Revista Gávea - 10ª Edição

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RONALDO BRITO

O jeitinho moderno brasileiro KATIlA MURICY

Machado de Assis, um Intempestivo? JORGE CZAJKOWSKI

A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasilei C AR LOS ZILIO

O Centro na Margem ANNA MARIA FAUSTO MONTEIRO •IRO DE CARVALHO

A Madeira como Arte e Fato AN TON IO EDMILSON M ARTINS RODRIGUES

O Ato de Descobrir ou a Fundação de um IOSE THOMAZ BRUM

Arte e Ascese em S HUBERT DAMISCH

A Astúcia do Quadro

Novo Mundo


Editor Responsável Carlos Zilio Editor Assistente Vanda Mangia Klabin Secretárias da Redação Sonia Santos Silva Laureano Margaret O'Neill Ferrario Conselho Editorial Carlos Zilio Jorge Czajkowski Margareth da Silva Pereira Maria Cristina Burlamaqui Ronaldo Brito Vanda Mangia Klabin Conselho Consultivo Eduardo Jardim de Moraes Katia Muricy Margarida de Souza Neves Ricardo Benzaquem de Araújo Projeto Gráfico PVDI DESIGN Nair de Paula Soares Editoração Eletrônica e Fotolito RENART Impressão GRAPHOS

G Á V EA : Revista de História da A rte e Arquitetura, v .l n .l 1984 - Rio de Janeiro : Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departam ento de História. 1. Arte - História - Brasil. 2. Arquitetura - História - Brasil. I. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História. CD D - 709.81


RONALDO B R ITO

O jeitinho moderno brasileiro 6 KATIA M URICY

Machado de Assis, um Intempestivo? 12 JORG E C ZA JKO W SK I

A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira 24 CARLOS ZILIO

O Centro na Margem 40 ANNA MARIA FA U STO MONTEIRO DE CARVALHO

A Madeira como Arte e Fato 58 AN TON IO EDM ILSON M ARTINS RODRIGUES

O Ato de Descobrir ou a Fundação de um "Novo Mundo" 86 JO SÉ TH OM AZ BRUM

Arte e Ascese em Schopenhauer 98 HUBERT D AM ISCH

A Astúcia do Quadro 108


A PRESEN TA Ç Ã O

Dez números depois

Sendo uma revista diretamente vinculada ao trabalho de pesquisa do Curso de Especialização em História da A rte e da Arqui­ tetura no Brasil, G Á V EA tem se caracterizado, sobretudo, pela publi­ cação de trabalhos dos alunos, além de traduções de autores que fa­ zem parte da bibliografia do curso e articulistas convidados. Assim, buscam os divulgar junto a um público mais amplo uma concepção de H istória da Arte e da Arquitetura baseada em "conceitos adequados capazes de afirm ar uma proposição epistemológica específica, diversa da em piria tradicional e das armadilhas ideológicas", conforme afirmá­ vam os em nosso primeiro número. A originalidade dos artigos dos alunos reflete-se em uma abordagem da obra de arte na qual se busca uma relação mais concei­ tuai do que descritiva, apoiada em uma proposta interdisciplinar, on­ de se pode perceber o gosto pela indagação e pela reflexão. Esta orien­ tação passa, necessariamente, por uma revisão crítica da arte e da ar­ quitetura com especial ênfase na produção brasileira, o que implica o questionam ento da hierarquia de valores instituídos pelas abordagens convencionais dominantes. No que se refere aos textos estrangeiros, GAVEA buscou traduzir tanto os já considerados clássicos, quanto ou­ tros mais ligados a tendências atuais. Entre os autores que foram por nós publicados e eram, até então, inéditos no Brasil, citaríam os: Cari Schorske, Joseph Rykwerk, Rosalind Krauss, Hubert Damisch, Giulio C ario Argan, Kenneth Baker, Yve-Alain Bois, Eugênio d'Ors, Jacques Henric, Philippe Junod, M eyer Schapiro, Bernard Blistène e Alan Colquhoun. Comemorando o décim o número, a revista GÁVEA foge ao seu partido habitual, sendo excepcionalmente com posta por textos de professores do curso. GAVEA só foi possível pelo apoio das pessoas que for­ mam o seu conselho consultivo, o entusiasmo das secretárias de reda­ ção e a dedicação permanente do seu conselho editorial. É preciso des­ tacar, ainda, a contribuição decisiva dos nossos patrocinadores, asem -


presas Bittencourt S/A, Multiplic, Carneiro Mendonça Engenharia S/A, a Fundação de Am paro à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), e, principalmente, a participação efetiva do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (IBAC-FUNARTE) e do programa de publicações cien­ tíficas ST C /P R , CNPq, FINEP. No princípio, quando surgiu a idéia, GÁVEA parecia al­ go um tanto utópico. Dez números depois é uma realidade que necessi­ ta ser sempre reiniciada como permanente desafio mas, também, a evi­ dência da possibilidade de realização.

CARLOS ZILIO



R O N A L D O B R IT O

O jeitinho moderno brasileiro

A constância das comemorações da Semana de Arte Moderna de 22, ao lon­ go dos anos, acaba naturalmente por depor contra ela. Em dois sentidos: primeiro, atenta à sua propalada rebeldia ao torná-la um objeto predileto de culto institucional. Até aí, na­ da demais: os escândalos das vanguardas terminam quase sempre em clichês da história da arte. Depois, e mais gravemente, porque essas cerimônias recorrentes não deixam de ser um modo de compensar (e contornar) os vários impasses que caracterizam o destino problemático da modernidade estética brasileira. E inevitável a suspeita de que o próprio perfil da Semana presta-se a uma recepção ligeira e irrefletida. Sob o signo de uma temporalidade corriqueira, simpática ca­ sualidade moderna, ela ostenta um aspecto ocasional, a marca do esporádico. Daí a for­ ma frágil e algo inconsistente de seus símbolos triunfantes — ao marasmo do tempo colo­ nial ela contrapunha uma velocidade moderna capaz de cifrar o Brasil em imagens pron­ tamente acessíveis e comunicáveis. E a fácil propagação dessas poucas imagens tende até hoje a substituir o contato público efetivo com as linguagens modernas brasileiras. Ao dispor sem maiores mediações ou especulações compromissos estéticos heterogêneos, a Semana repetia involuntariamente o sincretismo colonial, embora incor­ porasse, numa esperta manobra moderna, a dinâmica do cotidiano urbano industrial. As­ sim um "Estilo Léger" tropicalizado, com um astuto toque literário, adaptava-se à técnica rudimentar de Tarsila e, mediante soluções tão ousadas quanto ingênuas, vinha a ser o veículo adequado para uma pintura que procurava captar a nova mecânica social. Mas, flagrantemente, desconhecia a Dimensão do Plano e sua vocação para o Atual — a tela fixava uma imagem virtual do funcionamento do mundo ao invés de atualizar o seu pro­ cessamento plástico. O que cansa e chega a irritar, contudo, é assistir à procissão cívica da Sema­ na, sua ascensão à categoria de Símbolo da Modernidade Brasileira. Preferir ainda agora a incipiente plástica modernista à nossa diversa e mesmo complexa aventura artística des­ de os anos 50, francamente... A obsessão por uma Semana ameaça nos colocar à margem do tempo. O embate com a nossa modernidade começa por exigir a superação desse fascíVictor Brecheret "Mulher" 1930

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GÁVEA

Tarsila do Amaral "São Paulo" 1924

nio plástico-literário meio piegas em favor de uma atenção intrínseca ao pensamento vi­ sual. A nossa histórica insensibilidade, de raízes lusas, ao fenômeno visual, estende-se ao período modernista. As várias versões da Brasilidade teriam eventualmente entre si dife­ renças cruciais — dividiam, no entanto, uma notória incompetência para dar conta da ver­ dade plástica das obras mais importantes, se não as únicas a merecer propriamente o títu­ lo de Obras, do nosso modernismo. Os traços locais, singulares, de dois expressionistas universais, Segall e Goeldi, exilados voluntários, culturalmente vinculados ao país, pas­ saram a rigor desapercebidos no registro estético. Quando muito, sobretudo com relação a Segall, ocorriam tentativas para abrigá-los sob o verbo ideológico dominante. E toda a ginga antropofágica subseqüente não foi maleável o bastante para enfrentar o dilema “brasileiro" tão atraente de Guignard. Sem enxergar o mais interessante, não admira que assimilássemos grossei-


0 jeitinho moderno brasileiro ras contrafações, a ponto de eleger como herói moderno esse inexplicável (ou, retrucariam os pessimistas, por demais explicável) Portinari. Ainda ansiamos de fato por uma leitura substantiva dos esquemas formais modernistas de maneira a situar pelo menos o eixo de continuidades e rupturas da arte brasileira do século XX. E sair a investigar, por exemplo, o processo de transição que vai de Tarsila e Guignard até Volpi. Notou-se, com proprieda­ de, a economia formal que Volpi teria herdado de Tarsila; examinou-se, porém, sequer à guisa de hipótese, a persistência de uma poética do Lirismo Singelo, sua forma de im­ pregnação ambígua na elaboração de nossa pictórica moderna, que se transmite de Guig­ nard para Volpi? O u, arriscando um pouco, a surpreendente correspondência entre o tra­ ço singelo das paisagens de Tarsila e a monumentalidade de inspiração mimética do risco de Oscar Niemeyer? Provavelmente não, ocupados que estávamos em extrair de telas, es­ culturas e tudo mais os indefectíveis critérios e índices de Brasilidade. Ao que tudo indica, passamos sete décadas observando os mesmos escassos exemplos — três Anitas Malfatti, Anita Malfatti "O Farol'' 1915

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GÁVEA

quatro ou cinco Tarsilas, algumas peças de Brecheret — a contemplar a modernidade que não alcançamos. Enquanto, para arrematar, não olhávamos as gravuras e os desenhos de Goeldi que até hoje intrigam a nossa percepção. O Brasil culto, muito compreensivelmente, aparecia como uma paisagem pe­ quena aos olhos dos pioneiros modernistas, uma idéia de poucos que lutava-se para am­ pliar a todos. Por isso cabia em vastas sínteses estéticas que talvez aspirassem a uma eficá­ cia mítica: cumpriam o nosso rito de passagem para a modernidade. Semelhante redução abstrata promovia também um desejo de positividade moderna, como prova a rapidez da sua propagação. Todo o problema é que em parte o fazia, paradoxalmente, às custas da conquista cultural moderna por excelência: a autonomia da experiência do Eu lírico mo­ derno e sua entrega total à aventura da obra. Era evidentemente, e, diga-se, anacronicamente, a estranheza entre nós do próprio nexo moderno de obra, a impor-se frente a quaisOswaldo Goeldi "Amanhecer na Praia" 1930


0 jeitinho moderno brasileiro quer compromissos, o que finalmente impedia a difusão pública da arte extraordinária de Goeldi; e constrangia, tornando surdo e equívoco, o diálogo mm o trabalho erudito de Segall; e o que quase desfigura o talento de Guignard sob o peso de tantas concessões que vieram a limitar seriamente a sua prática de pintor moderno. O exercício consciente desse Sentido de Obra na pintura de Volpi, a partir do final dos anos 40, assinala um progresso material do mundo de arte brasileiro. Não seria leviandade nem sacrilégio afirmar que, no contexto modernista, tal lírica genuína e envolvente, sem outro argumento mais forte do que a fidelidade a si mesma, não encon­ traria condições para se impor e desenvolver. Daí em diante, discutiríamos com prazer mais de uma dezena de obras que construíram efetivamente uma Visualidade Moderna no Brasil, se a frase não soasse um tanto absurda — de imediato teríamos que explicar o contra-senso de uma visualidade praticamente invisível. Em todo caso, obviamente, por sua densidade e seu alcance, toda essa arte não cabería numa Semana. Reclama com urgência, isto sim, a sua parcela de realidade, uma presença e uma inteligibilidade públicas cotidianas. Mesmo porque, nunca se sabe, pode muito bem estar a caminho a Semana de Arte Pós-Moderna.

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RO N A LD O BRITO é professor da UNI-RIO e do Mestrado em História Social da Cultura e do Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, Departamento de História PUC-RIO.

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K A T IA M U R IC Y

Machado de Assis, um Intempestivo?*

O termo intempestivo usado no título de uma intervenção que se propõe a refletir sobre a atualidade de Machado de Assis não é meramente uma provocação. O adjetivo, na sua acepção mais imediata, qualifica algo de inatual, imprevisto, inoportuno, fora de seu tempo. O contexto da minha pergunta — "M achado de Assis, um intempesti­ v o? — designa, mais estritamente, o que se opõe ao espírito da sua época, o que se situa à contracorrente de seus contemporâneos. Nesta compreensão, é o caráter ativo do inatual que se quer sublinhar. Sabe-se que este é o sentido dado por Nietzsche à palavra alemã unzeitgem àss para nomear uma noção fundamental de sua reflexão sobre a cultura. Suas conside­ rações críticas sobre a cultura alemã, dos anos 1873/78, são, no mesmo sentido, unzeitgem asse. Esclarecendo, anos mais tarde, seus objetivos nas Considerações, Nietzsche escre­ ve: "(elas) tentarem fa la r d e m inhas experiências e d os meus com prom issos com igo mes­ m o, não d e m aneira a su blin har a minha particularidade própria, m as o que tenho de com um com m uitos filh o s d e n osso tem po "*'1K A inatualidade aparece em Nietzsche como condição para refletir sobre sua época e significa não um alhear-se de seu tempo mas um situar-se contra ele, na única perspectiva que possibilita a sua compreensão. No ponto de vista inatual harmonizam-se a realidade subjetiva e a realidade social: o pensador e a sua época. Recusando-se a ser "cidadão d o tem po presente", à contracorrente da opinião pú­ blica, o intempestivo dá expressão à verdade da sua época. O termo unzeitgemãss foi usado também, amplamente, para designar uma posição conservadora de recusa ao progresso das sociedades industriais, às conquistas da civilização na modernidade, em nome dos valores atemporais da cultura. Se o pensamen­ to de Nietzsche pode influenciar uma visão conservadora da história e da cultura, não eram certamente esses os seus limites. Há, desde os seus escritos juvenis, uma preocupação com a história, com as suas possibilidades fora de uma concepção evolutiva. E em um contexto complexo, e muito rico, que afirma a necessidade do elemento supra-histórico para que a História não seja ou uma mera acumulação de fatos, destituída de sentido, ou um pro­ cesso cujo sentido se dá na evolução. Elevada à categoria de "sím bolo com preensivo" de uma época, a História passa a coincidir com a obra de arte e é tarefa para quem tenha "uma p od erosa facu ld ad e poética", "um p od er criad or capaz de planar acim a d o real": é, justa­ mente, o intempestivo, o artista. Construir a História como "alegoria intempestiva" requer 13


Marc Ferrez Rua Primeiro de Marรงo 1890

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Machado de Assis, um Intempestivo? mais um sentido estético que o senso comum da época: o sentido histórico Não pretendo aqui uma aproximação da filosofia de Nietzsche com qual­ quer tema da literatura de Machado. Certamente ambos têm muitas afinidades além da­ quela, tão surpreendente, de recomendar aos seus leitores que lessem os seus livros com o estômago, ruminando<3). Tomo apenas o sentido particular do termo intempestivo em Nietzsche para situar a atualidade da literatura de Machado. Fora deste contexto, dizer que a atualidade de M achado reside exatamente na sua inatualidade poderia tanto parecer uma afirmação de que os seus contemporâneos não estavam à altura de sua literatura (seja por­ que a genialidade dirige-se para o futuro, seja porque o Brasil é regido por um tempo di­ verso, atrasado em relação ao da Europa, com que Machado sintonizava-se) quanto de que Machado, deixando de lado as vicissitudes históricas de sua época, alcançara um registro atemporal que eternizara a sua literatura. A minha idéia é que a sua literatura é intencionalmente intempestiva, isto é, ela se põe à contramão das opiniões dominantes em diversos setores da vida social, na sua época. Esta inatualidade possibilita-lhe constituir-se como "sím bolo compreensivo",

Marc Ferrez Rua do Ouvidor 1980

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como “alegoria intempestiva de nossa realidade histórica e da nossa atualidade. Neste sen tido, pretendo indicar como a adoção de uma visão negativa da História, oposta à da pers­ pectiva evolucionista em voga nas elites brasil m is, e a opção pela observação da “nature­ za humana" e dos "costumes", na tradição dos moralistas franceses, constituem o caráter intempestivo, a profunda lucidez crítica da literatura de Machado. Não pretendo encontrarem Machado uma reflexão sobre a História ou qual­ quer coisa como um sistema de pensamento. Mas mostrar a visão filosófica da História na sua literatura, enunciada seja pelo narrador, seja pelos personagens ou pela trama. Es­ sa visão está muito próxima da concepção de história de Schopenhauer, autor que M a­ chado conheceu muito bem*"V O domínio da História, para Schopenhauer é o da expe­ riência humana, o da contingência*5^. Da multiplicidade dos fatos com que se ocupa, a História não pode oferecer nenhuma sistematização pois lhe faltam os princípios univer­ sais, domínio da Filosofia. Tampouco pode subordinar esses fatos a princípios universais, procedimento das ciências particulares, porque o seu objeto é de natureza irredutivelmente particular: aquilo que, aparentemente é, e não será mais. A diversidade de formas do particular obscurece o que, para Schopenhauer, revela o verdadeiro sentido da História: "O m esm o Ser, idên tico e im u táv el o c u p a d o h oje com as m esm as intrigas de ontem e de todos os tem pos." A ilusão do novo, a esperança de que mudanças ocorram na História responde às expectativas de um ingênuo otimismo que busca o consolo de um reino de felicidade a ser alcançado pela evolução da civilização. A crença em um progresso moral da espécie humana não passaria também de ficção consoladora. A História é, na sua for­ ma, na sua matéria, uma mentira: "O q u e a H istória conta n ão p assa d e um longo sonho, o so n h o p esa d o e con fu so da h u m a n id a d e " ^ . Não é na "constru ção histórica" que os fa­ tos ganham significação, mas quando relacionados à vontade dos indivíduos. Veja-se agora como esta concepção está próxima da visão de História em Ma­ chado. No capítulo O Delírio de M em órias Póstum as d e Brás C u bas, a imensa figura fe­ minina, com suas "form as selváticas" , seus " olh os rutilantes c o m o o sol" e suas gargalha­ das de tufão, poderia ser talvez uma descrição da Vontade de Schopenhauer. Em M acha­ do ela se chama Pandora ou Natureza e escapa à compreensão humana. Também em Scho­ penhauer, a Vontade, entendida como essência de toda energia latente ou ativa na nature­ za, como um conjunto de forças, não é determinada ou apreensível pelas leis da causalida­ de, pela razão. Diante dela — Vontade ou Natureza — o intelecto hum ano poderia se las­ timar, como o moribundo Brás Cubas: Tu és absurda, tu és u m a fa b u la . Estou son han do, decerto, ou se é verd ad e qu e en lou queci, tu n ão passas d e u m a co n c ep ç ã o d e alienado, isto é, um a coisa vã, qu e a razão au sen te n ã o p o d e reger, nem p a lp a r" (7) É no delírio da morte, quando a vontade individual aniquila-se na vontade universal, que esta se revela a Brás Cubas como essência do mundo, com o dor. E o que significa esta revelação? A Na­ tureza é madrasta e inimiga do homem: seu legado, a Vida, é um flagelo. A revelação faz eco à sabedoria dos gregos trágicos: a m aior felicidade -

não ter nascido - é inacessível


Marc Ferrez Panorama da Gloria 1900

aos homens. O outro legado, ainda mais danoso, a vontade de viver, afasta a segunda chan­ ce de felicidade acenada pelos gregos: a de morrer jovem. Vontade de viver, egoísmo, con­ servação: "A on ça m a ta o n ovilho porqu e o raciocínio da onça é que ela deve viver e se o n ovilho é tenro, tan to m elhor: eis o estatuto universal". Apesar da crueza da vida, espe­ táculo sangrento de destruição, os homens colaboram na "obra m i s t e r i o s a perseguin­ do a quimera da felicidade que anima a marcha sem sentido da História na qual pensam tolamente encontrar um progresso, uma finalidade. O desfile monótono dos séculos, ter­ rivelmente iguais em sua dor e esperanças, o último "tão miserável co m o o primeiro" po­ deria ter a divisa que Schopenhauer deu à História: Eadem, sed aliter: suas verdades e er­ ros, suas paixões, ambições e lutas, sua grandeza e miséria são, na visão de Brás Cubas, "as form as várias d e um mal", a dor só cedendo à indiferença ou ao prazer, essa espécie de "dor bastarda". Esta visão da História, tão claramente próxima de Schopenhauer, percorre toda a literatura de Machado. Também para ele "a volúvel história qu e d á para tudo" só revela os "seus caprichos d e d am a elegante" quando deixa ver as vontades individuais que a animam. Dessa verdade nos fala a trama de seus interesses, sentimentos e contradições. K A T IA M U R IC Y

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Se a História só se esclarece quando se esclarecem as vontades individuais que lhe dão forma, conhecer os homens, sua "natureza", é o que importa. Abre-se aí o espaço para a opção moralista na literatura de Machado. No século XIX, o moralismo — gênero literário um tanto impreciso surgido no século XVI — desaparece quando disciplinas como a Psicologia e a Sociologia passam a se ocupar do domínio que lhe era exclusivo — o da realidade moral do homem'0’. Sabe-se da influência dos moralistas franceses na literatura de M achado( 10). O caráter intempesti­ vo que procuro indicar aparece na utilização, em sua concepção tão moderna do roman­ ce, dos temas e da forma da tradição moralista em um século que dava as costas a essa tradição. Isto dá uma inflexão muito peculiar ao que habitualmente é chamado de aspecto psicológico de sua literatura e estrutura a crítica à contemporaneidade: face às modernas ciências do homem — e em especial à Psiquiatria — Machado opõe a inatualidade da sa­ bedoria do moralista. Pode-se tomar como exemplo, também em Brás Cubas, o tema do Humanitismo como sátira ao positivismo de Comte, às extrapolações do evolucionismo de Darwin para o campo da moral, às tentativas de sistematização científica do conheci­ mento sobre o homem. Fazendo a sua entrada na cena literária em um momento de crise social, no advento da burguesia comerciante, o moralismo foi sempre uma estratégia de defesa: uma sabedoria para a sobrevivência na aridez das relações sociais da nova realidade burguesa. No século XIX, o Brasil, a Corte do Rio de Janeiro, assistiu a transformações radicais que a confrontaram subitamente com a modernidade européia. A nova sociabilidade urbana e cosmopolita conviveu sempre, no entanto, com os antigos costumes da tradição colo­ nial. Nesta ambivalência, neste contexto de crise, o moralismo de Machado constituiu tam­ bém uma estratégia de defesa, de resistência crítica. Neste moralismo não há nenhum pro­ pósito filosófico, como não há também intenções pedagógicas ou apologéticas*11). Em Ma­ chado, o moralismo é ponto de vista literário: suas reflexões são, como explicitou em Brás Cubas, antes im orais. Por isso, por se tratar de ficção e não de filosofia, podemos pensar seu moralismo como um recurso, como perspectiva privilegiada na construção de sua crí­ tica às elites brasileiras oitocentistas que dissimulavam a inconsistência de sua existência, de seus valores, no culto às idéias do pensamento liberal europeu: na crença evolucionista no progresso, na ciência, nos valores burgueses modernos. Para distinguir melhor esse moralismo, pode-se relacioná-lo com as consi­ derações de Pascal sobre a vaidade. Para Pascal a vaidade é constitutiva da condição hu­ mana e manifesta a preocupação com a aprovação do outro. Fruto da imaginação, desejo de produzir um efeito lisonjeiro sobre o outro, a vaidade é o fundamento da preocupação humana com a reputação, com a virtude, com a honra. Retomando o mote do Eclesiastes, tão caro a Machado — Vaidade das vaidades, tudo c vaidade" — Pascal revela a inanidade da condição humana, cujo destino é decidido por qualquer bagatela que fale à sua desmedida vaidade: Se o nariz de C leópatra fo sse m ais curto, to d a a fa ce d a terra teria


Machado de Assis, um Intempestivo? m u d ad o ", a observação de Pascal poderia bem ser a epígrafe de muitos romances, de M achado(12*. M achado não está como Pascal, preocupado com o homem universal. Nos seus romances ele retrata uma sociedade que apressadamente se enfeita com os véus re­ centes da civilização: nela a aparência, o reconhecimento pela opinião pública é o que ver­ dadeiramente conta. A fraseologia oca dos ideais só ganha sentido quando se encontra a vaidade que a anima. É por vaidade, por amor à opinião, que os homens adotam de for­ ma retórica as idéias políticas, como os gêmeos de Esaú e ]acó, ou nutrem por elas, como Marc Ferrez Rua das Laranjeiras 1887

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Marc Ferrez O centro do Rio de Janeiro 1885

o pai de Brás Cubas, algum "ó d io pu ram ente m ental". Também é por " am or àglória", por "sede d e n om eada", que o tio cônego do herói está na Igreja, isto é, pelo seu "lado externo, a hierarquia, as preem inências, as sobrepelizes, as circunflexões... Q u an do Brás C ubas alm eja ser qu alqu er coisa, "naturalista, literato, arqueó­ logo, banqueiro, p olítico ou até b isp o — b isp o q u e fo sse — u m a vez q u e fo sse um cargo, uma preem inência, u m a grande reputação, u m a p o siçã o superior", ele é o parente tropical do homem de Pascal, devidamente despido das angústias do filósofo e exposto em todo o seu cinismo nativo; nos limites propostos pela ficção de M achado de Assis, Brás Cubas não passa do filho de uma elite sem convicções dos valores que adotara, vivendo necessa­ riamente uma ética de aparências: "O q u e im p o rta é a exp ressão g eral d o m eio dom éstico, e essa aí fica in dicada — vu lgaridade d e caracteres, a m o r das a p a rên cia s rutilantes, d o arruído, frou xidão d a vontade, d om ín io d o capricho, e o m ais". Para concluir, retomando as noções de Nietzsche propostas acima, poderia dizer que, na obra literária de Machado de Assis, a História, retomada em uma dimensão estética, é construída como sím b o lo com preen sivo" do século XIX, como a sua "alegoria


Machado de Assis, um Intempestivo? intem pestiva ". É no jogo com o inatual, na ironia da forma “moralista", que se revela a atualidade de M achado de Assis. Desta atualidade pode-se repetir o que Walter Benjamin escreveu a respeito da poesia de Baudelaire: sua literatura é a chave que encontra em nossa época a fechadura. Este encontro lhe abre novas significações e permite a nós, leitores de hoje, compreender melhor a nossa própria realidade. * C onferência apresentada no I Encontro de Professores de Literatura Brasileira: "M achado d e A ssis - Texto e C on texto" do D epartam ento de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 28 set. 1°88.

Notas ( 1 ) Nietzsche, G ed a n k en und P lan e 1882/1885, cf. em O euvres C om p letes, Gallimard, vol. I, Paris, 1968. ( 2 ) U nzeitgem ässe Betrachtungen, II. cf. em C onsidérations Intempestives, Aubier Montaigne, Paris, 1964. ( 3 ) Z u r G en e a lo g ie d e r M oral, cf. O eu v res C om pletes, Gallimard, vol. VII, Paris, 1968. ( 4 ) A influência da filosofia de Schopenhauer na literatura de M achado é constantemente apontada pela crítica. O ensaio de Eugêncio Gomes, de 1955, S ch op en h au er e M achado d e A ssis, estabelece-a definitivamente. Cf. M a c h a d o d e Assis, Livraria São José, Rio, 1958. ( 5 ) Schopenhauer, D e I H istoire (apêndice do livro III, cap. 38 de Le M o n d e co m tn e V olonté et c o rn m e R epresentation. PUF, Paris, 1966; cf. Katia Muricy, M a c h a d o e a F ilosofia, Jornal do Brasil, Idéias nV 142, 1 7 / 6 /8 9 . ( 6 ) Schopenhauer, op. cit. ( 7 ) M e m ó r ia s P óstum as d e Brás C u b a s. ( 8 ) Um a concepção do mundo com o criação do Mal está presente na literatura de M acha­ do. A s vezes, claramente: a apresentação do mundo como uma com posição do Diabo so b re um libreto de Deus, no capítulo A Ó pera, em D om C asm u rro; ou A d ã o e Eva, em V árias h istórias

"Em p r im eiro lugar, n ã o fo i D eus qu em criou o m un do, fo i o D ia­

b o ..." . A frânio Coutinho (A F ilo s o fia d e M a c h a d o d e Assis, Editora Vecchi, Ltda., Rio, 1940) classifica esta visão com a fórmula de J. Maritain "concepção satan ocrática d o m un­ d o " , apontando para suas relações com as heresias primitivas do cristianism o e para a sua "naturalização" no ateísmo de M achado. Penso que seria interessante uma aproxi­ m ação desse satanismo com a nova realidade do "mundo dos negócios" nos romances de M achado. A aproximação me foi sugerida pela observação de Walter Benjamin a pro­ pósito do demoníaco em E. A . Poe, em A Paris d o Segundo Im p é r io em Baudelaire. ( 9 ) c f. Helène Vianu "Qu'est-ce q u un m o ra listel" em Beiträge zur rom a n isch en P hilologie, II, 2, p. 62 a 76. (10) A frânio Coutinho, op. cit. e tam bém Raym undo Faoro, M a c h a d o d e A ssis: A Pirâm ide e o T rapézio, Companhia Editora N acional, São Paulo, 1974. (11) cf. Helène Vianu, op. cit. (13) Pascal, Pensées, Hachette.

K A T IA M U R IC Y é D outora em Filosofia, professora do Departam ento de Filosofia P U C -R io e ex-professora do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Autora de "A R azão Cética — M acha­ do de Assis e as Q u estões de seu Tempo".

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JO R G E C Z A JK O W SK I

A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira

A opção dos arquitetos brasileiros pela corrente racionalista da arquitetura moderna costuma ser avaliada de maneiras contraditórias — ora como uma ruptura com a tradição local, à semelhança da "imposição" do neoclássico um século antes, ora como o reencontro com essa mesma tradição. A implantação do nacionalismo no Brasil nas décadas de 30 e 40 beneficiou-se de fatores como o clima cultural gerado pela Semana de 22 e o pioneirismo um tanto "pu­ blicitário" das primeiras obras de Gregori Warchavchik. Em outro plano valeu-se também da popularização da imagem "futurista" através do cinema e da grande imprensa, que apre­ sentavam cenários e realizações art déco e intem ationalstyle como a mais acabada expressão da Modernidade e de uma nova ordem social, a reboque da civilização maquinista. Comparadas ao ecletismo tardio então em vigor, as formas despojadas do racionalismo, suas estruturas arrojadas e a funcionalidade de seus espaços deviam real­ mente configurar-se como o atalho mais promissor para a atualização e o progresso do País. Daí, certamente, a idéia de ruptura — mais que evolução ou renovação — apoiada pela presença messiânica de Le Corbusier, em 1929 e 1936. Em sua primeira visita, na volta de uma viagem à Argentina, Le Corbusier fez conferências em São Paulo e no Rio e entrou em contato com os mais destacados mem­ bros de nossa inteligentzia modernista. A escala de suas proposições urbanas utópicas, seus slogans propositalmente agressivos: "casa, m áquina de morar", confirmavam sua fama de visionário e situavam sua obra como referência obrigatória para a arquitetura da nova era. A segunda estadia adquiriu outro caráter — trouxe a consolidação efetiva de sua influência. Ultrapassando as limitações de "oráculo da modernidade", teve ocasião de transmitir diretamente a um grupo de jovens não só sua doutrina mas também sua ex­ periência prática, enfim um sistema arquitetônico articulado e abrangente que serviu de embasamento para a arquitetura brasileira dos trinta anos seguintes. Mas, se o racionalismo teve a seu favor a intervenção pessoal de um teórico do calibre de Le Corbusier, a corrente orgânica contou, no mesmo período, com a passa­ gem não menos festejada e notória de Frank Lloyd Wright pelo Rio de Janeiro. Mal aqui chegou para julgar uma das etapas do concurso para o Farol de Colombo, em agosto de 1931, Wright deparou-se com o rebuliço da greve dos alunos da ENBA, que protestavam contra a demissão de Lúcio Costa da direção da Escola. Solida23


GAVHa

rizando-se com os estudantes, apoiou-os através de entrevistas, discursos, artigos em jor­ nais. Pronunciou, também, conferências sobre sua arquitetura org ân ica, ressaltando a ne­ cessidade de conceber a obra como um todo — espaço, forma e materiais indissoluvelmente ligados ao meio. Marcava, com isso, uma posição claramente antagônica à "objetividade" padronizadora e universalista do racionalismo. Essa posição iria estimular a Associação dos Artistas Brasileiros a promover o IV Salão de Arquitetura Tropical, em 1933. Não há dúvida de que, sob muitos aspectos, a arquitetura orgânica parece­ ria bem mais assimilável no Brasil do que a tendência racionalista. Por sua busca de inte­ gração com a natureza encontrava eco num vezo antiurbano do estab lish m en t da época; além disso o pouco destaque dado às questões sociais e a discrição no uso — ou na ex­ pressão — de tecnologias avançadas iam ao encontro do conservadorismo predominante e da falta de qualificação da mão-de-obra disponível. Outro dado favorável seria a com­ plexidade espacial e formal da arquitetura orgânica, que a aproximaria de uma suposta "prevalência barroca" de nossa arquitetura. Aparentemente, portanto, não é descabido concordar com a tese que sugere que a adoção do racionalismo operou uma ruptura mais radical na tradição brasileira do que aquela que viria a ocorrer caso a preferência recaísse sobre o organicismo. Mas, antes Le Corbusier Villa Savoye, Poissy, Franca 1927

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A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira de formar uma opinião mais definitiva sobre o assunto, valeria à pena investigar quais se riam os pressupostos dessa tradição brasileira e compará-los às características tanto do racionalismo quanto da arquitetura orgânica, particularmente no que diz respeito à relação arquitetura/natureza.

O Obelisco e a Gruta

Arquitetura da razão, arquitetura da emoção. A diversidade da produção moderna, a multiplicidade de tendências que coe­ xistem no mesmo momento e no mesmo lugar desde meados do século passado, torna es­ sa classificação menos óbvia do que quando aplicada às arquiteturas do passado. No en­ tanto, feita a ressalva da dificuldade maior em se aproximar as diferentes tendências, é pos­ sível observar, através, principalmente, da morfologia do espaço arquitetônico presente nas obras — mas também através de seu aspecto formal — que sempre vigora a possibili­ dade de se agrupar a arquitetura moderna em duas vertentes antitéticas. E inegável que todas as grandes simplificações são perigosas pois conduzem geralmente a uma superficialidade que não dá conta dos diferentes aspectos dos fenôme­ nos que se quer estudar. Mas também apresentam a vantagem de sublinhar determinadas características do objeto em estudo de maneira mais marcante, facilitando o estabelecimento de relações que em outras circunstâncias não se colocariam com igual clareza. Na categoria de "arquitetura da razão" cabe situar a obra de arquitetos co­ mo Loos, Perret, Le Corbusier, Mies Van der Rohe, Gropius, Terragni, Rietveld, entre tan­ tos outros aos quais se poderia chamar genericamente de racionalistas, passando por ci­ ma das diferenças que identificam os movimentos individuais aos quais pertenceram. Na categoria de "arquitetura da emoção" as correntes parecem ainda mais variadas, mas poderíamos — por exemplo — agrupar Poelzig, Taut, Gaudí, Scharoun, Bloc e Frank Lloyd Wright, representantes do expressionismo, do modernismo catalão, do neo-expressionismo, do informalismo e da arquitetura orgânica. A pergunta que agora se coloca é quais as diferenças fundamentais entre exemplos extremados das duas categorias? A primeira se caracteriza por buscar uma ordem lógica e universal, agradá­ vel à razão, que pode ser, no fundo, ilógica, mas que é lida como objetiva, funcional e cons­ trutiva. É o classicismo em sua versão moderna, ao qual se aplica facilmente a definição de Wõlfflin para a arquitetura renascentista*n . O organicismo por sua vez, entendido como uma manifestação da catego­ ria anticlássica (ou barroca, ou romântica... os nomes, de acordo, aliás, com o espírito da própria tendência, parecem sempre particularizantes), se inscreve numa linhagem de obras que tentam expressar valores subjetivos, psicológicos, espirituais. E uma arquitetura sem­ pre um pouco estranha à luz da lógica, muitas vezes um tanto aflitiva, que parece ter uma natureza própria e desafiar as leis da construção. Wõlfflin pode ser citado de novo, falan-

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Frank Lloyd Wright Fallingwater (Casa da Cascata) Bear Run, EUA 1936

do sobre o barroco*2'. Quanto às características espaciais, o racionalismo produz espaços que ten­ dem ao estático, ao contido, ao geometricamente definível, ao composto pela soma de uni­ dades, enquanto o organicismo prefere os espaços dinâmicos, fluidos, complexos, amal­ gamados de tal forma que sua decomposição em unidades é impraticável. O racionalismo procura o ideal, a superação do individual através de uma síntese que conduza ao universal. Já o organicismo evita o modelo, trabalha cada situação em sua peculiaridade, visando uma obra que se constrói como um fragmento de uma na­ tureza particular. Pode-se afirmar, portanto, que a arquitetura racionalista tende à fixação do tipo independenternente do lugar, enquanto a arquitetura orgânica tende à atipicidade cons­ tante, à variação obrigatória em d e p o id c n c ia do lugar. A questão da arquitetura regional se infiltra como signo nas obras orgâni­ cas e como símbolo nas obras racionalistas. Material e resposta ao meio no primeiro caso,


A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira elemento de uma identidade em construção, no segundo. Implícita e explícita. As obras racionalistas, com suas formas geometricamente simples, se con­ trapõem ao entorno. Arquitetura e natureza se defrontam, íntegras em suas especificida­ des. Já as obras orgânicas são complementares ao entorno, ao qual se integram não mimeticamente mas como resposta ao geniiis locei. A diferença entre a Villa S av oy e e a Casa d a Cascata, bem como entre a Ville R adieuse e B roadacre City exemplificam perfeitamen­ te as duas atitudes.

Ao Jeito da Terra

A luz do exposto acima insinuam-se alguns caminhos para a análise do triunfo da arquitetura racionalista no Brasil. Em primeiro lugar cabe considerar a relação da arquitetura com seu meio ambiente e a idéia da existência de uma tradição barroca na arquitetura brasileira. Para D'Ors, "o barroco é secretam ente anim ado pela nostalgia d o Paraíso Perdido A primeira vista e pela circunstância de seu descobrimento o Brasil se apre­ sentava realmente com o um paraíso terreal. Esse fato inscreve desde logo a terra nos mitos edênico da idade d o ou ro e do paraíso redescoberto e parece sustentar a possibilidade de uma "prevalência barroca". No entanto a ilusão sobre a amenidade do sítio logo se des­ faz, diante do que Miran Latif descreve como "um m agm a puisante d e vermes, insetos, répteis, m i a s m a s que da floresta úmida e cerrada, quase impenetrável, ameaçam o ho­ mem em sua ocupação do território. Também o campo aberto, o rio, a praia, tornam-se perigosos pois são vistos de dentro das sombras que se adensam por detrás da primeira fileira de árvores. As flechas atravessam essas clareiras como que vindas do nada. O índio — como o ladrão — além do perigo real, representa o inconsciente, a invasão da ordem pelo inesperado, pelo incontrolável. Não admira, portanto, que as mais antigas construções luso-brasileiras pro­ curem fazer frente ao meio. São volumes densos e fortes, brancos, de paredes grossas e con­ tornos amolecidos, poucos traços e muito corpo. O cheio predomina sobre o vazio, a massa sobre o espaço, a matéria sobre a luz. Predomina o todo sobre o detalhe, o obelisco como marca da presença humana sobre a gruta como abrigo telúrico. No entanto, quem observa essas construções plantadas na paisagem tropi­ cal percebe que se trata de um fenômeno diverso da arquitetura grega. Não são elas o fru­ to de uma relação serena com o cosmos, a celebração do conhecimento humano frente à natureza, mas o oposto: são um refúgio diante do caos. Essas obras, na verdade, trabalham civilizatoriamente, como batedores da cultura européia e não como manifestação de uma cultura própria à terra. A peculiarida­ de dessa situação faz com que, ao olhá-las, percebamos o perigo ao qual se contrapunham. Elas acusam o território hostial, os índios, as flechas, as cobras, o veneno, os insetos, as maJORGE CZAJKOWSKI

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Igreja e Residência dos Jesuítas São Pedro D'Aldeia, RJ séc. XVII Fotografia: IBPC

tas, as onças, a solidão. E o mar e o abandono. Na vastidão despovoada da paisagem colonial não é a natureza que, vista do mar, assusta. Ao contrário: à distância ela encanta o olhar com seu viço. E a constru­ ção branca que a ela se contrapõe sempre em absoluto antagonismo que inspira medo por negar de forma tão marcante o aparente edenismo da terra, por se impor à paisagem, por significar de forma tão sólida a necessidade de abrigo e proteção. Por ser um m irante de onde o homem pode olhar em redor e se sentir seguro. Se existe o forte, a capela sobre a rocha, é que o homem precisa impor de­ fensivamente sua presença e sua ordem. Em momento algum vai existir uma fusão entre a construção luso-brasileira e a paisagem — sua antiorganicidade é sempre firmemente expressada. E apenas na mirabolante talha interna que o paraíso alm ejado — dourado co­ mo o céu dos quadros pré-renascentistas — pôde se fazer presente e se espraiar ao abrigo das grossas paredes. Tivessem os portugueses menos susto daquilo que os rodeava, suas construções no Brasil teriam sido muito menos brancas e densas. Houvesse a possibilida-


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A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira de de um conúbio am oroso entre o homem e a terra, não teria se formado essa incom­ preensão ecológica que perdura até hoje, enraizada na alma brasileira. Ao barroco, pois, e à sua linhagem, não parece promissor o solo brasileiro. E basta examinar com cuidado a história de nossa arquitetura para verificar que realmen­ te é difícil encontrar exemplos de edifícios com volumes e espaços efetivamente barrocos. Existe, sim, o barroco das decorações das igrejas e de suas frontarias, mas é um barroco contido dentro dos limites sóbrios de espaços estáticos ou desenvolvido so­ bre o plano, enquadrado nas superfícies. A talha é como um souvenir selvagem, uma flo­ resta interna que sublima a selva reduzindo seu espaço misterioso à textura bidimensional Capela-Mor, Igreja de Santo Amaro Brumal, MG séc. XVIII Fotografia: IBPC


de uma tapeçaria em madeira dourada. Descartada a idéia de uma "prevalência barroca", pode-se apontar o fato de que as preferências formais manifestadas durante o período colonial — os volumes e espaços contidos, compostos por justaposição mas individualmente legíveis, e uma exu­ berância peculiar no tratamento de elementos aplicados ou recortados sobre o plano — permanecem válidas até hoje. A obra de Oscar Niemeyer, por exemplo, encaixa-se perfeitamente nessa tra­ dição. Das quatro m aneiras recorrentes ao longo de toda a carreira do arquiteto, duas di­ zem respeito à articulação do plano, através do recorte sinuoso do perímetro da cobertura (Casa das Canoas, Ed. Copan) ou através de seu "arqueamento" (capela da Pampulha, fá­ brica Duchen); a terceira justapõe sólidos geométricos simples (Congresso, Universidade de Constantine) e a quarta coloca à frente de volumes primários um "plano" de colunas recortadas que formam um pórtico (Palácios da Alvorada e dos Arcos). O espaço tende a permanecer estático, embora às vezes irregular, e a volumetria, contida, enfatiza o con­ traste entre os vários volumes de um conjunto. A arquitetura dissocia-se de seu entorno, relacionando-se, idealmente, com um horizonte de fundo infinito, com o em Brasília, ou contrapondo-se a uma paisagem de contornos dramáticos, com o no Rio.

Oscar Niemeyer Praça dos Três Poderes, Brasília

1958

Croquis


A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira Construindo a Tradição

A história da arquitetura brasileira pode ser lida como o percurso da con­ tenda entre o homem e a natureza. Desenvolveu-se, basicamente, entre duas imagens: de um lado a romântica valorização européia da natureza selvagem, do outro a realidade mes­ ma dessa natureza que é preciso dominar. O ecletismo da virada do século aparece em boa medida como um interlú­ dio na evolução dessa contenda. O crescimento das cidades, aliado à condição de exalta­ ção da cultura que caracteriza o período, bem como a ausência de qualquer nostalgia na­ cionalista em relação ao que foi o país num passado, então, próximo, fazem da arquitetu­ ra eclética uma produção eminentemente voltada para o urbano. Seu rendilhado em ma­ deira e ferro, seu detalhamento delicado, ornamentação em estuque, fachadas em azule­ jos decorados, de escala miúda, são para serem vistos de perto — combinam com o jardim hachuriado da chácara. Jardim de sombra, de palmeirinhas e grama barba-de-urso, escuro no colorido e gráfico na textura, jardim distante das folhas gordas, da volúpia da natureza primitiva e natural da terra. E o período em que a arquitetura brasileira se torna mais "tro­ pical", de um tropicalismo mediterrâneo e bucólico, é verdade, não obstante adequado ao clima. Na arquitetura residencial, hoje praticamente toda demolida, os espaços in­ termediários entre o jardim e o interior assumem importância vital. São comuns soluções onde a interligação entre diferentes partes da casa se faz através de galerias cobertas (como no Palácio Laranjeiras, onde as três alas se unem por um grande jardim-de-inverno) e os cômodos abrem-se para as varandas que circundam as casas através de numerosas portasjanelas. As paredes ao fundo dessas varandas muitas vezes recebem painéis com pinturas de paisagens locais, reproduzindo a flora, a fauna e vistas pitorescas, numa camuflagem que se não faz propriamente o prédio sumir entre as árvores, fala muito de uma nova apre­ ciação da natureza, domesticada e mantida à distância pela cidade. O trópico, no Brasil, emerge fragmentariamente, menos tropical que o tró­ pico imaginado na Europa. De certa forma todo nativismo, seja romântico ou moderno, está fadado à impopularidade por se contrapor ao eth os civilizatório que aqui afasta todo exotismo e que, no máximo, admite o trópico como o reflexo de um mito da civilização européia. A apropriação do local é raramente direta, consumando-se usualmente através do recurso a uma v isã o d e estrangeiro. Não foi diferente a recuperação do nativo que se deu na década de 20, tanto no caso da viagem dos modernistas paulistas ao interior de Minas, como na redescoberta dos viajantes do século XIX, que são estudados e republicados no Rio de Janeiro. Variou, sim, a atitude, em São Paulo já tingida pelo interesse pelo popular, que iria caracterizar o seu aspecto moderno, funcionalista, enquanto no Rio ainda se manifestava um antiquarism o nacionalista e conservador, formalista. Na arquitetura, a manifestação desse nacionalismo foi o neocolonial.

JORGE CZ A JK O W S KI

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gávea

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Chácara da família Bartholdi Rua Presidente Domiciano, Niterói. RJ 1872

Fotografia: Antônio Sergio Vianna

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A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira Em sua primeira fase, o neocolonial não se pautou por qualquer veleidade de recuperação ou reinterpretação de técnicas construtivas tradicionais. Do passado apro­ veitava as formas, aplicando-as, muitas vezes, sobre estruturas delgadas de concreto ar­ mado que eram revestidas por espessa massa de alvenaria, simulando a construção antiga. Avesso à simplicidade da arquitetura civil da colônia, o neocolonial valiase geralmente de uma colagem indiscriminada de elementos da arquitetura religiosa bar­ roca, interpretados, no entanto, através do o lh o eclético: medidas, proporções e composi­ ções típicas da arquitetura acadêmica do fim-de-século, muito diferentes da escala colo­ nial. Confundiu-se também, desde logo, com o historicismo pan-americano que atraves­ sava as Américas a partir dos Estados Unidos. O Colonial espanhol, mais rebuscado, res­ pondia melhor ao gosto da época que a nossa arquitetura tradicional. Os pavilhões neo­ coloniais da Exposição de 22, por exemplo, foram muito mais espanhóis que portugueses ou brasileiros. Na construção residencial o ca lifo m ia n o ou missões teve a enorme impor­ tância de modernizar efetivamente a casa de moradia, propondo plantas mais funcionais, fachadas de poucos elementos decorativos, volumes mais baixos e esparramados, geral­ mente circundando um pátio. Os estudos da arquitetura antiga brasileira desenvolvidos durante a década de 20, aliados ao reemprego de material autêntico, proveniente de demolições, conduzi­ ram a iirna segunda fase do neocolonial, mais feliz na reedição do espírito colonial que

Residência Rodolpho Siqueira Largo do Boticário, Rio de Janeiro, RJ 1920

Fotografia: Celso Brando


a primeira. As obras desse período, como a casa de Rodolpho Siqueira, no Largo do Boti­ cário, e a de Maria Cecília Fontes, no Alto da Boa Vista (projeto de Lúcio Costa), são mais convincentes em sua Veracidade que as da fase anterior. Devem isso a um cuidado maior na referência aos precedentes, evitando os ornamentos excessiva mente emblemáticos da primeira fase do neocolonial. Essas construções mais sólidas e sóbrias, que se aproximam da arquitetura do século XVII, inclusive em sua decidida contraposição à natureza, recuperam, assim, no início da década de 30, no momento mesmo da chegada da arquitetura moderna, uma relação que se tinha diluído ao longo da virada do século. Essa recuperação vai se manifestar também no paisagismo, onde a flora lo­ cal é readmitida e trabalhada naquilo que tem de mais exótico e decorativo, resultando em jardins luxuriantes onde a natureza tropical comparece em todo o seu viço, mas já conve­ nientemente emoldurada pela expansão urbana. A restauração da Floresta da Tijuca, coor­ denada pelo mesmo Castro Maya que traz de volta para o Brasil os desenhos de Debret, é o conjunto mais significativo dessa fase antiquarista do neocolonial, a mais completa ten­ tativa de recriação do mundo "primevo" brasileiro, conforme a documentação do início do século XIX. A readmissão da natureza natural, tanto como fato com o enquanto idéia, conseqüência do nacionalismo e parceira do retorno a uma arquitetura mais cheia e com detalhes menos preciosos, vai ser mais um elemento propício à implantação do racionalismo internacional com seus volumes sólidos e suas fachadas de desenho claro e defini­ do, magnífico e sábio jogo de formas sob a luz" (Le Corbusier). Assim é que, na verdade, a arquitetura racionalista não se constituiu numa ruptura mas numa retomada da tradição brasileira. Não é de espantar, portanto, a genea­ logia legitimizadora montada pelos pioneiros do racionalismo brasileiro que, com Lúcio Costa, Mário de Andrade e Rodrigo Mello Franco de Andrade à frente, fundaram em 1937 o Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Tratava-se de salvar no passado os antecedentes do que se estava propondo no presente. Sob este prisma a ruptura entre o colonial e o neoclássico também não foi, propriamente, uma ruptura: foi um avanço, um passo adiante na mesma direção que mais tarde conduziria ao modernismo racionalista — a passagem da lógica do senso co­ mum, colonial, para a lógica geométrica, no neoclássico, e para a lógica científica, no ra­ cionalismo. E a mesma questão gradativamente aprimorada, distilando-se para planos de maior abstração e precisão metodológica. A opção pelo racionalismo parece não ter significado, afinal, a adoção de princípios estranhos à terra. Pelo contrário: o apoio efetivo que recebeu por parte dos po­ deres constituídos só vem comprovar sua conveniência e sublinhar o fato de que se tratava de uma utopia bem menos ameaçadora que a utopia ecológica a v a n t la lettre proposta pelo organicismo.


A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira Notas ( 1 )

C ada uma das form as ganha uma existência autônoma e se articula livremente; sã o partes vivas, absolutamente independentes. A coluna, o setor de parede, o vo­ lum e d e um simples setor de espaço, bem com o do espaço total — nada além de form a s nas quais o ser humano p o d e encontrar uma existência satisfeita em si mes­ m a, qu e transcende a m edida humana, mas que é sempre acessível à imaginação". W Ò L FFL IN , Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte, São Paulo, Mar­ tin s Fontes, 1984, (p. 10).

O B arroco emprega o mesmo sistema de formas, mas em lugar do perfeito, do com­ pleto, oferece o agitado, o mutável; em lugar do limitado e concebível, o ilimitado e colossal. D esaparece o ideal da proporção bela e o interesse não se concentra mais no q u e é, mas no que acontece. As massas, pesadas e pouco articuladas, entram em m ovim ento. A arquitetura deixa de ser o que fora no Renascimento, uma arte d a articulação, e a com posição d o edifício, que antes dava a impressão da mais su blim e liberdade, cede lugar a um conglom erado de partes sem qualquer autono­ mia". Idem , ibidem . ( 3 ) D 'O R S , Eugênio. Du Baroque, Paris, G allim ard, 1968 (p. 35). ( 4 ) LA TIF, M ira n de Barros. O H om em e o Trópico, uma experiência brasileira, Rio

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de Ja n eiro , A gir, 1959.

JO R G E C Z A JK O W S K I é p ro fesso r de Planejam ento de Arquitetura e coordenador do N úcleo de Pes­ quisa e D o cu m entação da FA U /U FR J, editor de Arquitetura Revista e professor do Curso de Especializa­ ção em H istória da A rte e da A rquitetura no Brasil, da PU C -R IO .

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C A R L O S Z IL IO

O Centro na Margem: algumas anotações sobre a cor na arte brasileira

Jamais viu o sol, alguma sombra. Imóvel sol. Leonardo Da Vinci A cor é o “lugar onde o nosso cérebro e o universo se juntam". Paul Cézanne A lembrança de uma falta percorre o processo de formação da pintura moderna. Falta e oposição ao mesmo tempo. O arranjo autoritário da ordem perspectiva subordina a cor à malha geométrica que delimita os objetos. Esta ordem logocêntrica foi pervertida por uma econom ia específica das cores. O século XIX irá extrair do conflito en­ tre a malha linear e a cromática uma alternativa capaz de possibilitar a autonomia da cor, retirando-a da tradição aristotélica da cor natural adotada por Alberti. Este movimento de afirmação da cor vai resgatá-la da margem para tomála um componente estrutural da pintura. Um processo que, por sua vez, incorpora à cons­ tituição da modernidade culturas tidas como marginais para o ocidente. No âmbito da ar­ te brasileira, a cor, além de possuir uma função liberadora, situa questões particulares na relação entre natureza e cultura e questiona as relações de dependência entre periferia e centro, problematizando, assim, o entendimento corrente de marginalidade cultural. Uma teoria e uma ciência da luz são construídas por Newton no século XVIII mostrando a possibilidade de se reduzir a análise e tornar mensurável uma múltipla variá­ vel como a emissão da luz. A experiência que se elabora pela refração da luz produz a decomposição do espectro de cores, que pode ser recomposto invertendo-se o mecanismo novamente e produzindo a cor universal: o branco. Como oposição a esta teoria, desde Leonardo Da Vinci à Goethe, temos a percepção fugitiva das cores sempre associadas à luz e à sombra. Goethe aparece como afirmação pré-romântica da percepção subjetiva. Uma teoria de nuances que distingue várias possibilidades da cor entre as fisiológicas (subjetivas), as físicas (objetivas e subjetivas) e as químicas (mais precisamente, objetivas). E de se supor uma ênfase particular para as cores fisiológicas que permitem duas observações que serão fun­ damentais para a pintura: o contraste sucessivo e o contraste simultâneo. (1). A teoria de Goethe abre uma possibilidade de diálogo entre as análises téc37


GÁVEA

nicas e o fazer artístico. Esta relação ocorre, por exemplo, entre Delacroix e o químico Chevreul. Desde o início da sua obra, Delacroix deixa para o olho o cuidado de concluir as harmonias para as quais ele fornecia apenas os elementos. Este procedimento, inicial­ mente aplicado à luz e à sombra, irá ser desenvolvido por ele ao sobrepor as cores comple­ mentares. Investigando por outras vias, Chevreul, desde 1928, dà às soluções de Delacroix uma correspondência científica através das leis dos contrastes sim ultâneos<2). Quando Baudelaire afirma na sua análise da cor no "Salão de 1846" que "o vermelho canta a glória do verde", ele é naquele momento, um dos raríssimos que consegue unir Delacroix e Chevreul. A pesquisa de Delacroix, no entanto, se dá no interior da pintura. Rubens é uma influência marcante, assim como as aquarelas de Bonington e, sobretudo, as paisagens de Constable através da presença expressiva da pincelada e da cor. Finalmente teríamos, ain­ da, a importância do orientalismo. O orientalismo está fortemente marcado pela imaginação romântica. Do oriente vem a possibilidade de um universo distinto daquele ligado ao espírito cromático clássico. O azul, por exemplo, é de natureza profundamente oriental e confusa (um prin­ cípio ensombreado) em relação ao pensamento ocidental que constitui um princípio de distinção nítido entre o mundo das idéias e do ser (branco e preto) e aquele da natureza e da substância (amarelo e vermelho). No Egito as cores constituem um grupo calórico agressivo e sombreado e estão ligados à sedução (3\ No interior da cultura ocidental a cor veneziana possui um estatuto contrá­ rio ao da tradição clássica. Se ela possui um valor mercantil específico como segredo de manufatura está, também, ligada a uma cidade que atua com o um "teatro do mundo", onde a cor desempenha uma função social de envolvimento. E esta, por exemplo, a con­ cepção de William Blake quando afirma: “Venezianas, a sua c o r é m era plástica p ara d is­ farçar uma d d a d e prostituta''^1. De fato, a importância da cor na pintura veneziana, através da investigação de novas tonalidades e das indagações sobre a sua relação com a luz, abre a possibilidade da problematização entre a cor e a estrutura linear. Assim como no orien­ talismo, a pintura veneziana revela, também, uma possibilidade de através da cor expri­ mir a sensualidade e o erotismo que foram recalcados pela lógica clássica ocidental. A pintura do século XIX, vive o desafio epistemológico que coloca o sujeito diante da natureza tomada não mais como revelação da ordem certa e imutável da cria­ ção, mas simplesmente como o seu entorno. Coerente com esta posição, a opção pela pin­ tura de paisagem ao ar livre retira o artista do apriorismo das regras de atelier situando-o diante de uma relação com o real marcada pela experiência. Esta atitude une os procedi­ mentos de Corot com os da Escola de Barbizon. No entanto, enquanto que para Corot a natureza é um estímulo (motivo na linguagem dos pintores) que provoca um sentimento Georges Seurat "Modelo Sentado, de Perfil" 1887 38



que é a forma autêntica (anticientificista) de conhecê-la, para Barbizon há um movimento coordenado entre a emoção e a memória que converte a em oção em conhecimento ~ . A partir desta concepção a posição naturalista perde qualquer sentido. Na sua relação com o “motivo'', os artistas atuam por intermédio de um sistema de equiva­ lências, isto é, do abandono de um código baseado na similitude por uma atitude de bus­ car correspondências. Este encaminhamento possui em si um alto grau de arbitrariedade que aumenta na medida que ganha, inclusive, um sentido sinestésico lpl. E desta relação vasta e heterogênea que se amplia a liberdade do artista e que irá levar, com Matisse no século XX, à autonomia da cor. l ’ara os impressionistas a cor será, através da sensação, o elemento formal capaz de traduzir a experiência da natureza. A sensação não é tomada apenas como uma maneira imediata de relação com o real, mas um estado da própria consciência em ato diante do fenômeno (7>. A harmonia tão perseguida pelos renascentistas está, agora, vinculada à teoria de Chevreul do contraste e da analogia entre as cores. Seurat, a partir das contri­ buições de Rood e Henry baseadas por sua vez nos experimentos de Helmholtz e Max­ well, dará um maior rigor científico a estes princípios que ganharão com Gauguin, Van Gogh e Cézanne outras possibilidades de interpretação. Todo este processo é acompanhado por uma inquietação em viajar que se espalha entre os artistas. Se no Renascimento o destino dos pintores era Roma e a busca da antiguidade, aqui é a procura de um sol mais intenso e de outra luz. Em meio a todos estes deslocamentos é interessante assinalar que tanto Gauguin quanto Manet passaram pelo Rio de Janeiro. Em seu livro N oa-N oa, Gauguin relata sua chegada ao Taiti e a decepção que foi sua primeira visão: "Esta pequena ilh a não tem com o a baía d o R io de Janeiro um aspecto bem teérico

Manet que fica cerca de um mês no Rio fala da paisagem como

... não tendo jam ais visto uma natureza tã o bela (0). É possível deduzirmos o poder de desarticulação que aquela paisagem, ainda bastante selvagem, com configurações e cores tão particulares, provocou sobre o olhar dos dois europeus. Assim como ocorreu com Gau­ guin, é provável que para Manet a Baia da Guanabara tenha permanecido como uma pro­ longada referência. Não quero, no entanto, afirmar que isto tenha sido determinante do ponto de vista das soluções formais que constituíram a obra dos dois artistas, mas, de al­ gum modo, sua memórias visuais de homens modernos ficaram comprometidas com aquela experiência (10). O quadro "O Morro de Santo Antonio no Rio de Janeiro" de Taunay (11) pode ser tomado como um modelo dos conflitos entre natureza e cultura. No primeiro plano temos um grupo de frades denotando uma atitude de erudição com o representação do sa­ ber. O segundo plano é a cidade do Rio de Janeiro pintada como um simulacro de cidade italiana, uma referência tradicional à cultura. No terceiro plano, irrompe como forma es­ tranha o Pão de Açúcar e esta presença inviabiliza um arranjo capaz de gerar um todo har-


0 Centro na Margem: algumas anotações sobre a cor na arte brasileira

Nicolas Antoine Taunay "O Morro de Santo Antônio no Rio de Janeiro" 1816

mônico próprio ao Neoclássico. Taunay se limita a documentar o conflito. Henri Vinet, como discípulo de Corot, denota ter enfrentado diretamente a cor tropical. Em algumas telas chega a utilizar timidamente as cores complementares. Mas, como praticamente todos os pintores de paisagem brasileira do século XIX, ele se man­ têm dentro de uma preocupação realista de apreensão da natureza. O desafio das cores leva Vinet ao mesmo procedimento que mais tarde Grimm com seu grupo e Batista da Costa adotarão: a saturação da c o r(l2). Vinet, através desta fórmula, chega a criar, às vezes, um certa artificialidade cromática o que é, aliás, o seu aspecto mais interessante. Já Grimm e seus discípulos, apesar da desobediência aos cânones mais rígidos do ensino acadêmico e a ida para o ar livre, permanecem submeti­ dos à estrutura linear e ao espaço ilusionista.

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Angyone Costa usa um termo interessante para se referir aos pintores brasi­ leiros de passagem do século XIX para o XX: "A In q u ieta çã o d a s A b e lh a s' (13). Desfeita a crença mais dogmática na academia restava a perplexidade. Parreiras, apesar da desi­ gualdade do seu trabalho, vai ganhar, já tardiamente, m aior liberdade. Dimensões mais amplas para as paisagens, a marca das pinceladas, matéria mais espessa são algumas ca­ racterísticas deste processo. De um modo geral, neste período, há um esforço no sentido da predominância da cor: ora é Visconti à maneira impressionista, ora João Thimóteo da Costa à maneira pontilhista. Empréstimos que procuram escam otear a vinculação estru­ tural ao delineamento das formas e à representação. Atuam no limite das possibilidades da renovação interna da academia que, em última análise, se modifica para permanecer igual. Isto não significa que não tenha havido em algum grau o exercício do sensí­ vel durante a longa fase de predomínio acadêmico. É verdade que foi uma presença mo­ desta, mas não inexistente. Basta lembrarmos, por exemplo, a inteligência pictórica de A l­ meida Jr. no “Descanso do M odelo" ou a feliz relação entre carnaval e transgressão de câ­ nones formais nas telas "O dia seguinte" de Arthur Thim óteo da Costa e "Baile à fantasia"

Brigue, encouraçado e chalupas na baía do Rio de Janeiro"


0 Centro na Margem: algumas anotações sobre a cor na arte brasileira de Rodolfo Chambelland (14). E preciso atentarmos para esta lógica de cultura periférica da academia brasileira que não vive como a européia o confronto ideológico direto com a arte moderna. Aqui sobrevivemos de pequenas transformações, desvios incapazes de pro­ duzir algo relevante na relação com o processo mais amplo da História da Arte, mas im­ portantes para compreendermos o exercício do sensível no nosso âmbito cultural. O m aior exemplo de uma emergência de nova qualidade no interior desta dinâmica é Castagneto. Também sua obra não possui grande uniformidade. Divide-se entre trabalhos convencionais, encomendas de ocasião e aquelas mais "pessoais", como as rea­ lizadas sobre tampas de charuto (15). Algo se passa na sua trajetória que não pode ser ex­ plicado por sua convivência no Grupo Grimm e que se prende apenas ao desafio da práti­ ca pictórica. A ida para o ar livre o coloca diante do problema da cor tropical. Castagneto percebe a impossibilidade da cor naturalista diante de uma luz que divide a sombra da luz sem qualquer n u an ce. Sua solução será a de operar por equivalência, estabelecendo uma relação com a natureza que preserva a autonomia da pintura. Seus trabalhos mais significativos vão explorar o contraste entre a figura e um fundo amplo e luminoso. Mas, a impregnação sensível da pincelada que constrói a tela como um todo cria uma dinâmica interna e uma relação que tende a dissolver a ilusão de profundidade. A pessoalidade da cor e da execução aproximam Castagneto da tradição romântica de uma comunicação emo­ tiva com a realidade. Sem aplicar na sua percepção da natureza, a lei dos contrastes simul­ tâneos, ele estaria distante da sensação impressionista e mais próximo, ao que poderia­ mos chamar, de uma sensibilidade moderna. O M odernism o tem como objetivo uma estratégia de identidade nacional onde as cores possuem uma função de distinção cultural. Este projeto aborda a questão cromática segundo uma concepção da cor em que esta articula historicamente e cultural­ mente um modo de percepção que a faz existir como signo cultural. As cores das habita­ ções e das decorações populares e coloniais seriam para os modernistas expressão deste vínculo de uma tradição cromática comprometida com a visualidade brasileira. E sobre esta posição que Tarsila busca constituir o seu trabalho. Para Tarsila as cores industriais de Léger são o modelo do moderno a serem transformadas através de uma ótica contra-aculturativa. Seu objetivo não é o de repre­ sentar o Brasil mas a apreensão de um novo "clima" marcado pela convivência entre a in­ dustrialização recente e a sociedade rural, presente e passado que são articulados por um olhar ingênuo e afetivo. De fato, a função específica da cor é, na verdade, muito limitada neste sistema, constituindo-se mesmo no seu elemento formal mais convencional. A pon­ tuação azul e rosa não é suficiente para eliminar uma concepção cromática ainda muito vinculada à representação. Fica evidente a pouca eficácia da manobra contra-aculturativa na diferença da concepção cromática mais autônoma em Léger para uma mais retórica de Tarsila. Na fase antropofágica a artista associou formas mais orgânicas ao uso das

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Tarsila do Amaral "Floresta" 1925

complementares em certos quadros. Em trabalhos como "Floresta" e "Urutu" há um afas­ tamento do aspecto mais descritivo Pau-brasil « « A pintura ganha m aior subjetividade na medida em que a arbitrariedade das cores lhes dá um valor de signo. No entanto, todo este esforço de superação no interior de uma cultura provinciana tornou, por isto mesmo, sua o ra irregular e fragmentada. Tarsila não consegue constituir um sistema moderno coerente, mas em alguns momentos, chega a apontar esta possibilidade.

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0 Centro na Margem: algumas anotações sobre a cor na arte brasileira Ao reencontrar a paisagem da sua infância, após vários anos de formação eu­ ropéia, Guignard assinala em declarações, o seu fascínio pela cor da paisagem brasileira Seu atelier ao ar livre no Jardim Botânico do Rio é um testemunho deste período. Nesta fase há uma transição de uma pintura de matéria densa e tons rebaixados para uma outra em que vai privilegiar crescentemente e, se tornará dominante, o uso do branco e da tinta mais diluída para conseguir a luminosidade perseguida. No entanto, esta solução por ter, ainda, implícita uma preocupação realista, não soluciona a questão que só será superada quando as harmonias naturais deixarem de ser perseguidas por elas mesmas e se torna­ rem pretexto para o exercício da subjetividade. Este outro partido irá se acentuando cres­ centemente a partir da década de 1950 onde, nas vistas de Ouro Preto, a compreensão líri­ ca introduz na paisagem um transbordamento do sujeito na natureza. A luminosidade deixa de ter qualquer referência natural, trata-se de uma relação cromática que produz através de sobreposições uma cor que é um excesso, um somatório poético que ganha um tempo interior e emana luz. Goeldi, à semelhança de Guignard, volta para o Brasil já adulto após longa formação européia. A o regressar seu sentimento é o de estranhamento, o de "... não reco­ nhecim ento da paisagem brasileira com o se nunca estivesse estado a q u i " n8>. Não se trata

apenas de um desconhecimento que o situa quase como um estrangeiro, ou segundo sua própria expressão "... sentia-m e , mais ou m enos com o Gauguin na I lh a " (19^. Nesta afir­ mação podemos compreender todo o estranhamento que sentiu diante daquela cultura he­ terogênea e um tanto primitiva. A convivência que passa a buscar no Brasil não será junto aos aspectos de uma sociedade desejosa em assimilar a fisionomia europeizante do progresso. Goeldi busca a alteridade, a dimensão brasileira ainda não envolvida com uma ideologia por ele identi­ ficada como opressora. Estes valores mais autênticos, ele irá buscar nas ruas dos subúr­ bios ou na simplicidade artesanal da vida dos pescadores. Ao chegar ao Brasil, Goeldi é um desenhista influenciado pela visão fantás­ tica de Kubin. Esta, aliás, será uma referência permanente para a sua obra. Mas à medida que cresce sua intimidade com a realidade brasileira, diminui a presença de Kubin. Possi­ velmente, um primeiro indício disto já pode ser detectado quando Goeldi começa a fazer xilogravura, o que o aproxima das obras de Gauguin e Munch. Mas todas estas são pre­ senças que serão reelaboradas na constituição de uma poética extremamente pessoal. Este processo não obedecerá, com o em Tarsila, a um movimento contra-aculturativo em bus­ ca de uma síntese (a famosa síntese antropofágica). O artista, ao chegar ao Brasil, já vinha comprometido com o Expressionismo. Tratava-se, portanto, de um questionamento re­ novador no interior desta tradição européia utilizando um "dispositivo de descentramento", ou seja, situar as questões trazidas do centro a partir de um ponto de vista da marpara os expressionistas alemães, por exemplo, o primitivo era um dado indireto, uma relação que se estabelecia por meio de uma sintaxe elaborada por Gauguin. Já Goeldi re-

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vive o processo diretamente da sua origem. Estar no Brasil (na ilha) significa, assim como o Taiti para Gauguin, tentar compreender a partir da margem e fora dos mecanismos de recalque do centro a potencialidade humana na sua dimensão mais universal. O Expressionismo se caracteriza por um enfrentamento direto do sujeito com a realidade. Ele se distancia do caráter extremamente sensorial do Impressionismo e exige um compromisso total do artista com a realidade através da ação (“^). A trajetória de Goeldi no Brasil está marcada por uma atitude que vai da subjetivação da realidade (fase inicial onde, inclusive, vários trabalhos possuem título em alemão), até uma outra, onde se abre aos estímulos do mundo natural (a partir, principalmente, da temática dos pescadores). Alteram-se, inclusive, neste processo tanto a técnica da gravura quanto a concepção de es­ paço e ambos vão se caracterizar por uma crescente economia de recursos. Inicialmente as matrizes possuem um grande número de incisões que se entrecruzam definindo em al­ guns locais um foco de luz, uma espécie de transcrição da sua técnica de desenho de nan­ quim com bico-de-pena. Posteriormente a gravura é concebida em manchas de preto que a estruturam, o espaço se torna menos cenográfico com o abandono gradativo da pers­ pectiva expressiva e uma identificação com a superfície planar Oswaldo Goeldi "Pescador Perdido" s.d.


0 Centro na Margem, algumas anotaçoss sobre a cor na arte brasileira Os mistérios da noite, Goeldi traz na sua bagagem expressionista. Como pou­ cos, talvez apenas com o M unch, ele saberá extrair dos recursos e das marcas naturais da madeira a possibilidade de expressar a sombra, a luz e os meios-tons. Mas Goeldi é con­ quistado pela descoberta dos efeitos do sol como uma revelação dos ritmos profundos da natureza. O dispositivo de descentramento" ganha aqui uma significação precisa na me­ dida em que incorpora ao universo soturno expressionista a luminosidade do sol de qua­ renta graus do meio-dia carioca. Sob este sol, o branco é de uma tal intensidade que provoca por contraste simultâneo o seu negativo. Esta inversão ótica impõe à gravura de Goeldi procedimentos técnicos pouco ortodoxos. Ele trabalha privilegiando as massas pretas que surgem das li­ nhas produzidas pelo sulco e não pelo relevo da madeira. Todo o espectro cromático fica sintetizado nas várias possibilidades existentes entre o branco e o preto e, em decorrência, do cinza. Uma solução que situa Goeldi dentro da coerência de uma tradição que remonta a Goethe(21*. Num segundo momento de investigação, introduz a cor em sua gravura. A cor junto às massas pretas constrói a superfície que acentua sua planaridade. Goeldi abo­ mina o excesso de cor porque perde o que para ele é fundamental: a cor como elemento expressivo e não com o uma espécie de estamparia. Mais uma vez há uma coerência entre as transformações form ais e a renovação técnica. Apesar das cores, o artista utiliza uma só m atriz{22). Isto revela seu grande sentido colorista pois permite que consiga retirar to­ do valor de uma cor crom ática revelado na relação com a cor acromática. Trabalhando numa mesma matriz o artista pode dispor melhor estas relações que lhe permitem, inclu­ sive, maior controle sobre o branco, uma das preocupações de Goeldi nesta época. Além disso, ele utiliza, algumas vezes, o artifício de colocar sob o papel da matriz papéis em tons neutros para possibilitar os meios-tons, que são também conseguidos pela sua impressão extremamente artesanal, onde a pressão da mão e de uma colher provocam gradações nu­ ma mesma superfície (23). O trabalho visual mais importante sobre a pintura clássica é, curiosamente, uma gravura, a de M arcantonio Raimondi baseada no Julgamento de Páris de Rafael. Há neste episódio uma lógica que se pode atribuir ao poder decisivo da estrutura linear na pintura renascentista e, mesmo modernamente, as técnicas de reprodução da imagem (grá­ fica, fotográfica, cinema, televisão) mostram que o progresso técnico se faz, inicialmente, através do preto e do b ra n co (24). A obra de Goeldi teve em nosso âmbito um papel seme­ lhante, o de através do preto e do branco tratados substantivamente, isto é, enquanto su­ perfícies que através do contraste e do seu valor expressivo estruturam autonomamente a gravura, liberar a cor de qualquer compromisso naturalista. Este procedimento se des­ dobra com a inclusão das cores que estabelecem definitivamente a compreensão das su­ perfícies cromáticas com o signos. Existe nesta proposta de Goeldi, pela economia no uso da cor e na ênfase

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José Pancetti "Marinha, Itanhaém" 1945

crescente da planaridade, uma nitidez na delimitação dos objetos. Operando por contras­ tes, as formas tendem a se evidenciar. Seria uma possibilidade diversa daquela adotada Por Guignard, a das transparências das cores e por uma ordenação que se caracteriza pela ... dissolução dos objetos através da desproporcionalidade de sua situação no espaço ^25*. O olhar de Goeldi é o da ação que se identifica através do confronto com a natureza, enquan­ to o de Guignard se encontra na medida em que através da afetividade se perde na natureza. Pancetti, Milton Dacosta e Iberê C am argo(26) a partir das décadas de 1940 e 1950 irão prosseguir na investigação da autonomia da cor. Cedo percebem a necessidade de romper com o sentido retórico e ideológico hegemônico no Modernismo, onde tanto


0 Centro na Margem. algumas anotações sobre a cor na arte brasileira Ckk “1c1í quanto Guignard se destacavam como alternativa. Partindo da paisagem, Pancetti, Iberê e Dacosta vão buscar a pintura e não mais "um Brasil". As cores acentuam seu caráter subjetivo. As m arinhas de Panoetti, por exemplo, não são um jogo eufórico de luz, mas considerações intimistas marcadas pela sobriedade das cores e simplificação do espa­ ço. Pancetti, Iberê e Dacosta encontram na paisagem uma possibilidade de expressão e de análise metódica que os levaria também ao estudo da natureza morta. Neste exercício pic­ tórico surgem soluções onde o claro e o escuro são tomados como cadências que estrutu­ ram c constroem. Eles compreendem que quando a sombra se reduz a um mero compo­ nente do preenchimento da superfície e da relação cromática, todas as outras cores se tor­ nam imediatamente cores puras'27^. Antes de viajarem para a Europa e através da convi­ vência seletiva com o M odernism o e vagos ecos europeus, estes artistas conseguem recons­ tituir em seus quadros ensinamentos fundamentais da pintura moderna. Neste período, em que se conclui a obra de Pancetti, Iberê e Dacosta lançam as bases de seus repertórios cromáticos que se desdobrariam nos "Carretéis" e nos "Castelos". Q uando no século XIX ocorre o deslocamento que transfere o centro da pin­ tura para a margem, para a cor, a pintura transforma os seres, objetos e paisagem em man­ chas sem individualidade demonstrando uma conotação panteísta. Meyer Schapiro numa análise sobre Van Gogh diz: "Há, no "C am po de Tri­ go", qualquer coisa d o estado de espírito da ",N o ite Estrelada ". N o céu so m b rio e palpi­ tante do "C am po de T rig o ", o tra b a lh o do p in ce l que parece tomado p o r uma tempestade m otriz, e as m anchas verdes que se arredondam sobre o horizonte lem bram o m ovim ento das nebulosas e das estrelas d o quadro noturno. A p ó s haver visto, neste últim o, o céu trans­ figurado que nos prende, após haver sentido o êxtase panteísta que preenche o imenso es­ paço azulado de toda a efervescência de uma emoção obscura e irresistível, nós reconhe­ cemos, sem estorço, n o "C a m p o de Trigo os traços de uma aspiração análoga. O céu sem tim nos aparece, então, c o m o um a imagem d o grande todo e parece responder a um de­ sejo histérico de ser e n g o lid o e de perder o seu eu na imensidão

. Este mesmo pan­

teísmo podemos detectar em Monet, Cézanne e Seurat na capacidade de carregar todo o espaço de uma imensa energia luminosa. Volpi desde suas primeiras paisagens persegue a luz. Já na década de 1930 suas marinhas se caracterizam por uma pincelada fluida, de pouca matéria, que imprime movimento e luminosidade. As cores, inicialmente, se dão poi equivalência mas come­ çam a se alterar na medida em que ao plano amplo da paisagem sucede um fechamento sobre as fachadas dos casarios. A cor ganha um referencial que poderia ser considerado cultural no mesmo sentido atribuído anteriormente às cores das habitações populares e coloniais de Tarsila. M as se há algum objeto de eleição para Volpi, este é o homem simples e anônimo e não o "hom em brasileiro". As cores de Volpi transitam pelo universo das co­ res caipiras mas não se detêm nele. Suas cores de fachadas ou de elementos das festas juni­ nas possuem na sua riqueza todas as possibilidades e são a manifestação de uma solida-

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o Centro na Margem: algumas anotações sobre a cor na arte brasileira riedade e felicidade que ele identifica com a impessoalidade. Na form ação do seu sistema pictórico, as fachadas vão perdendo a separa­ ção entre figura e fundo e ganham autonomia cromática. Cria-se uma malha ortogonal que se organiza estruturalmente através das cores que vão assumir um papel cada vez mais determinante. Volpi consegue uma gradação extremamente ampla de tonalidades e inten­ sidades de cor, variando desde a utilização de cores análogas ao contraste simultâneo, sem excluir o preto e o branco. Reunindo estes diversos procedimentos através de combinações sistêmicas, ele amplia infinitamente as possibilidades de relação entre as cores. O pincel marca a superfície por um gesto metódico que cria no interior da mesma cor diferentes ma­ tizes, produzindo um efeito de transparência. Dá-se uma unidade entre o gesto sensível do artista e a lógica precisa das cores. As telas não buscam mais representar a luz e se tor­ nam na sua imanência, luz. Neste sentido, Volpi seria o grande panteísta da arte brasileira. O Neoconcretismo se insere problematicamente na tradição construtiva pela sua intenção de sensibilizar a geometria (29h A cor passa a ter uma função expressiva e não mais puramente perceptiva. Abolindo os suportes tradicionais, o trabalho neoconcreto se coloca no espaço real. A cor se integra à forma irradiando-a no espaço e formando um campo onde se estabelece uma inter-relação de vivências entre o espectador e a obra. Apesar de situada no interior de uma corrente universalista, a produção neoconcreta, por suas pe­ culiaridades, possui vínculos culturais mais imediatos que repercutem em sua gênese es­ tabelecendo interações com o espaço físico e a luz do Rio de Janeiro. São obras como os "Relevos Espaciais" de Hélio Oiticica que se expandem no espaço ou o "Cubo-Cor" de Aloisio Carvão que pelo sentido de gravidade da form a consegue através do alaranjado a sen­ sação ambígua de concentração e emissão da luz. Nestes trabalhos, o conflito entre natu­ reza e cultura que o quadro de Taunay "M orro de Santo Antônio registrava encontra-se inteiramente superado pois não existe mais separação entre o espaço da arte e o espaço real.

Notas ( 1 ) Isaac N ew ton, Traite d'optique, reedição G authier-V illars, Paris, 1955. Jo h a n n W olfgan g von Goethe, Traité des couleurs, Paris, Triades. M a n lio B rusan tin , Histoire des couleurs, Flam m arion, 1986. ( 2 ) M ichel Eugène Chevreul, De la loi du contraste simultané..., reedição, Laget, Paris, 1969. ( 3 ) C o n ferir M a n lio Brusatin, Histoire des couleurs, Flammarion, 1986. ( 4 ) C ita d o p o r Jean Clay in M odem Art 1890-1918, London, 1978. ( 5 ) S o b re estas questões G iulio C arlo A rgan, El Arte Modemo, vol. I, Valência, Fernando T orres Editor, 1975.

A lfre d o V o lp i "C a sa rio " déc. 50

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( 6 ) C o n ferir M erleau-P on ty in A dúvida d e Cèzatme. coleção O s Pensadores, Abril Cultu­ ral, S ã o Paulo, 1980, p.118. "Vemos em profundidade, o aveludado, a maciez, a dura dos objetos — Cézanne dizia m esmo: seu odor. Se o pintor quer exprimir o mundo é precise qu e a com posição das cores traga em si este Todo indivisível"... ( 7 ) G iulio, C a rio Argan, idem. ( 8 ) N oa-N oa. Tahiti de G auguin, N ich o las Wadley, Londres, 1985.

N oa-N oa, Pierre Petit, edição d o M an uscrito, Paris, 1988. ( 9 ) Edouard M anet "Lettres de Jeunesse" 1848-1849. Voyage à Rio, Louis Rouart et Fils. Paris. (10) É preciso se ter em mente que os pintores impressionistas e mesmo Seurat e Cézanne nunca tiveram com o cor local uma lum inosidade com o a brasileira. Ésabido pelo relato de VoIIaní q u e C ézanne dava preferência a o s dias cinzas. Já Seurat buscou soluções cromáticas vi­ san do m ais os m eios-tons do q u e prop riam ente cores puras e intensas. Os artistas euro­ peus estavam confrontados com o p rob lem a de representar as dificuldades dos neutros frio s e quentes que aparecem esp ecialm en te nas som bras. (11) A cervo do M useu N acional de Belas A rtes. (12) U tilizam os aqui a distinção da c o r nos três sistemas criados p or Munsell: Tonalidade — característica distinta de um a cor que a capacita a se classificar no espectro. Lum inosidade — a relação da c o r com a luz e a som bra, ou com o branco e o preto. Satu ração ou intensidade — o grau de pureza de uma cor, medida na sua liberdade de m istura com o branco. (13) Angyone Costa. A Inquietação das A belhas, Pimenta de Mello & Cia., Rio de Janeiro, 1927. (14) "Descanso do Modelo", 1882, acerv o M N BA . "O dia seguinte", 1913, C oleção Luiz B u arque de H ollanda. "Baile à fantasia", 1913, acervo M N B A . (15) E im portante lem brar que m uitas telas de C orot e do grupo de Barbizon, em pequeno fo rm ato e com um tratam ento b astan te livre, foram realizadas com o estudos à espera de encom endas que possivelm ente lhes am pliaria as dim ensões e o convencionalismo. (16) "Floresta", 1925, acervo M A C -U SP . "Urutu", 1928, coleção G ilberto C h ateau b rian d . (17) "Quando chega ao Brasil, em 1929, verifica Cuignard, conform e dirá numa entrevista

vinte anos mais tarde, que o que estudara na Europa nada tinha a ver com as coresepaisagens brasileiras. Leva a efeito, então, um a revisão com pleta em sua técnica e em seus conceitos, adaptando-se às circunstâncias. Terá tido em verdade, ao chegar, dois cho­ ques: um com o acanhado m eio artístico d o Rio de Janeiro de então; o outro, tnais pro­ fundo, com a própria natureza d o país". (José Roberto Teixeira Ljeite, Pintura Moderna Brasileira p. 3 4) citado in A M odernidade em Cuignard, coordenação Carlos Zilio, PUCRIO, s.d. (18) O sw aldo Goeldi, coord. C arlos Z ilio, P U C -R IO , s.d., p. 111. (19) Entrevista a Ana Letycia publicada originalmente na revista Paratodos transcrita inOsw aldo Goeldi, coord. Carlos Zilio, PUC-RIO, s.d., p. 115. (20) G iu lio C a rio Argan, idem. (21) S o b re a técnica de Goeldi conferir o artig o de M ario Barata de 21 de outubro de 1956 no Diário de Notícias, Rio, transcrito in O sw aldo Goeldi, P U C -R IO ; síntese dos proce­ dim entos técnicos da gravura de G oeld i, p. 6 3 in O swaldo G oeldi idem; A obra gráfica de Goeldi: o esboço de uma cronologia, N oem i Silva Ribeiro, Revista GÁVEA n° 8, PUCR IO , dez. 1990. (22) Ver a rspeito da cor e do problema de estamparia a entrevista dada a Ferreira Gullar trans­

crita em O swaldo Goeldi, PUC-RIO. (23) É im portante ressaltar que as tiragens póstu m as de Goeldi, sobretu d o as policromáti­ cas, fogem inteiram ente à fidedignidade da obra do artista. N ão só p or um exagero de cores que Goeldi abom inava com o, aind a, pela ausência expressiva do processo artesa" al ^ ue *az 'a com 9 ue cada cópia de G oeldi fosse praticam ente um original. (24) Conferir Manlio Brusatin, idem.


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Centro na Margem: algumas anotações sobre a cor na arte brasileira (25) R odrigo N a v e s, O o lh a r d ifu s o in Revista G Á V E A nü 3, PU C -R IO , junho 1986. (26) Iberê C a m a rg o foi aluno de G uignard. (27) C o m o u tro propósito, m as com igual validade, esta análise é desenvolvida por Clement G reen b erg in

C o lla g e " in A rt a n d C u ltu re, Beacon Press, Boston, 1965.

(28) M ey er Sch ap iro , "Un ta b le a u d e Van G o g h " in Style, artiste et s o c ié té , ed. Gallimard, Paris, 1982. (29) A este respeito R onaldo Brito em N e o c o n c r e tis m o , vértice e ruptura d o p r o je to constru­ tiv o b r a s ile ir o , FU N A RTE, R io de Janeiro, 1985.

C A R L O S Z I L I O é a rtista p lá stic o . D o u to r em H istória da A rte pela Universidade

sor de M estrado em H istória S o c ia l da C u ltu ra e d o C u r s o d e E sp ec.ah zaçao em

de Paris V III, profesH istória da A rte e da

Arquitetura no Brasil, D ep a rta m e n to de H istoria P U C -K IO . 53


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( 6 ) C o n ferir M erleau-P on ty in A dúvida d e Cèzatme. coleção O s Pensadores, Abril Cultu­ ral, S ã o Paulo, 1980, p.118. "Vemos em profundidade, o aveludado, a maciez, a dura dos objetos — Cézanne dizia m esmo: seu odor. Se o pintor quer exprimir o mundo é precise qu e a com posição das cores traga em si este Todo indivisível"... ( 7 ) G iulio, C a rio Argan, idem. ( 8 ) N oa-N oa. Tahiti de G auguin, N ich o las Wadley, Londres, 1985.

N oa-N oa, Pierre Petit, edição d o M an uscrito, Paris, 1988. ( 9 ) Edouard M anet "Lettres de Jeunesse" 1848-1849. Voyage à Rio, Louis Rouart et Fils. Paris. (10) É preciso se ter em mente que os pintores impressionistas e mesmo Seurat e Cézanne nunca tiveram com o cor local uma lum inosidade com o a brasileira. Ésabido pelo relato de VoIIaní q u e C ézanne dava preferência a o s dias cinzas. Já Seurat buscou soluções cromáticas vi­ san do m ais os m eios-tons do q u e prop riam ente cores puras e intensas. Os artistas euro­ peus estavam confrontados com o p rob lem a de representar as dificuldades dos neutros frio s e quentes que aparecem esp ecialm en te nas som bras. (11) A cervo do M useu N acional de Belas A rtes. (12) U tilizam os aqui a distinção da c o r nos três sistemas criados p or Munsell: Tonalidade — característica distinta de um a cor que a capacita a se classificar no espectro. Lum inosidade — a relação da c o r com a luz e a som bra, ou com o branco e o preto. Satu ração ou intensidade — o grau de pureza de uma cor, medida na sua liberdade de m istura com o branco. (13) Angyone Costa. A Inquietação das A belhas, Pimenta de Mello & Cia., Rio de Janeiro, 1927. (14) "Descanso do Modelo", 1882, acerv o M N BA . "O dia seguinte", 1913, C oleção Luiz B u arque de H ollanda. "Baile à fantasia", 1913, acervo M N B A . (15) E im portante lem brar que m uitas telas de C orot e do grupo de Barbizon, em pequeno fo rm ato e com um tratam ento b astan te livre, foram realizadas com o estudos à espera de encom endas que possivelm ente lhes am pliaria as dim ensões e o convencionalismo. (16) "Floresta", 1925, acervo M A C -U SP . "Urutu", 1928, coleção G ilberto C h ateau b rian d . (17) "Quando chega ao Brasil, em 1929, verifica Cuignard, conform e dirá numa entrevista

vinte anos mais tarde, que o que estudara na Europa nada tinha a ver com as coresepaisagens brasileiras. Leva a efeito, então, um a revisão com pleta em sua técnica e em seus conceitos, adaptando-se às circunstâncias. Terá tido em verdade, ao chegar, dois cho­ ques: um com o acanhado m eio artístico d o Rio de Janeiro de então; o outro, tnais pro­ fundo, com a própria natureza d o país". (José Roberto Teixeira Ljeite, Pintura Moderna Brasileira p. 3 4) citado in A M odernidade em Cuignard, coordenação Carlos Zilio, PUCRIO, s.d. (18) O sw aldo Goeldi, coord. C arlos Z ilio, P U C -R IO , s.d., p. 111. (19) Entrevista a Ana Letycia publicada originalmente na revista Paratodos transcrita inOsw aldo Goeldi, coord. Carlos Zilio, PUC-RIO, s.d., p. 115. (20) G iu lio C a rio Argan, idem. (21) S o b re a técnica de Goeldi conferir o artig o de M ario Barata de 21 de outubro de 1956 no Diário de Notícias, Rio, transcrito in O sw aldo Goeldi, P U C -R IO ; síntese dos proce­ dim entos técnicos da gravura de G oeld i, p. 6 3 in O swaldo G oeldi idem; A obra gráfica de Goeldi: o esboço de uma cronologia, N oem i Silva Ribeiro, Revista GÁVEA n° 8, PUCR IO , dez. 1990. (22) Ver a rspeito da cor e do problema de estamparia a entrevista dada a Ferreira Gullar trans­

crita em O swaldo Goeldi, PUC-RIO. (23) É im portante ressaltar que as tiragens póstu m as de Goeldi, sobretu d o as policromáti­ cas, fogem inteiram ente à fidedignidade da obra do artista. N ão só p or um exagero de cores que Goeldi abom inava com o, aind a, pela ausência expressiva do processo artesa" al ^ ue *az 'a com 9 ue cada cópia de G oeldi fosse praticam ente um original. (24) Conferir Manlio Brusatin, idem.


0

Centro na Margem: algumas anotações sobre a cor na arte brasileira (25) R odrigo N a v e s, O o lh a r d ifu s o in Revista G Á V E A nü 3, PU C -R IO , junho 1986. (26) Iberê C a m a rg o foi aluno de G uignard. (27) C o m o u tro propósito, m as com igual validade, esta análise é desenvolvida por Clement G reen b erg in

C o lla g e " in A rt a n d C u ltu re, Beacon Press, Boston, 1965.

(28) M ey er Sch ap iro , "Un ta b le a u d e Van G o g h " in Style, artiste et s o c ié té , ed. Gallimard, Paris, 1982. (29) A este respeito R onaldo Brito em N e o c o n c r e tis m o , vértice e ruptura d o p r o je to constru­ tiv o b r a s ile ir o , FU N A RTE, R io de Janeiro, 1985.

C A R L O S Z I L I O é a rtista p lá stic o . D o u to r em H istória da A rte pela Universidade

sor de M estrado em H istória S o c ia l da C u ltu ra e d o C u r s o d e E sp ec.ah zaçao em

de Paris V III, profesH istória da A rte e da

Arquitetura no Brasil, D ep a rta m e n to de H istoria P U C -K IO . 53


B r*' W+

Í


ANNA M A R IA F A U S T O M O N T E IR O DE C A RV A LH O

A M adeira como Arte e Fato (considerações sobre a escultura religiosa do Rio de Janeiro Colonial — em Mestre Valentim, um estudo de caso)

0 Ofício de E scultor/Entalhador

As igrejas do Rio de Janeiro no período colonial (1565-1815) pouco conhe­ ceram do primeiro surto 'liberal' das artes plásticas portuguesas, que no início do Manei­ rismo emancipou os pintores a óleo da rígida estrutura artesanal mesteiral (Serrão, 1983:10) e se manifestou notadamente nos imensos retábulos de pintura, tratados ''ao R om ano"^, em templos m etropolitanos. E ignorou os retábulos renascentistas em pedra, impulsiona­ dos em Portugal pela arte de escultura de mestres de raiz francesa^. Seguindo mais a tra­ dição escultórica do lignu (lenha) — introduzida na Península Ibérica no final do século XV pelo gótico flam ejante da escola flamenga(3) — predominou no interior dos templos coloniais cariocas a escultura em madeira (material considerado menos 'nobre' segundo os cânones do 'Belo' renascentista), abrangendo tipologias artísticas distintas, que vão do Maneirismo aos alvores do neoclassicismo do século XIX. Na M etrópole, o Maneirismo correspondeu sobretudo ao período da Do­ minação Espanhola (1580-1640), época do triunfo da ideologia contra-reformista sob a égide do absolutismo estatal da dinastia filipina e "assum iu-se co m o a resposta possível em tempo d e crise, de refluxo d a a v en tu ra expansion ist a, d e carestia interna, de vicissitudes sóciopolíticas etc." (Serrão, 1983:42). A 'nobreza' da pintura ia por conta de que esta produção fora considerada como arte liberal nos principais centros europeus a partir do Renascimento, (a Espanha era um deles) porque permitia a sensibilidade do artista desenvolver-se mais solta e menos contam inada de matéria e de utilitarismo (Panofsky, 1983:102). Como ar­ tista 'livre', burguês, o pintor a óleo português isentava-se dos tributos e obrigações ine­ rentes à Casa dos Vinte e Q uatro (Grêmio Geral dos Ofícios Mecânicos controlador dos fluxos de produção), podia ser o dono de seu atelier e de sua obra. Mas, na verdade, con­ tinuava a transitar sua produção, como as demais artes plasticas, entre os grandes privile­ giados — a nobreza, a alta burguesia e o clero. Apesar da legitimidade da escultura em madeira como expressão plástica da arte portuguesa (e brasileira) por excelência durante todo o período colonial, cuja po­ tencialidade visual a pintura jamais logrou alcançar, e considerando-se o barroco como Altar de Nossa Senhora do Am or Divino — Capela do Noviciado Igreja da Ordem 3? do Carmo, RJ 1772-1797

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sua época áurea na M etrópole, e o Barroco-Rococó na C olô n ia, mesmo assim o ofíao de entalhador (construtor e escultor de retábulos) e im aginário (escultor de imagens ou san­ teiro) indefinia-se na ambiguidade de artista-artesão. Em bora formassem classes à parte e pudessem constituir 1oja (oficina), estes produtores estavam sujeitos à Casa dos Vinte e Q uatro e aos seus regimentos. Com o, por exemplo, os de 1549, 1572 e 1768, de Lisboa, que tratavam especificamente da form ação e do produto do entalhador, pressupondo co­ nhecimentos arquitetônicos no risco e na construção d os retábulos, e ainda capacidade de entalhar padrões decorativos previamente estabelecidos

mas que o agrupava, junta­

mente com o imaginário, na Confraria dos Carpinteiros de M arcenaria, sob a Bandeira de São José (Smith, 1962:11-13). Mesmo em meados do século XVIII, com a força crescente do gosto profa­ no e cortesão, escultores notáveis do período com o M ach ad o de C astro (que lidava inclu­ sive com o metal e foi o executor da Estátua Equestre de D. José I, encomendada durante a reforma 'iluminista' pombalina e considerada o primeiro monumento público de Lisboa) e Silvestre Faria Lobo (mestre-entalhador que dirigiu a sala do trono do Palácio de Queluz) só conheceram a distinção individualmente, agraciados o prim eiro com a Ordem de Cristo e o segundo com a de Santiago. Permaneceram am bos sob a tutela do Grêmio Geral dos Ofícios Mecânicos, extinto em Lisboa em 1834 (Sm ith, 1962:11). No Brasil, as categorias mesteirais não eram suficientemente claras e em seus regimentos (quando os havia), a submissão tutelar era bem m enos rigorosa do que a por­ tuguesa. Caracterizavam-se pela ‘flu idez na esp ecializa ção", que no século XVIII passa aoentuadamente a contar com: (...) a presença numerosíssima e acom odada p o r via d e certos estratagemas formais (como seja o pagamento p o r jornais e tarefas, à maneira d o obreiro comum) de mes­ tiços artesãos. A vocação e destreza artística passam a constituir uma inspirada pos­ sibilidade de movimentação ascensorial na rígida estrutura escravagista. Por essa via, forma se um novo grupo, que não é cativo nem senhor, cuja tez é ignorada e cuja presença é indispensável" (machado, 1983: pp. 108-109). A indefinição no ofício da escultura em madeira acentuava-se, muitas vezes a rangendo a marcenaria e a carpintaria, como provam as designações colhidas em Catá­ logos, Dietários e Livros de algumas O rdens do Rio de Janeiro colonial. Faber lignarius e b o a s q u alid ad es d e carpinteiro" diz a Anua da Com panhia de Jesus referindo-se ao por­ tuguês irmão Jorge Esteves, que trabalhou no Colégio do R io entre 1574-1639 (Bras. S,13v e Bras. 5 ,llv ) (U.te,1940:VI:24), e que teria sido o provável entalhador dos três altares maneinstas que pertenceram à igi eja quinhentista do referido educandário (Bazin,1984:282); "escultor ( ...) e g e r a l inteligênc ia p a r a to d a s as obras", retrata em 1681 a B iografia do entalhador e imaginário português 0 ‘rrn^ ° beneditino Frei Domingos da Conceição, autor dentre outras, do primitivo risco, de da talha da capela-mor, do frontispício do arco-cruzeiro 56


A Madeira como Arte e Fato teriormente modificados) da Igreja do Mosteiro de São Bento além de diversas esculturas de santos, entre 1669-1717 (Nigra,1950:123-139); "en talhador", “escultor", cita a Escritura de Obrigação e Termos de Compromisso da O. 3? de São Francisco da Penitência*4^, a res­ peito da contratação do mestre português Francisco Xavier de Brito, autor dos altares late­ rais da igreja entre 1736-1739. O u como provam os autos de execução datados de 1759-1761, do famoso Litígio en tre M arcen eiros e E n talhadores d o Rio d e Janeiro", no qual depôs como entalhador Luís da Fonseca Rosa, que veio a ser o mestre de Mestre Valentim (San­ tos, 1942:295-317). Com o agravo de que as profissões ditas "mecânicas" no século XVIII eram mormente exercidas por mestiços, que na condição de "infames p ela raça" não po­ diam assinar contratos e abrir loja, ou seja "ser patrões" (Bazin,1984:46). Nesse contexto, Mestre Valentim, "filho d e um fidalgote português, contracta d o r d e diam antes, e d e u m a criou la natural d o Brasil" (Porto-alegre, 1856:370) inseríase no ambíguo estatuto de artista/artesão: com o mulato, pertencia à Irmandade dos Par­ dos de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito (onde está sepultado) (Azevedo, 1969:369; Batista, 1940:281)(5), mas possuía loja aberta (no local onde também morava) estabelecida na Rua do Sabão, no quarteirão compreendido entre a rua dos Ourives e a Travessa do Bom Jesus (um dos centros de interesses comerciais da cidade); como escultor, inventor de 'risco', "a elle corriam tod os os artistas d o Rio de Janeiro, m orm en te os ourives e lavrantes para o b terem d esen h o s e m oldes d e (...) tudo o que d em an d av a luxo e gosto" (Porto-alegre,1856:317)*6); com o entalhador ou mestre-entalhador de obras religiosas*71, seu nome aparece incompleto, precedido destas designações em folhas de pagamento por féria ou administração ou completo assinado em recibos, nos Livros de Receita e Despesas das Ordens e Irmandades para as quais trabalhou; como urbanista-arquiteto-escultor de obras públicas<8), privou da amizade de D. Luís de Vasconcelos, mas era muito mal pago nas encomendas governamentais. "O artista qu eix av a-se de que S.Exa. era m ais pródigo d e palavras d o q u e d e ou ro" (Porto-alegre,1856), e as cartas deste vice-rei dirigidas ao mi­ nistro do Real Erário Português, (Revista IHGB, V.77, T .5 1 ,1988:183-184) dão conta das obras públicas mandadas executar, mas não mencionam os termos de contratação dos ofi­ ciais e nem o nome dos artistas. Do Maneirismo ao Pombalino

O s primeiros retábulos conhecidos da cidade do Rio de Janeiro são os três remanescentes da Igreja de Santo Inácio (1588) do antigo Colégio de Jesus do Mor­ ro do Castelo (1567)(9), e que atualmente se encontram na Igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso. Classificados por Lúcio Costa (1941:43), Germain Bazin (1984:284) e Paulo Santos (1951:372) respectivamente, de jesuíticos, pós-renascentistas e proto-barrocos, ma­ nifestam a nova tendência escultórica do Seiscentos em Portugal, a retomada desta sua arte culturalmente tradicional, largamente desenvolvida no último quartel do século. (Smith,1962:64). ANNA M A R IA F A U S T O M O N T E IR O D E C A R V A L H O

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A composição destes três retábulos (sem elhantes entre si) denuncia um tra­ tamento predominantemente arquitetural ligado às ordens clássicas (base, suportes, entablamento e frontão), mas que se apresentam mais co m o elementos de modenatuna, sem a rigidez antropométrica da estrutura renascentista: suas linhas concretas, dimensionais, basicamente triangulares, quadrangulares e em arco pleno, consideradas então como Ver­ dades' manifestas da natureza, enquadram nichos e painéis para abngar esculturas e pin­ turas como suportes independentes e contrapõem -se às linhas direcionais do desenvolvi­ mento decorativo, mais fantasioso e abstrato (os grutescos e os arabescos), o tratamento é planar como nos retábulos do Renascimento, mas acentuando os efeitos de verticalidade e a dinâmica de superfície (executada na técnica do plateresco, uma lavra de grande finu­ ra desenvolvida no XVI na escultura espanhola e que sugere trabalho na prata); o sentido de alongamento é obtido por pináculos e pelo frontão de inscrição triangular, que, no en­ tanto, apresenta um perfil mais aberto, sinuoso. G randes esculturas figurativas represen­ tadas em frontalidade e sob as leis classicizantes do naturalism o ótico estão contidas nos nichos e se contrapõem aos baixos-relevos ornam entais de ritm os contrários, ambíguos e exorbitantes. Pequenos painéis pictóricos (em geral, confinados no coroamento) apre­ sentam um esquema compositivo medieval (mais hierarquizado), e não condizente com a erudição' das esculturas. As soluções tensionadas, contínuas e descontínuas encaminham a composição destes retábulos para um sentido de instabilidade, que o rigor da simetria e do eixo de oentralidade torna a equilibrar. A nosso ver, se enquadram dentro da tipolo­ gia maneirista, como princípios de mobilidade entre dois estados, subobjetivos de ' ver­ dades contidas no espírito do artista e deduzidas da natureza. Segundo os requisitos dos tratados artísticos do período, eram a precisão, a clareza, a graça e a liberdade que condu­ ziam à perfeição (Panofsky, 1981:58). Em meados do século XVII diminuiu consideravelmente o número de enco­ mendas dos retábulos de pintura nas igrejas portuguesas. Sintomaticamente este fato cor­ respondeu ao período da Restauração da Coroa portuguesa sob a dinastia de Bragança (D. João IV-1640/56). Retomada a m onarquia sob o A bsolutism o, foi principalmente na antiga tradição mesteirol da escultura religiosa e em madeira que o Barroco se instaurou em Portugal, como uma das mais legítimas m anifestações plásticas da arte sacra lusitana, constituindo-se no seu elemento indispensável e principal adorno. Num Pr,meiro momento, os interiores das igrejas revestiram-se de uma taha dourada de caráter dinâmico e predominantemente volum étrico sobre o arquitetural, desenvolvendo um ■ estilo barroco tido com o singular no Reino -

o chamado Nacional

Português: suas formas opulentas, movimentadas cenognaficamente e em profundidade, compoem motivos ornamentais sim bólicos da iconografia cristã num vocabulário naturahsta predominantemente fitomorfo: emaranhados de espinhosas folhas de aranto (consctenca da dor do pecado) e de v.deira (sangue de Cristo) dos quais emergem figuras depufli (an)os-memnos, mensageiros do am or divino) e das aves fênix ou pelicano (Ressurreição), 58


A Madeira como Arte e Fato em violentos contorcidos e contrastes de luz e sombra. Este tipo de retábulo apresenta uma acentuada marcação curvilínea e triunfal: um perfil fechado em arco pleno (nos tratados renascentistas, considerado superior ao ogival com o verdade' deduzida da natureza) que desenvolve arquivoltas concêntricas (retomado emblematicamente das antigas portadas românicas lusas do século XII, no período em que Portugal se constituiu enquanto nação soberana). Um ritmo unitário percorre todo o conjunto orientando-o para um princípio de ascensão em espiral, que se propaga nos enrolados que recobrem as colunas espiraladas (ditas pseudo-salomônicas)(10), as pilastras e os arcos repetidos. Toda esta movimentação tumultuada dirige-se para o alto da composição, onde enormes aduelas como raios e o emFig. 1 - Altar-m or Igreja do Convento de Santo Antônio, RJ 1710 1719


blema da ordem (tarja) selam o coroamento — e para o centro, um espaço vazio como um imenso camarim (tribuna) que contém uma pirâmide escalonada (trono) no topo da qual se destaca, magestosamente, a imagem devocional da ordem . Esta dinamica e teatrali­ dade (que envolve o fiel) sugere um ritual de passagem em triunfo de duplo sentido: do estado profano ao divino, do estado de dominação ao de autonom ia do Reino. No Rio de Janeiro, o Estilo Nacional manifestou-se principalmente na primitiva talha da Igreja do Mosteiro de São Bento ainda no século XVII ( c l6 6 9 /7 6 ) , risco e obra iniciada pelo entaIhador e escultor português beneditino Frei D om ingos da Conceição, mas que sofreu su­ cessivas intervenções ao longo do século XVIII; e na talha da capela-m or e dos altares late­ rais da Igreja do Convento de Santo Antônio, construídos no início do século XVIII (c l7 1 0 /1 9 ) por entalhador desconhecido sob a adm inistração do prior Frei Lucas de São Francisco (fig. 1). A relação tensão/m obilidade/interdependência dos elementos formais, resolvida em clímax, orienta estas composições para um esquem a sinfônico (soluções de unidade que tendem ao sublime) a partir de regras dadas pela experiência da emoção' que eleva o espírito' à Verdade do D ogm a (Deus/Estado), enquadrando-as dentro da tipolo­ gia barroca. No século XVIII, durante o período em que “Portugal era o oiro do Brasil" (França,1965:160) (apogeu da m onarquia absoluta, no reinado de D. João V, 1707-50), a escultura religiosa barroca explodiu', na M etrópole e na C olônia, num estilo apoteótico: o chamado joanino com sua talha suntuosa e totalmente dourada, estruturada em cama­ rim e trono piramidal como a anterior, mas orientando o tratam ento arquitetural e deco­ rativo para violentas e fragmentadas tensões, e para a grande estatuária. Um vocabulário próprio do barroco romano borrom inesco e bem iniano, difundido nos tratados de Pozzi, Passarini e outros, que entrou em Portugal principalmente pela arte de Ludovici* ^1* e Bibiena e pelo coche alegórico im portado de Roma em 1718 (um presente do papa Clemente XI a D. João V). Motivos naturalistas da iconografia cristã, com o conquilóides (tipo vieira ou coquille saint-jacques, símbolo do peregrino a Santiago de Compostela), feixes de palmas (triunfo do martírio sobre a morte), grinaldas e festões de flores (rosas, margaridas e gi­ rassóis, símbolos de centralização da alm a e da fugacidade das coisas) folhelhos e botões de plantas, substituem os em aranhados e espinhosos acantos da fase Nacional; os peque­ nos anjos meninos, as aves fênix e pelicano dão lugar a im ensas e agitadas figuras antropomorfas (angélicas e alegóricas do cristianismo), que enquadram e centralizam os coroamentos dos retábulos, as portadas e os arcos cruzeiros, ou que com o atlantes e cariátides servem de consoles a colunas e esculturas. O s retábulos perdem o caráter hermético da arquivolta, que se esconde sob um frontão de perfil aberto e fragmentado, onde volutas em curvas e contracurvas e entrelaçados fitom orfos se conjugam à estatuária antropomorfa, a emblemas, a dosséis volumosos, a cortinas e drapeamentos (marcas do poder real), de­ senvolvendo um ntmo independente dos sustentantes. Nas pilastras abrem-se nichos e peanhas para conter imagens de santos; as colunas pseudo-salomônicas são substituídas pelas 60


Fig. 2 - Talha de Manuel de Brito Capela-mor com retábulo Igreja da Ordem 3? da Penitência do Rio de Janeiro

verdadeiras', também conhecidas como berninianas (utilizadas por Bernini no seu famoso "Baldaquim" para a Basílica de São Pedro, R o m a )/12' O torcido do fuste, com o terço in­ ferior estriado e o restante com enrolamentos em guirlandas de flores, destaca o movimento da espiral em ascensão. Um espetacular jogo cênico e antitético de perspectivas desequili­ bra e impele a composição desses retábulos para o alto como num vórtice (em geral, comple­ mentado por uma pintura ilusionista nos tetos da nave e da capela-mor), mas essa dinâ­ mica está segura, equilibrada pelo sentido de simetria, centralidade e unidade que a percorre, enquadrando-a dentro da tipologia do Barroco. O estilo joanino chegou ao Rio de Janeiro na singularidade do estilo Brito', trazido pelos entalhadores escultores portugueses Fran­ cisco Xavier de Brito e Manuel de Brito para a talha da 0 . 3* da Penitência (1726/29) (fig. 2).

ANNA M A R IA FA U S T O M O N T E IR O D E C A R V A L H O

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CÁ Ainda no reinado de D. João V, manifestou-se notadamente na talha de Lis­ boa uma nova tipologia dita estilo" rococó, através da decoração fundamentalmente fran­ cesa" (Smith, 1962:130) de um outro coche cerimonial do m onarca. Gerado na França nas primeiras décadas do século XV III, o rococó contrapõe à grandiloquência e monumenta­ lidade do Barroco soluções intim istas e requintadas, que orientam as modernas decora­ ções profanas dos palacetes e salões cortesãos parisienses. Paredes e tetos estucados ou apai­ nelados de branco são adornados de talha aplicada em dourado, com o bronze. De pro­ porções reduzidas, leves e delicadas, desenvolvem preciosism os em suas formas de conquilióides esgarçados (rocalhas), em seus perfilados e entrelaçados de guirlandas de flo­ res e laços de fitas, em suas molduras caprichosa mente recortadas guarnecendo espelhos e painéis de pintura, valorizando assim os refinamentos óticos e as gradações de superfí­ cie. As junções dos planos parietais com o teto adoçam -se pelas curvas e se interpenetram pela continuidade de jogo escultórico (e também do pictórico, anim ado por céus altos e transparentes envolvendo cenas primaveris ou galantes, em suaves escalas luminosas). En­ fim, uma arte que se faz representar simultaneamente com o uma produção liberada dos cânones acadêmicos e como um exercício de virtuosism o técnico, descobridora do pró­ prio prazer estético. Este estilo desenvolveu-se em Portugal principalm ente por meio de gravu­ ras francesas e alemães e prolongou-se, tanto no Reino quanto na Colônia brasileira, duFig. 3 - Sala do Trono ou do Dossel Palácio Real de Queluz (hoje Nacional)

JL


A Madeira como Arte e Fato rante todo o período josefino (1750-77) e m ariano (1777-1815), presidindo as fixações de padrões regionalistas, que marcaram as diferenças das talhas do Norte ao Sul dos dois países. Em Lisboa e arredores, o Rococó dominou a talha cortesã, manifestada sobretudo nos in­ teriores do Palácio Real de Queluz (residência de D. Pedro e D. Maria I), pela obra do escultor francês Collin*12) ("Sala dos Embaixadores" -1 7 5 7 ) e do arquiteto e escultor por­ tuguês Silvestre Faria Lobo, discípulo de Ludovici, e que trabalhou no palácio de 1753 a 1787, autor, dentre outras, da talha da "Sala do Trono" (1768) (fig. 3) e da Capela Real. Esta arte cortesã lisboeta ocorreu paralela a outra tendência: o estilo pombalino, marcado pelo 'neoclassicismo' de Vanvitelli(13) (autor do retábulo de pintura da Capela de São João Batista (1749) (fig. 4), encomendado por D. João V para a Igreja de São Roque) e que se Fig. 4 - Capela de São João Batista Igreja de São Roque Lisboa 1742


desenvolveu principalmente após o terremoto de 1755, a partir das simplificações arquite­ tônicas e escultóricas impostas por Pombal a Mateus Vicente de Oliveira, Eugênio dos Santos e outros responsáveis pela reconstrução dos edifícios de Lisboa. Conta-nos José Augusto França que era instrução do proprio ministro adaptar o novo gosto à tradição do Barroco joanino, de acentuada marcação borrom inesca — nos grandes monumentos: A o princí­ p io s ó as igrejas escaparam a u m a reg u la rid ad e cjue a e c o n o m ia im p u n h a; s ó m ais tarde os p a lá cio s p od eriam , p o r su a vez, tran sgredir tais n o r m a s (op. cit, 19o5:l lo). A última fase da escultura religiosa colonial do Rio de Janeiro fixou-se por um estilo com caracterís­ ticas já regionais da capital do Vice-Reino: um am álgam a de form as barrocas e rococós de tendência classicizante, m anifestação de uma produção artística de artífices brasileiros na sua grande totalidade mulatos, notadam ente nela se distinguindo a obra sacra de Mes­ tre Valentim. Segue um estudo da escultura religiosa de Valentim, a primeira obra que o distinguiu como o principal entalhador da cidade da segunda metade do século XVIII aos alvores do XIX. A Talha de Valentim na Igreja da V.O. 3? de Nossa S enhora do M o n te do Carmo

As obras de decoração interna da igreja foram inicialmente encomendadas ao entalhador Luís da Fonseca Rosa em 1768 que aparece com o autor das capelas laterais da nave. O nome de Valentim aparece figurando ao seu lado em 1772 e, no ano seguinte, já como Mestre, nas obras de talha da Capela do N oviciado (1? Livro de Receita e Despe­ sa, p.25). Vinte anos levou esta capela para ser executada, apresentando durante todo esse período uma grande unidade de estilo (regional e individual do artista). Com relação às obras da capela-m or (fig. 5), no 3? Livro de Receita e Des­ pesa da Ordem (1781-1800) às fls. 125, Valentim figura no pagamento do dia 14 de outu­ bro de 1780 pela execução da grade e do molde dos dois lampadários, de uma urna e de uma cadeira para o trono e uma cruz. Ainda no mesmo ano, às fls. 89, por modificações introduzidas no altar-mor:

(••■ ) aprovada a C olocação d o último Passo da Payxão no altar-mor ova apela, fazendo-se o Trono, tirando as Columnas direitas e pondo outras efo rn as e huma M aqueneta para Sr? nom eyo d a Banqueta, e no fim do Tomo um docel com seu espaldar para a Imagem do Senhor Crucificado e que tudo se execuou na conformidade do Risco, pagando-se ao Mestre Valentim da Fonseca hum Conto e Seis Centos mil Réis", (doc arq. l / W

. , r i et^ u^ P rinciPal âltar de Nossa Senhora do Carmo — projetado contra todo o fundo panetal da capela-mor, apresenta elementos formais de estrutura e compostçao ornamental que se repetem em praticamente todos os retábulos-motes de Mestre Valentim (com alguma exceção no da igteja da Cruz dos Militares): 64


A Madeira como Arte e Fato

Fig. 5 Altar-m or Igreja da Ordem 3* do Carmo, RJ

ANNA M A R IA FA U ST O M O N T E IR O D E C A R V A L H O

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Inscrição estrutural em arco de triunfo, produzido pela cobertura em arco pleno de acor­ do com a marcação curvilínea do teto. A imagem da arcada, m arca d a so b era n ia d o p o d e r real em todas as civili­ zações (Francastel, 1973:221), foi retomada da simbologia greco-romana principalmente na figuração do barroco oficial, num sentido de passagem majestática do 'estado' profano ao sagrado. Este tipo de estrutura retabular, tão utilizado por Mestre Valentim, é uma cons­ tante nos altares-mores brasileiros (e cariocas) dos séculos XVII e XVIII, abrangendo os chamados estilos' N acional Português, Joanino e Rococó. — Tratamento estrutural em profundidade, provocado pela projeção dos suportes exter­ nos e retraimento dos internos, acompanhado por um equiiibrado jogo de inflexões sa­ lientes e reentrantes, que se propaga no perfil quebrado do entablamento e se acentua na cornija filetada e no friso de decoração fitomorfa. O tratamento em profundidade dos retábulos de altar-mor persiste durante a fase do rococó colonial em geral, inclusive a carioca. Ainda uma sugestão de teatralida­ de: a massa plástica, assim articulada, arroja-se no espaço da capela-mor como num pal­ co, envolvendo o fiel no drama da cena litúrgica que ali se desenrola. — Abertura de tribuna em arco de meio ponto. Decoração do perfil em delicada guirlanda de flores, rocalhas e querubins. Interior em pirâmide escalonada, com disposição da invocação principal à boca da tribuna e a do Cristo Crucificado no último degrau. A tri­ buna persiste nos retábulos da fase rococó carioca como o mais adequado cenário para evidenciar a imagem escultórica do santo devocional do altar, apesar do surto classicizante que, principalmente em Lisboa, favoreceu a retomada dos retábulos de pintura. Valentim introduziu modificações no altar de Nossa Senhora do Carmo em 1780, colocando a ima­ gem da invocação principal à base da pirâmide e a do Cristo Crucificado no topo, enfati­ zando o ritual de passagem de Nossa Senhora como intermediária do fiel no caminho da salvação. Esta disposição tornou-se uma constante nos retábulos-mores que executou. — Utilização da coluna torsa berniniana (salomônica) como principal suporte do retábulo (fig. 6): a coluna berniniana, um dos elementos formais que mais caracterizou o retábulo joanino, havia sido incorporada à talha lisboeta principalmente pelo trabalho de grandes mestres portugueses, com o por exemplo, o do entalhador Santos Pacheco, que dirigia uma das mais importantes oficinas da Metrópole, ' nas igrejas de 5. M iguel e Sto. Estêvão de A lfam a desen hou as d u a s m á x im as expressões d o n o v o gosto, os retábulos principais dos Paulistas, d e L isb o a e d a catedral d o Porto" (Smith, 1968:98). No entanto, a partir da introdução do 'estilo' rococó em Queluz e na reconstrução classicizante pombalina em Lis­ boa, a coluna berniniana dera lugar à do tipo vanviteliana (canelurada reta e com filetes dourados) mais ou m enos classicizante (na form a simplificada ou acrescida dos ornatos

^9- 6 - Altar-mor (detalhes) Igreja da Ordem 3? do Carmo, RJ

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florais e das laçadas de fita do rococó josefino e m ariano). Privilegiando a coluna berniniana, conforme consta da alteração do primitivo risco, Valentim marcou os elementos pri­ mordiais de sustentação deste retábulo com um ritmo uniform e de espiral ascendente que escapava tanto ao sentido de m aior liberdade ornam ental da coluna rococó quanto à or­ dem racionalizante e pacífica da coluna direita, que o novo gosto pombalino impunha. Neste altar-mor, as colunas bem inianas foram utilizadas em três pares, intercaladas a semipilastras decoradas com apliques e emolduramentos rococós sobre fundo apainelado. Es­ tes suportes movimentam a estrutura do retábulo em profundidade, num jogo contras­ tante dextrogiro e sinistrogiro, de saliências e reentrâncias, de cheios e vazios, que se acen­ tua nas aberturas dos dois nichos próximos ao cam arim, feitos para abrigar imagens de devoção carmelita. Seus elementos escultóricos decorativos permitem perceber sensações óticas de mutações de superfície, provocadas pelos preciosism os e requintes de entalhamento dos apliques escultóricos. Denunciam, em seus porm enores, características estilís­ ticas inconfundíveis da grafia plástica valentiniana, uma vez que se repetem nas demais que executou: detalhamento minucioso e naturalista dos botões, flores (rosas e margari­ das) e folhas que formam o enrolamento das guirlandas do fuste; alguns elementos fitomorfos destas guirlandas ultrapassam a concavidade das espiras; o ritmo uniforme e dire­ cionado em oposição percorre todo movimento ascensional das espiras e estrias do terço inferior; os capitéis são compósitos, com as volutas da ordem jónica e as dobras da folha­ gem acântica coríntia bem pronunciadas; as bases são assentes sobre consoles, enrolados como volutas que terminam em ponta, ultrapassando o seu enquadramento natural; os consoles são decorados na parte superior com b o u q u et floral e, na inferior, com figurinhas angélicas. Coroamento: dois fragmentos de frontão em curva, de onde apontam modilhões em volutas acentuadas; remate em perfil à chinesa (misto de linhas quebradas e sinuosas) e fecho decorativo; duas grandes figuras angélicas prosternadas dispostas nos fragmentos de frontão, grande tarja ao centro, emoldurada em glória' e resplendor (cercada de nu­ vens, anjos-meninos e raios de metal). O coroamento deste retábulo está, sem dúvida, mar­ cado pelas linhas sinuosas da portada portuguesa (pom balina) da fachada principal da igreja do Carmo, ornada à semelhança do que José Augusto França diz ser "a fantasia con­ cedida à arquitetura religiosa d este p erío d o " (op. cit: 196,116). Este tipo de coroamento, ainda sob interferência do 'risco' de Luís da fbnseca Rosa (dada a semelhança que apre­ senta com os dos altares laterais da nave), fixou-se com o uma das características da grafia plástica valentiniana, uma vez que se repete, com pequenas alterações, nos demais de re­ tábulo de sua autoria. -

Presença de dossel coroando a imagem do Último Passo da Paixão (fig. 9). O dossel

(como arcada) foi representado no momento Barroco com o um dos símbolos iconográfi­ cos mais poderosos de teatralidade, soberania e magnificência. A Valentim, enfatizamos, foi especialmente encomendado para o "fim 68


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Fig. 7 - Altar-m or (detalhe) Grande carteia com querubim Igreja da Ordem 3? do Carmo, RJ

trono um d o c el co m seu e s p a ld a r p ara a Im ag em d o S en h or C rucificado”, que ele produ­ ziu num perfilado à chinesa, discretamente acentuado, rematado em b ou q u et floral e or­ nado de lambrequins e rocalhas. — Utilização de elementos ornamentais ambiguamente representativos da estética rococó e da simbologia cristã (fig. 7): na grande estatuária do coroamento, nos emoldurados dos ovais e medalhões e nos apliques, Valentim destacou símbolos iconográficos representati­ vos das ladainhas do Santo Nome de Jesus e de Nossa Senhora ("Filho de Deus Vivo", "Es­ plendor do Pai", "Pureza da Luz Eterna", "Sol de Justiça" etc) e da hierarquia angélica nas categorias de tronos (anjos adultos prosternados), anjos-meninos e querubins (cabeça de criança com duas asas). A estas imagens o artista conciliou rocalhas (conquilóide/símbolos de viagem próspera do peregrino); volutas (alento, espírito); festões de folhas e bouquets florais (rosa/m artírio; m argarida/inocência); feixes de palma (triunfo do martírio sobre a morte); penachos de pluma (fé, contemplação); laçadas de fita (ligação a algo su­ perior); "cabeças d e m u lh eres elegantes en feitad as d e plu m a" (Smith, 1962:131), também chamadas de "espagnolettes" (França, 1965) numa forma que se deixa ver simultaneamente como símbolo sagrado e alegoria profana. O s querubins e anjos-meninos de Valentim inserem-se dentro da estilística barroca, da tradição borrominesca desenvolvida em Por­ tugal por Ludovici. Pelo forte apelo emocional que despertavam, os putti (retomados do

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mitológico deus do amor greco-romano, Cupido) foram mtensamente utilizados pela te­ mática tridentina a partir da Contra-Reform a e, mesmo na form a reduzida do rococó, per­ manecem na arte cortesã. O atelier de M afra, a partir de 1753 sob o comando do escultor romano Giusti, desenvolveu essa solução mais intimista e decorativa em seus baixos-relevos, principalmente em portadas, arcos cruzeiros, cúpulas e emolduramentos. — 'Espagnolettes' (fig. 8): no primeiro tramo do painel parietal, que decora a capela-mor da Igreja do Carmo, são também figuras angélicas (aladas), mas em tudo lembram cabe­ ças de damas cortesãs de feições orientalizantes, devido ao jogo composicional das asas à semelhança de plumas e à presença de adornos no colo e nas orelhas (pendentifs, colar, brincos). Estas figuras 'exóticas' surgem na decoração rococó com o uma expressão de requinte e de civilidade que a arte cortesã se propunha. — Interior pintado de branco com douramento nos ornatos: outra característica da deco­ ração rococó utilizada na talha da Igreja do Carmo pelo M estre Fonseca Rosa e seguida por Valentim em todas as igrejas em que trabalhou. O s refinam entos óticos, obtidos atra­ vés do douramento de superfície (aplicados com bronze) opõem -se ao peso e à volumetria do barroco das igrejas forradas de ouro. Na capela do Noviciado, conforme vimos anteriormente, o nome de Valentim já figurava como Mestre, em 1773, nas obras de talha desta capela (fis. 2 5 ,1 ? Livro de Re­ ceita e Despesa do Noviciado). As fis. 26 foi-lhe paga a quantia de 416$000 pelo altar-mor (Nossa Senhora do Amor Divino) e às fis. 88, no ano 1 7 9 6 /7 do mesmo Livro, consta a construção do altar lateral, que custou 111$000. Uma vez que seu nome é o único discri­ minado como entalhador no aludido livro e dada a grande unidade estilística e composi­ cional dos dois altares, estas hipóteses levaram Nair Batista a concluir como de autoria do artista o altar de Nossa Senhora das Dores, apesar dos vinte anos que separam estas duas produções. (Batista, 1940:292-293). O retábulo de Nossa Senhora do Amor Divino apresenta uma estrutura com­ posicional e decorativa muito semelhante a outros altares menores executados por Valen­ tim. É constituído de: mesa/banqueta-altar em forma de sarcófago (rococó); a tribuna com a imagem devocional de Nossa Senhora do Am or D ivino (simboliza a intermediação da Virgem ao Espírito Santo); os suportes, projetados em relação à abertura do nicho, de­ senvolvem mais um jogo de saliências e reentrâncias (rococó) do que uma movimentação em profundidade (dos retábulos da capela-mor); o coroam ento em perfil à chinesa, apre­ senta modilhões apontando em seqüência direta dos fragmentos de frontão em curva. Seu fecho é ornamentado em guirlandas de flores e rocalhas, tendo ao topo a figura de um anjomenino; há presença de grandes figuras nas extremidades; a tarja do coroamento evoca a proteção do Espirito Santo sob a form a de uma pomba (sím bolo da Terceira Pessoa da divindade cnsta, normatizado principal mente a partir dos tratados de pintura renascentista). O fundo parietal, contra o qual o retábulo se destaca, apresenta ornamen­ tação em apliques de rocalhas, guirlandas e festões florais, cabecinhas de querubins e emol70


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durados contendo representações de símbolos da Litania de Nossa Senhora1

Fonte de

Água Viva e Imaculada Conceição (fig. 9). Neste aparece, além da Virgem com o Menino, o crescente, símbolo mítico greco-rom ano da castidade da deusa Diana, retomado na ico­ nografia tridentina após a vitória do cristianismo contra os turcos (1571). A cimalha acom­ panha o movimento da secção semicircular no intradorso da abóbada, inscrevendo o re­ tábulo em arco triunfal, ao qual um movimentado panejam ento adornado com borlas, Fig. 9 - Capela do Noviciado (detalhe do fundo perietal do retábulo principal) Igreja da Ordem 3? do Carmo, RJ

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próximo à junção do teto, arrem ata a composição com um tratamento cenográfico. O retábulo lateral, de Nossa Senhora das Dores, apresenta praticamente as mesmas características com posicionais e estilísticas do principal, mas não está sujeito ao jogo acentuado de alternâncias dos suportes, uma vez que suas semipilastras quase faceiam a superfície do nicho. A invocação deste altar está representada pela imagem da M ater D o­ lorosa e pelo coração fechado do coroamento. O s medalhões das pilastras contêm símbo­ los do processo de perseverança e de transcendência, que caracterizariam a vida do cristão na Terra: a cruz (integração do princípio ativo e passivo, dramaticamente transformado em sentido agônico de luta e de instrumento de martírio); a escada (ruptura, ascendência, possibilidade de passagem de um mundo (estado) a outro); o martelo e a bigorna (princí­ pios ativo/ passivo, representando a dominação da matéria pelo homem). Molduras preciosamente 'bordadas' em rocalhas, guirlandas florais, onde apontam cabecinhas de anjos e penachos de pluma, envolvem os painéis pictóricos late­ rais; o teto apresenta um ritm o de frisos decorativos que acentua o movimento curvilíneo da abóbada; novamente em meio à ornamentação rococó sobressaem-se outros símbolos da Ladainha: Rosa M ística; Torre de Davi; Torre de Marfim, Bela como a Lua (fig. 10). Uma Arte de Dom ínio e Sedução

Em sua talha para a Igreja do Carmo, Mestre Valentim desenvolve um esti­ lo 'híbrido', onde tendências estéticas do século XVIII estão amalgamadas, denunciando mecanismos de apropriação e de resistência que caracterizaram o processo de aculturação da capital colonial. Esta integração de formas fixa-se, a nosso ver, como uma característi­ ca regional da escultura religiosa do Rio de Janeiro, de meados do século XVIII aos alvo­ res do XIX. A nova linguagem plástica ornamental mais liberada do rococó, represen­ tativa do poder laico e cortesão, é privilegiada pela sociedade carioca, mas não totalmente assimilada. Devido à estreita ligação com a M etrópole, o modelo apropriado é o do roco­ có simétrico, permeado pelo classicismo pombalino das luzes e pelo barroco romano da Escola de Mafra, cujo passado grandiloqüente ainda lhe permanece estruturalmente atá­ vico. No seu conjunto, esta obra de Valentim apresenta de modo equilibrado soluções de caráter intimista e m onum ental. O olho destaca principalmente a dinâmica de superfície nas filigranas escultóricas: das w cailles, em recortes revirados e caprichosos, das guirlan­ das, bou qu ets e festões florais, pendentes fitomorfos, penachos, feixes de palma e laçadas de fita, em tratamento delicado e naturalista; dos preciosos emolduramentos que envol­ vem em perfilados sinuosos e angulações imprevisíveis os anjos e querubins de formas gra­ ciosas, que aqui e ali ponteiam, alguns 'exóticos' outros de mal disfarçada mulatice. O olho envolve-se no tratamento triunfal e cenográfico da estrutura retabular, enfatizado ainda pela presença da grande estatuária nos coroamentos, das colunas torsas berninianas, dos dosséis, cortinados, drapeamentos, sanefas e pingentes. ANNA M A R IA F A U S T O M O N T E I R O D E C A R V A L H O

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Fig 10 - Capela do Noviciado (detalhe do forro do teto) Igreja da Ordem 3? do Carmo. RJ

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É principal mente através da ornam entação rocaille, ambiguamente conbiliada com temas iconográficos cristãos, que o artista imagina os interiores das capelas mor e do noviciado do Carm o, com o espaços mais liberados, propulsores de formas cambian­ tes, reflexivas, refinadas, e ate mesmo exóticas , em suaves gradações de superfície e de intensidade luminosa. Formas que parecem imprimir um sentido de transitoriedade pro­ gressiva da vida as quais ele risca e executa com invenção e maestria, justificando assim a fama de escultor mais distinguido do Rio de Janeiro do seu tempo. Na capela do novi­ ciado, em que seu programa decorativo deu-se por inteiro, Valentim consegue estabelecer um harmonioso e gradativo ritm o ornamental, na organização dos cheios e vazios, onde os relevos aplicados parecem deslizar alongados nos fundos parietais, ora em passagem de planos mais adoçada e contínua, ora mais contida. Toda esta virtuosidade disfarça, em parte, a rigidez da simetria, centralidade e domínio dramático do olhar instituído, tratado sob o peso da perspectiva reinol. No todo e no detalhe, a escultura religiosa de Valentim na Igreja do Carmo é um exemplo de excelente conhecimento técnico e de erudição. Denuncia ainda um estilo individual que se fixa em grande unidade, se considerarmos o espaço de mais de vinte anos que separam, já como M estre, o início do final desta sua produção (1773-1797).

Notas ( 1 ) Seg u n d o o s prin cípios de n orm ativid ade clássica, do compêndio de D iogo de Sagredo, M edidas d ei Rom ano (Toledo, 1526), difundidos em Portugal através de edições suces­ sivas (L isb o a , 1541 e 1542) e im pulsionados pelos arquitetos em soluções já Maneiristas (S E R R Ã O , 1 9 8 3 :3 2 -3 6 ). ( 2 ) P rin cip alm en te N icolas Chantérène, Philippe Hodart e Jean de Rouch (GONÇALVES, 1 9 8 1 :1 3 -2 2 ). ( 3 ) A través d os m estres belgas O liv ier de G rand e Jean d'Yprès, autores do retábulo-m or da S é Velha de C oim bra, considerado o m ais belo espécime da talha gótica em Portugal (S M IT H , 1 9 6 2 :1 9 ). ( 4 ) T ran scrita n o A rquivo do SP H A N , pasta Igreja da 0 . 3 a de São Francisco da Penitência. ( 5 ) M O R E IR A D E A Z E V E D O , por in form ação de um oficial de M estre Valentim, Brás de A lm eid a, descobre nos Livros de Ó b ito s da Freguesia da Sé (então estabelecida na Igre­ ja d o R o sário ) o assentam ento de sua m orte. Nair Batista, nos term os do Livro da Ir­ m an d ad e correspondente aos an os de 1752-1829, descobre o seu ingresso como irmão a n o 1 7 9 9 fls. 1 7 0 e confirm a seu sepultam ento, em l u de m arço de 1813. ( 6 ) M an u el de A ra ú jo Porto-A legre, artista e professor da Academia Imperial de Belas Ar­ tes foi o prim eiro biógrafo de M estre Valentim . Obteve suas inform ações diretamente de um d iscípulo deste, o en talh ad or Sim ão José de Nazareth, autor da talha da Igreja de S ã o Jo sé. . . ( 7 ) M estre V alentim trabalhou nas seguintes igrejas do Rio de Janeiro: - Igreja da Venerável O rdem Terceira de Nossa Senhora do C arm o (1755-1854), nos a n o s de 1 7 7 3 a 179 7 (BA TISTA , 194 0 :2 9 1 -3 0 6 ); ■ Igreja da Venerável O . 3? de N ossa Senh ora da Conceição e Boa M orte (1735-1865) no a n o de 1 790 (M A C H A D O , 1 9 5 6 :6 -1 1 ); _ igreja do M osteiro de São Bento (1633-179 ) nos anos de 1781 a 1783 (NIGRA, 1 9 4 1 :2 8 5 );

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gávea

— Igreja da Venerável Irm andante do P ríncipe dos A póstolos São Pedro (1733) em fins d o século XV III, com eços do X IX (CA RV A LH O , 1987:13-57); — Igreja da Venerável Irm andade de San ta Cruz dos M ilitares (1780-1812) (PORTOA L E G R E , 1856:372) nos an os de 1801 a 1812 (CARVALHO, 1987:39); — Igreja da Venerável O. 3 4 dos M ín im os de São Francisco de Paula (1759-1865), nos a n o s de 1801 a 1813 (BA TISTA , 1 9 4 0 :2 1 -3 0 6 ). ( 8 ) M estre Valentim construiu (sobretudo na gestão do vice-rei D. Luis de Vasconcelos (1 7 7 9 -1 7 9 0 ) o prim eiro Passeio P ú blico do carioca (1783), os chafarizes das Marrecas (1785), d o Lagarto (1786), da Pirâm ide (1789) e das Saracuras (1795), obras monumen­ tais às qu ais ornou de esculturas em pedra e m etal e de temática profana (uma inovação na paisagem urbana da época. (Este tema que foi objeto de tese de mestrado da autora, so b o titulo A Arfe C iv il d e M es tr e V alen tim , u m P r o g ra m a d e S o m b r a e d e Água Fres­ ca p a r a o C a r io c a , defendida na EB A -U F R J, 1988. Publicada parcialmente em GÁVEA n? 7, D ezem bro de 1989, p p .82-105 e R e v is ta d o B a rro co , 15, II Congresso do Barroco no Brasil, anos 1990-92, p p .237-250.) ( 9 ) D em o lid o durante o arrasam ento do M o rro do C astelo em 1922, que tirou no mapa os com eços da Cidade de São S e b astião d o R io de Janeiro. (1 0 ) A s colunas espiraladas já eram con h ecid as nos tratados renascentistas. Segundo o tra­ tadista m aneirista português Francisco d'H olanda, as salom ônicas teriam sido trazidas a Rom a por Constantino do tem plo de Salom ão. H O LA N D A , Francisco de. Da Pintu­ ra A rc h itec ta . In D a P intura A n tig a , Lisboa (1983), p. 195. (1 1 ) LU D O V ICI, João Frederico (1 6 7 0 -1 7 5 2 ), ourives, escultor earqu iteto alemão, queestudou na Itália e se radicou em P ortugal. Foi o construtor do grande palácio/conventode M afra, o m aior m onum ento b arro co ro m a n o da Península Ibérica. (1 2 ) Estas colunas foram fundidas com o bronze, proveniente das vigas do Panteão (Roma). (SA N T O S, 1951:27) (1 3 ) VAN VITELLI, Luigi (1 7 0 0 /7 3 ), arqu iteto rom ano, " qu e rea g in d o a o b a rr o c o d o século X VII. p r o c u r o u restau rar n o s s eu s e d ifíc io s a lg o d o c a rá ter d o ren a scim en to d o século XVI (SM IT H , 1962:132) (1 4 ) Por esta descrição, discordam os da afirm ação de N air Batista de que Valentim teria fei­ to o Últim o Passo da Paixão no a lta r-m o r (op. c it., 1940, p.305). A nosso ver, o autor é Pedro da Cunha, que executou as ou tras seis im agens da V ia C ru cis para as capelas laterais da nave da igreja. V alentim apenas colocou a imagem do Senh or Crucificado no topo do trono escalonado, co n fo rm e está no docum ento. (CA RVALHO, 1987:38). (1 5 ) As Litanias da Virgem, muito utilizadas na iconografia mariana após o Concílio de Trento, retom am os louvores do C ân tico d os C ân tico s” de Salom ão (26? Livro do Antigo Tes­ tam ento), um poem a de am or en tre dois esp osos que corresponde às profecias dos tem­ pos m essiânicos: "Eu ser ei S eu D eu s e e le s s e r ã o M eu P o v o " .

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A Madeira com Arte e Fato Bibliografia A N D R A D E , Rodrigo de M ello Franco. O M estre d e M estre Valentim . A M an h ã, Rio de Ja­ neiro, 0 6 /0 8 /1 9 4 3 .

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A N N A M A R IA F A U S T O M O N T E IR O D E C A R V A L H O é form ada pelo C urso de Especialização em H istória d a A r t e e A rq u itetu ra no Brasil PUC-RIO; M estra em História Crítica da A rte-E B A /U F R ); Dou­ to rand a em H istória d a A rte -

U niversidade de C o im b ra e Professora d o C u rso de E s p e c a i,zacao em

H istória da A rte e da A rq u itetu ra no Brasil PU C -R IO .



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A N T O N IO E D M IL S O N M A R T IN S R O D R IG U E S

O Ato de Descobrir ou a Fundação de um “ Novo Mundo"*1)

O verdadeiro descobridor, no entanto, não é aquele que casualmente, chega pela pri­ meira vez a um lugar qualquer, mas sim aquele que, tendo procurado, encontra. Somente este possuirá vínculos com as idéias e os interesses de seus predecessores, e as contas que presta serão determinadas por esses vínculos." Jakob Burckhardt I. Sonho, fantasia, experiência e conhecimento

A citação que abre o presente trabalho suscita uma infinidade de interpre­ tações. Entretanto, por mais que pareça universal, a citação tem um contexto, aliás, na ver­ dade, possui dois contextos. Um que se refere ao objeto espaço-temporal sobre o qual é produzida e pelo qual adquire sentido: a Itália renascentista. O outro refere-se ao produ­ tor da citação, Jakob Burckhardt, e sua inserção espaço-temporal: a Europa no final do século XIX. Mas, por que estabelecer essa relação com dois contextos e, mais complica­ do, quais são as relações entre a sugestão dos contextos e a proposição do trabalho? Embora a distância cronológica entre os dois contextos possa parecer enor­ me, ambos revelam momentos de fundação e descobertas. O primeiro fundando as bases epistemológicas sobre as quais se constrói o saber moderno e representando o início de um processo radical de secularização do mundo, através de um movimento em direção ao individualismo e a construção de um espaço privado de liberdade e criação, onde se acen­ tuam as grandezas históricas, pela via da ação humana, e as personalidades fundadoras. O segundo é o momento de fundação da história da cultura e de descoberta da força das idéias como realizadoras e produtoras da dinâmica histórica e do sentido da existência hu­

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mana no mundo. Ambos, entretanto, são momentos críticos de tensões e contradições, onde a descoberta mais significativa é a da percepção do papel do homem e do mundo como sujeitos da história. Dessa forma, qualquer que seja a interpretação possível da citação, será im­ possível deixar de fazer referência a essa duplicidade contextuai. Isto porque ela sugere uma Très Riches Heures de Jean Berry "0 Paraíso" Chantilly, Musée Condé 79


Gávea

descoberta: a história pode ser a construção do drama hum ano através do constante pro­ cesso de descobrir, fundar e experimentar novas formas de dar sentido ao mundo social, sugerindo que a comparação entre experiências é decisiva para a compreensão das rela­ ções entre o homem, os homens e a natureza. Por outro lado, também, pode sugerir, que o trabalho do historiador é uma arte que percebe e organiza as descobertas através de conceitos que tornam determinadas atitudes e procedimentos, repetições e tipificações, revelando não a normatividade como o dado comum da história, mas uma teoria do gosto, uma percepção estética que entende as ações como históricas quando estas se definem como portadoras do sentido do novo. O gênio renascentista não é aquele que é diferente dos outros, mas sim aquele que é mais igual e contém nele a representação dos anseios e crises do seu tempo. Por esse caminho, o trabalho do historiador é transformar o mundo em his­ tórico, sabendo descobrir o que é grande (merecer referência) daquilo que é pequeno (dis­ pensável). Sua atitude é de contemplação criativa recheada de intuição para não transfor­ mar a história em mera singularidade e nem em eterna totalidade. A atitude mais radical é a de descobrir as redes imaginárias que articulam a vida material com a vida espiritual, reproduzindo as representações das idéias como vontade dos homens. Essa é a grande descoberta da história da cultura e está presente nos dois mo­ mentos considerados como contextos. Mas, o que tornou possível identificar e combinar esses dois contextos tão distanciados? Em primeiro lugar, porque ambos têm em com um o mesmo narrador, co­ mo articulador e tradutor. Em segundo lugar, porque am bos revelam a importância da fantasia e da aventura e de sua construção onírica: o sonho. Ao mesmo tempo, que defi­ nem a experiência como evidência clara de como a subjetividade ganha objetividade — a descoberta ou o ato de descobrir é o exemplo de como a subjetividade humana adquire dimensão real e racional ao transformar a idéia do novo em produto novo. Em terceiro lugar, porque os dois momentos são significativos como articuladores de um conjunto de conceitos que fundam um novo tipo de olhar ou conhecimento do mundo e do homem, que sugere a noção de infinito e aberto como qualificativos do mundo e do homem e que criticam a normatividade ou a dependência ou, ainda, a falta de espontaneidade como negação da liberdade. A conclusão não poderia ser outra: a história do gênero humano é a eterna dialética entre normalidade e crise, a teoria da tormenta, e com o as crises são mais infor­ mativas que a linearidade, como determinadoras de questões, e sugerem mais possibilida­ des interpretativas, inclusive como produtoras do progresso e do futuro da humanidade, o que ocorre é que a atitude do historiador, enquanto artista e descobridor, deve ser cética. O historiador não pode construir a sua identidade de descobridor pela via da repetição sistemática de acontecimentos e nem mesmo pela busca de um sistema que permita a explicação de um conjunto de acontecimentos ou eventos. 80


oAto de Descobrir ou a Fundação de um "Novo Mundo" Só há uma saída para o historiador: dedicar-se a construir os quadros que estabelecem os possíveis cenários onde os fatos ou eventos podem ganhar sentido, pois a história não é, ou não deveria ser, a construção de teorias que melhor apresentem dados ou relações. Entretanto, acho que o que até agora escrevi deve ser considerado como uma provocação para a discussão e deve ser tomado simplesmente nesse sentido. É uma provo­ cação que tem como objetivo cham ar a atenção para a limitação do historiador e das suas formas de narrar e para a inexistência de preocupações mais rigorosas com as idéias, o que provoca a falta de uma história intelectual entre nós. Mas, o que quero realmente discutir ou apresentar para o debate é uma su­ gestão de análise do ato de descobrir, não no sentido de sua qualificação conceituai ou de sua história, mas ao nível do que esse ato representa para o imaginário daqueles que des­ cobrem e as conseqüèncias que daí podem advir. Esta preocupação que apresento tem co­ mo tentativa dar à novidade "história da ciência" uma inserção reflexiva a partir dos pro­ blemas vivenciados por um historiador em seu território. Isto porque evidencia-se, hoje, um movimento em torno da história da ciên­ cia, que a compreende com o necessária para que as descobertas continuem a se verificar ou que se a pense enquanto demonstração clara da importância de determinados ramos da ciência, produzindo uma hierarquia científica. Coisas que acho sem sentido e que re­ servam, para a nova disciplina, um futuro negro.

II. Atitudes mentais, com portam entos sociais e imagens do mundo Pode parecer estranho o título desta parte, entretanto, o movimento que ten­ tarei fazer é o de descobrir os atos de descobrir e suas motivações. Um dos m aiores historiadores do século XX, talvez o maior, Lucien Febvre, em um dos seus mais instigantes trabalhos' O Problema da Incredulidade no século XVI

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ao discutir o sentido desse século crucial, onde múltiplos movimentos se defrontam, indi­ ca como ponto culm inante a produção de uma forma de sentir o mundo e critica os histo­ riadores que não mediram, até hoje, a importância da sensibilidade na história. Não é sem sentido, que Lucien Febvre estude o século XVI e defronte-se com a questão da descoberta da sensibilidade, perguntando-se se é a nova sensibilidade que produz as descobertas ou se as descobertas são as produtoras dessa nova sensibilidade atra­ vés do alargamento das fronteiras físicas e geográficas e dos impactos de novos homens sobre a consciência de um homem novo em processo de adequação a um novo modo de pensar e de sentir - um novo mundo descobre um outro novo mundo. Para responder a essa questão, o autor vai procurar alguma coisa que tenha condições de demonstrar as mudanças e permanências e descobre que a incredulidade, que agita o século XVI, pode se transformar em chave do entendimento dessas novas mentali­ dades, demonstrando uma inversão de expectativas com relação a crueldade, tao estru-

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GÁVEA

turalmente vinculada à tradição dos séculos anteriores. A conclusão é que o período me­ dieval é muito mais “racional na expressão da realidade das coisas do mundo do que o período do renascimento. Lucien Febvre tomará como base para o estudo a figura de Rabelais e desco­ brirá como o escritor do século XVI expressa um mundo até então escondido, que aponta em direção oposta ao que tradicionalmente a historiografia propunha como análise da obra de Rabelais, sugerindo que o crítico estava muito mais próximo da Igreja do que podía­ mos supor. Ao mesmo tempo, Lucien Febvre percebe, através da análise das motivações do século XVI, como os contemporâneos de Rabelais esconderam a descoberta do autor. A época da "religião de Rabelais" apresenta uma narrativa que conecta fic­ ção e realidade, atos ficcionais e atos reais, atitudes utópicas e idealizações, que indicam a complexidade do período, onde a questão central que se discute é o que difere atitudes antigas de modernas, afinal estamos em plena segunda fase do renascimento. A precisão do impacto do século XVI vem, para Lucien Febvre, através das atitudes contraditórias dos homens, que são belamente interpretadas por Henri Beer no prólogo do texto em questão:

"Finalmente, nos encontramos com a incredulidade e o 'primitivismo'. Todos em maior ou menor medida, tanto os crédulos com o os sonhadores, misturavam 'natureza' e ‘sobrenatural. E não unicamente as pessoas incultas, os idiotas e os ignorantes; não só os pseudo eruditos, os 'espectadores marginais' — astrólogos, cabalistas, hennéticos, procuradores da pedra filosofal, "ocultistas de todo genero", dos quais Febvre fala em páginas cheias de interesse — os quais conduziam em si mesmos um universo fan­ tasmagórico; mas sim os mesmo sábios que ‘todavia não pensavam que sua tarefa, seu trabalho, sua missão adequada era... descobrir leis e, submergidos em um con­ junto de fatos, sem aparentes vínculos entre si, introduzir neles uma ordem, uma clas­ sificação, uma hierarquia ".

A ciência: esta palavra aqui 'é um anacronismo

A atitude de Lucien Febvre é a de mostrar que em bora o século XVI produ­ za profundas modificações, as vacilações e as inexatidões com relação à maneira de olhar e experimentar o mundo dominam a cena cultural e introduzem form as e atitudes men­ tais portadoras de possibilidades interpretativas variadas, que tanto podem permitir a iden­ tificação de uma ciência experimental como revelar uma religiosidade profunda. O que Lucien Febvre não discute são, de um lado, as possibilidades de convi­ vência entre saber científico e religiosidade; de outro, as conseqüencias dessas atitudes opos­ tas e em que medida são reveladoras de um processo de instauração de um novo procedi­ mento diante do mundo, pois por maior religiosidade que tenhamos, os homens estão dando passos gigantescos em direção a uma autonomia de pensamento e ação, descobrindo que o universo não é finito e, nem mesmo, perfeito e, com isso, inserindo um sentido humano 82


OAto de Descobrir ou a Fundação de um "Novo Mundo

G ra v u ra a n ô n im a ,

baseada em desenho de Nicolas Van G e e lk e rk e n 162 2 1623

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no universo, que é decorrente do rompimento com a transcendência, mas que depende da descoberta do homem e de seus humores e sentimentos, que passa a pensar o universo, observá-lo e classificá-lo através de regras de método. É o caso do próprio autor utilizado como chave da narração de Lucien Febvre, Rabelais, que apresenta o novo sob a forma da carnavalização da sociedade humana, da sua tragicidade e comicidade, da utilização da linguagem do cotidiano, que resulta num imenso repertório de histórias sobre esse movimento em direção ao novo.*1 Entretanto, com m aior competência, Henri Beer discute essa avaliação de Lucien Febvre e começa perguntando "é verdadeiramente um anacronismo falar em ciência no século XVI?" Henri Beer, em princípio, aceita a conclusão de Lucien Febvre: o pior dos erros e das fantasias é "pretender que o século XVI seja um século ascético, um século li­ bertino, um século racionalista e glorificá-lo como tal".(5) E demonstra isso através das di­ ficuldades dos homens, desse século, alterarem seus com portam entos e costumes, em fun­ ção de sua profunda religiosidade. Mas, em seguida, coloca, Henri Beer, em discussão a tese central de Febvre, demonstrando que é possível, no século XVI, perceber um "espírito científico" que se con­ funde com a aventura, que se mistura com as religiões de protesto e que se afirma nas des­ cobertas e nas idealizações de novas terras, especialmente, com o desenvolvimento da im­ prensa e da cartografia. Em síntese, o século XVI, embora de profunda religiosidade, afirma-se en­ quanto produtor de novidades e modificador de valores. Isto se realiza por uma nova for­ ma de qualificar principalmente as idéias e de lhes dar a função de inventoras do mundo visível e real, ou seja, possível, fazendo com que os hom ens passem a compreender a di­ mensão infinita do universo e sua perfeição, não em decorrência de um sentido divino, mas como resultante da ação de experimentar e observar do homem. Um dos exemplos mais importantes dessa nova maneira de ver está expres­ sa pelo desenvolvimento da idéia do m aravilhoso', que é constituída antes, no imaginá­ rio feudal, do encontro com o maravilhoso americano, palpável ou visível e resulta tanto da recuperação da tradição clássica quanto dos mitos bíblicos. Dessa forma, o adjetivo ma­ ravilhoso não se relaciona às descobertas, refere-se ao próprio mundo infinito das idéias e ao conhecimento que o homem tem de si. As utopias renascentistas de Morus, Cam panella e Bacon são uma demons­ tração do engenho do mundo das idéias e da constituição da arte da invenção, como algo particular desse novo homem. Evidentemente, que a arte da invenção (narração + observação + intuição + ficção) é menos complexa de ser apresentada, quando pensam os, acompanhando Feb­ vre, que esse homem a.nda e prisioneiro de visões anteriores de mundo, onde a idéia de finitude é a marca mais vigorosa. Assim, a invenção e sua sim bolização na linguagem e 84


0 Ato de Descobrir ou a Fundação de um "Novo Mundo" na cultura são uma forte referência ao movimento de explosão da individualidade huma­ na e construtoras do mundo das descobertas.

III. Invenções e Descobertas Se aceitam os a hipótese de que antes da descoberta temos a invenção da­ quilo que 6 possível descobrir, a diferença entre invenção e descoberta deixa de ser retórica. A invenção evidencia o mundo das idéias e da criação, é o resultado da com­ binação das várias descrições do mundo, feitas pelos intelectuais, viajantes, poetas, artis­ tas e filósofos e estabelecidas em mapas e figurações do universo. É a maneira de ver o uni­ verso no momento em que ele se torna infinito. É a forma de revelar a capacidade infinita do homem de conhecer o universo e transformá-lo em seu objeto de idealização, ao mes­ mo tempo em que permite caracterizar a universalidade do ser humano. A invenção é um contato espiritual com as possibilidades resultantes de um processo intelectual de reflexão sobre tudo aquilo que já foi produzido sobre o homem, é uma atitude crítica e radical. A descoberta é um contato físico, resultante de manifestações ou sinais de novidades. Aparentemente, a descoberta em ociona mais, pois o contato físico é mais sen­ sual do que a produção das idéias, entretanto, hoje sabemos que as coisas não se verifica­ ram assim e que o ato de f undação vincula-se muito mais à invenção do que à descoberta, apresentando-a com o comprovação da eficácia do mundo das idéias ou da imaginação do homem. Esse universo de engenhosidade invencionai rompe com a visão medieval do universo finito e perfeito, rompe com a idéia de que nada no universo pertence ao ho­ mem, nem mesmo o lugar onde ele habita, rompe com a idéia de que dominar o mundo é sacrilégio. Finalmente, estabelece uma nova "physis" que atua como aproximadora do homem e da natureza e aprimora a invenção, introduzindo perguntas que são fundamen­ tais para as descobertas, com o qual é a forma real do cosmos?, enfatizando a zona espiri­ tual e as dimensões sublunares, onde se encontram, nesta ordem, o fogo, o ar, a água e a terra; ou qual é a circunferência da terra?, que provoca uma outra questão relativa à quan­ tidade de água e terra existentes no globo terrestre. Entretanto, por mais radicais que sejam as rupturas, suas conseqüências não nos habilitam a uma conclusão positiva quanto à fundação da ciência moderna, especial­ mente porque essas perguntas, denotadoras de preocupações novas, têm respostas diver­ sas que apontam para direções opostas. Por exemplo, a questão relativa à medição da ter­ ra, com seu complemento relativo à quantidade de terra e água, leva-nos à conclusão da existência, para os homens da época, de um só conjunto de terras cercado de agua, a Ilha da Terra, e a conseqüente invenção de ocidente e oriente, como as duas pontas da Ilha, e com características diferentes que precisavam ser explicadas. Por outro lado, provocou uma reflexão mais atuante sobre o universo e o

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homem, promovendo mudanças importantes na compreensão do gênero humano em sua singularidade, liberdade e autonomia, com o estabelecimento das diferenças entre univer­ so, globo terrestre e mundo. O universo passa a ser entendido como tudo que pode ser objeto de especula­ ção do olhar e que circula e incluí o mundo e o globo terrestre. O globo terrestre passa a designar o planeta que se relaciona com os outros corpos celestes e o mundo passa a ser a morada cósmica do homem, sua casa no universo, o ecw u ciic" grego. Toda a recuperação do saber clássico som ada aos mitos bíblicos, principal­ mente o da expulsão do paraíso, contribuem para a fixação do mundo como espaço de ação construtiva e ativa do homem e determina o seu conhecimento, ou seja, as separa­ ções forçam o homem a entender o mundo que habita e a saber as proporções desse mun­ do, terras habitadas, habitantes exóticos, animais, vegetais e etc Assim, a separação leva ao conhecimento e a um conhecimento caracteriza­ do pela evidência da verdade proporcionada pela relação entre teoria e empiria e é isto que provoca a grande explosão das descobertas, pois elas são o resultado da inquietude do ho­ mem diante da necessidade de conhecer o lugar no qual habita, sua casa cósmica, e se pre­ ciso utilizará todo o conhecimento da astrologia e da magia. 86


o Ato de Descobrir ou a Fundação de um "Novo Mundo" IV. Conclusão: uma invenção e duas descobertas O estabelecim ento do mundo com o espaço do homem provoca uma dupla atitude mental e intelectual. A primeira expressa-se pela manutenção da qualidade inventi­ va diante e depois da descoberta. A outra, tende a dar mais importância à descoberta e negli­ gencia a invenção. As duas, entretanto, ligam-se a uma só invenção: o mundo moderno. Para elucidar melhor este ponto, tomarei um exemplo. O que proponho pa­ ra reflexão é a fundação das cidades do Rio de Janeiro, uma francesa e outra portuguesa. A francesa idealizada e inventada na luta de afirm ação da potência do homem e das idéias num momento em que a liberdade do homem está sendo transferida para o estado, mas construída por hom ens que mantinham uma referência humanista: André Thevet e Nicolau de Villegaignon. C om o obra do idealismo humanista, a França Antártica é a realização do ser do novo homem, é o reencontro com o mundo das utopias e a sagração de um tempo de conquistas do hom em enquanto produtor inventivo do mundo. E a realização interior do homem na natureza sob a forma de paraíso. A França Antártica é o exemplo da atitude na qual a descoberta é realizada sem o abandono da invenção, que mantém viva a chama da construção. A portuguesa é característica da segunda atitude, onde a descoberta se so­ brepõe à invenção, diminuindo o impacto do maravilhoso e associando a descoberta a mais um lugar conhecido no mundo do homem, a vitória é do ter e não do ser. Notas ( 1 ) Este tra b a lh o foi escrito para a mesa redonda sobre a fundação da ciência moderna no S im p ó sio Regional da A N P U H Rio de Janeiro, Niterói, 1992. ( 2 ) A ed ição utilizada foi a m exicana da UTEH A de 1959. ( 3 ) FE BV R E, Lucien. El P r o b le m a d e la In cred u lid a d en el siglo XVI, México, UTEHA, 1959, pp. X IV e XV. ( 4 ) Para um a com paração com Lucien Febvre é interessante observar, especialmente, quan­ to a o contexto da com icidade e da carnavalização: BH A KTIN , N. A Culturas Popular na Idade M édia e no Renascim ento, SP, Hucitec, 1989. ( 5 ) FE BV R E, Lucien. op. cit., p. 399.

Bibliografia LE ST R IN G A N T, Frank. LA telierdu C o s m o g ra p h e ou lim a g e d u m o n d e à la Renaissance, Paris, A lb in M ich el, 1991. 0 'G O R M A N , Edmundo. L a In v en c ió n d e A m érica. México, FCE, 1984. H O L A N D A , Sérgio Buarque de. V isão do Paraíso, SP, Brasiliana, Cia Ed. Nacional, 1970. D E B U S. A llen G . El H o m b r e y la n a tu ra lez a en el R en acim ien to, México, FCE, 1986. R O SS 1 , P aolo. O s F iló s o fo s e a s M á q u in a s , SP, Cia das Letras, 1989.

A N T O N IO E D M I L S O N M A R T IN S R O D R IG U E S é Livre D ocente em H istória do Brasil pela UERJ, professor dos D e p a rta m e n to s de H istória da P U C , U ERJ e UFF e dos program as de Pós-G raduação em História da A rte e da A rq u itetu ra n o Brasil e M estrad o em História Social da Cultura da P U C -R IO .

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JOSÉ THOM AZ BRUM

Arte e Ascese em Schopenhauer

A arte é a co n tem p la ção das co isas, independente d o princípio d e r a z ã o ^ " . A célebre definição de Schopenhauer nos introduz no âmago de sua Estética. Filosofia da arte dependente de um a reflexão global sobre a vida e sobre o homem, esta doutrina está centrada na idéia de c o n tem p la çã o . "A v id a o s c ila c o m o um pên d u lo, d a direita para a esquerda, d o sofrim ento a o tédio{2' . O hom em está condenado a viver uma existência comandada por uma Von­ tade inconsciente que lhe é estranha. Esta força onipresente exige uma satisfação impossí­ vel e condena-o a um eterno retorno da impotência: a cada dia, a dor de viver se renova e quando cessa caím os em um pântano afetivo, o tédio, Langeweile, o tempo que se pro­ longa, que custa a passar. Com esta dupla compreensão da condição humana, Schope­ nhauer nos oferece uma imagem sombria do homem — colorida apenas pelos espasmos da dor e pela maquinal reincidência do tédio. É esta concepção antropológica angustiante que serve de pano de fundo pa­ ra a sua doutrina estética. O mundo é repetição, ora angustiante, ora tediosa, da Vontade que nos domina. Viver em um mundo assim, "semelhante aos dramas de Gozzi*3’", é ser ator de uma peça absurda e sufocante, é obedecer cegamente às ordens da Vontade. Mas existe uma alternativa para o que Schopenhauer definiu como um sonho muito curto do espírito infinito que anim a a Natureza*“1’": a passagem do estado de ator ao de especta­ dor. Trata-se da e ta p a estética. Se na cotidianeidade, na vida absurda, as funções da re­ presentação (intelecto) estão subordinadas à Vontade, na contemplação estética a relação se inverte: a vontade fica a serviço da representação. O mundo antes vivido, e de forma angustiosa, é agora contemplado, posto entre parênteses. Esta relação distanciada é o que Schopenhauer cham a de o m u n do co m o representação, titulo do livro terceiro de sua obra principal O M u n d o c o m o V on tade e c o m o R epresentação, publicada em 1819. As idéias de Schopenhauer sobre a arte e sua função redentora e consolado­ ra se encontram, principalmente, no livro III do M undo. São ao todo umas duzentas pagnas, incluindo-se aí os suplementos ao livro III, da segunda edição. Excetuando-se alguns

Caspar David Friedrich ' Penhascos Calcáreos em Rügen" 18181819

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textos breves de sua obra tardia, os Parerga e P am lip om en a{5), temos o essencial desta dou­ trina estética fixado desde 1819, aos 26 anos de idade do filósofo*6^.

No livro III, é exposta a primeira etapa de liberação (E r lõ s u n g )^ com rela­ ção à Vontade: a etapa estética. Liberação efêmera e frágil, já que Schopenhauer considera que a renúncia definitiva ao mundo (ou à Vontade) só se dará no terreno ético, quando o santo ou o asceta alcançarem o que denomina "a supressão da vontade por ela mesma", ou a negação absoluta da V on tade d e V iver (W ille zu m L e b e r é encontro singular de uma doutrina pessimista com a dimensão ascética das religiões do Oriente e do que cha­ ma de verdadeiro cristianismo", o cristianismo da conversão e da renúncia ao mundo. A etapa estética não é, então, uma renúncia definitiva. É, antes, uma pausa temporária, um momento de suspensão frágil em que "o sujeito cognoscente puro, liberto

Caspar David Friedrich "O Mar de gelo" 1823-1825

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Arte e Ascese em Schopenhauer da Vontade, da dor e do tem po'0'", "arranca o objeto de sua contemplação da corrente fu­ gidia dos fenôm enos'10)". O mundo, constituído de fenômenos presos na sucessão e no espaço, é visto su b a etem ita tis specie, do ponto de vista da eternidade*11 ’. Este mundo con­ templado desinteressadamente, livre da pressão da Vontade, é o mundo eterno das Idéias. A arte, segundo Schopenhauer, é a contemplação desinteressada das coisas em sua essên­ cia, isto é, contemplação das Idéias. O prazer estético está fundado na contemplação das Idéias, que são as objetivações mais puras da coisa-em-si. No estado estético, estado de exceção, o homem (ou o g ên io, que é a form a superior e acabada da humanidade'111’) se torna "sujeito puro de conhecim ento”, e o m undo se revela transparente espelho da Von­ tade, da coisa-em-si segundo Schopenhauer. Daí a fórmula: a arte nos apresenta um cla­ ro espelho do ser do m undo113’".

Caspar David Friedrich "O Watzmann" 1824 1825

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lOSÉ T H O M A Z BRU M



Arte e Ascese em Schopenhauer E nítida nessa visão schopenhaueriana a mistura de duas doutrinas antigas: a teoria das Id éias de Platão e a concepção da m im esis tal como é exposta por Aristóteles na Poética. A arte é platônica no que nos oferece uma visão (sensível) da essência do mun­ do. E aristotélica no que esta visão é representação, espelho de algo que não está presente, mas apenas sugerido, refletido. Para Schopenhauer, a arte é, antes de tudo, representação da Idéia, visão do mundo sob o seu m elh or aspecto, que é o da eternidade e não o do tempo. No que se refere às suas observações sobre as artes específicas, frisamos que cada arte, segundo ele, corresponde a um grau determinado de objetivação da Vontade. Assim, de forma hierárquica, a Arquitetura se encontraria no nível mais baixo (o da maté­ ria) e o Drama, o verdadeiro cume da arte para Schopenhauer, no mais elevado. Esta con­ cepção estética que imita o movimento de ascensão do Banquete platônico tem uma razão de ser. As artes serão tanto mais perfeitas quanto mais claramente forem "representações da Idéia" ou apresentações estéticas do mundo visto sob o seu melhor aspecto, isto é, fora do tempo. Encontra-se no livro III do M undo, item 52, a célebre filosofia da música de Schopenhauer. Ela é elucidativa pelo privilégio, inusitado até então na literatura filosófi­ ca, que dá à música sobre as outras formas de arte. Dizíamos que, para Schopenhauer, o drama representaria o cume da arte( 14). Mas o filósofo acrescenta: a plenitude desta forma de arte só é possível através da música. Esta exaltação da música, que considera a arte dos son s uma arte de origem metafísica, é uma novidade estética. Leibniz via na música apenas uma relação de núme­ ros, "um exercício aritmético inconsciente, no qual o espírito não sabe que conta*15) (exercitium arithm eticae occultum nescientis se nwnerare animi). Mas Schopenhauer lhe dá uma dimensão de "reveladora". A música, diferentemente das outras artes, não seria represen­ tação da Idéia, mas uma expressão da própria Vontade em si. Se as outras artes exprimem a Vontade através da Idéia, a música a exprime de maneira correlata às Idéias, isto é, dire­ tamente. A música seria, assim, paralela às Idéias, seria uma forma de arte imediata que exprime unicamente o bem-estar e a dor — as únicas realidades válidas para a Vontade. Sendo uma arte metafísica e imediata a música e explicação d o m undo, ou, para usar as palavras do jovem Schopenhauer: a música é a melodia cujo texto e formado pelo mundo . Este privilégio da música sobre as outras artes tem, na história da Estética, uma conseqüência notável. É a partir desta concepção que Richard Wagner elaborará, em sua obra teórica e dramática, a teoria da obra de arte integral (das Gesam tkunstwei k) , da qual Nietzsche dará, em 1872, o comentário filosófico em O N ascim ento da Tragédia a partir d o Espírito d a Música. Caspar David Friedrich ''Andarilho, sobre o mar de neblina" 1818

JOSÉ T H O M A Z BRUM


Caspar David Friedrich "Mulher na janela" 1822


Arte e Ascese em S c h o p e n h a u e r

A arte, em Schopenhauer, tem, portanto, uma função ascética e redentora. Ela arranca o objeto contem plado da corrente fugidia dos fenômenos e o instala como re­ presentante do todo do m undo na esfera da contemplação. Se, na atividade do conheci­ mento, o que importa são as relações entre as coisas, o p rin cíp io d e razão, na arte o tempo écongelado. A mítica roda de Ixion, que exprime a idéia de eterna repetição, se detém por um momento. E neste frágil instante da contemplação, o mundo surge como Idéia, como espetáculo a ser contemplado. A arte é, para Schopenhauer, uma via privilegiada de conhecimento meta­ físico. Para ele, os conceitos, o mundo submetido ao princípio de razão, exibem apenas o aspecto fenomênico, superficial do mundo. São, portanto, uma "expressão inautêntica da verdade*lo . A arte, enquanto vita co n tem p la tiv a — para usar uma expressão dos an­ tigos

é uma abordagem su p erio r do mundo. Livre do labor da História e das pressões

da sensualidade, o mundo se transfigura, se revela su b aetem itatis sp ecie. E esta dim ensão da v isã o co n tem p la tiv a que fez de Schopenhauer o filóso­ fo dos artistas, e que explica a sua influência sobre nomes tão díspares como Wagner, Proust, Thomas Mann, K afka e Beckett. A experiência estética é a da afetividade posta entre pa­ rênteses, quando ocorre uma "completa disponibilidade intelectual'171" que constitui o am­ biente próprio do artista. Experiência de traição dos interesses da Vontade, a arte é ascéti­ ca por essência. Livrando-nos, por momentos, da angustiante oscilação entre a dor e o té­ dio, a contemplação estética nos faz viver, paradoxal mente, "alguns instantes no intemporal". O mundo, fonte de angústia ou de aborrecida estagnação, é banhado por uma nova luz'181, "algo imponderável, que quase não é corporal, que é quase um espírito'191 : a luz da contemplação estética*20*.

Notas ( 1 ) D ie B e tr a c h tu n g s a rt d e r D in ge, u n a b h ä n g ig v o m S atze des G ru n d e s in M VR, livro III,

3 6. pág. 2 6 5 , Säm tliche W erke, Band 1, Cotta-Insel Verlag, 1976. ( 2 ) S e in L e b e n sch w in g t a ls o g le ic h e in e m P en d el hin u n d h e r z w is c h e n d e m Schm erz und d e r L a g e n w e ile in M V R , livro IV, 57, pág. 428, Säm tliche W erke, Band I. ( 3 ) CI M V R , livro III, 35, pág. 263, Säm tliche Werke, Band I. O texto completo diz: "A ca­ b a r e m o s e n fim p o r d e s c o b r ir q u e o m u n d o è s em elh a n te a o s d r a m a s d e G ozzi; s ã o sem ­ p r e o s m e s m o s p ers o n a g e n s q u e a p a r e c e m , eles têm as m esm a s p a ix õ e s e o m esm o d esti­ n o. É v e r d a d e q u e o s m o t iv o s e o s a c o n tec im en to s v a ria m n a s d iferen tes peças, m as o e s p ir it o d o s a c o n te c im e n to s é o m e s m o " . ( 4 ) n u r ein k u r z e r Traum m e h r d e s u n en d lich en N aturgeistes in M V R , livro IV, 58, pág. 4 4 1 , Sä m tlich e W erke, Band I. ( 5 > O s d ois volum es de P arerga u n d P a r a lip o m e n a foram publicados em 1851. Os ensaios que se relacionam diretam ente com a questão estética são: S o b r e a M etafísica d o B elo e a E stética e S o b r e a A rte d e E s c re v e r e o Estilo. ( 6 ) C lém en t Rosset observa, com m uita pertinência, que as influências externas na elabo­ ração da Estética de Sch op en hau er são pequenas. Se o filósofo conhecia a Critica d o lu iz o de K ant, publicada em 1790, e alguns textos estéticos de Schiller, a famosa série de cu rso s de Hegel sobre o tem a só com eçou a ser ministrada em 1818. Já que a obra

>OSH T H O M A Z BRUM

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GÁVEA

fund am ental de Sch open hau er foi com p osta entre 1814 e 1818, a relação com a Estética de Hegel n ão pôde ocorrer. Rosset acen tua, ironicamente, que, dada a oposição de Scho­ penhauer às idéias do m estre da D ialética, m esm o que houvesse chegado a conhecera sua teoria estética, "não teria m odificado uma linha de seu texto". C f. Rosset, Clément. LEsthétique de Schopenhauer, Paris, PUF, 1969, op. cit pág. 17. ( 7 ) 0 term o E rlö su n g significa origin ariam en te red en çã o, s a lv a ç ã o . Uma conotação reli­ giosa ou mística recobre esta palavra. P referim os traduzi-la por lib eraçã o , pelo fato de a etapa estética não constituir um a finalização, um alívio definitivo com relação à Vontade. ( 8 ) S o b re esta questão fundam ental para a ética schopenhaueriana, consultar o capítulo XLV III dos suplem entos a o livro IV d o " M u n d o c o m o v o n ta d e e c o m o Representação", intitulado "Teoria d a N e g a ç ã o d a V o n ta d e d e Viver" (Z ur L ehre v o n d e r Verneinung des W illen s zu m L eben ), pág. 772 a 8 1 3 , Säm tlich e Werke, Band II. Neste texto, verdadeira ode ao ascetism o, Sch op en hau er a firm a que o único cam inho para o homem ser resga­ tad o de um a existência destin ada a o sofrim ento e à m orte é a negação da Vontade. ( 9 ) e r ist rein es, w illen lo ses, s c h m e r z lo s e s , z eitlo se s S u b jek t d e r E rken n tn is in MVR, livro III, 34, pág. 257, Säm tliche W erke, Band I. (1 0 ) in M V R , livro III, 36, pág. 265, S äm tlich e Werke, Band I. (1 1 ) C f. Spinoza, Ética, livro V, p rop osição 31, escólio. (1 2 ) N o parágrafo 36 do M u n d o , S ch o p en h au er expõe a sua teoria do gênio. As origens filo­ sóficas de sua concepção podem ser localizad as na obra do rom ântico Jean Paul Richter intitulada V orsch u le zu r A e s t h e t ik (C u r so p r e p a r a tó r io d e E stética ) e nas idéias de De­ nis D id erot sobre as diferenças en tre o ta le n to e o g ê n io expostas no ensaio Du Génie, publicado no volum e V da E n c ic lo p é d ia . O gênio, segundo Schopenhauer, é a imagem da insatisfação e da solidão. O seu op osto é o filisteu, o homem médio, incapaz de trans­ cender a esfera utilitária da existên cia. É fam osa a form ulação do gênio relacionado à loucura. Desde os seus m anu scritos de juventude, Schopenhauer já se opunha a Fichte q ue afirm a que a pessoa dem ente se ap roxim a do anim al. Para Schopenhauer, o gênio está m ais próxim o da dem ência d o q u e a m ente ordinária, e o demente está mais próxi­ m o do gênio do que do an im al. Para um a abordagem profunda e definitiva da questão em Schopenhauer, consultara o b ra de A rth ur Hübscher, D e n k e r g e g en d e n S tro m , capítulo IV, pág. 84 a 107, Bonn, ed. Bouvier, 1987, terceira edição. (1 3 ) z u m h ellen S p ieg el d e s W esen s d e r W elt w ir d in M V R , livro III, 36, pág. 266, Sämtliche W erke, Band I. (1 4 ) In M V R , livro III, 51. (1 5 ) V iri illustris G . G . Leibnitii e p is t o la e a d d iv e rs o s, ed. Kortholt, Leipzig, 1 7 3 4 ,1,241 (Carta 154 a C h ristian Goldbach de 1 7 -4 -1 7 1 2 ). A frase de Leibnizé citada por Schopenhauer no parágrafo 52 do livro III do M u n d o , onde expõe a sua m etafísica da música. Cf. pág. 35 7 , Säm tliche W erke, Band I. (1 6 ) A ob servação é de Rüdiger S afran sk i, n o capitulo 15 de sua biografia de Schopenhauer, S c h o p en h a u er un d d ie w ilden Ja h r e d e r P h ilo s o p h ie, München-Wien, Carl Hanser Vierlag, 1987. (1 7 ) C f. D idier Raym ond, S c h o p e n h a u e r , Paris, ed. du Seuil, 1979, op. cit pág. 171. Ray­ m ond afirm a que a d e s e r ç ã o d o s in teresses d a v o n ta d e p erm ite u m a co m p leta disponi­ b ilid a d e in telectu al, u m a c o m p le t a lib e r d a d e d e o lh a r d e q u e s e a p ro v e ita rá o criador". (1 8 ) O recurso à m etáfora da luz n ão é fortuito. Em 1816, o jovem Schopenhauer escreveu um opú scu lo U eb er d a s S eh n u n d d ie F a r b en (Sobre a Visão e as Cores) onde dialoga com o T ratad o d a s C ores de G oeth e de 1810. Schopenhauer participa da reação do Idea­ lism o alem ão à ótica new toniana. M au rice Elie, tradutor francês dos textos de Schope­ nhauer referentes às cores e à v isão (e tam bém da correspondência com Goethe sobre o assunto), afirm a que, tanto na filo so fia de G oethe com o na de Schopenhauer, "um v a lo r e sp ir itu a l é a tr ib u íd o à luz e à s c o r e s " . E continua: "a luz é o s ím b o lo mesm o do c o n h e c im e n t o co n te m p la tiv o , e la é im a te ria l, ideal, a p r o v a d is s o é q u e um raio de luz p e rm a n e c e im ó v el c o m o um fa n ta s m a em u m a tem pestade", Cf. Elie, M aurice - Les Voies

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Arte e Ascese em S c h o p e n h a u e r

d e la L ib e r a t io n scio n S c h o p e n h a u e r , D ip lo m a d e E stu dos S u p er io re s d e F ilo so fia , Uni­ versidade de Nice, França, 1967, op. cit pág. 49, 50 e 57. Agradecem os ao Professor Elie, da U n iversidade de Nice, a gentileza de n os ceder um exem plar deste trabalho. (1 9 ) Su p lem en to s a o livro 1 do M u n d o c o n t o V o n ta d e e c o m o R ep r es e n ta ç ã o , capítulo III, S o b r e o s S e n tid o s . C f. pág. 41, S ä m tlic h e W erke, Band 11. (2 0 ) Registram os a publicação, em português, d o livro da Profa. Dra. Muriel M aia, da UFRGS, em q u e a m etafísica estética de S ch o p en h a u er é estudada de fo rm a profunda e estimu­ lante. C f. A O u tra F ace d o N a d a , P etrópolis, Ed. Vozes, 1991.

O b serv a çã o : O s textos de A rth ur S ch o p en h au er citados foram por n ó s traduzidos segundo a edição de W olfgang von Lnhneysen, Stu ttgart /Frankfurt-am -M ain, C otta-Insel Verlag, 1976. A sigla M V R corresponde à abreviação d o título da obra principal de Schopenhauer, O M u n do c o m o V o n t a d e e c o m o R e p r e s e n ta ç ã o (D ie W elt a ls W ille u n d V orstellu n g).

JOSÊTHOMAZ BI' A s A rtes d o In telecto e A rquitetura n o B ra sil d a P U C -R J.

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HUBERT D A M ISC H

A Astúcia do Quadro Tradução: Anamaria Skinner

1. A língua francesa o significa sem m ais^m quadro é primeiramente um -objeto, um painel, uma superfície plana, seja ela feita de madeira ou de tela esticada sobre um chassi, ^ g u m a coisa como uma mesa, mas erguida verticalmente, na altura e nas conaições requeridas para receber o que virá inscrever-se ou afixar-se sobre esse suporte. Seja uma metonímia (a parte tomada pelo todo, o suporte substituindo a obra considerada em sua integralidade), ou para melhor dizer, uma sinédoque de sentido inverso àquela que a língua inglesa emprega: aí onde esta acentua por prioridade a imagem (picture), e opera uma distinção nítida entre o que faz pintura ou quadro no sentido ativo, "progressivo*' dotermo painting e o suporte sobre o qual se instala (canvas, panei, picture plane), o fran­ cês não se opõe a sublinhar, a princípio, a conotação material do que chama quadro; li­ vre, para o museu, como se dá com o Lou vre, para corrigir em seguida o lugar reagrupan­ do suas coleções de quadros sob o título de um departamento não da, mas das pintura(s)". Caso de terminologia, admite-se, mas que nem por isso é inocente, nem des­ provido de consequências. O fato de uma mesma palavra poder designar, ao mesmo tem­ po, o produto do trabalho de pintura e o que constitui o seu suporte, dá efetivamente o que pensar sobre as relações que isto que chamaremos a operação do quadro pode manter com sua forma, sua aparência exterior, seu fora, assim como com o que faria o seu subs­ trato, a parte inferior, senão a substância mesma. Formulada como o foi, no início deste século, em formas conjuntamente visuais e picturais como quiseram Cézanne e Seurat, uma tal problemática inscreve-se, historicamente falando, na arrancada da arte, e primeiramente da pintura de nosso tempo, no tempo que esta pretendia "romper com o quadro de cavale­ te". Como bem observou (e disse bem) Daniel Buren(1^, a eliminação, o desaparecimento material do "chassi", da tela, senão da "pintura" mesma, não bastam para fazer com que esses termos tenham se tornado, por esta razão, anacrônicos: o mesmo ocorre, a seu mo­ do, com o "quadro" cuja norma, na falta da forma, continua a impor-se indiretamente até em muitas produções que parecem estar mais afastadas dela, as mais liberadas. Me­ lhor do que isso: a refletirem-se nela, mas sob espécies o mais freqüentemente substituti-

Paul Cézanne "Sous-bois devant les grottes au-dessus de Chateau-Noir" 1900-1904

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vas ou ricas em imagens, sem que este refletir-se esteja a serviço de projeção alguma, cons­ ciente e deliberada, e nem também, de desenvolvimento algum, de nenhum trabalho ver­ dadeiramente conseqüente, seja ele de pintura ou de pensamento. 2.

O quadro, coisa do passado, como o seria a perspectiva dos pintores, da

qual participa historicamente, o aparecimento da forma, senão do objeto quadro , ten­ do coincidido no tempo com o aperfeiçoamento do dispositivo representativo conhecido pelo nome de cô stm zio n e legittim al Q ue a defecção de um tenha tido por corolário ou por conseqüência lógica o abandono da outra, a história da arte tal como a escrevemos, considera-o um dado de fato, sem que a relação assim fixada entre a forma do quadro e a perspectiva artificialis tenha, no entanto, sido objeto de nenhuma análise crítica um pouco mais extensa. O esquema legado aos historiadores pelos epígonos do Cubismo quer que a ruptura da qual teria procedido a arte moderna tenha primeiramente sido um feito de Cézanne, cuja obra anunciaria precisamente o fim da perspectiva dita "científica". A rela­ ção, o elo de dependência que a história sugere, ou que indica, ou que torna manifesto, pede uma elaboração teórica que conduzirá talvez a anulá-la em dúvida: assim como tam­ bém se pode evitar a questão sobre o estatuto e o modo de atividade que podem ser tanto os da forma "quadro" como o do paradigma perspectivo no contexto da arte hoje, tidos como são um e outro por "coisas do passado", mas que não perderam por isso toda perti­ nência, toda autoridade. 3.

A ruptura proclamada com a forma "quadro" funda-se em razões de di­

versas ordens. A começar por razões que deveriam cham ar-se ideológicas, até mesmo_J>Qr—líticas, uma vez que decorrem menos de considerações propriamente estéticas ou picturais„_ do que de uma crítica das condições conjuntamente materiais e institucionais da apresen­ tação, da difusão e da conservação das obras de arte em geral. O quadro na acepção con­ creta da palavra é o produto de uma história e apresenta-se com o uma forma culturalmente determinada. A noção, o próprio termo quadro remete a um objeto que se presta a uma apropriação privada, e toma lugar, a esse título, no circuito da mercadoria. Um objeto, desde então, que pode ser subtraído a seu contexto de origem, ou escapar-lhe, o que se traduzirá necessariamente por um desperdício de significação que não teria meios de ser compensado, se julgarmos em termos estritamente referenciais, o acréscimo de sentido, senão de efeito, que vêm à obra pelo fato de estar colocada em série com outras produções no âmbito da coleção ou do museu. Historicamente falando, a vontade de acabar com o "quadro de cavalete" co A responde, em larga medida, à preocu p ad o de restituir ao trabalho de pintura alguma coi- ^ sa danecessidade, até mesmo da urgência que se esperava serem as suas quando o produT* to não podia separar-se da parede ou do livro dos quais retirava seu valor de contexto. U

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não existem somente quadros de cavalete: não basta, certamente, que uma pintura a fres100

Q


A Astúcia do Quadro

Jackson Pollock "Lavender Mist" 1950

co tenha sido retirada da parede para que ela se apresente, no museu, como pode fazê-lo um quadro; mas as grandes composições de Pollock, mesmo tendo sido pintadas diretamente no chão, na horizontal, não funcionam menos, na moldura da instituição, como "telas" recobertas de pintura, e dispostas na vertical sobre um chassi, quando elas deman­ dariam por sua escala (a observação vale para a maioria dos adeptos do big ccmvas) uma maneira nova — mas sempre um pouco nostálgica — de "muralidade", e que implicaria uma outra relação com as cimalhas do museu ao mesmo tempo que com seus visitantes. 4. O quadro, coisa do passado? Mas, que quadro, ou o quadro em que senHUBERT D AM ISCH

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função, e que poderia exercer-se, essa Função, fora do contexto, senão fora de moldura* O quadro enquanto atividade, e que pediria uma nova definição da operação de pintura? A forma "quadro” corresponde a um momento na história da pintura e da arte em geral. Um momento cronologico: o aparecimento do cham ado quadro de cavalete é precisamente datado, como pode ser o anuncio de seu fim. Um momento histórico: o quadro teria chegado à sua hora, o que coincidiu com o desenvolvimento do grande cot, mércio, a acumulação do capital e a dominação da mercadoria em sua espécie indepen­ dente e fetichizada. Um momento dialético: o quadro deveria representar a negação do que tinha sido até então o suporte da pintura (ele "fura" a parede, como o faria uma "jane­ la", para retomar a metáfora de Alberti, singularmente gasta e falaciosa). Um momento ontológico, enfim, a questão sendo de saber o que pode vir a ser a pintura, e a sua "essên­ cia'^ quando esta adere à norma do quadro, quando se regula sobre ela, ou quando pre­ tende escapar à sua jurisdição. 5.

Conhece-se a contradição, a de M ondrian, confirmada hoje pela presen

ça de suas obras no museu. Pois que presentes, essas obras não se encontram, nas cirnalhas, exatamente da mesma maneira que as de Picasso ou de Matisse, não mais do que outras pinturas declaradas, contudo, abstratas. Paradoxalmente, é no momento em que os pequenos painéis pintados por Mondrian podem ser vistos, no museu, como "quadros", que se impõe com mais insistência a questão — questão teórica, e não somente histórica, questão ainda uma vez ontológica, no sentido estrito do termo — do que há e pode haver com semelhante forma de pintura, e de seu alcance assim com o das modalidades de seu funcionamento. Mondrian via no Neoplasticismo o anúncio do fim da "cultura da forma singular , à qual devia suceder uma cultura das relações que ele afirmava de equivalência, em substituição à opressão individual da forma" da "expressão universal do ritmo"; a pin­ tura como a escultura lhe pareciam ter sido chamadas a dissolver-se na qualidade de obje­ tos separados para serem diretamente projetadas — como escrevia o pintor — "na vida". O quadro caía sob o efeito desse decreto na medida em que correspondia à definição da forma singular, do jeito que ela é produzida por linhas e contida nos limites de um contor­ no. Se o termo e a idéia mesma de projeção impunham-se na ocasião, não quer dizer so­ mente que a vida , tal como a concebia a ideologia neoplasticista, tenha, a princípio, se atribuído as aparências da arquiteturaNSem dúvida M ondrian teria desejado que as cores fossem aplicadas no mesmo lugar em que a obra deveria ser exposta, o efeito não poden­ do ser precisamente calculado fora do contexto das relações que elas mantêm com a arqui­ tetura; mas seria obrigado a convir que ainda não era chegado o tempo de uma unificação completa das artes sob o título de uma arquitetura, e que a nova plástica encontrava-se' no momento reduzida a manifestar-se en qu an to pintura^ . Ü ^ia pintura, no entanto, não deveria tender a um equilíbrio somente estático, tal com o este poderia ser atingido 1 02


A Astúcia do Quadro

Piet Mondrian "Composição com Azul" 1935

nos limites do quadro, mas a um equilíbrio dinâmico, uma "composição" dada devendo pretensamente funcionar como um graf ihein ou uma matriz em expansão cujas linhas parece­ riam prolongar-se sobre a parede, por meio de um modo de projeção linear que se desen­ volveria nas duas dimensões do plano. Esse efeito, o ato de pendurar seus pequenos pai­ néis nas cimalhas do museu, não teria necessariamente posto termo a isso. Mas só seria possível fazer o recorte, e — mais precisamente — a operação de delimitação da qual pro­ cede a forma "quadro" não se move hoje, no âmbito do museu, à custa senão ao encontro das virtudes centrífugas que o pintor emprestava aos dispositivos gráficos e cromáticos a que liga seu nome. HUBERT D AM ISCH

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6.

O "modo de usar" que acompanha determinadas composições de Mon

drian, feitas como foram, para serem consideradas a uma altura e uma distância dadas, não deixa de lembrar o princípio a que obedece o dispositivo perspectivo: exceto que, aí onde um quadro construído em perspectiva demandaria, ao menos em teoria, ser visto de um ponto situado perpendicularmente ao ponto dito de fuga , as redes ortogonais con­ cebidas por Mondrian têm por efeito — um efeito primeiramente otico

desencaminhar

o olhar e com ele o sujeito que seria aqui o da arte. Se um quadro é pouco mais ou menos /esse dispositivo que Lacan afirmava, essa função na qual cabe ao sujeito reconhecer-se co­ mo talí o paradigma perspectivo não é evidentemente estranho a isso, cujo advento prelu­ diou de maneira espetacular o do sujeito que deveria ser aquele — essencialmente mo­ derno" — da ciência. E não é por acaso que o primeiro quadro, no sentido também mo­ derno da palavra, foi talvez, ao menos a título emblemático, o pequeno painel pintado por Brunelleschi no começo do Q uattrocento para prestar-se a demonstrações de perspec­ tiva: a tavoletta sobre a qual ele representou o batistério de Florença tal como este poderia ser visto por um observador que se mantivesse no interior do portal central da catedral, e que tivesse feito um furo, no lugar mesmo do ponto para o qual convergiam as linhas de fuga do quadro, para, virando-a e colando o olho em seu v erso , considerar o seu recto (o lado pintado) no espelho; a experiência que cada um poderia fazer disso tendo por pri­ meira intenção demonstrar que o ponto de vista coincidia, por projeção, com o ponto dito de fuga, e que o ponto que os Italianos e os Alemães cham am exatamente o "do olho" (il punto d ellocch io, das A u gen p u n kt) não era nada mais do que a imagem, no plano do quadro, mas reportada por hipótese ao infinito, do ponto dito, às vezes, "do sujeito". A construção perspectiva tencionava primeiramente produzir, sob espécie de calceamento em tabuleiro visto reduzido, a cena em que pôde instalar-se a "história", o que consistia para Alberti no objetivo supremo da pintura. M as o que acontece quando o tabuleiro, a grade até então vista com o horizontal, é reerguida na vertical e apfeSCTitada em vista frontal, e que as linhas perpendiculares à linha de base não convergem mais para um mesmo ponto (dito de fuga ') por intermédio do qual o infinito terá experimen­ tado inscrever-se, ao menos metaforicamente "em imagem", nos limites do organismo fi­ nito que é um quadro? O que acontece quando à custa de uma d iv ersã o que vem desviá-lo do ponto em que acreditava encontrar sua ancoragem, assim com o de uma história de que ele se acreditava o senhor, o sujeito é, quando não desencaminhado, ao menos desviado, e não sabe mais abrir o seu caminho na pintura, nem mesmo percorrê-la — e menos ainda lê-la

como acreditava poder fazê-lo com o quadro? A pintura dispõe ou desempenha

ainda, nesse estádio declarado final , de recursos que^pÕÜgr^se^iam (oudèveriam) afir­ mar "tabulares"?

7.

O último quadro é ainda um quadro. Último quadro e que põe um fim

à pintura, onde esta chega ao seu termo, ou obra última em que se anuncia a possibilidade 104


A Astúcia do Quadro

Ad Reinhardt "Abstract Painting, Blue' 1952

de uma arte liberta dos limites, quando não da tirania do quadro? "IJltimos quadros" como poderiam sê-los os tabuleiros paradoxalmente monocromáticos pintados por Ad Reinhardt, cujas casas só aparecem como tais por uma diferença ínfima indicada na espessura cromá­ tica do plano (o "entrançado" das pretas, mais ou menos intensas, mais ou menos foscas ou brilhantes), mas que ele via como os primeiros de uma nova era, o termo adquirindo, desse modo, aparênciaUe origem? O ra, é precisamente a função do que aqui se dá como "termo" que convém interrogar, se se quer compreender no qué pode consistir, ao presente, o destino do qua­ dro e de sua presença continuada, subterrânea, na pintura de hoje. Sua presença, diriam, subreptícia, pois se trata, com razão, de um modo de astúcia. Piero delia Francesca definia o quadro como um termo termine, do latim terminus: "o que limitaj)jsentido" que corres­ pondia a um duplo limite, um quadro construído em perspectiva pedindo para ser consi­ derado a uma distância ligeiramente inferior à sua largura, enquanto que esta não deveria estender-se para além da medida própria para prevenir qualquer deformação no quadro. Sem dúvida a regra voltava a assimilar o quadro a um plano de projeção; mas a experiên­ cia de Brunelleschi, e a injunção feita ao espectador para situar seu olho no reverso do qua­ dro para considerá-lo ao espelho afirma, de outro modo, mais sobre a relação implícita entre o recto e o verso de um quadro no sentido clássico do termo que o ícone de uma mo­ dernidade desenganada — e que terá muito rapidamente transportado ao cartoon — que a imagem de um chassi pintado direto na tela constitui, e que nos faz ver o quadro como se este se apresentasse virado para a parede (como já se usava no célebre Auto-retrato de Poussin). HUBERT DAM ISCH

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8. Desde então o trabalho consistiria, não tanto em destacar os traços ou os substitutos da forma "quadro” na produção contemporânea, mas em verificar nova­ mente jis diversas modalidades do "fazer quadro”, até as mais recentes, até as mais incon­ gruentes. As aventuras do quadro, mais ainda do que suas transformações: ou, do qua­ dro como forma ao quadro enquanto atividade, qual processo. Tendo como conseqüência que o trabalho d e idealização que se encontra no princípio de seu funcionamento apa­ rece como ele é: não um traço exclusivamente negativo onde se denunciaria a função ideo­ lógica que pode ser a da pintura (o quadro, seria tempo de considerá-lo, exclui enquanto tal o trompe-1'oeil, a ilusão — o engano — só se exercendo nos limites estritamente defini­ dos), mas a força — assim como se usa em matemática — mais constante, e também mais fecunda, de sua operação. No contexto da representação, o "quadro" corresponde a um momento de equilíbrio, por assim dizer instantâneo, para o qual tende a ação, e que só caminha para romper-se: assim ocorre, em Sade, q u a d ro s v iv os concebidos pelo mestre do gozo ("Meus amigos, na verdade, é um prazer encomendar-lhes quadros, não há no mundo um artista capaz de executá-los melhor do que vocês."); assim será, em Hoffmann, quando o maes­ tro, abaixando bastante sua batuta, relança o concerto que um célebre quadro de Hummel tinha apreendido e fixado em sua suspensão. Já era assim para Lessing, no que con­ cerne ao momento da ação: o pintor devia, imagina-se, escolher o momento mais fecun­ do, "aquele que proporcionasse melhor compreensão do instante que o precede e do que o segue. Ainda que o pintor se ativesse a um conjunto de objetos ou a uma paisagem cuja visão, fora de toda imputação de ação, fosse feita para prender a atenção, o quadro clássi­ co era o lugar de uma^operação de natureza essencialmente representativa: a delimitação, da qual ele procedia, tinha a intenção de servir de base para a construção de uma cena e cõntradizia enquanto tal, de encontro a um preconceito difícil de romper, qualquer outra idéia de enquadramento que não fosse interna à composição. Eisenstein não devia ver ou­ tro remédio para isso senão passar do teatro ao cinema, o qual lhe oferecia o meio de exer­ citar o grande plano e todas as maneiras de corte e de montagem em que se renunciava à ilusão de um objeto inteiro, à qual reconduz definitivamente o ideal do quadro. A pintu­ ra cubista como a futurista o prepararam para isso, dando livre curso à manifestação de objetos parciais. Mas a abstração deveria mudar tudo isso, passando do quadro como lu­ gar de uma operação à tabularidade como força mesma do trabalho de pintura. 9. Ajjprma do fazer quadro continua efetivamente a regular toda uma parte da atividade pictural desse tempo, nesse caso mesmo em que os produtos oferecem-se sob especies outras do que o quadro clássico. M as terá sido necessário, para chegar aí, que a pintura reencontre primeiramente, s o b o quadro, a m esa e que ela reate, para além da metommia, com a metafora: de Cezanne a Dubuffet, passando pelos pintores cubistas, a me­ sa voltou a ser essa superfície erguida na vertical para servir de suporte, senão para o tra106


A AstĂşcia do Quadro

Barnett Newman "Ulysses" 1952

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GÁVEA

balho mesmo da pintura, ao menos para a contemplação de seu produto^ ^g§g, suporte, basta reparti-lo, compartimentá-lo em função de algumas regras simples (esta, por exem­ plo, a que Mondrian se ateve, estritamente Mondrian, a de não admitir nenhuma linha oblíqua), para manifestar suas propriedades tabulares: do mesmo modo que na matemá­ tica, uma matriz reconduz a um quadro feito de colunas e de linhas que delimitam as casas em que se distribuem elementos que satisfazem a uma lei determinada e sobre as quais define-se um certo número de operações, a pintura tão bem cham ada abstrata aprendeu a empregar um dispositivo análogo para suas experiências em matéria, por exemplo, de interação das cores (as cores que passam umas s o b as outras, manifestando com isso que um plano não tem estritamente duas dimensões). Mas isso não seria nada ainda se o tra­ balho de abstração não tivesse conduzido a uma subversão mais radical ainda da norma do quadro: muitos painéis de cores variadas dispostos em série sobre uma parede consti­ tuirão por sua vez quadro, enquanto seria prejudicial ao pintor trabalhar sobre o dado mes­ mo do painel e, rompendo com a forma consagrada do q u a d ro, da tav ola retangular, de operar (assim como se empenha Ellsworth Kelly) no entrejogo da pintura e da escultura, sobre este limite, esta fronteira, este termo incerto que o quadro continua a representar. 10.

Esta é a astúcia do quadro)— ç[ue toda proposição pictural de alguma

conseqüência seja e deva ser, hoje ainda, como atravessada por ele. O quadro não termi­ nou de funcionar como modelo e com o norma ideal, no caso mesmo em que a sua noção terá sido, não tanto recusada quanto radicalmente transformada. M as quanto a mudar os termos do problema e, quanto à pintura, atravessar por sua vez o quadro, as estreitas fai­ xas verticais que se inscrevem de reserva nas telas de Barnett Newman, e tomam-nas lite­ ralmente d e um la d o a outro, conseguem o mesmo que o furo que Brunelleschi tinha feito no centro de seu painel, ainda que de uma maneira que invoca um outro princípio de tabularidade. Guardadas todas as diferenças, trata-se para o pintor, tanto num caso como rua outro, de indicar ao quadro seu pleno valor de id ea lid a d e — no sentido em que se fala de idealidade matemática , como podem sê-lo a quantidade ou uma função linear defi­ nida sobre os elementos de um espaço abstrato (este que se cham a ''integral"). O problema, aqui e lá (tanto em matemática como em pintura: "abstração” tendo definitivamente, aqui e lá, um sentido, obedecendo a um desígnio análogo consistindo em saber como uma ^e outra (a matemática como a pintura) se produ zen i^ ' : ressalvando-se que, aí onde o ma­ temático trabalha, sem prestar muita atenção, em um espaço de escritura que cabe à epistemologia explorar, a pintura não tem sentido se não produzir sempre como novo aquele que lhe pertence de propriedade, e se não voltar incessantemente a isso para — levando

Í

a abstração até o seu limite, que é definitivamente o mesmo atribuído a toda atividade.

todo funcionamento tabular

manifestar sua dimensão, sua espessura paradoxais. .

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A Astúcia do Quadro

Notas ( 1 ) C f. Lim ites critiqu es (1970), retom ado em Daniel Buren, Les Ecrits, Bordeaux, 1991, t. I pp. 175-191. ( 2 ) Piet M ondrian, " T h e N e w P lastic in Painting" (1917), em H arry /H oltzm an (ed.), T h e N ew A rt — T h e N ew Life. T h e C ollected Writings o f P. M. Boston, 1986 (Buren pp. 35-37). ( 3 ) C f. ]ean Desanti, Les id éa lités m a ttem a tiqu es, Paris, 1968. A gradecem os ao P rof. H ubert D am isch por haver cedido seu artigo para publicação.

H U B E R T D A M IS C H é H istoriador da arte, d iretor de estudos na École des H autes Études en Sciences Sociales. É a u to r de diversos livros entre o s q uais: T h é o r ie du N u age. P o u r u n e h is to ire d e la p e in tu re (1972), L O r ig in e d e la p e r s p e c t iv e (1987), L e Ju g em e n t d e P aris (1992).

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LUIZ FÇtfNANDO FRANCO WcMhavchik e a Arquitetura.

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S H E IL A ^ A B O GERALDO Barrio - A M orte da Arte como Totalidade. W ASH IN G TON D IAS LESSA Design e Estilo. BERENICE CAVALCANTE Etiqueta, Estética e Poder: a Cultura do Barroco. M A R G A R ID A M. RODRIGUEZ RAM OS Elementos do Barroco Italiano na Talha Joanina. SO N IA M A R IA GONÇALVES SIQUEIRA A Teatralidade no Barroco Religioso Brasileiro.

SONIA ROTBERG A AUltração Geométrica na Obra de Milton Dacosta.

FRA N ÇO IS LYOTARD Barnett Newman - O Instante.

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EDUARDO JARDIM DE MORAES Notas sobre a Contribuição de Weber para a Definição de uma História e de uma Sociologia da Arte. JORGE CZAJKOWSKI Arquitetura Brasileira: Produção e Crítica. COLIN ROWE (com ROBERT SLUTZKY) Transparência: Literal e Fenomenal. MYR1AM ANDRADE RIBEIRO DE OLIVEIRA A Arquitetura e as Artes Plásticas no Século XVIII brasileiro. REYNALDO ROELS JUNIOR Mutações da Arte na Modernidade. CARL E. SCHORSKE Mabler e Klimt: Experiência Social e Evolução Artística. GIULIO CARLO ARGAN Calder. RONALDO BRITO Possibilidade de Pintura: Dois Exemplos. KENNETH BAKER Um Uso para o Belo.

PHILIPPE JU N O D O Futuro no Passado.

PAULO y E N Â N C IO FILHO O s "Retratos dos Imperadores. VIVIAN E FURTADO MATESCO HéMò Oiticica: A Questão da Estrutura-Cor. BERNADETE D IA S CAVALCANTI O O rientalism o no Século XIX e a Obra de Pedro Américo. M A RG A RID A DE SOUZA NEVES As "Arenas Pacíficas". M A RIA LUISA LUZ TÁVORA A Gravura Brasileira - Anos 50/60. ERNST G O M BRIC H Hegel e a História da Arte. MEYER SC H A PIR O Coubet e as Imagens Populares.


EIRA Crítica da Escultura de Amílcar de Castro. IARDA MAGALHÃES M ARQUES a Cena Urbana Moderna.

TH DA SILVA PEREIRA auitetura Brasileira e o Mito. JA & A D IL L A CERÓN neto: O Jogo do Ambíguo.

VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA I aq r Segall: A Doçura do Conhecimento Solidário.

T IT O MARQUES PALMEIRO A Estética de Kant.

RICARDO BASBAUM Pintura dos Anos 80: Algumas Observações.

ROBERTO CONDURU "O País Inventado" de Antonio Dias.

MARIA ANGÉLICA DA SILVA De Wright a Pollock.

GERD A. BORNHEIM Introdução à Leitura de Winckelmann.

LUIZ ESPERLLAGAS GIMENEZ Gaudi - Sistemas Conceituais Marginais.

NOEMI SILVA RIBEIRO A Obra Gráfica de Goeldi. O Esboço de uma Cronologia.

YVE-ALAIN BOIS Historização ou Intenção: O Retomo de um Velho Debate. HANS-GEORG GADAMER A Imagem Emudecida. CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM H ISTÓRIA DA ARTE E ARQUITETURA NO BRASIL DA PUC RJ Breves Relatórios.

ROBERTOfCONDURU A Pófvora e o Nanquim. IELENA DE CARVALHAL JUNQUEIRA A Pintura Profana no Rio de Janeiro Setecentista. ELIZABETH CARBONE BAEZ A Pintura Religiosa e o Universo Colonial. MARTA QUEIROGA AM OROSO A N ASTACIO Arquitetura Civil no Rio de Janeiro Setecentista. ANNA MARIA 1. MONTEIRO DE CARVALHO O Passeio Público e o Chafariz das Marrecas de Mestre Valentim. SUELY DE GODOY WEISZ Um Estudo da Imaginária Setecentista Carioca. VERA REGINA LEMOS FORMAN Dois Mestres Imaginários: Simão da Cunha e Pedro da Cunha. CLAUDIA MORENO DE PAOLI LUIZ ANTONIO LOPES DE SOUZA Do Rio de Janeiro no Século XVIII. Um Olhar sobre a Arquitetura Religiosa. ANA MARIA MESQUITA Azulejaria Setecentista no Rio de Janeiro. HELOÍSA MAGALHÃES DUNCAN A Talha Religiosa da Igreja do M osteiro de São Bento. MARIA EDUARDA CASTRO MAGALHÃES M ARQUES VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA A História da Construção da Capital.

BERNARD BLISTÈNE Fontana: O Heliotrópio Contemporâneo. ENTREVISTA Anselm Kiefer - Pintar como Feito Heróico.

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O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação lato sensu, foi formado há 13 anos. O Curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira aprendidas em seu contexto universal, mas insiste na form ação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma form ação interdisciplinar.

Coordenador Acadêmico Carlos Zilio

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Arma Maria Monteiro de Carvalho Antonio Abranches Antonio Edmilson M . Rodrigues Carlos Zilio Fernando Cocchiarale Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Margareth da Silva Pereira Paulo Sérgio Duarte Ronaldo Brito

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