatidade que os próprios limites”,2D. Quem só se expõe ao Greenberg tardio, aquele de A rt an d Culture bem como de todos os textos posteriores a 1955, compreende imediatamente que, a despeito do mesmo nome, não é aqui o mesmo crítico, o mesmo sistema que fala. Como essas duas citações concernem antes de tudo ao cubismo, eu gos342

C.ÁVEA. 12 (12), dezembro

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YV ES-A LA IN B O IS

taria, para finalizar, de me demorar nesse tema (que me permitirá voltar a Pollock). Não o cubismo enquanto tal, mas a sua interpretação enquanto linha de demarca­ ção da virada que mencionei. Com uma honestidade notável, o próprio Greenberg insiste em "After Abstract Expressionism", seu último grande manifesto, datado de 1962, sobre a importância dessa questão (o artigo em questão deve ser lido a um só tempo como uma análise retrospectiva de suas emendas progressivas e como con­ solidação da constituição do dogma). Greenberg refere-se aí a um ataque contra seu trabalho de crítica de arte, publicado em 1948 em Partisan R evieio, da qual ele era um dos principais colaboradores, por seu colega George L.K. Morris, pintor diletante e por vezes brilhante crítico mas, sobretudo, comanditário e porta-voz dos três A — o grupo dos "American Abstract Artists" — "graças ao qual certos pinto­ res abstratos", diz-nos Greenberg, "tinham ao menos aprendido o que não queriam fazer. Eis como, em 1962, Greenberg relata o incidente: "Ele reprovou-me energica­ mente, entre outras coisas, por preferir aquilo que ele chamava a pintura "atrás do quadro" <"behind the frame" painting1*. Seu dogmatismo não invalida a justeza de sua fórmula, "pintura atrás do quadro", especialmente por tudo o que ela impli­ ca, com o eu só p erceb i mais tarde <eu sublinho > . Os quadros de Hofmann, de Pol­ lock e de Gorky permanecem, com efeito, mais além de sua moldura do que os de Mondrian ou os de Picasso depois de 1913"(23h Como numa luta de boxe, Morris e Greenberg trocam golpes e alter­ nam posições, tendo o cubismo como aposta principal. O primeiro round é consti­ tuído por dois artigos de Greenberg, "The Present Prospects of American Painting and Sculpture" (publicado em outubro de 1947) — que sequer mencionava os três A — e "The Decline of Cubism", publicado em março de 1948. Nesse último ensaio Greenberg retomava sua definição do cubismo como uma espécie de positivismo otimista, e explicava sua insipidez, nos anos trinta, por uma diminuição da "lei empirista na realidade suprema da experiência concreta" que a havia anteriormente caracterizado (um dos exemplos desse declínio fornecidos por Greenberg deve ter sido particularmente irritante para Morris, a saber, o "do enfraquecimento do qual é prova a arte de Mondrian entre 1937 e sua morte em 1944")(24h Segundo round: em junho de 1948, Morris replica que Greenberg se enganara redondamente, que os cubistas jamais haviam sido positivistas em guerra contra o ilusionismo (a prova é que eles sempre permaneceram figurativos). A con­ cepção do quadro enquanto janela permanece , diz Morris,

ainda que seja uma

janela cujas persianas estão fechadas". Inversamente, um quadro produzido pelo AAA é plano e não-figurativo, acentuando portanto sua estrutura interna, factual: "Em vez de uma janela emoldurada, o quadro toma-se ele mesmo um objeto . Morris conclui sua diatribe notando que "o pior que um pintor abstrato pode dizer de um de seus companheiros é que ele permaneceu no cubismo (25). GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994

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As Em endas de Greenberg

O terceiro round é constituído pela resposta de Greenberg (publicada simultaneamente ao ataque de M orris). É verdade, reconhece Greenberg, que o qua­ dro cubista permanece ambíguo durante a fase analítica.

Ele deixa o olho do espec­

tador incapaz de decidir se a imagem ou, antes, o complexo pictural se antecipa ou recua. Mas a tendência inerente ao cubismo, irrevogável (e histórica), era a de empurrar o plano do quadro para a frente, de m odo a que ele coincidisse com a superfície física da própria tela. Essa tendência aparece de maneira muito clara nas primeiras colagens de Braque e de Picasso . Em outros termos:

a importância do

cubismo é que ele liquidou definitivamente a ilusão da terceira dimensão. Não foi preciso esperar Mondrian ou Malévitch para fazê-lo

Em uma resenha da ex­

posição C o lla g e do Museum of Modern Art, publicada alguns meses mais tarde, a posição de Greenberg sobre os p a p iers collés é ainda mais enfática: com a cola­ gem, a superfície da obra de arte torna-se completamente opaca. Não se trata so­ mente da eliminação da ilusão da terceira dimensão (isto que "une indissoluvelmen­ te o quadro com o pigmento, a textura e a superfície plana que o constituem en­ quanto objeto"), mas também da possibilidade da passagem à terceira dimensão em­ pírica, uma passagem do quadro ao domínio das coisas: "a pintura transformou-se, ao longo de um processo bastante coerente e possuidor de lógica própria, numa no­ va espécie de escultura"(27). Todo leitor do extraordinário ensaio sobre os pap iers collés cubistas, The Paster Paper Revolution" escrito em 1958 e republicado com o título "Colla­ ge em A rt an d Culture, pode notar imediatamente que Greenberg contradiz aí, uma a uma, todas as asserções de seu texto de 1948. A razão disso é simples: em 1948, quando Greenberg se refere ao cubismo, fala do cubism o sintético, já que suas ca­ racterísticas

planidade afirmada, tactilidade, etc. — representavam os instrumentos

teóricos de que ele julgava ter mais necessidade para descrever a arte que queria defender. Ao falar da tactilidade da pintura alumínio, por exemplo, ele compara C athedral, do ano anterior, às "obras-prim as cubistas de Picasso e Braque no perío­ do 1912 1915 (28 ) Em 1958, ao contrário, é o cubismo analítico que se torna, para Greenberg, o momento essencial do cubismo (ele refere-se então a seu "ilusionismo residual"). A partir deste momento, os quadros a ll-o v e r do gênero de C athedral, embora comportem a fortiori pigmentos de alumínio, serão elogiados por sua "opticalidade e comparados às telas de Braque e Picasso datadas de 1910-1911. Por que, mais uma vez, essa reviravolta espetacular? John O 'Brien propõe, à luz dos eventos que atravessam então a vida de Greenberg, uma leitura política totalmente convincente: de uma posição inicial caracterizada por Tim Clark como a de um "trotskismo

e h ó tic o ",G reenberg passa bruscamente, em 1951, a de um "anti-comunismo

kantiano <291. Essa conversão ideológica, da qual O 'Brien retraçou as grandes li­ nhas, encontra muito logicamente sua contrapartida no campo estético (embora com 344

GÁVEA. 12 (12), dezembro 1994


YVES-ALAIN BOIS

alguns anos de atraso, e de maneira progressiva). Mudando seu fuzil políticoideológico de ombro, Creenberg faz o mesmo com as armas de seu d.scurso « M i ­ co- do materialismo dos fatos positivos à transcendéncta da miragem, da tac u a de à opticalidade, etc. Pode-se propor também uma leitura biograf.ca: em 1950 e e inicia uma aventura amorosa com Helen Frankenthaler, cujo M ountam an d Sen. de 1952, tornar-se-á um elemento-chave na leitura que Greenberg doravante vai propor de Pollock e de todo o expressionismo abstrato. Essa leitura tem seu herói masculino, Morris Louis, que Greenberg desde cedo elogia com entusiasmo. Os iní­ cios da relação entre o pintor e o crítico são bastante desastrosos: Greenberg se en­ tusiasma pelo pintor desde 1954, mostra seu trabalho no ano seguinte numa exposi­ ção coletiva, mas considera lamentável sua primeira exposição individual na gale­ ria Martha Jackson, em 1957. Louis pendura os pincéis, por assim dizer, e se curva inteiramente a Greenberg: destrói a maior parte das telas realizadas entre 1955 e 1957 (mais de trezentas!) tentando fazer o melhor que se esperava dele. A saber, tomar o lugar de Pollock, reacendendo a tocha do modernismo pictural lá onde Pol­ lock a tinha apagado após sua exposição de 1951, e que Helen Frankenthaler havia tentado por um momento reavivar. Não se trata evidentemente do Pollock das "superfícies espessas e fuliginosas", mas daquele dos quadros em negro e branco, onde o pigmento é como que evaporado pelo tecido da tela, onde ele se torna uma emulsão desmaterializada. E este Pollock aí, indiretamente, corrige o olhar que Green­ berg havia lançado sobre toda a sua obra anterior e sobre o expressionismo abstra­ to. Em 1952, Greenberg insiste sobre a ruptura na obra de Pollock ao notar que, em suas novas pinturas, "ele parece querer volatilizar a matéria pictural a fim de que ela apareça menos fisicamente localizada sobre essa superfície"!30). Mas em 1958 sua interpretação da produção tardia de Pollock inflete o olhar que ele lançara sobre toda a obra anterior do pintor (mais uma "ruptura”) bem como sobre toda a pintura moderna. E então que ele traça seus famosos "Paralelos Bizantinos"!31). Como por acaso, Greenberg estará cada vez menos atento à materialidade das obras que des­ creve, chegando mesmo a delirar, para a ira do artista, ao dizer que Barnett Newman tingia suas telas não preparadas a fim de libertar sua cor de toda corporeidade (ele não se dará ao trabalho de corrigir esse equívoco quando reproduz o escrito no volume "American-Type painting")(32). Como por acaso também, sua leitura do cubismo muda completamente, mas também a do impressionismo (subitamente ele se faz defensor de Monet, que anteriormente condenara com severidade, precisa­ mente por sua "opticalidade”)<33). Mais exatamente, Greenberg põe-se a ler o cubismo através do crivo do impressionismo. Ele começa pelo cubismo analítico, mais facil, insistindo em tudo aquilo que os quadros de Braque e Picasso continham de ilusionismo residual, depois revê inteiramente sua análise do cubismo sintético, li­ do doravante em termos de conflito suspenso entre ilusão e realidade. Bem longe GÁVEA. 12 (12). dezembro 1994

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As Emendas de

se está de sua resposta a M orris quando ele falava da

tendência inerente ao cubis­

mo, irrevogável (e histórica)" com o a de uma evolução na direção da materialidade do objeto. Pode-se mesmo dizer, aí também, que essa

tendência irrevogável" tor­

nada por Greenberg quase o axiom a darwininiano da modernidade, está completa­ mente invertida: ele vê a evolução de Pollock com o partindo do "cubismo tardio" dos anos 1930, dependente do cubism o sintético, para remontar, com seus drippings, ao cubismo analítico de 1910-1911. Fecha-se o círculo. Pode-se supor que eu quero atacar Greenberg. Já me foi objetado, na primeira vez que deitei tais observações sobre papel, que era idiotice recusar a Green­ berg o direito de mudar de opinião<34h Tal não foi evidentemente minha intenção: eu procuro apenas compreender essa reviravolta — sobretudo estabelecendo rela­ ções entre as diferentes emendas de Greenberg, que podem parecer um tanto erráti­ cas quando tomadas separadam ente. A luz de algumas citações que me limitei a pôr em ordem aqui, por exem plo, compreende-se melhor o pavor que Greenberg devia sentir diante dos quadros negros de Stella. Thierry de Duve remete-se, a pro­ pósito, a esta declaração de "A fter Abstract Expressionism" onde Greenberg faz, de algum modo, o papel de advogado do diabo: "uma tela sobre chassi ou gram­ peada na parede já existe enquanto quadro — ainda que não forçosamente um qua­ dro bem sucedido ^ 5K É precisam ente porque as telas de Stella podiam ter um ar de rea d y -m a d e, porque se poderia tom á-las por um sonho dos "paralelos bizanti­ nos e da

transcendência , que tais quadros representavam a realização rigorosa

desse teorema asserido in a b su rd u m ; é por isto, sobretudo, como o demonstra de Duve em outros termos, que Greenberg lhes foi imediatamente hostil. Sua visão desde então propriamente idealista da arte moderna haveria de se consolidar mais e mais nos anos seguintes, visto que a aparição ininterrupta, na cena, de Jasper Johns (de quem um dos alvos está na capa de A rtneivs de 1958), da Pop e depois do Minimalismo, confirmam que os dias da dominação incontestável de Greenberg enquanto g de sacerdote da pintura à am ericana" tinham chegado ao fim. Mas esta é uma outra história.

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G Á V E A . 12 (1 2 ), d e z e m b r o 1994


Y V E S -A L A IN B O IS

Nota liminar A maior parte das citações foi tirada da ediçáo crítica em quatro volumes dos escritos de Clement Greenberg por John O'Brien (Chicago and London. Chicag University Press). Os dois primeiros volumes apareceram em 1986 (Perception mui Judgments. 1939-1944 e A rrogant Purpose. 1945-1949); os dois seguintes em 1993 (Affirmation and Refusals. 1950-1956 e M odernism with a V engeance. 195. -19c^i. Adiante será feita referência a esta edição como se segue: Greenberg, seguido do ni'imprn Ho volume em cifra romana, seguido da paginação (ex: Greenberg, vol 1. p. XXV). ( 1 ) 0 colóquio sobre a "a crise' da arte abstrata" foi organizado por 1 reuves. e o jornal publicou as intervenções dos participantes em fevereiro de 1904 (alem de Greenberg, constavam: Jacques Audiberti, Yves Bonnefoy, Roger Caillois, Jean Cassou, Robert Klein, Robert Lebel, Stéphane Lupasco, André Masson Herbert Read, Pierre Restany e Harold Rosenberg). O texto de Greenberg foi publicado também em inglês em Arts Yearbook (incluído em Greenberg, vol IV, pp. 176-181). Antes de criticar a academização do expressionismo abstrato, o qual representava, em 1964, a pintura dita informal , Greenberg lançou-se em um violento ataque contra a crítica de arte francesa em geral e mais particularmente, contra o "documento” previamente fornecido por Preuves aos participantes do colóquio (taxados de nulidade, entre outros, Yves Bonnefoy. Jean Cassou, Roger Caillois, André Chastel e Wladimir Weidle). Tudo leva a crer que a exposição de Greenberg, bastante lógica, tenha desagradado fortemente a seus colegas, visto que eles provavelmente consideraram sua severa reprimenda como tingida de chauvinismo. Soube-se mais tarde que Preuves, cujo número de leitores era bastante limitado, foi uma das revistas européias financiadas pela CIA. Em todo caso sua reputação, junto a classe intelectual francesa, era bem menor que aquela de Temps Modernes: junto ao meio artístico, ela era quase nula. ( 2 ) Greenberg, Clement. “L'Art Américain au XXème. Siècle", Les Temps Modernes, vol. 2, agosto-setembro 1946, p. 341. Este ensaio, cujo texto inglês original foi perdido, é um dos poucos que não foi incluído na edição dos escritos de Greenberg por John O'Brien. ( 3 ) Os dois ensaios estão incluídos em Greenberg, vol. I, pp. 5-22 e 23-38. O primeiro texto foi reeditado sem transformação em Art and Culture. Boston Beacon Press, 1961. Tradução francesa Art et Culture. Paris: Editions Macula pp. 9-28. ( 4 ) "L'Art Américain au XXème Siècle", op. cit., p. 350. ( 5 ) Ibidem, p. 352. As frases que concluem o texto seguem esta passagem: "A prova está no modo pelo qual nós exageramos os méritos de Rouault e iv\.uumu3 Lum iiu ir or ui anc e

-----------------------

Ita lic 5CIII U U V I U d ,

Ultima

analise, no tipo de indivíduo atraido por arte na América. Enquanto na França os materialistas vigorosos e os céticos se exprimem sobretudo através da arte, entre nós eles se restringem ao comércio, à politira, à filosofia e à ciência, deixando a arte aos semi-educados, aos crédulos, às senhoras e aos visionários de ultima hora". Se Greenberg acreditava que se apreciava mais Mondrian e menos Rouault na França do que na América, é preciso admitir que ele se engana inteiramente (apenas em 1976 um quadro neoplástico de Mondrian ... (6>

naS. colj * oes P l i c a s francesas: para quantas dezenas de Rouault?) Feeling Is All (1952). Republicado in: Greenberg, vol. HI. p. 105. Tradiiçào francesa em Macula n. 2, 1977, "Dossier Pollock" p 47

( 8 ! Ib“

l87aÍntÍn8” (1960)- RePUb,iCad° Ín: “

»*' V01' IV' PP' 85-93'

( 9 ) Steinberg, Leo. "Other Criteria" (1968). Republicado in: O ther Criteria Confrontations with Twentieth-Century Art. London, Oxford, New York:

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As Em endas de Greenberg

Oxford University Press, 1972, pp. 54-91. (10) O post-scriptum à reim pressão de "M odernist Painting foi também incluído na edição O'Brien (Greenberg, vol. IV, pp. 9 3 -9 4 , nota 1). A estranha história desse ensaio, narrada por Greenberg nesse post-scriptum , e analisada com detalhes por O 'Brien em seu prefácio ao terceiro volum e de sua edição. (11) Greenberg, Clem ent. "C arta ao autor ", 17 de agosto de 1976. (12) Ver Duve, Thierry de. "O M onocrom o e a T ela Virgem ", 1986, republicado in: Résonances du Readymade, Nîmes: Editions Jacqueline Cham bon, 1989, pp. 193-292. (13) Kraus, Rosalind. "H ow Paradigm atic is A nthony C a ro ". In: Art in America. September 1975, p. 80. (14) "The New Sculpture", 1949. Republicado in: G reenberg, vol. II, p. 318. (15) "The New Scupture", nova versão in: Art and Culture, op. cit., p. 144. Tradução francesa, p. 160. (16) "Modernist Painting", op. cit., Greenberg, vol. IV, p. 90. (17) A esse respeito, ver meu ensaio “New York City I de M ondrian In: Cahiers du Musée National d'Art Moderne, n. 15 (1985), pp. 60-85. As lembranças de Gabo apareceram no núm ero de dezembro de 1972 de Studio International. (18) "Obituary of M ondrian", 1944. Republicado in: G reenberg, vol. I, pp. 188-189. (19) "Picasso at Seventy-Five", 1957. Republicado in: G reenberg, vol. IV, pp. 33-34. (20) "Picasso at Seventy-Five", versão revista in: Art and Culture, op. cit., p. 67. Tradução francesa, p. 78. (21) "Review of the Peggy Guggenheim C ollection ", 1943. Republicado in Greenberg, vol. I, p. 140. (22) "New York Painting O nly Yesterday", 1957. Republicado in Greenberg, vol. IV, p. 21. Reeditado sob o título "T he Late T hirties in New Y ork" in: Art and Culture, op, cit., p. 232. T rad , francesa, p. 252. (23) "After Abstract Expressionism ", 1962. R epublicado in: Greenberg, vol. IV, p. 124. (24) "The Decline of C ubism ", 1948. Republicado in: G reenberg, vol. II, pp. 212-214. (25) Morris, George L. K . — "O n Critics and G reenberg: A Com m unication". In: 'Partisan Review, June 1948, p. 683. (26) Reply to George L. K. M orris", 1948. R epublicado in: Greenberg, vol. II, pp. 244-45. (27)

Review of the Exhibition "Colage"", 1948. R epublicado in: Greenberg, vol. II, pp. 260-61.

(28)

Reviews of Exhibitions of W orden Day, Carl H olty and Jackson Pollock", 1948. Republicado in: Greenberg, vol. II, p. 202. O único ponto em que eu estou em desacordo com a leitura bastante rigorosa oferecida por FrançoisMarc Gagnon dos textos de Greenberg sobre P ollo ck , concerne a esta passagem: ele considera que, se Greenberg faz referência aqui ao cubismo sintético, é por desatenção. Eu creio, ao co n trário, que a com paração era lógica na época, dada a m aneira pela qual a crítica lia então a obra de Pollock. Cf. Gagnon, L Emprise de l'O euvre", in: Jackson Pollock: Questions. Montréal: Musée d'A rt Contem poraine, 1979, p. 35. (29) Ver O'Brien, John. "Introd uction" in: G reenberg, vol. Ill, pp. XV-XVIII. (30) Feeling is All , op. cit., republicado in: G reenberg, v o l. Ill, p. 105. Na versão mais tardia desse ensaio publicado em Art and Culture, a passagem modificase para: Enquanto durante esses quatro últimos anos ele se esforçara para atingir uma m aterialidade que lhe permitisse extirpar a superfície do quadro enquanto tal de si mesma Ka kind o f corporeality by which he could wrest the

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Y V E S -A L A IN B O IS

pictorial surface, as surface, away o f itself> , agora ele parece querer volatilizar a matéria pictural a fim de que ela apareça menos fisicamente localizada sobre essa superfície". Op. cit., p. 152. Trad, francesa p. 169. (31) O ensaio que traz esse título aparentemente não apareceu antes de sua publicação em Art and Culture, op. cit., pp. 167-170. Tradução francesa pp. 185-88. (32) Sobre a ira de Newman, ver sua carta a Greenberg datada de 9 de agosto de 1955, publicada in Newman, Barnett, Selected Writings and Interviews, ed. John P. O'Neil. New York: Albert Knopf, 1990, p. 203. (A tradução francesa aparece pelas edições M acula). É quando fala de Rothko que Greenberg escreve, de fato, a frase delituosa ("Como Newman, ele embebe sua tela de pintura para obter um efeito de tintura..."; Greenberg, vol. Ill, p. 232). Na versão de "American-Type Painting", publicada mais tarde em Art and Culture, Greenberg contenta-se em corrigir; "ele parece embeber" — acrescentando este parêntese (que irritou ainda mais Newman): "se bem que tenha sido provavelmente Rothko o primeiro a fazê-lo" (op. cit., p. 225, trad, francesa p. 245). (33) A mudança na apreciação feita por Greenberg sobre a obra de Monet demandaria um estudo aprofundado. Ver a curta nota de John O'Brien ao artigo T h e Later M onet" in Greenberg, vol. IV, p. 3. (34) Algumas das precedentes observações, concernentes ao cubismo, já foram apresentadas por mim em uma análise da evolução de Ad Reinhardt ("The Limit of Almost", in: Ad Reinhardt, Los Angeles and New York: Museum of Contemporary Art, Museum of Modern Art and Rizzoli, 1991. O ataque a que eu faço alusão aqui veio da equipe do jornal de extrema direita dirigido por Hilton Kramer, 'T h e New Criterion" (Wilkin, Karen. "Ad Reinhardt at Moma". September 1991, p. 122). A mesma posição cegamente anti-histórica e a mesma desonestidade intelectual marcam a diatribe recente desse jornal contra a edição de O'Brien, vilipendiada em grande parte pela análise politicosocial contida em sua introdução ao volume III. (35) "After Abstract Expressionism", op. cit., republicado in Greenberg, vol. IV, pp. 131-32. Ver de Duve, op. cit., pp. 217 e seguintes.

Este artigo foi cedido pelo autor para publicação e comunicado no III Encontro Nacional dos Programas de Pós-Graduação em História da Arte e da Arquitetura, promovido pelo Curso de Especialização em História da A rte e da Arquitetura do Brasil — Dept? de História — PU C /R io, em julho de 1993.

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O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação lato sensu. foi formado há 14 anos. O Curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira aprendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar.

Coordenador Acadêmico Anna Maria Monteiro de Carvalho

Professores

Anna Maria Monteiro de Carvalho Antonio Edmilson M. Rodrigues Carlos Zilio Fernando Cocchiarale João Masao Kamita Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Margareth da Silva Pereira Roberto Conduru Ronaldo Brito Sheila Cabo Geraldo

Esta publicação, além do Programa de Apoio a Publicações Científi­ cas, SCT/PR, CNPq e FINEP, contou também com o apoio da Fundação Nacional de Arte-FUNARTE.



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