Revista Gávea - 13ª Edição

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Ria de Janeiro, Vol. 13, nu 13, Setembro de 1995

Migração das Palavras para a Imagem RI CARDO BASBAUM

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Pós-Urbanismo AN I I I O N Y V I D E E R

Entrevista com Rosalind Krauss C l Al RE B R U N E E E GILLES A. TIBERGHIEN

A Revista ( iávea aceita propostas de artigos, mas todas as colaborações não encomendadas são sub­ metidas ao conselho editorial a quem cabe a deci­ são final sobre suajpublicação. Os artigos deverão ser enviados nos meses de abril e de novembro.

Correspondência Editor responsável da Revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 sl. 515-F CEP 22453-900, Rio de Janeiro, Brasil


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Abstracionismo e Design

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Editor Fundador Carlos Zilio

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Revista de História da Arte e Arquitetura Vol. 1, n° 1 (1984) - Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História. Semestral Texto em português, inglês, francês e espan ISSN 0103 - 1996 1. Arte - História - Brasil. 2. Arquitetura História - Brasil. I. CDD-709.81

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Abstracionismo e Design Parte do design das primeiras décadas do sé­ culo XX propõe gramáticas de criação estrutu­ radas a partir de formas abstratas. Tentando compreender esta diretriz, que ecoa até os dias de hoje, este texto investiga algumas condi­ ções de surgimento do abstracionismo e do design, destacando na interface entre estas áreas, a caracterização de um olhar sensorialista e de uma tendência à autonomização de linguagens. Abstracionismo Design Código Visual

WASHINGTON DIAS LESSA Formado pela ESDI Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ, onde leciona desde 1975. Mestre pelo IESAE Instituto de Estudos Avan­ çados em Educação da FGV, com trabalho sobre ensino de design, está atualmente cursando o doutorado em Com unicação e Semiótica da PUC/SP. É diretor da Campos Gerais, que atua na área de edição e design da comunicação.

Introdução

A forma abstrata(1), que se delineia como categoria artística a partir dos movimentos de vanguarda do começo do século XX(2), entra no discurso do design contemporâneo ao longo da experiência da Bauhaus. A crença em que ele­ mentos visuais abstratos - ponto, linha, cores etc - que funcionam como “áto­ mos" da criação para as diversas artes visuais permeia o Curso Fundamental, a despeito das diferenças práticas e teóricas entre seus professores. A proposta de um código abstrato de criação básico e polivalente permanece como uma estratégia pedagógica até o fechamento da escola em 1933. E mesmo a partir dos anos 40 - quando o conceito bauhausiano de projetista total setorialmente se atualiza no designer gráfico, no designer de produto, no arquiteto e urbanista contemporâneos - os repertórios subentendidos nestes novos formatos profissionais ainda são marcadas pelos sistemas elementais abstratos dos anos 20. Uma investigação sobre as relações entre design e abstracionismo, no entanto, não deve se limitar à constatação dessa vinculação histórica ou, ainda, ao reconhecimento simplório de formas abstratas nos projetos de design. Correspondências mais finas podem ser buscadas em uma contextualização histórica mais abrangente. As condições para a emergência do abstracionismo no século XX GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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vão sendo postas a partir do começo do século passado, quando um olhar sensorialista começa a se desenvolver nas artes visuais. Segundo este novo parâmetro, uma obra deveria ser preferencialmente compreendida com base em suas relações formais em vez de seu conteúdo, destacando-se uma conseqüente autonomização da lingaguem visual. Isto foi levando a uma transformação progressiva da cena figurativa conceituada pela tradição renascentista. Por outro lado estes novos sentidos - e diretrizes - da visão e do visível não são exclusivos da arte, perpassando a rede da cultura que se tece a partir do final do século XVIII. E assim como em formulações filosóficas, cientí­ ficas e tecnológicas, também estão presentes na constituição do design como prática e teoria. Inicialmente, este trabalho focaliza algumas mudanças do pensa­ mento ocidental em relação à visão. Depois, considerando as condições dispostas pelo surgimento do individualismo moderno, situa a questão do olhar sensorialista e da autonomização da linguagem que levam ao abstracionismo. Faz, final­ mente, algumas indicações quanto ao modo como o design responde e se situa em relação a estas disposições. Visão e Verdade

Segundo a tradição greco-latina um compromisso entre a percepção visual e o processo de conhecimento. Conforme indica Hannah Arendt, "a primeira e famosa afirmação da Metafísica de Aristóteles (..), traduzida literal­ mente, diz o seguinte Todos os homens desejam ver e ter visto [ou seja, co­ nhecer]"'^’; "a palavra 'conhecer' é derivada da palavra 'ver'. Ver é idein, con­ hecer é eidenai, ou seja, ter visto. Primeiro você vê, depois você conhece"(4). Esta metáfora se basearia em uma concepção da revelação filosófica como intuição sintética e simultaneamente presentificada - nous - em contra­ posição do discurso - logos. A autora indica que na Sétima Carta Platão fala da "incompatibilidade entre a intuição - a metáfora-guia para a verdade filosófica e o discurso - o meio pelo qual o pensamento se manifesta: a primeira sempre nos apresenta um múltiplo contemporâneo, enquanto o último necessariamente revela-se em uma seqüência de palavras e sentenças"^. Por se basear na metá­ fora da visão, a verdade na tradição metafísica é indizível, e "apóia-se no mesmo tipo de auto-evidência poderosa que nos força a admitir a identidade de um objeto no momento em que está diante de nossos olhos. Esta associação visão/verdade vem a ser reformulada com a ciência moderna, que a partir do Renascimento busca progressiva mente se caracterizar como distinta e oposta à filosofia. Hannah Arendt indica que Kant teria sinteti358

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Fig. 2 - Os "elementos de estilo" Escrivaninha servindo de biblioteca Percier et Fontaine, 1801.

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zado este conflito ao conceituar a diferença entre o intelecto - faculdade de cog­ nição - e a razão - faculdade do pensamento. "O intelecto (Verstand) deseja apreender o que é dado aos sentidos, mas a razão (Vemunft) quer compreender seu significado. A cognição, cujo critério mais elevado e a verdade, deriva este critério do mundo das aparências no qual nos orientamos através das percepções sensoriais, cujo testemunho é auto-evidente, ou seja, inabalável por argumentos e substituível apenas por outra evidência. (...) Mas esse não é o caso do signifi­ cado e da faculdade do pensamento que busca o significado; essa faculdade não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe - sua existência é sem­ pre tomada como certa - mas o que significa, para ela, ser"(7). Ao domínio da razão pertenceriam a filosofia e a arte, e ao do intelecto, a ciên cia^. A consolidação desta divisão de territórios leva à substituição da metáfora da visão como guia da verdade. No campo da ciência, o questiona­ mento vem com a crítica ao senso comum, que se constrói como uma soma das evidências imediatas fornecidas pelos sentidos. A visão sobressai nesta soma, pois o aspecto contínuo e qualitativo do paladar e do olfato leva a percepções privadas e descritivamente subjetivas, sendo a audição igualmente qualitativa*9*. Já a visão e o tato se completam sinestesicamente na percepção do espaço tangí­ vel e compreendido como verdadeiro. Mas a visão se destaca pois coloca a questão do observador, para quem, em contraste com o ouvinte, o "presente [não é] a experiência pontual do agora que passa", mas é transformado em uma "dimensão dentro da qual as coisas podem ser observadas (...) como uma per­ manência do mesmo"*10*. Ao desenvolver aparelhos para ver o invisível, a ciência moderna se distancia do senso comum, pois "o que aparece não é o que é", não sendo mais garantia de verdade a adequação natural da visão ao objeto visto. Forçando as coisas a aparecerem e multiplicando instrumentos que imitam os processos ope­ rativos da natureza, a ciência busca o aparelho funcional oculto dos fenômenos. Ao mesmo tempo trabalha sobre conhecimento acumulado, não mais visível como aparência para o não-cientista. Nesta tradição, o ambiente técnico e cientificista do século XIX consagra a visão como modelo fisiológico para a cons­ trução desses aparelhos. E é também nesse momento que começa a surgir na prática e teoria artísticas o olhar sensorialista. A condição principal desta ênfase na visão em si que ocorre nas esferas científica e artística é a emergência da subjetividade como categoria, a partir da caracterização do indivíduo no quadro da nova sociedade industrial. E a autonomização das linguagens que acompanha a individualização se coloca como a nova metáfora-guia do conhecimento. Neste sentido, ainda segundo 360

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Hannah Arendt, há desde Bergson uma mudança de ênfase "da contemplação para a fala, de nous para logos. Com essa mudança, o critério para a verdade pas­ sou do acordo entre conhecimento e seu objeto - a adeqmtio rei et intellectus, entendida como análoga à adequação entre visão e objeto visto - à simples forma do pensamento, cuja regra básica é o axioma da não contradição, da consistência interna*11)". Individualidade e Subjetividade Estética

A Revolução Industrial e as transformações políticas e institucionais que resultam da Revolução Francesa começam a mudar, a partir do último quar­ tel do século XVIII, os cenários europeu e mundial. Nas relações de trabalho assiste-se a uma quebra de laços sociais, tanto no caso do camponês deslocado à força para a cidade quanto no do artesanato desmantelado pela indústria. Cada um desses novos sujeitos desvinculados da hierarquia feudal é tido como um trabalhador "livre" para vender sua força de trabalho. Embora esta autonomia seja uma ficção jurídica, pois ele está atrelado à produção industrial, passam a existir uma singularidade e um isolamento concretos. Por outro lado, os ambientes urbanos se transformam. Walter Benjamin em sua análise de Baudelaire aborda a multiplicação de cenários onde se expressa a nova urbanidade: as passagens, os jardins públicos, os museus de cera, as estações de trem. Sobressai neles a solidão do passante perdido na mul­ tidão, que vê e é visto como sombra que passa, volátil como cada objeto assom­ brado pelo capital, entidade invisível que o indiferencia e o iguala às outras mer­ cadorias. Este concreto indivíduo moderno que emerge na produção e no consumo já se anunciava na filosofia do século XVIII. Em contraposição aos va­ lores feudais, que enquadravam o sujeito numa hierarquia fechada, os filósofos iluministas e os economistas políticos introduzem a oposição indivfduo/sociedade, explicando e justificando a autonomia do indivíduo. Ao mesmo tempo, Kant não consegue mais demonstrar a coincidência entre interesses individuais e gerais(12). Neste quadro, ganha relevo a subjetividade estética. Em 1776, Diderot, por exemplo, mesmo professando uma doutrina baseada na reprodução da realidade, já se dirige aos pintores dizendo: "Iluminem os seus objetos de acordo com o sol de cada um de vocês, que não é o da natureza; sejam, discípu­ los do arco-íris, não o seu escravo"(13). A par desta valorização se desmonta a imposição do estilo tradicional. Conforme coloca Theodor Adorno, "o elemento obrigatório dos estilos como reflexo do caráter coercitivo da sociedade (...) está irremediavelmente desvendado; sem a estrutura objetiva de uma sociedade GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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fechada e, portanto, repressiva, não se pode conceber o estilo obrigatório"(14). Todos os estilos reconhecidos a partir do final do século XVIII dife­ rem radicalmente do estilo clássico unitário. Transparece neles a arbitrariedade desajeitada de quem não sabia usar direito a liberdade recém conquistada. Ao mesmo tempo uma nostalgia em relação à segurança do estilo coercitivo leva "sob o sortilégio de sua autoridade"(15), ao ecletismo estilístico, que ilustra como caricatura a impossibilidade do surgimento de um novo estilo nos moldes clás­ sicos. O art-nouveau, celebrado como primeiro estilo moderno orgânico, dife­ rentemente do gótico ou do barroco já expressa uma outra realidade, que é a da

Fig. 3 - Os elementos abstratos geométricos no projeto funcionalista Capa do Vol. 5 dos Livros da Bauhaus Lazio Moholy-Nagy, 1924. 362

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lógica industrial da moda^16). A subjetividade artística moderna evolui seguindo duas direções. A primeira se relaciona à crise do ilusionismo visual, correspondendo ao postula­ do científico segundo o qual "o que aparece não é o que é". Nasce aí o tema da "busca da verdade interior". A música, que a partir do classicismo tinha ganho autonomia em relação à linguagem verbal, por seu caráter não referencial é elei­ ta como paradigma deste programa estético. A segunda direção se funda no reconhecimento da visão como prer­ rogativa individual, e o seu desenvolvimento leva ao olhar sensória lista, que dialoga com o conhecimento científico sobre a percepção. O Olhar Sensorialista

Uma mudança do olhar lançado pelo artista começa a ser tematizada no trabalho de Alexander Cozens (1717c.-1786), pintor e teórico inglês que desenvolve o conceito de "picturesque" como fundamento de uma poética da paisagem. Segundo ele, as sensações na percepção de uma realidade "se dão como grupos de manchas, mais claras, mais escuras, diversamente coloridas e não em uma forma construída, como aquela que a arte clássica representava mediante a perspectiva, as proporções, o desenho"(17). O artista não deve "decifrar nas manchas a noção do objeto ao qual correspondem, destruindo assim a sensação primária", mas deve "clarear o significado e valor da sensação como experiência do real"(l8). Se delineia uma espécie de olhar abstrato, autoreferenciado e independendo do objeto percebido. Diferentemente dos quadros acadêmicos compostos no estúdio, nasce da observação direta, subjetiva e livre da natureza. Isto prenuncia, por exemplo, o pintor alemão Hans von Marées (1837-1887), que vê a obra de arte como uma vontade de forma que realiza obe­ decendo às normas da visão, sendo que o tema ou assunto é secundário neste processo(,9). E prenuncia, sobretudo, o impressionismo, que "transformou a natureza em um campo privado e informal para a visão sensitiva" A estas novas poéticas corresponde a construção da visão subjetiva como objeto científico, conforme indica Jonathan Crary. Alocada no corpo humano, ela vem substituir a incorporeidade da câmera escura como modelo teórico de compreensão da visão. Esta transformação seria uma "passagem da ótica geométrica dos séculos XVII e XVIII à ótica fisiológica, que dominou no século XIX tanto a discussão científica quanto filosófica sobre a visão"(21). Crary aponta para um outro aspecto desta visão abstratizada pela ciência: "o sentido do tato tinha sido uma parte integral das teorias clássicas da visão nos séculos XVII e XVIII. A dissociação subseqüente entre tato e visão ocorre dentro de uma GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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penetrante 'separação dos sentidos' e remapeamento industrial do corpo no século XIX. (...) Esta autonomização da vista, ocorrendo em vários domínios diferentes, era uma condição histórica para a reconstrução de um espectador adequado às tarefas do consumo 'espetacular'. Não só o isolamento empírico da visão permite a sua quantificação e homogeneização, como também possibilita aos novos objetos de visão (sejam eles mercadorias, fotografias ou o ato da per­ cepção em si) assumir uma identidade mistificada e abstrata, separada de qual­ quer relação com a posição do observador dentro de um campo cognitivamente unificado"(22). A Autonomia da Linguagem

Faz parte do olhar sensorialista a progressiva valorização dos ele­ mentos formais e materiais da superfície pintada. Maurice Denis dizia em 1890: "um quadro, antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou uma ane­ dota qualquer, é essencialmente uma superfície plana recoberta de cores agru­ padas em uma ordem estabelecida'^22^. Em um processo complementar à va­ lorização da visão subjetiva, as linguagens se autonomizam, adquirindo um caráter reflexivo, marcado pela busca de independência em relação ao mundo designado. Abordando o caso paradigmático da linguagem verbal Rose Subotnik sugere que esta tendência inicialmente se deve à consciência de que um tal fortalecimento da linguagem poderia fortalecer a produção de conhecimento. "A filosofia crítica de Kant tinha aberto terreno para a suspeita de que a lin­ guagem (...) se originava e mesmo operava no mesmo lado subjetivo da expe­ riência que a música (...). [E] chamando atenção para a dependência do conheci­ mento objetivo em relação à linguagem, Kant tinha colocado a base para um questionamento da objetividade do conhecimento obtido através da linguagem"(24). No esforço de revalidação da linguagem face a esta ameaça da impossibilidade do conhecimento objetivo, ela se tornaria "opaca, definindo-se como uma entidade concreta destacada da subjetividade de qualquer falante particular, e limitando seu campo de conhecimento voltando-se para si própria como seu próprio objeto de estudo"(25). A emergência da filologia, da lingüística e da fonética como campos independentes, a institucionalização da lógica como disciplina autônoma em relação à reflexão filosófica, as primeiras conceituações de uma ciência geral dos signos (semiótica ou semiologia) e o surgimento da fenomenologia expressam esta tendência. Nas artes plásticas, as transformações categoriais da cor a partir do Renascimento parecem costurar o mesmo tipo de processo. Na tradição do qua364

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trocento, embora a cor se subordine ao desenho e ao claro-escuro, existe uma relação conjuntiva entre estas três categ orias^. No século XVI, porém, a norma acadêmica destaca o desenho como atividade conceituai, sublinhado a sua importância na ordem pictórica criada pela perspectiva, voltada para a corres­ pondência ao visível. Mais do que nunca, a cor passa a ser considerada um dado posteri­ or: na revelação das formas no espaço dada pelo desenho e pelo claro-escuro as cores seriam apenas "puros efeitos de sua aparência"(27). A despeito de sua va­ lorização na Itália do norte, no confronto com o desenho intelectual e projetivo a cor se desvalorizava pelo seu caráter mutável e sua materialidade mundana. "Os vermelhos de Giorgione (...), de Tintoreto e de Ticiano não são somente uma invenção pictural, mas o resultado do uso de cosméticos (...) O vermelho de Ticiano e de Palma Vecchio era primitivamente uma tintura de cabelo que dava um louro ardente"(28). Vale também lembrar tanto a identidade que se estabelece entre a esfera das cores e dos perfumes na obra do veneziano Giovanventura Rosetti(29), quanto o fato de que o tingimento de fios e tecidos era tido como atividade inferior, pois lidava com fixadores desagradáveis, como a urina. Com a Ótica de Newton, a cor desbanca progressivamente o desenho como ponto de cruzamento entre arte e ciência, e por seu novo enquadramento científico, ascende da esfera dos odores à do intelecto. O prisma newtoniano adquire no século XVIII um caráter emblemático, tendo sido celebrado como "mensagem límpida das 'Luzes', rasgando o véu das mentiras e dos precon­ ceitos"^19. A luz e a cor já podiam ser tratadas pictoricamente em si mesmas. É o que faz Turner com sua poética da luz; ou Cozens, quando postula a pintura de manchas de cor tal como estão sendo vistas na paisagem, independentemente de se tornarem inteligíveis como desenho representando coisas tangíveis. Este novo estatuto da cor se completa com o olhar sistemático da indústria. Em 1864 Eugène Chevreul lança seu catálogo Des couleurs et leurs applications aux arts industrieis com 14.400 cores e combinações harmônicas em cír­ culos cromáticos(31). O fato de serem apresentadas lado a lado matérias naturais e novos corantes sintéticos atestava algo mais do que o avanço da química indus­ trial. A indiferenciação descolava a cor de sua fabricação tradicional, onde organicamente se ligava à transformação artesanal de elementos da natureza, fazendo com que o catálogo encontrasse sua identidade na generalização da cor como conceito. Como no caso da teoria newtoniana, as repercussões se fazem sentir na pintura: Chevreul é freqüentemente citado como base teórica no impressionismo e no pontilhismo. Na medida em que a cor ganha peso como conceito, passa a ser GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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identificada com o modelo abstrato da música, próprio do século XIX. Mas ou­ tros aspectos da cor também contribuem para a discussão do não figurativo na pintura: inicialmente, a enorme distância entre sua potencialidade mimética e a do desenho/forma; além disso o cânone acadêmico encontra na cor poder de desagregação formal, pois ela evidencia a pincelada e borra os contornos*32*. De todo modo o reconhecimento de sua importância como elemento pictórico alia­ do à constatação de seu caráter abstrato contamina a avaliação da forma. É claro que neste processo também contribui o contato com a arte das culturas ditas primitivas, onde ficava claro que linhas, traços, planos, fi­ guras geométricas ou formas livres não imitativas podiam ocorrer desvincu­ ladas do projeto ilusionista. Se impõe a elementalidade visual, que coloca na mesma dimensão o conteúdo e a forma, o nome e a ocorrência empírica (a forma de um ponto vermelho representa e é um ponto vermelho). Num proces­ so de atomização e indiferenciação da imagem figurativa, o mesmo traço seria sempre traço em várias pinturas, e não folha, braço ou boca, dependendo da posição relativa em cada quadro. E estes signos, que já eram percebidos pelo olhar sensorialista na tessitura figurativa da pintura, passam para o primeiro plano da cena pictórica. A autonomização da percepção e da linguagem - que se desen­ volvem como busca, conforme o modelo da ciência moderna, do aparelho fun­ cional oculto da pintura - causam o descolamento da arte em relação à referencialidade figurativa ilusionista. Este processo, que aflora da prática artística, ali­ ado às várias propostas conceituais de transformação da imagem figurativa (a tradução pela "cor selvagem" do fauvisme, o olhar múltiplo e geometrizante do cubismo, a representação futurista do movimento, a transfiguração expressionista etc), levam ao abstracionismo histórico. Design e Abstracionismo

As vanguardas construtivas do século XX, como o neoplasticismo e o construtivismo, têm como ponto programático a leitura de construções arquitetônicas e objetos funcionais como composições de formas abstratas. Tal diretriz ganha força com as gramáticas elementais em curso na Bauhaus e com a difusão do abstracionismo como poética. Nos anos 30 Herbert Read chega ao equívoco de propor que o design seja identificado como arte abstrata tout court. Porém este viés abstracionista nas atividades de projeto se caracte­ riza não apenas a partir da influência do abstracionismo pictórico, mas também na contraposição de arquitetos e designers à poética do ecletismo. Diferentemente dos estilos coercitivos, que refletem uma sociedade fechada, o 366

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Fig. 4 - Os elementos abstratos geométricos como símbolo da racionalidade Cadeira Berlim Gerrit Rietveld, 1923.

ecletismo trabalha com a compilação de "elementos de estilo" variados. E neste contexto, mais do que no gótico ou no barroco, as colunas, os frisos, os arcos etc - subclassificados como gregos, egípcios, góticos, renascentistas etc - possuem uma forte carga semântica, sendo a sua utilização similar ao figurativismo. Por outro lado, algumas categorias clássicas da prática do arquiteto ocidental - a massa, o volume, o equilíbrio, o ritmo, a simetria etc - são formalGÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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mente abstratas. Elas passam a ser naturalmente destacadas quando a necessi­ dade de novos programas arquitetônicos, como fábricas, gares etc, aliada a ino­ vações técnicas na construção, levam à crítica e ao abandono das "colagens estilísticas" do ecletismo. Os elementos de estilo são substituídos por novos materiais e formas geométricas. Ao lado do olhar sensorialista se desenvolve um raciocínio estrutural, voltado para a construção. A arquitetura e o design nascente abandonam a descrição e a retórica, literária ou estilística, em favor das relações formais ou estruturais. E é natural a conjunção destas posições com os progra­ mas das vanguardas construtivas do começo do século XX, que, num caminho inverso, se aproximavam do projeto utilitário. Mas existe outro tipo de identidade entre o abstracionismo e o design, pois a indiferenciação do olhar e a autonomização também marcam o projeto industrial. A arte e o artesanato eram, até a Revolução Industrial, conce­ bidos e exercidos como prática totalizante, onde o trabalho, valorizado como destreza, era essencialmente criativo, e a matéria possuía um valor intrínseco. A concepção de Canova, segundo a qual o modelo elaborado pelo artista deveria ser executado independentemente deste (como recurso para um "esfriamento" do sentimento do criador), assim como a própria ênfase que o neoclassicismo coloca no projeto, nascem no mesmo quadro em que se dá a divisão industrial do trabalho, que opõe concepção e execução fabril. E o projeto para a indústria passa a ser indiferenciado, pois não mais se atém a especificidades produtivas, conforme o modelo artesanal: em tese um designer pode projetar qualquer pro­ duto. Diferentemente daqueles artistas modernos que se voltam para a matéria artística empírica, o design caminha em direção à imaterialidade, à modelização e à abstração mental. Esta autonomização de linguagem encontra eco na questão da máquina e no seu estabelecimento como metáfora moderna. A máquina, que fornece o fundamento para a indiferenciação técnica do trabalho industrial, surge no ambiente novecentista como algo oposto tanto à natureza quanto aos gêneros tradicionais da cultura material. Artistas como Walt Whitman, os pin­ tores do sublime na Inglaterra e os futuristas e Fernand Léger já no século XX tratam-na como tema de representação. Outros se rendem ao fascínio de sua ló­ gica e buscam copiar seu funcionamento através do estabelecimento de princí­ pios de geração formal autônomos face à subjetividade artística. O mesmo Duchamp que trabalhava com a metáfora das máquinas celibatárias e se ma­ ravilhava com mecanismos e invenções, em Three stoppages, último quadro que pinta, faz moldes de madeira do desenho de três fios lançados ao acaso sobre o chão, e os utiliza para traçar linhas. Outro exemplo é o das composições feitas 368

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por Max Bill a partir de raciocínios matemáticos. Homologamente à mecânica da máquina, que relaciona formas e movimentos a partir de um desígnio particular, a visão sensorialista busca com­ binar formas, cores e texturas visando um efeito estético determinado e inde­ pendente da representação. Para o design e para a arquitetura este modelo adquire uma adequação inelutável. "A casa é uma máquina de morar" - formu­ lação de Le Corbusier - explicita o objetivo do olhar sensorialista e do raciocínio construtivo de procurar com que as peculiaridades formais dé cada projeto te­ nham, a partir de um programa, uma relação de "funcionamento" auto-sufi­ ciente entre si. Segundo este referencial, a valorização do abstracionismo geométrico como código geral de criação industrial busca mimetizar a lin­ guagem matemática do engenheiro fabricante de máquinas. Existe também uma lógica política na adoção de um código abstra­ to de criação. A linguagem abstracionista era adequada a um tratamento unifi­ cado dos diversos tipos de objetos anteriormente vinculados a tradições produ­ tivas específicas, desmanteladas pela Revolução Industrial. Nesta clave, enquan­ to geral e "descarnada", seria homóloga à apresentação do design como área geral do projeto industrial. Finalmente, devemos considerar o fato de que o conceito de lin­ guagem de criação válida para todas as mercadorias industrializadas já está pre­ sente no ecletismo, mas de uma maneira perversa. Os manuais de estilo, tentan­ do resgatar para o mercado de massa o aspecto orgânico dos estilos históricos, buscavam dar às mercadorias uma cobertura indiferenciada de civilização. Por outro lado, embora o código abstrato geométrico fosse mais adequado como instrumental de projeto de produtos industriais, nas vanguardas construtivas e na Bauhaus era também usado, emblematicamente, para marcar posição, ativan­ do uma dimensão simbólica que não se reconhecia como tal. Hoje, a consideração da forma abstrata pelo design não pode se prender a este referencial, pois mudou a sociedade, a arte, o design, a tecnologia. Se nas vanguardas construtivas do começo do século XX, os "elementos de esti­ lo" são substituídos por formas geométricas, e o caráter permutacional dessas formas fornece a base de eficácia do modelo elemental funcionalista, na pers­ pectiva do pós-modemismo, estas formas passam a ser apenas mais um compo­ nente de uma nova summa eclética, de acordo com um raciocínio voltado para o pastiche e para a colagem. A retomada da lógica ecletista reintroduz a noção de que o projeto de um produto se faz como montagem mecânica a partir de um repertório predeterminado de formas fechadas, repetindo como caricatura a elementalidade funcionalista. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Abstracionismo e Design

Segundo uma ótica mais consistente, a categoria de elemento míni­ mo deve ser revista a partir de uma crítica tanto do ecletismo pós-moderno quanto dos dogmas geometristas do modernismo. Face ao "átomo da cons­ trução" ganha relevo a noção, já prenunciada na Bauhaus, de que cada projeto deve ser visto como um sistema de informação ou comunicação. Por sua afinidade com as estruturas e procedimentos de uma sociedade informatizada, esta é uma posição mais adequada a um pensamento contemporâneo de design. Notas ( 1 ) Optei pela utilização do termo abstrato, mesmo sabendo de suas limitações para a designação do fenômeno artístico correspondente (ver Schapiro, M. "On the Humanity of Abstract Painting", In M odem Art - 19th and 20th centuries (selected papers). New York: George Brazilewr, 1978. ( 2 ) Deve ficar claro que não existe um abstracionismo atemporal que paira sobre toda a história da arte. O reconhecimento de momentos e lugares históricos em que a simplificação formal levou a resultados quase abstratos faz parte do dis­ curso abstracionista. ( 3 ) ARENDT, Hannah. "O Pensar". Trad. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida. In A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Ed. UFRJ, 1992, p. 46. ( 4 ) id. p. 68. ( 5 ) id. p. 90. ( 6 ) id. p. 91. "Sabemos, pela tradição hebraica, o que acontece com a verdade quan­ do a metáfora-guia não é a visão, mas a audição (em muitos aspectos é mais parecida com o pensamento do que a visão, pela habilidade que tem de acom­ panhar seqüências). O Deus hebraico pode ser ouvido, mas não visto, e a ver­ dade torna-se, portanto, invisível. (...) 1Diferentemente da visão] a verdade entendida em termos de audição exige obediência" (id. ib.) ( 7 ) id. p. 45. ( 8 ) "Por trás de todas as questões cognitivas para as quais os homens encontram respostas, escondem-se as questões irrespondíveis que parecem inteiramente vãs e que, desse modo, sempre foram denunciadas. É bem provável que os homens - se viessem a perder o apetite pelo significado que chamamos pensa­ mento e deixassem de formular questões irrespondíveis - perdessem não só a habilidade de produzir aquelas coisas, pensamento que chamamos obras de arte, como também a capacidade de formular todas as questões respondíveis sobre as quais se funda qualquer civilização" (id. p. 48) ( 9 ) A linguagem, por seu caráter pára-sensorial, deve ser excluída desse argumento. (10) Hans Jonas. Von der Mythologie zur mstischen Philosophie. cit. em ARENDT, Hannah. op. cit. p. 86 (11) ARENDT, Hannah. op. cit. p. 86 (12) SUBOTNIK, Rose Rosengard. "The Cultural Message of Musical Semiology: Some Thoughts on Music, Language and Criticism since the Enlightenment", in Criticai Enquiry, 4, No. 4 (Summer 1978). (13) cit. em DESNÉ, Roland. "A Filosofia Francesa no século XVIII". Trad. Guido de Almeida. In história da Filosofia. Sob a direção de François Châtelet. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. Vol. 4 (O Iluminismo), p. 103. (14) ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Trad. Artur Morão. São Paulo- Martins Fontes, 1982, p. 232

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WASHINGTON DIAS LESSA

(15) id. ibid. (16) ARGAN, Giulio Carlo. L'Arte Moderna - 1770/1970. Firenze: Sansoni, XII ristampe, 1984. pp. 244/253. (17) cit. em ARGAN, G. C., op. cit. p. 10 (18) id. ibid. (19) VALLIER, Dora. L'Art Abstrait. Paris: Le Livre de Poche, 1967. p. 21 (20) SCHAPIRO, Meyer. "Nature of Abstract Art". In op. cit. p. 192 (21) CRARY, Jonathan. Techniques o f the Observer. Cambridge: MIT Press, 1990. p. 16 (22) id., p. 19 (23) VALLIER, Dora. op. cit. p. 20 (24) SUBOTNIK, R. R. op. cit. p. 749 (25) id., p. 750 (26) KOSSOVITCH, Leon. "A emancipação da cor". In O Olhar. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 183/215 (27) BRUSATIN, Manlio. Histoire des Couleurs. Trad. Claude Lauriol. Paris: Flamarion, 1986. p. 59. (28) id. p. 59 (29) id. p. 60 (30) id. p. 66 (31) id. p. 24 (32) A cor "estrutural" de Cézanne, que mimetiza as hachuras do desenho, trans­ cende esta realidade, pois, aí, a cor já está autonomizada como elemento.

Bibliografia \l X )K.\v.>, 1heudor W. Teoria Estética (Ia ed. 1970). Trad. Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes, 1982. ARENDT, Hannah. "O Pensar" (Ia ed. 1971). Trad. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida. In A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Ed. UFRJ, 1992. 5-184 ARGAN, Giulio Carlo. L'Arte Moderna - 1770/1970 (Ia ed. 1970). Firenze: Sansoni, XII ristampe, 1984. BRUSATIN, Manlio. Histoire des couleurs (Ia ed. 1983). Trad. Claude Lauriol. Paris: Flammarion, 1986. CRARY, Jonathan. Techniques of the Observer (Ia ed.). Cambridge: MIT Press. DESNÉ, Roland. "A Filosofia Francesa no século XVIII". Trad. Guido de Almeida. in História da Filosofia (I a ed. 1972). Sob a direção de François Châtelet. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. Vol. 4 (O Iluminismo): 71-107. KOSSOVITCH, Leon. "A emancipação da cor". In O Olhar (Ia ed.). Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras. 183-215 READ, Herbert. Art and Industry (Ia ed. 1934). London: Faber and Faber, 1966. SCHAPIRO, Meyer. "Nature of abstract art" (Ia ed. 1937); "Recent abstract painting" (Ia. ed. 1957); "On the Humanity of abstract painting" (Ia. ed. 1960). In Modern Art - 19th and 20th centuries (selected papers). New York: George Braziler, 1978. SUBOTNIK, Rose Rosengard. "The Cultural Message of Musical Semiology: Some Thoughts on Music, Language, and Criticism since the Enlightenment" (Ia ed.). In Critical Inquiry, 4, N° 4 (Summer 1978). 741-68 VALLIER, Dora. L'Art abstrait (Ia ed.). Paris: Le Livre de Poche.

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Migração das Palavras para a Imagem Este artigo investiga alguns aspectos das relações entre texto e imagem no campo das artes plásticas, a partir da distinção proposta pelo filósofo Gilles Deleuze, entre enunciados e visibilidades. São discutidas algumas modali­ dades de textos críticos - entre as quais o texto do artista - assim como a obra dos artistas Marcei Duchamp, Joseph Kosuth, On Kawara e Hélio Oiticica, no que se refere à presença da palavra em seus trabalhos. Crítica de Arte Arte Conceituai Arte Contemporânea

RICARDO BASBAUM Artista plástico. Licenciado em Ciências Biológicas pela UFRJ, formado pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil (PUCRIO), pós-graduado em Artes pelo Goldsmiths' College (Universidade de Londres) e aluno do Mestrado em Comunicação e Cultura (ECO-UFRJ).

Dentro do campo específico de produção de visualidade delimitado pelas artes visuais, a relação entre imagem e linguagem tem se colocado como uma das questões mais instigantes e provocadoras para artistas, teóricos, críticos e comentadores em geral, por colocar em jogo justamente os limites do que se convenciona designar como regiões do visual e do verbal. É verdade que a arte contemporânea vem exercitando, há pelo menos trinta e cinco anos, as chamadas formas híbridas do objeto, instalação, ambiente, happening, performance, bodyart, arte conceituai, arte processo, etc, que combinam e rediscutem, entre outros, elementos provenientes dos meios 'tradicionais' da pintura, desenho, escultura, gravura í1); estes últimos, por sua vez, têm sido continuamente re-elaborados à luz de uma crescente visão inter-, multi- ou transdisciplinar da cultura, em que a arte enquanto disciplina autônoma é confrontada com discussões provenientes de outros campos do conhecimento. A partir deste quadro, de uma produção contemporânea que funciona sob premissas diferenciadas, anunciando uma primeira dobra (em uma possível série) da modernidade, podemos propor a dis­ cussão de alguns aspectos envolvidos no par visual/verbal, no que tange ao interfaceamento dos dois campos. Se tomarmos cada um dos modos especializados de produção visu­ al do mundo contemporâneo, como cinema, vídeo, fotografia, publicidade, design, artes plásticas etc, cada qual ocupará uma posição particular neste elen­ co de práticas. Todos esses meios, hoje, configuram-se como disciplinas autôno­ GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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mas, dotados de linguagem, objeto, meios técnicos e conceitualizações que lhes são próprios, de modo que podemos considerá-los como diferentes saberes, de­ senvolvidos a partir da era moderna, na convergência dos impulsos do desenvol­ vimento técnico e da fragmentação e especialização dos campos do conhecimen­ to. Seguindo algumas das pistas arqueológicas propostas por Michel Foucault e retomadas por Gilles Deleuze, é possível abordar cada um destes saberes como "combinações do visível e do enunciável (...) agenciamentos práticos, disposi­ tivos' de enunciados e visibilidades" (2). Assim, os diferentes meios de produção de visualidade podem ser particularizados através da prática específica empre­ gada na realização de tal agenciamento. Cada um destes meios diferencia-se do outro por trabalhar de maneiras diversas a relação entre imagem e linguagem, ou visibilidade e legibilidade, ou signo e pensamento, ou imagem e texto. Se nos interessa determinar as propriedades específicas do modo de agir de uma destas práticas - as artes visuais -, devemos desvendar, nas parti­ cularidades do campo investigado, alguns detalhes desse relacionamento "biforme", assinalando em que medida tal saber é atravessado por "práticas dis­ cursivas de enunciados e práticas não-discursivas de visibilidades". (3) O Campo Ampliado da Arte Contemporânea

Antes de mais nada, é necessário precisar que hoje, após as aven­ turas da arte moderna e contemporânea (4), é impossível definir o campo das práticas artísticas apenas através dos meios e materiais utilizados. Desde, pelo menos, as apropriações dadaístas e surrealistas de objetos cotidianos em atitudes anti-artísticas, o conceito de 'material artístico' ampliou-se, ao ponto de, a partir de meados dos anos 60, na esteira das correntes experimentais que trabalharam a "desestetização", Harold Rosenberg anunciar a diluição de "todas as limitações na espécie de substâncias fora das quais a arte pode ser costituída. Qualquer coisa - o desjejum, um lago congelado, o comprimento de um filme - é arte, ou como está, ou adulterada, ou escolhida como um fetiche".(5) Em fuga de um con­ ceito de arte excessivamente dominado por uma carga 'esteticista' e 'formalista', isto é, ligado aos aspectos morfológicos exteriores do objeto e ainda dependente de noções composicionais e de equilíbrio derivadas da reciclagem de tratados artísticos de origem acadêmica, "parece lógico que os trabalhos devam ser feitos com pedras em seu estado natural e de madeira; com materiais destinados a ou­ tros propósitos que não sejam os artísticos, tais como borrachas ou lâmpadas elétricas; ou mesmo com materiais de pessoas ou animais vivos. (...) Cavar bura­ cos ou abrir fossos no solo, abrir uma trilha em um milharal, estender uma chapa quadrada de chumbo na neve (a assim chamada arte earthwork), não difere em 374

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sua essência desestetizadora da exibição de uma pilha de sacos de corres­ pondência, de uma fileira de jornais colados na parede, ou do obturador de uma máquina fotográfica mantido aberto com uma exposição ao acaso durante toda a noite (a assim chamada arte antiforma). A declaração de um despojamento de conteúdo estético também torna legítima a arte 'processo' - na qual forças quími­ cas, biológicas, físicas ou climáticas afetam os materiais originais, mudando suas formas ou destruindo-as como nos trabalhos que incorporam grama crescendo, bactérias ou ferrugem provocada - a arte ao acaso, cuja forma e conteúdo são decididos pela sorte."(6) E em Rosalind Krauss que encontraremos a noção de "campo ampliado", possibilitando considerar diferentemente a prática do artista, loca­ lizada não mais, evidentemente, dentro da noção pré-moderna dos 'gêneros artísticos', nem nas particularidades dos diversos meios empregados (e em suas possíveis misturas e hibridizações) para a realização do projeto plástico. No con­ texto de um campo ampliado, "a práxis não é definida em relação a um deter­ minado meio de expressão, mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais para o qual vários meios - fotografia, livros, linhas Nuno Ramos Texto em carvão sobre camada de breu Instalação no Centro Cultural São Paulo, 1990

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em paredes, espelhos - podem ser usados. Portanto, o campo estabelece tanto um conjunto ampliado, porém finito, de posições relacionadas para um determi­ nado artista ocupar e explorar, como uma organização de trabalho que não é ditada pelas condições de determinado meio de expressão".(7) Pode-se assim pensar a prática do artista para além dos materiais e meios utilizados, revelando "a lógica do espaço da práxis pós-modernista organizada (...) através do uni­ verso de termos sentidos como estando em oposição no âmbito cultural. (...) Conseqüentemente, dentro de qualquer uma das posições geradas por um deter­ minado campo lógico, vários meios diferentes de expressão podem ser utiliza­ dos. Ocorre também que qualquer artista pode vir a ocupar, sucessivamente, qualquer uma das posições." Um dos termos que localizam, a nível estrutural, o campo amplia­ do da prática artística dentro do âmbito cultural dos desenvolvimentos da arte moderna e pós-moderna é, exatamente, o par im agem /linguagem .(s) Como ve­ remos, a própria noção moderna de arte não se faz sem um preciso agenciamen­ to entre práticas visuais e práticas discursivas: na ausência de uma adequada e estratégica mobilização de enunciados, ao lado de objetos plásticos e visuais, não haveria o que entendemos hoje por arte. Arte Moderna como um Território Híbrido

Lionello Venturi, em sua História da Critica de Arte, relata um fato que não deve passar desapercebido: "o excepcional florescimento crítico que se deu em França por alturas da metade do século XIX, a propósito da pintura mo­ d erna"^. Paralelamente ao movimento em que Edouard Manet e Gustave Courbet mostravam o que seriam as primeiras pinturas modernas - iniciando um percurso onde as obras de arte partem em direção a uma crítica do modelo clássico da representação, envolvendo as questões da imediaticidade da expe­ riência, de uma pesquisa estrutural em torno dos elementos constituintes da lin­ guagem plástica e de uma possível universalidade auto-referente da arte - , neste momento em que se tornam exterior e definitivamente visíveis os limites do visível, este mesmo momento anuncia uma proliferação inédita de textos críticos, comentando as novas visibilidades. É como se não houvesse um contentamento, uma satisfação por finalmente possuir e dominar os limites do visível: mesmo podendo, pela primeira vez, relacionar-se com obras que fundam sua própria presença no instante em que vêm ao mundo - e que, portanto, instauram uma intensidade nunca antes vista, dentro mesmo do tempo presente —, os homens do século XIX não se calam, não emudecem, e iniciam a atividade, insistente e contínua, de falar e escrever a partir da imagem (criticá-la, construí-la enquanto 376

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imagem em crise).(10> O que nos interessa é pensar que tal movimento jamais poderia se dar de outro modo: a arte moderna é fundada, exatamente, a partir da possibilidade do encontro de objetos que se pretendem pura e completamente visíveis com um campo enunciativo que, adequadamente, posiciona-se junto destes objetos, atravessando-os. E possível precisar já aí, no momento inaugural do processo mo­ derno de fazer arte, um agenciamento particular entre imagem e linguagem, entre o visível e o enunciável. Lembrando que tanto um como o outro dos modos de produção de sentido configuram-se como entidades autônomas, dotados de estrutura e materialidade próprios, enquanto campos de ação constituídos por estratégias e práticas diferenciadas - será a maneira particular de produzir tal agenciamento, o atrito e fricção surgidos do contato entre os dois campos, que tornará possível afirmar a existência de um território próprio das artes plásticas. A arte moderna se identificará, então, com um território híbrido, no qual entre­ laçam-se objetos e significados. Combate e Captura

O texto de crítica de arte, evidentemente, deve ser considerado como apenas uma das modalidades de produção de discursos que constituem o território das artes plásticas: devemos incluir também aí textos teóricos, textos de artistas, crônicas, biografias, ensaios, manifestos, estudos de história da arte etc. Todos esses escritos reivindicam uma parcela da responsabilidade de falar acer­ ca daquilo que foi construído para ser absolutamente visível. No período em que se inaugura o campo da arte moderna, porém, a crítica vem a desempenhar o importante papel de voltar-se para a atualidade, procurando discutir as trans­ formações ao mesmo tempo em que eram produzidas: "Os críticos franceses do século XIX, e em especial o seu mais alto representante, Baudelaire, ensinam-nos que a sensibilidade artística, isto é, a comunhão de experiências com os artistas, é a fonte necessária à intuição crítica. Esses críticos criaram uma consciência da arte atual mais viva do que a que dantes existira e supreenderam a arte no seu processo de formação f...)."^ 1) A cumplicidade entre crítico e artista, ao ponto de surpreender a obra em sua origem, é importante por revelar o grau de proximi­ dade em que os dois processos são articulados; e também por dimensionar outra componente desta relação: uma vez que a obra moderna anuncia, continua­ mente, a novidade, não existem regras acadêmicas a priori, capazes de predeter­ minar a avaliação e a significação do trabalho, colocando, aos críticos, o desafio de confrontarem-se com a produção sem a possibilidade de recorrer a "juízos for­ mados, precisos e tradicionalmente autorizados".(12) Assim, Baudelaire demarca GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Rosângela Rennó Hipocampo, 1995 Pintura fosforescente sobre a parede

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o espaço de atuação do crítico moderno, não como acjuele em que se está con­ frontando a produção plástica de sua época a partir de critérios de juízo estético anteriores às obras, mas sim como o local a partir do qual o texto compartilha com a obra de um mesmo envolvimento em direção ao novo: "Para ser justa, para possuir sua razão de ser, a crítica deve ser parcial, apaixonada, política, quer dizer, feita de um ponto de vista exclusivo, mas que seja um ponto de vista que abra novos horizontes".03)

ser

Co Ed Poi

Vemos aqui que texto crítico e obra plástica unem-se na tarefa de demarcar o território da arte moderna, a partir da estratégia comum de inserirem-se em um campo de atualidades, para, na busca permanente do novo, lançarem-se ao futuro. Neste momento, cada um dos dois campos marca sua irredutibilidade: da mesma maneira como a obra moderna constrói seu espaço autônomo, voltada para si mesma, Baudelaire toma para si a dupla tarefa de afir­ mar a autonomia da expressão visual 04) e marcar a]gumas das principais 378

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questões que serão retomadas continuamente pela crítica deste século - a com­ binação do "historicismo teleológico e essencialismo (...) como essenciais ao modernismo"/ln) Podemos dizer então que semelhantes textos - textos de críti­ ca de arte - constroem-se em torno das obras, atravessando-as, para com elas definir um território. E fundamental não se perder de vista que quando anuncia-se a aproximação entre obras plásticas e textos críticos existe a consciência de que "por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, com­ parações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descorti­ nam, mas o que as sucessões da sintaxe definem", - cada uma das práticas ocorre em campos específicos e irredutíveis um ao outro. Assim, o que poderia ser considerado como a 'verdade', a leitura correta ou juízo verdadeiro acerca de qualquer trabalho de arte torna-se uma relação problemática entre "duas metades do verdadeiro", uma vez que "o verdadeiro não se define por uma con­ formidade ou forma comum, nem pela correspondência entre as duas for­ m as"/17) A 'verdade' é essencialmente móvel, sendo constituída diferentemente a cada vez, a partir do "combate e captura" recíproco entre as duas práticas. Inversão do Pensamento

Vamos considerar aqui uma especificidade do "signo figurativo", sugerida por Pierre Francastel: "O que caracteriza absolutamente todo signo fi­ gurativo, insistimos, é sua ambiguidade. Ambigüidade porque jamais o signo coincide com a coisa vista pelo artista, porque jamais o signo coincide com aqui­ lo que o espectador vê e compreende, porque o signo é por definição fixo e único e, também por definição, a interpretação é múltipla e m óvel"/181 A importância desta colocação é ressaltar uma característica irredutível do signo figurativo (ou signo plástico, para ampliarmos seu sentido), ao mesmo tempo em que aponta para uma particularidade das artes plásticas enquanto campo do saber. Sendo único, mas essencialmente ambíguo, o signo plástico é receptivo, por natureza, a uma multiplicidade de interpretações, ou seja, a cada instante em que nos reme­ temos à obra de arte devemos considerar que esteja circundada e atravessada em várias órbitas, proximidades e freqüências diferentes - por uma diversidade de enunciados, de gêneros e formatos múltiplos. Assim, a importância do signo plástico residiria em sua capacidade plenamente receptiva de, sendo "fixo e único", acolher uma multiplicidade de discursos. Isto incidiria diretamente sobre a afirmação de Deleuze, ao referir-se ao "primado do enunciado" como terceira característica do saber: "O enunciado tem primazia graças à espontaneidade de GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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sua condição (linguagem), que lhe dá uma forma determinante. O visível, por sua vez, graças à receptividade da sua (luz), tem apenas a forma do determiná­ vel. Pode-se, então, considerar que a determinação vem sempre do enunciado, embora as duas formas difiram em natureza".<19> Entretanto, em uma positivação mais rigorosa das artes plásticas como um saber específico, seria preciso operar uma inversão dos termos dessa afirmação: só existe a possibilidade de um pensamento na arte (e não a partir da arte), isto é, um pensamento que seja pura prática, que seja essencialmente móvel, que se exerça nos espaços de problematização provocados pelo choque dos signos plásitcos com múltiplos enunciados, que crie formas de ação novas e diferenciadas, só há possibilidade de um ver­ dadeiro pensamento plástico se houver, inequivocamente, primazia da forma visível sobre a forma enunciativa. As artes plásticas seriam, deste modo, uma espécie de campo invertido do pensamento, um saber ao avesso - ou um avesso do saber -, constantemente pressionando e provocando turbulências no conjun­ to dos pensamentos estabelecidos. Texto e Obra de Arte

Quando Deleuze caracteriza a "essên cia" com o "unidade do signo e do sentido tal qual é revelada na obra de arte"^20), não está apontan­ do para uma "diferença interna" ou "eterno segredo" de uma arte subjetiva, mas para uma "Diferença última e absoluta", aberta, que tem na arte um veículo privilegiado. No entanto, som ente a "boa e verdadeira interpre­ tação" permitiria "equacionar de maneira correta a relação entre signo e sentido"^2^ que dá acesso à essência da obra. Im ediatam ente som os confronta­ dos com a dificuldade de localizar a "boa interpretação" — como meio de extrair a relação signo/sentido dos objetos de arte —em m eio à m ultiplici­ dade de interpretações proporcionadas pela natureza am bígua do signo plástico. Diante do dilema, desde logo três possibilidades se destacam, quanto ao posicionamento do enunciado em relação à obra: em primeiro lugar, é possível divisar uma disputa, entre os diversos enunciados ali aglutinados, pelo posto de interpretação hegem ônica. M ais do que uma con­ sistência interpretativa, disputa-se, de fato, poder: briga-se pelo direito de posicionar o discurso no espaço privilegiado localizado em torno da obra, pelo direito de nomeá-la e determ iná-la - visando o arquivam ento. É uma disputa física (por um lugar) mais do que intelectual (por um método). Esta seria a possibilidade da arte oficial, dos discursos institucionais da arte e leituras academizantes do m odernismo. Um discurso frontal, que obscurece a obra, rivalizando-se com ela. 380

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Uma segunda possibilidade residiria no tipo de engajamento inau­ gurado por Baudelaire, de uma crítica "parcial, apaixonada, política": esta qua­ lidade de enunciação só é possível quando o discurso constrói-se a partir da mesma matéria informe que irá constituir a obra, com ela compartilhando tra­ jetórias diferenciadas em torno de um mesmo impulso criativo. Neste caso, o dis­ curso é também criação - remetendo a um universo em que confluem narrativas interpretativas, poéticas, analíticas e ficcionais, caro ao próprio Deleuze, quando define a filosofia como "a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos". Pela cumplicidade exibida junto à obra de arte de que falam, esses textos não se contentam em gravitar em torno ou ocupar um espaço privilegiado ao redor do objeto: ao se aventurarem pela criação, constroem também para si um tipo de espaço, envolvendo igualmente a obra ao mesmo tempo em que são envolvidos por ela. O discurso criativo não contorna o objeto plástico a uma distância ceri­ moniosa, mas efetivamente atravessa-o e é por ele atravessado. Como terceira possibilidade, encontramos aqueles textos em que os próprios produtores de visualidade - os artistas - referem-se ao seu trabalho. Surgidos da necessidade de localizar as principais questões em que as obras estariam inseridas, tais discursos compartilham de uma proximidade física quase absoluta com a produção plástica. Ausência de distância que impossibili­ ta, por um lado, a visibilidade de certas questões, uma vez que o olhar do outro nunca poderá ser plenamente substituído, por mais que o artista se esforce na tarefa de constituir-se no outro de si mesmo. Por outro lado, tal proximidade implicaria um envolvimento muito mais intenso deste discurso com as condições do momento de formação da obra - uma cumplicidade absoluta, quase que superposição das matérias expressivas verbais e visuais. Neste ponto poderemos apontar uma importante diferenciação entre os momentos moderno e contem­ porâneo: o artista moderno adota, basicamente, o manifesto como principal modalidade discursiva - que se soma às obras mas não se confunde com elas. A obra de arte moderna é instrumento na luta por uma pureza plástica, na con­ quista da expressão puramente visual, através da exploração de elementos específicos, incompatíveis com outras disciplinas, que resguardariam e procla­ mariam a autonomia da obra de arte; os manifestos, em sua maioria, declaram, detalham e especificam tais princípios. Ainda que exibam uma proximidade máxima com a obra em sua origem, os manifestos permanecem, entretanto, atrás de um limite nítido que dela os separa. Ambas as formas afirmam suas especifi­ cidades, resguardando fronteiras. Já no momento contemporâneo ou pós-moderno, o lugar do texto produzido pelo artista não é mais aquele do manifesto. Tanto a crescente assiGÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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milação da arte moderna pela instituição - Ronaldo Brito observa que a pro­ dução contemporânea só vai se manifestar no “choque com o circuito [de artel , uma vez que não existe mais o “Território das Vanguardas (...), momento em que a produção estava radicalmente à frente do local onde operava a InstituiçãoArte"(23) _ quanto a efetivação do processo de demarcação do campo ampliado da arte colaboram para uma aceleração dos tempos de fruição e consumo da obra, seja em direção a uma crescente eficiência institucional (no primeiro caso) ou a uma aproximação das esferas da vida individual e social (no segundo). No entrecruzamento das duas trajetórias, observamos que enunciados e visibili­ dades passam a confrontar-se num mesmo tempo, no mesmo espaço, em ação mútua e combinada, como partes de um mesmo processo: a palavra migra para dentro da obra. Diferentemente das possibilidades do discurso oficial (enuncia­ do que obscurece a obra) e do texto criativo que rastreia sua dimensão sensível (enunciado cúmplice), o texto do artista trabalha com a eventual simultaneidade na formação do agregado enunciado/visibilidade. Para o artista moderno, a sin­ cronia dessas temporalidades era dificultada por seu engajamento na conquista da pura linguagem visual, e o manifesto freqüentemente precedia ou sucedia o objeto plástico. Mas o artista contemporâneo encontra condições de compactar esse intervalo de tempo, fazendo com que signo plástico e enunciado verbal aproximem-se de um mesmo instante, partes simultâneas e diferenciadas do mesmo processo: o enunciado criativo e seu espaço próprio deslocam-se para o interior da obra, na qualidade de elementos de sua estrutura. Desta forma, ao abrir-se à instantaneidade do enunciado a obra abandonaria o caráter de “unici­ dade, privacidade e inacessibilidade" próprios da experiência moderna - que trabalhava com a “ilusão de que no centro da matéria inerte havia uma fonte de energia que a moldava e lhe trazia vida"(24), a permanecer lá como enunciado intocável —, possibilitando que os significados originem-se efetivamente na atu­ alidade da experiência, sem que resistam sob a forma de uma interioridade fixa e inatingível. Tal deslocamento da palavra para o interior da obra testemunha a condição enunciativa contemporânea do artista, agora mais próxima da articu­ lação quase instantânea de práticas visuais e práticas discursivas. A proliferação, a partir dos anos 60, de textos de artistas (textos teóricos, ensaios, proposições, aforismos, depoimentos etc><25>, a multiplicação de experiências com meios audiovisuais - gerando o cinema de artista e a videoarte <26> - e a crescente uti­ lização da palavra como parte da materialidade da obra - ora um elemento a mais ao lado de outros estímulos visuais, ora trabalhada em sua espessura mate­ rial ou contextuai (2?) - podem ser vistas dentro dessa nova possibilidade. 382

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Duchamp: Objeto e Nome

Talvez seja útil relacionar, rapidamente, essas observações com o processo plástico desenvolvido por alguns artistas, de modo a ver como as idéias aqui discutidas podem confrontar-se com obras e procedimentos. De maneira concisa, vamos traçar algumas considerações acerca de Marcei Duchamp, Arte Conceituai (Joseph Kosuth, On Kawara) e Hélio Oiticica. Mareei Duchamp é unanimemente apontado, dentre os artistas modernos, como precursor da contemporaneidade. Somente a partir dos anos 50 surgem as primeiras obras a dialogar diretamente com sua produção - Jasper Johns e Robert Raushenberg, por exemplo, através da leitura renovada que John Cage propõe dos três artistas -, retirando-a de uma posição parcialmente lateral em relação ao circuito e lançando-a para a dianteira dos novos acontecimentos. Muitas das questões suscitadas pela obra de Duchamp, como o conceito de apro­ priação do objeto produzido industrialmente ou a noção de um circuito institu­ cional da arte como determinante legitimadora da obra, serão seguidamente exploradas: se por um lado, hoje, a noção de ready-made transformou-se em quase um sinônimo de procedimento artístico contemporâneo, por outro tornouse possível perceber com maior clareza alguns registros particulares da inter­ venção duchampiana. Assim, as manobras de Duchamp podem ser localizadas em termos de sua articulação dos campos verbal e visual, a partir dos traços de "um empreendimento nominalista que não somente perturba e reinventa a relação, aparentemente estável e natural, que liga as palavras às coisas (...) mas que sobretudo redefiniu ou indefiniu o sentido da palavra arte, a qual não se funda mais sobre as condições a priori de produção da obra (...) mas a partir das condições a posteriori de sua recepção, através do preenchimento das condições de enunciação de 'isto é arte' por três instâncias que se entrecruzam: autor, públi­ co e instituição. O ato plástico duchampiano se realizaria no intervalo que sepa­ ra e que liga a palavra e a coisa, um intervalo de indeterminação, de acaso e liber­ dade (...)."(28) Como escreve Thierry de Duve, "saber que esta pá de neve é arte é ser simplesmente informado; acreditar é absurdo, é ceder espaço à magia do artista, tombar sob a fascinação do fetiche. O que 'faz arte' deste artefato não é a pá de neve enquanto objeto, mas a frase que a designa como obra de arte."(29) A importância atribuída por Duchamp ao papel de um campo enunciativo em fun­ cionamento simultâneo com a obra irá se revelar ainda em sua oposição à "ten­ dência retiniana da pintura dos últimos cem anos" - referindo-se à trajetória ini­ ciada pelo impressionismo e que teria seu apogeu no expressionismo abstrato. Pintura retiniana identificaria uma arte puramente ótica, presa ao uso das tintas como um fim, "em que o prazer estético depende quase que exclusivamente da GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Marcei Duchamp Cylindre sexe

impressão da retina, sem apelar para nenhuma outra interpretação auxiliar."!30) Segundo Duchamp, a pintura impressionista, por exemplo, tornou-se vítima da paixão pelo pigmento ; mesmo o Cubismo é acusado de um 'desvio retiniano'. Iniciando sua produção artística significativa em disputa direta com os limites da pintura cubista (segundo Argan, a tela Nu Descendo a Escada n° 2 (1912-16) põe em crise o Cubismo analítico Cb), Duchamp procura "colocar a pintura a sei\ iço da mente , concebendo uma pintura-idéia como ato extremo de sua fuga anti-retiniana - pintura que é também objeto, organizada com consci384

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ência da materialidade do suporte: sua principal obra, A Noiva Despida por seus Celibatários, mesmo (1915-23), o Grande Vidro, revela a estratégia de impregnação de um objeto plenamente visual por um campo enunciativo sincrônico. A edição, em 1934, da Caixa Verde - contendo 93 notas, cálculos, desenhos e anotações rea­ lizadas durante o processo de elaboração do Grande Vidro -, torna claro que texto e imagem funcionam como 'simultaneidades diferenciadas' que se superpõem, evitando uma apreciação puramente retiniana. Do mesmo modo, ao referir-se aos trocadilhos, com que freqüentemente nomeia suas obras, como "jogos de palavras tridimensionais", Duchamp caracteriza uma estrutura verbal com pre­ sença no espaço, estabelecendo em relação ao objeto plástico um procedimento discursivo disjuntivo, em que as conexões palavra/objeto são re-traçadas a par­ tir das marcas produzidas por cada uma das matérias sobre a outra, no vazio deixado pela ruptura de uma adequação natural entre ambos os campos. A possibilidade de trabalhar a dimensão conceituai da obra, sem prejuízo da autonomia plástica, é um dos fatores decisivos na ampliação do campo da arte durante os anos 60. Ver-Ler

Demonstrada a possibilidade da simultaneidade entre práticas de visibilidade e práticas de enunciação, os artistas contemporâneos vão concentrar suas investigações em partes específicas deste mecanismo. As investigações da arte conceituai, por exemplo, terão nas palavras e conceitos os seus únicos mate­ riais, conduzindo a trabalhos em que o objeto plástico reduz-se praticamente à estrututra de suporte das palavras (que pode ser um fichário, mapa, revista, carta, cartão-postal, telegrama, documento, telex, neon, recibos, cartazes, dese­ nhos, pinturas, fotografia, filme, etc): daí não ser totalmente precisa a referência a esta corrente como 'arte desmaterializada', uma vez que os suportes não são escolhidos incidentalmente, mas de modo a buscar uma adequação entre a estratégia de ação utilizada e a matéria-suporte escolhida. Seja um documento registrado em cartório (Robert Morris, Declaração de despojamento de um conteú­ do estético, 1963), um telegrama (Robert Raushenberg, This is a portrait o f íris Clert if 1 decided, 1961), um anúncio classificado publicado em páginas de jornal (Joseph Kosuth, Segunda Investigação, Sinopse de Categorias, 1968) ou uma série de convites para uma exposição (Robert Barry, Invitation piece,1972-73), todos estes trabalhos constroem um funcionamento e modo de circulação específicos, de acordo com as características - materiais, inclusive - de cada proposta. A componente 'desmaterializada' da obra conceituai não seria, então, diferente daquela dimensão 'invisível' ou 'imaterial' constitutiva do campo enunciativo, GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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presente em qualquer obra de arte; por outro lado, o investimento dos trabalhos em uma apresentação mais intensa desta dimensão - através da palavra como elemento visual dominante, por exemplo - , conduz ao engajamento da per­ cepção em um gesto de "ver-ler".(32) Existe ainda aí a sugestão de um desloca­ mento, em direção ao público, do processo de agenciamento simultâneo e dis­ juntivo dos campos verbal e plástico, configurando talvez um tipo específico de campo vivencial para o espectador, expresso na deflagração de certos processos mentais-corporais, tais como produção de imagens, narrativas, cadeias de asso­ ciações-livres, mecanismos de articulação conceituai, etc. Kosuth: Artista como Crítico

O artista norte-americano Joseph Kosuth tem desenvolvido, desde fins dos anos 60, pesquisas consideradas pioneiras dentro das linhas de ação da arte conceituai. Na primeira fase de seu trabalho (até 1975, quando então, após reavaliação, passa a buscar maior "fluência em sua própria cultura" (33>), concentra-se em investigações em torno da noção de arte enquanto proposição de caráter lingüístico, que "exprime definições de arte ou as conseqüências formais dessas definições"(34) ; a arte passa a ter como valor o questionamento de sua própria natureza ("o valor do Cubismo - por exemplo - é sua idéia no campo da arte e não as qualidades físicas ou visuais (...) pois tais cores ou formas são a 'lin­ guagem' da arte e não seu significado conceituai enquanto arte"). Kosuth iden­ tifica o trabalho de arte com as "proposições analíticas", - aquelas cuja validade "depende apenas das definições dos símbolos que contém ", isto é, "não veicu­ lam definições sobre outra coisa" - considerando-o com o "um a tautologia", uma vez que "a 'idéia de arte' (ou 'trabalho') e a arte são a mesma coisa e podem ser apreciadas enquanto arte sem sairmos do contexto da arte para verificação": qualquer trabalho ao qual o artista dê o nome de arte é arte. Fazer arte é "apre­ sentar novas proposições quanto à sua natureza (...) dentro do contexto da arte, como um comentário da própria arte". A circularidade lingüística deste discurso é trabalhada plastica­ mente dentro da série Ai t as Idea as Idea (1966 a 1975), que compreende desde as primeiras montagens utilizando verbetes retirados de dicionário (definições das palavras "square", "theory", "w hite", "art", "w ater", entre outras), passando pelos conjuntos compostos de um objeto, sua fotografia e a definição em dicionário do objeto (Unia e três cadeiras, 1966), até as inserções em jornais e outdoors, no espaço urbano, e instalações com mesas e cadeiras no interior da gale­ ria ou do museu, que convidam à participação do público. Em Uma e três cadeiras o espectador é submetido à experiência disjuntiva de relacionar, instan386

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Joseph Kosuth Text / Context New York, 1979

taneamente, uma cadeira, sua fotografia e a definição da palavra 'cadeira', vivenciando um entrecruzamento de objetos, imagens e enunciados de diferentes qualidades - cada um dos três elementos deixa de ser puro texto ou pura imagem para tornar-se, ao mesmo tempo, matéria em movimento entre os dois pólos, rompendo assim qualquer hierarquia ou traço idealista correspondente à adequação natural entre coisa e nome. Em textos mais recentes, Kosuth, reconhecendo "a atividade crítica como paralela à arte" - afinal, a "arte conceituai procura internalizar a função da crítica" - mantém a existência de uma "diferença ontológica a separar a crítica em geral da atividade 'crítica' do artista." Se considerarmos especificamente o texto produzido pelo artista, "existiria ainda alguma distinção a ser feita entre um trabalho de arte e um texto sobre a r t e ? " ^ Kosuth procura demonstrar que "textos sobre trabalhos de arte são experienciados diferentemente de textos que são trabalhos de arte", estabelecendo uma distinção entre "teoria primária" aquela "engajada como parte de uma prática" e "teoria secundária" - que "fala sobre arte como uma atividade paralela ao fazer artístico". A teoria primária está comprometida com a presença da arte como "parte do mundo, (...) nomeando-a como um evento no espaço social e cultural", cuja elaboração envolve certa interiorização de processos culturais: a arte assim cumpriria seu duplo papel de "[prover] não somente uma reflexão acerca de si própria, como também uma reflexão indireta sobre a natureza da linguagem e da cultura." Já a teoria GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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secundária aproxima-se da arte enquanto um "objeto externo para ser discuti­ do", tentando "explicar o mundo que aquela presença externa representa . Kosuth caracteriza esta tentativa como um comentário "sem pés no chão <vvithout feet>(...) fornecendo significados sem um evento contexto <event context> que comprometa socialmente uma responsabilidade subjetiva pela produção de consciência."(361Aí residiria, para Kosuth, o principal traço da "ontologia diver­ sa" do texto do artista: "ao assumir responsabilidade subjetiva por nossa pro­ dução cultural, não podemos apelar a um 'afastamento objetivo' pseudo-cientí­ fico". Enquanto texto cúmplice de uma prática, "teoria primária" a se confundir com as obras, o texto do artista é posicionado aqui em termos de instrumento único de resistência ao processo de institucionalização da arte contemporânea. Diagnosticando que em "nosso tempo presente Pós-moderno os tradicionais raciocínios historicistas da arte têm se transformado cada vez mais em um processo de validação do mercado e não em compreensão histórica", ao constru­ ir um "contexto no qual o mercado produz o sentido e estabelece o valor"(37), Kosuth insiste na presença da escrita do artista enquanto dispositivo de cons­ trução e exame "dos usos dos elementos e funções do trabalho dentro de seu amplo quadro sócio-cultural", constituindo-se, ao lado da obra, em "investi­ gação dentro da produção de sentido na cultura."(38) On Kawara: Verbalização do Instante

Também ligado à Arte Conceituai, o japonês On Kawara processa a relação entre campo visual e campo discursivo em termos da preocupação em fixar um instante, elevando-o à categoria de acontecimento artístico, através de seu registro repetido em objetos/textos. Resgatados como datas, coordenadas geográficas, recortes de jornais, listas de nomes, telegramas ou cartões postais, inscritos em telas, desenhos ou organizados em fichários, os 'instantes' conquis­ tam uma espessura entre a rapidez impessoal da referência autobiográfica e sua duração posterior enquanto objeto. A série de pinturas Date Paintings, iniciada em 1966, consiste de pequenas telas (20,5 x 25,5 x 4,5 cm) com inscrições em sua superfície indicando dia, mês e ano: JAN. 15, 1966 ou JAN. 18, 1966, por exem­ plo. Cada uma das telas é executada no dia mesmo da data indicada sobre ela. (...) Se por uma razão ou outra uma tela não é terminada no mesmo dia, ela é destruída. Já a série de cartões postais, compreendendo cartões enviados diariamente, de 1968 a 1979, para pessoas conhecidas, registra sempre a frase "I got up , seguida da indicação da hora em que esta ação foi realizada, a cada dia: I got up at 6:57 AM", "I got up at 9:30 AM", "I got up at 6:12 AM", "I got up at 8:30 AM" etc. A repetição do registro de datas e horários ou a indicação de 388

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pequenas ações, não ocorre aqui como nostalgia ou memória de acontecimentos especiais: sua insistência mecânica afasta qualquer tentativa de fetichização de locais ou comportamentos, descritos de maneira sucinta, com economia verbal. Esses trabalhos interessam pela radicalidade com que investem no registro do instante (ainda que banalizado, repetitivo, cotidiano), despojado de qualquer elemento excedente. O sucesso deste procedimento deve-se não só à formação de um conteúdo verbal simultâneo ao exercício de adequação do enunciado a um suporte, veículo ou objeto, mas também à articulação destas duas matérias com séries de gestos e ações. A mesma tríplice articulação está presente nos telegra­ mas enviados no início dos anos 70 a amigos, curadores e artistas, em que On Kawara fornece pistas acerca de sua vida: "I am not going to commit suicide don't worry"; "I am not going to commit suicide worry"; "I am going to sleep forget it"; "I am still alive". Cada mensagem anuncia o momento em que foi ir mcim : uum < t»t nun. Briartx nun »d<escrita, incorporando este instante no encadeamento t M «OT * Tc » « stftcxnr awrr w w rr telegráfico das palavras - que tm CAVAR* reverberam a fugacidade de um gesto sem qualquer qualidade senão a sua própria presença. q iv

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Oiticica: Parangolés e Transobjetos

Toda a obra de I lélio Oiticica está marcada pela pre­ sença intensa e insistente da palavra e do texto, seja enquanto elemento inscrito na estrutura física do objeto, seja como formu­ lação reflexiva acerca do próprio processo. Esta condição singula­ riza a apreensão de seu trabalho, estando cada nova peça sempre envolta numa teia conceituai a iluminá-la. Ou, ainda, experimen­ tar cada proposição é também descobrir frases, poemas ou

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palavras de ordem, dentro de bólides, estampadas em parangolés ou exibidas em bandeiras e estandartes. Assim, é possível abordar a produção plástica e tex­ tual de Oiticica "como uma só atividade, uma corrente incessante de in\ enção e pensamento", em que as obras são inter-relacionadas em um sistema de títu­ los, gêneros e ordem conceituai (...) simultaneamente, sem que um 'ilustre' ou 'explique' o outro" - retrato da envergadura da tarefa a que o artista se dispôs, de "face às categorias de arte existentes (...) propor o seu próprio sistema de ordens que se cingiriam e entrelaçariam em todos os níveis, do objeto ao corpo, à arquitetura, a 'totalidades ambientais' incorporando o 'dado' e o construído, a natureza e a cultura."(40) Elementos posicionados junto a suas obras, os textos de Oiticica desempenhariam, em sentido complementar mas quase que inverso àquele experimentado por Kosuth, o papel de fundação e afirmação de seu projeto plástico, enquanto que para o artista americano trata-se de oferecer resistência ao mecanismo institucional, preservando em aberto a tarefa autoreflexiva da arte. Ao incorporar diversos tipos de frases na elaboração dos Parangolés (41) _ capas confeccionadas em diversos materiais, para serem vestidas, rea­ lizadas a partir de 1964 - , percebe-se como Oiticica acrescenta ainda outra dimensão - a verbal - ao que chama de "ciclo de participação": nestas obras, originalmente propõe "o interfluxo entre dois modos de participação: 'vestir', no qual a pessoa explora, corre ou dança na capa para seu próprio prazer, e 'ver', onde outros absorvem a mensagem projetada por esta veste-enunciado."*42) Experimentar o próprio corpo e "assistir" ao outro, "revelam a instituição de um espaço intercorporal criado pela obra", cujo desdobramento vivencial produz a transformação do 'indivíduo no mundo, diferenciado e ao mesmo tempo coleti­ vo em participador como centro motor, núcleo (...) simbólico, dentro da estrutura-obra. (4^) Identificando o Parangolé como interface deflagradora desse processo de "iniciação às estruturas perceptivo-criativas do mundo ambiental", Oiticica estabelece a dimensão verbal como um dos elementos constitutivos desta interface, na medida em que "assistir" também compreende o gesto de ver-ler enquanto ação corporal. As diferentes frases incorporadas à estrutura das capas funcionam como sinalizadores, voltados para a interligação do corpo individual e do corpo coletivo, estabelecendo ora uma vocalização individual ("Estou possuído", "Sexo, violência, é isso que me agrada"), ora coletiva ( Estamos famintos", "Da adversidade vivemos"), com sonoridades que variam do comportamental ao político, na confluência destes pólos. í44) Outro aspecto importante na obra de Hélio Oiticica que indica uma interessante conexão das regiões do verbal e do visual relaciona-se com seu con390

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ceito de "transobjetos", criado para iden­ tificar características próprias aos Bólides, que desenvolve a partir de 1963. Procurando explorar novas questões, que já conduziam sua obra para além das pesquisas neoconcretas, os Bólides mar­ cam a adoção do procedimento de 'apro­ priação' do objeto comum, arrancado do cotidiano e reprocessado enquanto obra de arte. Ora, dentro dos textos pro­ gramáticos do neoconcretismo, o gesto de apropriação é desqualificado, em sua impotência para tornar o objeto "trans­ parente à percepção" e convertê-lo em um "não-objeto": o objeto é "um ser híbrido, composto de nome e coisa, como duas camadas superpostas das quais uma ape­ nas se rende ao homem - o nome. O nãoobjeto, pelo contrário, é uno, íntegro, fran­ Hélio Oiticica co. A relação que dispensa com o sujeito Bólide vidro 4 terra, 1964 dispensa intermediário. Ele possui uma significação também, mas essa signifi­ cação é imanente à sua própria forma, que é pura significação." Em outro texto, a "técnica de ready-made" de Marcei Duchamp é apontada como limitada, por "fundar-se menos nas qualidades formais do objeto que na sua significação, nas suas relações de uso e hábito cotidianos. Em breve aquela obscuridade carac­ terística da coisa volta a envolver a obra, reconquistando-a para o nível comum."(45) Parece ficar clara a necessidade experimentada por Oiticica de fun­ dar outra referência conceituai para os Bólides, uma vez que a cartilha neoconcreta indicava um impasse teórico quanto à adoção dos procedimentos de apro­ priação. Oiticica especula acerca da "contradição dos termos 'estrutura da obra' e 'estrutura do objeto' ", que localiza no trabalho dos norte-americanos Jasper Johns e Robert Raushenberg, identificando-a a partir do procedimento de "incor­ poração a posteriori (...) da 'coisa' como 'elemento da obra' ", resultando em uma "pseudo-identificação do [objeto] com a sua estrutura". É na operação de "identificação a priori de uma idéia com a forma objetiva que foi 'achada' depois" que ocorre a "justaposição virtual dos elementos (...), a identificação da estrutura [do objeto] com a da obra"; "participar de uma idéia universal sem GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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perder sua estrutura anterior [é] a desig­ nação de 'transobjeto' adequada à experi­ ê n c i a ." ^ Desta forma, Oiticica não se recusa a explorar o espaço disjuntivo, aberto por Duchamp, entre o objeto e sua desig­ nação, ao mesmo tempo em que também não recua frente à exploração do sentido fenomenológico am plo da experiência sensível, indicando um novo trajeto de pesquisa: uma apropriação qualquer não se contrapõe à instauração de um campo vivencial, à "fu n d ação do objeto." Espécie de 'anti-estética sensorial', seus experim entos subseqüentes irão com­ partilhar com Lygia Clark diversas questões, envolvendo a presença do cor­ po como ponto central - um corpo que se deixa re-significar e renomear, indicando Hélio Oiticica uma estreita correlação com o transobjeParangolé, Nildo da Mangueira com P 15 to. Antonio Cícero observa que "quando Capa 11, Incorporo a Revolta, 1967 alguém veste um Pnrangolé, compõe com ele um novo transobjeto", indicando um novo modo de fruição que "não pertence a qualquer das artes tra­ dicionais", mas que também "[não] se relaciona com a expectativa [antiartística] do fim da arte ou do fim da obra de arte": ainda que seja somente colocado em funcionamento por quem o veste, "o Paratigolé não deixa de ser obra, (...) recusa-se a abandonar o âmbito da arte e se afirm a irredutivelmente como obra." (47) É enquanto possibilidade de um duplo funcionam ento, em que as articulações do verbal e do visual escapam para fora do cam po da arte - trans­ formando-o sem, entretanto, aniquilá-lo - que parece ser importante conside­ rar as particularidades conceituais do transobjeto. Em todo o seu percurso artístico, Oiticica ,amais abriu mão da presença da palavra dentro da obra, ^ l t „ l ! r , ml P0U_C0Sar' ,SteS: e* ‘ raÍr conse^ ê n c ia s decisivas dessas relações. Impregnadas de uma radicalidade ao mesmo tempo poética e conceituai, suas LTePe 3 a ento0 n t tUem"Se “ * Ímp° rtanles referenciais a ilum inar a prática da arte enquanto intervenção e produção de pensamento. 392

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Notas (1 ) O aparecimento das categorias de "não-objeto" (Ferreira Gullar, 1960) e "obje­ tos específicos" (Donald Judd, 1965), enquanto formas híbridas entre a pintura e a escultura, pontuam alguns lances iniciais deste processo: "... a pintura e escultura atuais convergem para um ponto comum, afastando-se cada vez mais de suas origens. Tornam-se objetos especiais - não-objetos - para os quais as denominações de pintura e escultura já talvez não tenham muita propriedade." (Gullar, Ferreira. 'Teoria do Não-Objeto", in Cocchiarale, F. e Geiger, A. B.. Abstracionismo Geométrico e Informal, Rio de janeiro, Funarte, 1987, pp.237-241); "Pelo menos metade dos melhores trabalhos novos realizados nos últimos cinco anos não são nem pintura nem escultura. (...) este trabalho que não é pin­ tura nem escultura ameaça ambas as categorias. Terá que ser levado em conta pelos novos artistas, pois provavelmente transformará a pintura e a escultura." (Judd, Donald. "Specific Objects", in Harrison, C. e Wood, P.. Art in Theory1900-1990, Oxford, Blackwell, 1992, pp. 809-813). ( 2 ) Deleuze, Gilles. Foucault, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 60. ( 3 ) Deleuze, G. op. cit., p. 61. ( 4 ) Caracterizaremos aqui um perfil do 'contemporâneo' a partir das indicações propostas por Ronaldo Brito, extremamente precisas, visivelmente marcadas por uma "crítica institucional": confronto com a noção modernista assimilada; linguagens que só se definem no choque com o circuito; desaparecimento da nitidez genealógica da História da Arte; amontoado de teorias coexistindo em tensão; hegemonia americana e não européia; raciocínio político como modali­ dade de trabalho crítico; raciocínio analítico para uma intervenção eficiente na materialidade da arte; arte como uma empresa do sistema. (Brito, Ronaldo. "O Moderno e o Contemporâneo (o novo e o outro novo)", in Arte Brasileira Contemporânea - Caderno de Textos 1, Funarte, Rio de Janeiro, 1980, pp. 5-9) É importante advertir que usaremos aqui 'contemporâneo' e 'pós-modemo' como sinônimos. ( 5 ) Rosenberg, Harold. "Desestetização", in Battcock, Gregory. (Org.) A Nova Arte, São Paulo, Perspectiva, 1975, p. 223. ( 6 ) Rosenberg, H. op. cit., p. 217. ( 7 ) Krauss, Rosalind. "A Escultura no Campo Ampliado", in Gávea, Rio de Janeiro, n°l, p. 93. ( 8 ) Krauss, R. op. cit., p. 93. Krauss procura localizar o espaço lógico ocupado pela escultura a partir das seguintes oposições: paisagem/arquitetura, não-pais­ agem/não-arquitetura, escultura/local-construção, locais demarcados/estruturas axiomáticas. (9 ) Venturi, Lionello. História da Crítica de Arte, São Paulo, Martins Fontes, 1984, p. 36. Venturi observa que este gênero de literatura surge no século XVIII (ainda em um período pré-modemo) junto com as exposições de arte, e que Diderot é o primeiro nome que se destaca. (10) O filósofo Vilém Flusser observa que "os primeiros letrados (por exemplo os profetas judeus e os pré-socráticos) [engajaram-se] violentamente contra as imagens, considerando-as alienantes ('pecados', 'erros')". Flusser, Vilém. "Texto/imagem enquanto dinâmica do Ocidente", in Cadernos Rioarte, Rio de Janeiro, ano II, n°5, janeiro de 1986, pp. 64-68. (11) Venturi, L. op. cit., p. 263. (12) Venturi, L.op. cit., p. 264. (13) Baudelaire, cit. por Venturi, L., op. cit., p. 207. (14) "Sabe-se que uma das tarefas mais contraditórias a que Baudelaire se determi­ nou era absolver a pintura de Delacroix da acusação de que era literária (quer

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dizer, da intrusão em seu interior de um m eio de expressão heterogêneo)" (Alain-Bois, Yve. "Historização ou Intenção: O Retom o de um Velho Debate , in Gávea, Rio de Janeiro, ri'6, 1988, p. 110) Alain-Bois, Y. op. cit., p. 110. Y.Alain-Bois com enta que estas idéias irão cristali­ zar-se novamente "no início dos anos 20, nos textos dos primeiros pintores abs­ tratos não-expressionistas", como Mondrian, por exemplo, e também imedi­ atamente após o fim da II Guerra Mundial, nos escritos da critica foimalista americana, a de Clement Greenberg e daqueles que ele influenciou", (p. 111) Michel Foucault, cit. em Deleuze, G. op. cit., pp. 74-75. Deleuze, G. op. cit., p. 73. Francastel, Pierre. A Realidade Figurativa, São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 97. "O signo figurativo não constitui jamais o duplo, o equivalente de um elemento, desligado do real (...). Se não se compreende que existe um desvio entre a coisa representada e sua significação, não se pode 1er o signo", p. 97. Deleuze, G. op. cit., p. 76. Deleuze, G. Proust e os Signos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987, p 41. Machado, Roberto. Deleuze e a Filosofia, Rio de Janeiro, Graal, 1990, pp. 171-172. Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Qu'est-ce que la Philosophie?, Paris, Minuit, 1991, p.8. Brito, R. op. cit, pp. 6-7. Krauss, Rosalind. Passages in M odem Sculpture, New York, Viking Press, 1977, pp. 252, 259. Artistas como Yves Klein, Ad Reinhardt, Robert Morris, Donald Judd, Robert Smithson, Allan Kaprow, Joseph Kosuth - no Brasil Lygia Clark, Hélio Oiticica, Cildo Miereles, Jorge Guinle, Carlos Zilio - , entre outros, possuem textos efeti­ vamente posicionados ao lado de suas produções. ver Canongia, Lígia. Quase Cinema - Cinema de Artista no Brasil 1970/1980, Rio de Janeiro, Funarte, 1981. Os artistas Jasper Johns, Ben Vautier, Ed Ruscha, Roy Lichtenstein, Laurence Weiner, Joseph Kosuth, Anselm Kiefer, Barbara Kruger, Jenny Holzer, Lothar Baumgartem, Mira Schendel, Hélio Oiticica, Antonio Dias, Antonio Manuel, Cildo Meireles, Waltércio Caldas, Nuno Ramos, Fernanda Gomes, Rosângela Rennó, entre muitos outros, trabalham constantem ente com a presença da palavra em suas obras ou o fizeram em algum conjunto particularmente signi­ ficativo de trabalhos. Também tenho encam inhado meus projetos plásticos nessa direção.

(28) Lang, Luc. "L'Art et les Mots: notes de réserve sur l'histoire", in Artstudio, Paris, n° 15, 1989, p. 9. (29) de Duve, Thierry. Résonances du readymade. cit. por Lang, Luc. op. cit., p.9. (30) Duchamp, Marcel. "Daqui, para onde vam os?", in Leia Arte, Rio de Janeiro, Funarte, 1987. (31) Argan, Giulio Carlo. Arte moderna, São Paulo, Com panhia das Letras, 1992, (32)

Joseph Kosuth refere-se ao espectador como "reader-view er". Embora com enormes diferenças entre as propostas, existem aí tangências com as poesias concreta e neoconcreta, em termos de uma m obilização "verbivocovisual" ou participante do espectador, respectivamente. (33) Kc«uth, Joseph. "The Artist as Anthropologist", in Art After Philosophy and After -Collected Writings, 1966-1990, Cambridge, MIT Press, 1991, p.120 (34) Kosuth, Joseph. "A rte depois da Filosofia", in M alasartes, Rio de Janeiro, n°l, (35) Gl//e^ ' w 394

7brÍele' Intr° dL^ ° 3 Küsuth' J ' Art Philosophy and After " mgS' PP- xxl' xln Já em 1970, Kosuth escrevia: "Devido à dualidade

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RICARDO BASBAUM

c.‘ntrc‘ percepção e concepção implícita na arte anterior, um intermediário <• í.ddle-man> (crítico) parecia ser útil. Esta arte [conceituai] anexa as funções do crítico e torna desnecessário o intermediário." "Introductory Note to ArtLanguage by the American Editor", in op. cit., p.39. (36) Kosuth, J. " The Play of the Unsayable: a Préfacé and Ten Remarks on Art and Wittgenstein", in op. cit., pp. 246-250. (37) Em "Análise do Circuito", Ronaldo Brito comenta que "ao vender trabalhos o mercado não vende apenas o objeto mas uma determinada leitura dele"; in Maintîntes, Rio de Janeiro, n°l, 1975. (38) Kosuth, J. "History For" e "The Play of the Unsayable", in op. cit., pp. 239-243 e 246-250. (39) L'Art Conceptuel, mie Perspective, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 2 2 /1 1 /8 9 a 18/02/90, p. 184. As Date Paintings não se resumem às telas: " (...) A data é pintada em branco sobre um fundo monocromo que pode ser diferente de uma pintura a outra. Cada tela possue um subtítulo. Cada pintura é conser­ vada numa caixa de cartão sob medida, contendo um recorte de um jornal diário local. As informações a respeito das Date Paintings produzidas durante um ano são ordenadas em um 'Diário', dentro de um fichário, redigido na lín­ gua do país onde On Kawara passou o primeiro dia daquele ano ou em esperanto. Um calendário desse país é utilizado para repertoriar as datas e dimensões das telas. As amostras da cor empregada em cada pintura são tam­ bém armazenadas, assim como a lista de subtítulos das Date Paintings, escritos na língua do país onde On Kawara reside no momento de sua realização ou em esperanto. Os 'Diários' dos anos 1966 a 1972 contêm além disso fotografias evocando lugares próximos." (40) Brett, Guy. "Notas sobre os Escritos", in Hélio Oiticica, Paris, Jeu de Paume, 1992, pp.207-208. (41 ) Algumas frases incorporadas nas capas: "Capa da Liberdade", "Sexo, violência, é isso que me agrada", "Incorporo a Revolta", "Da adversidade vivemos", "Estou possuído", "Estamos famintos". Cit. p. Brett, Guy. "O Exercício Experimental da Liberdade", in Hélio Oiticica, p. 229. (42) Brett, G. op. cit., p. 229. (43) Oiticica, Hélio. "Anotações sobre o Parangolé", in op. cit., pp. 93-96. (44) Wally Salomão aponta com precisão e humor o papel fundamental das estru­ turas verbais na demarcação do espaço das obras de Hélio Oiticica: "Não dá para imaginar o personagem de Disney, Zé Carioca, usando a capa 'ESTOU POSSUÍDO' ou a capa 'INCORPORO A REVOLTA'. Ou então as mulatas escul­ turais-pitorescas da casa de espetáculos para turistas 'Oba Oba do Sargentelli' ou do show 'Brasil Dourado' da Churrascaria Plataforma ter como ambientação o que denomino estandarte anti-lamúria: DA ADVERSIDADE VIVE­ MOS." "HOmmage", in Hélio Oiticica, pp. 240-245. (45) Gullar, F., op. cit., e "Diálogo sobre o Não-objeto", in Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950-1962), (Org.) Amaral, Aracy. Rio de Janeiro, MEC, MAM, São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977, pp. 90-94. (46) Oiticica, H. "Bólides", in op. c it, pp. 66-67. (47) Cicero, Antonio. "O Parangolé", in O Mundo desde o Fim, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995, pp. 183-191.

Este texto, revisto para publicação, foi apresentado originalmente como monografia para admissão no curso de Mestrado em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Jean-Honore Fragonard A Colhedora de Uva Fowler McCormick, Chicago


Rococó: a Expressão do Instante O presente artigo relaciona a arte rococó e a promoção do prazer sensível. Apoiado na corrente sensualista do pensamento filosófico da época, o Rococó persegue o prazer através do apelo à sensação. Contudo, como o prazer é efêmero faz-se necessário multiplicar e renovar as sensações que têm curto tempo de duração. Logo, tal arte será a expressão do instante. A partir daí, o artigo indica tais questões na obra de Watteau, Boucher e Fragonard, pintores significativos da época. Pintura Francesa Rococó Sensualismo

RAQUEL Q U IN ET PIFANO Formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC-RIO e aluna do programa de Mestrado em História Social da Cultura da PUC-RIO.

O século XVIII caracteriza-se por um crescente processo de secularização que ocorre não apenas no nível das idéias, mas também no nível das artes, dos costumes, da vida em geral. Tal processo significa um distanciamento, cada vez maior, ou mesmo uma tentativa de ruptura com a instância divina e o caráter teológico-metafísico que tanto marcam o século precedente. Dois grandes fatores influem nesta mudança de atitude: os avanços da ciência, com Newton, e o Empirismo Inglês. Para John Locke, as idéias derivam exclusivamente da expe­ riência que se tem do real. Somente a partir das sensações a alma produz idéias. A experiência do sensível é absolutamente necessária uma vez que proporciona a matéria sobre a qual a alma pensa. Deste modo, Locke rejeita o princípio das idéias inatas que dão margem a especulações de cunho teológico e o sentir ganha importância fundamental no desenvolvimento do pensamento. A promoção da experiência sensível logo é observada na arte do iní­ cio do século: o Rococó. Tal experiência realiza-se através do prazer, meio de se alcançar a felicidade. Considerando que todo homem busca a felicidade, mesmo aquele que vai se enforcar, segundo Pascal, não se pode ter o hedonismo como próprio ao século X V III(1), mas por outro lado, não se compreende o Rococó sem este fundo hedonista. Persegue-se a experiência do prazer por ele mesmo. A nova vivência do prazer provoca uma nova concepção de vida social onde os valores mundanos são legitimados e a consciência torna-se livre para experi­ mentar o desconhecido. Através do prazer o homem reclama sua excelência e GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Rococó: a expressão do instante

passa a ter por fim ele mesmo(2). Tem-se um novo ideal moral que entende o prazer como princípio fundamental, não mais como consequência de uma ação virtuosa, logo não se faz necessário justificá-lo. No plano da arte, o prazer não é fruto de um pré-julgamento racio­ nal. É anterior, apreendido por uma intuição imediata. O abade Du Bos, cuja obra "Reflexões Críticas sobre a poesia e a Pintura (1718) exerce grande influência so­ bre sua época, defende que o deleite de uma bela obra dá-se antes de qualquer reflexão. O raciocínio explica tal deleite a posteriori, ou seja, apenas legitima um prazer já sentido. A resposta ao estímulo da bela obra está menos a cargo da ra­ zão que do sentimento. É a primazia do sensível que tem como grande defensor Diderot. Para o filósofo, a observação estética pertence à categoria da percepção sensível, ou seja, ela desencadeia a participação ativa da imaginação, e não só da razão &). A imaginação ocupa papel significativo neste momento pois viabiliza o universo rococó, sobretudo o pictórico: é o mundo imaginário de uma felicidade desejada. A celebração deste mundo fictício tem sua maior expressão na pintura de Antoine Watteau (1684-1721), pintor que melhor sintetiza a arte do período. Uma vez que o mais importante é o prazer pessoal, tudo que está ligado diretamente à pessoa como móveis, vestuário, decoração interior tem sua importância aumentada. Se o gosto está submetido a um prazer individual, logo se reclamará o novo, a surpresa, a variedade. Daí a rápida sucessão das modas. O Rococó é uma arte do luxo que comanda a satisfação dos apetites, é uma arte da "saciedade". Contudo, o luxo rococó é menos para ostentar que para confor­ tar, é mais um meio de prazer - o que explica o surgimento nessa época do gosto pelos ambientes íntimos, os petits appartements, e pela decoração interior. Diderot defende a inocência do luxo quando a serviço do prazer, e o acusa de maléfico se destinado à ostentação O prazer faz parte do sentir; se é sobre a matéria sensível que se constrói o pensamento, se pensar é o meio de se tomar consciência da existência humana, logo a busca do prazer é um meio pelo qual o homem pode adquirir consciência de sua humanidade. Assim, a felicidade está estreitamente ligada à consciência da existência e como o prazer é efêmero, faz-se necessário multi­ plicar e renovar as sensações e, conseqüentemente, os pensamentos. Portanto, persegue-se o prazer mas sua fruição é um instante que logo se esgota. A arte deste período é a arte do instante, de expressão fugidia que não descreve cenas sucessivas, mas apresenta a sensação de um só momento. Não há um tempo onc lógico em um sentido linear, o tempo é o agora. Tudo se apresenta a um só momento. E a valorização absoluta do presente. Um tempo reduzido a instante que nao se fixa, um instante que imediatamente se esgota e, em conseqüência, se 398

C,ÁVEA. 13 (13), setembro 1995


RAQUEL QUINET PIFANO

Antoine Watteau Divertimentos Campestres, 1718 Coleção Wallace, Londres

multiplica. Tal temporalidade reduzida a um ponto sempre fugidio é simbolo de todas as experiências nesse período: é o tempo da conversação, o tempo da festa e também o tempo da pintura. O fugaz é o grande tema da pintura. Watteau pinta a graça do instante, aquele breve momento que não mais voltará. Suas fi­ guras humanas encontram-se em atitudes que não duram mais que segundos como um passo de dança, um gesto gracioso e espontâneo ou mesmo um olhar. O mesmo faz com suas paisagens, iluminadas por um raio que logo desaparece. Prefere as cenas ao ar livre as de interior, pois ao pintar a luz do sol, o movimento das árvores provocado pela brisa, enfim, todo aquele movimento da natureza que não pode ser percebido cm ambientes fechados, capta melhor o instante. Já as cenas de interior não lhe proporcionam a gama de recursos que o tornam o "poeta do fugaz" Em "Divertimentos Campestres" o movimento do corpo da criança que brinca com o cão, no canto esquerdo do quadro, por si só indi­ ca o tempo de toda cena representada. Também o casal que dança, na parte di­ reita ao fundo, descreve um rápido movimento sem perder contudo a elegânGÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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cia. E assim, cada figura, em suas diferentes e peculiares posições, anuncia aque­ le momento que em um piscar de olhos terá passado. Watteau habilmente utiliza a paisagem para enfatizar o tempo da cena: o movimento dos galhos e das folhas das árvores e, principalmente, o raio de sol que surge por entre as nuvens pas­ sageiras. Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), cuja obra é posterior a de Watteau, com o passar do tempo, abandona a prática da técnica longa e demorada em favor

Jean-Honoré Fragonard O Balanço Coleção Wallace, Londres

ser


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de um pintar quase instantâneo: "virtuoso do pincel, parece pintar como se respi­ ra" Em suas obras de maturidade como "O Ator", "A Leitora" ou "O Estudo", tal sentido é evidente. Contudo, se "O Balanço" ainda não tem o ritmo acelerado da pincelada, já contém a verdadeira idéia que regerá sua arte. O tema se desvanece, o olhar é imediatamente atraído para a dama do balanço iluminada por um breve raio de sol que ressalta o confuso, mas não menos encantador, desa­ linho de suas saias. A cena acontece no breve instante do "vôo" do balanço cujo movimento é completado pelo arabesco de um ramo de árvore retorcido. A busca do prazer e a conseqüente temporalidade reduzida ao instante não são observadas apenas na pintura. Encontram-se presentes em meio àquela sociedade para a qual a arte rococó é produzida, ou seja, a aristocracia e a alta burguesia. Assim, inaugura-se o reino dos salões onde a vida mundana é consagrada. Esta é a época por excelência da sociabilidade que se realiza sob o signo da cortesia. O salão, assim como o teatro e o amor, é o melhor veículo para o exercício da sociabilidade. Nestes ambientes dedicados ao gozo, os sábios e os artistas são muito bem acolhidos sendo mesmo peças importantes neste jogo onde não há perdedores. Mais que as posses, o que se valoriza é "ter espírito", ser capaz de estimular a boa conversa. Os temas da conversação são os mais vari­ ados, desde que sejam interessantes o suficiente para assegurar o deleite do espírito: a literatura, a música, a pintura, as diversidades do mundo e até mesmo intrigas, quando feitas com bom gosto. Entretanto, mais que possuir grande domínio sobre os assuntos versados, é necessário conhecer a arte de conversar a fim de se evitar o enfado. A conversação tem um fim em si mesma, é um jogo e como todo jogo tem suas regras. A primeira regra a ser seguida é não "tomar a palavra" por muito tempo. E um jogo onde todos falam e todos ouvem. A con­ versa deve ser ligeira, assim como tudo neste início de século, porque o prazer é em si momentâneo. Ao se tentar prolongar um instante coloca-se em risco o próprio prazer. É neste ponto que o prazer diferencia-se da felicidade, como dizia Voltaire: "o prazer é um sentimento agradável e passageiro, a felicidade considerada como sentimento, é uma sequência de prazeres" C). A mulher é a alma da sociedade por sua ligeireza e graça: "o desejo de agradar é a razão da promoção do belo sexo" (8). Tal valorização tem seu para­ lelo na arte bastante feminina do rococó cheia de ornatos frágeis e delicados. Também o amor sensual, frívolo, torna-se tema geral para a arte. Fragonard, por exemplo, pinta todas as variações do amor: o amor alegre, apaixonado e sereno. Pinta desde o amor ligeiro de "O Balanço", a volúpia de "Juras de Amor", a sen­ sualidade de "O Ferrolho", o lirismo dos amantes de "A Fonte", a graça e har­ monia de "Cartas de Amor", e até mesmo o amor materno de "O Berço". GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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A aceitação de Watteau na Academia Real, em 1712, demonstra que os temas históricos, considerados na hierarquia artística do século anterior "a grande pintura", cedem lugar aos temas mundanos (10). Logo surgirão os temas de inspiração arcádica que terão como "pano de fundo" o bucólico e o pastoral. Sabe-se que todas as épocas utilizaram o mito da Arcádia para ilustrar as fan­ tasias bucólicas, mas agora tal utilização tem outro sentido. Além da Arcádia, a ilha de Citera, divulgada pela "Cosmographie" de Thévet, simboliza no ima­ ginário francês do século XVIII o lugar ideal para o culto do amor. O que é bas­ tante compreensível uma vez que Citera é o lugar para onde Afrodite, deusa do amor, foi levada pelo vento Zéfiro logo que nasceu das ondas do mar dl). Em "O Embarque para Citera" Watteau pinta casais que partem da legendária ilha após render homenagem à estátua da Vénus. Tal obra é um "monumento imor­ tal do ardente desejo de amor que sentiu aquela época" d2) y ma certa artifi­ cialidade bucólica resulta do esforço de integrar a vida real ao reino da Arcádia. Contudo, é esta artificialidade que frisa o caráter fantasioso da pintu­ ra rococó; basta-lhe o traje de pastor e o cenário campestre para restaurar o mun­ do da Arcádia. Em A Colhedora de Uva" Fragonard pinta a camponesa que Antoine Watteau O Embarque para Citera, 1717 Museu de Berlim, Berlim


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após colher belas uvas oferece as frutas às crianças, que mais se assemelham aos cupidos representados na época - como em "Cupido inspirando Safo". Tudo se passa como uma brincadeira em meio à natureza. A camponesa, desprovida de qualquer qualidade rústica, é por demais refinada e graciosa. É uma dama em um cenário bucólico, onde o campo é transformado em um belo jardim. Em "Os Pastores", Watteau cria o pastor galante onde as vestes estilizadas substituem os trajes característicos. A cena se desenvolve em torno de um casal, figuras principais, que dançam com muita leveza e encanto ao som melodioso do mú­ sico que diverte a todos. Como pano de fundo da cena aparece o bosque com as ovelhas e mais ao longe uma pequena vila. Assim, a pintura rococó representa um novo ideal de arcadismo que confunde a esfera do pastoral com a socieda­ de da época. Mesclada àquela inspiração arcádica tem-se a exaltação da galanteria: "tipo particular da relação social na qual as relações amorosas reivindicam suas características distintivas" A galanteria permeia todas as atividades tanto no que se refere às relações sociais quanto às artes. Surge um novo ideal de amor: um amor devoto ao prazer sensível, mas que não pode ser acusado de liAntoine Watteau Os Pastores, 1717 Palácio de Charlottenbourg, Berlim

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Jean-Honoré Fragonard O Beijo Roubado, 1766 Museu Ermitage, Leningrado

bertino, ou melhor, o amor confere à libertinagem certo tom de decência. A pro­ ximidade entre as artes e a galanteria é tão marcante que a Academia Francesa confere aos pintores do idílio amoroso o título especial de "pintor de festas galantes", tendo sido Watteau o primeiro a receber o título. Um dos temas mais correntes na pintura galante é o "coup d'oeil" indiscreto, como em "O Balanço" ou "O Beijo Roubado" de Fragonard. Também a dança, em especial, exalta a galanteria e reverencia o amor. O minueto é "a mais leve e mais perfeita estilização do amor que a dança jamais representou" O4), e por isso mesmo será tema de muitas pinturas da época como "A Dança em um Pavilhão" de Nicolas Lancret (1690-1743) ou "Os Prazeres da Dança" de Watteau, enfim, freqüentemente a pin­ tura representará passos do minueto. A pintura rococó valoriza bastante os vestidos das damas, as cores delicadas e irisadas das sedas, os toucados que favorecem os rostos ou um sim­ ples ato de beijar a mão. Soma a tais elementos uma ligeira desordem no ves­ tuário, como devido ao acaso. Aí encontra artifícios que contribuem para criar não só a atmosfera galante, como uma certa atmosfera erótica. O erotismo rococó é "epidérmico e espiritual" <15>. A própria "erotização" da mitologia é uma de suas caractei ísticas. Para sobreviver a pintura mitológica deve transformar-se. Ao pintar no teto da Chancelaria de Orleáns, em 1708, os Amores desarmando 404

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os Deuses - infelizmente não conserva­ do - Antoine Coypel (1661-1722) anun­ cia assim o "crepúsculo do Olimpo" 06). Vénus, Pã, Diana e Cupido sobrepõemse, deste modo, a Júpiter e Apoio. A arte privilegiará as aventuras galantes dos deuses, as lendas de amor. As cenas mitológicas representadas nas pinturas rococós não são reverência às divin­ dades, e sim reverência ao prazer. Através de tais representações anunciase a nudez, o vigor do amor e da juven­ tude, a volúpia etc. O que os pintores buscam nas divindades são seus atribu­ tos sensíveis. Ao trazer essas inatin­ gíveis figuras para o âmbito do mun­ dano, atribuem a elas um caráter agradável e possibilitam, de certa forma, a experiência de um mundo fictício. Os temas mitológicos são um meio de se criar um mundo ilusório e imaginário. Na tradução rococó da mitologia, a figura de Vénus tem uma importância especial, o que explica, em François Boucher Cupido Cativo, 1754 parte, o largo emprego do espelho, seu Coleção Wallace, Londres atributo. François Boucher (1703-1770), outro grande pintor da época, mestre de Fragonard, é um dos pintores que mais explora o "Olimpo travestido à francesa" (17), celebrando, sobretudo, a Vénus como em "O Triunfo da Vénus" ou em "A Toalete da Vénus" - e as divindades referentes ao amor. Em "Cupido Cativo", Boucher mostra o cupido prisioneiro das Três Graças. A luz emana dos corpos acentuando o vigor da carne. O apelo erótico da cena é nítido, sobretudo pelo modo como Boucher introduz mo­ vimentados tecidos que displicentemente desnudam os corpos alvos das Graças, o que confere um caráter íntimo à cena. Também as rosas, cuja função é deco­ rativa, a fonte, bem próxima às figuras, e a árvore, que completa o triângulo da composição, são elementos importantes para a atmosfera de intimidade, que estará presente em toda pintura rococó. Quando as cenas mitológicas não são representadas diretamente, são evocadas de algum modo. Com freqüência GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Rococó: a expressão do instante

estátuas das divindades pagãs figuram nos bosques das pinturas da época. Tais estátuas não apenas testemunham os prazeres, mas são elas mesmas fi­ guras de prazer. Apenas a título de exemplo, algumas obras podem ser citadas como "O Jogo da Cabra-Cega" de Fragonard, ou "Prazeres do Amor" e "Embarque para Citera" de Watteau. O erotismo rococó é favorecido pela intimidade, consequência do gosto da época pelos espaços privados. No movimento da arquitetura, quando a corte transfere-se para a cidade, o de­ corativo sobrepõe-se ao construtivo. Criam-se os pequenos aposentos que serão ricamente ornados. As artes de­ Antoine Watteau Queres Triunfar sobre as Belas. 1716 corativas, m uito apreciadas por tal Coleção Wallace, Londres sociedade, ajudam a compor os ambi­ entes íntimos Através da riqueza de elementos decorativos e de engenhosos recursos esse tom de intimidade é representado na pintura. Expresso em Watteau pelo tratam ento da natureza que proporciona aos espaços abertos caráter íntimo - , em Boucher pela su­ gestão de que seus nus despiram-se naquele exato m om ento e em Fragonard pelos coup d'oeil. O teatro é também grande forma de expressão desta sociedade que tem na comédia a principal forma cênica. Watteau tem uma estreita relação com o teatro, contudo, não por seu caráter narrativo, no sentido em que as cenas se sucedem, e sim por seu caráter efêmero d L)) s^ ^ s figuras são persona­ gens do teatro, e chega mesmo a vesti-las com os respectivos trajes, como em Queres Triunfar sobre as Belas... onde aparece um Arlequim. Cenas de co­ média l cenas galantes confundem-se não havendo nada que demonstre tratar-se de uma encenação teatral, exceto por ocasionais detalhes como vestes de ator. A paisagem é transformada em cenário, quase sempre um bosque ou um parque. Em "O Indiferente", a paisagem não é mais que um fundo ligeiro esfumado. Watteau dispõe seus personagens de tal modo que o vínculo anedotico seja o mais vago e geral possível: o amor, a festa, o baile, o passeio ou o encanto de um formoso dia, ou melhor, como se dizia na linguagem da 406

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época, Les Charmes de la Vie (20). Com o enfraquecimento da monarquia - devido a uma série de fatores que levarão à Revolução Francesa - o Rococó também esmorece. Arte notadamente aristocrática, pode-se dizer que é a imagem de uma sociedade que quer brilhar (- n. Todavia, o Rococó, cujas qualidades relacionam-se com a ima­ ginação e a sensibilidade, situa-se no início do processo de libertação das tutelas que caracteriza a era moderna (22). Notas ( 1 ) MINGUET, J. Philippe. Esthétique du Rococo. Paris, VRIN, 1966, p. 231. ( 2 ) Cf. STAROBINSKI, Jean. L'Invention de la Liberté. Genève, Skira, 1987. ( 3 ) Cf. FRANCASTEL, Pierre. “L'Esthétique des Lumières". In: Utopie et Institutions aux X V lll Siècle. Paris, Gallimard, 1967. ( 4 ) Cf. MINGUET, J. Philippe, op. cit. p. 235. ( 5 ) FRANCASTEL, Pierre. Historia de la Pintura Francesa. Madrid, Alianza Editorial, 1970, p. 144. ( 6 ) FRANCASTEL, Pierre, op. cit. p. 177. ( 7 ) VOLTAIRE, citado por MINGUET, Philippe, op. cit. p. 232. ( 8 ) MINGUET, J. Philippe, op. cit. p. 219. ( 9 ) Segundo Minguet, este é um dos fatores que diferenciam a arte do rococo da arte barroca. (10) Cf. FRANCASTEL, Pierre, op. cit. p. 147. (11) Cf. BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis, Vozes, 1991, v. I, pp. 29-35. (12) SCHONBERGER, Arno. El Rococo y su Epoca. Barcelona, Salvat, 1963, p. 81. (13) MINGUET, Philippe, op. cit. p. 228. (14) GREGOR, citado por MINGUET, Philippe, op. cit. p. 246. (15) MINGUET, Philippe, op. cit. p. 229. (16) SCHON BERGER, Arno. op. cit. p. 77. (17) MINGUET, Philippe, op. cit. p. 226. (18) Cf. MINGUET, Philippe, op. cit. p. 231 (19) FRANCASTEL, Pierre, op. cit. p. 150. (20) FRANCASTEL, Pierre, op. cit. p. 151. (21) STAROBINSKI, Jean. op. cit. (22) STAROBINSKI, Jean. op. cit.

Bibliografia BAZIN, Germain. Barroco e Rococo. São Paulo, Martins Fontes, 1993. BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis, Vozes, 1991, v. I, pp. 29-35. FRANCASTEL, Pierre. Historia de la Pintura Francesa. Madrid, Alianza Editorial, 1970. _________ “L'Esthétique des Lumières". In: Utopie et Institutions aux XVlll Siècle. Paris, Gallimard, 1967. MINGUET, J. Philippe. Esthétique du Rococo. Paris, VRIN, 1966. SCHONBERGER, Arno. El Rococo y su Epoca. Barcelona, Salvat, 1963. STAROBINSKI, Jean. L'Invention de la Liberté. Genève, Skira, 1987.

Agradeço o auxílio de José Thomaz Brum. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Espaço - Uma categoria a ser Repensada nos Estudos Urbanos sobre o Rio de Janeiro Este texto é resultado de uma reflexão sobre o modelo teórico que vem sendo utilizado na grande parte dos estudos urbanos recentes sobre o Rio de Janeiro. A partir da constatação das limitações da interpretação marxista orto­ doxa, reivindica-se a necessidade de valoriza­ ção da categoria espaço. Assim, no lugar de um historicismo desterritorializado, é preciso enfrentar, apesar das dificuldades, a análise da espacialidade abrangente da vida social, cons­ truindo uma nova geografia humana crítica. Espacialidade Estudos urbanos Rio de Janeiro

SONIA GOMES PEREIRA Professora titular da Escola de Belas Artes/UFRJ, mestre em História da Arte pela Universidade de Pennsylvania/EUA, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ.

Nas últimas três décadas, cresceu de forma significativa o interesse pelos estudos urbanos, em geral dirigidos para temáticas regionais. No caso específico do Rio de Janeiro, surgiu uma extensa bibliografia, quase toda decor­ rente de trabalhos acadêmicos - dissertações, teses, projetos de pesquisa - rea­ lizados nas principais universidades locais - UFRJ, UFF, PUC/RJ (1\ A maioria destes trabalhos privilegia a passagem do século XIX para o século XX, certamente um momento crucial, não apenas pela mudança física da cidade - transfigurada radicalmente por intervenções modernizadoras, que culminam na extensa reforma urbana no período do prefeito Pereira Passos (1902/1906) - mas sobretudo pela profunda transformação do país, na passagem do Império para a República, na mudança de uma política liberal para um mo­ delo de Estado centralizador, e especialmente na adaptação do Brasil a um capi­ talismo internacional mais avançado, não apenas como exportador de produtos agrícolas e de matérias-primas, mas também como importador dos produtos industrializados e de equipamentos e serviços ligados a todo um sistema de modernização. Praticamente todos estes trabalhos revelam ainda uma qualidade em comum.- decorrem de pesquisas muito cuidadosas sobre extensas fontes primárias, especialmente no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, reve­ lando uma documentação preciosa que merecia e continua merecendo a maior atenção dos pesquisadores. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Espaço - Uma categoria a ser repensada nos estudos urbanos sobre o Rio de Janeiro

Mas a grande parte destes trabalhos apresenta, na minha opinião, uma limitação: fazem uma leitura da mudança da cidade sob a ótica de um marxismo redutor, apoiando-se teoricamente sobretudo nas idéias de Friedrich Engels^). Tendem a reduzir todo esse processo de mudança a um conflito maniqueísta: de um lado, o grande capital, articulado a uma elite local, em que especialmente os técnicos - médicos sanitaristas e engenheiros - desempenham um papel primordial na construção de um discurso supostamente científico, ape­ nas para encobrir a estratégia de implantação da cultura burguesa; e de outro lado, a grande massa da população carioca, praticamente inerte, passiva e sub­ missa. No caso específico da reavaliação da Reforma Pereira Passos, a re­ velação das "forças ocultas" deste extenso processo de modernização da cidade do Rio de Janeiro cobriu de negatividade, não apenas as motivações econômicas e políticas, mas também a competência dos técnicos envolvidos e a qualidade das soluções urbanas e arquitetônicas. Certamente em função de um olhar inteiramente comprometido com a crítica da cidade burguesa, no modelo dos trabalhos realizados por Engels a respeito de cidades inglesas, não foi possível ver o projeto urbano e arquitetônico verdadeiramente como obras —e exercer sobre elas uma crítica autêntica. Passou despercebida, assim, a extraordinária qualidade urbana do Rio de Janeiro reformado no início do nosso século, a coe­ rência da arquitetura eclética que lhe está associada, o início de uma nova relação com a natureza e de uma nova imagem da cidade, com um estilo próprio de vi­ da —na verdade, a construção de uma nova identidade urbana. Não é objetivo deste artigo deter-se na análise do urbanismo e da arquitetura em questão (3), mas cabe evidenciar como, neste caso, a ótica marxista tradicional não permitiu a percepção de toda esta obra na sua complexidade, permitindo apenas uma visão parcial e redutora de sua realidade. Acredito que a raiz do problema esteja no fato de que, apesar de grande parte dos estudos urbanos, produzidos desde o século passado, terem sido marcados pelas idéias de Marx e Engels, a própria teoria marxista, na sua feição mais ortodoxa, desqualifica o espaço entre as forças relevantes em jogo nas relações sociais. Para que se possa avaliar esta questão, é interessante fazer um reve resumo das principais correntes recentes de interpretação dos fenômenos Mark Gottdiener «> traça com grande lucidez uma verdadeira hisona dos estudos urbanos. Segundo ele, tradicionalmente houve duas grandes P o I í L urbanarPreteCâ0 * * 410

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* Ec° ^ ia U* a n a e a Economia


SONIA GOMES PEREIRA

A Ecologia Urbana se baseia fundamentalmente na crença de que a mudança do ambiente, tanto natural quanto construído, deve-se à mudança tec­ nológica e toma este processo como irreversível: trata-se, portanto, de um deter­ minismo tecnológico obstinado. A Economia Política Urbana tem feito uma crítica contundente àquela ideologia ecológica convencional, mostrando como a própria mudança tecnológica está imersa numa lógica econômica muito mais complexa de luta entre capital e trabalho. Advoga, assim, que os padrões espaciais correspondem às ações das forças profundas da organização social; desta forma, foi o capitalis­ mo que produziu as mudanças que reestruturaram totalmente o espaço. Conseqüentemente, interpreta todas as relações que se manifestam no espaço como produções do capitalismo, o que acabou se transformando numa redução simplista. Encara, por exemplo, a mecanização do crescimento urbano como uma conspiração capitalista, perpetrada por uma seleta minoria contra a massa de habitantes - a classe trabalhadora - , sendo os técnicos vistos como servos ide­ ológicos da classe dirigente. Chega-se, desta forma, a um pensamento funcionalista, determinista, enclausurado na relação causa-efeito e dominado pela ênfase excessiva nos fatores econômicos. Ainda se está dentro do flagelo do po­ sitivismo, com argumentos monocausais e deterministas, na verdade usando a mesma "moeda" da Ecologia Urbana. As formas espaciais são tomadas como pouco mais do que simples receptáculos dos processos econômicos e políticos. Acaba-se caindo na armadilha ideológica de equiparar a análise urbana a inves­ tigações econômicas detalhadas, compondo quadros simplificados em que, de um lado, está a articulação do sistema social e, do outro, a organização do espaço. A abordagem da esquerda, portanto, acompanha o pensamento social burguês, que reduz tudo ao crescimento econômico, em que toda a investigação social fica encarcerada nas preocupações econômicas - é a hegemonia da econo­ mia sobre todos os outros campos: político, social, cultural. Esta é a ideologia burguesa por excelência e é esta a abordagem do marxismo ortodoxo —têm, por­ tanto, as mesmas raízes ideológicas. O problema da abordagem marxista tradicional a respeito do espaço deriva do pouco destaque que o próprio Marx deu à análise desta cate­ goria. Em O Capital, o espaço não parece ser uma preocupação de primeiro plano em sua crítica à economia política tradicional; em notável fragmento, editado mais tarde por Engels no terceiro volume do Capital, Marx esclarece melhor o termo "fórmula da trindade": capital, trabalho e terra - os três componentes do modo capitalista de produção. Usualmente lamenta-se que a morte de Marx não lhe tenha permitido desenvolver a análise do terceiro componente, a terra. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Alguns comentários aparecem em Formações econômicas pré-capitalistas única obra, até a década de 70, em que se dispunha de uma análise sobre o problema do espaço - e é onde Marx expõe o ponto essencial de sua teoria espacial, isto é, da forma como o espaço está ligado ao modo de produção ^ \ Como se sabe, para os marxistas, os meios de produção compõem-se de duas classes de objetos materiais: são os objetos de trabalho (matérias-primas, que são transformadas pelo trabalho) e os meios de trabalho: esta redução é, na verdade, a base das li­ mitações das interpretações marxistas tradicionais. Alguns teóricos marxistas foram sensíveis a esse engessamento das relações sociais e, menos freqüentemente, ao desprestígio da categoria espaço, demonstrando a necessidade de reconsiderar alguns daqueles princípios originais. Henri Lefebvre, marxista que desenvolveu longa atividade pratica­ mente no isolamento - sua obra-prima é a Produção do Espaço de 1974 (<l) - sem­ pre mostrou a necessidade de se reavaliar os conceitos de Marx, reconsiderando o papel do espaço em sua formulação. Para Lefebvre, não se pode reduzir o espaço aos três domínios: produção, consumo e troca. Em vez de tratá-lo como um mero meio de produção, Lefebvre considera-o com o uma das forças de pro­ dução, com a mesma importância das demais forças, como o capital e o trabalho. Assim, o espaço passa a ser visto como um elemento das forças produtivas da sociedade, especialmente através da atuação da forma ou design. Para Lefebvre, o desenho espacial é, ele próprio, um aspecto das forças produtivas da sociedade que, juntamente com a tecnologia, o conhecimento hum ano e a força de trabalho, contribuem para o nosso potencial de produção. Lefebvre vê, então, o conflito de classes se desenvolvendo no espaço, como conflito social e luta entre interesses econômicos. Este conflito nasce em razão da contradição fundamental do espaço capitalista, a criação de um espaço abstrato - pulverizado, hierarquizado e homogeneizado - em oposição ao espaço social - singularizado e coletivizado um verdadeiro espaço explodido por uma multidão de atores e instituições. Esta explosão de distinções espaciais, encenadas entre pessoas e grupos, resulta num campo de espaços contraditórios, onde aparece o conflito sócio-espacial. Na° se Pode red“ zir tal conflito a mero reflexo da luta de classes, pois ele repre­ senta diferenças concretas entre pessoas e grupos, em conseqüência da domi­ nação do espaço abstrato sobre o espaço social em nossa sociedade atual. Para e e vre portanto, o conflito produzido pelos antagonism os espaciais atravessa as u as e c asses, porque nao é produzido apenas por relações de produção. l a r r ra r r af Çã0 eSPadal da SOdedade é' “ * confrontação entre espaço abstrato (extenonzação das práticas econômicas e políticas que se origi412

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nam nas classes capitalistas e o Estado) e o espaço social (espaço de valores de uso produzidos pela complexa interação de todas as classes na vivência diária). Outro ponto da abordagem tradicional, que mereceu a atenção de vários teóricos, foi a visão que se cristalizou pela propaganda stalinista e por uma geração de economistas marxistas, tornando-se um dogma, de que o modo econômico de produção é a base que determina os processos de política ou de cultura, isto é, a superestrutura. A Escola de Frankfurt nas décadas de 30 e 40 já demonstrava que a sociedade e todos os seus elementos agiam como um con­ junto ou momento dialético, em que aspectos da necessidade econômica estavam relacionados com necessidades políticas e culturais e vice-versa: assim, os fenô­ menos superestruturais, como a política ou a cultura, atuavam de modo muito semelhante à base, já que estavam todos imersos num mesmo conjunto dialético, nas mesmas contradições que caracterizavam a totalidade da formação social. A dominação se fazia sentir, não só através das relações de produção, mas também através da ideologia e dos mecanismos de alienação. Deixou-se, assim, de enfa­ tizar a economia política como único instrumento legítimo para desenvolver análises culturais da sociedade moderna. Estas idéias, desenvolvidas sobretudo por Lukács e Gramsci, levaram à compreensão de que atitudes culturais e políti­ cas poderiam servir de reprodução e legitimação das relações de produção ou servir de trampolim para ações que pudessem superar o sistema através da luta coletiva. Os fenômenos superestruturais, portanto, seriam tão importantes para mudar o capitalismo quanto as relações de base. Fica evidente, portanto, que seria muito mais valioso para os estu­ dos urbanos aceitar a análise marxista que olha a cidade como um campo de luta entre interesses econômicos antagônicos, que desnuda o papel do Estado na gestão das políticas urbanas, mas incorporar a ela uma análise social e cultural mais complexa, mais rica: preocupações sociais como territorialidade, cultura de vizinhança, moradia pode ser muito mais complicado do que nos leva a crer o modelo de duas classes estabelecido pelo marxismo tradicional. Vários autores têm evidenciado a importância de outros tipos de relações que escapam ao per­ fil meramente econômico: Mollenkopf ^ \ por exemplo, demonstrou que os blo­ cos de construção básicos das comunidades —laços étnicos ou de parentesco, proximidade geográfica, associações voluntárias, conexões políticas partilhadas —têm muito mais a ver com formas de participação política do que com classes. BookchinW, entre outros, revela que muitas sociedades orgânicas não hierárquicas colocam os valores de uso acima dos valores de tioca. nelas os traços constitutivos são o usufruto, a complementaridade e a lei do mínimo inedutível. A base destas comunidades é, portanto, essencialmente cultural e a sua GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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transformação política não pode ser descrita em termos estritos de luta economica. É interessante reparar que, entre os inúmeros trabalhos recentes sobre o Rio de Janeiro, o único a demonstrar inquietação com as bases teóncas que vêm norteando os estudos urbanos é justamente de um geógrafo: Maurício de Abreu. Em sua Evolução Urbana do Rio de Janeiro(9>, indica a existência de grandes lacunas na literatura especializada quanto à teorização do processo de estruturação do espaço urbano no tempo, notando, particularmente, a ausência de um arcabouço teórico que permita relacionar a forma como o espaço urbano se estratifica socialmente com os processos econômicos, políticos e sociais que aí têm lugar. Na sua opinião, o processo de estruturação urbana precisa ser estu­ dado de maneira mais abrangente: espaço e sociedade precisam ser examinados conjuntamente - isto implica, de um lado, estudar como, numa sociedade his­ toricamente determinada, o espaço urbano é elaborado, ou seja, como os proces­ sos que têm lugar nas cidades determinam uma forma espacial; por outro lado, implica também estudar a essência das formas, ou seja, o papel por elas desem­ penhado nos diversos momentos por que passa a sociedade no tempo. Partindo desta constatação inicial sobre os problemas teóricos que precisam ser repensados nos estudos urbanos, Maurício de Abreu descarta a pos­ sibilidade de trabalhar com a categoria modo de produção, referente a uma rea­ lidade abstrata e "pura", preferindo utilizar uma outra categoria mais concreta e "impura", caracterizada pela existência de vários tipos de relação de produção a categoria formação social, que ele traz de outro geógrafo, Milton Santos <10). As formações sociais se diferenciam dos modos de produção, porque estes escrevem a história no tempo, enquanto as formações sociais escrevem-na no espaço. A for­ mação social pode ser definida como uma totalidade social concreta historica­ mente determinada. Toda formação social compõe-se de uma estrutura ideoló­ gica, como o modo de produção, mas se diferencia deste pelo caráter mais com­ plexo: seu desenvolvimento raramente é sincronizado. Este processo não sin­ cronizado das estruturas que compõem a formação social tem papel importante no seu desenvolvimento, pois é exatamente desta defasagem que derivam as alterações importantes na organização social - as contradições entre estruturas irão se acumular e o grau de defasagem terá de ser ajustado. Definindo a cidade como uma coleção de formas geográficas, que podem sei analisadas em termos de forma-aparência e forma-conteúdo, verifica que estas formas, quando examinadas apenas sob o critério de aparência, são antigas c novas, representando uma acumulação no tempo. Mas as formas não têm apenas aparência externa, têm também um conteúdo, isto é, realizam uma função, que é determinada exclusivamente pelo período atual de organização 414

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social. Assim, formas antigas podem ser chamadas a realizar funções totalmente distintas das originais ou podem desaparecer, como resultado da dinâmica social. O espaço, portanto, reflete a formação social em toda a sua complexidade: a preservação de formas antigas ou a criação de formas novas dependem do processo diferenciado das estruturas que a compõem: suas possibilidades de confronto, reajuste e recomposição, e do grau de resolução das contradições exis­ tentes ou de concentração insuportável. O espaço, portanto, não é uma matéria inerte, pois também influencia o desenvolvimento da formação social no decor­ rer do tempo. Esta influência do espaço é determinada principalmente pela per­ manência de formas anteriores, da atribuição que recebem a cada momento da organização social, de sua capacidade de adaptar-se ou resistir às novas exigências. E interessante notar que um outro autor, o urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos(11), lidando com uma problemática diferente - políticas urbanas e lutas sociais - vai também mostrar a insuficiência das teorias marxis­ tas tradicionais. Carlos Nelson analisa três casos recentes de luta de moradores pobres contra a política de remoção ou demolição de seus bairros ou favelas: Brás de Pina, Morro Azul e Catumbi. Testa, com a confrontação desses três exem­ plos, a validade das teorias sobre movimentos sociais urbanos de três autores marxistas: Manuel Castells, Jordi Borja e Jean Lojkine. Não reconhece nesses movimentos urbanos sociais, como acreditava Castells, a função revolucionária de investir contra o Estado burguês, corporificando a luta de classes, visando a sua destruição e a criação de condições políticas que permitam a transição ao Socialismo. Considera-os de forma diferente: seriam alterações distorcedoras do sistema urbano, contribuições desviantes, ações intersticiais, reversão do status quo, revoluções milimétricas, para usar uma expressão de Foucault. Admite a sua importância como estratégia paliativa ou iniciadora e acha que depositar neles muitas esperanças de mudança social equivale a acreditar em milagres. Apenas reconhece um maior poder de transformação à experiência desses movi­ mentos, admitindo que o acúmulo de seus processos e a reflexão sobre a sua memória poderiam indicar caminhos de mudanças nas cidades. Mas a parte que mais interessa analisar aqui é a própria crítica de Carlos Nelson às teorias marxistas que separam o mundo de acordo com razões maniqueístas de produção e consumo. Para pensar em termos de produção é preciso varar os limites apertados do econômico, mesmo que se trate de sociedades urbanas capitalistas. O conceito de modo de produção deve ser ampliado para englobar praticamente qualquer tipo de produção além da especi­ ficamente econômica. Conforme aponta Marshall Sahllins ^ ) , a determinação do econômico ou da lógica material como explicação última para a sociedade GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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humana e seus processos incidiria no erro de achar que não há lógica material separada do interesse prático, quando, na verdade, o interesse prático dos ho­ mens ao produzirem é sempre constituído simbolicamente. A especificidade da nossa sociedade não se deve a que nossos sistemas escapem à determinação sim­ bólica mas ao fato do simbolismo econômico ser estruturalmente determinante: na verdade, na cultura ocidental, a economia é o principal lugar da produção simbólica. Os símbolos e a cultura na sociedade capitalista são tão importantes quanto em quaisquer outras, das quais o Capitalismo se distinguiria por ter no econômico a sua ordem simbólica. É preciso, portanto, romper o círculo de ferro em que Castells meteu as cidades", como afirma o próprio Carlos Nelson: "Nem a cidade é apenas uma unidade em termos de consumo, nem a cjuotidianidade é um mero processo de reprodução da força de trabalho. Isso ecpiivaleria a desprezar em ambas o poder de geração de símbolos e significados (valores de trocas simbóli­ cos) - e de produção de intencionalidades culturais de consumo... A produção pode e deve estar para além das esferas legitimadas e reconhecidas da produção econômi­ ca restrita. Nas cidades, pode e deve estar no quotidiano das suas populações. Estas não estariam apenas interessadas na sua sobrevivência física. Também estariam criando sujeitos e objetos sociais para interações. O Estado, representando ou não os interesses excluswos do Capital, não se aproxima dos moradores apenas visando à reprodução da sua força de trabalho. Também está querendo e precisando recolher e reelaborar suas imagens e seus símbolos. É claro que fica obrigado, por conse­ quência a um processo de troca e de reciprocidade." Além da redução de toda a dinâmica social ao restrito domínio do econômico, Carlos Nelson aponta como a teoria Marxista também opera limi­ tadamente com a noção de espaço. Espaço e tempo não passariam de grandezas físicas, incapazes de dizer algo sobre as relações e práticas sociais. Manuel Castells(14\ por exemplo, entende o espaço como um dado puro, cuja existência prescinde de significado, e não como um dado que só exista à medida que se lhe atribuam significados. Assim, o que vai interessar é um hipotético espaço-tempo, que a história se encarregaria de definir através das práticas sociais, totalmente destituído de qualquer valor ou atributo próprios. Espaço e tempo não seriam mais do que uma conjuntura, um momento de práticas históricas concretas. Se é \erdade que o espaço resulta de um processo histórico, por sua vez a própria história é, em certa medida, produzida a partir da construção material e sim­ bólica do espaço através do tempo. Se o homem é o que faz, as suas obras tam­ bém o fazem, a história do homem acaba sendo balizada pelos espaços que inventou para que neles acontecesse a sua história. Não se pode imaginar espaço sigmficante desacompanhado de alguma história ou mito explicativo. Da mesma forma são impensáveis história ou mitos não-referenciados a algum espaço 416

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determinado, real ou imaginário. Assim, a concepção marxista, em que o espaço não passa de um suporte e em que os significados são condicionados unicamente pela economia, acaba por esterilizar o quotidiano, ao submetê-lo a esquemas gerais muito idealizados e incapazes de captar as nuances da prática social. Um outro autor que se tem preocupado com os problemas de espaço é Muniz Sodré (15), não propriamente interessado numa história urbana, mas voltado para a discussão da problemática do negro brasileiro - dedicando uma atenção especial às diversas concepções culturais de espaço. Muniz parte da constatação de que o espaço é um dos aspectos do real freqüentemente esqueci­ do nas abordagens científicas do social. Nenhuma cultura experimenta um aces­ so imediato ou direto ao real: há sempre uma mediação entendida como o processo simbólico que organiza as possibilidades existenciais do grupo. Mas a cultura ocidental, dentre as diferentes formas de simbolização, privilegia a necessidade de interpretar para fazer significar. É preciso transformar a qualquer preço o fato em idéia, em descrição, em interpretação. Interpretar é, assim, a ope­ ração básica da leitura do real, de atribuir-lhe nomes e significações, a partir de modelos de entendimento. Há sempre o empenho de redução pela interpretação do símbolo - obscuro, indeterminante e inefável - ao signo - claro, determinante e dizível. É o império sígnico do sentido. No entanto, por toda parte existe a relação simbólica. Esta passa por algo que não é propriamente a significação, que não se reduz ao conceito. O real, sendo o existente enquanto singular, único e incomparável, resiste à significação, isto é, à duplicação. O espaço é uma dessas dimensões do real que escapam ao primado do sentido: sempre se doou muito o espaço, mas sempre houve também um lado irredutível à representação, à operação intelectual de interpretação. Em geral, estuda-se muito o espaço como algo a ser submetido ou melhor aproveita­ do, mas se deixam de lado as afetações simbólicas que o espaço opera na cultura - mais especificamente o espaço-lugar, o território. As idéias de territorialidade, transportadas para a análise da vida social, aparecem como um instrumento conceituai, que permite interligar com­ portamentos num contexto de espaço e de tempo, isto é, de localizar espaço-temporalmente as diferenças e as aproximações nos modos como os grupos humanos se relacionam com seu real na busca de sua identidade. A territorialização é uma força de apropriação exclusiva do espaço, resultante de um ordena­ mento simbólico capaz de engendrar regimes de relacionamento. O território é, portanto, um dado necessário à formação da identidade. A noção de territo­ rialidade foi historicamente recalcada, porque na cultura ocidental a modeliza­ ção universalista, própria do primado do sentido, opõe-se a uma apreensão GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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topológica, territorializante do mundo, em que a relação entre seres e objetos seja pensada a partir das especificidades de um território. Pensar assim implicaria admitir a heterogeneidade do espaço, a ambivalência dos lugares, acolhendo o movimento de diferenciação, mdeterminação e paradoxo na percepção do real —enfim, a infinita pluralidade do senti­ do, sem a redução intelectualista dos signos. Pode-se, então, falar na dimensão territorial ou na lógica de lugar de uma cultura como função de base em sua estrutura dinâmica global. Nela, o território e suas articulações sócio-culturais aparecem como uma categoria com dinâmica própria e irredutível às represen­ tações que a convertem em puro receptáculo de formas e significações. É necessário, portanto, produzir um pensamento que busque discernir os movimentos de circulação e contacto entre os grupos e em que o espaço surja, não como um dado autônomo, estritamente determinante, mas como um vetor de efeitos próprios. A dimensão territorial introduz-se assim, na própria elaboração das estruturas sociais; pelo jeito de morar, de se instalar no espaço, as sociedades, tanto arcaicas quanto históricas, singularizam-se, constru­ indo o seu real. Esta dimensão territorial não se destaca apenas em culturas tradicionais ou arcaicas: pode atuar de muitas maneiras nas civilizações industrialistas modernas, mas em geral encaminham-se para representações espaciais que traduzem o poder do Estado. No Brasil, como em outros países do Terceiro Mundo, as cidades são capitalisticamente planejadas, segundo a rentabilidade do espaço, com vistas à fascinação das massas e ao esmagamento das diferenças. No entanto, a essas con­ cepções espaço-temporais entronizadas, sempre se opuseram outros processos simbólicos, oriundos das classes ditas subalternas, em geral caudatárias de simbolizações tradicionais. Tanto para os indígenas como para os negros, a questão do espaço é crucial na sociedade. Mas, na opinião de Muniz Sodré, este não é um problema exclusivo de determinados segmentos étnicos: para todo e qualquer indiv íduo da chamada periferia colonizada do mundo, a redefinição da cidada­ nia passa necessariamente pelo remanejamento do espaço territorial. As dificuldades para lidar com o espaço não são, portanto, uma ca­ racterística exclusix a do marxismo ortodoxo. Na verdade, gerações de filósofos ignoraram ou deformaram a sua conceituação e praticamente todas as ciências sociais tornaram-se cegas para esta categoria. Muitas das dificuldades em se lidar com o espaço são de certa maneira lingüísticas. trata-se do desespero' que constitui a transposição para a linguagem da experiência da simultaneidade, como foi brilhantemente descrita por Jorge Luis Borges no Aleph: 418

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t.ntilo vi o Alcph... começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfah to de símbolos lujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compaitíiu, como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha tímida memória mal e ma! abarca?... Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração sequer parcial, de um conjunto infinito. Neste instante gigantesco, vi milhões de atos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato de todos ocupa­ rem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei" d6) Assim, todo exercício de descrever a espacialidade abrangente da vida social é extremamente difícil. O que se vê ao olhar para o espaço é obsti­ nadamente simultâneo, mas a linguagem segue uma sucessão seqüencial, um fluxo linear, limitada pela mais espacial das restrições, a impossibilidade de duas palavras ocuparem exatamente o mesmo lugar. Tudo o que se pode fazer é justapor no tempo o que, na realidade, acontece na simultaneidade espacial. Além disso, a interpretação do espaço no ocidente tem sido domi­ nada por duas ilusões persistentes. De um lado, a ilusão da opacidade que reifica o espaço, induzindo a um pensamento que enxerga apenas a materialidade superficial - formas concretizadas e fixas que são passíveis apenas de mensuração e de descrição - como aparecem na cartografia cartesiana. Por outro lado, a ilusão da transparência desmaterializa o espaço em pura representação, que impede de ver a construção social da geografia, isto é, a concretização das relações sociais inserida na espacialidade. Há séculos, os filósofos e os geógrafos têm oscilado entre essas duas ilusões deformadoras, impossibilitando o reco­ nhecimento da espacialidade como sendo simultaneamente um produto social e uma força que modela a vida social - idéia fundamental para a construção de uma dialética sócio-espacial. Na verdade, durante o século passado, o tempo e a história ocupa­ ram uma posição privilegiada nas teorias e nas análises da sociedade, dando origem a um historicismo desespacializante, que só recentemente começa a ser reconhecido e examinado. A primazia da História em relação à Geografia impli­ ca na redução do ser social às experiências temporais, sendo o espaço tomado apenas como um vazio desprovido de substância, um simples repositório de for­ mas físicas, um mero produto social - enfim, uma folha em branco, sobre a qual se escreveria a história. Assim, apesar das histórias da vida terem também uma geografia, pois nunca são desprovidas de espaço, a perspectiva que perdurou nas ciências sociais foi a de que a geografia prepara o cenário, enquanto a cons­ trução intencional da história define o roteiro e determina a ação. A crítica a esse historicismo desterritorializado começou a aparecer GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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pioneiramente em alguns teóricos, como no já citado Lefebvre e na obra ver­ dadeiramente premonitória de Foucault. Apesar das suas grandes obras já demonstrarem uma grande preocupação com a importância relativa do tempo e do espaço, suas observações mais explícitas e reveladoras aparecem em suas palestras e em algumas entrevistas. Numa palestra de 1967, que só viria a ser publicada vinte anos mais tarde, nos anos 80, Foucault expunha com bastante clareza esta relação conflituada entre tempo e espaço: "A grande obsessão do século XIX foi, corno sabemos, a história: com seus temas de desenvolvimento e suspensão, crise e ciclo, temas do passado em eterna acumu­ lação, com sua grande preponderância de homens mortos e da ameaçadora glaciação do mundo... A era atual talvez seja, acima de tudo, a era do espaço. Estamos na era da simultaneidade: estamos na era da justaposição, na era do perto e do longe, do lado a lado, do disperso. Estamos num momento, creio eu, em que nossa experiên­ cia do mundo é menos a de uma vida longa, que se desenvolve através do tempo, do que a de uma rede que liga pontos e faz interseções com sua própria trama. Poderse-ia dizer, talvez, que alguns conflitos ideológicos que animam a polêmica atual opõem os fiéis descendentes do tempo aos decididos habitantes do espaço" ^7). Nessas palestras, Foucault destacou a sua noção de heterotopias como sendo os espaços característicos do mundo moderno, substituindo o hierárquico "conjunto de lugares" da Idade Média e o envolvente "espaço de localização" inaugurado por Galileu e infinitamente desdobrado no "espaço de extensão"; afasta-se do "espaço interno" de Bachelard e das descrições regionais da Fenomenologia, concentrando sua atenção numa outra espacialidade da vida social, num "espaço externo" - o espaço efetivamente vivido e socialmente pro­ duzido dos locais e as relações entre eles: O espaço em que vivemos, que nos retira de nós mesmos, no qual ocorre o desgaste de nossa vida, nossa época e nossa história, o espaço que nos dilacera e corrói, é tam­ bém, em si mesmo, um espaço heterogêneo. Em outras palavras, não vivemos numa espécie de vazio dentro do qual possamos situar indivíduos e coisas. Não vivemos num vazio passível de ser colorido por matizes variados de luz, mas num conjunto di relações que delineia localizações irredutíveis umas às outras e absolutamente não superponíveis entre si" d8) Esses espaços heterogêneos de localizações e relações - as hetero­ topias - são constituídos em todas as sociedades, mas assumem formas muito variadas e se modificam ao longo do tempo, à medida que a história se desdo­ bra cm sua espacialidade inerente. Foucault identifica muitos desses locais —o cemitério c a igreja, o teatro e o jardim, o museu e a biblioteca, a feira e a cidade de férias, o quartel e a prisão, a sauna e o bordel - que apresentam a sociedade como virada de cabeça para baixo: 420

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"A heterotopia é capaz de superpor num único lugar real diversos espaços, diver­ sos locais que em si são incompatíveis... Eles têm uma função em relação a todo o espaço restante. Essa função se desdobra entre dois popos extremos. Ou seu papel consiste em criar um espaço de ilusão que expõe todos os espaços reais, todos os lugares em que se divide a vida humana, como ainda mais ilusórios... Ou então ao contrário, seu papel consiste em criar um espaço outro, um espaço real, tão perfeito, meticuloso e bem disposto quanto o nosso é desarrumado, mal construído e confu­ so. Este último tipo seria a heterotopia, não da ilusão, mas da compensação, e me pergunto se algumas colônias não terão funcionado um pouco dessa maneira" d9) Foucault constrói, assim, um poderoso argumento contra o histori­ cismo: o espaço heterogêneo e relacional das heterotopias, que não são um vazio desprovido de substância, a ser preenchido pela intuição cognitiva, nem um repositório de formas físicas, a ser fenomenologicamente descrito em sua varie­ dade; trata-se de um outro espaço - como aquele que Lefbvre descreveria como "espaço vivido" - isto é, a espacialidade efetivamente vivida e socialmente cria­ da, simultaneamente concreta e abstrata, constituindo a própria contextura das práticas sociais. É um espaço raramente "visto", pois tem sido obscurecido por uma visão bifocal que tradicionalmente encara o espaço apenas como uma cons­ trução mental ou como uma forma física. Foucault, portanto, desenvolveu uma visão diferente da história e da geografia, pois não implica na negação do tempo, mas numa certa maneira de lidar com o tempo e com a história, esforçando-se por estabelecer no eixo temporal uma espécie de configuração. Esta configuração sincrônica é, na verdade, a espacialização da história, a feitura da história entre­ meada com a produção social do espaço, a estruturação de uma geografia história. Mas as observações premonitórias de Foucault não perturbaram de imediato a então inabalável hegemonia do historicismo. Ainda por um bom tempo o espaço continuará a ser o morto, o fixo, o não-dialético, o imóvel; o tempo, ao contrário, será tomado como a riqueza, a fecundidade, a vida e a dialética. O próprio Foucault, numa entrevista pouco antes de sua morte, referese às críticas que recebeu pela teoria das heterotopias: nos anos 60, entre grande parte da inteligência francesa, "o espaço era reacionário e capitalista, mas a história e o devir eram rev o lu cio n ário s"^. Ainda iria demorar a marginalização da categoria espaço na teoria crítica social. Edward Soja, em sua obra Geografias pós-modernas (21), traça uma verdadeira história da espacialidade, evidenciando que a hermenêutica espacial está intrinsecamente relacionada à própria vivência da modernidade. Assim, des­ taca quatro grandes períodos em que mudanças dramáticas na conceituação da modernidade constituíram teorias diversas sobre o espaço, pois o mesmo ritmo que agita a história do capitalismo, agita também a consciência teórica critiea. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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O primeiro período, de meados do século XIX, articulando-se em torno dos eventos de 1848/1851, foi a era clássica do capitalismo industrial com­ petitivo. Foi também uma fase em que a historicidade e a espacialidade estive­ ram em relativo equilíbrio, quer se traçasse o pensamento crítico através das perspectivas do socialismo francês, quer da economia política inglesa ou da filosofia idealista alemã. A contestação da geografia específica do capitalismo industrial, de suas estruturas espaciais e territoriais, foi uma parte vital das críti­ cas radicais e dos movimentos sociais regionais que emergiram durante esse período, assim como a reforma dessa geografia tornou-se um importante objeti­ vo instrumental para os novos Estados burgueses entrincheirados da Europa e da América do Norte. Após a queda da Comuna de Paris, entretanto, as críticas explicitamente espaciais, radicais e liberais, começaram a recuar em proveito de uma posição mais eurocêntrica, centrada numa perspectiva revolucionária do tempo e da história. As últimas décadas do século XIX foram uma era de crescente his­ toricismo e de submersão concomitante do espaço no pensamento social crítico. A crítica socialista consolidou-se em torno do materialismo histórico de Marx, enquanto uma mescla de influências comtianas e neokantianas reformulou a filosofia social liberal e provocou a formação de novas "ciências sociais", igual­ mente decididas a compreender o desenvolvimento do capitalismo como um processo histórico e apenas acidentalmente geográfico. Essa ascensão de um his­ toricismo desespacializante, que só agora começa a ser reconhecido e examina­ do, coincidiu com a segunda modernização do capitalismo e com a instauração de uma era de oligopólio imperialista e empresarial. Tamanho foi o sucesso com que ela desvalorizou e despolitizou o espaço como objeto do discurso social críti­ co, que até mesmo a possibilidade de uma práxis espacial emancipatória desa­ pareceu do horizonte por quase um século. Pouca coisa mudou no tocante à primazia teórica da história em relação à geografia durante a terceira modernização do capitalismo e a era sub­ sequente de administração estatal burocrática, que se estendeu aproximada­ mente desde a Revolução Russa até o fim dos anos 60. A obsessão do século XIX com o tempo e a história continuou a enquadrar o pensamento crítico moderno. No fim da década de 1960, entretanto, essa longa tradição moderna começou a se alterar. Tanto o marxismo ocidental quanto a ciência social crítica pareceram explodir em fragmentos mais heterogêneos, perdendo grande parte de suas desconjuntadas coesões e centralidades. E, agora próximo de outro fim de século, tem surgido movimentos alternativos, competindo pelo controle dos perigos e das possibilidades emergentes de um mundo contemporâneo reestru422

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SONIA GOMES PEREIRA

turado. Embora ainda sejam termos controvertidos e confusos, repletos de cono­ tações díspares e amiúde depreciativas, a pós-modernidade, a pós-modernização ou o pós-modernismo parecem, agora, pretender descrever essa reestruturação cutural, política e teórica contemporânea, incorporando a reafirmação do espaço que está complexamente entremeada com ela. Este período atual deve ser visto como outra reestruturação ampla e profunda da modernidade, e não uma rup­ tura completa e uma substituição de todo o pensamento progressista pósIluminismo, como pretendem alguns autores. É compreensível o arisco antago­ nismo da esquerda moderna ao neoconservadorismo atualmente predominante e à extravagância da maioria dos movimentos pós-modernos. Mas não se deve descartar o pós-modernismo como irremediavelmente reacionário. O desafio po­ lítico da esquerda pós-moderna requer, em primeiro lugar, o entendimento da es­ pecificidade da quarta modernização do capitalismo, que vem ocorrendo na atu­ alidade; em segundo lugar, o reconhecimento que essa reestruturação profunda não pode mais ser compreendida, prática e politicamente, apenas com os instru­ mentos convencionais do marxismo moderno ou da ciência social radical. Isso não implica que esses instrumentos precisem ser abandonados, como se apres­ saram a fazer muitos dos que antes estavam na esquerda moderna. Em vez disso, eles devem ser reestruturados: assim, a política reacionária pós-moderna do reaganismo e do thatcherismo, por exemplo, deveria ser diretamente confrontada com uma política pós-moderna esclarecida de resistência e desmitificação. Portanto, é preciso fazer uma crítica direta ao historicismo - sem cair, é claro, numa anti-história simplista - e enfrentar uma profunda reestrutu­ ração da teoria e do discurso sociais modernos, espacializando a narrativa histórica, associando à duração de Braudel uma geografia humana crítica, sin­ tonizada com os desafios políticos e teóricos contemporâneos. Uma nova diretriz na reflexão sobre a categoria espaço pode trazer grandes benefícios aos estudos urbanos. Em relação à bibliografia recente sobre o Rio de Janeiro, acredito que uma concepção mais abrangente e mais complexa da espacialidade permitiria uma leitura muito mais rica da problemática do espaço carioca - não apenas ao longo de sua história, como na interpretação de intervenções passadas, mas também na busca de um referencial teórico e de uma estratégia prática para lidar com a atualidade da cidade. Em relação a uma crítica de arte debruçada sobre o urbanismo e a arquitetura do século XIX e início do século XX, ela só poderá realizar-se de forma plena, quando for possível pensar estas obras fora, não apenas da ótica do funcionalismo, mas também dos limites de um marxismo tradicional. A pro­ dução urbana e arquitetônica do século XIX foi execrada por uma crítica posteriGÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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or, comprometida com o modernismo e mais especificamente com o funcionalis­ mo, que pensava a relação tradição/m odernidade de maneira completamente diferente do século XIX. O esfoço de tentar entender a produção do século XIX, a partir dos seus próprios pressupostos conceituais e não mais com o ideário modernista, já começou a ser feito por alguns autores ( \ Resta, ainda, a cora­ gem de pensar a cidade - e a avaliação de suas intervenções urbanas - fora do engessamento conceituai de um economicismo redutor. Acredito que só assim será possível ultrapasssar o momento atual, em que, embora pareça consenso o esgotamento das teorias do passado, a maioria parece acreditar não ser "politi­ camente correto" abordar certos temas, sob ameaça de ser imediatamente acusa­ do de revisionista ou conservador. O século XIX viveu o enfrentamento de uma mudança radical e a maneira como lidou com esta realidade drástica e dramáti­ ca precisa ser estudada, não por saudosismo de suas soluções, não para busca de novos revivalismos, mas para efetivamente entender a sua obra, que em boa parte ainda nos acompanha como um referencial próximo, fazendo parte dos nossos cenários e da nossa memória, numa cidade que, concreta ou imaginariamente, é sempre a presença simultânea do antigo e do novo. Notas ( 1 ) Entre outros, BENCHIMOL, Jaime. Pereira Passos, uni Haussmaim tropical: as transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: C O P P E /U FR J. 1982. Dissertação de mestrado. Publicada pela Secretaria Municipal de C u ltu ra/R J, 1991; CARVALHO, Lia de Aquino. Contribuições ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro - 1886/1906. Niterói: ICFH/UFF, 1980. Dissertação de mestrado. Publicada pela Secretaria Municipal de C u ltu ra/R J, 1986; ROCHA, Osw aldo Porto. A era das demolições: a cidade do Rio de Janeiro - 1870/1920. Niterói: ICFH /U FF, 1983. Publicada pela Secretaria Municipal de C ultura/RJ, 1986; BRENNA, Giovanna Rosso Del. O Rio de Janeiro de Pereira Passos. Rio de Janeiro: PUC, 1985. ( 2 ) Especialmente ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora em Inglaterra. Porto: Apontamento, 1975; Sobre o problema da habitação. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975, D ialétka da natureza. São Paulo: M artins Fontes, 1975; A questão da habitação. Belo Horizonte: Aldeia Global, 1979. ( 3 ) \er PEREIRA, Soma Gomes. A reforma urbana de Pereira Passos e a construção da identidade carioca. Rio de Janeiro: ECO /U FRJ, 1992. Tese de doutorado. ( 4 ) GOÍTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. São Paulo: EDUSP,

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( 5 ) MARX, Karl. Pre-capitalist economic form ations. New York: International ubhshers, 1964; Capital. New York: New Word, 1967, vol.3; Grandisse. New York: Vintage, 1973. ( 6 )

(7 )

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Espeaalmente LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville. Paris: Anthropos, 1968, La re­ volution urbaine. Paris: Gallimard, 1970; La pensée marxiste et la ville. Paris: La pr0ciuction de l'espace. Paris: Anthropos, 1974. K LLENKOr F J. "Paths towards the post-ind ustrial service citv: The Northeast and the Southwest". In BURCHELL & LISTOKIN. Cities under stress.

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SONIA G O M E S P E R E I R A

New Brunswick: Rutgers University Press, 1981. ( 8 ) BOOKCHIN, M. The ecology o f freedom. Palo Alto: Cheshire Books, 1984. ( 9 ) ABREU, Maurício de. Evolução urbana do Rio de Janeiro. 2a ed. Rio de Janeiro: ÍPLAN RIO/Zahar, 1988. ( 10 ) SANTOS, Milton. "Sociedade e espaço: a formação social como teoria e como modelo In Boletim paulista de Geografia, n.54, junho/1977; Espaço e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979. ( 11 ) SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Zahar, 1981. ( 12 ) SAHLLINS, Marshall. Culture and practical reason. Chicago: University of Chicago Press, 1976. ( 13 ) SANTOS, C. N. F. (1981) pp. 237-238. ( 14 ) CASTELLS, Manuel. "Post-facio à questão urbana". In Seleção de publicações dos geógrafos brasileiros. São Paulo: Maspero, 1975. ( 15 ) SODRÉ, Muniz. O terreiro e cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988. ( 16 ) BORGES, Jorge Luis. Aleph. 6a ed. Rio de Janeiro: Globo, 1986, pp. 132-133. ( 17 ) FOUCAULT, Michel. "Des espaces autres", palestra de 1967, publicada no pe­ riódico francês Architecture-Mouvement-Continuité em 1984 e em Diacritics em 1986, p. 22. Ver também Microfísica do poder. 5a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985 ( 18 ) FOUCAULT, M. (1986) p. 23. ( 19) I p. 27. ( 20 ) Publicada em RABINOW, P. The Foucault reader. New York: Pantheon Books. 1984. ( 21 ) SOJA, Edward W. Geografias pós-modernas - a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. ( 22 ) Luciano Patetta, François Loyer, Arthur Drexler, Robin Middleton, David Watkin, entre outros.

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Augustin Rey - Um Arquiteto "Beaux-Arts" na Cruzada do Urbanismo Moderno Augustin Rey, autor do projeto original do Palácio Piratini (Porto Alegre), em 1908, é des­ conhecido no Brasil, embora tenha sido, na França, uma das figuras mais significativas da discussão habitat social/higiene urbana. A análise de sua trajetória profissional sugere uma aparente contradição: de um lado, a ima­ gem do arquiteto/artista, ligado à encomenda oficial de prestígio, e de outro, a do porta-voz de inovações ligadas ao movimento de "arqui­ tetura científica". A pluralidade de enfoques e relações sugeridos em tal estudo de caso, re­ vela-se exemplar para entender as direções de uma profissão que se transforma em levantar críticas sobre a retórica descritiva de arquitetu­ ra enquanto monumento, no contexto das vicissitudes dos concursos internacionais. Eis os temas deste artigo, que trata de alguns ní­ veis da relação entre atores sociais, arquitetura e história urbana. Arte Urbana História da Arquitetura Biografia Intelectual

HELIANA ANGOTTI SALGUEIRO Doutora em História da Arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, professora na Universidade de São Paulo (ECA) e bolsista do CNPq, pesquisa atualmente a história cultural da arquitetura e do urbanismo no século XIX, enfo­ cando a transferência e a transformação de mode­ los europeus (especialmente franceses) no Brasil, a partir de seus atores, leituras e práticas.

Na passagem do século XIX ao XX, a arquitetura ocupa o centro dos debates urbanos. Um movimento de teorias e projetos entre 1900/1914 dá origem a uma reflexão complexa que solicita níveis variados de enfoques. Entre estes, os dados de um estudo de caso revelam que as questões passam, por um lado, pela internacionalização da cultura arquitetural e urbanística francesa, atestada, por exemplo, pela presença de seus profissionais nos concursos em vários países, e por outro lado, pela nova política municipal e regional das cidades em franco crescimento, política na qual estes arquitetos também se inscrevem. E nesta chave de reflexão aparentemente dualista que se situa minha ParJ da elevação principal do imóvel para a Fundação Rothschild, p *8, rue de Prague, 1906. ■'3 Partir de Les Concours Publics d Architecture, 1909. GÁVEA. 13 (13),setembro 1995

projeto de Augustin

Rey.

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Agustin Rey - Um arquiteto "Beaux-Arts" na cruzada do Urbanismo Moderno

análise sobre Adolphe-Augustin Rey, caso exemplar (segundo a terminologia da "micro-história"), para se estudar alguns aspectos deste movimento de "arte urbana" do começo do século (1). Vencedor do concurso do Palácio do Governo do Rio Grande do Sul em 1908, Augustin Rey é desconhecido no Brasil, embora tenha sido até os anos 1930, na França, uma das figuras mais significativas da discussão habitat social/higiene urbana. Dados do itinerário profissional de Rey constituem ele mentos importantes para conduzir a reflexão sobre cultura arquitetural e cidade, na qual ele se insere. Diplomado pela École des Beaux-Arts em 1888, Rey faz pro­ jetos codificados como capelas de província, exercícios de escola como uma ponte entre a França e a Suíça, participa de salões <2), mas demonstra também em sua trajetória que a arquitetura da famosa escola não estava alheia aos problemas urbanos, contrariando as críticas que foram feitas durante anos a seu academismo; e, que seus discípulos, estigmatizados como "arquitetos-artistas" não apenas estavam aptos à responder às grandes comandas públicas, participando de con­ cursos para monumentos oficiais de prestígio e intervenções na cidade, como o concurso para a Exposição Universal de 1900 (em que Rey é classificado), como também se revelavam conscientes e atuantes no cenário das reformas urbanas Encontramos então Rey engajado nas campanhas que marcam o nascimento do urbanismo moderno e da "arquitetura científica", participando do Museu Social, de congressos sobre a habitação e a tuberculose e vencendo em 1906 um dos célebres concursos da fundação Rothschild. Esta fundação empenhada em construir alojamentos salubres e econômicos cujas disposições arquitetônicas fugissem das tipologias dos conjuntos operários anteriores (fig. 1), procurava inovações exemplares, como as criadas por Rey no seu projeto lau­ reado: pátios abertos permitindo a aeração (vide o esquema da incidência dos ventos, na fig. 2) e a insolação de todas as fachadas (5). O que teria levado aquele que estava para se tornar um dos maiores especialistas em questões de higiene urbana e preocupado com os programas de habitat social a participar de um concurso cujo programa convencional era o de um palácio de governo, num país longínquo como o Brasil? Ora, ao historiador apressado essa trajetória pode parecer inconciliável, contraditória, ou "aciden­ tal . Mas, sem anacronismos, podemos entendê-la na pluralidade de situações às quais os arquitetos eram convocados, intrinsicamente ligadas às transformações da cidade. A trajetória de Augustin Rey mostra que as mudanças na carreira dos arquitetos se apresentam com ritmos e tempos diversos e que a mobilidade de interesses aparece mais como uma regra do que como uma excessão no debate profissional do começo deste século. Além disso, uma série de representações 428

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Fig. 2 - Esquema da incidência dos ventos no quarteirão do imóvel da rue de Prague. desenhos de Augustin Rey, in L Architecture, n° 36, 1905, fotocópia da prancha 41.

que circulam ao longo do século XIX sobre a cidade salubre começam a ser colo­ cadas em prática. Sabemos ainda, que em plena modernidade são mantidas ca­ tegorias de pensamento e modelos formais de uma arquitetura clássica e que, não raro, a reflexão urbana está a frente da arquitetural - é o que constatamos também na nossa tese sobre Belo Horizonte *6). A arquitetura se introduz na vida da cidade - do monumento excepcional" às obras de uma nova política urbano-social, o debate da geração de arquitetos a que pertence Rey passa pela ruptura entre valores estéticos e vaGÁVEA. 13 (1 3 ), setem bro 1995

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lores de uso, mas só se concretiza nos anos 1920. Devemos reter por exemplo, que Augustin Rey precede Le Corbusier ao construir a teoria da direção heliotérmica da rua" e tratar das vantagens salubres da "penetração dos raios diretos do sol em todas as habitações", erigindo a luz solar como o supremo fator da vida", temas que serão reafirmados anos mais tarde ao lado de outras preocupações do urbanismo moderno: habitação de massa, gestão do solo das cidades, saúde pública. Escolhemos analisar neste artigo dois aspectos, entre os que se arti­ culam ao estudo de caso Augustin Rey: as vicissitudes dos concursos públicos entre a França e o Brasil, e o projeto para o Palácio Piratini. Quanto aos concur­ sos, lançaremos mão de uma série de exemplos, em seguida discutiremos o pro­ jeto de Rey à luz de seus escritos, recusando tanto a descrição tradicional quan­ to as interpretações ideológicas. A transferência de modelos tem vários veículos no século XIX - das instituições de formação arquitetural à circulação de periódicos, os concursos internacionais que convocam figuras das primeiras e são anunciados nos segun­ dos por editais, constituem um capítulo pouco estudado. Em 1883 lê-se, por exemplo, na Construction Moderne, sobre um concurso no Rio de Janeiro para a construção de uma biblioteca e arquivo nacional, no qual um arquiteto francês, Auguste Sauvage, obteve o 1- prêmio (a pesquisa recente revelou-nos que este teve uma carreira medíocre). Em 1884, na La Semaine des Constructeurs, lemos que, após a convocação e o embarque das caixas de desenhos no porto de Bordeaux, nada mais foi comunicado aos concorrentes. O fato confirma a descon­ fiança internacional quanto à seriedade dos concursos brasileiros nos seguintes termos: o que adianta aos arquitetos franceses desperdiçar seus talentos e perder seu tempo participando de tais concursos no exterior, se o julgamento corre o risco de não ser revelado?" <?>. A indiferença do governo brasileiro pelos grandes projetos públicos é um leitmotiv das queixas dos profissionais da época. Apesar de ser freqüente a primazia francesa nos concursos brasileiros, circula paralelamente um discurso nacionalista, ao contrário do que se pensa, que pede pnondade aos arqmtetos do país, razão provável, embora parcial, para explicar porque o projeto de Sauvage foi colocado de lado «>. Em 1907 na T

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Agustin Rey - Um arquiteto "Beaux-Arts" na cruzada do Urbanismo Moderno

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HELIANA ANGOTTI S A L G U E IR O

Jose de Magalhães denunciava nos concursos brasileiros: programas confusos para edifícios que deviam abrigar uma multiplicidade de funções (9); e segundo a inovação que representava o terraço, acima do salão de festas, no topo do edifí­ cio, onde os jovens ginastas brasileiros poderiam evoluir em seus movimentos disciplinados" HO). Este terraço em 1907 estaria mais próximo funcionalmente dos edifícios criados por Fritz Lang nas primeiras cenas do Metropolis em 1925, do que das soluções de terraços privados de um contemporâneo de Rey, como Louis Bonnier (malgrado a diferença radical de estilo arquitetônico em relação ao primeiro exemplo). Passemos ao projeto premiado de A. Rey para o Palácio Piratini, cuja descrição e pranchas encontramos nos arquivos parisienses dl). Na história dos concursos internacionais, não é a primeira vez que o nome do laureado é rapidamente esquecido seja porque a execução não é imediata, seja pela com­ plexidade das relações entre a política, a gestão urbana e os profissionais locais. Deixando de lado as vicissitudes do concurso d2), vamos encaminhar questões que possam responder a uma revisão metodológica da História da arte e de sua linguagem - assim, diante da descrição do projeto laureado de Rey, perguntamonos: de que vale hoje descrever? Por quais termos tem-se alimentado a descrição em arquitetura? Das banalidades de uma retórica formalista passepartout, às certezas esquemáticas de frases lugar-comum marcadas pela ideologia da "artereflexo", a maior parte das descrições não vai além das generalidades de etique­ tas e categorias trans-históricas rotineiras. O que nos interessa aqui não é evi­ dentemente retomar os termos da descrição do projeto mas analisar algumas das categorias aí empregadas. Estas constituem os critérios mesmos do monumento tradicional - vista, altura, grandeza, centralidade (13) - , inscrevendo-se nas re­ presentações da época. A virtude m aior do palácio do Governo do Rio Grande do Sul (fig. 4), segundo a sua descrição, é a monumentalidade, à qual se faz referencia em vários níveis: o vocábulo monumento, ou seus derivados, aparece reitera dezessete vezes num texto de dezesseis parágrafos. A torre, por exemp o, dupla função: para se ter uma vista da cidade e para ser vista a respondendo a uma das principais representações da época sobre a cidade e a arquitetura (lembremo-nos de desenhos de Eugène Hénard sobre as a d a d « ^ futuro, em 1910). Alguns textos que circulavam no Rio c e Ja" eir°

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Agustin Rey - Um arquiteto "Beaux-Arts"

na cruzada do Urbanismo Moderno

juntas e estão presentes internacionalmente nos textos, projetos e fotografias. (O antigo edifício dos Correios em Belo Horizonte, por exem plo, destacava-se nas vistas da nova cidade como uma das imagens preferidas pelos fotógrafos da época). Voltando ao projeto de Rey, há duas observações interessantes quanto à figurabilidade, permeando a descrição convencional: afirma-se que o arquiteto não projetou cúpulas, apesar de ser um elemento "m onum ental", pois 434

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seu uso havia se tornado abusivo nos últimos anos em todos os concursos inter­ nacionais; a segunda observação é que as cúpulas e telhados com mansardas, típicos da arquitetura francesa, haviam sido substituídos por terraços, pois sé adaptavam muito mais, segundo o próprio Rey, às condições climáticas do país. Questão complementar a reter na descrição é que o conceito de monumento não se reduz apenas ao aspecto arquitetural, mas ao espacial - na relação do edifício com o sítio e o entorno, na busca dos efeitos visuais. A descrição aparentemente convencional ganha ainda, se inscrita em alguns dos textos representativos do pensamento de Rey, em que se pode perceber melhor os conceitos e precisar as relações com a obra construída. Rey escreveu uma série de opúsculos entre os quais Une révolution dans l'art de bátir (1921), e um livro que marcou época, La Science des plans des villes (fig. 5), concebido em 1914 e publicado com colaboradores somente em 1928, cujos temas principais são “a construção, extensão, higiene e beleza das cidades e a orientação solar das habitações", princípio fundamental, que ele apresenta como uma verdadeira teoria, vimos, defendida desde o concurso para a fundação Rotschild <14). A leitura dos textos de Rey mostra o papel da arquitetura num capí­ tulo entitulado "La beauté des villes", em que se pode reconhecer pontos de con­ tato com a descrição do seu projeto para o palácio brasileiro. Na descrição deste

Fig. 6 - Palácio do Governo do R '° ^ rand* p\oSu ^ d Architecturei ano XXII. projeto de Augustin R ey^ ^ õ h a S a f e r i a r ) . Paris 1908, F.A. da prancha 58 (tacnauc v 435 GÁVEA. 13 (13), setem bro 1995


Agustin Rey - Um arquiteto "Beaux-Art" na cruzada do Urbanismo Modw»

Fig. 7 - Palácio do Governo do Rio Grande do Sul.

projeto de Augustin Rey, in L e s C o n cou rs Publica d Architactura. ano XXII,

Paris, 1908, F.A. da prancha 56 (planta, detalho).

palácio observamos a insistência na questão clássica qut o Século \l\ rvtomae aiTipha > da "arquitetura combinada com a s belezas naturais", pensada na composiçao com o sitio e a agua, uma axquitetura COOIO "elem ento harmonioso" do tacão ri »1 80 uÇÒes do projeto, seus jardins, «tuaçfto topogréficseimpbn* X o h a u s " 9 atenÇâ° dG Rey 3 CSteS < % . o 7 n reafirmados no deste século 3110 e "etam ados no m ovim ento de "arte urbana" do começo bom lembrar a guisa d reconstituir analogias

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de uma tipologia rígida para o programa de palácios de governo, e a margem de invenção estilística e de inovação técnica reduzidas, já que formas, materiais e práticas circulam. Uma arqueologia da construção civil no Brasil está para ser feita, porem, notícias fragmentadas nos permitem entender porque se dava preferên­ cia ao material importado, porque se contratavam firmas estrangeiras para as instalações elétricas, hidráulicas e acabam en to^). a racionalização da cons­ trução sí’ taz mais em termos práticos do que ideológicos, ao contrário do que se afirma (,h). Ela é um dado a mais da construção moderna no ganho de tempo e de qualidade; o incipiente contexto industrial do país, as distâncias e a irregu­ laridade dos transportes por terra, as dificuldades de extração, a especulação e a mão-de-obra despreparada explicam ainda porque o material e os profissionais estrangeiros são bem acolhidos nas grandes obras públicas da época. Não poderíamos deixar também de constatar o risco das generali­ dades descritivas, em se tratando de um palácio de governo, marcadas pelos lugares-comuns: "arquitetura como expressão" ou "instrumento" político de um regime, "espelho", sím bolo etc. A idéia da arquitetura como metáfora do políti­ co e do ideológico é mais complexa do que se pensa, pois de um lado está a matéria e o espaço construído, do outro, estão as relações intersubjetivas de autoridade, poder, de realização possível e de recepção. Entre os dados do domínio sensível, e os do inteligível a reflexão mal começou (17^. Entre as análises alternativas mais recentes, uma série de autores tem considerado que a arquitetura não tem uma linguagem imediatamente per­ ceptível e que a iconologia importa menos que o caráter decorativo ou a figurabilidade em si do monumento - a "m ensagem " sendo suplantada pela eficácia visual e efeito expressivo, que, ao olhar dos que passam contam mais do qut um eventual conteúdo retórico e discursivo que não diz muita coisa ao espectador comum. Paul Veyne, entre os historiadores e Jean-Claude Passeron da nova ologia da arte, têm afirmado a força da imagem pela imagem não imp obrigatoriamente a comunicação de mensagem * ^ As relações de um regime político ou de uma crença com as formas arquitetônicas de um edifício esperam estudos aprofundados o tema oge! limites deste artigo mas merece algumas considerações s e emen s (identes para que possam os nos interrogar, no Brasil, sobre a exis ei

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cívico da estatuomania, do encorajamento político consciente do consumo de símbolos e monumentos, suas modalidades e variantes de significado, tm nome da afirmação oficial da república ao longo do século XIX. Este tema de pesquisa inscreveu-se oportunamente na historiografia francesa comemorativa de 1/89, e as análises decorrentes tentadas nos demais países, só podem ter consistência se o nível das generalidades for ultrapassado pela pesquisa exaustiva de situações particulares. Semelhantes pelos símbolos, "décor" e slogans, os movimentos po­ sitivistas, por exemplo, se diferenciam pela história que lhes faz fundo. Se considerarmos as dificuldades das relações entre uma intenção política e seu estilo de referência, muitas vezes variável, conjuntural e ligado a uma série de circunstâncias complexas que vão além de signos externos da re­ presentação, teríamos igual cuidado em definir a arquitetura do palácio Piratini como "positivista". A descrição do projeto serve-se do vocabulário hiperbólico costumeiro da época para este tipo de encomenda, destacando monumentali­ dade e ruptura de escala, conceitos codificados a nível internacional, e que se estendem também a edifícios sem ligação histórica ou conceituai com a doutrina positivista. Quanto à tônica da descrição que enfatiza a relação do monumento com os "altos feitos patrióticos do país", esta e outras frases inscrevem-se na retórica do tempo, da mesma forma que a representação grandiosa. Numa críti­ ca complementar, lembremo-nos que a palavra positivista tornou-se um epíteto banal, no século XIX não se referindo expressam ente a doutrina de Auguste Comte, o adjetivo designa, por exemplo, o progressismo que a partir de 1860 quer conferir à história e à filosofia o estatuto de disciplinas científicas. E ainda, a expressão século positivista" está freqüentem ente ligada ao debate pelo ensid° Pa ‘SST 6 lndUStria1' 30 cult0 da °iência e do progresso, Ieitmotiv das tem s d d0Utnnaí‘ contemporâneas, como o saint-simonismo - cuja importância se

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HELIANA ANGOTTI SA LG U E IR O

quitetura brasileira, uma vez que as fontes clássicas - memórias, projetos, progra­ mas - perderam-se ou não chegaram a ser formulados dado o contexto empírico de construção ou ao pouco valor que se dava no país a estes documentos (úteis apenas enquanto o canteiro de obras estava em atividade). Além disso há de se formular novas perguntas às fontes possíveis, “reinventando-as” se preciso for. Das reflexões a níveis diversos que terminamos aqui eu gostaria de reafirmar duas: a importância do novo gênero biográfico ou o valor geral de um estudo de caso na construção da história urbana e as novas abordagens da asso­ ciação clássica arquitetura/urbanismo, uma e outro, articulados e constituindo hoje um campo fértil de investigações cruzadas entre a história da arte e a história da cidade.

Notas ( 1 ) Os indivíduos ou atores sociais e suas trajetórias, que haviam sido negados pelas "seduções formalistas" ou pelos pressupostos da lingüística e do estruturalismo dos anos 1960/70, e ainda pela história quantitativa, voltam a ser importantes na reflexão histórica. Assim, a mudança de enfoques: das estru­ turas às redes de relações, dos sistemas gerais às situações vividas, das normas coletivas às estratégias singulares dos itinerários profissionais, conforme propõe Roger CHARTIER em "Le temps des doutes", in "Pour comprendre l'H istoire", Le Momie, 1 8 /0 3 /1 9 9 3 , p. VI. Minhas opções metodológicas inscrevem-se ainda no contexto intelectual da micro-história citado por Jacques REVEL, "L'histoire au ras du sol", prefácio a Giovanni LEVI, Le pouvoir nu vil­ lage. Histoire d'un exorciste dans le Piémont du XVIIe siècle, Paris, 1992, e especialmente na reflexão de Bernard LEPETIT, "Architecture, géographie, histoire: usages de l'échelle", in Genèses, nQ13, Paris, 1993. Sobre a arte urbana, cf. JeanLouis COHEN, "Les architectes français et l'Art urbain (1900-1914)", in Les pre­ miers urbanistes français et l'art urbain: 1900-1930, textos reunidos e apresentados por J.-P. Gaudin, R. Baudoni, D. Calabi, e al. Paris, IFA /Plan Urbain, 1985-86, pp. 71-88. ( 2 ) A. Augustin Rey (1864-1934) é francês mas nasceu em Milão; estudou na École des Arts Décoratifs e em seguida foi aluno do atelier de J. J. André na École des Beaux Arts de Paris. Sobre Rey e sua obra ver: para o rendu de I a classe, "Un pont limitrphe entre la France et la Suisse", as pranchas estão no Croquis d'Architecture - Intime Club, na XII, 1887; sobre a participação nos salões entre 1885 e 1908, cf. L'Architecture (vários anos), no seu dôssie do Serviço de docu­ mentação do Museu d'Orsay - Rey apresentou projets d'église pour une com­ mune, marché couvert (1885, 1888), tombe (1903), detalhes e estudos de torres, esculturas, batistérios, chaires das igrejas Saint-Paul, Bon Secours e Montmartre, em Paris (1904 e 1908) maisons à petits loyers pour veuves et familles d'ouvriers, habitations ouvrières (1905, 1906) e um programa tipica­ mente "Beaux-Arts": salle à manger d'été pour une villa (1907). ( 3 ) Les Concours Publics d'Architecture 1895 à 1900. Cf. pranchas do concurso para a exposição universal de 1900, de Tronchet e Rey, classificados em 3e lugar - pran­ chas que vão desde vistas de conjunto e de situação dos monumentos na cidade, como pontes, até desenhos de fachada e cortes de palácio no Champs de Mars e também edículas de acesso a estações de metrô.

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( 4 ) 0 Museu Social fundado na Exposição Universal de 1889 é uma instituição que sustenta uma série de iniciativas de economia social (vide as idéias de F. Le Play) em favor dos alojamentos sociais e que funciona como uma espécie de "laboratório de idéias" com numerosas publicações e missões sobre as habitações operárias e a higiene urbana e rural, dando origem por suas comis­ sões de estudos, à Société Française des Architectes Urbanistes. Rey foi membro da "Section d'hygiène urbaine et rurale" desta instituição e depois da SFU, onde presidiu durante anos a Association des H ygiénistes et Techniciens Municipaux. Sobre a concepção de cidade salubre exposta no congresso de tuberculose em Washington, o texto de Rey está em L Architecture, n- 4, de 23/01/1909. Cf. notícias bibliográficas sobre A. Rey em j. P. EPRON (dir.), La Culture Architecturale, IFA/Mardaga, 1992 e em J.-P. GAUDIN, Desseins de Villes - "Art Urbain et Urbanisme". Paris, L'Harmattan, 1991, p. 170. ( 5 ) Cf. "Concours de la Fondation Rothschild", L'Architecture, iV 36, 09/09/1905, pp. 336-337, citado por J. PEPRON, op. cit., pp. 54-57 e Les concours publics d'architecture de L. Farge, 9Üano; Jean TAR1CAT e Martine VILLARS, Le logement a bon marché: chronique - Paris 1850-1930. Bolonha, ed. Apogée, 1983; MarieJeanne DUMONT, Le Logement Social à Paris 1850-1930: les habitations à bon marché. Liège, P. Mardaga ed., 1991 (3° parte: "Pour une architecture scientifique de l'habitat urbain - les théories 1905-1914)". Os membros do júri do concurso da Fondation Rothschild eram arquitetos famosos, todos saídos da EBA e não raro detentores de Grand Prix de Rome: Victor Laloux, arquiteto da estação d'Orsay, inaugurada em 1900; Paul-Henri Nenot, vencedor do concurso para o monumento de Vitor Emanuel em Roma, cujo projeto é muito mais espacial e urbano do que arquitetural, mas que foi deixado de lado pois ele era francês (isto em 1882, ano em que ganhou também o concurso para reconstrução e ampliação da Sorbonne); Pascal e L. Bonnier, também da EBA, o primeiro, chefe de um atelier prestigioso, o segundo, mais ligado a uma arquitetura marcada pelo racionalismo construtivo e associada ao urbanismo moderno. ( 6 ) 0 interesse pela higiene e sua articulação com a realidade urbana não é um apanágio do começo do nosso século; sem pretensões neste artigo de traçar-lhe os primórdios no cenário internacional e nacional lembremo-nos, para o perío­ do que nos interessa, que em 1886 já existia no Brasil um periódico, Revista dos Construtores, que confirma a vontade de unir esforços de todos os construtores (daí o nome da revista) para reorganizar a cidade, sob a égide da HIGIENE, sub­ título destacado pelas maiusculas. Nesta revista, que circulou com interrupções até 1889 (além da tentativa de volta, sem sucesso, em 1895) encontramos as mes­ mas idéias em circulação na França, entre as quais, a consciência de estar viven­ do tempo de transformações que exigia do arquiteto conhecimentos técnicos impostos pela em ergência de novos m ateriais. Cf. Heliana ANGOTTI SALGUEIRO, "Ingénieurs et Architectes dans la ville: les conditions d'un débat in, Belo Horizonte: histoire d une capitale au XIX e siècle. Représentations urbaines et architecturales françaises au Brésil —une étude de cas, Très vols. Tese de Doutorado em História (História da Arte), Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, junho de 1992. (Em curso de publicação pela Ed. Flammarion/EHESS). Na virada do século certas representações estereotipadas do debate eng/arq que vigoram por muito tempo começam a mudar. O arquiteto vê seu itinerário profissional tornar-se complexo; a urbanização crescente e o aumento popula­ cional trazem alterações nas encomendas. O próprio Rey assinala mais tarde, em um de seus livros, que a profissão de arquiteto evolui e que exige um tra­ balho de colaboração com engenheiros especializados nos diversos ramos da indústria da construção. Cf. La Science des Plans de Villes (ses applications à la construction, à l'extension, à l'hygiène et à la beauté des villes, orientation GÁVEA. 13 (13), setembro 1995


HELIAN'A ANGOTTI SA LG U EIR O

solaire des habitations. Lausanne, Payot ed./Paris, Dunod, 1928, p. 202. ( 7 ) Cf. Le C oncours de Rio-Janeiro", in La Construction M oderne, Paris 2 3 /0 1 /1 8 8 6 , pp. 177-178 e 3 0 /0 1 /1 8 8 6 , p. 189, e "Le Dossier des Concours - lé concours de Rio de Janeiro", in La Semaine des Constructeurs, nc 9, Paris, 3 0 /0 8 /1 8 8 4 , p.100. Este projeto, em mau estado de conservação, que encon­ tramos na seção de documentos do Museu d'Orsay, é tido como o único dese­ nho de arquitetura apresentado na Exposição universal de 1889 na seção brasileira. Cf. Classe IV, Empire du Brésil, Catalogue Officiel, Paris, Imprimérie Chaix, 1889. Neste Concurso, o segundo lugar coube a Francisco Caminhoá que comunica o resultado e envia congratulações a Sauvage, conforme se lê em La Construction Moderne. Caminhoá observa, entre os concorrentes, projetos vin­ dos da França, Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Sobre F. Caminhoá, que foi aluno da Ecole des Beaux-Arts de Paris, estou elaborando um ensaio, no quadro de uma pesquisa de pós-doutorado intitulada "Arquitetura, arte urbana. Atores e leituras no Brasil do século XIX". ( 8 ) Quem defende a "nacionalidade" dos concursos é Félix Ferreira, em Bellas Artes, estudos e apreciações, Rio, 1884, p. 213. Mas a presença dos arquitetos franceses nos concursos internacionais confirma sua reputação, dada a aura de com­ petência e experiência que a crítica jornalística da época lhes atribui, mantendo a imagem de prestígio que desfrutam. Revistas como Architecture Usuelle, La Construction Moderne, Les Concours Publics d'Architecture noticiavam os editais de concursos abertos nas diversas partes do mundo, cujos programas deveriam ser solicitados na redação destes, nas prefeituras locais, ou muitas vezes, como no caso de alguns concursos brasileiros, na Société Centrale des Architectes Français, em Paris. Cf. por exemplo, Supplément à l'Architecture Usuelle, n° 7, 1903-1904, sobre o concurso para a construção de um teatro no Rio. ( 9 ) Sobre José de Magalhães, responsável pelos projetos de arquitetura oficial de Belo Horizonte, ver minha tese de Doutoramento, citada supra. Suas opiniões são transcritas nas crônicas de Alfredo Camarate, de 1894, reeditadas na Revista do Arquivo Público Mineiro ano XXIV, 1985, ou ainda expostas em relatórios sobre obras no Rio de Janeiro, cf. Revista dos Construtores, 28/09/1886. (10) Cf. "N os architectes à l'étranger - l'H ôtel du Jornal do C om m ercio", in Revue G énérale de la Construction, Paris, nu 83, 1907. O autor do projeto é Auguste H ughier (aluno da Ecole Spéciale d'A rchitecture, dirigida pelo racionalista E. Trélat), sobre o qual há uma pequena biografia, foto e descrição do proje­ to (veja fig. 3), no Journal de la M arbrerie et de l’Art Décoratif, suplem ento da revista citada acim a. (11) "P alais du G ouvernem ent do Rio G rand e do Sul", in Les Concours Publics d'A rchitecture, X lle année, Paris, 1908, pp. 25-36 (pranchas 56 a 59). O estu d o do pensam ento de A ugustin Rey, no seu livro editado nos anos 20, evidencia preocupações que já estavam presentes, por exem plo, nas con­ cepções d e A arão Reis para Belo H orizonte em 1894, com o o problema do transporte urbano, da largura das ruas, dos passeios, da presença da vege­ tação, da im portância das praças e das grandes vias m onum entais. E tam­ bém, na legislação de 1901 da nova capital mineira, que intenta disciplinar as "d esp ro p o rçõ es anti-estéticas" que desfiguram a harm onia de conjunto da cid ad e por falta de um a pad ronização de gabaritos ou d e saliências de fachadas. C onstata-se com isso um a reflexão de arte urbana de longa duração, sem fronteiras, d escontínua, m as com referências semelhantes: Reis com o Rey são leitores de enciclop édias de higiene e de clássicos dos anos 1870, com o C harles Blanc. A m bos entendem a cidade com o um con­ junto "h arm o n io so ", com o o faziam C harles Fourier e Jean Reynaud. Sob o título, "L a beauté des villes", Rey enxerga a imagem "anti-estetica de cer-

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tas construções nos m esm os termos dos seus com patriotas socialistas-utópi­ cos e saint-sim onianos. A reconstituição da circulação dos textos, comprova a universalidade das referências e a intem poralidade dos debates. Atribui-se hoje o Palácio Piratini a M aurice G ras esquecendo-se o nome de Augustin Rey. G ras apropriou-se do projeto original de Rey, trazendo-lhe algumas m odificações. Segundo os dados su scintos do DELA1RE, Les archi­ tectes eleves cie l'Ecole des Beaux-Arts, C harles-M aurice Gras nasceu em 1873, em Paris, e foi aluno do atelier de H. D aum et, em segunda classe, em 1893. Normalmente os concursos davam lugar a discussões sobre mudanças na arquitetura, além de serem um espaço de circulação internacional de mo­ delos - o estudo com parativo dos projetos perm ite análises sobre as tendên­ cias e pensam ento arquitetural. Todo concu rso público e a subseqüente encomenda da obra são precedidos, um e outro, de um debate, em que as idéias do m unicípio, do estado, dos arquitetos sobre o projeto podem ou não ser com uns; até agora nos trabalhos escritos sobre o Palácio Piratini os termos deste debate não estão suficientem ente elucidados - a pesquisa nos jornais da época e em docum entação diretam ente relacionada ao evento poderia responder a um a série de questões, que deixam os como sugestão aos pesquisadores locais, entre as quais: elucid ar criticam ente as represen­ tações dos contem porâneos sobre cidade e arquitetura ao nível regional e nacional, analisar o programa do concurso além do enfoque ideológico que tem sido privilegiado, com parar os projetos concorrentes, analisar os ter­ mos do relatório do júri e os da recepção do projeto. Sobre a questão ver, Dom inique RO U ILLA RD , "L'A m érique n'a pas de monum ents", in Am éricanism e et M odernité - l'idéal américain dans l'architec­ ture (direção de J.-C O H EN e H. DAM 1SCH), Paris, EH ESS/Flam m arion, Coleção Histoire et théorie de l'A rt, 1993. N um a arquitetura como a brasileira do século XIX, em face da pequena escala das construções em geral, mesmo dos edifícios públicos, d eve-se falar de escala relativa (P. Boudon), ou em term os de percepção - d e im pressão, visibilidade ou de relação ao espaço e sua vizinhança, o con ceito de monumento não se reduzindo ao aspecto arquitetural, mas ao esp acial, este modificando-se no curso da evolução da cidade. Cf. A. Augustin REY, Justin PIDOUX e C h arles BARDE, "U ne Révolution dans l'art de bâtir - l'orientation solarie d es habitations." (Institut Pasteur Congrès d 'H ygiène, novem bre, 1921). Paris, Jules M eynial ed., 1921. Augustin REY, lut Science des plans de villes, op. cit. Sobre as encom endas feitas na França para as obras do Palácio Piratini, as firmas francesas são citadas por Fernando C O R O N A , Palácios do governo do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1973. Uma notícia na revista La Construction M oderne em 1 6 /1 1 /1 8 9 5 , p. 79, con­ firma o hábito entre os arquitetos franceses estabelecidos na Argentina de fazerem contatos com as indústrias francesas fornecedoras de materiais de acabamento para seus projetos. Na m inha op inião a preocupação de impor­ tar materiais nobres se inscreve também no processo de transform ação da arquitetura no século XIX quando algu ns arquitetos se rebelam, num primeiro mom ento, contra os materiais "fa lso s" ou artificiais. Dóris M. M. de BITTENCOURT. "O s esp aços d o poder na arquitetura do período positivista no Rio G rande do Sul: O palácio do governo". Dissertação de m estrado, PUC, 1990. A gradecem os a gentileza da autora de nos ter enviado seu trabalho.

(17) Ver entre outros, Sylvianne AGACINSKI, V olum e - philosophies et politiques de I architecture. Paris, Ed. Galilée, 1992, pp. 37 e ss. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995


HELIANA ANGOTTI SA LG U EIR O

(IS) Paul V EYN E, "Propagande expression roi, image idole oracle", in L'HOME - R evu e F ran çaise d'an thropologie, nu 144, Paris E H ESS, 1990; J.-C. PASSERON , L usage faible des im ages, contribution à une sém iosociologie de la récep tion", in Journées d e l'EH ESS, Montrouge e M arselha, 1987. Paris, EH ESS, 1990.

Bibliografia AGA CIN SKI, Sylvianne. Volume - p h ilosophies et politiques de l'architecture. Paris, Ed. G alilée, 1992. ANGOTTI SA LG U EIR O , H eliana. B elo H orizonte: histoire d'une capitale au XIXe siècle. R eprésentations urbain es et architecturales fran çaises au Brésil une étude d e cas. 3 vols. Tese de Doutorado em História (história da Arte), École des H autes Études en Sciences Sociales, junho de 1992. (Em curso de p u blicação pela Ed. Flam m arion/EH ESS). CH A RTIER, Roger. "L e temps des d o u te s", in "Pour com prendre l'H istoire", Le M onde, 1 8 /0 3 /1 9 9 3 . COH EN, Jean-L o u is et alli. "L es architectes français et l'A rt urbain (19001914)", in Les prem iers urbanistes français et l’art urbain: 19001930, Paris, IFA /P lan U rbain, 1985-86. DUMONT, M arie-Jeanne. L e Logem en t Social à Paris 1850-1930: les habitations à bon m arché. Liège, P. M ardaga ed., 1991. EPRON, Jean -P ierre (dir.). La C ultu re A rchitecturale (A rchitecture, une anthologie, tom o 1), P a r is /Bruxelas, IFA /M ardaga, 1992. ,1m com m ande en A rchitecture (Architecture, une anthologie, tomo 3), P a r is /Bruxelas, IF A /M ard ag a, 1993. LEPETIT, Bernard. "A rchitecture, géographie, histoire: usages d e l'échelle", in G enèses, nu 13, 1993. ROUILLARD , Dom inique. "L 'A m ériqu e n'a pas de m onum ents", in A m éricanism e et M od ern ité - l'idéal américain dans l ’architecture (direção de J.-L. C O H E N e H. DAM ISCH), Paris, E H E S S /Flam m ario n , coleção Histoire et théorie de l'A rt, 1993. REVEL, Jacqu es. "L'histoire au ras du s o l", prefácio a Giovanni LEVI, Le pou­ voir au village. H istoire d'un exorciste dans le Piém ont du XVIle siècle, Paris, G allim ard, 1989. VEYNE, Paul. "Prop agand e expression roi, im age idole oracle", in L'HOMME R evue Française d'anthropologie, n° 144, paris EH ESS, 1990. PASSERON, Jean-C laude. "L 'u sage faible des images, contribution à une sém iosociologie de la réception , in Journées de I EHESS, M ontrouge e M arselha, 1987. Paris, EHESS, 1990.

Este artigo retoma e am plia uma comunicação apresentada no XVII F 0!« « * '0 Brasileiro de História da Arte, realizado em Porto Alegre, em setembro de iy y *

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ciT iY s- ïT S I


Pós-Urbanismo Em memória de Alvin Boyarsky Definindo o urbanismo como uma teoria e uma prática pelas quais a cidade é construída como um "mapa memorial de si mesma" e a partir do "paradigma do corpo", o autor dis­ cute a versão simétrica porém contrária de urbanismo que o modernismo apresenta - sus­ tentada tanto no "esquecimento" quanto na "visão proléptica projetiva" - concluindo o artigo com a análise do domínio "pós-urbano", que não traz mais "inscrição memorial" nem "visão proléptica" pois nada lhe resta do "pa­ radigma corporal" como princípio de organiza­ ção da cidade. Urbanismo Modernidade Memória

A N T H O N Y V ID L E R Tradução Paula M ousinho Martins Professor de arquitetura na Universidade de Princeton. O seu livro mais recente é ClaudeNicolas Ledoux: architecture and social reform at the end o f the ancien regime

"As cidades de que falo... são vilas sem passado. Pois não têm ternura nem abandono. Durante o tédio das horas da siesta, sua tristeza é implacável e sem melancolia. À luz da manhã, ou na luxúria natural do anoitecer, seus prazeres são igualmente indelicados. Essas cidades nada oferecem ao espírito, e tudo às paixões. Elas nem se ajustam à sabedoria nem às delicadezas do gosto.” Albert Camus, "Breve Guia às Cidades sem Passado".^ Na cidade tradicional, antiga, medieval e renascentista, a memória urbana era fácil de se definir; era essa imagem da cidade que permitia ao cidadão identificar seu passado e presente com uma entidade política, cultural e social. Não sendo nem a "realidade" da cidade, nem uma "utopia puramente ima­ ginária, ela era, sim, o complexo mapa mental do significado através do qual a cidade podia ser reconhecida como "lar", como algo familiar, constituindo um ambiente (mais ou menos) moral e protegido para a vida cotidiana real. Daí o lugar privilegiado dos monumentos enquanto marcos na estruturação da cidade; monumentos que, como Alois Riegl assinalou, deviam seu próprio nome à sua Somb

Foto BracevS £ rades do jardim de Luxembourg dSSai- Paris, 1930 GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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função do agentes da memória; "Um monumento em seu mais antigo e original sentido é uma criação humana, erigida com o propósito específico dc manter atos humanos ou eventos singulares na mente de gerações futuras \ O reco­ nhecimento de uma rede de tais monumentos, reunidos em uma hierarquia igualmente reconhecível, foi a base para a constituição cultural e política da cidade desde a Antiguidade até o Renascimento. Porém, não são tanto os monu­ mentos em si, os arcos ou as colunas triunfais, que constroem esse "significado", e sim aquilo para que eles se erigem; afinal, eles são agentes e instrumentos que operam como figuras literárias, dizendo uma coisa por meio de uma outra. Eles agem, nesse sentido, como tropos do discurso da memória que engendram. Por isso Alberti falará do domo de Santa Maria dei Fiori de Brunelleschi como "cobrindo" o povo de Florença, seu amplo tamanho e forma representando a população e sua unidade política e social. O domo de Brunelleschi era, nesse sen­ tido, uma metáfora cuja presença física constantemente fazia lembrar à popu­ lação seus vínculos metafísicos. Ele ocupava o centro de um "mapa memorial" que foi continuamente reelaborado pelos humanistas florentinos, contendo todos os principais monumentos da república. Tal mapa, como Francês Yates mostrou em seu notável tratado The Art of Memory, assemelha-se aos auxílios construídos para a memória por retóri­ cos e filósofos do tempo de Cícero. O orador Quintiliano foi bastante preciso em sua descrição do ato de recordar: pois, como ele diz, "Quando retornamos a um lugar após longa ausência, não reconhecemos apenas o lugar em si, mas recor­ damos as coisas que fizemos lá", é possível usar essa propriedade dos lugares para construir um tipo de máquina da memória: 0> lugares são escolhidos e marcados com a mais extrema variedade possível, como uma casa espaçosa dividida em um certo número de quartos. Tudo que se observa ai e imprimido diligentemente na mente, de modo que o pensamento pode ser capaz de atravessar todas as partes sem dificuldade ou obstáculo... O que foi escrito ou pensado é notado através de um signo que vem lembrá-lo. Esse signo pode ser delineado a partir de uma "coisa" completa, como a navegação ou a guer­ ra, ou a partir de alguma palavra, pois o que foge à memória é recuperado pela advertência de uma única palavra." (3) Quintiliano esboça, portanto, um sistema de lembranças que é um g comum no pensamento clássico e que será revivido durante o Renasciento, nele uma seqüência de lugares, imaginada ou recordada, é estabelecida . na mente, e os signos daquilo que se recorda estão "instalados", por assim di­ zer, dentro desses lugares sucessivos. Para ser capaz de evocar a coisa mesma, e preciso apenas recordar" esse lugar e seu conteúdo. A arte da memória 1 446

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anto lugares, sejam eles reais ou imaginários, e imagens ou simulaGÁVEA. 13 (13), setembro 1995


ANTHONY VIDLER

cros que devem ser inventados"; esses lugares, diz Quintiliano, podem ser reais ou mesmo inventados: "O que eu falei sobre o que ocorre numa casa pode ocorrer também em edifícios públicos, ou numa longa jornada, ou ao se atravessar uma cidade, ou com a pintura. Ou podemos imaginar tais lugares para nós mesmos". Yates descreve o modo pelo qual versões altamente elaboradas desses lugares memoriais foram construídas ao longo da Idade Média e do Renascimento, conduzindo para esses loci meio reais, meio imaginários, chama­ dos "teatros memoriais", ou mesmo, como no caso de Campanella, "utopias". A relação entre a cidade real e a cidade utópica é desse modo mediada por um mapa mental que inclui o real a fim de imaginar o irreal, o ideal, ou simples­ mente aquilo que deve ser lembrado. Para nossos propósitos, contudo, essa relação, que determinou em larga medida a natureza da cidade ideal renascentista, torna-se importante ape­ nas a partir do momento em que os arquitetos tornaram-se cientes da possibili­ dade de transferir para o domínio da realidade aquilo que eles tinham imagina­ do em sua memória; ou seja, excluir da estrutura da cidade real as seqüências e lugares que constituíram os mapas memoriais da cidade, transformar a cidade num teatro memorial e fazer esse teatro acessível tanto para os habitantes, quan­ to, de modo igualmente importante, para os visitantes. O planejamento de Roma de Sexto V, como uma ampla cidade turística, com todos os seus monumentos e memoriais reunidos em caminhos ou ruas importantes, marca o verdadeiro começo do urbanismo. Urbanismo, nesse sentido, pode ser definido como a teo­ ria e a prática instrumentais para construir a cidade como um memorial de si mesma. A história do urbanismo, desde o Renascimento tardio até a Segunda Guerra Mundial, ilustra claramente essa definição: o replanejamento de Londres por Wren e seus colegas cientistas e historiadores da Sociedade Real; o replane­ jamento de Paris por Pierre Patte e os arquitetos filosóficos do Iluminismo, a reconstrução de Paris pelo Barão Haussmann sob o Segundo Império; as diver­ sas cidades-modelo e suas implementações parciais visadas pelos modernistas desde Tony Garnier até Le Corbusier; tudo perpetua o mito da memória instala­ do para sempre, por assim dizer, no coração de uma metrópole que (finalmente) tornou-se significante e expressiva para seu povo. É óbvio que, com o modernismo, uma flexão levemente diferente foi dada à idéia de mapa memorial, bem como aos monumentos que o evo cavam. Pois os modernistas não ocultaram seu desejo de esquecer c também de recordar; esquecer a velha cidade, seus antigos monumentos, seu significado tradicional, todos eles vistos como excessivamente implicados nos problemas GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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econômicos, sociais, políticos e médicos do velho mundo para que se justificasse uma retenção. Tal esquecimento tomaria, no caso de Le Corbusier, a forma de um apagamento, literal e figurai, da cidade mesma, em favor de uma tabula rasa que reinstalava a natureza como uma fundação para um urbanismo disperso, adap­ tando seus monumentos para as funções da vida moderna - os arranha-céus burocráticos. Alguns chamaram isto de uma visão antiurbana; eu sugiro que sua oposição dialética na forma não a torna senão uma outra versão de urbanismo, simétrica porém contrária àquela do século XIX. Mas enquanto os modelos propostos para as urbes modernas afas­ tam-se muito pouco, em forma e espírito, daqueles dos séculos anteriores - man­ tendo mesmo, como no caso da Ville Radieuse, aquele ponto de referência cen­ tral, o corpo, como motivo e princípio de organização - , o modernismo intro­ duziu um conceito profundamente desestabilizador no interior da idéia geral de memória. Esquecer, afinal, é uma atividade mais complexa do que simplesmente não recordar; ela implica uma diversidade de procedimentos, desde a projeção proléptica explorada por Proust - o qual, sempre nostálgico em relação a um momento que aponta para frente na direção de um evento que jamais ocorreu, fundou sua "busca do tempo perdido" em um processo sistemático de esqueci­ mento do que ocorreu - , até a nadificação descrita por Nietzsche e elaborada por Sartre, que é a fundação de uma compreensão existencial do eu e do mundo. Paul de Man demonstrou que Proust - aquele que, nas vestes do narrador Marcei, "recorda" consistentemente alguma coisa apenas para afirmar que "mais tarde ele compreendeu" aquilo sob uma luz diferente - , na verdade só o faz às custas de um esquecimento ou obliteração de si próprio enquanto autor, em favor de um narrador alegórico que, diferentemente de Proust, pode ser plausivelmente compreendido como acreditando que esse "mais tarde" estava de fato localizado em seu próprio passado. Tal abismo de recordação tanto apaga quanto delineia; e, com efeito, os traços do apagamento formam uma espécie de caminho negativo, uma rota de obliteração no interior de um passado que é, pa­ ra o modernista pós-bergsoniano, sempre um presente e também uma ante­ cipação de futuro. Sartre tematizou isto em sua célebre imagem do café Parisiense. Questionando a relação do juízo negativo ao não-ser, ele demonstrou que, de fato, o não-ser não resulta de um juízo negativo - por exemplo a nadificação auto consciente de algo no interior do nada - mas sim que o não-ser traz ao ser um juízo negativo, ou seja, o não-ser é a pressuposição essencial para um juízo negativo. Daí Pierre, que não está no café: Sartre chega ao café um quarto de hora atrasado para um encontro às quatro horas com Pierre. Pierre, que sempre é pon­ 448

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tual, não está de fato presente, e Sartre realiza isto. Será esta uma negação funda­ da no juízo ou na intuição? O café é, decerto, uma "plenitude de ser"; "seus fre­ gueses, suas mesas, seus reservados, seus espelhos, suas luzes, sua atmosfera esfumaçada, e os sons das vozes, do tilintar dos pires, dos passos que o preen­ chem' o atestam. Do mesmo modo, Pierre, em algum outro lugar desconhecido, é também uma plenitude de ser. Mas em toda percepção deve haver uma figura sobre um fundo, de modo que se tudo é plenitude de ser não pode haver fundo e, portanto, nenhuma percepção. O café, quando Sartre o adentra, é imedia­ tamente organizado, com respeito à sua procura por Pierre, enquanto esse fundo: "Essa organização do café enquanto fundo é uma primeira nadificação. Cada ele­ mento da peça, pessoa, mesa, cadeira, tenta se isolar, se elevar sobre o fundo cons­ tituído pela totalidade dos outros objetos, e recai na indiferenciação desse fundo, se dilui nesse fundo. Pois o fundo é isto que só é visto por adição, isto que é o objeto de uma atenção puramente marginal. Assim, essa nadificação primeira de todas as formas, que aparecem e se dissipam na total equivalência de um fundo, éa condição necessária para a aparição da forma principal, que aqui é a pessoa de Pierre". ^ Mas enquanto tudo isso é dado à intuição - e seria, por assim dizer, preenchido enquanto fundo com a aparição sólida de Pierre organizando o café em torno de sua presença - , Pierre, de fato, não está lá. Sua ausência está em toda parte no café, um café que permanece um fundo face à sua ausência, apresen­ tando "essa figura que constantemente desliza entre meu olhar e os objetos sóli­ dos e reais do café", e que é, precisamente, uma "desaparição perpétua". "Pierre despontando como um nada sobre o fundo da nadificação do café" é oferecido à intuição de Sartre como a apreensão de uma dupla negação: a expectativa de ver Pierre - o subseqüente ajustamento do café enquanto fundo, sua nadificação primária - , causam a ausência de Pierre, que acontece como um evento real e, portanto, como uma segunda negação. "Pierre ausente assombra esse café e é a condição de sua organização auto-nadificante enquanto fundo". Essa descrição da dupla nadificação - precipitada pela expectativa no interior de um mundo que potencialmente exibe a plenitude do ser, mas que, ao invés, acaba por ser assombrado pela ausência —, parece-me operar, senão filosoficamente, por certo literariamente como uma parábola do deslocamento da memória na cidade moderna. O fato de que os modelos de urbanismo, pro­ postos por arquitetos do movimento moderno, pareçam ter ignorado tal proces­ so, indica apenas o quanto eles foram prisioneiros da crença clássica segundo a qual o juízo precipita o ser positivo ou negativo, e não o contrário. Poder-se-ia dizer, realmente, que os arquitetos modernos entraram na cidade antiga da mesma maneira pela qual Sartre entrou no Café Deux Magots, na expectativa de GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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ali encontrar o modernismo; com certeza estavam atrasados - e sabiam disso seguros de que a modernidade, preparada há mais de um século, já devia estar lá. Com essa expectativa observaram a cidade antiga, que imediatamente se organizou enquanto fundo, pronta para receber a figura da modernidade. A primeira cidade nadificada permaneceu em um constante estado de nadificação face a uma modernidade que, como agora sabemos, jamais esteve realmente lá, salvo enquanto uma presença ausente, assombrando o velho fundo, assim como Pierre assombrava o café. Fundado, pois, em uma dupla nadificação, não foi por acaso que o modernismo, ali onde o ansioso arquiteto o precipitou, foi instanta­ neamente visto como não-modemo, ou como o moderno não dado - em si mesmo velho e já obsoleto antes mesmo que sua vida tivesse começado. Pois seja qual for o futuro imaginado pelos modernistas, a figura de projeção proléptica determinou seus esforços - uma dupla figura que inclui a da prolepse, ou a representação de alguma coisa futura como já dada, e a projeção, na qual argumentos contrários são antecipados de modo a impedir seu uso. O modernista, ao adentrar o café da cidade antiga, perquiriu a presença sólida do futuro, um futuro que não estava lá porque já passado, e em sua ausência o mo­ dernista tentou expressá-lo em termos que antecipariam sua nadificação por objeções futuras ou argumentos contrários. Daí a interseção de urbanismo e modernismo: ambos empregaram a figura, literal e metafórica, da projeção, um mecanismo aprendido com a cartografia e aplicado pela arquitetura desde a reinvenção da perspectiva. A transformação da cidade perspectiva na cidade figura-fundo, a cidade renascentista na cidade modernista, envolveu contudo uma certa rup­ tura: onde a cidade perspectiva propunha um equilíbrio entre duas plenitudes de ser igualmente significantes —a cidade enquanto tal e seus monumentos uma subsumida no invólucro mental da outra, a cidade figura-fundo do mo­ dernismo foi fundada na dissolução de duas plenitudes de ser, ou seja, naquilo que Peter Eisenman denominou "a presença da ausência". O irritante desconforto sentido nessa dupla ausência - o desapon­ tamento sentido por Sartre devido ao fato de Pierre, que era sempre pontual, não estar de fato lá - , é algo, creio eu, envolvido na nostalgia impossível das tentati­ vas pós-modernas de resgatar a plenitude do ser pela memória restrospectiva, mediante um processo semelhante àquele arriscado por Proust: a nostalgia que jamais aconteceu. Mas essa tentativa é profundamente alterada pelas negações do modernismo: a cidade antiga, duplamente negada, apresenta-se ao pós-modernista enquanto uma ausência fantasmática, não uma presença fantasmática. A invenção de uma suposta presença para substituir esse fantasma não resulta 450

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A torre Eiffel Foto André Kertész, Paris, 1929

em mais do que uma terceira negação —aquilo que se propõe como presença nem é a ausência do moderno, nem a presença do passado. Não pode ser a ausência do moderno por razões óbvias; não pode ser a presença do passado porque o passado não tem presença alguma, salvo em uma memória retrospectiva que procura algo no passado que teria predeterminado um futuro - algo assim como se as predições de um cientista do tempo de Copérnico pudessem agora ser GAVEA. 13 (13), setembro 1995

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descobertas por um historiador ao fixar a data do retorno de um cometa que realmente já tenha retornado, mas que, em virtude desse tenha , se encontra agora no passado. Fundo precário para se construir um futuro doméstico segu­ ro para a humanidade. Mais do que uma tal tentativa - a qual, com Paul de Man, poderíamos caracterizar em termos nietzschianos como o gesto infinitamente repetido do artista 'que não aprende através da experiência e sempre cai na mesma armadilha' na alegoria dos erros constituída pelo pós-modernismo, eu sugiro que na verdade nós estamos no processo de adentramento em um café muito diferente daquele que simula ter estado sempre lá. Eu descreveria esse café em termos bastante similares aos de Sartre; com efeito, ele apresenta as mes­ mas, talvez um pouco mais deterioradas, cadeiras esparsas, os mesmos garçons decadentes, um café definitivamente em declínio e com o ar de já ter visto dias melhores. Mas é claro que nós o adentramos sem expectativa, lhe atravessamos o umbral sem a menor idéia do que vamos encontrar por lá. Certamente, se Pierre fosse esperado, há muito já teríamos desistido da idéia de vê-lo chegar; certamente, também, não poderíamos ter certeza de que Pierre algum dia tivesse estado lá, talvez ele não fosse mais do que uma ficção de nossa imaginação. Nossa falta de expectativa é contrariada pelo café, que se erige à nossa frente reforçando de modo implacável nossa falta de expectativa, o fato de que nada aí é digno de interesse. Tal como o narrador da novela Across de Peter Handke, entramos nesse espaço simplesmente para relaxar e não sermos notados, para tornar-nos fundo no fundo: "Após um dia de trabalho solitário, faz-me bem ir a um café, seja apenas para ver os nomes de lugares que pendem aqui e acolá nas mesas de conversa: Mauterndorf, Abtenau, Gerlin, Iben. Lá, em meu tédio, procuro mostrar aquela ponta de interes­ se em relação a tudo que está à minha volta, e que me faz, ou assim eu acredito, in­ visível. Ninguém, estou certo, virá ao meu encontro, ficará sozinho à minha frente. Quando eu partir, ninguém falará de mim. Mas minha presença terá sido notada." Esse narrador, de modo bastante significativo, nos conta que, arqueologista, durante toda a vida foi um investigador de umbrais, observando esca­ vações menos pelo que estava lá do que pelo que ali faltava, pelo que tinha desaparecido de modo irrecuperável —seja por roubo ou por mero apodreci­ mento - mas que ainda se encontrava presente como um vácuo, como espaço vazio ou forma vazia". Nessa busca ele adquiriu "um olho para transições", tornou-se um descobridor de traços - "ocos, lacunas coloridas e traços de madeira . Conquanto, para ele, esses umbrais não se referiam simplesmente a algo outro a porta ou o portão - como uma metonímia, a parte representando 452

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o todo, mas, ao contrário, sejam zonas ou lugares em si mesmos, "um lugar de experimentação ou segurança". Mfo será o monte de cinzas, onde Job está sentado em sua miséria, um umbral, um lugar de experimentação? Não terá um fugitivo se colocado sob a proteção de alguém ao se sentar sobre seu umbral?" No mundo moderno, obviamente, ele admite que inexista tais umbrais, a não ser, talvez, entre o acordar e o sonhar: "Apenas no insano ele protubera, visível para todos, na experiência cotidiana, como os fragmentos dos templos destruídos que mencionamos há pouco. Pois um umbral... não é uma fronteira -fronteiras estão em crescimento tanto na vida inte­ rior quanto na exterior - mas sim um precinto. A palavra "umbral" abarca trans­ formação, solo, cruzamento de rios, atravessamento de montanhas, cerco... Mas onde, hoje em dia, encontraremos umbrais senão em nós mesmos?" ^ Umbrais, nesse sentido, são tanto antigos (reais) quanto modernos (imaginários); eles ainda podem ser encontrados no campo e na natureza: na ci­ dade "eles estão perdidos". Naturalmente, porém, a cidade de Handke está re­ pleta de umbrais, cada um deles anunciando uma entrada que é na verdade uma passagem, um lugar de transição, algo que, definido entre outros lugares, não po­ de assumir um caráter propriamente seu, como o café entre o trabalho e o sono. Algo dessa sensibilidade, penso eu, caracteriza um certo número de observações culturais acerca da cidade contemporânea: filmes como True Stories, The Last Picture Show, ou, mais melodramaticamente, Blade Runner ou Clockwork Oratige. Nessa cidade, onde subúrbio, faixa e centro urbanos submergem in­ distintamente em uma série de estados de espírito - cidade que não é marcada por nenhum mapa sistemático que possamos trazer na memória -, vagueamos, como Freud em Gênova, surpreendidos mas não chocados pela contínua repetição do mesmo, o movimento contínuo através de umbrais já desaparecidos que apenas deixaram traços de seu estatuto primitivo enquanto lugares. Entre as ruínas de monumentos que deixaram de ser significantes porque desprovidos de seu estatuto sistemático - e, frequentemente, de sua corporeidade - , caminhan­ do sobre a poeira de inscrições que deixaram de ser decifráveis porque carentes de muitas palavras, quer esculpidas na pedra ou moldadas em néon, atra­ vessamos o nada para ir a lugar nenhum. Poderíamos denominar essa sensibilidade, tão afastada em sua pre­ sença do niilismo otimista de Sartre, de pós-urbanismo. Não é mais um urba­ nismo" porque não há visão proléptica projetiva; certamente, porém, depois de um tal urbanismo, o pós-urbanismo se sustém em um lugar claramente distinto do de outras sensibilidades do fragmentário, do acaso e do marginal. Prévias GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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sensibilidades de arestas —seja o banlieu de Baudelaire ou a zone de Apollinaire —tiveram como seu referente um urbanismo positivo, quando não agressivo, que ameaçou a aresta e que a engoliria no interior de um sistema de coerências; a aresta para os simbolistas, e para os primeiros modernistas, seria, pois, um lugar de liberdade, uma ordem potencial em relação a uma outra, seja de permanên­ cias nostálgicas, forças destrutivas ou de diferença. Porquanto o modernista tradicional clama por uma "sobrevivência nos estrondos", aquele heroísmo brechtiano do "Habitante da Cidade" que é encorajado a "encobrir suas pistas": Separado de teus amigos tia estação Entra na cidade pela manhã com teu casaco abotoado Procura um lugar, e quando teu amigo bater à porta: Oh! não, não abre a porta Mas Encobre tuas pistas. Tais táticas pressupunham uma existência subterrânea com tudo "se esgueirando", por assim dizer, sem identidade figurativa acima do solo; até mesmo identificar o sobrevivente como um anti-herói solitário se torna uma impossibilidade. De modo que ao se tomar o conselho brechtiano para que quando tu chegares a pensar em morrer (vê) Que não há pedra tumular que exista e te traia ali onde tu mentes Com uma clara inscrição a denunciar-te E o ano de tua morte a delatar-te, uma distinção clara tem de existir entre a inscrição memorial e sua ausência. No domínio pós-urbano, contudo, estamos em um lugar onde não pre­ dominam mais inscrições, epigramas duradouros para a memória de pessoas e eventos, mas hipogramas, aqueles subtextos ou infratextos postulados por Saussure como tropos que indicam de uma só vez a assinatura e o seu apagamento, prosopopéia e apóstrofe, tudo sob o signo da catacrese. Talvez nós tenha­ mos entrado verdadeiramente naquela cidade sem nomes, descrita no Homem sem Qualidades de Robert Musil, onde nenhum significado especial deve ser atribuído ao nome da cidade. Como todas as grandes cidades, ela consiste de irre­ gularidade, mudança, deslizamentos, dessincronia, colisões de coisas e negócios, e pontos abissais de silêncio no espaço-entre".(7) Na sensibilidade pós-urbana, as margens invadiram integralmente o centro e disseminaram seu foco; o "em" é re­ almente difícil de encontrar, seja sob os arcos e ao longo das paredes de Doivn by Lazv, seja nos deslizes mentais de Blue Velvet. Nesse último filme, o colapso total de um certo sentido presente no "coeficiente de adversidade" de Bachelard é mar454

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cado pela troca entre estados de terror, divertimento, e a mais pura banalidade. Obviamente, essa condição adquiriu uma notável significação com a perda do plano ordenador original exibido por toda cidade tradicional: o corpo - paradigma original da ordem tanto para o urbanismo quanto para a arquitetu­ ra. Desde as analogias explícitas de Francesco di Giorgio até a "imitação" direta de Le Corbusier da perfeição corporal vitruviana no layout modelar da Ville Radieuse, o corpo proveu, por assim dizer, o tecido orgânico através do qual a cidade pôde ser reconhecida, memorizada e por isso mesmo vivida. O vínculo -èntre "corpo político" e cidade foi, pelo menos para a tradição humanista, mais do que uma simples comparação. As conseqüências psicológicas da perda de semelhante metáfora só pode ser abordada mediante a noção de nostalgia do lar, o desejo de voltar a um interior bem protegido. As conseqüências políticas da perda do paradigma corporal, entre­ tanto, são menos claras. Certamente, humanistas e urbanistas poderiam argu­ mentar que o fim do urbanismo significa também o fim do humanismo liberal, da consciência social e de uma crença no (naturalmente bom) domínio público. Contudo, é pelo menos provável que, face às rigorosas exclusões operadas pelo urbanismo no que ele tem de mais idealista, e aos suportes que ele exigiu no que tinha de mais realista, um mundo pós-urbanista talvez ofereça maior inclusivi­ dade, quando menos grande esperança. Realmente, nosso café pós-urbano pode resguardar muito daquilo que, durante tanto tempo, foi indesejável para o urbanismo: indesejável pelo gênero, raça ou classe.

Notas (1) Albert Camus, "A Short Guide to Towns without a Past , in Lyrical and Critical Essays, edit, por Philip Thody e trad, por Ellen Conroy Kennedy (New York: Vintage Books, 1970), p. 143. Publicado pela primeira vez em 1847, esse ensaio apareceu na coleção L’été (Paris, 1954). (2) Alois Riegl, "The Modem Cult of Monuments: Its Character and Origin", trad, por Kurt Forster e Diane Ghirardo, Oppositions 25 (Fall 1982): 21. (3) Quintilian, In stitu te Oratória, XI, ii. 17-22, cit. in Frances Yates, The Art of Memory (London: Routledgeand Kegan Paul, 1966), p. 37. (4) Sartre, Being and Nothingness, p. 10. (5) Peter Handke, Across, trad, por Ralph Manheim (New York: Farrar, Straus and Giroux, 1986), pp. 27,11, 66, 67. (6) Bertold Brecht, cit. in Walter Benjamin, Understanding Brecht, trad, por Anna Bostock (London: New Left Books, 1973), pp. 59, 60. Benjamin está citando o primeiro poema do Hand Book for City Dwellers de Brecht. (7) Robert Musil, The Man without Qualities, trad, e prefaciado por Eithne Wilkins e Ernst Kaiser, 3 vols. (London: Picador, 1954), 1:1.

Artigo publicado no livro "The Architectural Uncanny, Essays in the Modern Unhomely", the MIT Press, Cambridge, M ass, London, England, 1992. GÁVEA. 13 (13), novembro 1995

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Entrevista com Rosalind Krauss Rosalind Krauss relata, nessa entrevista, al­ guns momentos cruciais de seu percurso teóri­ co, desde a "distância irônica" que mantém de início frente à "história da arte", passando, en­ tre outros temas, pelas relações de proximida­ de e posterior ruptura com o pensamento de Clement Greenberg, pela cumplicidade com Leo Steinberg na discussão das relações entre form alism o e iconografia e na adoção da fenomenologia, pelo encontro com o estruturalismo e com a psicanálise no âmbito da crítica à ortodoxia modernista, finalizando com uma breve análise do movimento pós-moderno. Memória urbana Modernismo Pós-urbanismo

CLAIRE BRUNET E GILLES A. TIBERGHIEN Tradução Paula M ousinho M artins Professora de História da A rte na Columbia University, New York. Autora dos seguintes livros: Terminal Irons Works: The Sculpture of David Smith Mit Press, MA; Passages in Modern Sculpture Mit Press, MA, 1977; The Originality of The Avant Card and other modernist myths, MIT Press, MA, 1986; The Optical Unconscious, MIT Press, MA, 1993.

CT Pode-se dizer, já que Le Photographicjue d) é uma compilação de tex­ tos concebida especialmente para a edição francesa, que a Originalité de l AvantGarde et Autres Mi/thes Modernistes ^\ publicada nas edições Macula, é seu primeiro livro americano traduzido para o francês? RK Na verdade não é, porque originalmente tínhamos um projeto, com Jean Clay, de fazer dois livros, um que reunisse meus artigos sobre a fotografia, outro que reunisse meus textos sobre a pintura e a escultura. Esse projeto remonta ao início dos anos oitenta. Mais tarde concebi um livro chamado Originalité de VAvant-Garde et Autres Mi/thes Modernistes. Ele foi concebido em função de uma série de rupturas com o pensamento modernista e, pretendendo mostrar os diferentes aspectos de um tipo de circuito produzido por esse pen sarnento, implicava de uma só vez a pintura, a escultura e a fotografia. Esta últi ma foi muito importante para mim. Ela me permitiu interrogar a noção de obra Loredano GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Entrevista com Rosalind Krauss

Alberto Giacometti Woman with her throat cut, 1932 Bronze, 88 cm, Museum of Modern Art, N.Y.

e perguntar, por exemplo, se é possível conceber algo como um artista que só trabalhou um ano ou que só produziu uma única obra. Em comparação com o livro americano que traz o mesmo título, publicado agora em francês, foi desti­ tuído de alguns desses artigos. É um outro livro. CT Os dois textos que foram suprimidos para compor a compilação so­ bre a fotografia foram, com efeito, substituídos por quatro outros textos que nunca haviam sido reunidos em um volume. Nesse novo livro, em todo caso, a senhora escreve: Não poderíamos sustentar a tese de que o interesse de um texto crítico reside quase exclusivamente em seu m étodo?"; e, logo depois, no texto sobre o modernismo, a senhora parece dizer que a potência de Greenberg residia essencialmente em seu método. Sobre esse ponto, aliás, a se­ nhora se opõe a ele, já que Greenberg dá primazia ao juízo de gosto. Para a senhora, o que faz a pertinência do propósito crítico é mais o método do que os juízos de valor. Porém, se o seu método se define em parte como uma crí­ tica ao modernismo de Greenberg, ele não se restringe a isto. Para compreendêlo, sem dúvida, seria bom recordar duas ou três coisas relativas à sua formação intelectual. 458

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RK Quando comecei, sentia-me um pouco à margem da história da arte, tal como ela era então concebida. Interessava-me pela arte moderna e con­ temporânea, e isso me enquadrava, do ponto de vista da instituição, na catego­ ria dos "críticos de arte" e não na dos "historiadores da arte". Leo Steinberg, aliás, sofreu com isso durante toda a vida: desde o início o trataram como críti­ co. Quer dizer, como alguém que não é realmente sério. Por isso eu sempre man­ tive uma distância irônica com respeito à história da arte. Era uma reação aos juí­ zos negativos desses historiadores. Eu tinha, entretanto, uma ótima formação em análise estilística e havia seguido cursos de história da arte no College (eu sou Art History Major) e em seguida em Harvard, onde essa matéria era, na época, bas­ tante ensinada. Tudo isto me preparou muito bem para compreender a análise greenberguiana, que é uma espécie de refinamento da análise estilística e que permite encontrar os momentos articuladores na evolução do estilo de um artista. Minha formação permitiu-me, portanto, entrar facilmente no pensamen­ to de Greenberg. Quando ainda era estudante, comecei a escrever para revistas como Art International e Artforutn, e foi Michael Fried, já amigo de Frank Stella que ele havia conhecido em Princeton - que me fez entrar nessa rede. Ele apre­ sentou-me a Greenberg. Toda vez que eu ia a Nova York para fazer resenhas críti­ cas (eu morava nessa época em Cambridge, Massachusetts), eu visitava Greenberg e foi assim que nos tornamos amigos. Quando comecei a fazer minha tese sobre a escultura de David Smith, as pessoas de Harvard acharam isso escandaloso. David Smith era um obsessivo e a idéia fixa dos historiadores da arte é a de que a arte e a cultura são formações e, portanto, enquanto tais, pro­ gridem. Desse ponto de vista, há contradição entre obsessão e formação. Como

Alberto Giacometti Disagreeable Object, 1931 Madeira, 23 x 48 cm Coleção particular 459 GÁVEA. 13 (13), setembro 1995


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David Smith era obsessivo, repetiu durante toda a sua vida um repertório muito restrito de formas e imagens. Parecia-me portanto que, para compreender esse trabalho, era preciso interrogar a estrutura da obsessão. Eu estava, nesse momen­ to, no sistema criticado pela história da arte... e comecei minha carreira como "agitadora". Sem falar que eu pertencia ao grupo de Greenberg. Donald Judd, que não gostava desse grupo, chamava-nos de os "Greenburgers" - referindo-se a hamburgers! CT

A senhora aproximou-se de Steinberg?

RK Sim, mas isso foi um pouco mais tarde. Nós ficamos muito amigos, muito próximos, nos anos 1968-1970. Falávamos muito sobre as idéias de Greenberg. Esta é, aliás, a época em que Steinberg escreve Othcr Critcria texto no qual ele critica esse formalismo e apóia as obras de Johns e de Rauschenberg. Lembro-me de tê-lo ouvido dizer que, se ele quisesse censurar Greenberg Alberto Giacometti Reclining W om an, 1929 Bronze, 27 cm Fundação Alberto Giacom etti, Kunsthaus, Zurich

2av'd Smith Head as a still life Awminio Fundidc ?6x.2 2 x 1 0 c m fcsP°lio do Artiste

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Entrevista com Rosalind Krauss

I

se Ci Et

David Smith Cubi VI, 1963 Aรงo inoxidรกvel 300 x 75 cm Espรณlio do Artista 462

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Man Ray From the height of a little shoe form ing one body with her de "l'A m o ur Fou" por André Breton, 1937

abertamente, era preciso fazê-lo com seriedade, para não deixar a "Ciem" a possibilidade de dizer que fora mal lido ou mal compreendido. Por isso discutíamos muito a maneira pela qual era preciso compreender o pensamento de Greenberg. Éramos aliados! Seja como for, eu admiro seu trabalho, aprendi muito com ele e, quando escrevi sobre Rauschenberg ou Picasso, referi-me ob­ viamente a seus textos. CT

Com relação a Picasso, a senhora pensa no texto sobre as

Demoiselles d'A v i g n o n ^ ?

RK Sim. Aliás, eu republiquei esse texto há alguns anos em October. Leo estava muito ansioso por essa reedição. Ele fez um prefácio e quis esse número especial logo que foi composto. De minha parte, fiquei muito feliz em redigir uma pequena introdução, que essa reedição exigia, pois se abriu uma vez mais o dossiê espinhoso das relações entre formalismo e iconografia. Eu quis mostrar que existe um pensamento crítico do formalismo que não se inscreve necessari­ amente na tradição da iconografia e da sociologia. Pois há um persistente mal­ entendido sobre esse ponto. Tudo se passa como se não houvesse alternativa e como se fosse preciso confiar na iconografia ou no discurso sócio-histórico para criticar o formalismo. Dito de outro modo: como se não houvesse crítica do for­ malismo que pudesse tornar-se atenta às formas! Fiquei feliz ao reeditar esse texto e sublinhar que ele era metodologicamente essencial. Steinberg não privi­ legia mais o formalismo do que a iconografia. Ele ocupa muito mais a posição da GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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fenomenologia e trabalha sobre uma significação que não é de natureza textual chegando mesmo a evitar os textos. Acho também que ele gostou da minha pequena introdução, que sublinhava esse ponto, pois ele a republicou nas outras edições ou traduções daquelas Demoiselles. CT

A senhora refere-se ao texto de Steinberg sobre Rodin. A senhora

está bastante interessada na escultura. RK Sim, eu sempre estive interessada pela escultura que os histori­ adores de arte tradicionais tanto negligenciam, talvez porque a escultura per­ maneça para eles algo de artesanal, de refinado, ou sabe-se lá. Aliás, minha rup­ tura com Greenberg se deve em parte a nossas divergências de apreciação sobre a escultura. CT

Como se deu essa ruptura?

RK Primeiramente ela se deu a partir de sua visão do cubismo. Aliás, eu escrevi um texto intitulado "The Cubist Epoch" onde contesto a idéia de que o cubismo pertenceria a essa lógica da planaridade tão cara a Greenberg. Eu mesma, de algum modo, já acreditei nisso. Mas me dei conta de que estava erra­ da quando, projetando a meus alunos slides do quadro Paysage à Horta da Ebro de Picasso, quis lhes mostrar a legitimidade da tese greenberguiana. Ora, quan­ do eu me virei para comentar a imagem, eu vi aqueles abismos, aqueles pre­ cipícios. Então eu disse a meus alunos: "Tudo o que eu lhes falei hoje é pura mentira, pois vocês podem ver como é profundo". Era uma sexta-feira e eu tinha o fim de semana para retificar minha proposta. Foi então que eu com­ preendi a importância do problema, tanto que o artigo de Greenberg sobre a colagem é um artigo-chave. Descobrir que o sistema não funcionava foi uma verdadeira reviravolta para mim. Publiquei minhas reflexões e minhas hipóte­ ses nesse artigo —que era uma análise da exposição —e Greenberg compreendeu que eu me tornara uma trânsfuga! O segundo grande desacordo com ele se deu em tomo da obra de Serra, que Greenberg desde o início detestara, enquanto para mim, ao contrário, ela era muito importante - não só por si mesma mas também em geral, para a compreensão da escultura. Pois, afinal, o que é a escultura? É a questão do peso e são as trajetórias das forças. Em todo caso, depois disso, a ruptura foi completa. ^ ^ imPortância do peso está ligada à relação com o corpo e com o espaço. Essa questão de tipo fenomenológico foi central para a senhora, assim 464

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como para os críticos e os artistas dos anos sessenta. Mos eni s g u trabalho esses temas se combinam com outros, que concernem mais ao estruturalismo. Como a senhora concilia esses dois tipos de pensamento? RK Acho que eu faço uma bricolage teórica! Quando tentei compreender a escultura minimalista, tive necessidade de um discurso que me permitisse apreender a significação do peso e da temporalidade, pois o objetivo de Greenberg é reduzir a experiência estética a um momento intemporal e eterno. Ora, para pensar a temporalidade do corpo que está presente na visão, necessitei de um novo quadro teórico, e foi graças à fenomenologia que eu o encontrei. Por outro lado, enquanto críticos, estamos engajados com objetos reais e o problema do começo dos anos sessenta era o chamado pluralismo - o fato de que, à falta de uma corrente intelectual dominante, tínhamos o sentimen­ to de poder fazer qualquer coisa. Ora, não é verdade que tudo seja possível. Perguntei-me então quais eram as determinações históricas que organizavam esse campo aparentemente caótico. Pareceu-me então que esse pólo de organização era "o fotográfico", e foi por isso que me servi dos textos de Charles Sanders Peirce e de Roland Barthes, e entrei no pensamento estruturalista. Mas não antes. CT A senhora faz uso sobretudo de dois modelos no livro, o índex e o "grupo de Klein", ou quadrado semiótico, que lhe permitiu uma classificação das práticas que não podemos chamar realmente pelo nome tradicional de escul­ tura, embora elas lhe sejam aparentadas. Esse último modelo serviu-lhe nova­ mente em The Optical Unconscious (5), seu último livro, cujos diversos fragmentos foram publicados em Les Cahiers du Musée. Por que esse privilégio? RK Quando iniciei esse novo livro, crítico em relação à ortodoxia mod­ ernista, compreendi que essa ortodoxia tinha menos evidência hoje, e que era preciso dizer o que o modernismo é na verdade. Pensando em defini-lo, pensei no fato de que, na história da arte, a gente se refere sempre a uma história, a um devir: o devir plano, o devir puro, o devir abstrato, etc. Essa maneira de escrever a história parecia-me suspeita: ela pressupõe sempre uma finalidade, um tclos, ao passo que, de fato, se está sempre na repetição. É por isso que a história, no sen­ tido clássico, demonstrava uma certa má-fé. De modo que esse grupo de Klein, esse esquema tem a vantagem de mostrar ao mesmo tempo a fixidez, o contorno e o sentimento de potência aliado à satisfação que o sistema engendra. Mondrian, por exemplo, foi feliz nessa repetição. Esse esquema tinha esta outra vantagem, a de apresentar uma homologia com o esquema L de Lacan, que de­ signa alguma coisa que não está congelada, mas que se repete em um mov imen GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Entrevista com Rosalind Krauss

Pablo Picasso Les Demoiselles d'Avignon, 1907 Óleo s/ tela, 244 x 233 cm

to, digamos, abissal. Foi interessante para mim superpor, sobre o plano teórico, esses dois esquemas. Além do mais, era um meio de escapar à narratividade. Fui muito criticada quando The O rigim iiiy o f lhe Avant-Garde... apareceu, pois cometi a estupidez de utilizar ao mesmo tempo estruturalismo e pos-estruturalismo. Sua superposição apresenta uma vantagem. Ela faz ressurgir aquilo que o modernismo obstina-se em reprimir. A história da arte social enfa­ tiza o fato de que o modernismo corresponde a um refúgio em uma torre de 466

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marfim, e que invoca a autonomia da arte para poder virar as costas à realidade sócio-econômica. O que é verdadeiro. E meu diagrama faz aparecer precisa­ mente as bases lógicas sobre as quais se apóia um tal refúgio. Mas o que os dia­ gramas superpostos fazem aparecer concerne a um outro nível de refúgio, um refúgio que opera no interior da esfera chamada autônoma: em suma, o recalque de tudo aquilo que se relaciona ao mundo do corpo e das pulsões. O esquema me permitiu sublinhar essa oposição. Mas o verdadeiro problema são os sistemas enquanto tais: seu contorno. Todos eles conduzem a um impasse. Porque no fim, logicamente, o que se encontra excluído pelo sistema é a singularidade do caso. Basta ver Greenberg. E nos anos sessenta, quando escreve os semi­ nários, que ele se torna terrivelmente mau. Antes, pelo menos no início, acho que ele não tinha elaborado claramente o sistema. Ele tratava os casos sepa­ radamente, um a um. Francamente, esses seminários são a coisa mais estúpida que já se escreveu. Precisamente nesse momento ele deixou de ser um crítico interessante. CT Mas nesse momento, justamente, ele se apresenta do ponto de vista da estética. RK É o que ele reconhece publicando esses seminários! Acho que a últi­ ma coisa a respeito da qual ele teve-razão foi a colorfield painting, e que em segui­ da ele não compreendeu mais nada do que ocorria na arte de seu tempo. CT Qual é o estatuto dos conceitos psicanalíticos em seu trabalho? Parece que a senhora os aplica a todos os que não conseguem pensar a contra­ dição. A psicanálise parece, portanto, intervir primeiramente como uma crítica aos mitos e às ilusões. (A senhora fala, aliás, da grade como um diorama da sen­ sibilidade analítica"; ora, o diorama é uma máquina óptica que produz ilusão). RK A psicanálise pode ser uma estrutura teórica e também uma estru­ tura terapêutica. A escuta da análise é, portanto, muito importante, e essa escu­ ta, creio eu, concerne àquilo que não participa do discurso do analisante, aqui­ lo que surge como uma aberração aparente. Com efeito, é aí que reside a sig­ nificação, ao passo que todo o resto, tudo o que o paciente traz para a signifi cação, sobre este plano, não faz sentido. Em minha opinião, é o mesmo gênero de abordagem que aparece na análise estilística formalista greenberguiana, a qual eu utilizo (os senhores vêem, eu não rejeito tudo em Greenberg!). Desse ponto de vista, o crítico é como o ana lista; é alguém que quer encontrar as coisas que rompem com uma espécie GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Entrevista com Rosalind Krauss

doxa —O que é a beleza? O que é a forma? O que é a cor? —e que diz: Eis aqui­ lo que é pertinente, significativo e fascinante na obra . Quando o juízo crítico funciona verdadeira mente sobre uma obra, ele mostra algo que faz com que os senhores se digam: "Sim, é verdade, podemos de fato dizer isso dessa obra . CT Poderíamos dizer então que, para a senhora, a história da arte está para a teoria analítica assim como a crítica está para a escuta analítica? Quer dizer que a inclinação necessária que a história oferece é ao mesmo tempo duplicada por esse olho afiado que deve apontar a falta, aquilo que está ausente e que é ao mesmo tempo o mais significante? RK Sim, é mais ou menos o mesmo método na percepção do objeto e na percepção do discurso. Em todo caso, se há uma real necessidade de se falar das obras quando você se encontra engajado a alguém, o essencial é situar com precisão o sintoma - encontrar aquilo que há de sintomático numa obra; depois tentar teorizar sobre esse ponto e explicar por que esse sintoma é interessante. De uma certa maneira, é até embaraçoso dizer que há um método aí. Pois esta não é uma démarche muito metódica. CT Poderíamos dizer que o que a senhora compartilha com a prática e com o ponto de vista do psicanalista é a atenção à singularidade, ao caso singular? RK Sim, imagino que, primeiro, dispomos de alguns conceitos de base e que, em seguida, somos de fato confrontados com a singularidade do caso. Por isso é preciso inventar o método a cada vez, em função dessa singularidade. Não há uma exposição genérica possível. É preciso analisar a coisa singular. CT Há uma frase que intriga e paralisa. Ela retoma essa questão da crítica e a senhora se coloca talvez em posição de falar precisamente de seus gestos e de sua atividade. No primeiro capítulo do livro Un Regard sur le Modernisme, a senhora diz: É importante saber com quem a gente se assemelha quando escreve sobre a arte. Nossa perspectiva é a de nossa época." RK

Mas eu escrevi isto há vinte anos!

CT Será que a senhora reescreveria isto hoje, e qual seria então a sua perspectiva? RK

O problema é que eu fui formada nos anos sessenta. Naquela época

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eu era muito próxima de escultores e pintores... Eu ainda me sinto ligada, me sinto mesmo profundamente interessada nas obras do início dos anos oitenta... Mas, hoje, dez ou quinze anos mais tarde, sinto-me verdadeiramente por fora! CT A senhora está dizendo talvez que agora se sente mais historiado­ ra do que crítica... e isto talvez seja inevitável. Aliás, pode-se admitir que o críti­ co de arte possui uma expectativa de vida de dez a vinte anos, não? RK

Sim, em certo sentido. Richard Serra One-ton Prop (House of Cards), 1969 Chumbo, 122 x 152 x 152 cm Whitney Museum of American Art, N.Y.

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Entrevista com Rosalind Krauss

CT No fundo, o nome dos grandes críticos de arte está ligado a uma geração de artistas. Mas, no seu caso, a senhora pode permanecer totalmente historiadora, já que o momento da crítica passou. RK Eu não sei! Será que a gente pode dissociar as coisas tão claramente? Por exemplo, escrevi recentemente um livro sobre Cindy Sherman. Ela é da ger­ ação do início dos anos oitenta - a última geração de artistas em relação à qual eu ainda tenho uma espécie de intuição, e da qual tenho a impressão de captar o pensamento - não as intenções, certamente, mas a proposta. Eu escrevi algo sobre ela meio polêmico, e não sei se ela concorda com o que escrevi. Só sei que ela não se sentiu ofendida com minhas idéias. Agora, trata-se de história da arte ou de crítica? De crítica, penso eu. Mas talvez este tenha sido meu último traba­ lho do gênero! Outro exemplo litigioso. Tenho um projeto com Yve Alain-Bois para uma exposição no Beaubourg sob o informe. Esse projeto incide sobre parte da história da arte, mas se abre também para numerosos aspectos das rea­ lizações contemporâneas. Portanto também é um trabalho de crítica. CT O conceito de informe nos envia a Georges Bataille, que lhe redigiu em parte a "definição" para o dicionário de Documents. Pode-se dizer que, para a senhora, a crítica ao formalismo, o de Greenberg em particular, reside em um antiidealismo? Nesse caso, o texto "On ne joue plus", que pensa a horizontali­ dade da escultura de Giacometti a partir de Georges Bataille e contra aqueles que o aproximam de André Breton e do surrealista "m aravilhoso", será importante. RK É exatamente isto. Não é um antiformalismo, é um anti-realismo. O senhor tem razão. Quanto a Bataille... CT Convém precisar que a senhora faz uma leitura dele que recusa uma abordagem complacente, mimética, até escabrosa, bastante difundida na França... RK Essa complacência existe também nos Estados Unidos, e a sedução exercida por Bataille às vezes vem de par com a idéia de uma transgressão chique . Lá há também esse gênero de esnobismo. Mas o mais importante, para mim, é salientar que para se pensar a transgressão é preciso rigor. Não ape­ nas o clichê da transgressão e do "baixo materialismo"! Quando aceitei escrever para o catálogo da exposição de William Rubin, em Nova York, sobre a arte moderna e o primitivismo <«, vim à França 470

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com o projeto de trabalhar sobre as relações que a obra de Giacometti mantém com o primitivismo. Para mim, a questão fundamental, a problemática essencial, antes do primitivismo, era a do pedestal: ou seja, a possibilidade de uma escul­ tura plenamente horizontal. Escrevi sobre essa horizontalidade em Passages in the Modem Sculpture (/), mas não tinha compreendido aquilo que havia real­ mente permitido a Giacometti entrar nessa problemática da horizontalidade. Eu pensava encontrar a resposta para essa questão interrogando sobretudo as lições que ele havia tirado das artes “primitivas". Finalmente, encontrei essa resposta nas relações que ele travou com Bataille. Na verdade, eu era autodidata na matéria quando abordei essa ligação. O pensamento de Bataille era uma terra incógnita. Felizmente, encontrei o livro de Denis Hollier, La Place de La Concorde, que trata Bataille com bastante rigor! CT Haveria ainda uma rápida questão, acerca de uma presença situa­ da em oposição a Bataille: a referência a Jane Austen no próprio título do capí­ tulo "Sentido e Sensibilidade" (título de um livro de Jane Austen, Sense and Sensibility) e no artigo-capítulo que dá título ao livro, "A Originalidade da Vanguarda", no qual a senhora cita uma passagem de Northanger Abbey a propósito do pitoresco... RK Mas eu adoro Jane Austen! Eu imagino, aliás, que ela seja muito difícil de traduzir, porque, independentemente de suas inúmeras qualidades, seu charme reside bem mais na musicalidade de sua frase. Aliás, como é estra­ nha, aquela música! CT Como a senhora poderia definir o pós-modernismo? Pois há uma certa nebulosidade em torno dessa palavra. Esse termo lhe parece ainda im­ portante? RK

Mas há um monte de pós-modernismos! Para mim, há sobretudo

aquele que critica o idealismo dissimulado e a má-fé da modernidade. CT

A senhora quer dizer que ele propõe a arqueologia do modernismo?

RK Sim, exatamente. Esse pensamento se pergunta então qual é a cen­ sura que opera no modernismo. Ele lhe interroga a desonestidade e considera a cumplicidade profunda entre uma apologia da autonomia, da hberaçao ou da abertura das possibilidades, e a tecnologia moderna. Essa crítica é muito seria. E há artistas que contribuíram para esse trabalho. Mas há também uma prática frívola e esnobe do pós-modernismo. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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Entrevista com Rosalind Krauss

CT

O ecletismo?

RK Sim, o uso do eclético da idéia de que não há mais "grandes nar­ rações"; ou a moda do "qualquer coisa". Aliás, eu praticamente não emprego mais esse termo: ele me irrita. Vulgarizado a esse ponto, ele não tem mais per­ tinência nem utilidade. Embora já tenha sido útil pensar que haveria um fim - e não uma finalidade, justamente, da modernidade ou do projeto moderno. Já houve um certo frescor e uma tonicidade no pensamento pós-modernista. CT

Ele tornou-se kitsch?

RK Exatamente, e sem rigor, desprovido de verdadeiro pensamento. Aliás, nós publicamos um número especial de October que foi um modo de com­ pilar esses absurdos. Esse número intitulou-se Art-Worlci-Folies. Mas, cá entre nós, poderíamos chamá-lo de o número especial de Narrischketi *. CT

Um dicionário das idéias adotadas?

RK Sim, pode ser: é a sua versão iídiche! Foi um número especial de idiotices; um número sobre a estupidez... onde cada um analisou aquilo que não podia mais suportar no discurso habitual; onde cada um ocupou-se dos relatos automaticamente produzidos a propósito de tal tema, de tal obra, de tal objeto... Estávamos todos exasperados com a estranha mistura de bebedeira e pretensão que caracteriza a profissão em geral. Benjamin Buchloh ocupou-se das interpretações correntes do neoexpressionismo alemão e, em particular, com a idéia de que ele corresponderia a uma liberação. Mostrou que o fenômeno refere-se, ao contrário, a uma repetição e um retorno à ordem. Douglas Crimp escreveu um texto sobre "A Morte da I intura . De minha parte, escrevi "Em nome de Picasso". Em suma, cada um de nós trabalhou sobre os shibbolcths em uso. Além disso, eu escrevi um editorial bastante cruel para esse número... descrevi a falta radical de pensa­ mento que anima o trabalho de um conhecido historiador da arte, que eu não digo e nem direi o nome! CT

A senhora continua então a ser "agitadora".

RK

Exatamente.

Tolices. (N.T.) 472

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CLAIRE BRUNET E GILLES A. TII3ERGHIEN

Notas (1) Rosalind Krauss, Le Photographique, Paris, Macula, 1992. (2) Rosalind Krauss, L'Originalité île Lavant-garde et autres mythes modernistes, Paris, Macula, 1993. (3) O artigo que dá título ao livro foi traduzido para o francês por Claude Gintz, in Regards sur l'art américain des aim és soixante, Paris, Territoire, 1979. O texto so­ bre Rodin, extraído do mesmo livro mas publicado originalmente em separa­ do, foi traduzido para o francês in Léo Steinberg, Le Retour de Rodin, Paris, Macula, 1991. (4) Texto traduzido no catálogo da exposição Les Demoiselles d'Avignon (Musée Picasso, 26 jan-18 avril 1988), Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1988. (5) Optical Unconscious, Cambridge, MIT Press, 1993. (6) Trad. franç. "Giacom etti" in Le Primitivisme dans Part du 20e. Siecle, Paris, Flammarion, 1987, vol. Il, p. 503-533. (7) No prelo das ed. Macula.

Este artigo foi concedido com exclusividade pelos seus autores para publicação no Brasil na Revista Gávea. GÁVEA. 13 (13), setembro 1995

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O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação lato sensu, foi formado há 15 anos. O Curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira aprendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar.

Coordenador Acadêmico Anna Maria Monteiro de Carvalho Professores

Anna Maria Monteiro de Carvalho Antonio Edmilson M. Rodrigues Fernando Cocchiarale João Masao Kamita Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Margareth da Silva Pereira Roberto Conduru Ronaldo Brito Sheila Cabo Geraldo

Esta publicação, além do Programa de Apoio a Publicações Científicas, SCT/PR, CNPq e F1NEP, contou também com o apoio da Fundação Nacional de ArteFUNARTE e da Secretaria Municipal de Cultura.


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