Revista Gávea - 5ª Edição

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Revista de Historiada Arte e Arquitetura

PAULO VENÂNCIO FILHO

Os Retratos dos Imperadores VIVIANE LURTADO MATESCO

Hélio Oiticica: A Questão da BERNADETE DIAS CAVALCANTI

O Orientalismo no Século Pedro Américo MARGARIDA DE SOUZA NEVES

As ‘Arenas Pacíficas” MARIA LUISA

TÁVORA

A Gravura B r a s ile ir a ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ r GOMBRICH

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GÁVEA Editor Responsável: Carlos Zilio Conselho Editorial: Eduardo Jardim de Moraes Jorge Czajkowski Katia Muricy Margarida de Souza Neves Margareth da Silva Pereira Maria Cristina Burlamaqui Reynaldo Rocls Júnior Ricardo Benzaquem de Araújo Ronaldo Brito Vanda Mangia Klabin Correspondência: Editor Responsável, revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marques de São Vicente, 225 Cep 22453, Rio de Janeiro, Brasil

Produção: Revisão tipográfica: Claudia Maria Brum Arruda Reproduções fotográficas: Pedro Oswaldo Cruz Programação visual: Diter Stein Fotocomposição: Estúdio VM — Composições Gráficas Arte-final: Luiz C. R. Henriques Produção gráfica: Gustavo Meyer Eotolitos e impressão: Companhia Brasileira de Artes Gráficas

Apoio, comedido pelo programa MCT/CNPq/FINEP e pelo Instituto Nacional de Artes Plásticas, FUNARTE


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5 Revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Departamento de História Coordenação de Cursos de Extensão

Abril 1988

2 PAULO VENÂNCIO FILHO Os Retratos dos Imperadores 12 VIVIANE FURTADO MATESCO Hélio Oiticica: A Questão da Estrutura-Cor 21 BERNADETE DIAS CAVALCANTI O Orientalismo no Século XIX e a Obra de Pedro Américo 28 MARGARIDA DE SOUZA NEVES As “Arenas Pacíficas” 42 MARIA LUISA LUZ TÁVORA A Gravura Brasileira — Anos 50/60 57 ERNST GOMBRICH Hegel e a História da Arte 73 MEYER SCHAPIRO Courbet e as Imagens Populares


Figura 1 — Péricles, Crcsilas (?), cópia romana cm mármore de original grego em bronze, c. 440-430 A.C., altura 59 cm, Museu Britânico, Londres


PAULO VENÂNCIO FILHO

Os Retratos dos Imperadores

O artista grego, em geral, não intencionava reproduzir os traços fisionô­ micos de nenhum ser humano até o tempo de Scopas e Praxiteles (IV século A.C.). A própria natureza da arte grega torna difícil acreditar que o artista reproduzisse qual­ quer semelhança física, embora, através das inscrições de algumas bases, saibamos que tentou-se retratar uma determinada figura histórica. A arte grega no seu apogeu (V sé­ culo A.C.) foi essencialmente uma arte ideal, uma arte que contradiría a si mesma se reproduzisse características individuais. O artista reproduzia uma imagem através da memória, aquela que melhor representasse o ethos do indivíduo. Não há nenhuma ra­ zão para não se acreditar que o artista não estivesse a par da vida do indivíduo a ser representado. Cresilas provavelmente tinha conhecimento da retórica de Péricles, das palavras da Oração Fúnebre que exaltava os atenienses monos na guerra contra os per­ sas: "Em uma palavra, ouso dizer que Atenas, tomada em seu todo, é a escola da Gré­ cia: considerada com relação aos indivíduos, reconhecer-se-ia que, entre nós, o mesmo homem se presta com extraordinária flexibilidade às situações as mais diversas... Tal é esta pátria, pela qual preferiram morrer heroicamente esses guerreiros a submeterem-se a um poder estranho e pela qual todos aqueles que lhes sobreviveram devem devotar-se e sofrer”. Cresilas reconhecia em Péricles as qualidades de general e a superioridade do estadista; ainda assim, não podemos afirmar que reproduziu a aparência fisionômica objetiva de Péricles. O mais antigo retrato de Péricles (Fig. 1) está no Museu Britânico. O esti­ lo é do tardio século V: a cabeça é levemente inclinada para a esquerda, o cabelo e a barba aderem à pele na forma de pequenos cachos, os olhos sobressaem o suficiente para darem ao rosto uma expressão distante e sonhadora e parecem estar contemplan­ do semiconscientemente o espectador. A expressão é a de um calmo e destemido ate­ niense, um homem bem-sucedido em todos os seus empreendimentos, capaz de cons­ truir o Partenon, de fazer de uma cidade um império. Cresilas conseguiu, se podemos atribuir a ele, criar o mais ideal retrato de um estadista do seu período. É um dos mais nobres exemplos do ideal clássico “nada em excesso” na arte do retrato de todos os tem­ pos. Este conceito de escultura foi herdado pelos romanos. A precisa resolu­ ção da figura já havia sido atingida, como foi notado por Gisella Richter a respeito do Doríforo de Policleto (Fig. 2): “De agora em diante este tema pode ser tratado de ma­ neira diferente, mas não de maneira mais perfeita”. Não foi legada aos romanos a tarefa de aprimorar a representação do corpo humano. Poderíam eles tratar esse tema de ma-


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ncira diferente? Eles tinham a sua disposição o magnífico acervo de figuras deixado pe­ los gregos, mas figuras que viviam enclausuradas em si mesmas, levando uma vida pró­ pria, incomunicável a outras, serena e distante. Se podemos dizer que a escultura grega com seus princípios idealizantes tinha uma presença passiva, não relacionada com o es­ paço em volta, então, coube aos romanos, com seu senso prático, sua Kunstwollen , para usar a expressão de Riegl, colocar a escultura grega, sem mudar seus princípios essenciais, em comunicação com o espaço, fazer dela uma presença ativa. I Depois do rígido período republicano temos o classicismo de Augusto. Não o barroco helenístico, mas um contido e correto estilo acadêmico que já foi apro­ priadamente comparado ao estilo imperial da França sob o domínio de Napolcão: o idioma clássico e a alegoria se tornam linguagem cotidiana aplicável a qualquer finali­ dade. Temos várias estátuas de Augusto tanto como general quanto como chefe religio­ so, e o tratamento desses papéis é sintomático da atitude dos romanos em relação à arte. Nas estátuas de Augusto como chefe religioso ele aparece vestindo a toga; esta é esculpida de maneira tradicional, a cabeça mais elaborada e fonemente idealizada, muito diferente do “verismo” dos retratos das famílias republicanas. Existem variações nos re­ tratos de Augusto, tanto em esculturas quanto em moedas, e algumas parecem mais gregas que outras, mas depois de sua ascenção ao poder não há um só que não seja idealizado. A estátua (Fig. 3) da vila de sua mulher, Livia, em Primaporta, mostra Augusto como comandante em chefe. A estátua de Primaporta é com certeza de execu­ ção grega. A posição é quase a do Doríforo, e pode-se imaginar que o escultor, quando não comissionado para a execução de retratos romanos, sem dúvida estava empenhado na realização de cópias gregas. Embora a postura deva muito à arte grega, a ação repre­ sentada é romana: o imperador é mostrado dirigindo-se a suas tropas. E o fatual emer­ ge: na couraça do peito, entre figuras ideais como Apoio e Artemis, deuses patronos da casa de Augusto, está um soldado devolvendo os estandartes romanos capturados na batalha de Carrhae em 53 A.C. Dois outros traços onde ideal e real se misturam podem ser observados: o imperador, embora representado como general, tem os pés descalços, e o cupido, que cavalga um golfinho e atua como suporte necessário para a figura em mármore, é apropriado porque Venus era tida como uma das ancestrais da família, mas o cupido se assemelha a uma criança real e é, talvez, Gaius Caesar, so­ brinho de Augusto. Se pressupormos que esses retratos são de Augusto, isto é, que ele pode ser identificado através desses retratos, então uma primeira observação deve ser feita na medida em que eles divergem da idealização grega. O que vemos no Doríforo e no re­ trato de Péricles é um retrato generalizado, em que o indivíduo é subordinado a um


Figura 2 —

Doríforo, Policleto, cópia romana cm mármore de original grego em bronze, c. 450-440 A.C., altura 172 cm, Museu Nacional, Nápoles



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Os Retratos dos Imperadores

Figura 3 — Augusto da vila de Primaporta, mármore, c. 20 A.C., 190 cm, Museu do Vaticano, Roma

Figura 4 — Caracalla, mármore, c. 215 D.C., tamanho natural, Museu do Vaticano, Roma

esquema de composição. O resultado é a idealização de um tipo geral. O exato oposto acontece no retrato de Augusto. Embora aí o esquema de composição grega permaneça, ele não subordina o indivíduo, ao contrário, através dele o indivíduo é elevado. O resul­ tado é uma idealização do indivíduo. Por exemplo, o discreto, introspectivo, quase de­ monstrativo gesto do Doríforo é transformado, no retrato de Augusto, num gesto que se exterioriza, que não representa só uma ação do poder porque é o gesto de um impe­ rador, mas porque é um gesto que parece ir além da estátua e se dirigir ao espaço em volta. Este retrato não tem mais uma vida fechada em si mesma, tem uma vida que necessita de outros, uma vida pública. Ele não vive mais num espaço não relacionado com o espaço real; vive na própria realidade. II Dois séculos mais tarde encontramos um retrato que, em vários aspectos, representa a dissolução dos princípios desde Augusto. E o retrato de Caracalla (Fig. 4), do qual Eugenie Strong diz: “É sem exceção o mais surpreendente retrato deixado pela


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Figura 5 — Felipe o Árabe, mármore, c. 244-249 D.C., tamanho natural, Museu do Vaticano, Roma

antiguidade”. Quase todos os retratos de Caracalla mantêm os mesmos traços. Neles há uma inovação: a cabeça recebe uma brusca torção para a esquerda, o olhar também se levanta nessa direção; o efeito é de animação plástica. As feições características do imperador são bem definidas: trata-se de uma face sinistra. A animação plástica, a ex­ pressão do rosto, indica a realização de algo que ainda não se havia efetivado: o retrato existe no tempo. A figura grega podia ignorar o tempo. Caracalla, não. A figura grega existia atemporal. Caracalla vive no tempo histórico. A crueldade quase animal em sua face não é abstrata nem atemporal. E uma crueldade presente e atual, uma crueldade que pertence a um só homem: Caracalla. Não é só o retrato de um rosto cruel, mas de uma personalidade cruel: ‘‘O inimigo comum da hum anidade” (Gibbon). O retrato não é mais uma superfície; ele agora conduz a uma interioridade. O retrato de Felipe o Árabe (Fig. 5) é o paradigma desta nova concepção. Assim EOrange descreve suas características: “A intenção não é só de apresentar os tra­ ços fisionômicos, mas também representar o movimento da vida. Num grau sem para­ lelo na arte da antigüidade, a totalidade da personalidade é apreendida num flash, num movimento transitório. A determinação realista do tempo é introduzida no retrato. A


Figura 6 — Constantino, mårmore, c. 330 D.C., altura aproximada 230 cm, Palazzo dei Conservatori, Roma


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imagem não pretende apresentar as formas fisionômicas objetivas, mas o próprio movi­ mento da vida, representando o jogo dos traços na face nervosa, na apreensão instantâ­ nea da personalidade”. Sim, “a determinação realista do tem po” é introduzida, mas é o sentido do tempo histórico que prevalece. Não é o ‘lf la sh ”, ‘‘o movimento transitó­ rio”, os correspondentes plásticos da vida histórica de Felipe; um “imperador dos acam­ pamentos” — vinte no espaço de 50 anos — um homem que matou para ser impera­ dor e agora está pronto para morrer. No mármore temos este admirável retrato de um imperador, por trás te­ mos o retrato de um homem. Na superfície os traços fisionômicos de um indivíduo realisticamente representados, para além deles, usando um termo hegeliano, uma cons­ ciência universal. Além de ser o retrato de um imperador, de um homem, trata-se do retrato de alguém que tem a consciência de ser o último de uma era. É o retrato de alguém que vê o futuro como passado, a história como sucessão de batalhas, crimes, lutas e fracassos. Assassinou, será assassinado. Ontem soldado, hoje imperador, amanhã um cadáver esquecido. Tudo isso converge nesse retrato, mas nem um só traço de deses­ pero obscurece sua face. Há aí um a nobre melancolia e um a tristeza de alguém que vê seu destino relacionado com um destino coletivo. Não é só sua vida passada que Feli­ pe contempla, mas também a vida do Império Romano. Cada episódio da vida romana desvela-se ante seus olhos e termina inexoravelmente confundido com seu próprio des­ tino. A expressão de angústia espiritual de Felipe não é só individual, pertence a uma época e a uma cultura. Dois séculos atrás o retrato de um imperador obscurecia o homem: Au­ gusto. Agora, o retrato de um imperador revela o homem: Felipe o Árabe. Um homem que num certo sentido, no sentido mais essencial, não era diferente de nenhum outro homem; um homem que, talvez, pela primeira vez na história da arte, era capaz de sentir dor sob a forma espiritual. Esta é a notável característica moderna desse íetrato. III A história dos retratos romanos termina com a colossal cabeça de Constantino (Fig. 6). Contrastando com os retratos do século III com seu senso de vida e movimento, a cabeça de Constantino é esculpida em poucos planos distintos, os gran­ des traços são nítidos e acentuados, o tratamento do contorno reforça a bidimensionalidade e dá à cabeça uma qualidade monumental, como diz Eugenie Strong: “Há a mes­ ma grandeza que nos impressiona no arcaico. Sua construção arquitetônica é de uma magnificência decorativa”. Aqui, qualquer determinação plástica do tempo está ausen­ te. A totalidade dos traços se cristaliza num a imagem atemporal. A ausência de anima­ ção da face é ainda mais acentuada pela sua rígida frontalidade. Não se trata mais de um imperador ou de um homem; trata-se de uma imagem, de um ícone. Os grandes olhos observam tudo e todos, parecem que nunca vão piscar, fixos na eternidade irra­ diam um controle e um poder onipresente que não necessitam mais de nenhum gesto. Se a rigidez da imagem corresponde, como sugere L’Orange, à imobilização da vida cí-


Figura 7 — Justiniano, mosaico, c. 547 D.C., Igreja de San Vitale, Ravenna

vica no tardio Império Romano, sua toda-poderosa presença pode ser explicada pela correspondência com um conteúdo religioso, no caso cristão — Constantino foi o pri­ meiro imperador cristão. Neste sentido o retrato se transforma em imagem, em ícone. Assim, ele não precisa mais obedecer às leis de representação naturalista; aceita a sim­ plificação, a imobilização, a frontalidade e, finalmente, a superfície. O resultado desse processo c o retrato de Justiniano (Fig. 7) em San Vitale. Aqui o imperador é reconheci­ do através de uma ordem hierárquica, mas no mosaico ele é tal qual os outros: um es­ quema, um estereótipo, um a presença quase imaterial. Este trabalho foi apresentado na cadeira “ Primórdios da Arte Cristã”, do curso de pós-graduação em História da Arte do Hunter College, da City University of New York. Bibliografia: Brendel, Otto J. Prolegomena to the Study o f Roman Art. New Haven and nondon: Yale Univer­ sity Press, 1979. LOrange, H. P. A rt Forms a n d Civic Life in the Late Roman Empire. Princeton: Princeton Univer­ sity Press, 1965. Pollitt.J.J. A rt andExperience in Classical Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 1972. Polsen, Vagn. Les Portraits Romans: De Vespasien a la Basse-Antiquite, Volume II. Copenhague: Publications de la Glyptotheque NY Carlsberg n? 8, 1974. Richter, Gisella M. A. Roman Portraits. New York: The Metropolitan Museum of Art, 1948. Riegl, Alois. Spàtrõmische K unstindustrie. Wien: Druck und Verlag der Oster, 1901. Strong, Eugenie Sellers. Roman Sculptures from Augustus to Constantine. New York: Arno Press, 1969. Suhr, Elmer G. Sculptured Portraits o f Greek Statesmen. Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1931. PAULO VENÂNCIO FILHO é crítico de arte, autor do livro “MARCEL DUCHAMP”, Editora Brasiliense.



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VIVIANE FURTADO MATESCO

Hélio Oiticica: A Questão da Estrutura — Cor

A produção artística de Hélio Oiticica, a partir dos Parangolés, é nitida­ mente marcada pela procura de integrar a arte na experiência cotidiana. E a recusa do amedrontamento perante um mito. A proposta da ‘A ntiarte” consiste em sensibilizar o cotidiano através da repotencialização do "coeficiente” criativo do indivíduo, sem pretender impor um padrão estético. O artista torna-se agora o motivador para a cria­ ção, que só se realiza com a participação do "ator/espectador”. Ele reúne elementos e recursos diversos como cor, estrutura, dança, palavra e fotos, no que define como“totalidade-obra. Essa produção oferece diversas abordagens, tendo como ponto de parti­ da suas complexas referências. Uma via já bastante explorada é a aproximação com Mar­ cei Duchamp no tocante ao questionamento do estatuto da arte. O que pretendemos, entretanto, é analisar essa passagem para “a arte am biental” por meio de um elemento intrínseco à obra: a cor. A tentativa é demonstrar como, através da experiência da cor, Oiticica desenvolve uma nova compreensão da arte, rejeitando a dicotomia objeto/sujeito. Ou melhor, como funda a obra na própria relação com o sujeito. Este vai, por assim dizer, inaugurá-la mediante a sua experiência. Por outro lado, ao realizá-la, efeti­ va uma operação que o leva a si mesmo, a um autoconhecimento enquanto ser sensível. Hélio Oiticica, como os demais artistas neoconcretos, influenciados por Merleau-Ponty, não concebia a visão como uma simples experiência ótica. A visãó en­ volve todo o corpo: a percepção depende das vivências. Com os Penetráveis, Bólides e Parangolés, há um apelo literal aos vários sentidos. Ocorre assim uma ampliação da ex­ periência visual na direção do “ultrassensorial”. Isto implica o desenvolvimento das ques­ tões vividas pela cor, pois o dado principal é a percepção fenomenológica. Toda a ten­ dência para o social, para a sensibilização coletiva, portanto, estava já inserida nos tra­ balhos (Bilaterais, Relevos, Núcleos) com a cor: o que sempre importou foi a Vivência. A preocupação com o tratamento cromático existia desde os Metaesquemas. Começa aí o rompimento com a noção figurativa e simbólica da cor. Seu raciocí­ nio cromático demonstra então um alto grau de racionalidade, no sentido de constru­ ção com a cor. Ele está voltado para a maneira como se vê, para o olhar que sintetiza relações no pensamento, e rejeita os jogos óticos concretistas, procurando resgatar a sen­ sibilidade. À cientificidade concretista contrapõe a expressão como pensamento. Para Oiticica, "a cor, que começa a agir pelas suas propriedades físicas, passa ao campo do sensível pela primeira interferência do artista, mas só atinge o campo da arte, ou seja, da expressão, quando o seu sentido está ligado a um pensamento ou a uma idéia, ou

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a uma atitude, que não aparece conceitualmente, mas que se expressa; sua ordem, pode-se dizer então, é puramente transcendental”.1 Não aceita a divisão entre pensamento e sensibilidade, tampouco separa matéria e espírito. A obra de arte não é máquina, en­ grenagem de elementos isolados, mas um todo orgânico. O aprofundamento da questão da cor, da luz, o desejo de explorar sua ação, sua potência lógica, levou Oiticica fatalmente ao rompimento com a bidimensionalidade e o conceito tradicional de quadro. As “invenções” ou monocromáticos foram um período de estudo, busca de soluções, de assimilação da cor como elemento cons­ trutivo e demonstram o percurso de análise das relações cromáticas em Cézanne até a investigação da percepção visual em Klee e Albers. Nos monocromáticos desaparece a diferença entre pintura e suporte, o plano torna-se elemento ativo, o que pressupõe a compreensão da ordem aberta de Mondrian. Anunciam, através de sua dinâmica es­ trutural, uma tendência ao espaço tridimensional e representam a transição da pintura na tela para a fase em que a cor, confundindo-se com a própria estrutura, passa a agir livremente no ambiente. A utilização da monocromia enfatiza e isola a cor em um momento úni­ co de ação. A luminosidade, a vibração de suas ondas, constitui a sua temporalidade.. Daí a preferência por cores mais abertas à luz como o branco, amarelo, laranja e verme­ lho. Sobre as cores-luz escreve Oiticica: “A cor pigmentar, material e opaca em si, pro­ curo dar o sentido da luz... é preciso separar as cores mais abertas à luz, como privilegia­ das para essa experiência”.2 A “cor-luz” para se manifestar necessita de uma forma ma­ terial e assim determina sua própria estrutura. A concepção da estrutura nasce junto com a idéia da cor: não há mais um suporte a ser pintado, este deixa de ser passivo para se transformar em recurso ativo de expressão. A estrutura vem a ser o “corpo da cor” e sela o final da era do quadro na trajetória de Oiticica. Está ultrapassada a contra­ dição entre figura e fundo. O fundo é o universo, o infinito. Os Bilaterais e os Relevos Espaciais constituem um momento decisivo na produção de Hélio Oiticica. Significam a passagem do plano para o espaço real, o que os remete a Malevitch, Tatlin e Mondrian. Tratam-se de placas de madeira pintadas, presas ao teto por um simples fio. Os Relevos oferecem maior complexidade, pois têm placas interligadas, resultando em vários lados e cavidades. A cor tende a tomar o am­ biente e definir o espaço. As cavidades, o jogo entre a cor, o vazio e a sua expansão configuram um espaço autônomo. É impossível apreendê-los na totalidade de imedia­ to. O espectador deve vivenciar a obra, girando, movimentando-se em sua volta. O Núcleo amplia ainda mais o problema da espacialização da cor e con­ solida os conceitos relativos à estrutura-cor ativa. É um conjunto de placas de madeira pintadas, com dupla superfície, cuja disposição obedece a um a organização específica. O espectador caminha ao seu redor ou entre elas. Na verdade, os Núcleos sofreram uma evolução. Os primeiros, mais simples, eram uma continuação dos Relevos em que as peças (antes interligadas) se separavam, permanecendo ainda uma divisão nítida de uma cor para outra. Nestes as placas eram suspensas por fios presos ao teto num suporte


Helio Oiticica: A Questão da Estrutura — Cor

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de madeira e não havia a possibilidade de movimentá-los. Aos poucos as placas vão fi­ cando soltas, incorporando o espaço exterior. Surge no Núcleo a característica de exploração: para desWhdá-lo o sujei­ to deve investigar as suas potencialidades, suas várias facetas. A disposição das placas cria espaços virtuais, favorece a tensão entre luz e sombra, o jogo interior/exterior. E provoca, assim, uma sensação dupla de concentração e expansão da cor. A obra perde o caráter único: ela só se realiza no momento da percepção, promovendo, conseqüentemente, a diversidade de leituras. As placas são pintadas em tons muito próximos e um exame demorado revela o emprego de diferentes materiais, areia, por exemplo, o que lhes empresta uma textura diversificada. A variação dos tons segue um ritmo elaborado, de modo a ter um desenvolvimento de visão como processo de vivência da cor. A essa estruturação Oiticica chama o Desenvolvimento N udear da Cor. Quando se refere ao desenvolvimento nuclear como o movimento virtual da cor, não significa somente fazer uso de suas relações físicas mas a busca de uma dimensão de significação. A cor agiria em relação a si mesma, como “pulsação” e em função da estrutura. A questão da cor apresenta assim, nos Núcleos, um aspecto duplo, impossível, porém, de separar quan­ do os percebemos. Há um sentido arquitetônico em que a estrutura incorpora o espaço. Aqui vale a relação da cor entre as placas e o espaço que as circunda. O outro aspecto refere-se à ação da cor em relação a si mesma, espécie de movimento de interiorização e expansão. A idéia de estrutura-cor destrói, portanto, a concepção analítica de espa­ ço e tempo. Na geometria euclidiana a realidade estava estreitamente ligada ao racio­ nal, obedecia a leis lógicas. As idéias a priori prevaleciam sobre os fenômenos. Na topo­ logia ocorre o inverso, o fenômeno norteia o processo. Segundo essa ciência, “a geome­ tria não é a representação do espaço tal como é, mas como poderia ser, e, portanto, não tem relação com a noção mas com uma imaginação do espaço”. 3 Oiticica, como os demais artistas neoconcretos, aproxima-se dessa nova concepção topológica. E rompe assim com a tradição euclidiana ao se recusar a trabalhar ao nível do espaço empírico. Paralelamente, distancia-se da noção de tempo mecânico dos concretistas ao lhe dar tam­ bém uma abordagem fenomenológica. O espaço determinado pela vibração das ondas luminosas remete à no­ ção “malevitchiana” de espaço contínuo.4 A impregnação do “vazio circundante” com a cor vem a constituir o espaço. Este sentido de irradiação leva à noção de Campo. A experiência direta da percepção da obra é condição para que se realize. A experiência introduz então a noção de Campo. Essa vivência estética funda a proposição do artista (obra). Ocorre, desse modo, a incorporação do espaço ex­ terior num espaço virtual. Para existir, deve ser vivido. Oiticica assimila a abstração do espaço em Mondrian e Malevitch, mas vai além ao lhe dar a dimensão do tempo e ao concebê-lo como fenômeno. A vivência da espacialização da cor pressupõe uma compreensão feno­ menológica do tempo. Não se trata do tempo concretista, obtido através das relações


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mecânicas ditadas pela Gestalt, resultando em uma noção objetiva e analítica. O tempo é vivido, é duração, sugere um a abordagem subjetiva. E concebido como virtualidade permitindo uma variedade de leituras. O sujeito reconstitui o processo de produção do artista, funda mesmo a obra ao repotencializar a criação. Assim, a percepção se faz no tempo, levando em conta a experiência individual, ocorrendo conseqüentemente à va­ riação da percepção de uma pessoa para outra (no concretismo, ao contrário, a percep­ ção era estímulo e reflexo, única e imutável), o que explica a diferença entre olhar e interpretação. Cria-se uma relação existencial entre espectador e obra. Ferreira Gullar, a este propósito, fala de uma concepção orgânica da forma utilizada pelo artista neoconcreto: “Cria estruturas tempo-espaciais orgânicas, como concreção do próprio im ­ pulso interior de que a obra nasceu. O diálogo que se estabelece entre a obra e o públi­ co realiza-se no campo das vivências interiores, a obra fala à intimidade no homem e não apenas à sua exterioridade sensorial”.5 Quando Oiticica, com os Bilaterais e Relevos, rompe o quadro e vai para o espaço tridimensional, o tempo passa a atuar como fator primordial. O movimento ao redor da obra é condição para sua percepção, introduzindo, ainda que de m odo li­ mitado, a temporalidade. Nos Núcleos o sentido do tempo torna-se mais complexo não só pela possibilidade de o “espectador” se movimentar e deslocar as placas, mas sobre­ tudo pelo desenvolvimento nuclear da cor. Ao movimentá-la virtualmente, busca um tempo interior próprio, em que a cor age em relação a ela mesma, com duração no es­ paço e no tempo. Existe assim um tempo do “espectador”, conseqüência da relação com o tempo próprio da obra. Essa relação elimina a distância entre obra e “espectador”, este é “jogado” na obra estabelecendo uma ação recíproca. Semelhante apreensão fenomenológica nega a tradição da contemplação da obra de arte, rejeita a forma como imóvel, ideal e eterna. O “espectador” deixa de ser um elemento passivo, um pontó estático de receptividade. O que se postula é o diá­ logo temporal do sujeito e da obra, de modo a requisitar do primeiro uma percepção singular, baseada em sua própria experiência, em seu potencial criativo, fornecendo à segunda significação e existência. Nos Bilaterais, Relevos e Núcleos a participação ocorre pela dimensão da vivência da cor. A partir dos Penetráveis, Bólides e Parangolés a dimensão da vivência vai ser radicalizada através da manipulação, do movimento e da utilização do plurissensorial. O Penetrável é uma construção em madeira onde o “espectador” cum­ pre um percurso. Cada recanto deve ser explorado, não há como apreender tudo simul­ taneamente. Fica-se cercado pela cor, teto e chão integram a estrutura. O indivíduo é colocado agora virtualmente no meio da estrutura-cor. Esta acentua o sentido arquite­ tônico, incorpora o espaço real num espaço virtual por meio da vivência estética. O de­ senvolvimento das cores obedece a um ritmo: o fato de se manifestarem ao mesmo tem ­ po, à medida em que o “espectador” é envolvido, ressalta o aspecto relacionai e de­ monstra a aprendizagem com Albers. O sentido de envolvimento nos Penetráveis é lite-


Foto Sérgio Zalis

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Relevo Espacial 3 (1960), óleo s/madeira, 144 x 60cm. Col. Projeto HO-RJ

ral. A cor não tem apenas o aspecto visual, o sujeito vai pisá-la, tocá-la, vivenciá-la atra­ vés do contato físico. Ele caminha sobre areia, água, pedra, toca objetos, escuta ruídos, recebe uma série de estímulos dirigidos aos sentidos. O objetivo é criar proposições abertas a exercícios criativos, origem para um novo comportamento perceptivo. O “espectador” desenvolve sua potencialidade através de uma vivência. E passa a prestar atenção às sen­ sações despercebidas no cotidiano. Nos Bólides, a proposta gira em torno da concentração da cor, ao contrá­ rio da explosão e expansão típicas dos Núcleos. A cor se materializa, ganha um “corpo”, uma totalidade. Os materiais empregados são os mais diversos: madeira, vidro, tecidos, pedra, lata, plástico em cubos, bacias, sacos, esmas, roupas. A apropriação de objetos tem uma referência direta: os ready-made de Duchamp. Contudo, as apropriações de Oiticica têm um sentido diverso: não visam somente a descontextualização do objeto, mas, sobretudo, a incorporação de sua estrutura a uma idéia estética. Ocorre uma fusão que impossibilita a separação entre o objeto preexistente e a obra. Eles não são escolhi­ dos ao acaso, nem são eleitos pelo que simbolizam. Exemplifica Oiticica: “A cuba de vidro contém a cor em pó, mas para a percepção da obra o que interessa é o fenômeno total que, em primeiro lugar, se dá diretamente e não em partes. Não é o objeto-cuba e o objeto pigmento-cor, mas a obra que já não é o objeto no que possuía de conhecido,


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mas uma relação que torna o que era conhecido num novo conhecimento... 6 Os Bólides dividem-se principalmente (alguns poucos não se enquadram nessa divisão) em dois tipos: o bólide-vidro e o bólide-caixa. O primeiro é uma peça de vidro transparente com a cor no estado pigmentar e eventualmente outros materiais. A mão explora o pigmento, apalpa os materiais, há um sentido lúdico e uma descober­ ta intelectual, conseqüências do desvendamento das possibilidades da obra. O sentido lúdico e de invenção comparece também no bólide-caixa. Seriam ‘‘arquiteturas miniaturizadas”, as cores nem sempre vistas claramente, escondidas em gavetas, criando espa­ ços através de reflexos. A mão experimenta o espaço, descobre “novidades”. Nas gavetas encontra-se terra ou pigmento puro, pode-se tocá-la, sentir a textura, o peso e o aroma. O Parangolé marca, sem dúvida, o ápice do desenvolvimento da questão da estrutura-cor no espaço. São capas, estandartes, bandeiras para serem vestidas ou car­ regadas pelo “ator/espectador”. As capas são feitas com panos de cor (com reprodução de palavras e fotos) interligados, revelados apenas quando a pessoa se movimenta. A cor ganha um dinamismo no espaço através da associação com a dança e a música. A obra só existe plenamente, portanto, quando da participação corporal: a estrutura d e­ pende da ação. A cor assume, desse modo, um caráter literal de vivência, reunindo sen­ sação visual, táctil e rítmica. O “espectador” vira obra ao vesti-lo, ultrapassando a dis­ tância entre eles, superando o próprio conceito de arte. Oiticica utiliza objetos pré-fabricados (plásticos, pano, esteira, telas, cor­ das) como nos Bólides, porém, o que interessa é a estrutura e não o símbolo. Procura nos objetos elementos que exprimam a questão espacial da cor. Das capas e estandartes iniciais, o termo Parangolés assume um sentido mais amplo de objeto, de “arte am ­ biental”. Define a procura na realidade de objetos ou situações que manifestem o cará­ ter geral da estrutura-cor enquanto espacialização/vivência. Diz ele: “O achar na paisa­ gem do m undo urbano, rural, elementos Parangolé está também aí incluído como o estabelecer relações perceptivo-estruturais do que cresce na trama estrutural do Paran­ golé (que representa aqui o caráter geral da estrutura-cor no espaço ambiental) e o que é achado no mundo espacial ambiental”.7 Através da análise da questão da estrutura-cor na trajetória de Oiticica compreende-se que esta experiência foi o eixo condutor, levando-o ao espaço real e a superar a distância entre a arte e a vida. Através da cor, sobretudo, ele chega ao Plano Social e procura redefini-lo e ressensibilizá-lo. Desde sua produção inicial a vivência da cor evidenciava um desejo de “sacudir” o indivíduo, tirá-lo da atitude contemplativa, exigir uma sensibilidade ativa. A percepção era tomada como o caminho para o autoconhecimento como ser criativo.

1. Oiticica, H. A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade”, in H abitat, n? 70/1962, p. 49.


Helio Oiticica: A Questão da Estrutura — Cor

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2. Oiticica, H. Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro, Rocco, 1986, p. 16. 3. Argan, G.C. El arte moderno — 1770 — 1970, Valência, Fernando Torres, 1983, p. 546. 4. A livre navegação de superfícies-planos no espaço real é o ponto principal do sistema de Malevitch que se baseia numa concepção pneumática de infinito. Es­ sas superfícies-planos são projetadas no espaço sem nenhuma organização prévia que as direcione. O espaço tem uma idéia de continuidade que implica um con­ ceito de campo e de infinito ao mesmo tempo. Esse conceito recebeu influência das descobertas de Faraday relativas ao campo eletromagnético, que não podia ser observado mas deduzido. A partir dessas descobertas, Einstein elabora a sua teoria em que acaba com a separação existente entre espaço e tempo, o que tam­ bém fazia Ouspenski no plano filosófico. O espaço de Malevitch, influenciado por essas teorias, vai ser resultado da tensão dinâmica das superfícies-planos, su­ gerindo a Noção de Campo no sentido de irradiação de suas forças. 5. Gullar, Ferreira. “Da arte concreta à arte neoconcreta”, in Coord. Aracy Ama­ ral, Projeto construtivo brasileiro na arte (1950/1962). Rio MEC/FUNARTE, p. 42. 6. Oiticica, H. Op. cit., p. 66. 7. Ibid, p. 68.

VIVIANE FURTADO MATESCO é graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e formada pelo Curso de Especialização em Histó­ ria da Arte e Arquitetura no Brasil, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.



BERNADETE DIAS CAVALCANTI

O Orientalismo no Século XIX e a Obra de Pedro Américo

O apelo que o Oriente sempre exerceu na sensibilidade ocidental registrouse cristalinamente no testemunho de Paul Valéry: “Esse nome de Oriente é um dos quais me parecem um tesouro. Para que tal nome produza no espírito de alguém seu pleno e total efeito, é preciso antes de mais nada não haver jamais estado na região mal deter­ minada que designa. (...) E assim que se compõe uma boa matéria de sonho”.1 Esta “boa matéria de sonho” queria virar carne e se tornou uma febre à qual poucos não sucumbiram. Chateaubriand, Gérard de Nerval, Theophile Gautier, Pierre Loti, Nietzsche, Flaubert, Hugo, Scott, Shopenhauer, Byron. O Oriente sonhado foi-se tornando vivido. Se, no século passado, a primeira fase do orientalismo se caracterizou por uma forte pulsão romântica rumo ao imaginário, logo o desvirginamento dos países do Oriente Próximo e do Norte da África pelo colonialismo europeu demonstrava não se tratar mais de um continente onírico. Após a campanha napoleônica no Egito, as guerras de independência da Grécia, a conquista da Argélia pela França e a abertura do Canal de Suez, estendeu-se do Marrocos à Turquia uma Meca para inúmeras expedições científicas e arqueológicas, o encantamento de poetas, escritores e pintores itinerantes. Entre eles encontramos um brasileiro, acalorado pela sedução byroniana, o pensionista que D. Pedro II mandara estudar na Europa, Pedro Américo. Viajara pelas Ilhas Canárias, Ilhas de Cabo Verde, Senegambia, Grécia, Sicília e Marrocos. Em 1866 chega à Argéliacom o Capitão Dubosc e é admitido na comissão de um coronel francês que lhe paga cem francos men­ sais, livre de despesas, para que documente o país. Ali produziu muitos desenhos e aquarelas, hoje dispersos, que palmilharam cenas pitorescas, animais, paisagens e tipos humanos variados. Um orientalismo voltado para a “captura de um mundo” bastante distante do caráter livresco que viria a inspirar suas telas acadêmicas. Ao investigarmos o florescimento da pintura orientalista européia no de­ correr do século passado, acolhida com entusiasmo pelo público e pelos artistas, cedo nos deparamos com a questão: em que medida o assunto poderia ter sido adotado por Pedro Américo segundo uma configuração particular integrada às exigências culturais da sociedade brasileira? Adiantamos que Pedro Américo foi, entre os pintores nacio­ nais, o único a alinhar-se, de fato, à corrente em voga, sem no entanto, como os euro­ peus, tratar o orientalismo com exclusividade. Sua formação singularizou-se pela soli-

O banho turco, 1870, Jean-Léon Gérôme


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A morte de Sardanápalo 1828,

Eugene Delacroix

dez clássica, pela cultura notória, animada por um espírito versátil e filosófico. Sua obra abriu-se, por isso, à maneira de um leque literário: eventos his­ tóricos, clássicos, alegorias, mitologia, cenas épicas, bíblicas, orientais. O fato de ser um pintor integrado ao academismo francês favorecia um a adesão substancial às temáticas amplas e variadas. Mas o que interessa examinar aqui é em que medida o orientalismo europeu acabou subvertido pelo artista. Dada a rigidez do ensino acadêmico no Brasil, avesso a transformações e orientado por uma burocracia conservadora, desconheciam-se as liberalidades cromá­ ticas observadas no caso de orientalistas franceses como Decamps e Chassériau. Neles o contato com o Norte da África m inou a frieza do ateliê, erradicando a concepção inte­ lectual da cor e da luz. Para além da galeria de personagens, a viagem ao Marrocos ope­ rou profundamente sobre a pintura de Delacroix até afetar a paleta e a matéria pictóri­ ca. Consideradas as limitações do quadro institucional brasileiro, o orienta­ lismo em Pedro Américo não deixa de ser sugestivo. Um primeiro aspecto a observar seria a própria sensualidade do gênero. Como tal, era um veículo estético de desrepressão erótica, muitas cenas se tornavam lícitas pela filiação, por exemplo, ao Antigo Testa­ mento. Pedro Américo encontraria aí um álibi para o seu fascínio pelo nu feminino.

Expatriada a sua A Canoca para a Prússia, devido ao escândalo provoca­ do na corte pela nudez do modelo, o pintor descobre no biblismo hebraizante tanto


O Orientalismo no Século XIX

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um recurso literário como um fundamento religioso para a exploração plástica e psico­ lógica de Eros. Antes de qualquer outro, Américo soube tirar partido da insólita fusão do sagrado e do erótico que pulsava não raro na pintura orientalista. Por outro lado, a construção iconográfica dos cenários, personagens e in­ dumentária adquire uma inventividade pessoal, uma linguagem onírica reticente, por esta razão, aos padrões europeus. A configuração destas cenas orientais, inserida numa atitude eclética, sublinhava o seu próprio pensamento artístico: virou um elogio do en­ genho, do labor na criação compositiva e no tratamento exausuvo do assunto, intensifi­ cando o ornato, o adorno, numa palavra, o “décor”. Lê-se em seu Discurso sobre o Plá­ gio: “O produto mais constante do espírito humano, longe de ser o invento (...) é, ao contrário, o aperfeiçoamento do assunto, o desenvolvimento dos meios de expressão, a transformação mais ou menos profunda da idéia ou da forma inicial, a qual, de sim­ ples que era na sua origem, tornou-se adornada, elegante, rica, majestosa, revestindo sucessivamente as exterioridades mais diversas e mais consentâneas ao gosto que atra­ vessou até se achar completamente esgotada”.2 Concebendo assim, no caso, a pintura como “um aperfeiçoamento do assunto” pelo acúmulo de “exterioridades”, Pedro Américo se afasta tanto da sobrieda­ de neoclássica quanto da rigidez acadêmica, aderindo a tendências decorativas do “fin de siècle”. Um exemplo flagrante é a sua monumental Judith, fantástica e exuberante heroína em seus atavios teatrais, algo aparentada às Sheherazades de Bakst desenhadas para o balé russo. Queremos sugerir que, mesmo sem inovações plásticas evidentes, se con-


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siderarmos a aventura temática e psicológica do orientalism o em Pedro Américo, esta poderá ter sido fonte, em sua obra, de liberação e ousadia. Se o argumento não inspi­ rou a revolução formal que os europeus ja haviam prefigurado na pintura, induziu pelo menos a uma expressão subjetivamente mais rica, um a fermentação erótica inaudita no Brasil (.D avide Absag, A M ulher de Putifar) e uma originalidade da iconografia e do “décor” (Judith e a Cabeça de Holofemes, Rabequista Árabe). Só compreenderemos mais profundam ente o sentido da pintura orientalista em Pedro Américo, entretanto, ao analisá-la como parte integrante de uma certa visão do Oriente promulgada pela Europa colonialista. A nossa elite cultural participa­ va logicamente desta ótica com a qual se define hoje, após o exame criterioso de suas relações, o orientalismo como ideologia específica do século XIX. A pintura orientalista foi portanto, nesta época, um rebento com fins estéticos de um saber plenipotenciário que catalogava o Oriente em sua dimensão histórica, sociológica, filosófica, religiosa, lingüística e antropológica. Segundo Edward Said,3 em sua obra Orientalism, o termo reúne basi­ camente três sentidos: primeiro, o de saber acadêmico; segundo, de “uma distinção epistemológica e ontológica entre Oriente e Ocidente” ; e, terceiro, de “um estilo ocidental de dominação, reestruturação e autoridade sobre o O riente”, ou seja, discurso ideológi­ co. O orientalismo, constituído como saber acadêmico, assumia uma oficia­ lidade, uma cátedra na Europa oitocentista. Os primeiros passos neste sentido foram dados pela Inglaterra e pela França, depois elaborados pelos alemães. Ser orientalista, então, significava possuir uma carreira de estudos orientais ministrados em todas as gran­ des universidades da Europa, obter subvenção para viagens ao Oriente e publicação ofi­ cial de estudos e trabalhos. Já como “distinção epistemológica e ontológica entre Oriente e Ociden­ te , o Oriente surgia com a clareza e a convicção de um a realidade separada, autônoma, distinta da ocidental e sutilmente inferiorizada. Aparece um a dicotomia apriorística entre dois blocos e, segundo este a priori, um esquema de conceitos aplicados a um e a outro. A fronteira entre Oriente e Ocidertte, bastante difícil de ser traçada no mapa, acabou mesmo delimitada no plano mental: o Ocidente é sinônim o de civilização, cultura, ra­ cionalidade, justiça civil e ética religiosa; o Oriente, sinônim o de ignorância, fanatismo, opressão autocrática, barbárie e misticismo alienado. O exotismo, do qual o orientalis­ mo é apenas parte, emerge da paixão romântica” em ratificar, numa linguagem sedu­ tora, a feição pela qual a América e o Norte da África surgem aos olhos do imperialis­ mo: culturas exóticas, em outros termos, incapazes de racionalidade, deviam ser “civili­ zadas pela Europa. As ambições econômicas das empresas coloniais tinham esteio no ato de os europeus acreditarem-se superiores antropológica e culturalmente. A partir de tais pressupostos não é difícil perceber o orientalismo como instrumento de uma ideologia política que legitimasse o imperialismo europeu. Integrada a esta concepção globalizante, a pintura orientalista, aclama-


O Orientalismo no Século X IX

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da em meio a um intenso favor burguês, estratificava o “olhar” com que o ocidental concebia aquele mundo até então irrevelado, saído à luz para ser conquistado apenas. De um lado, o Oriente Médio surgia como um oásis onde o tempo orgânico ainda fluía, em violento contraste com as cidades recentemente industrializadas na Europa, atrain­ do os espíritos em busca de uma “erfahrung” ainda não cindida, onde as heranças indi­ viduais podiam ser partilhadas. Por outro lado, via-se no "outro” uma tela de projeções daquilo que os ocidentais refutavam em si mesmos: a violência (cenas de caçadas, assas­ sinatos e torturas), a luxúria (violações, danças lascivas, odaliscas estendidas no leito) e toda uma gama de possibilidades para o inaudito, o ilícito e o excêntrico. Podia ser que tudo isto se integrasse numa sinfonia patética, como A Morte de Sardanãpalo de Delacroix. A vida acinzentada da burguesia, com sua típica moral vitoriana, encontra­ ria no orientalismo um a porta liberadora, sedução e evasão. Eram as altas classes bur­ guesas que patrocinavam esta produção pictórica. O Brasil, país “exótico”, que evocava aos europeus suas reminiscências de Eldorado, recebe também na época, assim como as terras norte-africanas, pintores itinerantes (dos portugueses Codina e Freire, criadores de um “rococó à l’amazoniènne”, ao príncipe alemão Maximilian Wied-Neuwied) que delineiam a fisionomia inquietante do País. A verdade é que, como atesta a literatura gilberto-freirista, tínhamos muito de coloração oriental e mourisca: a cadeirinha de armar, o cus-cus, o efó, o chá, as especiarias da índia, a concubinagem poligâmica, as mulheres veladas e o gineceu, os azulejos e muxarabiês, os portuguesismos arabizados e os hábitos islâmicos trazidos pelos negros malês que rezavam na língua de Maomé. Esta roupagem orientalizante que engalanava o Brasil colonial desfigura-se pouco a pouco sob o Império. As gelosias foram condenadas como sinal de “ barbárie” porque se devia comprar o vidro inglês. Estiliza-se a linguagem comercial à francesa e as emoções religiosas sofisticam-se no teatro. A Missão de Lebreton aporta à Academia como um selo de modernidade cultural. Junto aos modismos franceses, recebemos en­ tão de volta o “Oriente”. Não mais o Oriente íbero-africano, mas o Oriente europeiza­ do, o orientalismo. Os elegantes do Rio, descreve Machado de Assis, usam chinelas de Túnis ou de Damasco, bordadas a ouro. Castro Alves glorifica no seu condoeirismo a herança dos profetas bíblicos e o negro escravizado surge na pele do judeu errante. E é sob esse influxo hebraico que os pintores brasileiros tomarão o Oriente: Salomé, Jacob e Moisés, Sansão e Dalila. Mas as caravanas sarracenas do deserto dançam na luz aquáti­ ca de Arsênio Cintra da Silva. O orientalismo abandona um pouco o sagrado, tisna voluptuosamente o profano. E reencontramos Pedro Américo. Europeu de formação, dis­ solvia o exotismo em belo ideal acadêmico e o polia com o lustro de “civilidade” oci­ dental. Rabequista Árabe surge como uma obra sintomática, orientalista enquanto simulacro ocidental do Oriente. A camuflagem começa pelo uso do modelo feminino (a filha do pintor, Carlota) vestindo um traje masculino. Ao invés da “rebab” árabe, toca um violino europeu. Ao fundo, uma tapeçaria francesa ombreia-se a um tapete


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persa. A ambigüidade iconográfica, mais que reveJadora de um Oriente subjetivo e sem densidade real, implica a retratação de um mundo árabe onde não se reflete o “tipo”, mas a imagem; ou seja, o “tipo” é reelaborado e reconstruído visualmente até ser ple­ namente aceito. A figura sofre uma ocidentalização consciente. Neste ponto, a obra de Pedro Américo nega as exigências fotográficas da pintura orientalista européia do fim de século. Comparando Rabequista Árabe ao Arab Sentinel de John Pettie, percebe-se que ao artista inglês interessava antes de mais nada a captação física e psicológica do modelo. A ocidentalização do Rabequista Árabe sugere que, uma vez adotado um tema estranho à Academia, e nisto consistindo uma novidade, permanecia subliminar-

A Rabequista Árabe, 1884, Pedro Américo

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O O rientalism o no Século X IX

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mente uma refutação do oriental enquanto tal: para representá-lo (assim como ao “re­ trato de Abdehaman“ ) era preciso reconstruí-lo, europeizá-lo enfim. Tal coisa ocorria num contexto de idealismo estético, é inegável. Semelhante idealismo, porém, seguia uma mentalidade culturalm ente discriminatória. Fenômeno paralelo é o do indianismo romântico, no qual o índio surge sob uma feição classicizante. A pintura orientalista em Pedro Américo insinua uma emancipação no universo artístico brasileiro ao permitir um tratamento plástico peculiar ao pintor e a introdução de uma temática inédita aqui. Mas, enquanto “olhar”, esta pintura conti­ nua subordinada ao orientalismo tido como discurso ocidental sobre o Oriente. Impor­ ta compreender que seu resultado é a projeção de uma idéia (configurada como ima­ gem) cujos predicados podem matizar-se, mas onde vale unicamente a percepção da idéia enquanto tal. Os conceitos aplicados ao Oriente podem ser complexos, porém a sua constante e as suas relações acabam-se sedimentando num todo. A obra de Pedro Américo, isenta da demanda de um público que lhe ‘exigisse o retrato meticuloso do Oriente, exibe com mais transparência que a pintura européia (auto-iludida por sua própria ânsia de fidelidade burguesa) um mundo na verdade mal conhecido, imaginado, impossível de ser atingido no âmago, sempre esca­ pando e sempre simulando. Rabequista Árabe, metáfora deste Oriente camuflado (em­ bora não pretendendo vínculos com a realidade), reflete com mais inocência o orienta­ lismo ideológico que a grande maioria da produção européia. Esta era levada a encobrir muito mais em virtude da atitude compromissada com a representação histórica, social e costumbrista daqueles povos. É preciso acrescentar que o orientalismo transcendeu qualquer fronteira estilística, embora nascesse genuinamente romântico. Essa transcendência é explicável porque, muito mais que moda, secundava o momento em que o processo econômico e político integrara culturas antes marginais no envolver da história européia. O orien­ talismo passou por neoclássicos como Ingres, acadêmicos como Gerôme e Horace Vernet, impressionistas como Renoir e simbolistas como Redon e Gustave Moreau. Mas fo­ ram os modernos como Paul Klee e Matisse, principalmente, que, indo muito além do pitoresco do tema, descobriram as possibilidades inexploradas da arte islâmica: o valor puro da cor, o dinamismo da linha e o espaço planar, todos elementos revolucionários da estrutura formal de nosso tempo. 1. Bezombes, Roger. “ O rientem Versus”, prefácio de LExotism e dans L’a rt et la Pensée, Elsevier, Bruxelas, 19532. Alguns Discursos, 2? Parte, Florença, 1888, pp. 93-124. 3. Said, Edward. O rientalism , Vintage Books, N.Y., 1978.

BERNADETE DIAS CAVALCANTI é graduada em Museologia pelo Museu His­ tórico Nacional e formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.



MARGARIDA DE SOUZA NEVES

As ‘Arenas Pacíficas” !

“Away with th emes o f war! Away with war itself. Hence from my shuddering sight to never more retum that show o f blackerid, m utilated corpses! That hell unpent and raid o f blood, f i t fo r tvild tiggers or fo r lop-tongued wolves, not reasoning men, A n d its stead speed industry's campaingns W ith thy undaunted armies, engineering, Thy pennants labor, loosen d to the breeze, Thy bugies sounding loud and clear.” WALT W HITM AN: Song o f the Exposition (1871) Espaços do Prodígio Entendidas como “espaços do prodígio”, na brilhante ficção de Eduardo Mendoza,2 as EXPOSIÇÕES INTERNACIONAIS constituíam, no dizer de seus idealizadores, “arenas pacíficas” onde o engenho e a arte deveriam substituir o poder de fogo das armas no embate moderno pela preeminência mundial. Com efeito, a segunda metade do século XIX parece marcada por um otimismo que busca suas raízes numa nova fé laicizada: aquela que encontra no princí­ pio do PROGRESSO a explicação última da história, que legitima a necessidade do pas­ sado e a ordem do presente na medida em que aponta para uma parusia terrena em que todos os povos do globo seriam finalmente atraídos para a seara da CIVILIZAÇÃO. “Regido pela idéia de progresso, o sistema ético do mundo Ocidental foi modificado nos tempos modernos.” 3 Esta nova eticidade procura afirmar-se como uma doutrina que postula uma crença, como um ideal que propõe uma meta a ser alcançada, como uma teoria

Primeira Exposição Nacional Brasileira — 1861 — Palácio Nacional de Exposição. Primeira Exposição Nacional Brasileira — 1861 — Jardim Improvisado no Pátio Central do Palácio da Exposição.


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que forja novos conceitos, como uma nova utopia enfim, porém realizável, ao contrário do que ocorria com os distantes “Pays de Cocagne” ou com a ilha de sonho criada por Thomas More. As bases teóricas dessa ideologia têm por fundamento o binômio PRO­ GRESSO = CIVILIZAÇÃO. As linhas mestras da moderna ideologia do progresso, eri­ gidas como critérios de uma modernidade que se impõe, vão sendo tecidas por homens como o abbé de Saint Pierre e Condorcet na França, Herbert Spencer na Inglaterra, e muitos dos filósofos da escola alemã pós-kantiana. Outros, como Saint Simon e Auguste Comte, buscarão definir suas leis. No entanto, ninguém melhor que François Guizot resumiu os pressu­ postos que embasam esta doutrina do progresso, que substituiu a crença na providência divina como princípio regente do movimento da História: “A civilização é uma luz, e a luz se faz sempre mais intensa. A civilização é una e consiste num processo de de­ senvolvimento que sempre tende na direção do mesmo fim: o melhoramento da hum a­ nidade”.4 O estudo das bases teóricas da ideologia do progresso já foi objeto de alguns trabalhos.5 As obras de história contemporânea, por sua vez, nos mostram co­ mo a fé otimista na força unificadora do progresso supõe e utiliza a anexação de novos territórios coloniais às grandes potências e o impacto da penetração do capital m onopo­ lista nas áreas periféricas. No entanto, as representações utilizadas para a construção de um amplo consenso sobre o progresso, a nível das mentalidades, são ainda pouco exploradas. Nes­ te sentido, cabe lembrar que ‘‘o poder estabelecido unicam ente sobre a força ou sobre a violência não controlada teria uma existência constantemente ameaçada; o poder ex­ posto debaixo da iluminação exclusiva da razão teria pouca credibilidade. Ele não con­ segue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justificação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial”.6 Este quadro cerimonial, estes símbolos, estas imagens produzidos por um dado entendimento do progresso se materializam num espaço fundamental para sua reprodução: aquele constituído pelas chamadas EXPOSIÇÕES INTERNACIONAIS, das quais o Brasil passará a participar a partir de 1862, ou seja, desde a terceira exposição, realizada em Londres nesta data. A primeira Exposição Internacional da Indústria foi inaugurada em Lon­ dres, em maio de 1851. O Palácio de Cristal, projetado por John Paxton, serviría ao mesmo tempo de espaço e de símbolo desta ‘‘Great Exibition o f the works of Industry of all Nations : Naquela gigantesca construção arquitetônica, escalonada em degraus, de linhas retangulares, com 563 metros de comprimento, 124 metros de largura e 33 metros de altura, encarnou-se a vontade prático-funcionalista de uma época... Com es­ ta construção arquitetônica anunciava-se uma nova forma de cooperação entre a ciên­ cia, a técnica e a indústria, que, sobre a base da planificação, estandartização e produ-


As “Arenas Pacíficas’1

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ção em massa, converteu-se em fator decisivo para a organização e a forma de trabalho do sistema industrial moderno. “Elementos de constiução pré-fabricados e estandartizados, estacas e su­ portes de ferro forjado, repetidos muitas milhares de vezes, molduras de madeira para paredes e tetos de vidro formaram o Palácio de Cristal que, de acordo com sua finalida­ de temporária, podia ser construído, desmontado e aplicado a outros fins, da maneira mais econômica e racional possível. “Deliberadamente, não foi este grandioso e complexo edifício construí­ do ‘para todos os tempos’. Converteu-se em símbolo do funcionalismo, de uma civiliza­ ção projetada para um grande momento e, ao mesmo tempo, em alegoria de uma mons­ truosa arquitetura-de-esbanjamento da época moderna.” 7 E verdade que quando a Exposição Internacional da Indústria de 1851 foi inaugurada, a Europa já contava com uma longa tradição de feiras e exposições lo­ cais ou nacionais. Neste sentido, não consistia propriamente numa novidade. No en­ tanto, há uma diferença qualitativa extremamente significativa entre as Exposições In­ ternacionais e suas predecessoras. Para Walter Benjamin, que se ocupa das Exposições Internacionais num artigo sobre Paris, capital do século XIX, as exposições são, na esteira de uma observa­ ção feita por Taine em 1855, “centros de peregrinação à mercadoria-fetiche”.8 Para Umberto Eco, "catedrais laicas”9 cujo estudo permitiría à historiografia das idéias resgatar o sentido do sagrado nos fenômenos da arquitetura contemporânea. Quando comparadas às primeiras mostras locais ou mesmo nacionais rea­ lizadas anteriormente, as Exposições Internacionais se particularizam por serem um es­ paço onde as mercadorias e, sobretudo, as máquinas estão dispostas eminentemente para serem vistas, contempladas como ícones dos novos tempos e do poder de criação e inventiva da indústria humana. Em segundo lugar, estas Exposições se tornam UNIVERSAIS, mesmo que nas primeiras delas o "universo” esteja reduzido a alguns países da Europa Oriental e aos Estados Unidos: universais na medida em que esses são os países portadores dos valores do progresso, que pela força inexorável do capital internacionalizado, tantas ve­ zes acompanhado nos novos continentes coloniais pelo argumento das armas, transfor­ maria o mundo num novo império, legitimado, desta vez, não pela cristianização do gentio, mas pelos valores da "Civilização”. As Exposições são ainda um espaço de lazer, não resta dúvida, mas de um lazer eminentemente didático. Surgem contemporaneamente a outros espaços de lazer urbano, como os grandes parques que são construídos nas metrópoles ou como os parques de diversões destinados ao ócio das multidões. Sua função será, como a des­ tes outros espaços, divertir e disciplinar a multidão, mas revestida de um caráter pri­ mordialmente educativo. É preciso que, ao percorrer os diversos "stands” onde as pesadas máqui­ nas a vapor ou a força hidráulica se sucedem, destinadas aos mais variados fins, os visi-


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tantes das Exposições interiorizem a máxima de François de Neufchateau que serviu de epígrafe ao Catálogo da Exposição de Paris de 1867, visitada por 11 milhões de pes­ soas: “L’industrie est la filie de 1’invention et la souer du génie. Si la main cxécute, 1 imagination invente et la raison perfectionne”.10 Muitos dos que ingressavam nos faustosos recintos das Exposições eram beneficiários diretos dos lucros do “Progresso”. Para estes as Exposições ensinavam que seu lucro era o bem da hum anidade. Outros tinham seus corpos disciplinados pela roti­ na das fábricas. Para estes a Exposição reservava a lição do sentido grandioso do trabalho como condição do progresso universal. Também a estes as mostras universais propõem, pelo material exposto, pela arquitetura grandiosa, como pela intensa propaganda, uma nova disciplina que será com plem entar à primeira: a de suas mentes ilustradas, educa­ das e instruídas pelo que é visto e assimilado como m era distração moderna. A todos expõem e impõem os novos padrões da CIVILIZAÇÃO. Como TEMPLOS DO PROGRESSO as Exposições criam sua própria li­ turgia, seu ritual e seus símbolos. As cerimônias de inauguração mobilizam e atraves­ sam as cidades que abrigam as mostras. A imprensa m ultiplica os efeitos destas procisExposição Nacional de 1908 O antigo prédio da Escola Militar reformado e transformado no Palácio das


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Exposição Nacional dc 1908 Realizada na Praia Vermelha. Vê-se o conjunto dos pavilhões da Exposição Nacional de 1908. Ao fundo, a antiga Escola Militar. Em primeiro plano o pavilhão do Jardim Botânico e, à direita, o de Matas, Jardins, Caça e Pesca

sões secularizadas e atraem a opinião pública por ocasião das premiações. Os vencedo­ res, como heróis, recebem medalhas e diplomas. E preciso não esquecer que alguns dos símbolos mais expressivos da mo­ dernidade nasceram à sombra das Exposições Internacionais. Assim, além do já citado Palácio de Cristal, a Estátua da Liberdade, presenteada pela França aos Estados Unidos como memorial à sua Constituição, foi exposta, ainda inacabada, na Exposição Mundial de Paris de 1878, antes de ser transportada para o porto de Nova York em 1886. A Torre Eiffel, monumento à técnica e ao arrojo modernos, é o símbolo por excelência da Expo­ sição Internacional de 1889. Nestes templos se mantinha incólume o mito segundo o qual o progres­ so técnico e a civilização desterrariam de vez o fantasma da guerra do mundo Ociden­ tal. Este o sentido das flâmulas do trabalho e das fanfarras do progresso cantadas por Walt W hitm an.11 Ao inaugurar a segunda das Exposições Internacionais, Napoleão III afir­ maria em Paris no ano de 1855: “Abro com alegria este templo da paz, que convida todos os povos à concórdia”. 12 De igual fôrma, em 1867, os propagandistas da quarta Exposição assim comentariam os acontecimentos de 1855 que envolvem a participação francesa na Guerra da Criméia: a mesma nação que sustentava uma guerra encarniçada em paragens longínquas elevava, ao mesmo tempo, em sua capital um templo à Paz . ^ É verdade que a primeira grande guerra cedo viria a dissipar boa parte deste otimismo idílico que acompanhou os grandes avanços da técnica na virada do


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século e transformou este momento num a época de euforia que passaríamos a conhecer como “ belle époque”. No entanto, a tentativa de consolidar, através das Exposições Internacio­ nais, o mito do PROGRESSO sem fronteiras e, através dele, da universalização da CIVI­ LIZAÇÃO Ocidental mostrou-se forte e eficaz o bastante para resistir ao embate realista do primeiro confronto mundial. Ainda que sem o brilho, o esplendor e a publicidade das Exposições realizadas no últim o quartel do século XIX, as Exposições Internacio­ nais continuam a celebrar-se no início do século XX. Em 1922 o Rio de Janeiro será palco de uma delas. Rio de Janeiro, Capital do Progresso Vista, em suas linhas gerais, a proposta das Exposições Internacionais, focalizemos agora, brevemente, como esta experiência foi levada a efeito no Rio de Ja ­ neiro, trazendo alguns elementos sobre duas Exposições Nacionais, a de 1861 e a de 1908, e sobre a Exposição Internacional do Centenário, como ficou conhecida a mostra realizada na capital brasileira em 1922, significativamente considerado o ano do “cen­ tenário do Brasil”. Com uma defasagem de dez anos em relação ao início das mostras inter­ nacionais, o Brasil realiza a primeira Exposição Nacional, preparatória à Exposição In­ ternacional de Londres de 1862. Nela, como nas que se seguirão, encontramos indubi­ tavelmente o eco do catecismo do progresso pregado pelos grandes centros industriais, mas encontramos também a marca indelével de uma sociedade ainda colonial. Se, por um lado, é fácil descobrir nas Exposições Nacionais a dramatiza­ ção da utopia do progresso que se apresenta como meta, por outro, as mostras nacionais e a participação brasileira nas Exposições Internacionais deixam perceber os sinais da especificidade de nossa história e o peso da tradição excludente e hierarquizadora que marca a formação social brasileira. Por esta razão, os textos que acompanham o Catálogo de 1861, os D ocu­ mentos Oficiais desta Exposição, bem como o Relatório do presidente da Comissão bra­ sileira que concorreu à Exposição de South Kensington em 1862 sublinham basicamen­ te três aspectos: as dificuldades que tal iniciativa encontra na sociedade imperial, a im ­ portância e o significado desta primeira Exposição e o papel fundamental do Estado — personificado no Imperador — para a execução do projeto. As dificuldades apontadas são sempre apresentadas como algo natural, em parte porque a natureza física do país as impõe, na m edida em que a imensidão do Império dificultava o concurso imediato das diversas províncias à iniciativa do Rio de Janeiro, em parte porque “a inércia da natureza hum ana face ao novo” se traduzia na resistência e na descrença de alguns poucos, em parte, enfim, porque a complexida­ de dos trabalhos que supunha a montagem da mostra se defrontaria fatalmente com a marcha inexorável do tempo.


Exposição do Centenário ■1922

Exposição do Centenário — 1922 Vista do Pavilhão de França, réplica do “ Petit Trianon”, de Versailles. Construído com materiais e terreno adquiridos para doação ao Brasil, mais precisamente à Academia Brasileira de Letras.

Assim, para o Conselheiro Carvalho Moreira, a equação das dificuldades encontradas para a primeira das Exposições é simples e, sobretudo, natural: “O desâni­ mo sempre inerente às idéias novas, e alimentado quiçá pelo malogro das pequenas tentativas particulares; as distâncias, que tudo dificultam, e outras condições especiais de Seu vasto Império pareceríam, momentos antes, ser um acervo de dificuldades insu­ peráveis para de pronto levar a efeito este pensamento; mas à ilustração do patriotismo de Vossa Majestade e à perseverança elevada de Seus desejos estava reservado tudo supe­ rar. ... O processo das Exposições é em toda parte laborioso, e o tempo o maior dos elementos para a organização dos seus trabalhos”. 14 O prólogo aos Documentos Oficiais relativos à Exposição Nacional de 1861 é muito preciso e deixa perceber a resistência de setores significativos à idéia da Exposi­ ção: “Contra três inimigos lutara, desde . mga data, entre nós, a idéia da Exposição: a descrença de alguns quanto à utilidade dos resultados que daí poderíam 'colher a nos­ sa nascente indústria e agricultura; a dúvida de muitos a respeito do bom ou mau papel que representaríamos, se tivéssemos a vaidosa pretensão de reunir e sujeitar à aprecia­ ção pública nossos minguados produtos agrícolas e industriais; e a opinião da maior parte acerca da constante inoportunidade da execução de semelhante tentativa”.15 Face a dificuldades naturais, triunfará a razão. Face às trevas dos que se aferram ao passado, as luzes dos que se adiantam ao futuro. Face à inércia, a força avas­ saladora da história. Face à descrença de alguns, à dúvida de muitos e à opinião da maior parte, triunfará a ação decidida do soberano, de quem Carvalho Moreira chegará a di-


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zer: “À elevada inteligência de Vossa Majestade Imperial, fiel intérprete de sua época, não escaparão, em todo seu alcance, as vantagens das Exposições . 16 Também o Marquês de Abrantes, presidente da Comissão Diretora da Exposição Nacional de 1861, afirma, de forma mais explícita, “a importância da tutela do Estado, representado por Sua Majestade Imperial”.17 A primeira Exposição Nacional se realiza num espaço que, metaforica­ mente, representa sua ambigüidade: a mostra de 61, que pretendia marcar o ingresso do Império na senda do Progresso”, realizava-se no interior do edifício colonial da en­ tão Escola Central do Largo de São Francisco. No recinto da mostra, conviviam, expos' tas à visitação de um público numeroso, algumas “máchinas” em geral oriundas do “estabelecimento da Ponta da Areia” e apresentadas como sinal do ingresso do Império na era industrial, juntamente com uma reiterada exibição de produtos agrícolas, mad as preciosas e minerais raros, que apontavam para a riqueza natural do país e seu destino de provedor de matérias-primas para o mercado internacional. Sublinhemos de momento a tônica do protagonismo do Estado, que, com

Exposição do Centenário — 1922 Vista do Pavilhão de Estatística e Geografia, hoje ocupado por uma repartição sanitária, do Ministério da Saúde. Foi projetado em estilo Luis XVI pelo arquiteto Gastão Bahiana


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outras personalizações e outro conteúdo, se apresentará como uma constante nas Expo­ sições seguintes. Destaquemos ainda que os organizadores da mostra de 61 reconhe­ ciam uma diferença entre o Império escravista e as nações européias que até então sediavam os grandes certames internacionais, ainda que discursivamente atribuíssem esta diferença (e a possibilidade de saldá-la) ao tempo: "...O Brasil, jovem e rico, ... mede por horas a distância que o separa do areópago da civilização”.18 A exposição de 1908 não cessará de assinalar que a “distância”, acima referida, fora superada com a implantação da nova institucionalidade republicana. Depois das grandes Exposições realizadas em Londres, Paris e Viena e do fabuloso espetáculo m ontado em Chicago em 1893 para comemorar, com uma Exposi­ ção Internacional, o primeiro centenário do descobrimento da América, celebrar as gran­ des datas com a organização de uma destas “festas do Progresso” tornara-se algo assim como um dispendioso.costume da “ belle époque”. A república brasileira, uma vez estabelecidas suas bases de sustentação nesta espécie de rodízio político que foi a política do café com leite e na rígida lógica

Exposição do Centenário — 1922 Vista do Pavilhão do Distrito Federal, que serviu como Pavilhão da Administração. Hoje é ocupado pelo. Museu da Imagem e do Som. Projeto de Silvio Rebecchi, em estilo Luis XVI

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do coronelismo, também desejava expor-se a si mesma e aos olhos do mundo. O Rio de Janeiro, remodelado por Pereira Passos e saneado por Oswaldo Cruz, já podia mostrarse como capital moderna. O pretexto foi encontrado na comemoração do centenário da abertura dos portos e a necessária preparação para a representação brasileira na Ex­ posição Internacional de Bruxelas, que teria lugar em 1910. Para tanto, em 1908 se celebraria uma Exposição Nacional, segundo seus organizadores, “destinada a marcar no caminho dos séculos o primeiro estádio da vida do Brasil no mundo civilizado, sem a dependência do vínculo colonial que prendia o seu comércio”.19 O Estado investiu maciçamente na montagem da Exposição. Tratava-se, no entanto, de um investimento de retorno garantido. O atual bairro da Urca foi am ­ pliado, utilizando-se para este fim a moderna técnica do aterro hidráulico. Alguns edi­ fícios grandiosos já existentes foram aproveitados, como, por exemplo, a Escola Militar, cujo prédio, inacabado há mais de vinte anos, foi concluído para a Exposição. Construiu-se inclusive uma espécie de estrada de ferro em miniatura para que o público pudesse per­ correr a mostra em pequenos vagões de trem. Havia um sem número de objetos e artefatos dispostos nas numerosas salas das várias seções e que iam de um a “perfuradora ‘the Clipper’, fabricada pela Looms Machine Company, de Tiffin, Ohio”,20 às “escovas e espanadores” produzidos no Distrito Federal e que ocupavam, não se sabe bem por que, juntam ente com “traba­ lhos de mármore” e um “fac-símile das festas de Nossa Senhora da Penha”,21 todo um corredor em que se achava uma das escadas de acesso para o segundo pavimento do chamado “Palácio da Exposição” Descrevê-los seria cair na armadilha astutamente ur­ dida da enumeração que oculta um a lógica sutil atrás dos mostruários brilhantes e re­ pletos. E certo que ao percorrerem as salas e os pavilhões da Urca os visitantes eram expostos às lições perenes das Exposições: o otimismo do progresso que constrói uma ordem nova; o estímulo da emulação que premiava os melhores entre os bons; o valor dignifícante do trabalho que potenciava infinitamente as riquezas naturais do país, transformando-as em valores de civilização e cultura; a negação do conflito na so­ ciedade e entre as nações; a criação de um espaço de maravilha que fazia vislumbrar um tempo novo de concórdia e paz que a opacidade do cotidiano não permitia perce­ ber. No entanto, ao contemplar o espetáculo da excelência encenado na Urca em 1908, a multidão aprendia, sobretudo, que a cidade do Rio de Janeiro era a capital da modernidade brasileira, e que esta se construía com o concurso de todos, é claro, mas sob a batuta eficiente do Estado. Em 1922 dá-se a apoteose: no Rio de Janeiro remodelado segundo os pa­ drões franceses instala-se não mais uma exposição preparatória para a participação bra­ sileira num certame mundial, quase sempre realizado em alguma capital do hemisfério Norte, mas a SEDE DE UMA EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL, capital portanto, mes-


Exposição do Centenário — 1922 Foto de Thiele Kollien mo se pelo breve tem po da festa, do PROGRESSO UNIVERSAL. Mais do que detalhar o que pode ser visto na Exposição do Centenário, importa destacar a síntese que nela pode ser encontrada do particular discurso consti­ tuído por estas mostras e sua aplicação para a sociedade brasileira. A ampla divulgação na imprensa, além da farta documentação oficial da Exposição, permitem sublinhar um nítido jogo de identificações e exposições. Em primeiro lugar, as qualidades das nações modernas aparecem referi­ das ao primado de um a dada racionalidade e à ética positiva do trabalho. Em segundo lugar, já tendo como referência o ingresso do Brasil no rol dessas mesmas nações modernas, os agentes sociais que sustentam a institucionalidade republicana delineiam o projeto de uma NOVA ORDEM, identificada não mais com a UNIDADE, como no Estado Imperial, mas, sim, com o PROGRESSO, entendido co­ mo CIVILIZAÇÃO, segundo o paradigma formal europeu. As categorias que articulam o discurso do NOVO no Rio de Janeiro da virada do século, marcadas com um indiscutível sinal de positividade, são, fundamen­ talmente: ORDEM PROGRESSO CIVILIZAÇÃO

= PROGRESSO = CIVILIZAÇÃO = PRIMADO DA RACIONALIDADE E DA DIGNIDADE DO TRABALHO. A estas categorias se contrapõem, no pólo da negatividade: DESORDEM = ATRASO COLONIAL ATRASO COLONIAL = BARBÁRIE BARBÁRIE = PRIMADO DAS PAIXÕES EOCIOSIDADE. Este discurso do novo ganha consistência na remodelação do Rio de Ja­ neiro, reconstruído como CENÁRIO, aceitável aos olhos estrangeiros. É uma cidade da


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qual são excluídos não apenas a febre ainarela e a varíola, o comércio ambulante, a su­ jeira das ruas e as casas edificadas pelos mestres de obras, mas também aqueles agentes sociais que, aos olhos do Estado e de seus intelectuais, dão visibilidade à “ociosidade”, às ‘‘paixões desregradas”, à “ barbárie e ao atraso . E se o Rio de Janeiro representa o novo, as Exposições se encarregarão de montar, neste cenário, os periódicos e didáticos espetáculos que teatralizam a lógica de identificações e oposições que tece a nova ordem, e cujo enredo supõe a exclusão da cidade e da cidadania daqueles que não aceitam seu lugar subordinado na hierar­ quia que se mantém, com novas formas, é verdade, nos bastidores desta fachada mo­ derna. 1. Este artigo recolhe parte das conclusões de um a pesquisa realizada no Depar­ tamento de História da PUC/RJ, com o apoio financeiro da FINEP. O texto foi apresentado na 39? Reunião Anual da SBPC, como parte do simpósio: TRANS­ FORMAÇÕES URBANAS NA VIRADA D O SÉCULO: IMAGENS E PROCES­ SOS. Agradeço à equipe de pesquisadores do Departam ento de História da PUC/RJ, um a vez que o trabalho é fruto de um a pesquisa realizada em equipe. Agradeço igualmente aos Professores Alcir Lenharo, Ciro Flamarion Santana Car­ doso, Nicolau Sevcenko, Gloria Laçava, Raquel Rolnik e Maria Alice Rezende de Carvalho, com quem tive oportunidade de discutir este texto em particular ou o texto final da pesquisa acima referida. Ao Professor Edgard Leite Ferreira Neto devo a indicação do texto de Walt W hitm an q ue serve de epígrafe ao artigo. 2. Mendoza, Eduardo. A Cidade dos Prodígios. São Paulo, Companhia das Le­ tras, 1987. 3. Bury, John. La Idea de Progreso. Madrid, Alianza Editorial, 1971, p. 11. 4. Apud: Nicéforo, Alfredo. EI M ito de la Civilización, e l M ito d ei Progreso. Mé­ xico, UNAM, 1961, p. 14. 5. Para citar alguns textos que trabalham com as bases teóricas da ideologia do progresso, além dos já apontados nas notas 3 e 4, caberia lembrar, a título mera­ mente indicativo: Nisbet, Robert. Historia de la Idea de Progreso. Barcelona, Gedisa, 1980 (existe tradução brasileira da UNB); Moreau, Pierre François. “Lldéolologie du Progrès in: Chatelet, François e Mairet, Gérard, Les Idélogies. Verviers, Éditions Marabout, 1981; Le Goff, Jacques. “ Progresso/Reação" in: Memória — História. Enciclopédia Einaudi, vol. 1. Lisboa, Im prensa Nacional, 1984; Heller, Agnes. Es una Ilusión el Progreso?" in: Teoria d e la H istória. Barcelona, Fontamara, 1985 (2? ed.); Bock, Kenneth. “Teorias do Progresso, Desenvolvimento e Evolução in: Bottomore, T. e Nisbet, R. H istória da Análise Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. 6. Balandier, Georges. O Poder em Cena. Brasília, UNB, 1982, p. 7. 7. Plum, Werner. Exposições M undiais do Século X IX . Espetáculos da Transfor­ mação Sócio-Cultural. Bonn, Friedrich Ebert Stiftung, 1979, p. 30. 8. Benjamim, Walter. “ Paris, Capitale du XIX e Siècle" in: Gesammelte S ch if ten. Frankfurt, Suhrkam p Verlag, 1982, p. 64.


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9. Eco, Humberto. “O Cogito Interruptus” in: Viagem na Irrealidade Cotidia­ na. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978, p. 292. 10. A pud. Vervynk, D. e Dubois, E. Histoire des Expositions Industrielles. Paris, L. Grollier Ed., 1867, p. 3. 11. W hitm an, Walt. “Song of the Exposition” in: The Portable Walt Whitman. New York, Penguin Books, 1982. 12. A pud. Vervynk, D. e Dubois, E. Op. Cit., p. 107. 13. Idem. Ibidem, p. 9. 14. Carvalho Moreira. Relatório sobre a Exposição Internacional de 1862. Lon­ dres, Thomas Brettel, 1863, p. 11. 15. “Prólogo” in: Documentos Oficiais Relativos à Exposição Nacional de 1861. Rio de Janeiro, Typografia do Diário do Rio de Janeiro, 1861, p. XXVI. 16. Carvalho Moreira: op. cit., p. VII. 17. Abrantes, Marquês de (Miguel Calmon Dupin e Almeida) “Primeira Expo­ sição Nacional Brasileira em 1861” in: Recordações da Exposição Nacional de 1861. (O texto citado não consta da edição fac-similar publica pela Confraria dos Ami­ gos do Livro em 1977, mas apenas da edição original de 1861, que pode ser en­ contrada na seção de Iconografia da Biblioteca Nacional.) 18. Cunha, A. L. da Cunha. “Prólogo” in: Documentos Oficiais Relativos à Ex­ posição Nacional de 1861. Op. cit., p. XXI. 19. Carvalho, Bulhões de. “Introdução” in: Boletim Comemorativo da Exposi­ ção Nacional de 1908. Rio de Janeiro, Typografia de Estatística, 1908, p. V. 20. Catálogo Resum ido ou Synthese dos Mostruários da Exposição Nacional de 1908. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1908, p. 225. 21. Idem. Ibidem, p. 9.

MARGARIDA DE SOUZA NEVES tem doutorado em História pela Univer­ sidade de Complutense, Madrid; é professora do Departamento de História na Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, e do Corpo de PósGraduação da Universidade Federal Fluminense.


Lygia Pape, Xilogravura — 1955


MARIA LUISA LUZ TAVORA

A Gravura Brasileira — Anos 50/60 Como um Movimento: Gênese de um Mito.

1. Anos 50/60 — Movimento de Gravura? “O prestígio da gravura brasileira, revelado em exposições ... e confir­ mado pela obtenção de inúmeros prêmios ... é superior ao de qualquer outra manifes­ tação artística no País...” 1 A referência que se faz ao florescimento e à expansão da gravura a partir dos anos 50 até meados dos anos 60 coloca-a como uma atividade cuja autonomia den­ tro do mundo artístico brasileiro parece caracterizar um verdadeiro movimento. A produção gráfica daquele momento constituiu-se de obras em xilogra­ vura e gravura em metal. São trabalhos que refletem pesquisas em diferentes lingua­ gens, dificultando a determinação de um denominador comum, por exemplo, entre a produção abstrata de Fayga Ostrower e as figurações de Anna Letycia ou Anna Bella Geiger, ou ainda entre o tachismo de Edith Behring e as “tecelares” de Lygia Pape. Apesar de semelhante heterogeneidade, a gravura tornou-se, para alguns, referência ne­ cessária à avaliação do trabalho de gerações posteriores. E chega a registrar-se, com uma certa nostalgia, a superioridade da gravura daqueles anos em relação a tudo o mais que se realizou no Brasil. Assim, além de ser considerada como a melhor entre nossas artes plásti­ cas, a gravura da passagem dos anos 60 também teria sido o momento mais feliz da produção gráfica brasileira: ‘‘Passado o apogeu que nossa gravura em madeira ou metal experimentara entre os últimos anos da década de 50 e a primeira metade da década seguinte... entrou ela num prolongado período de esvaziamento... do qual não conse­ guiu ainda livrar-se a ponto de reafirmar sua antiga vitalidade”.2 Afirmações como es­ ta parecem incrivelmente ignorar a qualidade da produção de artistas pioneiros, como Goeldi e Segall, e de gravadores de gerações anteriores. É preciso, portanto, buscar sob que aspectos as gravuras do referido período puderam ser consideradas o que de melhor se fazia no Brasil. Criou-se um discurso que sustentava a existência de um verdadeiro ‘‘mo­ vimento” da gravura brasileira. Este discurso realçava a formação, no Brasil, de uma consciência da gravura que conduzia a uma produção depurada e destacava a “seguran­ ça e dignidade artesanal dignas de respeito” 3 apresentadas pelas obras. O virtuosismo técnico recebe a ênfase nas análises da obra dos gravadores. Tomadas em conjunto, as declarações e os textos críticos estabeleceríam no referencial técnico da gravura a identi­ dade do “movimento”. São compreensíveis as razões que justificam o destaque conce-


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dido às questões técnicas na análise crítica da gravura de arte brasileira. O surgimento 1 da gravura no Brasil está, com certeza, ligado ao livro e à tipografia, fato que acentuou sua valorização enquanto técnica de reprodução. 2. Séc. XX — A Gravura Artística Brasileira Falar de gravura de arte brasileira é referir-se ao que foi produzido a par­ tir da primeira década deste século até os dias de hoje. Em séculos anteriores, restringiu-se às técnicas de reprodução e documentação. Inicialmente foram as gravuras documen­ tais dos costumes indígenas, da flora e fauna tropicais, realizadas por estrangeiros que por aqui passavam, recolhendo imagens para publicações européias sobre o novo mun­ do descoberto. Posteriormente, no século XVIII, através de alguns padres jesuítas, são realizados trabalhos de reprodução em gravura em metal. Notícias mais precisas situam, no início do século XIX, a existência de gravadores dedicando-se a diferentes técnicas de gravura como o metal, a madeira e a litografia. E nesta época que chega ao Rio de Janeiro a família real, criando institui­ ções que ativaram a produção gráfica. A Impressão Régia, o Arquivo Militar, a Estam­ paria de Chitas e a Real Fábrica de Cartas de Jogar utilizaram-se dos processos mais di­ versos de gravar. No entanto, sua produção limitou-se a um papel puramente técni­ co/utilitário/comercial, incluindo ilustrações de faturas e papéis comerciais, matérias publicitárias, além da variante documental. Desta forma, reforçava-se aqui no Brasil, em pleno século XIX, muito próximo à época atual, a função inicial que a gravura conhecera na Europa. Na Idade Média, a xilogravura, através de seu caráter multiplicador, trouxera benefícios no senti­ do de uma democratização do saber, restrito até então à nobreza e ao clero. Através dela produziram-se imagens religiosas, cartas de baralho, ilustrações e textos para pu­ blicações que, aos. poucos, foram substituindo os manuscritos. As gravuras brasileiras do século XIX cumpriram m uito mais esta função utilitária do que revelaram uma preo­ cupação estética. Somente no início deste século surgiram gravadores brasileiros, entre eles Carlos Oswald, que sofreram influência de movimentos europeus em favor da divulga­ ção de técnicas como a água-forte. No final do século XIX, a litografia européia granjeara um grande número de adeptos e os processos fotomecânicos de impressão foram incorporados à reprodução de imagens. As Sociedades dos Pintores Gravadores e a So­ ciedade dos Água-fortistas passaram a destacar cada vez mais as possibilidades expressi­ vas da gravura através das técnicas mais tradicionais. Aqui, Carlos Oswald tornou-se o pioneiro da gravura artística, na técnica do metal. Sua obra gravada estrutura-se segundo uma linha de composição figurativa acadêmica. Segall e Goeldi também fazem parte da fase pioneira da gravura no País. Segall foi o primeiro a produzir gravura moderna entre nós, através do metal e princi­ palmente da xilogravura. Goeldi, o mestre dos contrastes de luz e sombra, apresenta


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em sua obra a identidade dramática do expressionismo. A partir destes pioneiros, a gra­ vura brasileira caminhou heroicamente: até os anos 40, era considerada gênero subal­ terno, mera complementação para o aprendizado artístico de pintores. Chega-se aos anos 50/60 com a produção gráfica das 2? e 3? gerações de gravadores brasileiros.

3. A Gravura e os Anos 50 Os anos 50, como se sabe, têm grande importância para a arte brasileira, pois marcam a introdução aqui da arte abstrata. São Paulo e Rio tornaram-se os princi­ pais centros de produção da nova arte. Os artistas paulistas, dirigindo-se às áreas especí­ ficas da comunicação visual e publicidade, empenharam-se numa visualidade cujas for­ mas receberam um controle técnico mais acentuado. No Rio, os neoconcretos amadure­ cem numa posição crítica aos postulados construtivistas. Tentam resgatar a subjetivida­ de, o valor da expressão individual, que fora minimizado pelo movimento concretista. A gravura participou da arte neoconcreta através dos trabalhos desenvol­ vidos por Lygia Pape — as tecelares. Sobre suas gravuras, comentou a artista: “As tecelares, no fundo, são mesmo pinturas e não gravuras... eu trabalhava a madeira... utilizava madeira porque curtia trabalhar com ela e com aquela tinta negra... tirava quase sem­ pre uma única cópia... Uma coisa mais sensível que surgia do próprio material”.4 O va­ lor tradicional da xilogravura enquanto técnica multiplicadora não foi considerado por Lygia Pape. A artista procurou, através desta técnica, concentrar-se na qualidade do preto e branco como valores expressivos. Explorou a integração do positivo/negativo numa relação sensível entre o ser e o não-ser. No Rio, as primeiras gravuras abstratas surgiram por volta de 1954.5 Em­ bora o ambiente brasileiro respirasse e discutisse as questões do abstracionismo de ten­ dência geométrica, a gravura emergiu em consonância maior com experiências tachistas realizadas na Europa e com o Expressionismo abstrato americano. Os gravadores foram tocados mais pela abstração de caráter lírico, sensível. Alguns tiveram contato direto com a Europa, que via no informalismo uma saída para a crise da arte. Os informais buscavam, pela sensibilidade, o verdadeiro na arte. Identificavam-se com a matéria, liberando a forma do rigor das relações geométricas em proveito da espontaneidade, da poética do gesto. Os valores cromáticos são organi­ zados por uma percepção ótica de qualidade emocional. A vitalidade expressiva da obra passa a ser determinada por uma relação profúndamente sentida de suas formas, que devem corresponder a uma necessidade interior, como dizia Kandinsky, de quem a arte produzida a partir dos anos 50 sofreu forte influência. A abstração informal funcionou como estímulo da atualização da gravura brasileira, permitindo a superação da fase aca­ dêmica, distanciando-a do realismo e libertando-a das influências do expressionismo alemão.


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4. Experiências de Gravura Abstrata A produção de gravura abstrata deu-se inicialmente com Eayga Ostrower. Com esta gravadora surge um novo tratamento do espaço considerado em sua bidimensionalidade e a busca de um equilíbrio espacial através da cor e de formas ambí­ guas, explorando a função do intervalo. Diz a artista: “Em vez de acompanhar e susten­ tar outros elementos visuais na estrutura do espaço, a cor agora era o alimento predomi­ nante em minha imagem”.6 D iante de um espaço problemático ela procura estruturálo de forma sensível, explorando qualidades dinâmicas: tensão, força e vibração. A obra resulta em um campo de forças onde as transparências evocam uma atmosfera lírica. Com Edith Behring, outra pioneira da abstração informal no País, a su­ perfície gravada passa a constituir um a realidade sensível. Com um profundo sentido da matéria ela cria, num gesto livre, manchas cujas diferentes texturas organizam o es­ paço. A modulação das cores se dá entre pretos, ocres, verdes e cinzas. Enquanto em Fayga a cor é o elemento expressivo primordial, ainda que em combinações suaves, em Edith as texturas sobressaem formando planos onde a cor surge como o elemento com­ plementar da expressão. Não há contrastes violentos, mas gradações delicadas. Há uma


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vontade de ordem que se estabelece pelo controle manso que Edith impõe ao processo gráfico. Seu trabalho resulta na manifestação de sentimentos dentro de um sentido emi­ nentemente plástico. 5. Expansão da Gravura A partir dos anos 50 gravou-se mais em nosso País. Até então, os grava­ dores, em pequeno número, trabalhavam de forma muito isolada. Aumentou substan­ cialmente o número de pessoas interessadas em gravura buscando em cursos e ateliês coletivos uma qualificação profissional. Os clubes de gravura7 fundados nesta década contribuíram para a divulgação da técnica xilogravura. Visavam utilizá-la enquanto ins­ trumento de cultura, produzindo uma arte em defesa das tradições brasileiras. Comba­ teram a onda abstracionista na qual mergulhara a arte brasileira, apresentando, em con­ trapartida, imagens de temática popular sob a orientação do realismo-socialista. Um certo dogmatismo, portanto, determinou que a obra dos artistas dos clubes se ocupasse mais com o caráter ilustrativo em detrimento da manifestação de uma expressão indivi­ dual. Em busca de uma arte nacionalista, os clubes de gravura refugiaram-se cada vez mais num regionalismo que lhes impossibilitou qualquer diálogo com as correntes ar­ tísticas internacionais. A preocupação de produzir uma arte ao alcance do povo encon­ trou na gravura o meio predileto, dada a sua inerente capacidade de reprodução, com menor custo, possibilitando o acesso a um número maior de pessoas. Desta forma, tentouse resgatar sua função originária de instrumento de democratização do saber. Nos anos 50 surgem também as Bienais, que reservam salas especiais pa­ ra a gravura. Exposições ali realizadas contribuíram para a divulgação da obra dos gra­ vadores. As premiações, sem dúvida, tornaram-se um fator a mais de estímulo para seus trabalhos. Nesta década registra-se ainda a expansão do ensino da gravura através da criação de ateliês coletivos. O do MAM-Rio desempenhou um papel fundamental na formação de uma nova geração de gravadores. Fundado em 1959, teve a orientação do gravador europeu Johnny Friedlaender em seu primeiro curso intensivo. Este artista se destacara no quadro das artes gráficas através do ensino de novos procedimentos técni­ cos que introduziram a gravura numa estética contemporânea. O ateliê do MAM foi por mais de uma década, sob a orientação da gravadora Edith Behring, o ponto certo de encontro de trabalho e de convívio de gravadores. Suas palavras dão-nos idéia do objetivo básico da orientação deste ateliê: “Certos de que uma sólida experiência artesanal é base e estímulo à invenção construtiva original, nossos esforços concentram-se no sentido do conhecimento íntimo do material e dos instrumentos, favorecendo todas as pesquisas de ordem estética, sem restrições ou preconceitos.”8 Também falando a respeito do ateliê, diz Mário Barata: “Sempre houve multiplicidade nos trabalhos do grupo, mas, de certo modo, ele coincide com uma uni­ dade fundamental da visão da matéria, da técnica...” 9 Foi comum a preocupação com o conhecimento íntimo de todo o proces­


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so artesanal que a gravura envolve como fator indispensável à sua qualidade artística. A referência aos procedimentos técnicos quando da avaliação e apresen­ tação da obra tornou-se uma constante entre artistas e críticos. Comenta-se a obra des­ vendando para o espectador procedimentos e etapas que permitiram sua realização. To­ memos como exemplo as palavras de Anna Letycia: “Fui descobrindo técnicas, usando tinta branca em relevo que, no contato com o metal, oxida, adquirindo tom de marfim e aparência de coisa antiga’’.10 Ou ainda o comentário da crítica Sheila Kaplam: An­ na Letycia trocou a técnica direta da gravação, geralmente usada em seus trabalhos de gravura em metal, pela água-tinta, processo que inclui o emprego de ácidos”.11 Como se vê, a tentativa é de acentuar o valor da obra enfatizando-se pro­ cedimentos e questões técnicas com os quais sua realização se viu envolvida. Reforçar o aspecto artesanal da obra foi característico do período em que a gravura era uma mera técnica de reprodução. Esta situação consolidou-se no século XVI quando, na Itália, o gravador Marco Antonio Raimondi (1480-1534) passou a documentar e registrar com o buril obras famosas de pintores e desenhistas. Estes, por sua vez, deram-se conta da importância da gravura como meio técnico de difusão de seus trabalhos. A partir de então, a gravura lançou-se à pesquisa de novas técnicas criando processos que a aproxi­ massem, cada vez mais, dos valores tonais dos trabalhos copiados. Passou-se a distinguir a “gravura de reprodução ou documentação” da “gravura original”. Aquela resultando do trabalho técnico de alguém que faz cópias de originais criados por outrem, enquan­ to esta apresentava a imagem de autoria do próprio artista-gravador. As estampas de reprodução tiveram larga aceitação e chegaram a atingir, no século XVII, excelente nível de comercialização. Seu valor ligava-se objetivamente ao maior grau de mestria do gravador em aproximá-la tecnicamente do modelo copia­ do, num trabalho artesanal meticuloso. No Brasil, curiosamente, observa-se a valorização dos aspectos artesanais da gravura sendo retomada na produção de “gravura original” quando o artista, ao con­ trário de um técnico reprodutor de imagens alheias, assume a própria criação formal.

6. O Papel como Suporte — O Múltiplo como Destino Aqui, a produção gráfica em questão, a despeito de sua qualidade artís­ tica, não teve um confronto sistemático com o mercado. Para o marchand ela era, e é, um negócio menos lucrativo. “No Brasil, ninguém valoriza a gravura, porque é papel. No exterior, a mentalidade é outra. O papel é conservado e as pessoas apreciam. Além disso, há aqui o gosto pela peça única.” 12 Comentários como este de Anna Letycia de­ nunciam as razões do menor interesse pela gravura. A artista aponta para dois fatores determinantes “a priori” da desvalorização da obra gravada: os preconceitos contra o papel e contra a obra múltipla. Há muito tempo, modernos processos de conservação vêm sendo utiliza-


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dos, a fim de preservar as obras de arte da possível deterioração de seu suporte material, seja ele tela ou papel. As gravuras de Goya e Rembrandt são testemunhos concretos de que este preconceito não se sustenta. Talvez ele resida na origem da utilização do papel. Esta relacionou-se diretam ente com a expansão do conhecimento às classes so­ ciais menos favorecidas. O papel perdeu pouco a pouco seu prestígio social na medida cm que se tornou, como tantos outros produtos da sociedade industrial, um material acessível às grandes massas. Rapidamente viu-se empregado em situações pouco expressivas, na condição mesmo de mercadoria descartável, como no caso de embalagens. O preconceito contra a obra múltipla também é fruto das transforma­ ções operadas pelo advento da técnica na vida do homem moderno. Antes disso, como se viu, a gravura tivera sua função reforçada e seu papel valorizado justamente pelos benefícios que prestara enquanto técnica multiplicadora de manuscritos e obras artísti­ cas. Esta função foi abalada no final do século XIX quando surgiram processos técnicomecânicos mais sofisticados, como os clichês e a fotografia, que a cumpriram com maior eficácia e precisão. Ociosa enquanto técnica reprodutiva, a gravura foi liberada para uma apropriação expressiva.


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Os produtos da técnica, envolvidos num a racionalidade crescente, distanciavam-se da esfera do sensível, da subjetividade e da imaginação, atributos cons­ titutivos da natureza artística. A presença da m áquina operou uma cisão cada vez mais profunda entre arte e técnica. A massificação dos benefícios introduzidos pelo advento da técnica redundou na desvalorização gradativa da reprodução mecânica. A todo ins­ tante passaram a surgir múltiplos como atualização e conseqüente massificação das ima­ gens. Tratando-se de obras de arte, a reprodução caracterizou o atrofiamento de sua “aura”. “Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial."13 Até então a presença da obra era mais forte do que a visão que se tinha dela. O múltiplo passou à condição de símbolo da ausência da obra original. Exposta em inúmeras ocasiões, esta foi afetada qualitativamente em sua natureza, passando a um a função acessória devido à preponderância do valor de exibição. O múltiplo, encarado como positividade pelos benefícios que trouxe na ex­ pansão da cultura, como mercadoria, passava por um a desvalorização. A repercussão deste fato foi inevitável: possuir um múltiplo é não possuir um original. O múltiplo, como tantos outros produtos da sociedade industrial, tornara-se uma mercadoria desva­ lorizada. A gravura, obra múltipla, é atingida por essa desvalorização. Surgiram mecanismos compensatórios para neutralizar este processo. O próprio mercado empenhou-se na valorização dos “estados de prova”. Esclarecedoras do processo criador do artista, estas provas passaram a ter um valor de raridade por serem provas únicas.


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A limitação da tiragem das gravuras, através de numeração, e a posterior inutilização da matriz completaram os mecanismos estabelecidos para a valorização da gravura e sua comercialização. Todos estes procedimentos são criados, evidentemente, por condi­ ções artificiais e extrínsecas à qualidade da obra. 7. Artista — Artífice: Gênese do Mito "Enquanto nós preparamos o asfalto, os vernizes e os demais produtos utilizados na confecção da gravura, o americano vai ao art supplies da esquina e compra tudo mastigado.” 14 “Na Europa, você compra tudo isso prontinho, é só levar para o ate­ liê e usar. Aqui a coisa é bem mais dura.” 15 O gravador brasileiro, além de conviver com a desvalorização de sua pro­ dução, trabalha em condições precárias, sem o suporte material necessário para a reali­ zação da gravura. Esta situação por si só explica as razões pelas quais o nosso artista acaba exclusivamente gravador. A gravura consome sua energia e seu tempo, impedindo-o praticamente de experimentar qualquer outro meio. Dentro deste quadro, vale destacar o gravador Iberê Camargo como exceção. Ele trabalhou simultaneamente em gravura e pintura. Foi professor de ambos os meios de expressão, prestando valiosa contribuição para a formação de novos artistas. De Lamônica e Iberê chamam a atenção para o que está por trás da cria­ ção de cada gravura. Este processo duro e sofrido ganha tal dimensão no desenvolvi­ mento do trabalho que vai reaparecer, hiperdimensionado, no discurso sobre a obra. As dificuldades e conseqüente valorização do discurso do gravador terminam por esta­ belecer um denominador comum poderoso, neutralizando as diferenças entre as obras e dando lugar a uma compensação da gravura como movimento. Parte da carência material do gravador é sanada através da freqüência a ateliês livres e coletivos. Ainda assim, esta necessidade de ligar-se a um ateliê pode, mui­ tas vezes, comprometer a criação artística. A propósito, diz a gravadora Marília Rodri­ gues: "Fica uma coisa muito amarrada, muito ligada a grupo, a ateliês, porque você não tem esse suporte profissional que te liberaria completamente”.16 A dimensão técnico-material acaba por conspirar a favor de um entendimento que reduz a com­ preensão da gravura a um âmbito puramente artesanal. Quando Iberê diz que “aqui a coisa é bem mais dura”, ele não se refere apenas aos problemas do gravador com a obtenção do material de trabalho. Há ainda a situação, específica do gravador brasileiro, que é a de assumir todas as etapas do de­ senvolvimento técnico da gravura: cria o desenho, prepara e executa a matriz, além de fazer a estampagem. No Brasil, praticamente não há impressores. Assim, o gravador se incumbe tanto das funções de artista quanto das de artífice, que na história da gra­ vura já haviam sido encaradas como funções de domínios distintos. A partir dos traba­ lhos do gravador Raimondi, na Itália, no século XVI, muitos pintores se interessaram em montar ateliês de gravura, objetivando reproduzir suas próprias obras. O interesse


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comercial por trabalhos desta natureza estimulou a criação de ateliês independentes que passaram a copiar trabalhos de qualquer cliente que os procurasse. Com isto a unidade do trabalho do artista-gravador foi rompida. De um lado permanecia o artista criador de imagens, do outro o gravador, artesão habilidoso em técnicas de reprodução. O gravador brasileiro, pelas dificuldades materiais que enfrenta em sua atividade artística, é levado a um contato intenso com o aspecto técnico e passa, conseqüentemente, a inventar e desdobrar seus conhecimentos nesta área. Este fato assume o significado de trunfo que ele quer ver naturalmente reconhecido e valorizado em sua obra, a fim de compensar toda a conduta preconceituosa frente ao seu trabalho. Decla­ ra Mário Pedrosa: “A gravura é assim uma fatalidade artesanal... A arte da gravura tem algo de arcaico que faz o seu encanto”.17 O processo artesanal da gravura no Brasil trans­ forma este arcaico em mistério. Ele não é a obra pois esta, na realidade, o transcende. Ele não está na obra mas a explica, ele se torna um mito. Diante desta visão surge um discurso mi.tificador da gravura: ‘‘Sua lin­ guagem é difícil, exige concentração”.18 Enfatiza-se a necessidade de uma iniciação es-

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pccial para lidar com a gravura, considerada “meio de expressão formal, que exige m ui­ ta técnica e pressupõe no espectador um gosto apurado’ . 19 Apurar-se na apreciação da gravura significa, então, possuir o conhecimento dos processos técnicos a partir dos quais ela veio a ser real. Apresentar-se com excelência técnica vira um mecanismo que o artista cria, não inteiramente consciente, para compensar a desvalorização histórica aparente­ mente irreversível que se imprimiu a seu meio expressivo. Por certo, o nível de refina­ mento e apuro técnico que alcança reveste-se de um certo mistério, e como tal passa a constituir-se, muitas vezes, em critério de discriminação da qualidade da gravura. Em cada estampa renasce e se atualiza o encanto do artesanal, cada gravura carrega consigo o peso da tradição. Desenvolve-se em torno do fazer técnico da gravura um clima favo­ rável por um saber misterioso. Isabel Pons o confirma com suas palavras: “Não tenho aqueles famosos segredinhos, as receitas que muitos gravadores não revelam jam ais ’.20 (grifo nosso) Por outro lado, a produção gráfica a partir dos anos 50 apresentou quali­ dades que ultrapassaram os limites impostos pelo fazer técnico que envolvia. Não se pode, é claro, falar dela como um ramo autônomo e superior ao conjunto da produção artística brasileira. Afinou-se com o realismo-social que caracterizou a geração de artis­ tas do pós-guerra, através dos clubes de gravura, cuja produção pretendia colocar-se a serviço de alterações estruturais. Integrou-se no ambiente de abstração, ajustando-se à onda internacional informalista, contribuindo para a renovação da gravura brasileira ainda presa à produção de seus pioneiros. Finalmente, expandiu-se, permitindo diferentes pes­ quisas de ordem estética. A propósito da afirmação frequente no discurso da época, que atribuía à gravura uma superioridade em relação ao restante das artes plásticas, Iberê Camargo reclamava dos críticos melhores explicações para o fato de elegerem a gravura como a melhor produção brasileira ao mesmo tempo em que confirmavam e escolhiam os pin­ tores como melhores artistas. Fica claro, assim, que o “movimento de gravura” na passagem dos anos 60 caracterizou-se pela mobilização dos críticos e artistas-gravadores em torno de seu saber misterioso ’. O chamado surto da gravura brasileira permitiu a produção de obras de reconhecida qualidade artística, mas não se constituiu num movimento, num “ismo . E nem poderia, uma vez que, embora a técnica esteja sempre ligada ao surgimen­ to de novas linguagens, ela, por si só, não as determina.

1. Teixeira Leite, José Roberto. A Gravura Brasileira Contemporânea. Ed. Expressão e Cultura, RJ, 1966, p. 66. 2. Pontual, Roberto. Natureza e Cultura. Entre elas a madeira/’ - Jornal do Brasil, Caderno B, RJ, 16/9/75. 3. Barata, Mário. Catálogo da Exposição MAM-Rio, 1964.


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4. Pape, Lygia. Lygia Pape — RJ, Ed. Funarte, 1983, p. 44. 5. Neste ano, Fayga Ostrower faz sua primeira exposição abstrata, tomandose a pioneira desta linguagem na gravura. 6. Ostrower, Fayga — Meu Caminho e a Gravura. Catálogo da Exposição Retrospectiva — MNBA, RJ, 1983. 7. O primeiro em Bagé, seguido dos de Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Santos e Recife. 8. Behring, Edith. Catálogo da Exposição de Alunos do Ateliê de Gravura — MAM-Rio, d e z /1960. 9. Barata, Mário. Catálogo da Exposição do Ateliê do MAM-Rio, 1964. 10. Luz, Celina. “Ana Lctycia — A Experiência em Constante Renovação” Jornal do Brasil, 24/10/1974. 11. Kaplam, Sheila. “Ana Lctycia Solta seus Caramujos na Gravura Brasileira”, O Globo, RJ, 28/5/1984. 12. Ibdem . 13. Benjamin, Walter. Obras escolhidas. Editora Brasiliense, São Paulo, 1985, p. 36. 14. De Lamonica. “De Lamonica ou a Arte de se dar ao Pobre”, Jornal do Brasil, RJ, 2/11/72. 15. Camargo, Ibert. Jornal do Brasil, RJ, 5/1/58. 16. Rodrigues, Marília. Depoimento à Fundação Rio — Projeto Gravura Brasileira — anos 60, RJ, 7/7/86. 17. Pedrosa, Mário.Jornal do Brasil, 4/6/57. 18. Ostrower, Fayga. “Fayga — Debate de Arte Retomado”, O Globo, RJ, 26/10/86. 19. Machado, Anibal. Catálogo MAM-Rio, out/1963. 20. Pons, Isabel. Diário de Notícias, RJ, 21/8/74. Bibliografia Amaral, Aracy Abreu. A rte Para Quê?: A Preocupação Social na Arte Brasileira, 1930/1970. São Paulo, Nobel, 1984. Barata, Mário. Catálogo Exposição Ateliê do MAM, Rio, 1964. Behring, Edith. Catálogo Exposição Ateliê do MAM, Rio, 1960. Benjamin, Walter. Obras Escolhidas. Volume 1. Editora Brasiliense. São Paulo: 1985. Bento, Antonio. A Gravura Brasileira Contemporânea. Cultura (27), Brasília, out/dez 1977. ____ Catálogo Exposição Isabel Pons — Dezon Galeria de Arte. Rio, 1963. Campofiorito, Quirino. Gravura. Competição de Artistas e Artífices. O Jornal, Rio 7/6/59. Costella, Antonio. Introdução à Gravura e História da Xilogravura. Campos do Jordão, Editora Mantiqueira, 1984. Da Silva, Orlando. A A rte Maior da Gravura. São Paulo, Espade, 1976. De Lamonica. De Lamonica ou a Arte de se dar aos Pobres. Jornal do Brasil, Rio, 2//11/72.


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Gullar, Ferreira. Entrevista concedida a, por diversos gravadorcs. Jornal do Brasil, Suplemento Dominical, dez/57 a fev/58. Kaplam, Sheila. Anna Letycia solta seus caramujos. O G lobo, Rio, 28/5/84. Luz, Celina. Anna Letycia Experiência em Constante Renovação. Jornal do Brasil, Rio, 24/10/74. Machado, Anibal. Exposição de Anna Letycia na Petite Galerie. Rio, 1961. ____. Catálogo da Exposição Ateliê do MAM. Rio, 1963. Martins Filho, Carlos Botelho. Introdução ao Conhecimento da Gravura em metal. Rio de Janei­ ro: PUC, Solar Grandjean de Montigny, 1981, 2? edição, 1982, MNBA. Milliet, Sérgio. A Gravura no Brasil. M ódulo (33). Junho/63. Ostrower, Fayga. Meu Caminho e a Gravura. Exposição Retrospectiva MNBA. Rio, 1983. ____ Apresentação Exposição de Alunos. MAM. Rio, set., 1961. ____ Catálogo Exposição Ateliê do MAM. Rio, 1961. ____ Algumas Considerações acerca da Gravura Brasileira. Revista de Cultura Brasilena. Embai­ xada di Brasil en Espafia (46), p. 17, jun 1978. ______ Fayga, Debate em Arte Retomado. O Globo, Rio de Janeiro, 26/10/86. Pape, Lygia. Lygia Pape. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1983. Arte Brasileira e Contemporânea. Pedrosa, Mário. Mundo, H om em , A rte em Crise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. Col. de­ bates, 106. ____ Os Gravadores Brasileiros na Bienal. Jornal do Brasil. Rio, 14/11/57. ____ Homenagem a Fayga. Jornal do Brasil. Rio, 17/6/58. ____ Pequena Mostra de um Gravador. Jornal do Brasil, Rio, 20/6/57. ____ Retrospectiva de Lívio Abramo. Jornal do Brasil. Rio, 12/11/57. Teixeira, Leite. A Gravura Brasileira Contemporânea. Rio: Ed. Expressão e Cultura, 1966. D epoim entos — De Anna Bclla Geiger, de Fayga Ostrower e Marília Rodrigues ao projeto Gravura — Anos 60 — Fundação Rio. — De Anna Letycia, Edith Bchring, Ferreira Gullar, Marc Berkowitz, Thereza Miranda e Walter Marques à autora.

MARIA LUISA LUZ TÁVORA é graduada em Desenho e Plástica pela Escola Na­ cional de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.


ERNST GOMBRICH Tradução dc Teresa da Costa

Hegel e a História da Arte

A Esfinge de Gizeh

Hegel é, para mim, o pai da história da arte. Pelo menos na maneira pela qual eu entendo a história da arte. Estamos, sem dúvida, acostumados à idéia de filhos se rebelando contra seus pais. Se acreditarmos no que dizem os psicólogos, os filhos se rebelam porque querem, e precisam mesmo, romper com a influência todapoderosa da autoridade paterna. Creio ainda que a história da arte deve-se libertar da autoridade de Hegel, mas estou convencido de que isto só acontecerá quando se puder compreender a esmagadora influência deste autor.


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Descreví Hegel como o pai da história da arte. Este papel é geralmente atribuído a Johann Joachim W inckelmann e sua obra K unstgeschichte des Altertums (História da Arte Antiga) de 1764. Parece-me, entretanto, que Lectures on Aesthetics, 1820-29, de Hegel, pode ser considerado o docum ento de fundação do estudo moder­ no da arte, na medida em que contém a primeira tentativa de examinar e de sistemati­ zar o universo total da história da arte, aliás, de todas as artes. O próprio Hegel via Winckelmann como um dos hom ens que “no campo das artes foi capaz de despertar um novo órgão, de abrir espaço para métodos totalm ente novos de encarar a mente hu­ mana” !. (Al p. 92) Mas o conceito de W inckelmann da arte era bem diferente do de Hegel. Para ele, a essência da arte está no ideal grego e, assim como seu antecessor Vasari escreveu sobre o renascimento deste ideal artístico, W inckelmann estava envolvido com o desenvolvimento desta arte exemplar em absoluta perfeição. Ao mesmo tempo ele via seu trabalho como um Lehrgebaüde, um tratado teórico com o objetivo de de­ monstrar, através do exemplo da arte grega, o que era a beleza. Hegel, para simplificar por um instante, incorporou esta teoria ao seu sistema filosófico, mas restringiu o alcan­ ce de sua validade. O mérito de ter dado forma clássica à beleza sensual foi sem dúvida para os gregos, mas o classicismo representa apenas um a fase da arte, assim como a his­ tória da arte não pode ser maior que a História. Gostaria de tentar formular brevemente o que Hegel apropriou de Winc­ kelmann e o modo pelo qual ele ampliou o alcance do sistema estático para criar a his­ tória da arte tal como a conhecemos nos dias de hoje. Ele encontrou três idéias funda­ mentais em Winckelmann e as anexou a sua própria estrutura de idéias. A mais impor­ tante dentre elas é a firme crença na divina dignidade da arte. Assim como Winckel­ mann celebra, na verdade, a presença visível do divino no trabalho do Homem, em seu famoso hino à beleza do Apollo de Belvedere, Hegel via em toda arte uma manifes­ tação de valores transcendentais. Este é um ponto de vista conscientemente rejeitado por Platão, mas resgatado pelo neo-platonismo para a vida intelectual européia, pois credita ao artista a habilidade de olhar para a Idéia e revelá-la aos outros. Talvez eu devesse chamar esta fé metafísica na arte de “ transcendentalism o estético”, ressaltando, entretanto, não confundi-lo com a estética transcendental de Kant. Este transcendenta­ lismo estético, com um toque de neo-platonismo, aparece menos pronunciado em Winc­ kelmann que na filosofia de seu amigo e rival, Anton Raphael Mengs, ainda que o cul­ to à beleza de Winckelmann retire daí sua justificativa. A segunda idéia fundam ental absorvida por Hegel pode ser descrita co­ mo coletivismo histórico . Designo deste modo o papel destinado ao coletivo, à nação. Para Winckelmann, a arte grega não é tanto obra de mestres individuais quanto a ex­ pressão ou o reflexo do espírito grego, onde o conceito de espírito ainda não contém a implicação metafísica conferida por Hegel. Neste caso, o conceito de espírito encontra-se mais próximo do “Esprit des N ations” de Montesquieu. Em terceiro lugar, mesmo para W inckelmann esta expressão consumada é o resultado final de um desenvolvimento cuja necessidade intrínseca é inteligível. Os


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estágios da arte grega, a progressão do estilo levaram ao que Winckelmann chama de “o belo estilo”, atravessando a fase do estilo nobre ou austero que conduz inevitavel­ mente a fazer concessões ao prazer sensual, até o declínio. Neste terceiro aspecto fala-se de ‘‘determinismo histórico” — a explicação de como em toda a sua perfeição a arte grega traz em seu bojo até mesmo as sementes de sua decadência.2 Claro está que este determinismo é até certo ponto incompatível com aquilo que Winckelmann sentia ser a sua missão: desafiar alguém a competir com as obras gregas e o retorno à Idade de Ouro. Esta falha na doutrina de Winckelmann era mais evidente para seus contemporâneos, na medida em que estes lutavam para ganhar consciência da identidade independente de sua arte nacional. Penso aqui antes em Herder, mas também em Schiller, cujo ensaio Über Naive u n d Sentimentalische Dichtung tenta fazer justiça à Idade de Ouro da Grécia Clássica, sem vê-la como absoluta. Afinal, aqueles eram os anos em que este antigo sonho da Idade de Ou­ ro tornou-se inexplicavelmente o assunto do momento. Parecia que a razão humana precisava apenas controlar as rédeas para fazer o sonho tornar-se realidade. Obviamente estou falando da Revolução Francesa, que Hegel via também como um evento virtual­ mente cósmico: “Pois enquanto o sol brilhava no firmamento e os planetas giravam em torno deste, não se viu o Homem firmar-se em sua cabeça, em seus pensamentos, e construir uma realidade em acordo ... Todos os seres pensantes celebraram esta era ... um entusiasmo do espírito encheu o mundo de admiração, como se o divino tivesse finalmente chegado a uma verdadeira reconciliação com o mundo”, diz ele em Philosophy ofH isíory. (p. 529)' Estou certo que a filosofia de Hegel, que eu chamaria de “otimismo me­ tafísico”, só pode ser realmente compreendida em relação a este evento. Como alguns de seus contemporâneos, ele via os desenvolvimentos anteriores ao triunfo da razão do ponto de vista de um evento climático. Mesmo nos estágios da evolução natural, da ma­ téria inanimada passando pelas plantas e pelo reino animal até o Homem, ele encon­ trou a confirmação de que o processo histórico foi, em sua totalidade, um desenvolvi­ mento necessário que levou à evolução do espírito de autoconhecimento. Dentre outras idéias, Hegel certamente adotou a crença de que a arte detém um papel importante no processo cósmico de seu amigo de infância, Schelling. As três passagens sobre a religião da arte contidas na difícil obra inicial de Hegel, The Phenomenology (1806), encontram-se embutidas em termos tão abstratos, que a verda­ deira história da arte não está em jogo ali. Entretanto, me parece que as três idéias fun­ damentais de Winckelmann estão presentes sob as abstrações, tanto em The Phenome­ nology quanto na obra seguinte, Encyclopaedia (1817). Nesta, a arte também é essen­ cialmente teofania, ato de desvelar o divino, ligada ao coleüvo histórico. Nas palavras de Hegel, “a obra de arte só pode ser uma expressão de Deus se ... tira e extrai ... sem adulteração ... o espírito habitante da nação”. (Encyclopaedia, p. 462) Portanto, assim como o transcendentalismo estético e o coletivismo são elevados ao status de princípios dinâmicos, a lógica do desenvolvimento em Winckel-


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mann é elevada ao determinismo lógico. Porque a arte tam bém toma parte na autocnação do espírito, que acontece com a força constrangedora de um silogismo. Da mesma forma que na história da arte, trata-se de “revelar a verdade ... que está manifesta na história do mundo”. (A III 573) O otimismo metafísico proclamado nestas palavras traz agora consigo um outro princípio não menos fundam ental à concepção de Hegel da história da arte e à interpretação dos demais acontecimentos da história. Refiro-me ao princípio do “relativismo”, um resultado da dialética na obra hegeliana. No que concerne à história da arte, este relativismo dialético, por si relativo, só se torna importante em Lecture on Aesthetics. Estas quatro palestras feitas por Hegel em Berlim chegaram ao nosso co­ nhecimento através da reorganização de seu aluno, Hotho, para a qual usou os rascu­ nhos de Hegel e anotações que os estudantes fizeram. Talvez, por esta razão, não se deva considerar cada palavra, mas o todo que configura indiscutível autenticidade. Co­ mo outros trabalhos de Hegel, estas palestras não são de fácil leitura. A apresentação abstrata, que não preciso exemplificar, torna-se, com freqüência, obscura. Mas quando o leitor está prestes a perder a paciência, às vezes é acalmado por uma passagem que parece estar enraizada na experiência viva. Hegel tinha um a sensibilidade genuína para a pintura e, incidentalmente, também para a música. Mas seu conhecimento da verdadeira história da arte era tão escasso que ele se deixou lograr pela crença de que o túmulo do conde Engelbert II von Nassau, em Breda, era obra de Michelangelo. Contudo, Hegel tinha clara noção do que ele chamava de as exigências da erudição, “a exata familiaridade com o amplo domínio da obra de arte individual, antiga ou moderna”. Segundo ele, a erudição em termos de arte demanda ainda “um a vasta riqueza do histórico e também conhecimen­ to minucioso. Na medida em que a individualidade da obra de arte relaciona-se com algo individual, exige conhecimento detalhado se é para ser entendida e explicada”. (A I 30) Ele fala com gratidão da atividade dos especialistas, sem deixar de ressaltar que estes, ocasionalmente, limitam seu conhecimento da obra de arte aos aspectos p u ­ ramente externos, “tendo pouca noção” da verdadeira natureza da obra de arte ... “sem saber o valor de estudos mais profundos, eles os desprezam”. (A I 56) Para Hegel, estes estudos mais profundos eram o que importava. Ele tinha como objetivo provar a valida­ de do que para ele era a crença essencial e reconfortante na razão universal, mostrando como a história da arte podia ser percebida em termos daqueles princípios firmemente estabelecidos e que determinavam todos os acontecimentos na sua filosofia. Mesmo on­ de um empreendimento como este parece mal orientado, o leitor não pode deixar de ser afetado pela consistência com que Hegel dedica-se a extrair o significado atribuído a ca­ da forma de arte, a cada época, a cada estilo. Esta mesma consistência foi necessária para ajudar a enfatizar o cerne de sua doutrina, a chamada dialética que estabeleceu com firmeza o otimismo metafísico no relativismo.


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Esta relação pode ser melhor explicada se nos referirmos mais uma vez ao classicismo da antiguidade, que para Hegel culminou na escultura grega, já que, como forma de arte, a escultura coloca-se em algum ponto entre a arquitetura, esta inextrincavelmente ligada à matéria, e a pintura, que representa o mais avançado processo da espiritualização, cujo verdadeiro tema é a luz — um pensamento que talvez originese em Herder.3 Para Hegel, mesmo a pintura representa apenas uma fase a ser ultrapas­ sada antes de chegar à música, uma forma de arte quase completamente desmaterializada. Por sua vez, a música deve ceder espaço à poesia, que lida com significado puro. O valor de todas as artes, entretanto, é mais uma vez relativo, porque “a arte está longe de ser a expressão mais avançada do espírito”; é dissolvida na reflexão e substituída por pensamento puro, pela filosofia. Como resultado disto, a arte pertence ao passado. (A I 24-25) Assim, para Hegel, a arte da antiguidade, tal como vista por J. J. Winckelmann, constitui com certeza o pivô da verdadeira história da arte, mas sua perfeição só foi possível durante um a fase de tempo espiritual limitado, tanto quanto foi possível representar os deuses como seres visíveis. O que precede a arte da antigüidade é uma fase de menor consistência: a arte oriental. Hegel a chama de pré-arte ( Yorkunst) e, seguindo o neo-platônico Creuzer, atribui a esta uma forma particular de simbolismo ainda não adequada ao espírito.4 Hegel teve a sorte, ou o azar, de escrever sobre a arte do Egito Antigo pouco antes de os hiero'glifos serem decifrados e, portanto, antes que a imagem da civilização egípcia fosse radicalmente alterada. Para Hegel, o Egito “era a terra do símbolo e encarrega-se da tarefa espiritual de autodecifração do espírito, sem, na verdade, alcançar seu objetivo. Os problemas permanecem não resolvidos e a solução que podemos dar consiste então em mera interpretação de enigmas da arte egípcia e sua obra simbólica como um problema indecifrado pelos egípcios”. (A I 456-57) “Po­ demos mencionar a esfinge como um símbolo para este significado adequado do espíri­ to egípcio. Ela é, como foí, um símbolo do simbólico mesmo ... são corpos animais em repouso dos quais irrompem corpos humanos, formando assim a parte superior do cor­ po ... O espírito hum ano está tentando abrir seu caminho para além da força bruta e do poder animal, sem atingir um retrato perfeito de sua própria liberdade e de sua forma animada.” (A I 465) Assim, um monumento de arte inexplicado torna-se, para Hegel, uma metáfora para o espírito de uma época inteira. E, uma vez firme na opinião de que naquele tempo o espírito, como a esfinge, permanecia acorrentado ao animal, ele afir­ mou também que “os egípcios construíram seus edifícios religiosos em torres do mes­ mo modo instintivo que as abelhas fazem os seus alvéolos ... A autoconsciência ainda não atingiu a fruição, ainda não completou-se em si, mas força, busca, conjectura, pro­ duz continuamente sem chegar à satisfação absoluta e, portanto, sem descanso”. (A II 286)


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Não é difícil perceber o quanto esta imagem dramática do espírito em luta deve ao princípio da dialética, porque esta representa essencialmente a negação do ideal clássico que Hegel e Winckelmann viam traduzidas em realidade na arte da Grécia Antiga. Contudo, sem levar em conta a freqüência com que Hegel referia-se a Winckelmann em passagens a este respeito, ele sabia com notável lucidez que os sessen­ ta anos que o separavam de seu mestre transformaram radicalmente a imagem da escul­ tura grega. A descoberta da escultura de Aegena, sobretudo o Partenon, alterou inevi­ tavelmente a ênfase. Hegel foi um dos primeiros a m enosprezar de fato o Apollo de Belvedere com uma piada de um jornal inglês que o descrevia como um “janota teatral” (A II 431) e a Laokoon como um a obra tardia, declinando já para o maneirismo (A II 434). Talvez Hegel não desse muita importância a estas obras. Ele nunca esteve na Itália e buscou razões para explicar ‘‘por que a escultura da antiguidade nos deixa de certa forma frios ... sentimo-nos im ediatamente em casa com a pintura ... nos qua­ dros vemos algo que funciona e é ativo em nosso interior”. (A III 17) Um ponto crucial na visão de Hegel da história era a idéia de que a es­ cultura pertencia à antiguidade pagã e a pintura, à era cristã, chamada por ele de era romântica. Naturalmente esta sua idéia valia-se de um a coincidência: as estátuas de már­ more sobrevivem mais facilmente que as pinturas. Sem dúvida, Hegel sabia que os gre­ gos da antigüidade tinham em relação a pintores como Zeuxis e Apelles a mesma esti­ ma que nutriam por seus escultores, e não estava satisfeito com esta interpretação da pintura como uma forma de arte subjetiva, romântica. Mas, já que, como ele diz pru­ dentemente, a essência do panoram a grego corresponde mais de perto ‘‘ao princípio da escultura do que a qualquer outra arte ... o atraso da pintura em relação à escultura é o que se pode esperar”. (A III 20) Seja como for, os esforços de Hegel para examinar cada forma de arte segundo sua habilidade de expressar certos valores espirituais levaramno a descrever o meio do pintor com clareza raramente igualada, antes ou depois, na história. Para nós, a noção de ‘‘pictorização” liga-se ao nome de Heinrich Wõlfflin, que, em seu Principies o f A rt History, descreveu tão articuladamente o desenvolvi­ mento da escultura à pintura. Devemos lembrar que Hegel também acreditava que o escultural necessariamente precedería o ‘‘pictorial”. Assim, Hegel fala do elemento plástico-escultural em pintura e coloca os problemas da comp>osição em pintura em uma passagem que quase poderia ter sido escrita por Wõlfflin: ‘‘O tipo seguinte de arranjo ainda continua inteiramente arquitetônico, uma justaposição homogênea de figuras, ou uma oposição regular e a conjunção simétrica das figuras entre si, com suas atitudes e movimentos. A forma piramidal do grupo é m uito comum neste caso ... Inclusive na Madonna Sistina, este tipo de agrupamento ainda permanece decisivo. Em geral, é reconfortante para os olhos, pois a pirâmide une por seu vértice o que de outro modo

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seria uma justaposição fragmentária, e dá ao grupo unidade interna . (A III 98) Mas o pintor que, como diz Hegel, usa de todos os meios disponíveis em sua arte (A III 99), o pintor com “pictorização”, ainda encontra mais possibilidades de desenvolvimento. Ao longo da evolução artística que Hegel examina à exaustão, a pintura holandesa do século XVII transforma-se num fim em si. Valéria a pena reunir uma pequena antologia de passagens onde, cansa­ do de adotar um tom seco, Hegel nos contempla com sua reação espontânea à pintura. O ruído de trituração de seu moinho conceituai se cala, abrindo espaço para o verdadei­ ro amor pela obra de arte. Mais uma vez um rápido exemplo será suficiente: Enquanto a arte clássica dá forma na apresentação de seu ideal apenas ao que é sólido, temos aqui, frente aos nossos olhos, expressões passageiras da Natureza em mutação, uma corrente, uma cachoeira, ondas espumantes do oceano, uma vida tranqüila com flashes casuais de vidros e pratos, etc., a forma externa da realidade espiritual nas situações mais espe­ cíficas: uma mulher pondo linha na agulha sob a luz, um bando de ladrões congelados em movimento, o aspecto mais momentâneo de um gesto que passa rapidamente, o riso e a gargalhada de um camponês; Ostade, Teniers e Steen são mestres em tudo is­ to ...” (A II 227) “Mas mesmo que o coração e a m ente mantenham-se insatisfeitos, uma inspeção mais acurada nos reconcilia com eles. Pois cabe à arte da pintura e ao pintor nos deliciar e transportar. E, se de fato queremos saber o que uma pintura é, devemos olhar para estas pequenas figuras para dizer deste ou daquele mestre: agora ele realmente pode pintar ... (A II 226) Hegel esteve nos Países Baixos e tomou-se de entusiasmo pela pintura holandesa. Enquanto sua descrição da arte italiana baseia-se em larga escala na obra fundamental de Rumohr, que acabara de ser editada, seus escritos sobre a Holanda esteiam-se inteiramente em sua própria observação. Talvez haja nisto um elemento ideo­ lógico. O catolicismo dos Nazarenos perturbou para m uitos o prazer da descoberta re­ cente dos chamados pintores “primitivos” italianos. Em contrapartida, na Holanda Hegel pôde desfrutar o triunfo do protestantismo nas e através das pinturas. “Não teria ocor­ rido a nenhum outro povo, sob outra circunstância qualquer, retratar temas como os que nos confronta a pintura holandesa, como o conteúdo principal da obra de arte.” Hegel encontra a justificativa para a escolha de temas dos holandeses em “seu senso de liberdade autoconquistada, através do qual atingiram bem-estar, conforto, integri­ dade, espírito, esplendor e mesmo um orgulho em sua anim ada vida diária”. (A II 226) Podemos ver nesta glorificação do povo holandês um reflexo da idealiza­ ção de Winckelmann sobre os gregos. E, assim como para aquele autor, um resultado do sistema hegeiiano é que o florescimento de uma forma de arte traz consigo sua dis­ solução interna. A cor mágica” da pintura acarreta uma inevitável transição para a m ú­ sica. Hegel também nos surpreende na análise desta forma de arte ao mostrar vivo en­ tusiasmo por Mozart e por Rossini, que contrasta estranham ente com suas tentativas um tanto elaboradas de uma construção conceituai.


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De qualquer forma, uma coisa é certa: em se tratando de Hegel, sua teo­ ria estética das categorias constitui parte integral de seu sistema filosófico porque, como afirma em Aesthetics, “apenas o todo da filosofia pode ser equacionado com o conheci­ mento do universo como totalidade orgânica em si ... no interior deste mecanismo cir­ cular da necessidade científica, cada parte é, por um lado, um círculo girando sobre si mesmo e, por outro, tem conexão necessária e simultânea com outras partes — uma origem da qual deriva e um ponto à frente para onde se dirige, na medida em que engendra com fertilidade um “outro” de si, tornando-o acessível ao conhecimento cien­ tífico”. (A I 42-43) Obviamente, há algo de tentador num sistema como este, onde todo fe­ nômeno concebível, natural, espiritual ou histórico tem seu lugar. E exatamente por Hegel ter sido a última pessoa e aquela que construiu com maior consistência um siste­ ma assim, sua filosofia não perdeu o efeito quando a influência da sua metafísica decresceu. Portanto, uma sucessão espiritual não está restrita aos filósofos que endossaram todas as definições de sua Encyclopaedia. Na verdade, sabe-se que Karl Marx, por exem­ plo, opôs-se à tese de Hegel da primazia do espírito — a antítese da primazia da matéria — para, usando o famoso duplo sentido da dialética, cancelar e manter o siste­ ma (Aufheben). Esta foi a tentativa de maior influência, mas não a única, para secularizar a metafísica hegeliana como tal, sem com isto sacrificar a sinopse de todos os even­ tos históricos. Em meu livro, In Search o f Cultural History, procurei mostrar como os campeões da cultura e da estética dos países de língua alemã deixaram-se enfeitiçar por Hegel. O esforço para “reconstruir” o espírito de época nas artes vai de Carl Schnaase ajacob Burckhardt, Heinrich Wõlfflin, Karl Lamprecht, Alois Riegl, Max Dvorak e Ervin Panofsky. Apesar de m inha análise ser curta, não quero e nem posso repeti-la aqui. Um aspecto, entretanto, coloco de coração. Não desejo criar uma impressão de desres­ peito de minha parte em relação a estes grandes mestres. Nem se pode repetir com freqüência que o melhor tributo a ser prestado a um erudito é levá-lo a sério e reavaliar suas linhas de argumento sempre. Seria o último a exigir que a arte e a história cultural desistissem da busca de relações entre as coisas e se contentassem com catalogação. Se este fosse meu objetivo, não me teria ligado em Hegel. O que me deteve não foi a cren­ ça na dificuldade de estabelecer relações entre as coisas mas, paradoxalmente, porque parece muito fácil fazê-las. A estrutura gigantesca da estética de Hegel serve, por si, como prova para.esta tese. Apesar de seu virtuosismo evidente, já vimos como ele ten­ tou, em sua explicação sobre a arte egípcia, escorregar do metafórico para o factual. Ou como ele relegou a figura de Apelles aos limites da arte grega para não entrar em choque com sua construção da seqüência histórica das artes. Mesmo o historiador profissional sucumbe com facilidade à tentação de “corrigir a sorte”. Todo retrato histórico é, em definitivo, e deve ser, seletivo. Portanto, é natural confinar-se ao que parece significativo e negligenciar o menos essencial. Meu amigo, Sir Karl Popper, o grande perito em metodologia científica, me fez sensível ao perigo de fascinação por estes cantos de sereia.6 O verdadeiro cientista não busca con-


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firmação de suas hipóteses, antes fica à espreita de exemplos contraditórios. Uma teoria que não pode conflitar-se com nada não tem conteúdo científico. O perigo da herança hegeliana repousa exatamente na tentação da facilidade de sua aplicação. Afinal, a dia­ lética nos facilita encontrar uma saída para qualquer contradição. Como nos parece que tudo na vida tem uma intercomunicação, todo m étodo de interpretação é facilmente aceito, dependendo, sobretudo, de um ponto de partida plausível. O artista deve co­ mer”, nos diz Lessing, e já que os artistas não podem pintar sem comer, certamente é possível basear um sistema de história da arte com credibilidade nesta necessidade universal. Estas tentativas de interpretação me fazem lembrar da velha anedota do fazendeiro que vendeu um porco por trezentas coroas e estava confortavelmente senta­ do num bar com o saco de moedas a sua frente. Esvaziou-o sobre a mesa e passou a contá-las ‘‘Um, dois, três.” Chegou a 10, a 50, 100 e começou a bocejar: 150, 180, 181. De repente, juntou as moedas e as recolocou no saco. ‘‘Q ue diabos está fazendo? , per­ guntaram seus companheiros. ‘‘Esteve certo até agora, então o resto também estará”, respondeu o fazendeiro. Imagino que eu não seria o primeiro, nem o único historiador da arte que gostaria de repetir a contagem. Ao contrário, já me perguntei diversas vezes se hoje, há quase um século e meio da morte de Hegel, m inha polêmica em relação a certas interpretações da história talvez não sejam um caso de lutar contra moinhos de vento. Percebi que não se trata apenas de incriminar moinhos de vento, mas gigantes verda­ deiros. Já mencionei os cinco gigantes principais por seus estranhos nomes — transcendentalismo estético, coletivismo histórico, determinismo histórico, otimismo metafísico e relativismo — todos relacionados ao gigante Proteus, pois mantêm-se constantes em toda metamorfose. A idéia da transcendência da arte torna-se transparência na forma secularizada. Apesar de não ser mais a manifestação do espírito da auto-realização, a obra de arte ainda é vista como a expressão do espírito de um a época que, como tal, aparece visível através de sua superfície. O termo “expressão”, com sua ambiguidade evasiva, facilita esta transição, permitindo ao historiador desvendar a filosofia de uma era, ou suas condições econômicas, através de uma obra de arte. Os dois métodos têm em co­ mum a conexão com o coletivismo, pois o caminho conduz da obra de arte individual pela via do estilo, que agora pode ser interpretado como um sintoma, uma manifesta­ ção de classe, raça, cultura ou idade. O determinismo assume agora um papel chave explícito, ou pelo menos implícito, neste método. Aí repousa a herança hegeliana: na pretensão de mostrar o estilo gótico como um resultado necessário do feudalismo ou da escolástica, ou que os três fenômenos são meras manifestações do mesmo princípio subjacente. Mas deve-se também reconhecer a existência de ligações diretas e indiretas entre estes fenômenos desiguais. E uma simples questão de localizar o ponto em que o trivial converte-se em absurdo, modificando um pouco um a das expressões favoritas de Hegel. O determinis-


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mo histórico encontrou tantos oponentes que a questão parecia estar resolvida, se uma questão fosse passível de resolução. Não é necessário decidir aqui qualquer coisa acerca do problema da causalidade, da validade das leis naturais ou de livre arbítrio para refu­ tar a idéia de que o curso da história segue um desenvolvimento necessário. Desta for­ ma, Manfred Eingen, vencedor do prêmio Nobei de Gõttingen, enfatizou recentemen­ te que se pode aceitar a validade das leis da natureza sem que isto seja razão suficiente para concluir sobre o curso irrevogável e predeterminado da história. Freqüentemente gosto de comparar as influências multifárias que estão por trás da criação artística com a influência do clima sobre a vegetação. Ninguém nega­ rá a existência de tal influência. O fato de que a vegetação, por sua vez, afeta o clima pode também recomendar a comparação aos partidários da dialética. As variações climáticas-podem inclusive ser conhecidas através da observação dos anéis anuais de uma velha árvore. Ainda assim, este cálculo teria uma validade limitada, uma vez que os efeitos mútuos não se restringem a estes dois fatores apenas. Vários outros fatores, im­ possíveis de calcular previamente ou de serem reconstruídos, estão em jogo. Vale lem­ brar a importação casual de um casal de coelhos que quase levou a uma completa devas­ tação da vegetação. Não se pode deixar de lado a realidade dos acasos. Sei que na segunda edição da Encyclopaedia Hegel explicou a famosa frase tirada de Philosophy o f Law, “tudo que é racional (vemünftig) é verdadeiro e tudo que é verdadeiro é racional”, para sua compreensão da realidade como “não ape­ nas a mera existência empírica ... mesclada ao acaso, mas a existência que é inseparável do conceito de razão”.7 Porém; esta tentativa de salvação está definitivamente baseada em um argumento circular, pois, se o acaso não tem nada a ver com a filosofia, tampou­ co tem com a história. De tempos em tempos, a história confirma o velho provérbio “Kleine Ursachen, grosse Wirkungen ” (acontecimentos importantes começam como ba­ nalidades) — um dito verdadeiro que bane de uma vez por todas o fantasma do deter­ minismo histórico. Isto parece tão óbvio que se pode perguntar por que as pessoas resistem a esta percepção. Talvez o poder do acaso fira nossa auto-estima. Falamos de coincidên­ cia cega, estúpida ou sem sentido e achamos o azar, tanto na vida quanto na história, mais fácil de lidar se o vemos como o destino inevitável. Seria muito mais fácil se com­ partilhássemos do otimismo metafísico com o qual Hegel tenta nos convencer de uma vez por todas de que tudo o que acontece é para melhor. O desejo dá origem ao pensa­ mento, em qualquer sentido que a fé num final feliz e predeterminado do jogo cósmi­ co seja formulada. Supõe-se que nem todos os deterministas sejam otimistas também. Oswald Spengler, por exemplo, que tinha tanto em comum com Hegel, profetizou o declínio inevitável do mundo ocidental. Por outro lado, o fator essencial no otimismo metafísico é que não pode, nem deve haver nenhum declínio ou deterioração que não abra caminho para um novo tipo de desenvolvimento. Acho que não estaria muito errado se descrevesse este relativismo como o dogma oficial, por assim dizer, do ensino contemporâneo de história da arte, na medida


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em que este se devota ao determinismo. Não se pode condenar o inevitável, mais do que um geólogo poderia condenar a Era Glacial. Por certo, levou algum tempo antes de os historiadores da arte adotarem esta atitude, que vai m uito além de Hegel e sua idéia de nivelamento. Segundo Hegel, há um declínio natural mesmo que seja para servir ao progresso. Hoje considera-se científico erradicar o conceito de declínio do vo­ cabulário dahistória da arte onde for possível, para distribuir cada um a das épocas anterior­ mente condenadas em um lugar adequado na cadeia de desenvolvimento. A exigência de reconhecim ento legal da arte gótica no século XVIII foi aceita até mesmo por Hegel. Mais tarde, seguindo os passos de Buckhardt, Wõlfflin reintegrou a arte barro­ ca, Wickhoff defendeu a arte romana, Riegl a arte do fim da antigüidade e Max Dvo­ rak, as pinturas das catacumbas e El Greco. Walter Friedlander libertou completamente a arte maneirista do estigma do declínio e Millard Meiss empreendeu uma avaliação positiva da pintura do fim do trecento. Atualmente, volta-se a respeitar até mesmo o Salão da Pintura Francesa do século XIX, até há pouco considerado a essência do kitsch. É inegável que aproveitamos muito destes esforços — abandonamos pre­ conceitos e aprendemos a olhar mais de perto. Sou uma pessoa pacífica e estou prepara­ do para deixar cada um dos cinco gigantes ter seu brinquedo desde que se limite ao território reservado para si. Concederei assim, até mesmo ao otimismo metafísico, a rea­ lidade de uma forma de progresso que une a natureza à história. Compreendemos des­ de Darwin que em casos como este não há necessidade de teleologia; apenas para o cruel mecanismo de eliminação dos não adaptados. Talvez no campo da arte um a m u­ tação casual também leve a uma solução altamente promissora que, por sua vez, condu­ za a uma seleção ulterior. A história da arte foi apresentada por linhas de desenvolvi­ mento primeiro na antigüidade, depois no Renascimento e também por Winckelmann. O que naquele tempo foi considerado declínio pode ser interpretado em sentido relativista como um outro processo de adaptação. Mas adaptação a quê? Afinal, nem toda coletividade, nem todo grupo faz demanda idêntica aos artistas e a seus padrões. Em relação a isto, meu prezado Julius von Schlosser insistia em não confundir a verdadeira história da arte com a história dos estilos ou idiomas artísticos.8 Certamente a história dos estilos serve melhor a tentativas de reconstrução hipotética do que a fenômenos de maestria artística. Até mesmo um a obra de mestre não independe de uma constelação favorável de circunstâncias. Mas, neste sentido, concordo com o transcendentalismo estético — a atividade artística mais elevada ergue-se a esferas que, mesmo em princí­ pio, desafiam a análise científica.9 A continuidade de tópicos nos temas levantados por Hegel me parece indiscutível. Mas tornam-se batatas quentes somente quando em ligação com a situa­ ção atual da arte. Aqui é necessário voltar à ambigüidade intrínseca da palavra “ históna , já que esta se insinuou no título desta palestra. H egel e a História da Arte pode ser compreendido como uma referência às relações do autor com a historiografia da ar­ te, como discuti aqui. Mas estas palavras também podem subentender a influência de


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Hegel no desenvolvimento da própria arte. E esta é, sem dúvida, uma questão de maior peso. Não podemos jamais esquecer aquilo que a maneira de escrever a histó­ ria pode produzir no curso futuro dos acontecimentos. E é este tipo de feed-back que Hegel provavelmente descrevería como dialético — o que importa para a decisiva in­ fluência da filosofia da história. Hegel via na arte mais do que um reflexo do divino. Via também um aspecto do processo contínuo de criação que atravessa o artista (A I 50). O papel designado na antigüidade clássica ao poeta atribui-se daqui em diante a todo verdadeiro artista. Ele é um vidente, um profeta, não apenas um porta-voz de Deus, mas alguém que O ajuda a alcançar Sua autoconsciência. Em palestras sobre filosofia da história, Hegel nos coloca — mais expli­ citamente do que naquelas onde o tema é a estética — sua concepção do papel históri­ co desta missão divina. E verdade que suas reflexos sobre o que chamava de “indivíduos históricos mundiais” referem-se de imediato a líderes políticos. Mais que qualquer ou­ tro, Hegel tinha em mente Napoleão, que preservou os feitos da Revolução Francesa e superou-a. Numa famosa carta após a batalha de Jena, Hegel o descreveu como “esta alma do mundo”.10 Mas, quando Hegel fala de grandes homens, estamos autorizados a incluir também os artistas. De qualquer forma, estes não se deixariam excluir. Segun­ do Hegel, é tarefa do que ele chama “estes gerentes de negócios do Espírito do Mundo estar consciente do próximo passo necessário a ser dado pelo mundo. Fazer deste passo seu objetivo e devotar sua energia a isto” ... “Eles representam a espécie seguinte, já pré-figurada internamente como tal.” (p. 46) Obviamente não cabe aos simples mortais reconhecer e compreender es­ ta antecipação do futuro no presente. Portanto, só se pode tirar uma conclusão da filo­ sofia hegeliana: qualquer que seja o objetivo do Espírito do Mundo, deve ser algo de novo. Assim, o velho é depreciado, enquanto que o desconhecido, o não experimenta­ do, pelo menos traz consigo a possibilidade de abrigar as sementes do futuro. Ser rejei­ tado em sua época torna-se a marca do gênio. Os grandes mestres devem estar à frente do seu tempo, pois se não estivessem não seriam grandes mestres. Aqueles de nós que não percebem as mudanças de estilo, de tendências e das modas como uma revelação de propósitos mais elevados devem-se perguntar co­ mo poderão realmente saber o que o futuro apreciará. De fato, deveriamos até nos per­ guntar por que supomos que a próxima geração terá necessariamente melhor sabor que a nossa. Mas para quem endossa o otimismo metafísico de Hegel, o processo de seleção passou do presente para o futuro. Apenas o sucesso do futuro conta como válido, como verdadeiro, real, um teste da Vontade Divina. Criticar os acontecimentos contemporâ­ neos torna-se, teoricamente, impossível porque tal crítica sempre incorre no perigo de revelar-se como blasfêmia no futuro. Tudo que resta ao crítico é tentar ver em que dire­ ção o vento sopra. Como mostrou Popper, um gigante mais perigoso assoma de trás do otimismo metafísico: o oportunismo metafísico. Não é meu desejo, nem de Popper, assegurar que a filosofia do progresso


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na arte, a teoria do avant-garde" , tirou inspiração e nutriu-se exclusivamente da filo­ sofia de Hegel. Mas creio ser possível demonstrar a contribuição essencial feita pela tra­ dição hegeliana. Em outra ocasião, chamei atenção para um a observação feita por Heinrich Heine, que derivou esta conseqüência para a crítica de arte da filosofia de Hegel. Heine via Hegel como o maior filósofo alemão desde Leibniz, acima de Kant, e discor­ dou de críticos que no Salão de Paris de 1831 — ano da m orte de Hegel censuraram um quadro de Descamps por ser mal feito. Ele insistiu no ponto de que todo artista original, e sobretudo todo gênio artístico, deve ser julgado por seus próprios padrões estéticos ... Cores e formas ... não são mais que símbolos da Idéia, símbolos que surgem na mente do artista quando tomado pelo sagrado Espírito do Mundo . Heine fala da servidão mística do artista e, em vista desta falta de liberdade, qualquer crítica torna-se pedantismo arrogante. É verdade que no campo da crítica de arte os críticos levaram muito tem ­ po para admitir a derrota e para chegar ao que Hegel teria chamado de auto-anulação da crítica de arte. Mas todas as sucessivas ondas de revolução artística do século XIX ocasionaram um soerguimento do relativismo otimista. A crença no progresso polari­ zou o m undo político e o m undo das artes. Restou o ím peto do avanço e a inércia dos reacionários. Nesta constelação, a tarefa de criticar não cabia ao crítico, sua missão agora era assistir à boa luta do movimento. O crítico tornou-se o arauto da nova era e fez o melhor para transformar estas profecias em realidade. Vale lembrar com que prazer os manifestos artísticos do início do século XX entregavam-se a uma retórica apocalítica, anunciando um novo ocaso, uma nova era, uma distribuição. Neste caso, Hegel tam ­ bém proporcionou inspiração direta. Eckart von Sidow escreveu em um panfleto de 1920 sobre German Expressionist Culture a n d Painting: “podemos dizer, com poucas quali­ ficações, que o Espírito Alemão encontrou contato im ediato com a alma do mundo, como nos dias da Idade Média’’, (p. 73) Não desejo ser mal compreendido. Esta declaração não fala contra o Expressionismo, mas contra sua escora metafísica no transcendentalismo estético. Admito inclusive que a fé metafísica pode de fato inspirar um artista ou um movimento artísti­ co. Quase toda grande arte é religiosa e o elemento religioso na filosofia de Hegel tam ­ bém tinha seu efeito de inspiração. Creio que o historiador da arte de nosso século tem de estudar Hegel, tanto quanto o estudioso da arte eclesiástica da Idade Média devia conhecer a Bíblia. Somente desta maneira ele poderá, por exemplo, aprender a com­ preender o surgimento triunfante da moderna arquitetura e sua crise atual. Vejamos como Walter Gropius escreveu em 1923, em seu artigo The Idea and The Structure ofThe National Bauhaus: “A atitude de um período torna-se crista­ lizada para o mundo em suas edificações, pois nestas, tanto os recursos materiais quan­ to espirituais de uma época encontram sua expressão sim ultânea”. 12 Conhecemos o ti­ po de expressão com que ele sonhava através do belo discurso feito por ele na abertura da exibição das obras dos estudantes, na Bauhaus: “Em lugar de organizações acadêmi­ cas espalhando-se, assistiremos ao surgimento de pequenas ligas secretas e auto-


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suficientes, alojamentos, oficinas, associações, com o propósito de guardar o mistério que é a essência da fé, dando-lhe forma artística, até quando estes grupos isolados esta­ rão fundidos mais um a vez por uma envolvente e vigorosa visão espiritual que deve, eventualmente, ativar sua manifestação em um grande Gesamkunstwerk, combinando todas as artes. Esta grande criação comunal, esta catedral do futuro iluminará, por sua vez, com sua radiação até os menores objetos do cotidiano”.13 Espero que vocês também sintam o alcance intoxicante destas palavras de um grande arquiteto. Entretanto, uma intoxicação é freqüentemente seguida por uma “ressaca”. E, como se sabe, não tivemos que esperá-la por muito tempo. Há pou­ cos meses, Sir John Summerson, um dos mais destacados críticos e historiador da arqui­ tetura da Inglaterra, por ocasião de sua premiação com a Medalha de Ouro do Royal Institute of British Architects, falou sobre seu começo como um defensor ardoroso da moderna arquitetura na Inglaterra e ressaltou que ele considera o otimismo naive em seus artigos iniciais totalmente repelente.14 Outro proeminente crítico inglês con­ fessou com franqueza, perante o mesmo fórum, que durante a luta pela arquitetura moderna ele algumas vezes elogiou trabalhos que não achava tão bons, pelo simples fato de serem modernos, não reacionários.15 Estas confissões merecem o maior respeito e, na verdade, hoje em dia devemos receber bem todos os debates que ocorrem, onde quer que a arquitetura seja praticada e ensinada. E através do encontro de argumentos e contra-argumentos que aprendemos com os erros das últimas décadas. Nas artes visuais — pintura e escultura — a volta ao debate crítico não será tão fácil. Afinal, estas carecem do critério prático ao qual tais obras devem fazer justiça. Neste caso, o crítico é jogado contra si próprio. Naturalmente, não podemos exigir que o crítico não tenha sonhos para o futuro e preconceitos. Mas, em teoria, ele nunca tem o direito de operar com slogans do tipo “Nossa Era”, e menos ainda com “Eras Futuras”. Foi Immanuel Kant quem insistiu na doutrina séria e assustadora de que nada e ninguém pode nos aliviar do peso da responsabilidade moral por nosso julga­ mento: nem mesmo um a teofania como Hegel via na história. Diz ele: “Pois, qualquer que seja a forma pela qual um Ser possa ser descrito como Divino ... e pareça mesmo sê-lo ...” isto não pode absolver ninguém do dever “de julgar por si se lhe cabe ver este Ser como um Deus e adorá-lo como tal”.16 Talvez Kant exija mais que o humanamen­ te possível, e muito seria feito caso a descoberta de que Kant está certo ganhasse espaço no mundo da arte. 1. Citei a edição Hegels Werkenin zwanzig Bànden, Suhrkamp Verlag, FrankfurtMain, 1970. A abreviação Al refere-se ao primeiro volume de palestras sobre es­ tética. 2. Em minha série de palestras The Ideas ofProgress and their lmpact, editadas por Cooper Union, NY, 1971 (não se encontram disponíveis no mercado), retor­ no às fontes de Winckelmann.


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3. Agradecimentos ao meu aluno Alex Fotts pelas informações sobre a obra Plastik, de Herder (1778). 4 . Cf. meu ensaio “Vom Wert der Kunsrwissenschaft für die Symbolforschung , in Wandlungen der Paradiesischen u n d Utopischen (Problem des Kunstwissenschaft, II), Berlim, 1966. 5. Oxford, 1969. 6 . Popper, K.R. Logik der Forschung, Viena, 1935; Die offene Gesellschaft u n d ihre Feinde, Berna, 1957; Das Elend des H istorizism us , Tübingen, 1965.

7. Citação de Rosenkranz, K., Georg W ilhelm Fnednch Hegels Leben, Berlim, 1844, p. 335. 8. Schlosser, J. von, “Stilgeschichte und Sprachgeschichte der bildenden Kunst”, in Sitzungsberichte derBayr. Akademie der Wissenschaften, Phil-Hist Abt, 1935, I. Ver também minha obra A rt History a n d The Social Sciences, Oxford, 1975. 9. Cf. minha palestra A rt History a n d the Social Sciences, Oxford, 1975.

10. Rosenkranz, K. op cit 229. 11. Poggioli, R. Teoria dellArte DAvanguardia , Bolonha, 1962. Poggioli não se

refere a Hegel neste contexto. 12. Publicado em Manifeste , 1905-1933, Schmidt, D., Dresden, 1964, p. 290.

13. Ibid. p. 238. 14. Cf. “The Hollow Victory, 1932-1972”, Journal o f the Royal Institute o f the British Architects, dezembro, 1976.

15. Richards, J.M., em RIBA Journal, maio, 1972. 16. Die Religion innerhalb der Grezen der blossen Vernunft, II Abschn, II Teil, 4 Stück, par I, Werke, Berlim, 1914 Bd VI p. 318. N.E. Esta palestra foi proferida pelo autor em fevereiro de 1977 ao ser agraciado com o Prêmio Hegel da cidade de Sttutgart. Em suas palavras de abertura, o autor agradeceu ao porta-voz do corpo de premiação por suas palavras gentis e por facilitá-lo em sua explicação sobre a honra e o embaraço que esta distinção lhe trazia. “Até certo ponto”, ele continua, “isto se aplica a todas as honras públicas. Quem as recebe, em geral, sabe muito bem não ser tão louvável assim. Eu estou particularmente consciente de não merecer o prêmio Hegel. Afinal, a crítica à herança hegeliana não tem um papel menor em meus escritos. Heinrich Heine uma vez falou de si mesmo como um ‘romântico fugitivo’. Talvez eu seja um hegeliano fugitivo”.


MEYER SCHAPIRO Tradução de Glória Arruda

Courbet é as Imagens Populares Um Ensaio sobre Realismo e Naívetée

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As caricaturas das pinturas de Courbet reduzem seu trabalho ao nível de uma arte popular c desqualificada, mostrando seus personagens como pequenos bonshomens rígidos e esquemáticos (Fig. Ia).1 Em uma caricatura de 1853,2 uma criança ao ver broas de gengibre sobre um balcão grita para a mãe: “Oh! maman, vois donc ces beaux courbets! Achète m ’en! quatre pour un sou!” E as críticas, de críticos esqueci­ dos a Théophile Gauticr,3 desprezam o caráter primitivo de sua arte, a semelhança com tobbacconists' signs e as images d'Epinal\ é uma "peinture d'Auvergnat”A Estas críticas não representam apenas uma forma de difamação aplicada a toda arte inovadora. Os Românticos antes dele e posteriormente os Impressionistas foram atacados de outra maneira. Suas obras foram consideradas loucas ou caóticas, co­ mo certas pinturas atuais. Podem também ser consideradas infantilmente incompeten­ tes e feias, mas é difícil imaginar o Sardanapale de Delacroix ou as cenas de ma de Monet como rígidas na forma. No Século XIX o peso da infantilidade era às vezes con­ frontado com formas classicistas ou por demais sintéticas.5 Até Courbet, que passou pela escola de arte romântica, falou com desprezo sobre as figuras de David, bonshommes pour amuser les enfants au même titre que 1’imagerie d’Epinal”;6 e a mesma crí­ tica é feita, em essência, por Thackeray no seu Paris Sketch Book ,7 quando ele descre­ ve os Horatii como sinais rígidos enfíleirados. Com relação à pintura tonal e atmosférica de Courbet, a escola clássica é arcaicamente inflexível; mas em comparação com a mo­ bilidade e o aspecto pitoresco da arte romântica, Courbet parece inerte. Em um ensaio sobre Courbet de 1856, Silvestre censura a imobilidade e ausência de gestos vigorosos em Ingres e Courbet.8 Portanto, se a crítica injuriosa acontece indiscriminadamente, às vezes se baseia nos aspectos positivos das obras criticadas.9 A acusação de primitivismo em Courbet também foi provocada por seus temas. Wrestlers, que pelo seu cuidadoso estudo sobre os músculos lembra o esforço de um Pollaiuolo, foi ironicamente recomendado para servir de fundo ao homem forte do circo.10 Comparadas aos nus masculinos da pintura contemporânea, com seus sig­ nificados heróicos, místicos ou trágicos, as figuras lutando corpo a corpo pareciam uma invasão profana do gosto vulgar das feiras. Ao caracterizar sua obra como naive, os acirrados críticos de Courbet fi­ nalmente concordaram com seus defensores. Seu principal defensor, Champfleury, con­ siderou esta ndiveté um a das maiores qualidades da pintura de Courbet. Ele comparava a simplicidade e força do Enterrement à arte do imagier popular.11


Figura la — Caricatura de Courbet “Retour de la Foire" De loin, en entrant, 1’Enterremertt apparait comme encadré par une porte; chacun est surpris par cette peinture simple, comme à la vue de ces naives images sur bois, taillées par un couteau maladroit, en tête des assassi­ nais imprimés rue Git-le-Coeur. Leffet est le même, parce que 1’exécution est aussi simple. L’art savant trouve le même accent que 1’art nai f.12 (Fig 1b)

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O que Champfleury tinha em mente, aqui, era aquela “visão sintética e simplificada” que Baudelaire posteriormente atribuiría a Corot e Guys e que tam ­ bém encontrou na arte egípcia, ninivita e mexicana.13 Obviamente, Courbet não esta­ va tentando reviver as convenções das estampas populares, da mesma forma que antigos pintores do século XIX imitavam aquelas da antiguidade ou Idade Média. Ainda as­ sim, na sua composição ele expressa tendências inconfundíveis para uma forma mais primitiva. Com seu colorido e riqueza de pigmentos, o uso avançado de tonalidades para formar o todo, as disposições em sua obra são freqüentem ente simplificadas, com uma clareza de agrupamento determ inada pelo interesse em elementos isolados. Isto se evidencia mais ao compararmos suas telas maiores com as composições barrocas de Delacroix, que se afligia com a mera justaposição de elementos nas pinturas de Cour­ bet, a falta de gestos e interação psicológica.14 As figuras de Delacroix estão inteligen-

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temente “organizadas e se assemelham às máquinas dos Sa/ons, ao passo que os gran­ des quadros de Courbet, na opinião de Champfleury, “têm a qualidade suprema de serem um horror quanto à composição”. Seu desenho é com freqüência irregular, de uma maneira intensa e empírica, vulgarizado por poncifs e idealizações de um estilo grandioso, como se ele estivesse esboçando um a forma complicada pela primeira vez; as dobras e contornos interrompidos das roupas de Casseurs de Pierres exemplificam esse modo de observação considerado vulgar em 1850. Que C ourbet estava familiarizado com os métodos tradicionais, nós po­ demos afirmar a partir de suas primeiras pinturas; se ele os abandonou foi por julgá-los inadequados à sua visão e ao seu tema. Ele considerava as formas cada vez maiores e isoladas como qualidades dos objetos representados; e, ao pintar cenas da vida do povo, às vezes enfatizava a rusticidade das figuras na maneira de desenhá-las e agrupá-las. Aum ône du M endiantx(>(Fig. lc) parece naive, mesmo tosca, sugerindo algumas figu­ ras de Van Gogh. Em Enterrement, o violento contraste do vermelho e preto sobre fun­ do cinza e a claridade das faces repetidas e enfileiradas com tons muito fortes de verme­ lho foram escolhas conscientes; ele já havia pintado cabeças semelhantes a essas em ce­ nas ao ar livre usando sombras profundas e cores mais moderadas. Por essa razão os retratos no Enterrement deram a impressão de um gosto primitivo e rústico. As cabeças mais distantes são quase tão luminosas quanto as mais próximas. Elas agradaram


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ao pessoal de Ornans que havia servido de modelo, mas os críticos de Paris, acostuma­ dos à pintura contrastante, sombria e atmosférica dos românticos,consideraram os retra­ tos horríveis como tipos humanos e mal executados. Retratos sem atmosfera e sem som­ bra, em “frontalidade”, eram um a preferência típica dos pequenos burgueses que ha­ via sido ridicularizada na peça Le Peintre et les Bourgeois,1 de Monnier. O espectador naiif da classe média baixa reagia às sombras de um rosto da mesma forma que a impe­ ratriz chinesa, a qual garantiu ao pintor italiano que os dois lados da própria face eram da mesma cof. Especialmente quanto ao conteúdo, o Enterrem ent se assemelha a obras de imagens populares. O primeiro — ou pelo menos inicial — estágio, preservado num esboço em papel no Museu de Besançon (Fig. 2a),18 m ostra um a procissão a caminho do cemitério movimentando-se da direita para a esquerda. O coveiro encontra-se na ex­ trema esquerda, o retângulo no centro é uma lápide e a paisagem está pouco retratada. Este desenho é igual a uma xilogravura popular de juventude da Courbet, Souvenir Mortuaire, feita por volta de 1830 em Montbéliard, alguns quilômetros distante de Ormans, a qual os camponeses, depois de um funeral, prendiam à parede e nele gravavam o nome do morto (Fig. 2b).19 Ela também mostra a procissão indo para a esquerda, o coveiro em uma das extremidades, lápides em primeiro plano e a cruz erguida sobre o horizonte. Na pintura definitiva de Courbet (Fig. 2c), a concepção foi muito mudada e aprofundada no conteúdo; toda a procissão está parada, a cena se concentra na lápide central e a forma da paisagem é adaptada para este novo centro. Em torno dele se reú­ nem os carpideiros, desde crianças à esquerda até os mais velhos, em trajes de 1790. Mesmo esta versão está relacionada com gravuras populares, já que, nas imagens de Les Degrés des Ages, pessoas separadas por idade formam um nítido semicírculo ou arco ao redor da cena do enterro.20 Antes da Revolução Francesa, um Juízo Final preencheia o espaço central; mais tarde, foi às vezes secularizado por um carro fúnebre e um crescimento simbólico, um ramo de rosas, um feixe de trigo e uma parreira de uvas em vários estágios de desenvolvimento, da primavera ao outono.21 É difícil provar que Courbet tenha copiado estas imagens, embora a semelhança seja evidente. Em 1850, ele contribuiu para a criação de um a “ imagem popular”. É uma litografia, ao invés da tradicional xilogravura, mas, apesar de empregar a técnica mais moderna, reproduz um tipo de arte popular.22 Sua imagem do apóstolo, Jean Journet (Fig. ld), faz parte de uma broadside (N.T.: folha grande e solta impressa de um só lado), incluindo um poema em versos, um lam ento a ser cantado para o “Air de Joseph”.23Journet era um missionário fourierista independente, homem de uma sin­ ceridade solene e irrepreensível no seu evangelismo radical; Champfleury inclui-o em sua coleção de ExcentriquesM Courbet mostra-o saindo para converter o mundo, com seu bordão na mão, tal qual oJudeu Errante das publicações populares. A forma da lito-


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Figura 2a — Desenho para “LIEnterrement à Ornans”, Museu de Belas Artes, Besançon

Figura 2b — Xilogravura Popular “Souvenir Mortuairc”, 1830 EfS3£EES2£E2EEBEK&SSBBI

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grafia emoldurada pelos versos pertence às broadsides do início do século XIX; há algo dos santos neste apóstolo secular dominando o horizonte e, sobretudo, do peregrino Saint Jacques, das broadsides religiosas.25 Courbet, além disso, fez desenhos para livros destinados a um público popular, às vezes inculto e filisteu, diferente de Delacroix, que ilustrou Goethe e Shakespeare. As ilustrações de Courbet são de folhetos baratos contra o clero, Death o f Yonhy the Rat-Catcher2() e Merry Tales o f the Cures-,21 ou de um livro sobre tipos pequeno-burgueses, Le Camp des Bourgeois, cujos desenhos foram feitos a partir de fotografias;28 ou imagens de trabalhadores cavando e serrando, para acompanhar as can­ ções de trabalho de um livro de músicas populares das províncias, compiladas por Champfleury.2^ Suas pinturas sobre o trabalho repetem um tema comum da arte popu­ lar, os Métiers.30 Courbet não representa as formas avançadas da indústria moderna — já haviam aparecido antes em pinturas do final dos anos 3031 — mas o trabalho ma­ nual das vilas, as ocupações tradicionais que já tinham sido mostradas em pequena es­ cala.32 Ele perpetua os Knife-Grinders, o Tinker, os Stone-Breakers, os Winnowers e, além destes, pinta o Hunter, o Poacber, o Vintner.; os Harvesters e o Faggot-Gatherer. Em fins dos anos 40 e na década de 50 a simples representação do trabalho ao nível de Stone-Breakers e Knife-Grinders era politicamente sugestiva. As classes baixas, espe­ cialmente a trabalhadora, emergiram como um fator importante na política; e o slogan do Droit au Travail foi o principal usado pelos trabalhadores da Revolução de Fevereiro e nas desordens que se seguiram.33 Ainda nos anos 40 surgira um livro escrito por de la Bédollière, Les Métiers,34 ilustrado com gravuras (daprés Monnier) das diversas pro­ fissões populares;35 era destinado, como disse o autor, a despertar o interesse no povo,


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não de um ponto de vista radical, mas para efetuar uma reconciliação filantrópica das classes opostas.36 Os temas populares de Courbet são, portanto, às vezes considerados ape­ nas tendenciosos e doutrinários, resultado de sua amizade com Proudhon. Esta visão desmerece sua identificação com o povo e o conteúdo preciso de suas obras. Até sua conhecida pintura anticlerical dos padres37 bêbados tem um a origem mais notadamente popular que partidária. A representação dos camponeses sob um a imagem da Virgem na beira da estrada, animados pela bebedeira do clero, não menciona as doutrinas ou sacramentos da Igreja, mas corresponde aos cínicos provérbios e contos da classe campo­ nesa religiosa, cujo folclore, mesmo num país católico como a França, revela sem exce­ ção malícia e hostilidade sub-reptícias contra o clero como um a classe.38 Se comparar­ mos as atitudes de Courbet às construções eruditas do seu admirador, o pintor-filósofo Chenavard,30 que precisa situar a Igreja num vasto período da história mundial para mostrar suas limitações históricas, torna-se óbvio o quanto a imagem satírica de Cour­ bet é rústica e popular em essência. Até Proudhon, no seu comentário sobre a pintura, admitiu que aqui a crítica contra a Igreja estava apenas implícita.40 O radicalismo político de Courbet, seu relacionamento com Proudhon e sua participação na Comuna parecem secundários ao seu objetivo como artista; mas são característicos da sua personalidade, com sua consciência de si provinciana e ple­ béia, numa época de Paris marcada por grandes lutas sociais. Seu sentimento de supe­ rioridade como artista era por ele justificado por possuir um relacionamento inato com o povo. Em cartas e depoimentos públicos, afirmou ter sido o único dos artistas de sua geração a expressar o sentimento do povo e que a sua arte era democrática, na essên­ cia.41 Ele experimentava enorme prazer em pintar a paisagem, as pessoas e a vida de sua vila natal, Ornans, em uma escala monumental, e desse modo impôs ao espectador do Salão seu julgamento da importância social desse mundo. Daumier, em uma carica­ tura de 1853, representou o espanto dos camponeses frente às pinturas de Courbet no Salão,42 mas o artista, de Ornans, escreveu para Champfleury sobre os Casseurs de Pierres\ “Les vignerons, les cultivateurs, que ce tableau séduit beaucoup, pretendem que j’en ferais um cent que je n’en ferais pas un plus vrai”.43 Enquanto pintava o Enterrem ent, correspondia-se com seus amigos de Paris acerca do progresso da obra, descreven­ do como obtivera seus modelos e de que forma posavam para ele; todos, ele dizia, que­ riam estar retratados no quadro.44 Debateu sobre religião com o cura, e o coveiro la­ mentou que a cólera que tinha assolado uma aldeia vizinha passara por Ornans e prejudicara-o numa boa colheita. Ele termina uma destas cartas com um relato do car­ naval de Ornans, do qual havia participado.43 Na sua grande pintura alegórica, o Atelier; ele apresenta ao seu redor no estúdio seus dois mundos — à direita, o m undo da arte, incluindo seu benfeitor Bruyas, os amigos literatos e músicos, Baudelaire, Bouchon, Champfleury e Promayet; no outro lado, o povo com sua rusticidade, pobreza e desejos simples.46 A brasserie germânica em Paris, onde se produziu o realismo co­ mo um movimento, é descrita por Champfleury como sendo uma vila protestante, de maneiras rústicas e jovialidade.47 Courbet, o líder, era um camarada, grande tagarela


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e um bom garfo, forte e obstinado como um camponês, exatamente o oposto do dandy dos anos 30 e 40. Seu comportamento em Paris era conscientemente popular; conversa­ va em gíria, fumava, cantava e gracejava como um hom em do povo. Até sua técnica de pintura impressionou observadores acadêmicos por sua liberdade plebéia e domésti­ ca, pois usava faca e o polegar, apagava e aplainava, improvisando a partir da memória, sem aplicar os conselhos aprendidos na escola. Du Camp escreveu que ele pintava “comme on cire des bottes”.48 Em Ornans, emoldurou o Enterrement com tábuas lisas feitas de abeto da cidade; lá ficou em exposição, e em Besançon, antes de ser mandado para o Salão. Em uma carta escrita a seu benfeitor Bruyas, a respeito de uma exposição indivi­ dual em Paris, ele desenha no papel, com um estilo ndif, uma vista do prédio da expo­ sição, em muito semelhante à tenda de um circo, com teto pontudo e flâmula.49 (Fig. 3a) 3 A preferência de Courbet pelo povo era inteiram ente pessoal, estava no sangue. Mas também era estimulada e direcionada pelos movimentos artísticos e sociais da sua época. Antes de 1848, ele pintou, além de temas românticos e poéticos, o seu mundo da província; após 1848, o tema principal tornou-se a pintura realista do povo. Os primeiros pintores românticos já haviam criado um sentim ento pelas tradições po­ pulares; mas o primitivo exótico era mais valorizado, mesmo que histórica ou geografi­ camente remoto, do que o primitivo contemporâneo de sua própria região.50 Perto de 1840, o gosto pelo povo intensificou-se, como se fora uma preparação para as lutas que estavam por vir. Michelet, Louis Blanc e Lamartine publicaram suas histórias sobre a Revolução Francesa exaltando o amor pela liberdade e o heroísmo do povo francês. Uma nova ficção doutrinária e evangélica da vida popular foi criada por George Sand, Lamar­ tine e Eugène Sue, e a produção literária dos trabalhadores foi bem recebida como a base de uma cultura proletária emergente. Esta literatura podia ser sentimental, melo­ dramática e imprecisa quanto às características sociais, mas, para mentes independentes e perspicazes, os conflitos da época, as reivindicações materiais da sociedade e as con­ quistas expressivas do método científico sugeriam que aos poucos um novo padrão de observação da vida social ia surgindo. Havia uma crítica constante dos costumes, insti­ tuições e idéias. A conscientização das diferenças existentes dentro da sociedade e a no­ ção de um mecanismo social enriqueceram os textos e a compreensão do indivíduo nos 50 anos seguintes. Foi nesse ambiente do final da década de 40 que realismo e povo se uniram num projeto comum. Mesmo Flaubert, que repudiava o gosto romântico51 pela arte primitiva e “socialista” dos anos 40, durante toda sua vida conservou o inte­ resse pelo moderno, o científico, o popular e o primitivo que haviam atraído os jovens radicais de 1848.

Figura 3a — “Carta à Bruyas”, Courbet



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Entre as amizades “ realistas” de Courbert, três jovens escritores, Buchon, Dupont e Champfleury, se inspiraram na vida do povo e nas formas de arte popular. O poeta Max Buchon era amigo de C ourbet desde os tempos de colégio em Besançon.52 Seu primeiro livro de versos românticos tinha sido ilustrado por Cour­ bet em 1839.53 Eram ambos admiradores ardentes de seu compatriota Prodhon; e Bouchon, por ter participado ativamente da Segunda República, foi exilado em 1851 por Luis Napoleão. Ele aparece no Enterrement e no A telier e também está retratado em tamanho natural por seu amigo.54 Era conhecido em Paris, inicialmente, como o autor de La Soupe au Fromage, o hino de luta dos realistas boêmios de fins dos anos 40, e por haver traduzido Hebel, um poeta alemão que escreveu em dialeto sobre o campo­ nês e a vida na vila. Sua própria obra descreve os camponeses e a paisagem de sua região natal, de onde ele compilou as lendas e canções folclóricas. Gautier considerava-o “uma espécie de Courbet da poesia, m uito realista, mas tam bém muito verdadeiro, o que não é a mesma coisa”.55 Buchon não estava ligado à sua província natal apenas por considerá-la um lugar poético, mas por achar que o caráter do povo era a fonte da criati­ vidade individual. Escreveu um livro sobre realismo, publicado durante seu exílio na Suíça em 1856, onde dizia que “a arte popular é o mais implacável protesto contra pro­ fessores e pastiches”.56 A superioridade de Courbet e Proudhon em setores diferentes devia-se a uma “puissante carrure franc-comtoise” comum; ao descrever a genialidade de Courbet, ele introduz, talvez pela primeira vez na crítica sobre um pintor contem­ porâneo, a idéia de uma criatividade folclórica instintiva como a base da grande arte individual. Ele classifica a pintura de Courbet como sendo calma, forte e vigorosa, fruto de um trabalho natural e espontâneo ("il produit ses oeuvres tout aussi simplement q u ’un pommier produit des pommes” ), fundamentada em características particulares e nas qualidades da sua terra natal. Courbet é pouco instruído e um pintor autodidata, mas sua compreensão das coisas se dá através da simpatia pelas pessoas simples e de “uma grande intuição”. Durante uma época, quase tão próximo de Courbet esteve o poeta Pierre D upont,57 autor de Les Boeufs e Chant des Ouvriers (1846), que Baudelaire chamou de “Marseillaise do trabalho”. Eram bons amigos desde 1846 e passavam férias no cam­ po juntos.58 Dupont era o principal compositor de canções para o povo, algumas polí­ ticas e combativas, outras mais idílicas, sobre camponeses, o campo e as diversas ocupa­ ções. 59 Como os quadros do amigo, as canções de D upont eram consideradas rústicas e criticadas por sua naiveté, inabilidade e realismo.60 A música, composta por ele, baseava-se em melodias folclóricas autênticas. Seu LUncendie: Chant des Pompiers é ni­ tidamente semelhante em essência ao grande quadro inacabado dos bombeiros pinta­ do por Courbet, interrompido pelo golpe de estado de 2 de dezembro de 1851.61 O u­ tros temas de Courbet aparecem em Muse Populaire de Dupont: os métiers, os caçado­ res, o gado, as paisagens, cenas da vida rural, tudo mostrado com grande ternura.62 Suas canções políticas escritas em linguagem coletiva expressam o sentimento democrático radical que ouviremos novamente de uma forma mais ameaçadora quando C ourbet se


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refere a si mesmo como um indivíduo soberano, como um governo contrário à situação dominante.63 Ou marches-tu, gai compagnon? Je m e n vais conquérir la terre; J ’ai remplacé Napoléon, Je suis le prolétaire.64 A arte de D upont é popular não apenas no tema e sentimento, mas tam­ bém na forma simples, com estrofes curtas e fáceis de cantar, frases repetidas e refrões primários. Tem o frescor das antigas canções folclóricas e graças a essas qualidades foi admirada por Gautier63 e Baudelaire. Foram as canções de Dupont, na verdade, que sugeriram a Baudelaire que toda poesia é essencialmente um protesto utópico contra a injustiça, um desejo de liberdade e felicidade.67 Courbet também tentou compor canções populares. Uma amostra disto foi publicada por Silvestre na sua história dos artistas vivos.68 São triviais e emas, ale­ gres canções masculinas da brasserie. Courbet considerava-se um músico e queria parti­ cipar do festival de música popular de seu país, em 1848.69 O terceiro amigo de Courbet, o romancista e crítico Champfleury,70 foi o líder dos jovens realistas literatos de 1850 e autor da primeira história geral das ima­ gens populares. Champfleury era do interior, como Courbet, porém de família mais cul­ ta; seu pai era secretário do município de Laon e seu irmão, Edouard Fleury, o principal arqueólogo e historiador local do município. Aos 18 anos mudou-se para Paris, um pouco antes de Courbet, mas só se conheceram em 1848. Seus primeiros trabalhos têm o estilo romântico da école fantaisiste. São contos e sketches sobre tipos estranhos e os mean­ dros da vida parisiense, ora humorísticos, ora grotescos. Champfleury ansiava por fazer sucesso em Paris, onde partilhou a vida da Bohème de Murger e acompanhou de perto os movimentos literários dos anos 40. Sentia-se como um aprendiz que precisava pri­ meiro aprender o ofício e adquirir uma petite manière jornalística que o capacitaria a ganhar seu sustento. Em Souvenirs ele relata como desenvolveu simultaneamente dois interesses, um realismo como o de Monnier e a poesia alemã romântica e sentimental. Em 1849 e 1850 foi envolvido pela corrente do realismo insurgente com preferência pe­ lo contemporâneo e popular e onde permaneceu devido à sua prévia experiência da vida provinciana e à sua consciência de plebeu entre os escritores parisienses mais edu­ cados. Ele descobriu Le Nains (artistas de Laon, sua cidade natal) por volta de 1845, e em 1850 publicou um a brochura descrevendo-os como pintores da realidade. Os Le Nains já pertenciam ao gosto moderno de 1840; em 1846 Charles Blanc compara os irmãos Leleux (Adolphe e Armand) com eles:71 pintavam o camponês bretão e cenas de trabalho e eram considerados realistas. Porém a conversão de Champfleury ao realis­ mo parece ter sido largamente influenciada pela arte imponente de Courbet e por sua


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amizade com Dupont e Buchon, que o introduziram na literatura folclórica e nas possi­ bilidades artísticas de temas da vida da classe mais baixa. 2 A escolha destes temas era fundamental na doutrina realista, talvez tanto quanto as idéias dos realistas menores sobre método e estilo, e Champfleury justificava essa escolha em vários níveis. 4*73 As clas­ ses inferiores eram as mais importantes na sociedade e em seu bojo revelava-se o meca­ nismo social subjacente. Elas constituíam, além disso, um tem a novo e ilimitado, mais atraente que os ricos e a elite pela sua grande sinceridade, uma virtude que para os realistas representava quase a totalidade da arte. Por fim, sua própria literatura é valiosa e sugestiva, suas canções e lendas incluem obras-primas de realismo. Champfleury ad­ mirava o bom gosto inerente daquelas pessoas e supunha que elas seriam aliadas espon­ tâneas e apreciariam a sinceridade e o vigor das obras realistas modernas. Como principal defensor de Courbet na imprensa no início da década de 50, Champfleury foi publicam ente identificado como o apóstolo do realismo e assu­ miu a responsabilidade da defesa teórica deste movimento, embora às vezes reprovasse o nome por julgá-lo enganoso e impreciso; era menos adequado que o lema “sincerida­ de na arte”, o qual ele opôs ao “1’art pour Tart”.74 Suas histórias e romances tornaramse mais intimistas e realistas, desfazendo-se dos elementos de fantasia e do grotesco que ele cultivava até 1848. Porém preservou o humor e sentimentalismo presentes na sua obra desde o início. Comparado à grande e vigorosa pintura de Courbet, seu realismo era “m enor” e causa surpresa, agora, que pudessem ser vistos como expressões seme­ lhantes naquela época. Durante os anos 50, Champfleury produziu uma quantidade regular de histórias e novelas, transformando-se no líder do movimento realista na lite­ ratura. Mas Flaubert sobrepujou-o em 1860, e nas décadas seguintes as obras de Goncourt e Zola ofuscaram seus romances, insignificantes e freqüentem ente mal escritos. Dedicava-se cada vez mais aos estudos históricos; tornou-se especialista em cerâmica an­ tiga e trabalhou para a fábrica em Sèvres até 1889, quando faleceu. Nos últimos 25 anos de sua vida publicou muitos livros sobre a história da caricatura, imagens popula­ res, literatura folclórica, louças com decoração patriótica, vinhetas românticas, Monnier e Le Nains.75 Estes livros eram resultado de muita leitura e pesquisa de documentos originais e, embora limitados como estudos históricos, eram obras pioneiras. Na maio­ ria deles, sua curiosidade foi motivada pela ênfase dada ao realismo e à arte popular em 1848, não obstante seu posterior distanciamento dos ideais daquela época.

4 O que mais nos interessa em History o f Popular lmagery, de Cham p­ fleury, é o fato de ele atribuir um valor artístico absoluto às gravuras ndives feitas para os camponeses e os habitantes da vila. Há muito tempo poesia e canções populares já haviam fascinado os escri­ tores, Montaigne, Molière e Malherbe admiravam as músicas das pessoas simples e pre-


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feriam algumas delas a composições excessivamente refinadas.76 Esta avaliação, pionei­ ra na época, generalizou-se em 1840 e 1850. Colecionaram-se e estudaram-se muito as canções folclóricas na época.7 Elas não seguiam as regras da moderna poesia e música européias — seu ritm o era estranho, com rimas vagas e imperfeitas e combinações desarmoniosas, mas mesmo assim eram consideradas admiráveis. “II en résulte des combinaisons melodiques d ’une étrangeté qui paraít atroce et qui est peut-être magnifique”, escreveu George Sand."8 Na metade do século, outras formas de literatura popular fo­ ram entusiasticamente pesquisadas. Em 1854, Nisard publicou sua obra pioneira sobre a venda ambulante de livros com ilustrações de publicações populares79 e na mesma época Magnin publicou uma história de marionetes80 confirmando a universalidade e dignidade dessa preferência cultivada pelos adeptos da arte popular, especialmente Geor­ ge Sand e o jovem realista Duranty.81 Flaubert trouxe seus amigos Turgenieff e Feydeau à feira em Rouen para assistir à peça de marionetes da Tentação de Santo Antonio, apossando-se de algumas linhas para sua própria versão escrita em 1849.82 Porém o gosto pelas imagens populares contemporâneas desenvolveu-se mais devagar, talvez dificultado pelo caráter diretamente representativo do pictórico e pelos padrões de semelhança já estabelecidos. Mas artistas e escritores dos anos 30 já começa­ vam a descobri-las. Ao descrever o interior de uma casa de fazenda em Auvergne na obra Peau de Chagrin (1830 — 1831), Balzac destacou as imagens em “azul, vermelho e verde, que representam Credit is Dead, a Paixão de Jesus Cristo e os Granadeiros da Guarda Imperial” (os três baluartes da sociedade — comércio, religião e o exército). Ele também sabia mostrar o espírito do campo, caracterizado pela tabuleta da taberna da vila em Les Paysans (1844 — 1845).83 Na década de 40 Decamps reproduziu na pin­ tura de um interior catalão uma estampa rústica religiosa. E, conhecendo bem as quali­ dades do estilo primitivo, Tõpffer ilustrou uma de suas Nouveaux Voyages en Zigzag com a cópia de uma imagem popular, Histoire de Cécile, que ele havia visto durante a viagem.85 Para estes escritores e artistas, as imagens populares tinham um valor re­ lativo, ou interessavam como partes do ambiente que eles estavam descrevendo. Mesmo Baudelaire, que possuía uma percepção extraordinária e um respeito romântico pela imaginação primitiva, ainda seguia regras de pintura que limitavam sua avaliação dos estilos primitivos. Ele podia observar, como Goethe, a perfeitu simetria do colorido dus faces tatuadas dos índios e reconhecer na conduta deles uma exaltação Homérica.86 Ain­ da assim, ao tentar justificar a mediocridade da escultura moderna (Pourquoi la sculpture est ennuyeuse),87 ele chama a atenção para o caráter mais primitivo da escultura como arte, numa resposta irônica à pretensão classicista de considerar a escultura como a arte maior;88 é, sim, a arte por excelência dos bárbaros, “que esculpem amuletos ha­ bilmente muito antes de encarregarem-se da pintura, uma arte de raciocínio profundo e que requer, para desfruta-la, uma iniciação especial .89 A escultura se aproxima mais da natureza e por isso nossos camponeses, que tanto apreciam uma peça de madeira ou mármore produzida industrialmente, ficam perplexos diante de um belo quadro.”


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Na sua condição mais elevada, em nações civilizadas, a escultura é uma arte comple­ mentar, colorida e subordinada à arquitetura; mas agora, tendo perdido essa ligação, tornou-se isolada e vazia, retornando à sua condição original. Nossos escultores con­ temporâneos, diz ele, são “Caraibes ’, artesãos de am uletos. )0 Ao escrever este comentário em artigo sobre o Salão de 1846, ele, apa­ rentemente, não tinha uma opinião melhor sobre as qualidades da pintura primitiva. No seu pouco conhecido Salon Caricatural?1 no mesmo ano, recorre a paródias convencionais de formas arcaicas para rebaixar alguns quadros a infantis ou selvagens devido à sua rigidez ou cores brilhantes. Contrário a isso, Champfleury encontrava na arte popular primitiva e con­ temporânea qualidades que a comparava à arte mais civilizada. Ele dizia que o ídolo talhado no tronco de uma árvore por selvagens estava mais próximo do Moisés de Michelangelo que a maioria das estátuas dos salões anuais”.92 As cores berrantes das gra­ vuras populares são consideradas grotescas, mas são ‘‘menos grotescas que a arte medío­ cre de nossas exposições, onde a habilidade manual universal faz com que 2.000 qua­ dros pareçam ter saído do mesmo m olde”. A arte folclórica m oderna possui as mesmas qualidades das primeiras xilografias do século XV. “A execução naive da Biblia Pauperum só se iguala a algumas gravuras da Bibliothèque Bleue de Troyes. A perplexidade das crianças é a mesma em toda parte ... revela o encanto da inocência, e o encanto das imagiers modernas repousa no fato de terem permanecido crianças ... escaparam do progresso da arte das cidades.” 93 Champfleury, ao comparar o ídolo selvagem ao Moisés de Michelangelo, pode ter sido influenciado pela obra póstuma de Rodolphe Tõpffer, Réflexions et me­ nus propos d ’un peintre génevois, publicada em 1848 e novamente em 1853 e 1865. Num estilo brincalhão e afável, Tõpffer dedica dois capítulos aos desenhos infantis: ‘‘Oú il est question des petits bonshommes” e ‘‘Oú l’on voit pourquoi 1’apprenti peintre est moins artiste que le gamin pas encore apprenti”.94 No segundo capítulo, ele afirma: II y a moins de dissemblance entre Michel-Ange gam in griffonneur et Michel-Ange devenu immortel artiste, quent r e Michel-Ange devenu un immortel artiste et MichelAnge encore apprenti *.95 A origem da arte não se encontra no esforço legendário de traçar o perfil de uma amante, mas sim nos desenhos das crianças. Aqui a arte completa já existe. Homenzinhos idênticos aparecem em Herculaneum e Geneva, Timbuctoo e Quimper-Corentin. Mas há petits bonshommes et petits bonshommes”, a simples imi­ tação da natureza e as representações artísticas de um pensamento. Se mandarmos um gamin para uma escola de arte, ao aprofundar seu conhecim ento do assunto ele perderá a vivacidade e inclinação artística que possuía anteriormente; as qualidades do símbolo substituirão a beleza artística da qual é símbolo. Os selvagens, como os artistas, se ex­ pressam com o mesmo vigor dos ‘‘gamins de nos rues et nos tambours de regiment”. Como representação do homem, os ídolos da Ilha da Páscoa, de aspecto medonho e proporções estranhas, não se assemelham a nada na natureza e são quase incompreensí­ veis. Mas, como manifestações de concepção, “são, pelo contrário, cruéis, implacáveis


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e superiores, divindades bestiais, porém grandiosos e belos; têm lucidez e significação; vivem, falam e dem onstram haver recebido um pensamento criativo que se manifesta através deles”.96 Graças à sua personalidade e experiência pessoal, Tõpffer pôde, já no início do século XIX, chegar a este julgamento favorável dos desenhos infantis. Que esta arte não era imitação e sim a expressão de “idéias”, que as formas naturais eram apenas “sím­ bolos das concepções do artista, relacionados historicamente a um tempo e lugar, tu­ do isto não passava de senso comum na teoria estética do seu tempo. Porém Tõpffer, como artista dotado que devido a um defeito visual na juventude desistiu de ser pintor para dedicar-se ao desenho; como professor suíço devotado aos alunos com quem tinha feito as viagens pioneiras em zigue-zague nos Alpes; como ilustrador das próprias his­ tóricas jocosas; e como caricaturista inventivo que em sua arte reproduziu e explorou o aspecto grafitesco primitivo do desenho caricatural,97 estava mais capacitado a enca­ rar a universalidade da arte como a expressão espontânea de uma idéia tanto por pane de uma criança quanto de um pintor profissional. Seu entusiasmo pela criança pode estar ligado às tradições esclarecidas e avançadas da pedagogia suíça. O livro de Tõpffer era muito conhecido em Paris, onde ele foi calorosa­ mente recomendado como escritor por Sainte-Beuve98 e estudado extensamente por Théophile Gautier em L’art m odem e (1856). Gautier deplorava o fato de Tõpffer considerar a teoria da l'artpour l'art apenas um formalismo sem sentido, mas estava encantado com sua defesa da superiori­ dade da arte infantil. Ele encontrou nos desenhos de Tõpffer as mesmas qualidades que Tõpffer havia descoberto nos desenhos das crianças. Comparando-o com Cruikshank, Gauthier escreveu: “No genebrês há menos inteligência e mais naiveté-. percebe-se que estudou atentamente os pequenos bonshommes que as crianças esboçam em giz nas paredes com traços grandiosos e simples, dignos da arte etrusca ... Ele também deve ter sido inspirado pelos bizantinos de Epinal ... Aprendeu com eles a transmitir seus pensamentos cm poucas e decisivas pinceladas sem perder o vigor”. Percebemos aqui que o primitivo é considerado não somente o exemplo de uma naiveté universal, mas também como base de uma naiveté consciente na arte moderna. No entanto, som ente poucos anos antes, em 1851, Gautier havia desprezado o Enterrement à Omans de Courbet por ser rústico e o comparara às representações dos negociantes de fumo. Entre 1851 e 1856 aparentemente o critério havia muda­ do, devido em grande parte, sem dúvida, ao livro de Tõpffer, no qual revelava a criativi­ dade das crianças. E os primeiros artigos sobre imagens populares escritos por Champ­ fleury tinham começado a surgir desde 1850.102 O radicalismo destes julgamentos que ampliavam o conceito do primiti­ vo ideal (uma geração anterior ao círculo de Gauguin e os primeiros estudos científicos

Figura 3b — “O Atelier”, Courbet; 361 x 598cm; 1885, Museu do krnvre



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sobre a arte infantil) para incluir a urte das crianças, das classes mais baixas e dos selva­ gens, pode ser avaliado pela atitude de Baudelaire. N enhum escritor francês do século XIX escreveu sobre a criança com mais paixão que o protótipo de pintor e poeta de suma capacidade intelectual.10^ Contudo, a arte da criança ou do selvagem não o inte­ ressava; era desajeitada, imperfeita, o resultado da luta entre pensamento e execução. Guys, na maturidade, ao iniciar sua obra, desenhava, na opinião de Baudelaire, “como um bárbaro, uma criança, furiosa com a própria inabilidade dos dedos e a insubordina­ da ferramenta. Tenho visto muitos desses borrões primitivos e confesso que a maior par­ te das pessoas que conhece, ou pensa que conhece, pintura não teria sido capaz de des­ cobrir o gênio latente que habitava esses esboços tenebrosos ... Quando ele encontra um desses trabalhos antigos, rasga-o ou queima-o com um sentim ento divertido de ver­ gonha e indignação”.104 No entanto, sendo autodidata, Guys preservou, “de sua inge­ nuidade antiga, o necessário para dar um tempero inesperado aos seus ricos dons”. 105 Usando uma retórica paradoxal, Baudelaire descreve a genialidade desse dandy e obser­ vador atento da elegância da sociedade parisiense como infantil e bárbara nos seus as­ pectos mais sutis e mostra a criança como o arquétipo do “pintor da vida moderna”. Para Baudelaire, a criança não é mais um exemplo de imaginação livre, como ocorria na época dos românticos e de Tõpffer, mas é considerada alguém que, ao abrir os olhos para o mundo, descobre e lembra as aparências das coisas com um a intensidade de sen­ timento incomparável. Na criança de Baudelaire, a visão direta de cores e formas insuspeitadas é uma experiência extasiante. “Lenfant voit tout en nouveauté; il est toujours ivre.” 106 Porém, nesta intoxicação do visual, a criança autom aticam ente preserva uma clareza ideal e selvagem. “Quero comentar um barbarismo infantil, inevitável e sintéti­ co, que está sempre visível num a arte perfeita (mexicana, egípcia ou ninivita), o qual resulta da necessidade de observar as coisas amplam ente e considerá-las especialmente pelo efeito de conjunto.” 107 Baudelaire, então, atribui à criança dois enfoques: o sinté­ tico e o mais realista, que discrimina a percepção de detalhes; ele comenta a alegria da criança destinada a tornar-se um pintor célebre — que descobre a cor, cheia de matizes e nuances, do corpo nu do p ai.108 Se ele é indiferente aos desenhos da crian­ ça, Baudelaire o transformou num a sensibilidade m oderna, obcecada pela beleza do mundo exterior.100 Sua criança imaginária, excitada pelo impacto da sensação, prog­ nostica impressionismo e as teorias mais recentes da arte como um a visibilidade intensa e purificada. Deve algo ao realismo dos anos 50, o qual, ao restringir o raio de ação da pintura ao imediatamente aparente, aprofundou a compreensão do visual. O próprio Courbet pertence ao período de transição do artista culto da pintura histórica, que se movimenta com um vasto conhecimento de literatura, história e filosofia e cujos trabalhos precisam ser tanto entendidos quanto vistos, para o artista da segunda metade do século XIX, que confia apenas na sensibilidade, inspirando-se diretamente na natureza ou no sentimento, utilizando o olho, ao invés da mente ou • da imaginação. Ao lado dos grandes mestres do período precedente, este novo tipo de artista era, para um crítico como Baudelaire, um mero artesão, ignorante e plebeu. Bau-


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delaire, que pertencera à geração de Courbet e havia sido retratado por ele duas vezes, continuava atado a um a visão aristocrática e menosprezava o realismo; ele menciona freqüentemente a diferença entre Delacroix, uma mente soberana e universal, compa­ nheiro de Shakespeare e Goethe, e os rudes manoeuvres cujos trabalhos agora enchem os Salões. Apreciar Courbet em 1850 significava aceitar obras que exploravam temas banais, pintados sem a retórica patente da beleza clássica ou romântica e revelando uma personalidade cuja resposta à natureza e vida social, embora definida e sincera, parecia inculta e até grosseira, se comparada à inventividade aristocrática de Ingres e Dela­ croix. 110 O aspecto criativo de sua arte não se revelava à primeira vista nos significados e gestos dos objetos pintados; precisava ser descoberto na própria estrutura da pintura (como Delacroix posteriormente reconheceu); de modo que Courbet, um firme oposi­ tor à l'art pour l'art, podia também representar, para os artistas jovens da década de 60, o exemplo m oderno de um pintor puro.111 À sua concepção positiva da natureza como algo que se dá inteiramente na experiência dos sentidos correspondia sua visão da pintura como um objeto material auto-suficiente. No seu quadro Atelier (Fig. 3b), em que Baudelaire aparece no canto direito, absorto na leitura de um livro, Courbet retratou com uma ternura imensa e admirável náiveté um a criança desenhando um bonhomme em uma folha de papel, no chão. A partir do momento em que ele chama esse quadro de uma AUegone Réellem dos aspectos mais importantes de sua vida nos últimos sete anos e desafia o espectador a adivinhar o sentido de todos os elementos, podemos ter certeza de que a criança possui um significado simbólico para Courbet. No centro da tela está o pró­ prio pintor trabalhando; à direita, o mundo artístico, que ele chama de mundo ati­ vo,113 formado por seus melhores amigos, Baudelaire e Buchon inclusive; perto dele está sentado Champfleury e aos pés do seu defensor se encontra a criança que desenha um anão.114 Uma segunda criança admira extasiada o quadro de Courbet. Do outro lado, sobre o chão, ele colocou um chapéu emplumado de bandido, uma adaga e uma gui­ tarra, ou seja, a parafernália rejeitada da arte romântica.115 Ao pintar a criança nesta ocupação aos pés de Champfleury, estudante da arte popular, Courbet, na minha opi­ nião, ratifica a defesa que Champfleury faz da sua obra e sua concepção da náiveté co­ mo base de toda a criatividade. Talvez isto restrinja muito a intenção de Courbet, mas existe aqui, indubitavelmente, uma metáfora da conhecida originalidade e náiveté do pintor.116 5 O interesse de Champfleury pela arte da criança, do camponês e do sel­ vagem remonta aos primeiros anos passados em Paris, antes de conhecer Courbet. Em Chien-Caillou, escrita em 1845 sobre o gravador Rodolphe Bresdin, ele narra como o herói, tendo fugido de um pai brutal, uniu-se a um grupo de estudantes de pintura. “Ele só tinha 10 anos; desenhava de uma maneira tão náive que eles descartaram todos os seus trabalhos feitos no estúdio ... ele pensou em fazer gravuras, mas estas se asseme­ lhavam aos desenhos; havia algo do germânico primitivo, gótico, n á if e religioso que


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fez o estúdio inteiro rir ... era um artista como Albert Dürer com sua naivete. 117 Também nos seus textos Champfleury tentou ser naif, esforços constan­ tes para cultivar esta qualidade estão registrados nas cartas que escrevia a sua mãe. “Eu atingi a náiveté, que é tudo nas artes”, ele conta em 1849-118 Tomou a leitura de Diderot como um modelo de prosa simples e direta.119 Admirava o vigor singelo das can­ ções populares e as achava m uito semelhantes à vida. A arte mais simples e nàive era também a mais verdadeira; na opinião de um camponês, uma canção não é bonita, e sim verdadeira.120 Portanto, Champfleury podia acreditar que realismo e naiveté, lon­ ge de serem antagônicos, complementam-se e se fundem num único conceito de since­ ridade. 121 Ainda assim, ao apreciar as estampas e canções populares, Champfleury parece contradizer sua noção de que o realismo é a arte indispensável da modernidade. Em seu livro sobre imagens populares (1869), nos capítulos sobre arte do futuro, ele recomenda duas coisas opostas: a preservação das imagens populares como instrumento didático conservador, sendo a conciliação o “objetivo suprem o” da arte, e a ulterior ex­ pansão do realismo através de extensos murais da indústria moderna em estações ferro­ viárias e edifícios públicos.122 Por um lado, realismo é a lírica do progresso moderno; por outro, a arte primitiva e os sentimentos da classe camponesa são os condutores da sabedoria eterna. Portanto, o movimento, criticado pelo seu positivismo e materialismo, também incentivou o gosto pelas artes primitivas, as quais, mais tarde, encarna­ riam o repúdio ao realismo e à idéia de progresso. E verdade que alguns críticos encaravam o realismo, em seu aspecto posi­ tivista, como o fruto da mentalidade camponesa, considerando o camponês cético e des­ locado no tempo e no espaço. “O amor exclusivo pela exatidão é a base do caráter dos camponeses, agiotas e burgueses liberais — realistas na mais pura acepção da palavra, que sempre fazem uma conta exata.” 12^ Mas a arte camponesa quase nunca é realista neste sentido, e a noção de que o realismo deriva de um a m entalidade camponesa des­ preza seu conteúdo preciso e a complexidade de suas formas. Os pintores e autores rea­ listas tiveram sua arte influenciada por sua origem, camponesa ou de classe média bai­ xa, mas isso só em Paris, lugar onde -estes escritores e artistas se depararam com uma cultura e um conhecimento da vida social mais desenvolvidos. A descrição detalhada dos costumes contemporâneos, um dos critérios de sinceridade na prosa moderna na opinião de Champfleury, era inconcebível na literatura popular. Courbet e Champfleury, embora interessados pela arte popular, nunca imitaram seus estilos mais simples e sem sombras. As tendências aparentemente retrógradas das composições mais estáticas de Courbet estão estreitamente relacionadas com concepções não primitivas de uma nova unidade colorista, tonal e material da pintura e preparam o caminho para o Impressionismo. Champfleury pressentiu isto ao comparar os agrupam entos mais livres de Cour­ bet, seu horror de composição , com a obra de Velasquez. Mantinha a mesma opinião ao afirmar que o romance, relativamente sem formas mas realista e aberto a uma gama ilimitada de experiência, era a verdadeira arte moderna, contrária à poesia criada artifi­


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cialmente e à perspectiva limitada dos românticos. A suposta contradição existente no projeto duplo de arte folclórica e mu­ rais da indústria pensado por Champfleury resulta, na minha opinião, do caráter instá­ vel e problemático dos movimentos sociais, que desenvolveram o realismo e termina­ ram na ditadura do Segundo Império. No início, foi a arte realista do círculo social de Champfleury que revelou a vida das classes mais baixas; sua conscientização e importância crescentes fortaleceram esta arte como progressista e necessária. Já que estas classes ameaçavam a ordem vigen­ te, solidarizar-se com elas na arte implicava um interesse radical. Numa época em que a observação crítica da vida social significava um poder revolucionário, os ideais de exa­ tidão e realismo na pintura ou na literatura eram politicamente suspeitos. A simples representação das classes baixas na escala gigantesca das figuras antigas da história era uma atitude agressiva, uma substituição da classe dominante pelos seus principais ini­ migos.124 Em 1850, a diferença na própria escala era suficiente para distinguir Cour­ bet dos pintores contemporâneos do estilo camponês. Sua grande assinatura125 e a di­ mensão e vigor de suas pinturas eram uma provocação irritante para seus críticos conser­ vadores. Mas este primeiro aspecto radical do movimento realista teve curta dura­ ção. Ao analisar a arte popular em 1850 e mesmo durante o ano de 1848, Champfleury já estava influenciado pela reação política e pela ânsia de paz. Em poucos anos, o povo, aquela massa vaga e indiferenciada na qual os líderes radicais da década de 40 haviam depositado suas esperanças de emancipação da sociedade, tinha mudado sua aparência e cor. Os acontecimentos de 1848 a 1851 evidenciaram as diferenças profundas de inte­ resse das pessoas, a estratificação dos camponeses e pequenos proprietários, dos operá­ rios das fábricas e dos artesãos, o primeiro grupo ligado à terra, conservador, em geral religioso; os outros, sem patrimônio, unidos no trabalho e mais aptos a resistir e lutar. Se a iminência do socialismo foi aniquilada pelos acontecimentos destes quatro anos, pela primeira vez a classe operária emergiu como uma força revolucionária, preocupada com seus interesses. A derrota dos operários parisienses em junho de 1848 e a institui­ ção da ditadura de Napoleão em 1851 estearam-se, em parte, no apoio dado às classes superiores pela massa camponesa, assustada com o fantasma da revolução.126 Champ­ fleury, cuja arte abrangia tanto a Paris boêmia quanto a vida pequeno-burguesa de sua província natal, nunca foi muito constante nos seus pontos de vista políticos e mudava de acordo com os acontecimentos. Antes de 1848 ele atacara os Fòurieristas e socialistas, criticando toda arte engajada ou tendenciosa.127 Em fevereiro de 1848 editou com Baudelaire o jornal republicano Salut Public, com duas edições apenas, usando slogans ra­ dicais e religiosos.128 Nesta época, era admirador de Proudhon.120 Em junho do mes­ mo ano se tornou co-editor do Le Bonhomme Richard, Journal de Franklin, com Wallon, que apoiava uma nova Sagrada Aliança entre Alemanha, Rússia e França.130 Al­ guns meses depois, em agosto, era colaborador do REvénement, o jornal moderado de Vitor Hugo.131 Escreveu então para sua mãe sobre as vantagens literárias desta união


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e sua indiferença à política. 132 Em fevereiro de 1849, embora afastado da política, declarou-se anti-burguês e “vermelho, ao invés de reacionário ;133 a burguesia, dizia ele, ainda domina na República, mas não por m uito tempo. Em dezembro de 1849 foi convidado a colaborar com o jornal socialista de Proudhon, L& Voix du Peuple, onde publicou a história “Les Oies de Noél”.134 Ainda se considerava completamente apolítico, porém escreveu nesta ocasião: “Nous autres travaillons pour le peuple, et nous nous dévons à cette grande cause”. 135 Todavia, o golpe de estado de dezembro de 1851 preocupou-o, por causa da censura e de sua colaboração anterior com jornais republica­ nos. 136 Visando proteger-se, abandonou provisoriamente a literatura c se dedicou à pes­ quisa histórica sobre arte e poesia folclóricas.137 Porém, em lugar de rejeitar seus conceitos sobre arte formulados sob o impacto de 1848, mudou-lhes o conteúdo e tom. Sentia-se ainda ligado à realidade e ao “povo”, mas este era agora considerado o elemento imutável da nação e sua arte refletia uma grande lição de resignação à vida e conciliação com interesses opostos.138 As tarefas intermináveis dos camponeses eram apontadas como uma boa alternativa às inconstâncias e revoluções da sociedade urbana. Já em 1848, em companhia de Wallon, planejara uma série de artigos sobre“todosos poetas que decantaram a família”, 139 e neste mesmo ano concebeu a obra sobre imagens e lendas populares com o objetivo de acalmar o povo num período de revolta e ensiná-lo a lição da reconciliação, relem­ brando a característica tradicional do povo de aceitar seu destino.140 Ao manifestar-se contra a violência das barricadas, assemelha-se um pouco ao Joseph Prudhomme de seu amigo Monnier, que em 1848 se retira para sua propriedade rural e fala aos jardineiros: “Bons villageois! hommes primitifs qui avez gardé, malgré les revolutions, le respect des supériorités sociales, c’est parmi vous que je veux couler mes j ours”.141 A desilusão de Baudelaire, que passara pela mesma experiência da repú­ blica, transformou-se não apenas no repúdio total à política, mas também num asco profundo pela sociedade,142 desde a burguesia até o povo, e numa crítica violenta à idéia de progresso. O progresso material, dizia ele, nada acrescenta às riquezas intelectuais e espirituais da sociedade; pelo contrário, a era industrial atual espelha um período de decadência cultural.143 A crítica de Champfleury foi menos ácida e drástica, pois ele se sentia menos prejudicado que Baudelaire e podia satisfazer suas pequenas ambições no aconchego de sua biblioteca. Quaisquer que fossem as implicações de sua doutrina, tratando de temas da classe inferior num estilo direto e impessoal, desde o início sua obra realista se referia principalmente a trivialidades divertidas ou sentimentais da vida provinciana; o espetáculo vasto e desconcertante da sociedade moderna, as lutas e o pro­ cesso de auto-consciência ou consciência social de indivíduos sensíveis passavam ao lar­ go de sua arte. Nos seus livros sobre arte popular se identificava com o aldeão resignado e tranqüilo, sábio por tradição, sempre sincero e bem-humorado, sem fantasias rom ân­ ticas — personagens simbólicas como o Bonhom m e Misère e o Judeu Errante, arautos das verdades eternas e absolutas. No final de Bonhom m e Misère — “enquanto o m un­ do existir exitirá a miséria” — e no contentamento do camponês com sua pequena ca­


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bana, Champfleury descobre um a lição profunda para a humanidade.144 Ele termina sua pesquisa sobre imagens populares com um relato do Triumph ofD eath, de Rethel, 1849, no qual mostra ao povo a inutilidade da revolta.145 O estudo de história, que na França do começo do século XIX inspirava-se em grandes lutas sociais e na experiên­ cia de mudança como um a lei do presente — o próprio presente sendo considerado um momento histórico crucial — Champfleury converteu num estudo sobre a persis­ tência dos níveis baixos de cultura, das artes atemporais e das idéias do povo.146 Ao fa­ zer essa transformação, assemelha-se ao seu contemporâneo Heinrich Riehl, o historia­ dor alemão da cultura popular que executou nos anos 50 uma pesquisa literária e social das pessoas comuns, em especial da classe camponesa.147 Seus estudos também decor­ reram das revoltas de 1848; mas enquanto Champfleury fora por um tempo republicamo e nunca perdera um certo respeito convencional pelo ideal de liberdade, Riehl des­ cobriu nos acontecimentos de 1848 a confirmação de seu conservadorismo inato e se lançou à tarefa de ensinar à nação alemã que sua verdadeira força estava nas massas cam­ ponesas conservadoras. Ao propor dois tipos de arte, um a tradicional, popular, conservadora e didática, a outra urbana e mais realista, que reproduzia o ponto de vista do progresso moderno, Champfleury satisfazia perfeitamente, usando a linguagem de um conselhei­ ro oficial, as exigências do regime de Napoleão III, por quem havia sido condecora­ do.148 Este regime assentava-se no apoio dos camponeses e na extraordinária expansão econômica e prosperidade da França entre 1850 e 1870. A prosperidade assegurou o triunfo final do realismo, não no seu aspecto plebeu ou rebelde, mas como uma ten­ dência estética pessoal voltada para a representação das experiências particulares e tri­ viais que culminou no Impressionismo. A expansão econômica determinou o gosto pe­ las artes da classe camponesa estática e das culturas primitivas, que durante as crises e o pessimismo social do final do século puderam substituir o realismo como modelos de um estilo pessoal. A m udança em Champfleury afetou seu relacionamento com Courbet. Enquanto o escritor se tornava mais conservador, o pintor se tornava mais radical, em­ bora sua arte nos anos 60 tivesse menos significado político que no começo dos anos 50, quando a memória da República e sua extinção ainda estava vivida. Mas devemos observar que, ao se conhecerem, Courbet era politicamente instável como Champfleury. Provavelmente já haviam-se encontrado em fevereiro de 1848, quando Courbet dese­ nhou sua vinheta — um a cena de barricada — para o jornal de Champfleury e Baude­ laire.149 Nos seus últimos escritos, embora sempre mencione o pintor, Champfleury nunca comenta sobre o Salut Public ou este trabalho de Courbet e aponta como pri­ meiro contato entre eles a sua “descoberta” de Courbet no Salão da primavera de 1848.150 Em um artigo sobre a exposição, ele escolhera, para abordar, uma pintura da Wálpurgis N ight (inspirada em Goethe) sobre a qual Courbet pintou seu Wrestlers, 151 posteriormente. Eram ambos românticos naquela época, e a barricada desenhada por Courbet não representava uma maior convicção política que o fato de Champfleury editar


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o Salut Public. O pintor escreveu para casa naquela mesma primavera e durante as lutas de junho opondo-se à rebelião e defendendo o método da inteligência.152 Em 1851, Courbet parecia ter-se tornado um republicano convicto.155 Quando, em 1850-1851, cie exibiu suas novas e mais vigorosas pinturas (Stone-Crushers, R etum firom the Fair e Burialat Omans), foi Champfleury quem fez sua defesa escrita e justificou seu novo realis­ mo no terreno social e artístico. Por muitos anos seus nomes estiveram ligados como os principais protagonistas do realismo, apesar da grande diferença de qualidade entre suas obras; e é indiscutível que a possibilidade de defender Courbet ajudou Cham p­ fleury a aperfeiçoar sua carreira de escritor. Durante alguns anos Courbet se correspon­ deu com ele, pintou seu retrato e o colocou em posição destacada na tela O Atelier. Champfleury, por sua vez, escreveu um romance, Les Demoiselles Tourangeau, sobre a família de Courbet, após um período de férias passado nos Juras em 1856.154 Por es­ ta época, começaram as divergências e suas relações se tornavam tensas. Champfleury, agora aceito pela conservadora Revue dei Deux Mondes,155 constrangia-se e exasperavase com a personalidade de Courbet, sua enorme e ingênua vaidade, suas ligações políti­ cas e militância, que o público confundia com o realismo como doutrina estética. Em 1855, escrevendo sobre Courbet, Champfleury citou Proudhon aprovadoramente três vezes no mesmo artigo.156 Entretanto, na abertura do Pavilhão do Realismo particular de Courbet, achou Proudhon cansativo e ridículo. >5? Também não gostou do modo co­ mo foi representado no Atelier; embora ao criticar a obra o fizesse apenas do ponto de vista moral.158 Ele próprio havia aborrecido Courbet ao caricaturar seu benfeitor Gruyas num romance.15? Em meados de 1860, Champfleury já estava completamente avesso ao trabalho de Courbet, mas continuou a publicar artigos sobre o velho amigo.160 Este campeão da “sinceridade na arte” classificou de “medonhas, medonhas” as Meninas à Beira do Sena161 e escreveu a Buchon, um amigo comum, que Courbet estava acaba­ do como artista;162 não lhe reconhecia nenhum talento além de competência mecâni­ ca para pintar. Em 1867 Champfleury aceitou do imperador, que havia exilado Buchon e era desprezado pelos escritores e artistas de seu antigo grupo, a fita da Legião de Hon­ ra; em 1870, Courbet rejeitou esta mesma condecoração com enorme publicidade. Em um ano o pintor entrou para a comuna e sofreu pela destruição da coluna de Vendôme, a ele maliciosamente atribuída. Champfleury nada disse ou fez em favor de seu antigo amigo. E quando, após a morte de Courbet, planejaram a publicação de sua correspon­ dência, Champfleury se recusou a cooperar e até destruiu algumas cartas que pudes­ sem, no futuro, macular suas relações com Courbet.163 Se no campo da política Champfleury e Courbet estavam cada vez mais distanciados, como artistas tomaram o mesmo rumo, possuidores da mesma original concepção agressiva do realismo, com algo das preocupações sociais da segunda Repú­ blica, em busca de uma visão mais pessoal e “esteticizada”. Nos anos 60 Courbet en­ saiou a pintura “socialista”,165 mas não passou de uma tentativa sem substância ou pos­ sibilidade de êxito. São marinhas deste período que representam seu verdadeiro im pul­ so artístico; e Champfleury, afastado do realismo como um movimento, aplaudiu-as co­


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mo frutos de isolamento e introspecção, e como a visão “de algo espiritual além da Rea­ lidade, que se destaca do coração humano criando élans cuja observação apenas não basta para descrever”.166 Mas este realista, antes inimigo do didatismo na arte167, ago­ ra recomendava ao estado as imagens populares, com seus ensinamentos conservadores, como o instrumento de harmonia social mais confiável. Existe já no importante Entenem ent de Courbet um traço da atitude dú­ bia de Champfleury frente aos acontecimentos de 1848 e 1849. Durante o período de violência revolucionária e importante mudança política, Courbet reúne a comunidade em torno do túmulo. Ele dizia que “a única história possível é a história contemporâ­ nea”,168 mas neste caso a história do homem é como a história natural e assume um caráter atemporal e anônimo, exceto quanto aos costumes, que mostram a sucessão his­ tórica de gerações. O ritual do funeral substitui o momento, a causa e o efeito da morte individual. A comunidade reunida no túmulo absorve o indivíduo. Esta concepção antiromântica também implica um espírito de reconciliação tranqüilo e submisso, que Champfleury considerou “o efeito supremo da arte”, parcialmente concebido na Dance ofD eath, de Rethel, uma obra que consagra a morte como a única vitoriosa das barrica­ das. Deste modo, a consciência da comunidade, despertada pela revolução de 1848, apa­ rece pela primeira vez em uma pintura monumental, em toda a sua riqueza de alusão, já retrospectiva e inativamente. 1. Foram recolhidas por Charles Léger, Courbet selon les caricatures et les images. Paris, 1920. Ver especialmente pp. 13, 15, 19, 20, 34, 74, 79 e 85. Duas fo­ ram também reproduzidas por John Grand-Carteret, Les Moeurs et la Caricature en France, Paris, n.d. pp. 550, 551. 2. Léger, op. cit. p. 20, de Journal pour Rire. 3. As opiniões foram compiladas por Ryat, Gustave Courbet, Paris 1906, pp. 86, 87; Léger, op. cit. pp. 34, 37; Estignard, Gustave Courbet, 1987, pp. 27-30. O crítico da Revue des Deux Mondes, Louis Geoffroy, escreveu em 1? de março de 1851: “Evidemment M. Courbet est un homme qui se figure avoir tenté une grande rénovation, et ne s’aperçoit point qu’il ramène l’art tout simplement à son point de départ, à la grossière industrie des maítres imagiers”. Na crítica do realismo na Revue des Deux Mondes, ver a tese de Thaddeus E. Du Vai Jr., “The Subject of Realism in the Revue des Deux Mondes” (1831-1865), Filadélfia, 1936; e para a crítica do realismo em geral neste período, a tese de Bernard Winberg, French Realism: The Criticai Reaction, 1830-1870, The University of Chicago Libraries, Modern Language, Association of America, 1937. 4. Léger, op. cit. p. 34. “Peinture d’Auvergnat” é uma expressão cunhada por Victor Fournel, que alguns anos mais tarde escreveu favoravelmente sobre espe­ táculos populares e sobre canções e cantores de rua de Paris: Ce quon voit dans les rues de Paris, Paris, 1858; Les spectaclespopulaires et les artistes des rues, Pa­ ris, 1863. Cf. também o poema de Banville (1852): “...Je suis un réaliste, Et contre 1’ideal j ’ai dressé ma baliste. J ’ai créé l’art bonhomme, enfantin et naif.” Citado por P. Martino, Le roman réaliste sous le SecondEmpire, Paris, 1913, p. 76.


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5. Especialmente Ingres; ver L. Rosenthal, Lapeinture romantique, Paris, 1900, p. 82. 6. Isto foi registrado por Philibert Audebrand, DemiersJours de laBohème, Pa­ ris, n.d., p. 110, porém mais de cinqüenta anos após a ocasião. 7. No ensaio “On the French School of Painting”, 1840. No mesmo trabalho ele critica o primitivismo da nova escola católica na França pelas suas formas arcaicas e as compara com canas do baralho inglês. 8. Théophile Silvestre, Histoire des Artistes Vivants, Études d'aprés nature, Pa­ ris, 1856, p. 269: “Le geste lui manque, ses scènes sont inerts” (em Courbet), e “Ingres est mort. Cette immobilité fait la honte de l’art”. 9. Baudelaire reconheceu isso quando observou em seu estudo de Guys: “Todos os pintores que possuem uma visão sintética e simplificada foram acusados de barbarismo, e um exemplo disso é Corot, que começa traçando as linhas princi­ pais de uma paisagem, sua estrutura e aspecto”. Lepeintre de la Vie Modeme, in Baudelaire, Oeuvres, Paris, N.R.F., 1938, II, p. 338 (todas as citações de Bau­ delaire são tiradas desta edição). 10. Léger, op. cit., p. 20. A pintura é mostrada num circo atrás do homem forte e do flautista. A legenda diz: “Qui est-ce qui demandait donc à quoi pouvait servir la peinture de M. Courbet?” No seu jornal, em 15 de abril de 1853, Delacroix comenta que o Wrestlers carece de ação. É interessante notar que foi pinta­ do sobre uma pintura romântica da Walpurgis Night que Courbet exibiu no Sa­ lão de 1848. 11. Tirado de um artigo no Messager de lAssemblé, 1851, reeditado nas Grandes Figures d'hier et daujourd'hui, de Champfleury, Paris, 1861, p. 244. Paralela­ mente, a naiveté era também descoberta em David. Ver Delécluze, David, son école et son temps, Paris, 1855, p. 176, que fala sobre Tennis Court Oath, Lepelletier, Marat e Dead Barra como volta à naiveté. Ver também Jules Renouvier, • Histoire de 1'art pendant la Révolution, Paris, 1863, p. 77. 12. Como ilustração contemporânea da rue Git-le-Coeur, ver Duchartre e Saulnier, Limageriepopulaire, Paris, 1925, p. 108 — “Lhorrible assassinar ... par un mari jaloux” (Pl. 38b). 13. Ver p. 64 e nota 9 acima. 14. Ver seu jornal de 15 de abril de 1853 e 3 de agosto de 1855. 15. Ils nont pas le charme voilé des oeuvres poétiques de Corot; mais ils ont la qualité suprême de 1horreur de la composition”, Champfleury, Souvenirs et Portraits de Jeunesse, Paris, 1872, p. 173, citado a partir de sua crítica sobre o trabalho de Courbet no Salão de 1849. Champfleury atribui as mesmas qualida­ des a Le Nains na sua monografia de 1862. 16. Ver Th. Duret, Courbet, Paris, 1918, Pl. XXXII. 17. A mesma idéia se encontra em Victor Fournel, Ce qu'on voit dans les rues de Paris, Paris, 1858, pp. 384 ss. e especialmente p. 390 no medo que os pequenoburgueses têm das sombras como marcas no rosto (Laportraituromanie, considérations sur le Daguerréotype).


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18. Carvão sobre papel azulado. Está reproduzido c descrito por Léger, Gustave Courbet, Paris, 1929, p. 47, e Riat, op cit., p. 79. 19. Reproduzí o que se encontra na Bibliothèque Ste. Geneviève em Paris. E des­ crito por Duchartre e Saulnier, op. cit., p. 141, que dizem ser um exemplo único de um estilo muito especial. Sobre a importância de Montbéliard na produção de imagens no início do século XIX, ver o mesmo livro, pp. 138 ss. 20. Sobre este tema, ibid., p. 11, 70, 103; foi introduzido em xilografías entre 1800 e 1814. Sobre tradição mais antiga, ver R. Van Marle, Liconographie de l'art profane, II, AJlégories et Symboles, 1932, pp. 156 ss., e A. Englert, Zeitschrift des Vereins fúr Volkskunde, XV, XVII. 21. Minha ilustração foi tirada de um artigo do Dr. Hoppen, “The Decades of Human Life”, in Clinicai Excerpts, Nova York, X, 1936, n? 7, p. 5. 22. Foi impresso por Vion, 27, Rue St. Jacques, Paris. A Rue St. Jacques, desde o século XVII, era um dos principais centros produtores de imagens populares na França, as gravuras em cobre da Rue St. Jacques deram origem a muitas xilo­ grafías populares, e uma classe especial de “imagerie de la rue St. Jacques” é destacada por Duchartre e Saulnier (op. cit., pp. 29, 33, 87 ss.) No segundo terço do século XIX foi o centro de imagens litográficas “semi-populares”. 23. Sobre esta combinação de imagem e lamento, ver Duchartre e Saulnier, op. cit. p. 58, e ilustrações passim. 24. Les Excentriques, Paris, 1856. 25. A litografia foi feita baseando-se numa pintura de Courbet que pertencia a Jean-Paul Mazaroz, um compatriota de Lons-le-Saulnier nos Juras. E interes­ sante que Paul-Mazaroz, colecionador e amigo de Courbet, conhecido por seus meubles d ’art e suas idéias radicais, era filho de um encadernador que fazia ima­ gens populares em Lons-le-Saulnier, no início do século XIX. Sobre a obra do pai, ver Duchartre e Saulnier, op. cit., pp. 142, 143. 26. La Mort deJeannot — Lesfirais du culte, avec quatre dessins de Gustave Cour­ bet, Exposition de Gand de 1868, Bruxelas, 1868. 27. Les Curés en Goguette avec six dessins de Gustave Courbet. Exposition de Gand de 1868. Bruxelas 1868. Retum from the Confierence está reproduzida no frontispício. 28. Etienne Baudry, Le Camp des Bourgeois, Paris, 1868. Ver descrição do livro e a história da colaboração de Courbet em Théodore Duret, Gustave Courbet, Paris, 1918, pp. 140, 141. 29. Les chansons populaires des provinces de France, notice par Champfleury, accompagnées de piano par JrB. Wekerlin, Paris, 1860. Courbet também ilus­ trou a obra de Alfred Delvaus, Hitoires anedoctiques des cafés et cabarets de Pa­ ris, Paris, 1862. Os três últimos livros foram publicados por Dentu, que na déca­ da de 60 editou uma série de trabalhos sobre temas populares, incluindo os de Champfleury sobre caricatura e imagens populares. As ilustrações de Courbet fo­ ram catalogadas por Duret, op cit., pp. 138-141. 30. Ver Duchartre e Saulnier, op. cit., p. 68, uma reprodução da região de Lille.


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O Semeur é quase idêntico à concepção de Millet. 31. De Bonhommé nos Salões de 1838 e 1840. Chassériau já havia representado o moinho Le Creusot em 1836. Ver L. Rosenthal, Du romantisme au réalisme, Paris, 1914, p. 389, e Bénédite, Chassériau, 1931, p. 41. 32. Cf., para exemplo, Le Rémouleur de Decamps no Louvre. Nos anos 40, no início do realismo na pintura, é comum encontrarmos temas abordando o traba­ lho. Os irmãos Leleux representaram especialmente os trabalhadores das estradas e os lenhadores (Rosenthal, op. cit., pp. 383, 384). Um dado significativo nesta tendência a uma escolha realista de temas é a freqüência do ladrão de caçat (Le Braconnier) e do contrabandista (Le Contrebandier) na pintura dos anos 40; o la­ drão de caça é uma figura anti-autoritária. Cf. a anedota contada por Jules Janin em L’Éte à Paris, 1843, p. 29: um ladrão de caça, ao ser detido por um guarda nas florestas reais, retruca: “Le roi, c’est le peuple; or, je suis du peuplc, donc je suis le roi”. 33. O principal teórico do “droit au travail”, Victor Considérant, autor de Théorie du droit au travail et théorie du droit de propriétê, 1839, era compatriota de Courbet, tendo nascido em Salins. 34. Emile de la Bédollière, Les industrieis métiers et professions en France, avec cent déssins par Henri Monnier, Paris, 1842. 35. O Rémouler; p. 206, lembra as pinturas de Decamps e Courbet. 36. “Cet ouvrage a pour objet de peindre les moeurs populaires, de mettre la classe aisée cn rapport avec la classe pauvre, d’initier le public à 1’existence d’artisans trop méprisés et trop inconnus.” 37. O original destruído foi reproduzido por C. Lemonnier, Courbet et son oeuvre, Paris, 1878, e por Léger, Gustave Courbet, Paris, 1929, p. 97. 38. Cf. P. Sébillot, Le Folk-lore de France, IV, 1907, p. 231 — 'O bom cura” pa­ rece desconhecido na paremiologia francesa. Nas coletâneas gerais de provérbios e naquelas de regiões famosas por sua religiosidade, procurei em vão por provér­ bios que enaltecessem os sacerdotes, sendo que os provérbios que os criticam exis­ tem às dúzias. Um questionário especial confirma esta conclusão; nenhum dos meus correspondentes conseguiu lembrar-se de um provérbio que não fosse satí­ rico. Embora o mesmo se aplique à nobreza (que nunca foi popular), causa me­ nos surpresa que em relação ao clero secular; os sacerdotes do campo que são amados por seus paroquianos, e merecem isso, não são raros”. 39. Sobre Chenavard, ver T. Gautier, Lart modeme, Paris, 1586, e Silvestre, op. cit., pp. 105-145. 40. P. J. Proudhon, Du príncipe de l ’art e de sa destination sociale, Paris, 1875, capítulos XVII, XVIII, e p. 280. 41. Cf. a carta para Bruyas, 1854, narrando sua conversa com o Diretor de BelasArtes, a quem disse que moi seul, de tous les artistes français mes contemporains, avais la puissance de rendre et ma personnalité et ma Société — P. Borel, Le roman de Gustave Courbet daprès une correspondance originale du grand peintre. Paris, 1922, pp. 68, 69.


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42. Légcr, Courbet, 1929, p. 57; a legenda diz “grands admirateurs des tableaux de M. Courbet”. 43. Champfleury, Souvenirs, Paris, 1872, p. 174. 44. Ibid, pp. 174, 175; Riat, op. cit., p. 76. 45. Léger, ‘‘Documents inédits sur Gustave Courbet”, Lamour de l'art, XII, 1931, p. 385 ss. 46. Ele o descreve em canas para Bruyas (Borel, op cit., p. 56, 57) e Champfleury (catálogo da exposição, LAtelier du Peintre, Galerie Barbazanges, Paris, n.d. 1919). 47. Champfleury, Souvenirs, p. 185 ss., e Audebrande, Demiers Jours de la Bohème, pp. 77-212: La Brasserie de la Rue des Manyrs. 48. Légcr, Courbet selon les caricatures, p. 37; ver também Léger, Courbet, 1929, p. 27. 49. Borel, op. cit., Pl. p. 96. 50. Sobre o primitivismo dos românticos, ver N. H. Clement, Romanticism in France, Nova York, 1939, capítulo X, pp. 462-47951. Cf. a versão primeira de LEducation Sentimentale. c. 1843-1845, quando fala sobre seu herói, Jules (o jovem Flauben, aparentemente): “En somme, il fit bon marche de tous les fragments de chants populaires, traduetions de poèmes étrangers, hymnes de barbares, odes de cannibales, chansonnettes d’Esquimaux, et autres fatras inédits dont on nous assomme depuis vingts ans. Petit à petit même, il se défít de ces prédilections niaises que nous avons malgré nous por des oeuvres médiocres, gouts dépravés que nous viennent de bonne heure et dont l’esthétique n’a pas encore découvert la cause”. 52. Sobre Bouchon (1818-1869) e seus escritos, ver Emile Fourquet, Les Hommes célebres de Franche-Comté, 1929; sobre sua participação no movimento realista, ver a obra excelente de Emile Bouvier, La Bataille Réaliste (1844-1857), Paris, 1913, p. 183 ss. 53. As litografias são reproduzidas por Léger, Courbet, 1929, p. 25. 54. Ibid, p. 18 (no museu de Vevey); há um segundo retrato no museu de Salins. 55. Gautier, Histoire du Romantisme, Lesprogrès de la poésie française depuis 1830, Paris, 1872. 56. Max Buchon, Recueil de dissertations sur le réalisme, Neuchâtel, 1856; é ci­ tado por Légcr, Courbet, 1929, pp. 65-67. 57. Sobre Dupont (1821-1870), ver Bouvier, op cit., p. 165 ss. Um poeta de inte­ resses muito semelhantes aos de Dupont e Courbet foi Gustave Mathieu (Bouvicr, p. 173 ss.); seu retrato feito por Courbet, ver Léger, op cit., p. 144. 58. Seu retrato feito por Courbet está no museu de Karlsruhe, Léger, op. cit., Pe. 51. 59. Seus poemas estão publicados em Muse Populaire, Chants et Poésies, do qual utilizei a sexta edição. Paris, 1861.


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60. Bouvier, op. cit., p. 171. 61. Ver seu Muse Populaire, pp. 286 ss. En ces calamités publiques, Toujours les premiers à courir, Nos pompiers, soldats pacifiques, Savent aussi vaincre et mourir. e o refrão: Au feu! au feu! Lincendie éclate, La flamme écarlatc Rougit le ciei bleu. Au feu! Ver reprodução da pintura de Courbet no Petit Palais in Charles Léger, Gustave Courbet (Collection des Maitres), Paris, 1934, fig. 24. 62. Interessante também sobre Courbet são Chant de la Mer, Muse Populaire, p. 45, e Le Cuirassier de Waterloo (ibid., p. 226, sobre pintura feita por Géricault — “Géricault, ta male peinture...”). 63. Cf. declaração de Courbet ao Ministro de Belas-Artes em 1854, relembrada em sua carta para Bruyas: “Je repondis immédiatement que je ne comprendis absolument rien à tout ce qu’il venait de me dire, d’abord parce que il maffirmait qu’il était un gouvernement et que je nc me sentais nuliement compris dans ce gouvernement, que moi aussi j etais un gouvernement et que je défiais le sien de faire quoi que ce soit pour le mien que je puisse accepter”. (Borel, op. cit., pp. 67, 68). 64. E o refrão de Les Deux Compagnons du Devoir, Muse Populaire, p. 233 ss. 65. Em sua Histoire du Romantisme. 66. Ver seu prefácio para Chants et Chansons de Dupont, 1851, reeditado em seu L'Art romantique, Oeuvres, II, pp. 403-413, e um segundo ensaio em 1861, ibid., pp. 551-557. 67. Oeuvres, II, p. 412. 68. Op. cit., pp. 248, 249. 69. Riat, op. cit., p. 53 (carta de 17 de abril de 1848). 70. Nome artístico de Jules Fleury (1821-1889). Sobre sua vida, trabalhos e parti­ cipação no movimento realista, ver Bouvier , op. cit., P. Martino, Le roman réaliste sous le Second Empire, Paris, 1913; J. Tiroubat, Une amitié à la dArthez, Champfleury, Courbet, Max Buchon, Paris 1900 (não acessível a mim); a edição, do mesmo autor, das cartas de Champfleury, Sainte-Beuve et Champfleury, Paris, 1908. 71. Citado por L. Rosenthal, Du Romantisme au Réalisme, Paris, 1914 pp. 383-386. 72. Em sua obra Souvenirs, 1872, p. 185, Champfleury atribui a Courbet o iní­ cio do movimento realista em 1848. Sua dependência de Courbet, Dupont e Bu­ chon é evidenciada por Bouvier, pp. 165-256, especialmente pp. 244, 245 sobre Courbet. Ele já conhecia Buchon e Dupont em 1847, antes de conhecer Cour-


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bet; começou seus estudos de literatura e arte popular em torno de 1848 ou 1849 (ver sua Histoire de l imagerie populaire, Paris, 1869, segunda edição, pp. xliv, xlv), e publicou um artigo sobre a legenda de Bonhomme Misère em 1850 (Bou­ vier, p. 180). Seu romance Les Bourgeois de Mohnchart, 1855, foi dedicado a Bu­ chon. Courbet também ajudou Champfleury em seus estudos sobre arte popu­ lar. Numa carta a Champfleury contando seu trabalho em Ornans em 1849 ou início de 1850, Courbet fala cm coletar “des chansons des paysans” para Champ­ fleury: “Je vous porterai les Bons Sabots de Besançon”, ele acrescenta. VeiLAmour de l'Art XII, 1931, p. 389. 73- Estão relatados nos prefácios de seu romance c coleção de contos (Contes Domestiques, Les Aventures de Mariette) e em Le Réalisme, 1857, c foram reunidos por Bouvier, pp. 311, 312. 74. Ver os artigos compilados em Le Réalisme, 1857, especialmente p. 3 ss. 75. As obras principais são: Histoire de la caricature, em 5 volumes (1865-1880): Histoire de 1'imagerie Populaire, 1869; Histoire des faiences patriotiques, 1867; Les vignettes romantiques, 1883; Les Frères Le Nain, 1862; Henry Monnier, Sa Vie, Son Oeuvre, 1879; J^es Chats, 1869; Bibliographie céramique, 1881. 76. A história do gosto pela poesia e canção popular foi esboçada por Champ­ fleury em De la poésie populaire en France, estr. n. d. (c. 1857), pp. 137-182. Uma exposição mais recente e completa pode ser encontrada em Romanticism in France, Nova York, 1939. 77. Ver a bibliografia das publicações recentes de 1844 a 1857 no artigo de Champ­ fleury, p. 137. 78. Em uma carta para Champfleury citada no mesmo artigo, p. 157; outras opi­ niões do mesmo teor da metade do século XIX estão citadas nas pp. 156-159. Em artigo de 1853, reeditado no Le Réalisme, 1857, pp. 186, 187, Champfleury também fala sobre a música popular francesa em relação com a música exótica (chinesa e dos índios americanos). Ele alerta sobre a estranha coincidência entre a originalidade da arte popular e os refinamentos mais recentes do gosto civiliza­ do: “Depuis deux ou trois ans des esprits distingués cherchent à introduire le quart de ton dans la musique modeme. La musique populaire est une mine d’intervalles harmoniques imprévus, sauvages ou raffinés, comme on voudra”. E tam­ bém nas melodias das canções populares que são “toutes en dehors des lois musicales connues; elles échappent à la notation car elles n’ont pas de mesure; une tonalité extravagante en apparence, raisonnable cependant, puisqu’elle est d'accord avec une poésie en dehors de toutes les règles de prosodie, ferait gémir les didactiques professeurs d’harmonie”. 79. Histoire des livres populaires, ou de la littérature du colportage depuis le XVe siècle jusqu a 1'établissement de la Commission d'examen des livres du col­ portage (30 de novembro de 1852), Paris, 1854. Também é importante Des Chan­ sons populaires chez les anciens et chez les Français; essai historique suivi d ’une étude sur la chanson des rues contemporaine, de Charles Nisard, Paris, 1867, 2 volumes. O volume 2 já havia sido publicado em grande pane como La Muse pariétaire et la Muse foraine. Paris, 1863. Nisard também publicou um livro so­ bre a linguagem de Paris: Étude sur la langue populaire ou patois de Paris, 1872.


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80. Charles Magnin, Histoire des Marionnettes en Europe, 2? ed., 1862. 81 Edmund Duranty, Théâtre des Marionnettes du Jardin des Tuilleries, Textes et compositions des dessins par M. Duranty, Paris, n. d. (1863). Está ilustrado por dois tipos de litografias coloridas, uma no estilo do início dos anos 60, com características rococós, outro reproduzindo o estilo naüf das marionetes e seus ambientes e ilustrações dos espetáculos. Sobre o julgamento de bonecas e brin­ quedos de crianças, ver o ensaio de Baudelaire, Morale dujoujou (1853), in Oeuvres, II, pp. 136-142. 82. Ver a introdução de suas Oeuvres, ed. A. Thibaudct e R. Dumesnil, Paris, N.R.F., 1936,1, pp. 42-45, e Edouard Maynial, LaJeunesse de Flaubert, p. 137 ss. 83. Oeuvres, N.R.F.: Paris, 1937, p. 45. 84. The Card Players, no Louvre. 85. Nouveaux Voyages en Zigzag, Paris, 1854, p. 38 (escrito antes de 1846). 86. Sa/on de 1846, Oeuvres, II, p. 90, e Salon de 1859, ib id .II, p. 255. 87. Salon de 1846, ibd'., II, p. 127, as mesmas idéias em Salon de 1859, ibd., II, p. 275. 88. No mesmo Salon, falando sobre Delacroix, diz que os escultores zombaram dos desenhos de Delacroix injustamente. São pessoas parciais e de visão estreita, cujo julgamento vale no máximo metade do julgamento de um arquiteto. “La sculpture, à qui la couleur est impossible et le mouvement difficile, ría rien à démêler avec un artiste que préoccupent surtout le mouvement, la couleur et 1’atmosphère. Ces trois éléments demandem nécessairement un contour un peu indécis, des lignes légères et flottantes, et 1’audace de la touche” (p. 79). 89. lbid. Winckelmann também achava que a escultura é a primeira arte c a mais primitiva, “pois uma criança também pode dar uma certa forma a uma massa macia, mas não pode desenhar sobre uma superfície; para a primeira, basta o simples conceito de coisa, mas para desenhar é preciso muito mais conhecimen­ to”. — Geschichte der Kunst des Altertums, Erster Tcil, Das erste Kapital. 90. Baudelaire não tem em mente aqui, como se poderia supor pelo trecho cita­ do na nota 88 acima, uma distinção entre o plástico e o pitoresco, o tátil c o visual, no sentido moderno, a fim de deduzir a inferioridade necessária da escul­ tura numa época de tendência impressionista. Ao contrário, ele declara que a escultura, embora brutal e positiva como a natureza, é ao mesmo tempo vaga e intangível, pois expõe muitas facetas de uma só vez” (Oeuvres, II, pp. 127, 128); carece de um ponto de vista único e está sujeita a acidentes de iluminação. O que ele condena acima de tudo na escultura é sua realidade artesã vulgar, aquele caráter industrial eficiente que na metade do século XIX conferiu ao ofício ma­ nual selvagem algum valor para o gosto vitoriano. Cf. Melville, Moby Dick, capí­ tulo LVII, a antiga clava de guerra ou um cabo de lança havaiano” que é “um troféu tão grande de perseverança humana quanto um dicionário de Latim”; cf. também o bonito cabo da Nova Zelândia”, que Owen Jones admira no primeiro capítulo de sua Grammar o f Omament (1856). É a habilidade, mais do que a fantasia do selvagem, que Baudelaire despreza.


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91. Le Salon Caricatural critique en vers et contre tous illustré de 60 caricatures desstnées sur bois. Première année. Paris, 1846. Reimpresso em fac-símile em Ch. Baudelaire, Oeuvres en Collaboration, com introdução e notas de Jules Mouquet, Paris, 1932, cf. pp. 9, 15, 17. 92. Histoire de 1'imageriepopulaire, 2? ed., 1869, p. xii. Na edição de 1886, ele troca “a maioria” (plupart) por “muitos” (bon nombre). 93. lbid., p. xxiii. 94. Livre 6éme, chap. xx, xxi, pp. 249-255 da edição parisiense de 1853. Está de­ monstrado que Champfleury conhecia os livros de Tõpffer na referência em seu Histoire de la caricature antique (n. d. — 1865?), p. 189, ao Essai de Physiognomonie, de Tõpffer, Genebra, 1845, a propósito dos estudos e reproduções de de­ senhos de crianças de Tõpffer, neste livro. Entretanto, equivoca-se Champfleury ao classificar o grafito antigo que ele reproduz na página oposta à 188 de dese­ nho de criança. 95. Reflexions et menus propos, pp. 254, 255. 96. lbid., capítulo xx. 97. Ver seus álbuns encantadores, verdadeiros precursores das tiras de quadrinhos c dos desenhos animados: Histoires de M. Jabot, Le Docteur Festus, Histoire d'Albert, Histoire de M. Cryptogame, todos reeditados em Paris. 98. Ver o prefácio de Sainte-Beuve para seu Nouveaux Voyages en Zigzag, Paris, 1854: “Notice sur Tõpffer considere comme paysagiste” (também em Causeries du Lundi, VIII). Sainte-Beuve fala do “caractère à la fois naí f et réfléchi de son originalité” e cita a máxima de Tõpffer “Tous les paysans ont du style” e seu interesse pela “langage campagnard e paysanesque”. 99. Ver p. 129-166, Du Beau dans l ’art. 100. lbid., pp. 130, 131. 101. Riat, op. cit., p. 88, Gautier fala sobre a “étrangeté caraibe du dessin e de la couleur”. 102. Seu primeiro artigo sobre a legenda de Bonhomme Misère foi publicado no LEvénement, 26 de outubro de 1850. 103. “Le génie nest que lenfance retrouvée à volonté” (Oeuvres, II, p. 331); e no Salon de 1846: “II est curieux de remarquer que, guidé par ce príncipe — que le sublime doit fuire les détails —; 1’art pour se perfectionner révient vers son enfance” (ibd.. II, p. 100). 104. lbid., II, p. 329. 105. Loc cit., 106. lb id . p. 331. 107. lbid., p. 338. 108. lbid., p. 331. — “un de mes amis me disait un jour quetant fort petit, il assistait à la toilette de son père, et quallors il contemplait, avec une stupeur mêlée de délices, les muscles des bras, les dégradations de couleurs de la peau


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nuancée dc rose et de jaune, et le réseau bleuâtre des veines”.^Sobre a criança como colorista em potencial, ver também suas observações em LOeuvre et la Vie de Delacroix, ibid. II, p. 305. Baudelaire aprovava com reservas os desenhos das crianças, pois reclamava que o desenho doit etre comme la nature, vivant e agité... la simplification dans le dessin est une monstruosité” (Oeuvres, II, p. 163), e protestava contra o gosto classicista por formas fixas, fechadas e simplificadas como sendo um preconceito dos bárbaros e dos camponeses (Oeuvres, 11, p. 305). Neste contexto, é interessante a aversão de Delacroix por crianças {ibid., p. 320). 109. A concepção de Baudelaire sobre as crianças serem observadoras eternas e curiosas reaparece como uma observação científica original uns quinze anos mais tarde no artigo de Taine, “Acquisition of Language by Children”, no primeiro número da Revue Pbilosopbique, janeiro de 1876; foi traduzido para o Inglês em Mind, II, 1877, e inspirou Darwin a publicar seu famoso artigo sobre o de­ senvolvimento da criança, no mesmo volume de Mind. Taine escreve sobre o mo­ do de expressão de uma garotinha: “sua flexibilidade é surpreendente; estou con­ vencido que todas as nuances de emoção, admiração, alegria, teimosia e tristeza se manifestam por entonações diferentes; nisto ela se assemelha e até supera um adulto”. Sobre a curiosidade encantadora da criança: “Nenhum animal, nem mes­ mo o gato ou o cão, faz este estudo constante de tudo que está ao seu alcance; a criança a que me refiro (com doze meses de idade) durante todo o dia toca, sente, faz girar, deixa cair, prova e faz experiências com tudo que consegue segu­ rar; pode ser qualquer coisa, bola, boneca, contas, brinquedo, e, após conhecer suficientemente o objeto, deixa-o de lado, pois já não apresenta novidade, ela nada mais tem para aprender com ele e consequentemente nenhum interesse. É pura curiosidade ...” Este artigo foi reproduzido na obra dc Taine De 1'intelligence. Volume I, Nota 1. No mesmo livro, diz que a infância é o período mais criativo da inteligência (liv. IV, cap. 1, ii). 110. Delacroix disse, sobre o Batbers de Courbct, que “a banalidade e inutilida­ de do pensamento são abomináveis”. Journal, 15 de abril de 1853. 111. Ver Théodore Durct, Lespeintres français en 1867, Paris, 1867, capítulo so­ bre Courbct. 112. O título completo no catálogo da exposição de 1855 era: LAtelier du Peintre, allégorie réelle determinant une phase de sept années de ma vie artistique (Léger, Courbet, 1929, p. 62). Sobre as idéias de Courbct a respeito do significa­ do de sua obra, ver a carta para Champfleury, publicada no catálogo da exposi­ ção da pintura na Galérie Barbazanges em Paris, em 1919; e a carta para Bruyas (Borel, op cit. pp. 56, 57). 113. les gens qui vivent de la vie” ... Ele os descreve também como “les actionnaires, ccst-à-dire les amis, les travailleurs, les amatcursdu monde de l’art” (car­ ta a Champfleury). 114. Ele não é mencionado na carta (nem a criança que observa o quadro de Cour­ bet). Mas é surpreendente que Champfleury, num ensaio sobre Courbet escrito em 1855 (publicado em Le Réalisme, 1857, pp. 279, 280), descreva o menino brincando com algumas gravuras. Esta observação errônea do realista, que se or­ gulhava da exatidão de detalhes nos próprios escritos literários, deriva, na minha opinião, da vergonha que sentiu por Courbet tê-lo retratado de maneira deson-


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rosa, “como um general jesuíta”, ele escreveu a Buchon (14 de abril de 1855 — ver “Lettres inédits de Champfleury”, La Revue Nlondaile, 133, 1919, p. 532); mas, ao invcs de repreender o pintor pelo seu retrato, ele censura a idéia de colo­ car o menino a seus pés: “Está o Sr. Courbct realmente seguro”, ele pergunta, “dc que um menino da rica burguesia entraria no estúdio com os pais quando lá se encontra uma mulher nua?”; e, muito ao seu estilo, ele transforma a crian­ ça, de artista, em amador. Esta pergunta é o que há de mais surpreendente num livro no qual Champfleury critica a excessiva virtude e a hipocrisia da burguesia francesa ao antipatizar com a canção popular “La Femme du Roulier” (Le Realisme, p.; 188 ss.); nesta canção os filhos do cocheiro desonesto dizem à sua mãe desgostosa que serão como o pai quando crescerem. 115. Courbet chama-os dc “les défroques romantiques”, na carta a Champfleury. 116. Entre Courbct criança e Courbet mestre, não houve Courbet “apprenti”: no catálogo da exposição de 1855, ele acrescenta o seguinte pé de página ao n? 1, LAtelier du Peintre: ‘‘C’est par erreur que, dans le livret du Palais des BeauxArts, il m’est assigné un maltre: déjà une fois j’ai constaté et rectifié cette erreur par la voic des journaux; ... Jc n’ai jamais eu dautres maítres en peinture que la naturc et la tradition, que le public et le travail”. (O texto integral do catálogo está reproduzido por Léger, Courbet, 1929, pp. 61, 62;) 117. Uma idéia semelhante aparece em Moby Dick (1851), onde Mclville compa­ ra o trabalho de esculpir em osso feito por um selvagem e por um marujo: “carre­ gado de espírito bárbaro e sugestividade, como as gravuras daquele velho selva­ gem holandês, Albert Dürer (cap. LVII). 118. Troubat, Sainte-Beuve et Champfleury, p. 92. 119. Champfleury, Le Réalisme, p. 194 ss. 120. De la poésie populaire en France, p. 141, citado a partir de M. de la Villemarqué e dos irmãos Grimm. 121. Ver suas idéias sobre sinceridade na arte em Le Réalisme, 1857, p. 3 ss. 122. Histoire de 1'imageriepopulaire, 1869, pp. 286-301 (Limagerie de 1’avenir), especialmente p. 290 sobre os murais. Ele já havia proposto murais em seu Grandes Figures d'hier et d'aujourd'hui, 1861. Esta era uma idéia típica St. Simoniana e Rmricrista, e foi debatida em 1848 no encontro do grupo socialista da Démocratie Pacifique, organizada pelo compatriota de Courbet, Victor Considérant. Segundo Estignard (G. Courbet, 1897, pp. 104, 105), Courbet comentou com Sainte-Beuve, com quem passou muito tempo em 1862, sobre sua vontade de ornamentar as estações ferroviárias com estes murais. Manet ambicionava o mes­ mo. A importância dos antigos St. Simonianos na expansão das estradas de ferro francesas durante o Segundo Império pode ter contribuído para o interesse nes­ tes projetos. 123. Silvestre, Histoire des artistes vivants, 1856, p. 277. 124. Em 1861 Courbet falou: "Le réalisme est par essence l’art démocratique” (Estignard, Courbet, pp. 117, 118). 125. Isto foi ridicularizado por Bertall em sua caricatura do Enterrement (Léger,


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Courbet selon les caricatures, p. 15). 126. A história social e política da França de 1848 a 1851 foi escrita de forma brilhante por Karl Mane, The Class Struggles in France (1848-1850), e The Eighteen Brumaire o f Louis Bonaparte. 127. Bouvier, op. cit., p. 30 ss. 128. Foi publicado outra vez em fac-símile com prefácio de Fernand Vandérem (Le Salut Public, n? 1-2, Paris, 1848), Paris n.d. (1925?). Wallon, Le Presse de 1848, ou revue critique des joumaux. Paris, 1849, p- 6, classifica-o de joumal de fantasie démocratique”. 129. Ver seu Souvenirs, p. 298. 130. Saíram três números apenas, nos dias 4, 11 e 18 de junho. Sobre seu conteú­ do, ver Wallon, op. cit., pp. 70-72 e p. 125. 131. Wallon chama o jornal de “reacionário moderado,” com “ódio pela anar­ quia, ternura e amor profundo pelo povo”. 132. Ver Troubat, Sainte-Beuve et Champfleury, p. 77. 133. Ibid., p. 90. Ele também apoiou a república, explicou, devido à atitude ami­ gável desta para com escritores e artistas. Ibid., p. 93. 134. Ibid., pp. 100, 101, cana à mãe, dezembro de 1849; ver também Bouvier, op. cit., p. 277 ss. sobre seu romance, o primeiro das suas obras realistas, muito influenciado por Dupont c Buchon. 135. Troubat, op. cit., p. 10. 136. Ibid., carta de 14 de dezembro de 1851, p. 131, e 31 de dezembro, p. 133. Mas ele não desaprova totalmcnte a censura; “je naime le journalisme, je ne l'ai jamais aiméet tout cequipourracomprimer son bavardage, je lappiouve” (p. 131), escreveu antes de a censura ser aplicada em seus próprios trabalhos. Ele disse tam­ bém: “je crois, malgré n’importe quels événemcnts, que la litterature doit vivre, qu’il y ait un Empire on un Comitê de Salut Public. Je ne crains rien, ne m’occupant pas de politique’‘ (p. 131). 137. Ce fut alors que, par un brusque sobresaut, je me plongeai dans lerudition pour échapper aux dangers de mon imagination qui avait failli suspendre deux importants journaux (la Presse et TOpinion nationale)" — assim Champ­ fleury afirmou em um artigo sobre Bouchon em 1877 e é citado por Troubat em La Revue, Paris, vol. 105, 1913, p. 35. 138. Ver sua brochura. De la littérature populaire en France, Recherches sur les origines et les variations de la légende du Bonhomme misère. Paris, 1861; e a conclusão da última versão do mesmo estudo na Histoire de Timagerie populai­ re, 1869, pp. 177-180. 139. Bouvier, op. cit., p. 180. Ele intencionava começar com Hebel, cujo traba­ lho conhecia através de traduções feitas por seu amigo radical, buchon. 140. Ver Histoire de Timagerie populaire, 1869, 2? ed„ pp. xlv, xlvi. Ele já havia publicado um artigo sobre “bonhomme misère” no LEvénement em outubro de 1850.


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141. Henry Monnier, “Grandeur et décadence de Monsieurjoseph Prudhomme”, em Morceaux Choisis, Paris, 1935, p. 211; a comédia foi encenada pela primeia vez em 1852. 142. Ele escreve em 1849 a respeito do “socialisme des paysans, — socialisme inévitablc, féroce, stupide, bestial, comme un socialisme de la torche ou de la faulx” (Lettres 1841-1866, Paris, 1906, p. 16); e após o golpe de estado: “Le 2 Décembre m'aphysiquement dépolitiqué. II n ’y aplus d'idées gênérales ... Si j'avais voté, je naurais pu voter que pour moi. Peut-ctre 1’avenir appartient-il aux hommes déclassés?” (ibid., p. 31). Em 1848, Baudelaire era mais constante do que Champfleury. Ver Wallon, op. cit., pp. 109, 114, sobre suas colaborações em jornais radi­ cais e as repreensões de Wallon sobre política e poesia endereçadas a Baudelaire. 143- Ver seu ensaio sobre o progresso em Exposition Universelle de 1833, Oeuvres, II, p. 148 ss. — “II est encore une erreur fort à la mode, de laquelle je veux mc garder comme de 1’enfer. — Je veux parler de 1’idée du progrès...” 144. Ver seus estudos sobre Bonhomme Misère, citados na nota 138 acima. "Ai de mim, nem tiros de pistola nem sangue derramado acabarão com a miséria. O doce lamento do contador de histórias mostrando o bonhomme resignado, contente com seu destino, ansioso apenas por juntar os frutos da sua pereira, é mais persuasivo que um canhão. Sim, a miséria persistirá na Terra enquanto a Terra existir.” (Histoire de 1'imagerie populaire, 1869, pp. 177, 178). Ele contras­ ta a imortalidade de obras como esta legenda com as “guerras, movimentos so­ ciais, transformações industriais efêmeras (Histoire, p. 180, e De la littérature po­ pulaire en France, 1861, conclusão). Na p. 178 da Histoire, ele identifica o “bo­ nhomme misère” como um "petit propriétaire,” e acrescenta: “La philosophie de nos pères est inscrit à chaque page du conte et il serait a regretter quelle ne restât pas la philosophie de nos jours. La situation du peuple s’est largement améliorée depuis un siècle; elle fait maintenant plus que jamais de rapides progrès. Elle ne scra réellement fruetueuse quavec des goüts modestes et peu de besoins. C'est pourquoi le bonhomme Misère prêtera toujours à méditer, et je ne doute pas qu’un Franklin, s’il avait eu connaissance d’un tel conte, ne l’eüt vulgarisé parmi ses compatriotes” (Histoire, p. 179). Champfleury não esqueceu que ha­ via editado Le Bonhomme Richard com Wallon em 1848. 145. Histoire, pp. 268-285. 146. Ibid., pp. 179, 180, sobre a durabilidade cada vez maior das idéias e da lite­ ratura do campesinato. 147. Wilhelm Heinrich Riehl (1823-97), Die Naturgeschichte des Volkes ais Grundlage einer deutschen Sozial-Politik, 4 vols., 1851-1864. 148. Na página 140 da Histoire de 1'imagerie populaire, 1869, ele esclarece por que o conto e a imagem camponeses demonstram mais eficácia em ensinar ao povo que qualquer instrução oficial. “A lição flui da própria história sem estar marcada pelas puerilidades da literatura didática com a ajuda da qual os dirigen­ tes, em momentos de dificuldade, pensam que podem acalmar as mentes irrita­ das e que as pessoas rejeitam, achando a matéria pesada e pedante.” 149. Foi reproduzido por Léger, Courbet, 1929, p. 40. 150. Souvemirs, p. 171.


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151. Ibid. 152. “Voilà deux ans que je fais la guerre de rintelligence” (26 de junho de 1848), Riat, op. cit., p. 50. 153. Ele escreveu naquele ano; "Je suis non seulement socialiste, mais bien cncore democrate et republicam, un mot partisan de toute la Révolution" (Estignard, op. cit., p. 123). 154. Foi publicado em 1864. 155. Sua Sensations deJosquin foi aceita pela Revue em 1855; mas Buchon, com a ajuda de Champfleury, já havia sido publicado lá em 1854. Sobre a atitude da Revue em relação ao realismo, ver Thaddeus E. Duval, Jr., op. cit. 156. O artigo ‘‘Sur M. Courbet, Lettre à Madame Sand”, está publicado em Le Réalisme, 1857, pp. 270-285. 157. Ver sua carta para Buchon, Lu Revue Mondiale, 1919, vol. 133, pp. 533, 534; também seu Souvenirs, 1872, sobre conversas com Proudhon c. 1860. Apesar de sua insensibilidade à arte e do idealismo vago de suas teorias estéticas, Proudhon era respeitado por Baudelairc como uma personalidade independente e um eco­ nomista interessado na situação do pequeno devedor sob o regime capitalista. Ver as Lettres de Baudelairc, Paris, 1906, pp. 404, 409, 410, 425. 158. Ver acima, nota 114. 159. Em Sensations de Josquin, 1855, 1857. Ver Légcr, Courbet selon les carica­ tures, 1920, p. 118. 160. Grandes figures, 1861, pp. 231-263; Souvenirs, 1872 (escrito em 1862, 1863, pp. 171-192 epassim. No último ele fala de “1852, époque de notre séparation” (p. 192), embora às pp. 245, 246 ele se refira as suas férias com Courbet em Ornans em 1856, e na p. 317 diga que viveu doze anos com Courbet e “sua coleção de vaidades”. 161. Em carta a Buchon: La Revue Mondia/e, 133, 1919, p. 544 (1857). 162. Ibid., pp. 540 e 705 ss. 163. Ver Léger, Courbet selon les caricatures, p. 118 ss. 164. Já em 1857, logo após publicar Le Réalisme, Champfleury pensou que o rea­ lismo havia acabado — “o público está cansado de romances de observação. Ma­ dame Bovary será o último romance burguês. Alguém precisa encontrar alguma outra coisa” (Souvenirs, p. 246). 165. ‘Je vais partir pour Omans et fairc encore quelques tableaux nouveaux bien sentis et socialistes", ele escreveu a Bruyas em 1868 (Borel, op. cit., p. 108). Sobre suas relações com Proudhon, ver Riat, op. cit., p. 208 ss. 166. Souvenirs, p. 191. 167. Gmdes Figures, pp. 236 ss. “Malditos sejam os artistas que querem ensinar pelas suas obras ... ou associar-se com os atos de algum regime”. 168. Silvestre, Histoire des artistes vivants, 1856, p. 266, em um resumo das idéias de Courbet sobre realismo e pintura histórica.


O Curso de Especialização cm História da Arte e Arquitetura no Brasil da Ponti­ fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, cm nível de pós-graduação latu-sensu, foi formado há seis anos. O curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte c a arquitetura brasileira apreendidas cm seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encami­ nhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar. Coordenador Acadêmico: Carlos Zilio Professores: Antonio Edmilson M. Rodrigues Berenice Cavalcante Eduardo Jardim de Moraes Fernando Cocchiarale Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Henrique Antum Katia Muricy Margareth da Silva Pereira Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira Ricardo Benzaquem de Araújo Ronaldo Brito Washington Dias Lessa



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