® c v i s t a de H i s t ó r i a da A r t e e A r q u i t e t u r a ■ Rio de Janeiro, \fal. 11, nü 11. Abril de 1994
O Avesso das Coisas C A R M E N MA I A
Os Painéis Elípticos de Leandro Joaquim na Pintura do Rio de Janeiro Setecentista A M Â N D IO M IC U E I. D O S S A N T O S
As Representações do Lugar na Pintura Moderna Brasileira: as Obras de Tarsila do Amaral e Ismael Nery IC L É IA B O R S A C A T T A N I
O Transtorno da Matéria no Maneirismo M A R 1 S A F L Ó R ID O C E S A R
Teoria Acadêmica, Arquitetura Moderna, Corolário Brasileiro C A R L O S E D U A R D O D IA S C O M A S
Algumas Considerações Antropológicas sobre o Ensino Artístico J O S É A N T O N I O B. F E R N A N D E S D IA S
Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger
STÉPHANE H U C H E T
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A Revista Gávea aceita propostas de artigos, mas to das as colaborações não encomendadas são submet idas ao conselho editorial a quem cabe a decisão final sobre sua publicação. Os artigos deverão ser enviados nos meses de abril e de novembro.
Correspondência Editor Responsável da Revista Gávea
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 sl. 515-F CEP 22453-900, Rio de Janeiro, Brasil
ISSN 0103
Revista Semestral do C urso de Especialização em História da Arte e A rquitetura no Brasil Pontifícia Universidade C atólica do Rio de Janeiro Centro de Ciências S o ciais Departamento de H istória Coordenação de C ursos de Extensão Abril de 1994
Editor Responsável C arlo s Zilio Editor Adjunto A nna M aria M onteiro de C arvalho Editor Assistente Vanda M angia K labin Secretárias da Redação Sonia Santos Silva Laureano M argaret 0'N e iIl Ferrario Conselho Editorial C arlos Zilio Jorge Czajkowski M argareth da Silva Pereira M aria Cristina Burlam aqui Ronaldo Brito Vanda M angia Klabin Conselho Consultivo Eduardo Jardim de M oraes K atia M uricy M argarida de Souza N eves Ricardo Benzaquem de A raú jo Projeto Gráfico PV D I DESIG N N air de Paula Soares Diagram ação P V D I D ESIGN C hristiane Kemper Editoração Eletrônica e Fotolito RENART Impressão J. SH O LN A
GÁVEA: Revista de História de Arte e Arquitetura Vol. 1, n? 1 (1984) - Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História. Semestral Texto em português, inglês, francês e espanhol ISSN 0103 -1996 1. Arte - História - Brasil. 2. Arquitetura História - Brasil. 1. CDD-709.81
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Os Painéis Elípticos de Leandro Joaquim na Pintura do Rio de Janeiro Setecentista A M Â N D IO M IG U E L D O S S A N T O S 130
As Representações do Lugar na Pintura Moderna Brasileira: as Obras de Tarsila do Amaral e Ismael Nery IC LÊIA B O R SA C A T T A N I 152
O Transtorno da Matéria no Maneirismo M A R ISA F L Ó R ID O C E S A R 160
Teoria Acadêmica, Arquitetura Moderna, Corolário Brasileiro C A R L O S E D U A R D O D IA S C O M A S 180
Algumas Considerações Antropológicas sobre o Ensino Artístico JO S É A N T O N IO B . FER N A N D E S D IA S 194
Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger STÉ PH A N E H U C H E T 202
Cildo Meireles "Circuitos Ideológicos" — Zero Dólar
1970
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O Avesso das Coisas Aceito para publicação em junho de 1993. 0 artigo de Carmen Maia destaca a dinâmica tensa e reflexiva do trabalho de Cildo Meireles. Armando complexos paradoxos, o artista surge com o um au têntico propositor de questões, exatamente para de monstrar a fragilidade e instabilidade daquilo que se apresenta como "realidade". É esse posicionamen to crítico do trabalho que possibilita à autora traçar paralelos entre as obras de Cildo Meireles e Marcei Duchamp. Arte Contemporânea Arte Brasileira Cildo Meireles
CARMEN MAIA Graduada em Ciências Sociais (UFRJ), pós-graduada em História da Arte e da Arquitetura no Brasil (PUCRJ) e aluna do mestrado em História Social da C ul tura (PUC RJ).
O trabalho dc Cildo Meireles é uma poética do intrigante. Investigando os limites dados como "naturais", trama um verdadeiro jogo: o de erguer paradoxos cons tantes. O seu mundo lembra um mundo às avessas, subverte o senso do que se apresenta como a "realidade" e, em troca, nos oferece um real que é pura interpretação. A obra, no conjunto, produz uma evidência sutil. Primeiro, atrai e estonteia. Depois é como entrar num jogo em que não há regras prévias, sendo muitas contra ditórias entre si. De modo característico, opera uma série de deslocamentos complexos, ver dadeiros puzzles, com a história da arte, a física, a linguagem, a cultura popular, e, afinal, a política. Não pode existir, portanto, um único referencial para a obra de Cildo Mei reles. Ele utiliza materiais heterogêneos para explorar os limites formais, os limites da per cepção, das ideologias, dos processos de arte e da experiência estética, a partir sobretudo de uma realidade ambígua e movente como a brasileira. Dito isto, é óbvio que alguns aspectos da obra de Meireles reportam-se di retamente à lógica de Marcei Duchamp. Ambas indicam, no conjunto, a marca do rigor: cada trabalho deve mostrar-se muito diferente do outro. A tentativa é elaborar "para cada nova idéia, uma nova linguagem"*1). Ambos trabalham no sentido da libertação perante os choques e os impasses armados pela realidade. Para Duchamp, como se sabe, a arte era acima de tudo reflexão. O trabalho do artista contemporâneo se apóia, basicamente, no binômio arte-linguagem, e não mais GÁVEA. 11 (11), abril 1994
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0 A ve sso das Coisas no binômio arte-belo, consagrado pelo Renascimento. O artista transforma-se num propositor de questões. Em Duchamp, com o agora em Cildo, os trabalhos possuem alta vol tagem crítica. Entregam-se à disposição de colocar em xeque a realidade social através do próprio objeto de arte, espécie de agente desarticulador que promove novas conexões re flexivas. Cildo Meireles utiliza objetos diários, de circunstâncias cotidianas, para estrutu rar sua fala: caixas de fósforos, garrafas de refrigerantes, sacos de supermercado, dinheiro, pregos, rodos, facas, giz, carvão, lixas... Retira-os, contudo, de seu fluxo normal para reacendê-los estranhamente diante de nossos olhos. A arte nos transmite a convicção esti mulante de que pode ser feita a partir dos mais efêmeros e mundanos materiais, pelos pro cessos mais complexos (física, matemática, fotografia...) ou por atos os mais simples. A desconexão entre imagem visual e frase verbal, comum a muitos traba lhos do artista, é um procedimento que visa questionar a relação de complementaridade entre palavra e imagem e apontar para a interrogação sobre as determinantes conceituais da obra de arte. A distância entre a form a artística e o receptor, fundamentalmente men tal, impede, de pronto, a complacência com a "casca", a aceitação de critérios dados, as pecto aliás notório na obra de M . Duchamp. Há, enfim, o recurso a jogos peroeptivos, tão caro a Duchamp. Em "Desvio para o Vermelho", de 1984, questiona-se as propriedades físicas do real dado e assim "a arte faz o mundo desandar, inclusive ao nível da própria física"(2>. M as será o esforço em passar uma experiência que não se elucide apenas no plano visual (mesmo que, no caso de "Desvio para o Vermelho", o faça no próprio campo ótico-físico), o que vai levar à bus ca do que chamou "espaços cegos", o espaço incluso, escondido, que pode parecer imaterial, mas é concreto e palpável. E o caso das "Inserções em Circuitos Ideológicos" e "Inser ções em Circuitos Antropológicos". A inteligência da estratégia... Com o dizia Octavio Paz com relação a Duchamp: "O invisível não é obscuro, nem misterioso, é transparente..." Falando em estratégia: nada mais implacável do que o jogo, daí talvez a re lativa exclusão de afetos, neutralizados através do humor. Há uma contestação permanente da realidade, sem propor soluções, só detectando e apontando contra-sensos. Catherine David fala de uma postura distanciada... Complexo equilíbrio este: por vezes parece que tudo vai desandar , desorientar'. Com a palavra o artista: "a procura da continuidade da Razão dentro de um caos turbulento"^). S u p e rfíc ie e A b is m o
Nessa perigosa fronteira entre a superfície e os abism os da lógica racional, a arte de Cildo Meireles, próxima nisto a de Robert Smithson, por exemplo, vai erigindo antíteses, propondo dilemas sem soluções aparentes (espaço-não-espaço, visão-cegueira, arte-nao-arte) e acaba por sublinhar a natureza provisória, a fragilidade de nossos concei tos e formas de conhecimento... A experiência estética transforma-se numa experiência dia lética que leva em consideração tanto o pensamento como o olhar; tanto o objeto isolado, G Á V EA . 11 (11), abril 1994
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quanto o contexto. Todo o "conjunto perceptivo sensorial"*4) é posto em questão. Assim, sintomaticamente, o trabalho de arte em Cildo, como ocorre em R. Smithson, é muitas vezes o resíduo de uma atividade. "Caixas de Brasília-Clareira"; "Cordões-30 km de linha estendidos", da série Arte Física; "Fronteira Rio-São Paulo", da série Mutações Geográficas, todos de 1969, são obras que extravasavam a força do olhar. Tènsionando as tradicionais definições de arte, propugnavam uma maneira de não-peroeber, apontavam espaços indeterminados. Trabalhos que, através de sua virtualidade, referiam-se, em última instância, à falta de capacidade de lidarmos com o aqui e agora. De fato, de nunciavam a leviandade de se acreditar no alcance direto do trabalho de arte. Simultanea-
Cildo Meireles "Espaços Virtuais: Cantos" 1967-1968 Fotografia: Pedro Oswaldo Cruz
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"M a lh a s da Liberdade" 1976 Fotografia: Regina Bitencourt
mente, supõe-se, acionavam uma dialética de signo (o que significa algo distinto de si mes mo) e referente (aquilo que designa, situação contextual). O artista chama sempre a atenção, de um modo que guarda semelhança com a lógica dos Site-Non-sites de Smithson, para o arbítrio de nossos limites. Mapa e territó rio obviamente não são a mesma coisa; do mesmo modo, palavras são apenas e tão so mente mapeamentos aproximados da realidade. E talvez seja o momento de perguntar: o ato criativo do artista começa e acaba com o trabalho de arte per si? No caso de Cildo Meireles, arte e mundo se confundem de maneira (como pensou Alice ao encolher) curiosa. Grandes escalas tornam-se pequenas, como em "La G Á VEA . 11 (11), abril 1994
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Bruja", de 1981, projetada inicialmente para a galeria Luiza Strina/SP, em que quilôme tros de cerdas desta vassoura "apanhariam" o público na calçada para levá-lo até seu des proporcional centro. Escalas pequenas, inversamente, podem se tornar imensas, como em "Cruzeiro do Sul" (1969/1970), em que um cubo de 9mm de aresta foi pensado para se constituir sozinho em exposição, numa área de no mínimo 200 m2! De passagem, podemos notar que algo do gênero já vinha se delineando des de Hélio Oiticica e seus "Relevos Espaciais" e "Parangolés": o essencial passa a ser contin gência. J.P. Sartre, em seu romance "A Náusea", observa que a contingência não é uma aparência que se possa desfazer; ao contrário, ela é o absoluto, a gratuidade perfeita. Nos "Espaços Virtuais: Cantos" (1967/1968), uma série de 44 projetos, o jo vem artista construía trabalhos que pressupunham o deslocamento do observador e apre sentavam tanto uma proposta de participação sensorial quanto semântica. Pois, para que a situação de ortogonalidade fosse obtida, uma vez que foi projetada a partir de planos não ortogonais, o observador participante necessitava caminhar. "Dessolidificando" a noção de espaço, a arte mostrava uma maneira de abrir o indivíduo ao mundo. Smithson havia dito; "Toda e qualquer percepção é essencialmente determi nada. Não é uma questão de forma e ante-forma, mas de limites, e como esses limites destroem a si mesmos e desaparecem "(5h Estamos nas fronteiras do desaparecimento das for mas estáveis e identificáveis. Se a perspectiva, ao se concretizar estrangulada nos "Cantos", nos liberta, em seu trabalho "M alhas da Liberdade", de 1976, é a teia que vira linha.. E esse traço con tínuo que em M. Ponty significa "segregação, modulação de uma espacialidade prévia" (1984:106)(6), aqui, nas "M alhas", ruma ao infinito. Suspendendo a grade teórica das cer tezas, possuímos e somos possuídos pela obra de arte. Se há o forte questionamento se mântico, investigação intelectual, há também, e muito, a sensibilização das fronteiras da percepção. O espaço, ou antes, a interrogação do espaço, passa a ser, aqui, de suma im portância. Espaço que é estranhamento e se mostra fruto de uma concepção humana, ex periência perpetuamente re-elaborada. Em "Blindhotland" (1975), estrutura e espaço se confundem. Trata-se de um núcleo construtivo aberto à participação, em que todos os elementos são relativos. O es paço é tomado como elemento não-metafórico, ou seja, é experimentado pelo espectador, que perde seu sistema referencial e só vem a reorganizá-lo na própria fisicalidade do terri tório, através de experiências outras, além do olhar, tais como tato, som... O corpo aqui é um entrelaçado de visão e movimento — diante da ausência de um código de diferencia ção visual, estabelece-se o jogo entre sinestesia e cinestesia: a primeira é a relação subjeti va que se estabelece entre uma percepção e outra, mesmo que pertencente a domínios di ferentes; a segunda liga-se à percepção via movimentos musculares. Já em 1970, o artista iniciara a série "Inserções em Circuitos Ideológicos", G ÁVEA. 11 (11), abril 1994
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o A ve sso das Coisas que se desdobrará em Projetos tais com o "Coca-Cola , "Cédula", "Tóken", "Black Pen te"... Esses trabalhos também remetem à idéia de corpo. Porém, não o corpo individual mas o corpo social, o outro. A form a aqui é atrito com o real vigente, contradição ineren te. Através da proposta de uma relação ativa com o espectador, a detecção de espaços in clusos e interferências entmpicas, a estratégia básica é a seguinte: estar em todo e em ne nhum lugar exatamente. Cildo Meireles "Eureka Blindhotland"
1970 1975 Fotografia: W ilton M o n te n e g ro
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O "feeling" das densidades, presente em "Blindhotland", "Inserções", em "Fiat Lux: o Sermão da M ontanha", entre outros, levou o artista aos guetos: ponto de conver gência de densidades não imagináveis, local em que a correspondência normal entre ma téria e forma, entre matéria e energia, é despedaçada, local que corrói todo o corpo social, sem se fixar em canto algum, que detém uma força de tensionamento excepcional. O ar tista quer testar seus limites, procurar seus becos e passagens, aparecendo como "ponto cego"*7) para o sistema. As "densidades" apresentam-se sob múltiplos aspectos, alguns unidos en tre si. Ela é física, quando joga com a relação entre massa e volume de um corpo, como em "Blindhotland". É intensidade, maneira de perceber e se colocar no mundo, em "Des vio para o Vermelho", ou em "Fiat Lux: o Sermão da Montanha". Podem também, via pensamento matemático, procurar controverter o visível manifesto e enfatizar a natureza abstrata da atividade artística, como em seus "Cantos". Já em "Inserções" ou "Fiat Lux", "densidade" é política, ligada ao que pode provocar num indivíduo e/o u corpo social. Laboratório Explosivo
Desde a Mostra Nova Objetividade Brasileira, no M A M /R J, em 1967, fica ra patente um processo de mudança que já vinha se acumulando há cerca de dez anos, no qual a participação do espectador era considerada relevante, assim como a abordagem crítica de problemas éticos e políticos. Apresentava ainda a inclinação para proposições coleti vas e o redimensionamento do "objeto" artistico. Pode-se dizer que devido também às al terações ocorridas no país, se o Movimento Neoconcreto havia revelado uma dinâmica de laboratório"*81, a geração de Cildo Meireles parecia aspirar à dinâmica de uma fábrica de explosivos. De um lado, tensão política. De outro, o fortalecimento do mercado de ar te, criando relações vigorosas entre a produção e o circuito comercial de arte, através de artistas de linguagens"... digamos, redundantes, e que por isso mesmo tinham penetração mais fácil junto ao público"*9». Desse modo, a produção contemporânea, politicamente sub metida a enorme pressão nos anos 70, era recalcada, também, pelo mercado. O trabalho de Cildo Meireles vem propor, deliberadamente, o confronto. Herdeiro da positividade construtivista no Brasil, da arte como instrumen to de construção da sociedade, Meireles, assimilando a busca duchampiana, ultrapassa a investigação de formas para o objeto de arte, passa a pesquisar diretamente formas de fazer arte. Levando adiante o rompimento das divisas da Razão e da Imaginação, rea lizado pelos neoconcretistas frente à tradição construtiva, e aprofundando este transpasse, Cildo indicará um envolvimento entre sujeito e obra literal, mais efetivo do que nos primeiros, mesmo com a ausência manifesta da categoria expressão . Cildo Meireles tem a habilidade de pegar as coisas mais corriqueiras e fazêG ÁVEA. 11 (11), abril 1994
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0 Ave sso das Coisas
Cildo M eireles . . . „ "M issão - M issões: co m o construir catedrais 1987 Fotografia: W ilton M o n te n e g ro
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g á vea , n
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las fantásticas, intensamente instigantes..., como com os ossos, prestes a desabar, susten tados por uma frágil coluna de hóstias, do trabalho "Missão-Missões: como construir ca tedrais", de 1987, em que o próprio material utilizado parece nos remeter a um tempo re moto. Ou a quantidade absurda de estilhaços de vidro em "Através", despedaçando qual quer idéia de totalidade, com suas cercas e arames farpados obstaculizando constantemente o nosso caminho. Materiais que a maior parte das vezes trazem um apelo semântico e se constituem em idéias. Quando há a opacidade (e não for opção estratégica), isso se deve ao fato de que a própria cultura não fornece significações translúcidas: os sentidos jamais estão completamente concluídos, os sinais não podendo ser considerados separadamente. Cildo Meireles "Através" 1989
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0 Avesso das Coisas Desvios costumam ocorrer nos limites do Princípio da Incerteza' *0». No en tanto, as composições de Meireles são claramente articuladas entre si. As conexões se mo vem à maneira de uma espiral, verso e reverso se confundem, sem fim ou começo, direito e avesso se esbatem... Muitos trabalhos, apesar da diversidade aparente, seguem uma ló gica comum. Então, o que parece ser uno, pode ser múltiplo, e o múltiplo pode vir a ser uno. Segundo M. Ponty, "O espaço existe em si, ou antes, é o em-si por excelência, sua definição é ser em si... O rientação, polaridade, envolvimento são nele fenômenos de rivados, ligados à minha presença (1984:97)<” >. Seria imprescindível assim falar de "Desvio para o Vermelho", de 1984, inicialmente montado no M A M /R J. Trabalho multisensorial, dividido em três partes. O primeiro espaço, "Impregnação", assemelhava-se a uma sala ou escritório, cheio de objetos comuns: cadeiras, cinzeiros, geladeira, televisão, telefone, quadros. Todos, absolutamente todos, vermelhos. Por esse acúmulo de objetos vermelhos, chega-se a uma situação absurda, a partir de unidades períeitamente razoáveis. Espaço ao mesmo tempo literal e ilusionista, próximo à evocação de Borges de um mundo que teria se tornado fictício por excesso de realismo filosófico: apontar assim para a leitura do real. No segundo ambiente, uma lata de tinta derrama um líquido vermelho no chão, de modo desproporcional quanto à relação entre continente e conteúdo. Nessa apreen são horizontal, a noção de proporção fica em suspenso: "Entorno". Opõe-se-lhe um mo do de percepção descontínuo, feito de instantes em que a descontinuidade entre imagem e consciência encontram-se ligadas. Fazendo da locomoção um ato descontínuo, o mundo está realmente en-tomo de mim e não adiante. Movendo-me, experimento o tempo com o sucessivas condições. Tempo vital, encontrado na medida mesma do envolvimento com o trabalho do artista, que implica o desdobramento no espaço de uma sensação. Tempo e espaço não se apre sentam como valores absolutos, imagem e visão deixam de coincidir. Se a condição para o próprio conceito de universo é â de não ter limites, esse tempo imaginário pode então ser o real e o real apenas o fruto de nossa imaginação? O terceiro ambiente, form ando junto aos outros dois um u, apresenta uma pia inclinada de aproximadamente 4 5° com relação ao solo, transtornando a linha do ho rizonte, que é fim e começo, embaixo e em cima. A base da pia e todo o ambiente ao redor estão obscurecidas: nas zonas enigmáticas nada é seguro. Pergunta M . Ponty: "Será que o mais alto ponto da razão é verificar esse deslizamento do solo debaixo de nossos pês, t chamar pomposamente de interrogação um estado de estupefação continuada, de pes quisa, um caminhar em círculo, de Ser aquilo que nunca é completamente?"d2) Existe sempre, no trabalho de Cildo Meireles, algo que excede a possibilida de de apreensão completa. Nele, como vimos, mundo e arte embaralham-se. Perfazendo um jogo sutil, o vínculo entre ambos estabelece-se cognitiva e sensorialmente, mediante uma experiência temporal ritmada pela alternância de "Luz" e "obscuridade".
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N o ta s (1 ) (2 ) (3) (4 ) (5 ) (6 ) (7)
MEIRELES. Cildo. O Estado de São Paulo, 23/09/1991. BRITO, Ronaldo. "Desvio para o Vermelho" (Catálogo). Funarte, 1984. MEIRELES, Cildo. Artigo de jornal. PEDROSA, Mário. "Aspiro ao Grande Labirinto" - Introdução. Editora Rocco, 1986. HOBBS, Robert. "Robert Smithson: Sculpture". Comell University Press, 1981. PONTY, Merleau. Coleção Os Pensadores. BRITO, Ronaldo. "Freqüência Imodulada". Coleção Arte Brasileira Contemporânea. Funarte, 1978.
( 8 ) --------- ."Neoconcretismo - Vértice e Ruptura". Funarte/INAP, 1985. ( 9 ) --------- . "Análise do Circuito". Revista Malasartes. n'.’ 1. S et/out/nov 1975. (10) AUGER, Pierre; BORN, Max; HEISENBERG, W. e SCHRÕEDINGER, E. "Problemas da Física Moderna" - Coleção Debates. Editora Perspectiva. (11) PONTY, Merleau. Coleção Os Pensadores. (12) _____ . Idetn.
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Fig. 1 - Vista da Igreja da Glória (circa 1785) Leandro Joaquim (1738) - 1798) ó le o /te la (113 cm x 141,5 cm ) M useu Histórico Nacional - RJ (em com odato no M N B A )
Luccock chama "um a vista da terra" a mais antiga representação iconográfica da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro do Rio. Vê-se a praia, o morro, algumas edificações ao longo da marinha e o princípio do Catete (também indicadas na planta de Francisco João Roscio de 1778), assim com o a pesca de arrastão. Observa-se que tanto esta vista, quanto a da Processão m arítima (que mostra o Hospital dos Lázaros), parecem marcar aspectos dos pontos extremos da religiosidade e da urbe carioca.
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Os Painéis Elípticos de Leandro Joaquim na Pintura do Rio de Janeiro Setecentista Aceito para publicação em junho de 1993. Nos Setecentos Leandro Joaquim, em sua pintura de paisagem, narrou cenograficamente a história da cida de, aspirando produzir uma documentação das locali dades numa visualidade que revelaria um "olhar de vi sitante" à cidade, materializando a descoberta da na tureza como fenômeno estético. Pintura Setecentista Pintura de paisagem Escola Fluminense de Pintura
AMANDIO MIGUEL DOS SANTOS Graduado em Educação Artística - Habilitação em História da Arte pela UERJ, form ado pelo Curso de Especialização em H istória da A rte e Arquitetura no Brasil da PUC-RJ e mestre em História da A rte pela EBA - UFRJ.
N ada p o d e s e r m ais perigoso p ara o im pério qu e seus súditos colon iais cheguem a perceber, p o r um outro cam inho, q u e p o d e m falar p o r eles m esm os, e o qu e devem dizer n ã o está v icia d o p elo cansaço d e um a linguagem progressivam ente carente d e significado. *1*
A Pintura e a Forma de Expressão Leandro Joaquim faz parte do raro grupo de artistas que — na condição de mulato^2* — alcançou, desde o seu tempo, sua posição de artista/artesão na arte brasileira<3). Pertenceu a Escola Fluminense de Pintura, era cenógrafo^4), pintor e arquiteto tendo coadjuvado Mestre Valentim, outro artista/artesão distinguido da época, em desenhos e construções. O artista foi biografado e sua obra estudada criticamente a partir do século XIX. Sabemos que nasceu em data ignorada, no Rio de Janeiro, onde morreu em 1798. Embora seus antigos analistas já reconhecessem o virtuosismo de suas pinturas, se detinham mais nas imperícias técnicas, de um olhar acadêmico, se esquecendo da importância de sua obra como uma das primeiras do processo de laicização das artes plásticas do Rio de Janeiro. Araújo Porto-Alegre, por exemplo, analisando sua arte, atribuía a Leandro Joa quim pincel suave<5); Gonzaga Duque afirmava que seu desenho era fraco e tímido, quase sempre defeituoso, achando ainda que, nos prim eiros tempos, desconhecia o v alor dos tons e não sabia ilum inar os quadros, embora nas últimas obras já se m ostrasse m ais cu idado so, procurando corrigir-se desses erros, o q u e conseguiu com adm irável en g en h o ^ . GÁ VEA . 11 (11), abril 1994
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Os Painéis Elípticos de Leandro Joaquim na Pintura do Rio de Janeiro Setec
Fig. 2 - Lagoa do B o q u e irã o (circa 1785) Leandro J o a q u im (1738 - 1798) ó le o /te la (112 cm x 131 cm ) M u se u H istó rico N a c io n a l - RJ (em c o m o d a to no M N B A )
A cena deve ter sido executada anteriormente a 1783, pois nesse ano foi inaugurado o Pas seio Público, projetado por Mestre Valentim, feito no aterro da Lagoa do Boqueirão no go verno do Vice-Rei Luis de Vasconcelos e Sousa. Á esquerda no alto, o Convento de Santa Teresa e embaixo a torre da Igreja de N. Sra. da Lapa. Á direita no alto, vé-se parte do morro de Santo Antônio. As casas que são avistadas na frente, à margem da Lagoa, correspondem à atual Rua do Passeio, segundo informação do cenógrafo Eduardo Canabrava Barreiros e que começaram a ser edificadas a partir de 1790.
Na verdade, este artista foi o primeiro pintor de paisagens e cenas de costu mes do Rio de Janeiro, exemplificados nos painéis elípticos que pintou para o Pavilhão de Apoio no Passeio Público do Rio de Janeiro<7) e para a documentação iconográfica do in cêndio e reedificação do prédio do Recolhimento do Parto. As pinturas de Leandro Joaquim demonstram uma sensibilidade do artista em incorporar elementos naturais em formas livres — uma dinâmica sabiamente desor denada — a uma organização geométrica por vezes perspectivada e por vezes cósmica. O espírito barroco-rococó está presente em sua obra, na organização dos grupos de figu ras, nas atitudes e na composição geral, mas Leandro Joaquim transgride este modo de ver, 132
GÁ VEA . 11 (11), abril 1994
entista
AMANDIO MIGUEL DOS SANTOS
denotando sempre uma dualidade entre a natureza e o artifício, entre a ficção e a docu mentação, entre o instantâneo e o cenográfico. Via de regra, até o século XVIII, a pintura brasileira caracterizava-se pela te mática religiosa copiada das estampas e que chegavam através da Metrópole. Em sua maio ria, o pintor colonial, quando recebia da irmandade a encomenda de um painel parietal ou de forro de teto, procurava na estampa religiosa não apenas o conteúdo, mas também a forma de sua composição. Em suma, ampliava ou mesmo modificava as estampas, estas muitas vezes escolhidas pelas próprias irmandades. Daí observar-se nas nossas pinturas coloniais certas "anomalias" no eruditismo da composição contrastando com oiempirismo da técnica. E, de qualquer modo, deve-se levar em conta o modelo como valor de em préstimo, dilema que encontrou várias saídas na arte latino-americana do século XVIII entre as quais, uma nova invenção de iconografias que correspondeu a preocupações ideológi cas regionais*8*, já afeitas ao crescente poder da sociedade civil sobre o religioso e do pro cesso de laicização urbana, ainda que em sua maioria, pelas mãos do Estado. Neste sentido, a obra de Leandro Joaquim é inovadora. Forma uma atitude distinta na qual se acentua a tendência na superação da bidimensionalidade física da re presentação das imagens oriundas das estampas. A construção de um espaço tridimensio nal é sugerida por atenuadas intenções de perspectiva e de trabalho em volume, que se con juga a uma estrutura por superposições planimétricas. E as figuras e o cenário, em que se desenvolve a narrativa, exploram e superam a limitação do suporte. Reforça-se ainda que este processo é acompanhado por um movimento de dimensão psicológica, executado por uma gama de impressões. Desta maneira o artista buscou uma expressão de acordo com sua própria realidade e incorporou as estampas às suas necessidades expressivas, afastandose da repetição dos modelos. Como bem diz Hannah Levy: C o m o o s m od elo s europeus — principalm en te gravuras — eram d e autores e estilos diferentes, s ó os artistas nacionais d e m a io r talento conseguiram d a r a suas obras um caráter d e un idade estilística e um cu n h o to d o p esso al.^ )
O Pintor e Narrador: O Cronista da Cidade A obra de Leandro Joaquim contém os elementos de seu mundo circundan te — o real — sem que se esgote na descrição deste real: seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingimento, a preparação de um imaginário. Se por um lado, Leandro Joaquim não escapou ao costume de utilizar a es tampa, (que mesmo na Europa, era o sistema comum de ensinar) e nelas inspirou-se ao pintar seus quadros religiosos*10*, pelo outro, inovou na pintura profana, deixando inú meras vezes o modelo para pintar conforme seus olhos viam as coisas. E seus olhos viram so bretudo o cotidiano do Rio de Janeiro no tempo do Vice-Rei D. Luiz de Vasconcelos. O pintor GÁ VEA . 11 (11), abril 1994
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soube, como ninguém, reformular o mundo formulado, permitindo que tal acontecimento fosse experimentado esteticamente. Por isso mesmo, encontra-se na sua obra duas faces distintas
as da pre
sença e da ausência da estampa. Na primeira, característica dos quadros religiosos, sentese sua marca dominadora na com posição e no próprio equilíbrio dos valores. Na retratística e em seus trabalhos paisagísticos, nestes apesar da presença de vedutas” •>, observase uma redefinição do modelo destas estampas e também um grande distanciamento das mesmas. É quando aparece o narrador, o cronista co lo n ial'12). Nenhum pintor, no Rio de Janeiro Setecentista, conseguiu ser mais vivo, original e poético, do que Leandro Joaquim nos seus painéis elípticos do Recolhimento do Parto'13) e dos que decoravam os Pavilhões do Passeio Público. Para os Pavilhões do Passeio Público (figs. 1 a 8) Leandro Joaquim pintou cenas de pesca de arrastão, chegada de navios, trabalhadores de mineração, gente que planta café, que se diverte na romaria, paradas militares e momentos do cotidiano, imagens que até então eram impensadas enquanto tema artístico na realidade brasileira. Mesclava, desse modo, o povo e a terra do Brasil, sentindo-os enquanto forças da natureza e da vida, fun dindo com sabedoria o produto de uma encomenda de caráter oficial com a sua interpre tação estética. Assim, os elementos pictóricos escolhidos assumem em sua obra outra di mensão, distinta da que tinham no campo de referência existente enquanto operação bási ca de reprodução do mundo, pois esta seleção é governada apenas por uma escolha feita pelo autor nos sistemas contextuais, através de seu ato de tematização do mundo, no qual o conteúdo figurativo, como bem diz Panofsky, é a p reen d id o p e la d eterm in ação d aqu eles prin cípios subjacentes q u e revelam a atitu d e b ásica d e u m a n ação, d e um p eríod o, d e uma classe social, crença religiosa ou filo só fica , qu alificad as p o r u m a p erso n a lid a d e e con den sa d os n u m a obra(14). Portanto, Leandro Joaquim revelou um emergente nacionalismo e descobriu a expressão de uma realidade local própria, mostrando aos poucos um caminho, isto é, a descrição de elementos diferenciais, notadamente a natureza e o povo. E justificam-se, no mesmo movimento, as opções estéticas dominantes — o descritivismo, o enlace com a História, um eterno recomeço — , amparadas nessa miragem originária, nessa substân cia natural, laboriosamente construídas por esses cronistas de origens que foram tam bém, na sua maioria, os primeiros “repórteres" e "propagandistas" do país^S). Como um ato de fingir, a seleção dos temas encontra sua correspondência pictográfica na combina ção dos elementos visuais que se tornam discursivos, na medida que abrangem tanto a fu são do significado visual como o do narrativo literário, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos personagens, suas ações e seus discursos intrínsecos. Esta combina ção é um ato de fingir por possuir a mesma caracterização básica: ser transgressão de limi tes. Como mostra Francastel, ela é algo que não se encontra no mundo dado correspon dente. Tampouco ela é apenas algo imaginário; é a preparação de um imaginário para o 134
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uso, que de seu lado, depende das circunstâncias em que deve ocorrer, pois a imagem pic tórica é uma realidade com suas leis e princípios^1*»). A instabilidade desta relação é de tal modo organizada que conduz à osci lação, provocando uma figuração que não mais se deixa reconduzir a discursos estereoti pados. No caso dos painéis elípticos de Leandro Joaquim trata-se, sobretudo, de perceber como esta narrativa específica adquire perfil próprio, marcado, em parte, por uma obses são pela cor local, que parecia sugerir que o narrador procurasse fazer o mínimo de som bra possível a ela, cabendo-lhe a exclusiva função de fitá-la. E em parte porque, em abso luta sintonia com o próprio tempo, havia o desejo de afirmação da paisagem brasileira, com a "fundação" de um tema local e o relacionamento entre o seu narrador e o nexo so cial, graças ao qual se lhe atribui essa função de observador ameno de costumes e quadros históricos. Estrutura Cenográfica nos Painéis Elípticos de Leandro Joaquim Leandro Joaquim foi cenógrafo do Teatro Manoel Luiz e sente-se a estrutu ra de composição cênica nos seus elípticos(17). É interessante notar que pelos Pavilhões do Passeio Público se descortinava a bela imagem da entrada da Baía de Guanabara e nada mais encantador que ornamentálos com reproduções do espetáculo cotidiano e da natureza que a cidade oferecia (figs. 3, 4 e 5). Esta nova característica dos jardins, nos quais os cidadãos assumem a cate goria de público participante e espectador, veio descortinar uma situação social que passa dos círculos íntimos para a região na qual grupos sociais complexos e díspares entrariam em contato. Richard Sennett analisa esta nova atuação de papéis como um a das mais an tigas concepções ociden tais d a sociedade que é vê-la co m o se fosse em teatro. E a tradição d o theatrum mundi. Um theatrum mundi no qual a idéia d e qu e os hom en s sã o co m o ato res, a sociedade c o m o um p a lc o <18>. Assim, o Passeio Público do Rio oferecia este palco que encenava a vida da cidade e os dois Pavilhões, em seu terraço, a cenografia mágica das belezas naturais e da economia local através das telas expostas. Nas circunstâncias favoráveis que os Pavilhões ofereciam a luz, a plastici dade das cores e a vista das cenas podiam sugerir um espetáculo teatral, espetáculo que a cidade representava aos visitantes que a ela recorriam para admirá-la. O pintor habil mente fixou na tela sua visão tal como a quis interpretar; e se essa determinou as dimen sões cenográficas, as cores mobilizaram as linhas, as vibrações, as luzes e as sombras para o espectador contemplar. O pintor-arquiteto dos Pavilhões fixou minuciosamente, pelo desenho e di mensões, a ordem e as formas múltiplas da sua construção do espaço cênico. Ambos cons truíram a possibilidade de absorver o drama da cidade numa fusão entre a pintura e ar G ÁVEA. 11 (11), abril 1994
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quitetura, o que permitiu uma nova apreensão do espaço e do tempo nos quais se vê a ma neira de conciliar a vida própria de cada uma destas manifestações plásticas numa harmo niosa unidade. No espaço, a duração expressou-se por uma sucessão de formas dinâmicas e. portanto, pelo movimento das cenas representadas nos elípticos. No tempo, a duração expressou-se por uma sucessão de impressões sensoriais, instantâneas e fugazes do olhar para fora dos Pavilhões e o que neles está retratado por durações diversas que orientam a extensão dos movimentos e das cenas representadas. O movimento não é, em si, um ele mento — a mobilidade é um estado, uma maneira de sentir e olhar o mundo. O movi mento estruturou o princípio conciliatório que regulou a união entre pintura e arquitetura e a representação espacial em sua obra, ao fazê-las convergir, simultaneamente, sobre um ponto dado, sobre a dramaticidade da observação que ordenava hierarquicamente essas formas artísticas, aliando uma à outra, tendendo para uma harmonia que, isoladamente, teria sido em vão. Juntas, pintura e arquitetura dos elípticos dos Pavilhões construíram uma cena, como um espaço vazio inatingível pela observação da imensidão do mar. Uma cena que espera uma nova ordenação pelo ponto a ser fixado pelo observador no interior dos dois Pavilhões. Este espaço não estava, portanto, de qualquer maneira, senão em potência latente tanto para a arquitetura quanto para o plástico pictural, iluminado pela luz que pe netrava pelo óculo de cada um deles. Na pintura dos painéis elípticos, a própria cor "tropical'' é fictícia*19), na me dida em que tenta fixar os instantes de luz sobre a realidade do cotidiano de uma cidade que trilhava sua identidade. Leandro Joaquim buscou tomar consciência das suas limita ções, como arte do espaço que não pode se libertar das duas dimensões, para transgredila, explorando esse espaço no sentido do movimento. Conseguiu ele conquistar a limita ção das duas dimensões ao conferir-lhes o estado da ilusão da ficção do plano da estrutu ra cenográfica. Esta estrutura cenográfica ao invés de conferir restrições aos elípticos são para eles uma garantia da estratégia do imaginário do pintor, que permite ao espectador perce ber o instante, um estado das paisagens e cenas de costumes do cotidiano, muitas vezes fugidio, marcado pela ação — relato que nos conduz à enunciação de um novo código, o da representação da cena teatral em que se constrói pela interligação dos opostos: "Pai sagem versus H istória"N atureza versus Ação Humana"; "Cenário versus Cena"; que pode ser sintetizado pelo esquema:
NATUREZA
A Ç Á O HUM ANA ---------------------------------------j
1
I
cenário
cena
(meio, lugar) 136
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I atores (figuras pictográficas, espectador1
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Fig. 3 - Revista M ilitar no Paço (circa 1785) Leandro Joaquim (1738 - 1798) ó leo /tela (111 cm x 139 cm) Museu Histórico Nacional - RJ
i
Uma revista militar inaugurando — quem sabe — as obras de remodelação total da praça, com a construção do cais, do novo chafariz de Mestre Valentim, executadas no governo de Luis de Vasconcelos e terminadas em 1789. Pode, também, representar uma revista militar em dia de festa pelo aniversário de D. Maria I ou ambas. Depois do Passeio Público, foi esta obra urbanística que trouxe nova fisionomia à cidade: um cais acostável e água de fácil aces so para o povo e para os navios que aqui aportavam, pois o chafariz está festivamente enfei tado com flâmulas de cores diversas. 0 quadro foi pintado antes do incêndio de julho de 1790, pois, aparecem intactos os sobra dos sobre o Arco do Teles.
Além disso, esse instante foi escolhido cuidadosamente entre todos os ou tros, o que implica da parte do pintor um gênero de interpretação ao qual a plasticidade móvel do corpo não pode alcançar. A pintura de Leandro Joaquim não imobiliza um esta do fugidio do mundo exterior. Procura exprimir, por meios sutis que lhe são profundos, o estado precedente e o que se lhe segue, ou que poderia se lhe seguir. A pintura dos elípti cos contém, portanto, o movimento em potência expresso pela estruturação de forma e de cores. Como expressa M aria Helena de Carvalhal Junqueira ao referir-se a forma elíp tica dos quadros: talvez visan d o a originalidade ou u m a possibilidade d e levar a imaginaG Á VEA . 11 (11), abril 1994
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Fig. 4 - Pesca da Baleia (circa 1785) Leandro Joaquim (1738 - 1798) ó le o /te la (112 cm x 131 cm) M useu Histórico Nacional - RJ (em com odato no M N B A )
A fim de terem as suas crias, as baleias do Atlântico Austral vinham em grande quantidade para o fundo da baía, fenômeno que ocorreu até o aparecimento do navio a vapor. As baleias tiveram muita importância na vida do Rio Colonial, pois delas é que provinha o azeite que iluminava a cidade. Na tela de Leandro Joaquim observa-se no primeiro plano a ilha de Villegaignon, seguindose várias embarcações que vão à caça de baleias. À esquerda, a fábrica de extração de óleo das baleias, onde se vê, com detalhes, o processamento das várias fases desta operação. Es ta "indústria" floresceu desde o século XVIII, quando os contratos de armações de baleias constituíam fonte rendosa para a Fazenda Real.
ção para além d a tela..S20). As "Chinesices" nos painéis elípticos de Leandro Joaquim Para o Historiador de Arte inglês Michael Kitson a chinesice, este flerte tipicamente setecentista com o ex ótico q u e se casav a tão b em co m o R o co có l21) sintetiza este estado de espírito da época. Neste período o Rio de Janeiro chegou a possuir doze lo jas especializadas em porcelanas orientais<22). O Marquês de Lavradio — um dos mece138
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Fig. 5 - Visita da Esquadra Inglesa (circa 1785) Leandro Joaquim (1738 - 1798) ó leo /tela (111 cm x 149 cm) Museu Histórico Nacional - RJ
Diante da Fortaleza de Villegaignon, vê-se uma frota mercante inglesa, pois apresentam a bandeira britânica — white ensign — aparecendo, nos mastros, galhardetes da mesma na cionalidade. Os navios salvam e são respondidos por uma única fragata portuguesa que es tá na extremidade esquerda da tela. Observa-se ainda, a fortaleza de Gragoatá, a ilha de Boa Viagem com sua igrejinha, Jurujuba e montanhas do Estado do Rio de Janeiro. A fragata, assim com o as fortalezas e um pequeno veleiro no primeiro plano, desfraldam a bandeira por tuguesa.
nas de Leandro Joaquim — possuía um Conjunto de Porcelanas Serviço das Rosas que cer tamente ornamentou as festas p a l a c i a n a s * O artista deve ter freqüentado algumas destas festas<24> tendo contato com os objetos orientais. Neste sentido, levanta-se a hipótese, ainda de forma incipiente, de que as formas elipsadas dos painéis do Pavilhão do Passeio Público e os do Incêndio e Recons trução do Recolhimento do Parto poderíam ser oriundas da estruturação artístico-plástica dos desenhos observados nos serviços porcelanizados. A forma elipsoidal é uma curva fe chada em que é constante a soma das distâncias de cada um dos seus pontos a dois pontos G Á VEA . 11 (11), abril 1994
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Os Painéis Elípticos de Leandro Joaquim na Pintura do Rio de Janeiro fixos. Na pintura de Leandro Joaquim, a elipse delimita o espaço com o uma janela aberta às cenas da cidade carioca setecentista, onde dois focos atuam em personagens e/ou obje tos, iluminados em uma representação cênica. A elipse*25* permite ampliar o campo vi sual devido à eliminação dos ângulos e quinas, principalmente na horizontal, conforme Leandro Joaquim a utilizou. Convém ainda notar que houve um intercâmbio recíproco1261 de formas en tre o oriente e ocidente, pois, a partir do século XVII, muitas gravuras, desenhos e pintu ras de artistas franceses, holandeses ou italianos entraram nos países do oriente(27). Um olhar atento decifra que a pintura de Leandro Joaquim se estrutura com uma tendência à disposição da figuração nas porcelanas. Em am bas as estruturas é nítida a divisão em duas partes: uma para o céu e outra para a terra ou mar, destacando-se que na região inferior ao céu sempre se localiza a cena-tema da representação. E esta sua quali dade pictórica expressa-se através de uma técnica refinada e de um estilo vigoroso: o pin cel é dirigido com firmeza para uma pincelada que condensa o motivo com virtuosismo e espontaneidade. O espectador atento, ao deparar-se com estas obras, descobre a fundamen tal vigência do espaço, esse primeiro personagem, e depois analisa as suas determinações que se estruturam em figurações e temáticas. Suas pinturas herdam dos motivos orientais das porcelanas um resultado que se apresenta atual para o espectador contemporâneo, em sua técnica e estilo, pois revela, acima de tudo, o fluxo da cidade caprichosamente dinâmi co, no qual a composição, ainda que harmônica, oferece um jogo de valores pictóricos apoiado constantemente em fortes, movimentados e contraditórios ritm os de imagens, ainda que aliado a um apurado caráter descritivo e de observação (do preciosismo Rococó). Nos painéis elípticos de Leandro Joaquim a organização do espaço e dos pla nos executam-se em forte simbiose de elementos destinados a prolongar o processo de su gestão. Por trás de todo o mecanismo utilizado nestas estruturas identifica-se a idealiza ção na construção de uma atmosfera progressivamente unida em traços independentes for mando uma dinâmica fortemente rítmica que poderia antever as pesquisas da arte con temporânea. C o m Leandro Joa qu im d esp o n ta m os p rim eiros sin ais d e um m o d o d e ver p ió p tio d e u m a terra nova, sem lu gares-com u n s e regras estritas a serem seguidas. É um olh ar d esp id o d e priores, qu e vislum bra n o v a realidade, um c o m e ç o d e fo r m a ç ã o cultural própria*28L O Vedutismo , Guardi, Canaletto e Leandro Joaquim: Pontos de Contato Nos Setecentos, assistiu-se ao nascimento, na Itália, da pintura de paisagem. Os pintores desta temática concentraram-se na tomada de vistas de locais bem definidos, de lugares famosos pela beleza e a história, compostos de elementos naturais e humanos a serem imortalizados e dirigidos ao viajante admirado. O paisagista se transferiu do campo ~ maiS anon,mo e universal em termos geográficos naturalistas — para a cidade, bem iden140
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tificada, graças à intervenção do homem. Um outro aspecto enfatizado foi o da visão dos lugares identificados como preciosismos geográficos, visitados ou a serem visitados. Canaletto foi um dos mais famosos destes paisagistas, ora fiel intérprete da geografia de Ve neza, ora como seu contemporâneo Guardi, intérprete da paisagem representada, com a tomada atmosférica abreviada. Estas paisagens enalteciam o gosto dos viajantes. Atraves saram o continente europeu e chegaram aos países colonizados, como certamente chega ram ao Brasil e aqui circularam entre a burguesia local. Canaletto figurou em suas telas todas essas formas — edifícios, pontes, barcos, água, pessoas — com uma luz contrastan te. Guardi foi mais evocativo e fantasioso. Nas suas pinturas, a luz tendeu para ser irregu lar e tremular caprichosamente sobre as superfícies. Observamos com José Roberto Teixeira Leite, a influência dessa visualidade nos painéis elípticos de Leandro Joaquim*29*. De fato, apesar de alguma carência técnica, verifica-se aí a tentativa de dominar a arte da pintura paisagística, especialmente quanto à luz e quanto à crônica do cotidiano. Vemos que, como um cronista da realidade carioca setecentista, Leandro Joaquim está preocupado em fixar detalhes: da nossa construção (bal cões, alpendres com suas colunas típicas, forma de torres e campanários de igrejas, rodas d agua, fortaleza, fábricas, etc); de personagens e tipos humanos da comunidade carioca setecentista; de detalhes paisagísticos, onde teve quase que uma intenção topográfica ao representar o perfil montanhoso da cidade observado pelo oceano e que, como artista, soube com um invulgar poder dispor as grandes massas de luz e sombra. O artista foi ca paz de captar o delicado tom de uma vela contra o céu, a luz trêmula refletida no oceano. Foi dominado por um princípio rococó de composição — o preciosismo — e por um esti lo caligráfico e planimétrico de desenho de influência oriental. Nas suas composições mais esquemáticas, introduziu a arquitetura, que contribuía para um objetivo secundário à es trutura das paisagens. O s grupos de edifícios dão um modelo, ou chave, ao esquema de proporções no qual o desenho é construído e, às vezes, por meio de blocos, anuncia a geo metria pura de toda a composição. Não se pode esquecer que, dentre as funções de registro e documentação (em essência uma tarefa de reportagem visual), a cenografia foi palco exclusivo e indispensá vel para a incidência das peculiaridades que impressionaram Leandro Joaquim em seu re gistro imagético das características das terras do mundo colonizado. Este artista projetou a quase totalidade dos seus elípticos para serem fitados para o mar, pois o mar sempre nos fala de portos e de aventuras, de serenidade e revolta. Pode ser o limite onde se lança a âncora que permite chegar ao lar — a identidade, e simultaneamente veículo por onde se busca outros caminhos e outras descorbertas. Nas pinturas de paisagem italiana do século XVIII surgem o amor às dis tâncias, a perspectiva em vista de vôo de pássaro, uma arcádia idílica e fantasiosa. Lean dro Joaquim, em suas telas com vistas do Rio de Janeiro, deu à cidade uma beleza onírica e de precisão brilhante de postal colorido. Parece que o objetivo de suas pinturas de paisaG Á VEA . 11 (11), abril 1994
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Fig. 6 - Romaria M arítim a (circa 1785) Leandro Joaquim (1738 - 1798) ó le o /te la (111 cm x 139 cm ) M useu Histórico Nacional - RJ
A tela é um curioso e único docum ento do festejo religioso, m arítim o seguido de um congraçamento. Ao examinar-se atentam ente a pintura, percebe-se que na embarcação principal segue a bandeira do Divino Espírito Santo. As embarcações desfilam diante da antiga chá cara de recreio dos jesuítas (1752), posteriormente aproveitada para Hospital dos Lázaros (1763).
gens era narrar a própria história da cidade, a aspiração de produzir uma documentação dos locais e das cenas, perpetuando-a no espaço-tempo do cotidiano carioca. O s painéis elípticos de Leandro Joaquim exigem do espectador não somen te uma consideração referente a sua competente pintura topográfica mas, acima de tudo, em relação ao grande artista de cenas urbanas, um exercício de pura arte no tratamento do detalhe, que demonstram sua maturidade de pintor. O olhar do espectador é levado para o encantamento da cena narrada, na qual a observação induz à magia do tema repre sentado e à complexidade de cada desenho. Suas cenas criam a ilusão de estruturas enor mes e impetuosas cujos limites são extremamente engenhosos e variados. Os temas de re presentação revelam os motivos arquiteturais ou as construções reconhecíveis, dentro de uma topografia fantástica, que visava a algum tipo de apelo nostálgico. 142
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Destacamos aproximações visuais entre as pinturas de Guardi, Canaletto e Leandro Joaquim na temática urbana, no tratamento da cor e na disposição das figuras humanas, que demonstram uma semelhante sensibilidade visual. Estes pintores deram uma expressividade lírica à sua visão pictórica, transformando suas telas em um aprendizado ótico de uma nova estruturação cuja proposta formal poderia sugerir a antecipação da ex periência fotográfica de documentação. Guardi, Canaletto e Leandro Joaquim construíram protótipos de cidades ideais com seus habitantes, das mais diversas escalas sociais, convivendo em harmonia e plena atividade, além da dinâmica constante das cidades representadas. As indicações pa ra a "cidade ideal" são verificadas quando da retratação dos fatos, disposição dos prédios além dos resultados estéticos que fornecem ao espetáculo representado um princípio de sedução. Tudo na pintura destes artistas induz à observação de pessoas enquanto vivência humana e não apenas como fantoches na distribuição das estruturas arquitetônicas. Em suas composições há uma riqueza de variedades de costumes e, mais ainda, uma varieda de de ações e caracteres. Para estes pintores a cidade revela-se como símbolo de sua pró pria arte. São artistas que viveram em intensidade o momento presente na totalidade glo bal da dualidade interpretativa-imaginativa. Uma pintura minuciosa reveladora do cotidiano se integra às suas aspira ções imaginárias, formuladas num sentido de harmonia na diversidade social. Nas cons truções arquitetônicas, elas defendem o esplendor da natureza e de suas paisagens em um equilíbrio entre a produção humana e a interação do mundo natural. Destaca-se que esta natureza é reinterpretada: o céu apresenta-se como fe nômeno intangível, uma experiência somente para o "olhar", traduzido em algo sólido, sempre luminoso e ativo em toda a composição e que está sempre em contraponto com o mar, estabelecendo uma relação cromática entre estes dois elementos naturais. O céu apresenta-se como fonte de luz, muito embora não apresentem o sol em suas obras, e atua numa tensão que indefine os limites da representação cênica. Em suas composições os três pintores idealizaram suas cidades, pois estas aparecem como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual, eles certamen te faziam parte. Assim, as cidades por eles imaginadas definem-se enquanto um espaço on de idéias e sentimentos são delineados, expressos e teatralizados, onde se materializam uma cultura — o Iluminismo — que, em suas aspirações, é criadora de uma História que inter fere no seu tempo, que possibilita a ação humana enquanto construtora de si própria e trans formadora do mundo. Leandro Joaquim e Francisco Muzzi: a interpretação do Olhar A pintura de Leandro Joaquim se oferece ao espectador numa relação sujeitoobjeto na qual o objeto é captado a partir de uma rede que não é inventada individualGÁ VEA . 11 (11), abril 1994
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Fig. 7 - In cê n d io d o R e c o lh im e n to e Igreja de N. Sra. d o Parto Icirca 1790) Leandro J o a q u im 11738 - 1798) ó le o /te la (188 cm x 224 cm ) M use u de A rte Sacra - RJ
mente, mas que se impõe a cada um com o condição para a sua socialização. A socializa ção surge enquanto atualização do imaginário pelo receptor, que é parte integrante da obra e para a qual a atualização do imaginário do autor torna-se indispensável, visto que um e outro encaram o discurso imagético. E por seu duplo aspecto que o traço fundamental da imagem e da estrutura narrativa é a tematização do tempo. Interpretativa do que passou, a imagem aponta para o tempo originário do objeto do relato, inscreve-o em um tempo que não é outro senão o de sua própria organização narrativa. A narrativa é, por conseguinte, tanto constituída pelo que relata quanto constituída do que relata; ela refere e interpreta^-^h E interpreta pela passagem que se faz da transposição da coisa para a constituição do objeto. Um objeto revelado ao olhar, no qual a revelação da semelhança nos capacita a encontrar ecos no mundo, a base de redundância necessária para que não nos sintamos estranhos quanto a tudo per cebido. É de acordo com esse seletor que discriminamos as inform ações entre relevantes 144
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Fig. 8 - Feliz e Pronta Reedificação do Recolhimento e Igreja de INI. Sra. do Parto (circa 1790) Leandro Joaquim (1738 - 1798) ó leo /tela (185 cm x 212 cm) Museu de A rte Sacra - RJ
0 Recolhimento do Parto funcionava com o um asilo para mulheres de "m á vida" que se ar rependessem e para as casadas, para as acudir, livrar da morte, ou ainda de continuarem ofen dendo seus maridos. Com o incêndio, Luis de Vasconcelos fez ampliações e melhorias e foi Mestre Valentim o responsável pelas reformas. Na tela da Reconstrução vemos as comitivas agrupadas de acordo com seus ofícios e faz parte deste trabalho a identificação dos perso nagens representados e que até a presente data traziam dúvidas em sua correta localização.
e secundárias. Se a socialização da obra se faz a partir dessa seleção, à motivação de cada um e ao talento próprio do artista caberá responder de uma maneira nova ou imediata. A obra de Leandro Joaquim alcançou esta interpretação nas pinturas do In cêndio" e da "Reconstrução" do "Recolhimento do Parto" (figs. 7 e 8), que copiou, em for ma elíptica, das telas retangulares de Muzzi^D (figs. 9 e 10). O pintor redimensionou a composição, movimentou as figuras, deu mais dinamismo às cenas, pronunciou o contraste entre luz e sombra, alongou as figuras e colocou-as mais próximas umas das outras, danGÁVEA. 11 (11). abril 1994
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Fig. 9 - Incêndio do Recolhim ento e Igreja de N. Sra. do Parto 11789) João Francisco M u zzi (17(7) - 17(7)) ó le o /te la (97,5 cm x 124 cm ) M useu Chácara do Céu - RJ
do a intenção de solidariedade entre os observadores do acontecimento. Destacamos tam bém a colocação de figuras do "povo” na parte inferior do elíptico que narra o Incêndio . Representadas a meio corpo como um grupo de espectadores, elas induzem à continuida de cênica, como que envolvendo o público real naquela dramaticidade, o que não ocorre na obra de Muzzi, onde as figuras são rígidas e distantes, colocadas como parte de um ce nário. Verificamos igualmente que Leandro Joaquim teve uma intenção de dramaticidade intensa ao representar a cena do salvamento, por um religioso, da Imagem de N. Sra. do Parto retirada intacta das chamas devastadoras, que nos faz presumir um apelo emocional do artista com o acontecimento, não observado na tela de Muzzi, neutro agregador de fa tos previamente documentados e asseverados. Enquanto preciosos documentos iconográficos do estatuto social do artista/artesão colonial setecentista, as telas de Leandro Joaquim e de Muzzi "Reconstrução do Recolhimento do Parto" (figs. 8 e 10) são bem significativas: representam cada operário portando as diversas ferramentas utilizadas para a reconstrução do prédio. Em ambas as 146
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Fig. 10 - Reconstrução do Recolhimento do Parto (1789) João Francisco M uzzi (17(7) -17(7)) óleo/tela (97,5 cm x 124 cm) Museu Chácara do Céu - RJ
telas, no grupo principal observado da esquerda para a direita, vemos dois artistas pinto res trazendo a palheta e os pincéis — o de roupa azul, deslocado dos obreiros por não par ticipar da reconstrução, representaria Muzzi. Ao centro, curvado e portando uma capa es cura está representado o mulato Mestre Valentim apresentando ao Vice-Rei o Projeto de Reconstrução e presidindo a comissão dos construtores, visto que ao seu lado está o rnestrede-obras portando a serra. E na última posição à esquerda, o personagem que traz um li vro, seria a figura que firmaria os contratos entre os obreiros que se apresentam ao ViceRei. O outro personagem mulato — que consideramos ser Leandro Joaquim — posicionouse de maneira intermediária entre os ofícios de pintor e construtor. Segundo fontes, ele teria também apresentado um projeto de Reconstrução que não foi aprovado^32). Assim, esta pintura de Leandro Joaquim revela um caminho interpretativo imediato entre sua experiência particular e a futura interpretação figurativa, no qual é preciso que o eu autoral — talvez por isso se tenha auto-retratado — testemunhe a veracidade de seu dito e o autentique por sua vivência do mundo. GÁVEA. 11 (11), abril 1994
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Setecentista
O Vedor: a questão da autoria O século XIX produziu o fenômeno do "entendido em arte" — o connaisseu r — que materializava tão bem o espírito positivista e científico da época, apoiado so bretudo na visão, na memória e na intuição. Uma atitude que permitiu distinguir as obras de arte segundo grupos de classificação no campo da História da Arte, ou estabelecer en tre esses grupos relações de anterioridade e de posteridadeG3), levantando-se sempre que possível as fontes histórico-docum entais dos objetos em estudo. No caso específico deste trabalho destacam os que as fontes históricodocumentais foram as que serviram de fio condutor para a determinação de autoria. Vá rios foram os pesquisadores que investigaram, por estas fontes, a autoria dos elípticos em questão, alguns de maneira superficial, como Menezes de O liva que achava que três telas do artista tinham sido pintadas após 1798, ano que os biógrafos determinam como ano da morte do pintor; outros, de modo mais profundo, com o Gilberto Ferrez que elimina esta celeuma, apresentando seus argumentos no trabalho A s Primeiras Telas Pai sagísticas d a C id ad e, após um estudo iconográfico m inucioso sobre o cotidiano do Rio Setecentista, no qual atribui a datação dos elípticos anterior a 1790, uma vez que as pri meiras descrições dos mesmos datam de 1792, feita pelo viajante inglês John Barrow e de 1796, por Jam es Wilson. A comparação dos painéis elípticos evidencia traços*34) característicos co muns: o mesmo formato e dimensões aproximadas (os do "Recolhimento do Parto" são um pouco maiores); a mesma fatura e textura de pigmento; a mesma trama de tecidos; e, finalmente, o mesmo tipo de "caligrafia" pictórica, que nos permitem perceber que fo ram pintados pelo mesmo artista e para locais determinados. Observamos também que estas telas possuem a mesma intenção de estrutura planimétrica sobre a perspectiva (com exceção da Revista Militar em que a profundidade é acentuada) e que busca uma apreensão dos detalhes, quer estes estejam nas faixas inferiores ou superiores, quer nos primeiros ou últimos planos. Destacamos, ainda, a intenção constante de representar personagens e ti pos humanos da cidade. Comparando ainda estas telas com as narrativas dos viajantes que por aqui passaram nos Setecentos, vimos que a pintura de Leandro Joaquim , por sua qualidade e espírito documentalista, tende a nos provar que estamos frente a um artista minucioso e preocupado com as questões do seu tempo. Em síntese, atribuím os estas telas a Leandro Joaquim, baseados não só no seu form ato elíptico m as tam bém em: / con ografia p
os motivos foram tratados respeitando a mesma estrutura
ica em todas as telas. Apresentam certa ousadia e ineditismo na escolha dos locais
e nas cenas representadas, transgredindo as relações com a tradição. C o m p o siçã o p
uma rigorosa preocupação simétrica no eixo horizontal dos
s, assim como uma perspectiva não muito elaborada. A mesma ordenação das fi-
g ra no plano e na profundidade, a mesma relação da figura com o espaço indicado
,
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pela paisagem ou por outras figuras. A rquitetura — o tratamento estilístico das edificações, em todas as circuns tâncias, permite precisar o período das pinturas, como também a mesma técnica pictórica empregada advém do mesmo autor. V ocábu lo das fo rm a s — a proporção das figuras e motivos em movimentos tém origem no mesmo traço que exprime o colorido e sentimentos dos personagens com igual característica. Indum entária e O rnam entação — a mesma morfologia abrange não somente a figura, com o que ela apresenta enquanto vestuário ou ornamento, mas também, tudo o que circunda demonstrando a unidade em todas as composições; e Pintor o ficia l — além das características acima, Leandro Joaquim foi o re tratista oficial de Luis de Vasconcelos*35* e coadjuvou Mestre Valentim em várias obras. Não parece impossível, portanto, que tenha sido indicado para pintar as telas que repre sentariam as obras e fatos significativos da cidade sob o governo do Vice-Rei. Reforçando estas hipóteses de atribuição verificamos no retrato oficial do Governante o mesmo preciosismo de detalhes nos brocados da farda, preciosismo que, como vimos, se repete na indumentária das figuras em miniatura das telas. Na elaboração do planejamento das vestes do Vice-Rei, nas dobras e pregas das roupas das figuras nos elípticos, o artista oferece pistas que provam terem sido produtos do mesmo pincel. Ressaltamos, também, que a maneira de representar os cabelos e o nariz re vela, nos painéis, um tratamento invariavelmente igual. Enfim estas composições possuem uma afinidade e repetição constante de pormenores que expressam uma autêntica caligrafia, produzida durante o processo criati vo para além das regras de pintura em seu tempo. Muitas vezes encontrada também em aspectos subjetivos que se manifestam nas formas e numa dinâmica de movimentos, nos quais o artista seleciona e organiza os esforços que suscitam sensações e que determinam sua própria personalidade. E isto Leandro Joaquim atingiu. Pois até hoje sua produção pictórica nos le va a uma reavaliação constante que transgride, a cada descoberta, as próprias regras do minantes no Rio Setecentista. Residindo aí a ambigüidade que caracteriza a obra de arte, mostrada no anonimato de suas telas e na sua condição de artista/artesão que conseguiu tomar-se construtor da História da Arte Brasileira por vocação pessoal.
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Notas ( 1 ) TRABA, Martha. Duas décadas vulneráveis nas artes plásticas latino-americanas 1 9 5 0 /1 9 7 0 . Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 156. ( 2 ) TRINDADE, Joelson Bitran. "Arte Colonial: corporação e escravidão". In: A mão afrobrasileira. São Paulo, Tenenge, 1988, p. 119. ( 3 ) TEIXEIRA LEITE, José Roberto. "Negros, pardos e mulatos na pintura e na escultura brasileira do século XVIII". Ibidem, p. 14. ( 4 ) Para o Teatro que em 1776 Manoel Luiz inaugurara perto do Palácio dos Vice-reis e na proximidade da cadeia, esquina do Largo do Paço, fez um riquíssimo pano de boca. que sobressaía no acan hado palco. In MENEZES, Oliva de. "Os falsos painéis de Leandro Joaquim". In: Anais d o Museu Histórico N acional, vol. 1, Rio de Janeiro, MHN. p.35. ( 5 ) Idem, p. 32. ( 6 ) Idem, pp. 33 e 35. ( 7 ) O Passeio Público possuía em seu terraço dois Pavilhões: o Pavilhão de Apoio decora do internamente com conchas e oito telas que retratavam cenas do cotidiano da cidade, o Pavilhão de Mercúrio, decorado com penas e plumas, contendo oito telas que repre sentavam aspectos da economia local. ( 8 ) STASTNY, Francisco. Estampas. "Cânones de valor e inventiva". In: Comunicações e Artes. São Paulo, USP, 1989, p. 20. ( 9 ) LEVY, Hannah. "Modelos europeus na pintura colonial". In: Pintura e Escultura I. São Paulo/ IPHAN, 1978, p. 97. (10) Era comum nos setecentos esta prática e observa-se em algumas obras religiosas de Leandro Joaquim modelos de pinturas de Francisco Guardi, citando como exemplos a pintura de S. Januário e de N. Sra. da Conceição e Boa Morte que abordarei em trabalho posterior. (11) Vedutas — pintura representando vistas de localidades em cenas do campo ou de cidade (12) Cabe ressaltar que na pintura religiosa de Leandro Joaquim, no painel de São Januário, vê-se a narrativa da invasão dos franceses no Rio de Janeiro. (13) Estas obras encontram-se atualmente no Museu de Arte Sacra da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. (14) PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1979, p. 47. (15) FERREZ, Gilberto. "As primeiras telas paisagísticas da cidade". In: Revista do IPHAN. n? 17,1969, p. 232. Refere-se a estas obras como "verdadeira propaganda de governo". (16) FRANCASTEL, Pierre. Lm figura y el lugar. Caracas, Monte Avila Ed., 1969, p. 79. (17) Este tipo de análise foi desenvolvido em 1969 por Jean-Louis Schefer em seu trabalho Scénographie d'un tableau e é retomado por Frank Popper em Art, action et participation que aborda a scénologie como uma das ciências da arte. (18) SENNEI I, Richard. O declínio d o hom em público : as tiranias da intimidade. São Pau lo, Companhia das Letras, 1988, p. 93. (19) JUNQUEIRA, Maria Helena de Carvalhal. "A pintura no Rio Setecentista". In GÁVEA, Rio de Janeiro, 1989, p. 35. (20) JUNQUEIRA, Maria Helena de Carvalhal. op. cit., p. 36. (21) KITSON, Michael. O Barroco. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, s.d., p. 127. (22) Em 1759 chegou ao Brasil a nau Santo Antonio e Justiça segundo Amaral Lapa, com carregamento de figuras de barro, pratos e tigelas esmaltadas, mesas de louça dou rada, aparelhos de chá, aparelhos de café, bules de barro e louça de Macau. (23) TEIXEIRA LEITE, José Roberto. As Companhias das índias e a porcelana chinesa de encomenda. Salvador, Fundação Cultural da Bahia, 1986, p. 284. (24) DÓRIA, Escragnolle. Leandro Joaquim. Revista da Semana. Rio de Janeiro, 1938. (25) "Elipse". In Novo D icionário Enciclopédico Luso-Brasileiro. Tomo I, Porto. Lello e Ir mãos Editores, 1958, p. 411. (26) SYPHER, Wylie. Do Rococó a o Cubismo. Rio de Janeiro, Ed. Perspectiva, 1980, p. 58. No capitulo O Gênero Pitoresco o autor faz uma abordagem sobre a temática da "chinesice" no período rococó.
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(27) Sob o reinado do Imperador Qianlong, a utilização de estampas européias como mo delos decorativos de porcelanas espalhou-se tanto que se pode dizer terem sido elas, en tão, a principal fonte de que lançaram mão os decoradores chineses às cenas e temas oci dentais que aparecem na decoração de porcelanas, de diversas naturezas e tipos. In TEIXEIRA LEITE, José Roberto, op. cit., p. 58. (28) JUNQUEIRA, Maria Helena de Carvalhal. op. cit., p. 37. (29) TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro, Artlivre, 1988, p. 279. No verbete dedicado a Leandro Joaquim o autor refere-se ao "veduto" do artista em especial ao quadro "Romaria Marítima" analisando-o "com seu as pecto de festa aquática veneziana, à la Guardi". (30) FRANCASTEL, Pierre. "La autonomia de la imagem y el primado dei verbo". In: La figura y el lugar, p. 69. (31) A tela de Francisco Muzzi sobre a Reconstrução do Recolhimento do Parto está assina da e no verso encontra-se a inscrição "Muzzi inventou e delineou". As telas de Muzzi foram compradas por Raimundo Ottoni de Castro Maya em 1942 e decoravam a resi dência de Ricardo Espírito Santo em Lisboa. (32) GONZAGA-DUQUE. Arte Brasileira. Rio de Janeiro, H. Lombaerts, p. 41. (33) SILVEIRA, João Evangelista B.R. "O olhar na obra de arte: questões de método e atri buição". In: ARTEUNESP, n? 6, São Paulo, 1990, p. 1. (34) Estas características foram feitas tomando-se como base os relatórios de restauração das obras. Informamos que os elípticos do Incêndio e Reconstrução do Recolhimento do Parto foram pela primeira vez recuperados no MNBA. (35) Não existe qualquer dúvida sobre a autoria deste retrato, que se encontra no Museu His tórico Nacional.
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As Representações do Lugar na Pintura Moderna Brasileira: as Obras de Tarsila do Amaral e Ismael Nery Aceito para publicação em junho de 1993. Publicado originalmente nos Anais das 3a.®Jornadas de Teoria e História de Ias Artes. C .A .I.A ., Buenos Aires - Argentina, 1991. Através das múltiplas e fragmentárias representações do lugar nas telas de Tarsila do Amaral e Ismael Nery, Icléia Cattani analisa as ambigüidades e contradições que envolviam a cultura modernista do início do sé culo XX . Sem lugar fixo, as artes plásticas nos anos 20 movimentam-se problematicamente, tentando con ciliar referências antagônicas: o cosmopolitism o mo derno e as especificidades locais. M odernism o Tarsila do Amaral Ismael Nery
ICLÉIA BORSA CATTANI Professora orientadora do Programa de PósGraduação em Artes Visuais e Vice-Diretora do Ins tituto de Artes da UFRGS (Porto Alegre, Brasil) e dou tora em História da Arte pela Universidade de Paris I - Sorbonne, Paris.
A modernidade cultural e artística das primeiras décadas do século XX, na Europa, foi marcada pelas rupturas dos movimentos de vanguarda: rupturas essas que afe taram desde os sistemas de constituição das imagens até as questões mais amplas de uma identidade pessoal e cultural (pressupondo, no cultural, o coletivo). As vanguardas pro puseram um questionamento de toda a visão de mundo existente: da ruptura com a tradi ção, surgiría um novo indivíduo, livre das amarras do passado; conseqüentemente, uma nova sociedade seria criada. A utopia das vanguardas (considerando utopia como idéia sem lugar), confrontou-se nos anos 20 com o movimento de reto m o à ordem ligado à situação de crise econômica e política da época. Naqueles momentos de instabilidade, vários elemen tos com diferentes graus de reacionarismo começaram a manifestar-se nos discursos polí ticos e culturais: a afirmação dos "valores nacionais , chegando à xenofobia muitas vezes; o desejo de retorno aos "valores eternos , ideologicamente colocados como o respeito à ordem social, à hierarquia e ao passado, passado esse que resurge na valorização dos mi tos coletivos. Nas artes plásticas, esse movimento colidiu frontalmente com as vanguar das, na medida em que propugnava a neutralização das rupturas e a reinserção da produ ção artística da época na "tradição e nos "valores eternos da arte. Esses valores eram os da tradição clássica, oriunda da constituição dos sistemas de signos no Renascimento, o espaço perspectivo, marcado pela unicidade, e a organização das cenas segundo uma hierarquia de valores que marca a situação dos personagens (relação dos homens com o G Á VEA . 11 (11), abril 1994
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As Representações do Lugar na Pintura Moderna Brasileira: as Obras de Tarsila do Amaral e Ismael Nery sagrado e dos homens entre si, conform e suas posições sociais; relações com a natureza e com os objetos). Ordem no mundo, ordem na arte. Nas análises referentes à pintura moderna brasileira dos anos 20, sobre tudo ao modernismo em São Paulo, tem-se que levar em conta dois processos interliga dos: por um lado, a relação com escolas européias ligadas a esse movimento de retomo à ordem; por outro, o desejo de atualização em face da produção artística existente na Europa, que os fazia unir de form a complexa os conceitos de vanguarda e reconstru ção, ruptura e ordem. Para compreender de que maneira esses conceitos se relacionam no contexto brasileiro da época, é necessário mencionar as novas relações forjadas pela intro dução da industrialização. Implantada no Brasil através de um processo de queima de eta pas, característico da situação de subordinação do país dentro do sistema capitalista inter nacional, a industrialização trouxe consigo a necessidade de estabelecer novas relações so ciais e, por conseguinte, de questionar a organização existente até então. Q uando então um grupo de artistas de São Paulo anunciou a arte moderna européia e postulou a necessidade de modernizar a arte brasileira através de vários even tos dos quais o mais marcante foi a Sem ana de Arte M oderna de fevereiro de 1922, essa modernização aparece ligada à do país, tendo como modelo a cidade industrial desen volvida, no caso, São Paulo. Ao mesmo tempo, aparece a questão do nacional e do regional, questão es sa legitimada pela ideologia do retorno à ordem mencionado. É significativo que essa ques tão apareça ligada, desde o início, ao desejo de mudança. Por que isso ocorre? Parece-nos que o desejo de modernização trazia em seu bojo o medo da uni formização. Desde o início, no contexto brasileiro, uma questão colocou-se: como ser mo dernos, sem perder a própria identidade? Pois a modernidade até certo ponto vinha de fo ra, os modelos eram importados num primeiro momento. Interessa-nos abordar essa questão, vendo com o se coloca a problemática do lugai na pintura moderna brasileira. Consideramos como lugar, o espaço pictórico contextualizado no qual as figuras se inserem. As contradições, asambigüidades, as multiplicidades do lugar representado, revelam as relações complexas estabelecidas na arte daquele momento, entre modernidade e identidade, conceitos sentidos até certo ponto como antagônicos. Veremos a questão das representações do lugar através de dois estudos de caso dentro da pintura moderna brasileira dos anos 20, elegendo para isso duas telas particularmente representativas, "Carnaval em Madureira" de Tarsila do Amaral (1924) e ' Auto-retrato" de Ismael Nery (1927). Tarsila do Amaral pertenceu ao grupo de artistas modernistas de São Pau lo, enquanto Ismael Nery trabalhou de m odo bastante independente no Rio de Janeiro. U estudo de ambos permite detectar as semelhanças e diferenças de suas propostas. Tarsila do Amaral aderiu ao grupo dos modernistas de 1922 pouco após 154
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a Semana de Arte M oderna. Até então, ela realizava uma pintura de cunho acadêmico. Indo a Paris no final de 1929, estudou com André Lhote, Fernand Léger e Albert Gleizes, fazendo, segundo suas próprias palavras o "exercício militar" do cubismo*1). Nessa ob servação, aparece claramente a questão da ordem e da disciplina que, para os modernis tas, ligava-se intrinsecamente ao aprendizado da modernidade. E ainda, à modernidade era necessário contrapor a afirmação da identidade própria. Assim, voltando ao Brasil em dezembro de 1923, Tarsila esteve no ano seguinte no carnaval do Rio de Janeiro e na Pás coa no interior de M inas Gerais, visando a "redescobrir" o Brasil puro, ingênuo, com suas manifestações populares, considerado mais "autêntico" que a cidade moderna que come çava a surgir. A tela "Carnaval em Madureira" data deste período. Vejamos o que ela nos mostra. Em primeiro lugar, é evidente a sobreposição de signos "brasileiros" ligados a ma nifestações populares, e de signos da modernidade (pictórica e industrial) européia. Cha ma a atenção o fato de que esses signos diferentes são tratados formalmente de modo dis tinto, criando uma multiplicidade formal e um grande número de contrastes. Esses con trastes dizem respeito a toda a estrutura do quadro: tanto os cortes do espaço pictórico co mo as formas e cores de cada signo icônico. Há três grandes partes horizontais na estrutura da tela. A primeira, situada na parte inferior, representa o solo: é sobre ela que se concentra o maior número de ele mentos, sendo que alguns a ultrapassam, invadindo a segunda parte. A maioria dos ele mentos que estruturam essa primeira parte são pintados com cores planas. A segunda parte horizontal, situada no centro da tela, é submetida a cortes circulares que diminuem sua horizontalidade. Ela é pintada numa cor modelada, contrastando com as formas planas que sobem da parte inferior. A terceira parte, superior, também está pintada em cores mo deladas, embora esse modelado seja totalmente arbitrário. O número de elementos diminui de baixo para cima. O espaço da tela é cor tado no sentido diagonal-vertical por uma forma de cor amarelo-ocre, tarjada de tonali dade mais escura. Essa forma é a torre Eiffel, usada aqui, sem dúvida, com humor e iro nia, como uma decoração de carnaval. Ela sobrepõe-se na parte superior com pedras volumétricas, signos das "pedras que cobrem a terra"*2 ’ na região de Itú, São Paulo, onde a pintora nasceu. A sobreposição da forma plana à modelada cria um efeito de colagem parecendo em parte artificial, sugerindo espaços múltiplos. De fato, espaços de superfície e espaços de profundidade coexistem na tela, mas essa coexistência é marcada por siste mas formais diferenciados e por lugares contraditórios, que acolhem por sua vez signifi cados contraditórios: as pedras, signos das raízes; a torre Eiffel, símbolo de uma cultura as similada, mas também da sociedade industrial e da modernidade. Sua utilização como decoração de carnaval, o seu aspecto plástico de elemento colado, lançam indagações, co mo conciliar esses elementos contraditórios? Com o criar, a partir de sua coexistência, uma identidade única? G ÁVEA. 11 (11). abril 1994
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As Representações do Lugar na Pintura Moderna Brasileira: as Obras de Tarsila do Amaral e Ismael Nery O caso de Ismael Nery assemelha-se em parte ao de Tarsila, embora pos sua características próprias. Ismael Nery realizou sua produção no Rio de Janeiro, de for ma bastante isolada, embora fosse homem informado sobre o que se passava no resto do Brasil e na Europa. Sua produção, desde o inicio dos anos 20, evidenciou signos da mo dernidade", estilemas que a aproximavam dos principais movimentos de vanguarda das primeiras décadas do século XX, sobretudo o cubismo. Assim com o nas declarações de Tarsila, evidenciam-se nas de Ismael as idéias de "m odernidade" e de construção", em bora a questão da "brasilidade" não o tenha preocupado do mesmo modo que aos mo dernistas de São Paulo. Em 1927 ele realizou uma viagem a Paris, na qual descobriu sobretudo a obra de Chagall e dos surrealistas. Embora toda a sua produção esteja mais voltada às proble máticas do corpo humano, e de seu corpo em particular, sua procura de uma identidade própria passou também, como no caso de Tarsila do Amaral, pela representação da pro blemática do lugar, carregando-a talvez de maior subjetividade e de um caráter mais ex plicitamente autobiográfico. "Auto-retrato", de 1927, é exemplo dessa questão. Essa tela mostra-nos uma composição nitidamente dividida em três partes: o espaço central, ocupado pela figura do artista, representado de corpo quase inteiro; à direita, uma paisagem parisiense, com as tradicionais casas e a torre Eiffel; à esquerda, uma paisagem do Rio de Janeiro, com o Pão de Açúcar e casinhas suburbanas, mais uma alta palmeira e uma mulata. O rosto do pintor é ladeado por dois perfis, que se sobrepõem em parte ao rosto, o da esquerda sendo sem dúvida o do pintor e o da direita uma das figuras ambíguas que ele pintava, feminina/ masculina, Ismael/Adalgisa (sua esposa). Den tro de um clima onírico que se relaciona com o de Chagall, temos o corpo que parece flu tuar e dissolver-se em parte num nevoeiro, os perfis voadores isentos de corpos, a paisa gem de Paris, em que as casas aparecem fora de eixo e empilhadas, e o fundo insólito, divi dido em duas paisagens diferentes, construídas formal e cromaticamente de modo distinto. Vemos portanto que o espaço aparece desdobrado, e figurando dois "luga res diferentes e com conotações autobiográficas. De um lado, a "velha mãe Europa", de outro a raiz tropical com seus laços afetivos, representados pela figura feminina. Até que ponto esses elementos tangenciam a questão da identidade cultural? O s lugares que apa recem simultaneamente, mas que situam o corpo, paradoxalmente num não-lugar, a bru ma que o envolve parcialmente. O corpo, além disso, se desdobra à altura da cabeça. Sen timento de pertencer aos dois lugares, ou de não pertencer a nenhum, ou ainda, de ser du plo, de ser diferente em cada um deles. É interessante notar que o tratamento formal é di ferenciado. A paisagem parisiense é monocromática, espacialmente "desorganizada" se gundo os sistemas formais tradicionais, mas lembrando em tudo as organizações espaciais Ism ael Nery "A u t o Retrato
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As Representações do Lugar na Pintura Moderna Brasileira: as Obras de Tarsila do Amaral e Ismael Nery da modernidade. Na parte inferior, elementos inidentificáveis, geometrizados, lembram inclusive formas "abstratas". A paisagem carioca é rica em colorido, organizada em pro fundidade, mas com uma simplificação das formas e uma utilização de linhas e planos de cor que se relacionam com as de pintores brasileiros modernos, seus contemporâneos. O corpo do artista, por sua vez, recebeu um tratamento múltiplo: o rosto com sugestões de volume, o corpo tendendo ao plano, com form as angulares que lembram o "pós-cubismo digerido e neutralizado, praticado na Europa nos anos 20. Vemos através da análise dessas obras que certas problemáticas foram am plas dentro da pintura moderna brasileira, afetando a produção de um artista isolado co mo Ismael e a de Tarsila, pertencente ao grupo m odernista. O s dois artistas tentaram resolver a questão das raízes culturais m últiplas através de uma síntese na qual possa definir-se a própria identidade pessoal e a identidade cu ltural mais ampla. Mas essa síntese não leva à univocidade: ela é obtid a através da persistência da multiplicidade espaço-tem poral, dos desdobram entos de corpos e espaços; ela mantém -se através do tenso equilíbrio dos contrários, possibilidade nova, ab erta pela modernidade. Ela fi gura um lugar que é duplo: a cidade sím bolo desta m odernidade e da internacionaliza ção (aqui um lugar externo, Paris) e o rural, ou o suburbano, ou o provinciano (o inte rior de São Paulo, os subúrbios do Rio de Janeiro), sím b olos das raízes. Esse lugar du plo, entretanto, é marcado por um a rigorosa construção e, pod eriam os dizer, até mes mo uma o r d em , na qual cada elem ento tem seu lugar definido. M aneira, talvez, de con trolar a m ultiplicidade, evitando a dispersão... Vemos, portanto, nas obras dos dois artistas, uma nm ltifjlicidade formal que evidencia os conflitos dos diferentes referenciais artísticos, culturais e ideológicos. Entre a afirmação de uma identidade própria e o desejo de ser cosm opolita; entre o impulso de ruptura com a arte e o sistema de vida ainda vigente no Brasil e a necessidade de resgate de tradições e de ordem, para (re)encontrar a própria identidade; entre a valorização do primitivismo, do ingênuo e do puro, e o fascínio pela modernidade, que pressupõe o desvirginamento e a lucidez; enfim, nos sistemas de signos diferenciados, que traduzem to dos esses antagonismos, os artistas procuram uma espécie de sín tese. Uma síntese que não elimine os aspectos antagônicos, mas que, pelo contrário, possa acolhê-los harmonicamente. Nisso reside a força e a qualidade da pintura moderna brasileira: ao nosso ver, ela não de ve ser jamais medida pelos padrões da modernidade européia, nem pelos padrões de seu retorno à ordem. A modernidade européia operou uma ruptura radical; o retorno àr or dem procedeu a um resgate radical de quase tudo aquilo com o que a modernidade havia rompido. Seus lugares estavam bem definidos. Diferentemente, nós, latino-americanos, procuravamos a síntese. Ela eviden cia o drama da nossa circunstância, obrigando-nos a um permanente questionamento so bre nos mesmos e nosso lugar. Esta síntese concentra as respostas dadas, que são sempre múltiplas. Nossa saída é entendê-las em sua multiplicidade. 158
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ICLÉIA BORSA CATTAN I
Notas (1) AMARAL, Tarsila do. Entrevista ao Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25/12/1923 in AMARAL, Aracy — Tarsila: Sua O bra e Seu Tempo. São Paulo, Tenenge, 1986, p. 92. (2) AMARAL. Aracy. op. cit. p. 20.
Bibliografia AMARAL, Aracy. Ism ael Nery, 50 an os d ep ois. São Paulo: MAC/USP, 1984. ________ . Tarsila. sua obra e seu tem po. São Paulo: TENENGE, 1990. CATTANI, Icléia. "Notas sobre Ismael Nery". In: Ism ael Nery. Porto Alegre: Kraft Es critório de Arte, 1984. _________. Pintura Modernista em São Paulo: relações entre vanguarda e retorno à or dem. C om u nicações e Artes, n? 21. São Paulo: ECA/USP, agosto de 1989. HERKENHOFF, Paulo. "A Arte Moderna no Brasil — Caminhos". In: C am inhos do De sen ho Brasileiro. Porto Alegre: MARGS, 1986. LAUDE, Jean et alli. Travaux: Le Retour à I O rdre. St. Étienne: C.I.E.R.E.C., Université de St. Étienne, 1975.
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O Transtorno da M atéria no Maneirismo Aceito para publicação em junho de 1993. 0 m om ento da Arte Maneirista é atravessado por con tradições fundamentais: um movimento dialético entre a regra e a espontaneidade, a magia e a erudição, o Belo e o grotesco, a matéria e a Forma. Para a cria ção artística converge a angústia de uma época on de os conceitos de Ser e de Natureza não respon dem plenam ente às demandas existenciais, onde o espirito, esforçando-se através da obra de arte para situar-se em uma realidade racionalm ente incom preensível, oscila entre sua precariedade existencial e sua onipotência metafísica. M aneirism o M atéria Grotesco
M A R IS A
F L Ó R ID O
C E S A R
Formada em arquitetura pela FAU-UFRJ e no Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC-RJ.
É a dualidade, a convivência aflita e perturbadora de contradições funda mentais, que caracteriza o momento da arte maneirista. Um movimento dialético^1* entre a regra e a espontaneidade, o classicismo e o anticlassicismo, a teoria e a prática, a matéria e a Forma — Um estado de tensões permanentes, uma afecção nervosa, uma turbulência passional e expressiva de onde a arte extrai sua essência e seu processo. Essa ruptura de equilíbrio, de um compromisso até então tácito entre os opos tos, deflagra e torna consciente, segundo Panofsky<2), o problema fundamental da rela ção entre o espírito e a realidade sensível, entre o sujeito e o objeto; mas este é apenas o sintoma de que algo estava se passando, algo que, abalando e transformando o sistema da cultura renascentista, colocava agora em questão suas convicções e seus dogmas. A arte é então assaltada por presságios e êxtases, um fundo sombrio e es pectral emulando o conforto das clarividências: o artista é, ao mesmo tempo, senhor de uma onipotência criativa e genial fruto da liberdade do sujeito; e de uma precariedade exis tencial face ao arbitrário de qualquer escolha. O C inqüecento descortinaria um rosto assombrado; ora profético, ora ines perado; ora memória, ora imaginação. Se Michelangelo exaltou a arte antiga, também pre Wichelangelo
1536^° Rnal" ~ Afresco- 17<00 * 13.30 m kpela Sistina, Roma
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O Transtorno da Matéria no tendeu ultrapassá-la: em cada form a deveria estar presente o impulso de manifestar sua perfeição, conduzindo todos os esforços no sentido de uma visibilidade mais próxima pos sível de um modelo que é, no entanto, "inimitável" - supra-real e supra-histórico. Superando o equilíbrio da composição, a racionalidade repousante dos cor pos e do espaço da tradição q u attrocen tesca, as figuras da Sagrada Família se entrela çam em uma espiral dinâmica: a vibração de suas cores e a expressividade dos movimen tos animam os corpos que se contorcem no ímpeto ou de se revelar plenamente, ou de se desfazer — com o uma "labareda" que consome a si mesma. Por isso, se o M aneirism o introduziu um com ponente crítico no processo artístico ao contestar a racionalidade renascentista — a ordem e a estabilidade de seu es paço, a teoria das proporções matemáticas, a submissão a um modelo natural ou histórico — ele necessitava compreendê-lo e fundamentá-lo. A diversidade dos discursos teóricos sobre a arte, que então afloram com o nunca antes, denunciam essa tentativa: compreen der o processo artístico significava então restabelecer vínculos entre o espírito e a realidade? O ra, até agora o saber artístico extraíra das impressões "naturais" uma uni formidade normativa (deduzida da Antiguidade clássica, das palavras da Escritura e sem pre segundo um referencial antropocêntrico): o Renascimento buscaria a representação de uma verdade dos sentidos estabelecida na co sa m en tale. As produções da arte eram então obra de uma natureza humana que, por sua vez, classificava as produções da N atureza. A arte era veículo de conhecimento do real, do homem e da natureza, seu reflexo e revelação: a linha separava a matéria organizando-a, a pintura espelhava o espaço conhecendo-o através da geometria — a perspectiva linear tentava dom inar o mundo "naturalizando-o", tentava contê-lo entre as molduras do quadro reduzindo todo o universo ao visível. Perspectiva, do verbo latino p ersp icere, significa "ver com clareza": perceber a realidade empiricamente mas à luz soberana do Conceito. M as ocorre doravante uma flutuação de todos os horizontes... Há uma linha que "emigra" com as grandes navegações, com os grandes saltos no desconhecido alargando fronteiras geográficas e etnológicas...; que se "dilata" com a cisão da religião em dois grupos, reformistas e católicos, colocando ao homem a necessi dade de uma escolha ética, uma outra possibilidade para o espírito. A alma oscila incerta à procura de sua salvação que pode estar na graça — teoria — ou nas obras — prática...*3); que ameaça dispersar-se com as novas descobertas científicas — o esquema cosmológico antigo e medieval, com a terra imóvel no centro e as esferas planetárias movendo-se ao seu redor, é questionado: a continuidade hierárquica do Universo se desfaz, ele é agora essa pluralidade dos mundos, essa matéria infinita que se move no "balançar perene"*4* de Montaigne (1533-1592). O homem vagueia oscilante em um mundo descentrado e sem limites, ob servando atonito a precariedade do conhecimento mediado pelos sentidos. A realidade fe162
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M aneirism o
marisa f l ó r id o c e s a r
M ich e la n g e lo "A Sagrada Família (Tondo D onil" — D iâm etro 1,20 m Cerca de 1503-1504 Galeria Degui U ffizi, Florença
nomenal toma-se suspeita, labiríntica, sem objetividade — "Não posso fixar meu objeto (isto é, a própria pessoa); ele se agita confuso e vacilante em uma embriaguez natural... Não pinto o ser, pinto-lhe a passagem (isto é, o devir)
diz Montaigne.
Domínio do desconhecido, o mundo de Montaigne desfila seus enigmas e estranhezas entre sustos e perplexidades: se o objeto é instável e ocupa um lugar errante dentro de um continuum móvel e variável, como então atingir conhecimentos estáveis so bre a natureza (a physis) das coisas? Face a um real inescrutável e sem sentido, ao homem resta buscar refúgio cm si mesmo, nos limites do sujeito pensante e nas fronteiras de sua própria existência... GÁVEA. 11 (11), abril 1994
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O Transtorno da Matéria no Maneirismo Como então derivar normas ou m odelos para a multiplicidade iníinita do universo a par tir desse pequeno fragmento que é o homem? Se o objeto é instável, o sujeito também se modifica e vai ocupar um lugar circunstancial e mal delimitado: “aparência e som bra”**) entre o nascer e o morrer. Esse sujeito, tão plural quanto contraditório e enigmático, confinado nesse pesadelo sem saída, observa cético e irônico a incapacidade humana de pensar ou comu nicar algo de seguro sobre a natureza das coisas ou sobre o próprio homem; pois mesmo a razão em seu exercício se descobre um devaneio ardiloso sujeito ao arbítrio e ao acaso das convenções e dos costumes. Na filosofia de M ontaigne, na dúvida intelectual sobre a possibilidade de qualquer conhecimento, vislumbramos a sensibilidade contraditória e profunda que atra vessa o momento da arte maneirista: a angústia pela perda de qualquer familiaridade (o mundo e o homem se revestem de estranhezas), e a exaltação face à realidade metafísica do sujeito, face a uma liberdade subjetiva que procura, agora, o espaço de sua realização. O universo da obra de arte também se descentraliza. Se o objeto e o sujeito são variáveis, o olhar central e fixo da perspectiva renascentista se desarma — não há hie rarquia fácil: os objetos já não repousam em um arcabouço fixo, mas ameaçam se tomar coisas mutáveis no tempo; o espaço da tela abre-se em diferentes cenas em torno do tema principal, “distraindo-nos" dele. É preciso que o olhar do espectador o percorra em outras direções (mas quais?). Por isso a teoria da arte deslocaria seu interesse e sua problemática. A ques tão que se coloca no C in qü ecen to não é mais, segundo Panofsky, como o artista pode for necer uma "representação rigorosa da coisa'*7) (já que qualquer concepção dela é duvi dosa), mas a investigação da possibilidade da representação artística enquanto tal. Ocorre então uma inversão: até aquele momento, quando então uma nova sensibilidade do real e da arte emergiu abalando seus dom ínios e certezas, o papel da teo ria fora fornecer fundamentos ao fazer artístico. Se no Renascimento partia-se do conceito puro e abstrato para representá-lo na matéria através da arte; no Maneirismo, essa inspi ração do Verdadeiro nasce no inteiror do fazer em busca de uma perfeição nunca alcançável. O discurso teórico sobre a arte no século XV I tentará estabelecer uma legiti midade intelectual para a prática, justificá-la, recorrendo à metafísica para garantir uma validade transcendental tanto à subjetividade quanto à criação artística*8). E a criação artística é com o a existência, uma aventura perigosa e obstinaum desvario labiríntico e tortuoso: na força de sua “em briaguez" vital, o homem se ça nesse labirinto onde acaso e Providência, o sentido e a loucura, o ser e o devir o es preitam de suas esquinas... ,
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tária e heroicamente, ele enfrenta sua lógica e seu absurdo, sua terribiliP i
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\ eS inseguro' arremessado no jogo de uma natureza racionalmente incomacera se' onipotente, sujeito onde o absoluto se reflete por intermédio de sua
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MARISA FLÓRIDO CESAR
M ichelangelo "Pietà Rondanini" — M árm ore (non-finito) 1552 1564 Museu do Castelo Storzesco, M ilão
imaginação criadora (seu ingenio), recompõe-se: procura em desespero o centro desta trama do insondável onde a realidade possa se explicar magicamente
'Minha alma na verda
de é bem mais forte que meu c o r p o '(M ic h e la n g e lo ). No círculo da Academia Neo-Platônica de Florença, Michelangelo defim165 GÁVEA. 11 (11). abril 1994
O Transtorno da Matéria no Maneirismc ria a arte com o expressão de uma “idéia”: a obra nasce de uma tensão metafísica, de uma energia trágica que emana de sua visão interior. Retirando o excedente do mármore, era necessário despertar a Forma (a Idéia)*10* encerrada desde sempre na matéria inerte e re sistente. M as como não suspeitar que a luta tenaz de M ichelangelo consistia em pe netrar a matéria para derrotar seu silêncio constitutivo? Um silêncio que é ausência de significado, de uma p h y sis que não se entreMichelangelo "Ju ízo Final", D etalhe "C ondenados e D em ô n io s" — Afresco 1536-1541 Caoela Sistina, Rom a
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g á vea , n a i) ,
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marisa rórido cesar
ga a qualquer interpretação (como percebeu Montaigne), de um visível irredutível à pala vra, mistério inesgotável do sensível sobre o qual se debruçavam desde tempos imemo riais, a filosofia e a arte... Um silêncio que Michelangelo impregna de sentidos que nunca se comple tam (talvez cognoscíveis apenas na plenitude divina), mas que, como na "Pietà Rondanini" (non-finito), lateja rebelde e insistente nos veios da pedra emulando a vontade do ar tista em buscado inefável, em busca de uma presença significativa que, mesmo inexprimí vel, se insinua em uma imagem que ora se define, ora é absorvida na matéria. No juízo Final (Capela Sistina-1536 a 1541) a relação tradicional entre fi gura humana e estrutura arquitetônica é abolida: o homem já não se situa de forma ine quívoca no espaço determinado matematicamente da perspectiva euclidiana, mas inquietase, agita-se em um mundo convulso que ora teme o juízo divino, ora o ignora: “Eu vou Senhor”, escreve Michelangelo, "embora não saiba o que me espera'^11). O olhar do espectador também vacila: ora se organiza na narrativa bíblica, ora se dispersa no fluxo pictórico. Um fluxo que não se detém na moldura arquitetônica ou no rigor da "linha florentina" (que aqui M ichelangelo se descuida à procura de uma maior riqueza da cor), mas que escapa por entre os desvios azuis do Infinito, estendendose em um labirinto cósmico e crom ático onde as paixões humanas "vivem" os tons nubla dos da agonia ou o brilho da redenção.
Assim como a variação do objeto transforma cores, tons, linhas e espaço em algo flexível e mutável; a renúncia a um ponto de vista único e fixo recusa ao sujeito uma definição a priori — o sujeito é aquele que oscila entre sua história transcendente e atem poral e a fugaz contingência da existência. Se o mundo é acontecimento (extensão no tempo e no espaço), sua virtualidade está incluída no sujeito como uma fonte da qual ele evoca suas "maneiras" e suas imagens. E não mais havendo uma concepção segura ou a permanência estável de uma lei no mundo, toda obstinação em permanecer dentro de um horizonte fixo e previsível significa fraqueza, perda de energias vitais. Para Ticiano, em Veneza, a experiência pictó rica deve confundir-se com a experiência existencial e esta não admite os limites de uma história concluída ou o momento a p riori do desenho, mas deve colher o acontecimento no súbito flagrante, no instante imediato de sua aparição. No início do C inqüecento, Giorgione já havia invertido o sentido da opera ção pela qual se pinta antes de se ter desenhado: começar "pela cor significa dizer partir da matéria e dar vida a ela no quadro, em pastando-a, dando-lhe peso, velando-a, enfim manipulando-a"d2) (Argan). É na intimidade emocionada da cor que também Ticiano faz despertar e emergir para a tela o universo da imagem artística. Um universo de santidades voluptuo sas, que desliza suas matizes sobre o mistério cristão e o patético do homem, sobre a sen sualidade pagã e as liturgias da morte. Uma obra intrinsecamente iconológica concebida GÁVEA. 11 (11), abril 1994
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O Transtorno da Matéria no Maneirismo por uma pulsado anímira que trabalha o tom em espessuras e trausparenaas na q u ^ desintegração interior da cor; uma pulsação que trabalha o fluxo secreto e v.tal da maté ria (a cor) que se sensibiliza e se apura até tom ar-se mais amda do que linguagem, poe sia". (...) "Se a superação da matéria em M ichelangelo é toda na vertical, em T ician oe toda na
horizontal, na ebulição ou na evaporação do emplasto oolorista 11,1 diz Argan. Michelangelo, "o divino", influenciaria a geração mais nova de artistas. Ja
no início, do C inqüecento, Pontormo, Rosso, Beccafumi buscariam representar por uma maniera pessoal esse mundo repleto de contradições: o ponto de vista é interiorizado, são os olhos da imaginação que mergulham em uma atmosfera mórbida e alucinada
o alon
gamento desmedido das proporções, o transe do movimento, a explosão cromática, com prometem a integridade das formas e do espírito submetendo-os à ação corrosiva da som bra e à asfixia de um espaço sobrecarregado e antinatural (há nos a n jo s da "Sagrada Famí lia" de Rosso, uma afetação tão sinistra e espectral que duvidamos mesmo de sua origem divina...) No decorrer do século, à teoria estética da idéia se som aria a corrente de pen samento e sensibilidade de uma realidade mágica: se as coisas visíveis, sob sua inquietante mudez, guardam enigmas a decifrar, o conhecimento deve abrigar ao mesmo tempo a magia e a erudição — para fazê-los falar é preciso tecer correspondências infinitas e analogias secretas entre a esfera mais alta e luminosa e a entranha mais obscura da terra. Ao espí rito cabe, portanto, escavar de sua profunda invisibilidade a concretude de uma imagem capaz de aproximar as realidades mais distantes e mais díspares... O infinito de Giordano Bruno reverbera em cada ente: "o mundo enrolavase sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva en volvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao mundo"ri4). Na cosmologia da época, o homem é concebido como um microcosmo onde todo o m acrocosm o se prefigura espi ritualmente. Para Giordano Bruno, a mesma alma cósmica pulsa nos extremos do Uni verso cuja realidade fenomenal se fundamenta na unidade m a téria/form a. Sua embriaguez panteísta, a m a g ia naturalis de G . Delia Porta, a A rch id oX,S magíCa de Paracelso refletiríam uma cosmologia estética. As coisas do mundo afasta das em distancias infinitas pelo peso de sua matéria podem, através da obra de arte e do gemo criador, aproximar suas formas, ou melhor, encontrar sua mesma form a. O s grotescos de Rafael para as Loggie papais já revelavam essa sensibilidade: todo imite não é mais do que uma fronteira ilusória em um todo indefinidamente muavel. O fenomeno artístico não coincide "aparentemente" com o fenôm eno natural - as domínios anima|. « g e la i e mineral estão suspensas em um jogo de inde uma
Enquanto ° espirito se esforça para situar-se em relação à Natureza através
Í “ :r m :“ osseres, para os teóricos de influência neoplatônta do período, a harmonia nao res.de no mundo sensível - a matéria é, para eles, o "Princípio 168
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MARISAflórido cesar
do Feio e da M al,u n id ad e' W (com o o fora na Idade M édia durante o período patrístico), principio que corrom pe as aparências e as desequilibra. A missão da arte, portanto, con>iste em resgatar contra as aparências uma harm onia divina, interior e espiritual No T rattato d e li a rte d elia Pittura (1584) de Lomazzo<i6), a Beleza, graça di vina. é uma essência lum inosa e incorpórea, o o u tr o mais extremo da matéria que só pode ser apreendido graças à R azão com a qual o artista o reconhece e o expressa em suas obras. M as se o real torna-se cada vez m ais quimérico, é inútil representá-lo atra vés de imageas naturais. N o tratado maneirista de Frederico Zuccari ("L id ea deP ittori, Sculton ed Architetti )(17), a idéia platônica se com bina com o conceito aristotélico de entelecheia (Princípio interior) para transform ar-se em co n cetto (conceito-imagem ou imagemconceito): um d isegn o interno preexistente na imaginação do artista, despertando através de imagens artificiais e fantásticas o Princípio Formal do Mundo (para Zuccari, os modelos cie tal arte se encontrariam nos grotescos de Rafael e nas últimas obras de Michelangelo). Segundo este tratado, o espírito tem com o mundo sensível uma relação de complexas correspondências: o homem participa da faculdade divina de criar idéias, mas ele é também um ser corp óreo que só pode form ar representações interiores sobre o su porte da experiência sensível — os sentidos são convocados para tornar manifestas, na ma téria obediente, as form as espirituais1ltí). Aos poucos, o elo que unia em um só sistema o espírito (a graça) e a Nature za (o prodígio) se tom aria cada vez mais tênue. No excesso do irracional na magia e na filosofia da Idéia pressente-se o perigo: a Forma ameaça dissolver-se, os contornos dos ob jetos volatilizam-se em um espaço indeciso, a deform ação anamorfótica tenta m engano dos sentidos e das aparências. A P hysis quer desintegrar-se, a anatomia do mun do abre um fosso profundo ao seu redor, com o alcançá-lo? Nova filosofia de tudo duvida, o fogo, com o elemento é coisa abolida perdeu-se o sol. e a terra. E a inventividade humana p ra achá-los não tem capacidade (...)
Tudo em pedaços, foi-se toda a coerência, Toda justa provisão, toda relação. (John Donne. Primeiro an m m ário/U m a Anatomia do mundo)
m a/1523) p « í t a Í e r i t ã o A a n t e ^ u r n espelho convexo e por anamorfose pinta seu autoretrato...
existência ameaça agora Pois o reflexo onde o homem susten a toca-lhe a face pressionandispersá-la ao infinito: envolvendo-lhe em som bras e duvrdas, toca G Á V EA . 11 d l ) , abril 1994
O Transtorno da Matéria no Maneirismo do o que constituía seu Esboço Perfeito. Ele espia esse mundo per-verso, estranhando-se em seu espaço-enigma que abre sob uma luz fugidia seus abism os mais profundos. A imagem deflagrada pelo espírito, relacionando sob uma mesma ordem os contrários, começaria a revelar traços espectrais, demoníacos. O s grotescos de Rafael "brincavam” no absurdo. Nas obras de outros artis tas maneiristas, esse jogo se tornaria perigoso, uma espécie de subversão do Indefinível. Um mundo de ''form as" se engendrando em combinações insólitas e ines peradas, em metamorfoses absurdas que, sem saber prévio, convulsionam-se. Um mun do que anuncia um movimento eterno, onde há uma vitalidade sinistra e silenciosa irrom pendo dos subterrâneos, querendo afirm ar sua presença espectral no devir cósmico. No entanto, este é um devir descontrolado, um devir louco que, sem o go verno da Razão Uniforme, devolve ao homem o seu ser fantasmático, o seu não-ser. São imagens se fixando em formas deficientes, em "máscaras", que então invadem as telas co mo um aviso da necessidade de dominar seus "demônios" — uma subversão mostrandose como o "modelo do Outro", o qual se deve temer e exorcizar. Perversão: do latim, perversu s — posto às avessas, ao contrário, ao outro, o que rompe a ordem das coisas. A perversão então torna-se signo de um outro que se contrapõe à ordem natural, não com o fruto do acaso que abriria para uma ordem infinita de ordens, mas uma desordem demoníaca colocando ao homem seu vazio essencial, colocando-o pênsil em uma perplexidade sem logos. Se o acaso e a espontaneidade explodissem no seio da matéria recusariam ao homem o conforto inerente à idéia de Natureza que, depositária da verdade universal, expõe um eixo de organização cerrada, homogênea e contínua onde o Ser se debruça no reconhecimento incessante de sua semelhança, de sua face enquanto mesmo. A matéria ativa, sem o controle da Forma, à mercê de sua potência louca, transformaria a face do mundo incessantemente dando-lhe um devir maléfico onde o homem, fragmento e efemeridade, ocuparia um lugar provisório, acidental e mal definido: uma sombra, uma más cara errante entre o nascer e o morrer. A fantasmagoria demoníaca aparece em todas as épocas. Mas o século XVI foi especialmente fascinado por uma estética espectral, especialmente obcecado pela lou cura e pela morte(2°). O tema do labirinto é por sua vez, sempre recorrente: se Pontormo fez de sua própria casa um labirinto onde acabaria por se trancar; Hans Vrederman de Vries em seu livro H ortoru m n V iradoriorum F o rm a e (Antuérpia, 1583) desenhou os primeiros jar dins labirínticos que logo se espalhariam por toda a Europa; o parque de Bomarzo plane jado por Vicino Orsini (1568) é um labirinto anamorfótico onde tudo é deformado, até as estradas, e onde criaturas grotescas e gigantescas se degladiam: o espaço é uma paisa gem diabólica e orgiástica que tenta superar o caráter contraditório dos fenômenos pela surpresa atordoante. 170
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MARISAflórido cesar Escuridão e entranhas da matéria, será este o sentido do termo "grotesco"? "La Grottesca e G rottesco, com o derivações de grotta (gruta)"*21*, designou determinada espécie de ornamentação encontrada no fim do século XV durante escavações feitas em diversas regiões da Itália, recebendo também na segunda metade do século XVI a desig nação de sogni d ei p ittori. O mundo enrolando-se sobre si mesm o: das raízes e galhos que se enroscam e desenroscam nos grotescos de Rafael (nas L og g ie Papais), florescem corpos híbri dos, máscaras e candelabros (o indefinível e o cognoscível?) se entrelaçam e se alternam em um equlíbrio insólito. Por mais alegre e inofensiva que pareça a ornamentação grotesca de Rafael, algo de inquietante aflora... Uma estranheza que se torna mais assustadora em outros ar tistas italianos como Agostino Veneziano ou Lucca Signorelli (afresco da catedral de Orvieto) onde torvelinhos de corpos fantásticos e distorcidos formam um subsolo soturno repleto de desassossegos. Que alquimia estranha brota das sombras destas "cavernas", desdobrando-se para além das formas facilmente identificáveis, "naturalmente percebíveis? Q ue introduz
Luca S ig n o re lli "J u iz o F in a l'' — A fre s c o
1499 1504 Capela S a in t-B ric e , C atedral de O rv ie to
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O Transtorno da Matéria no Maneirismo do o que constituía seu Esboço Perfeito. Ele espia esse mundo per-verso, estranhando-se em seu espaço-enigma que abre sob uma luz fugidia seus abism os mais profundos. A imagem deflagrada pelo espírito, relacionando sob uma mesma ordem os contrários, começaria a revelar traços espectrais, demoníacos. O s grotescos de Rafael "brincavam” no absurdo. Nas obras de outros artis tas maneiristas, esse jogo se tornaria perigoso, uma espécie de subversão do Indefinível. Um mundo de ''form as" se engendrando em combinações insólitas e ines peradas, em metamorfoses absurdas que, sem saber prévio, convulsionam-se. Um mun do que anuncia um movimento eterno, onde há uma vitalidade sinistra e silenciosa irrom pendo dos subterrâneos, querendo afirm ar sua presença espectral no devir cósmico. No entanto, este é um devir descontrolado, um devir louco que, sem o go verno da Razão Uniforme, devolve ao homem o seu ser fantasmático, o seu não-ser. São imagens se fixando em formas deficientes, em "máscaras", que então invadem as telas co mo um aviso da necessidade de dominar seus "demônios" — uma subversão mostrandose como o "modelo do Outro", o qual se deve temer e exorcizar. Perversão: do latim, perversu s — posto às avessas, ao contrário, ao outro, o que rompe a ordem das coisas. A perversão então torna-se signo de um outro que se contrapõe à ordem natural, não com o fruto do acaso que abriria para uma ordem infinita de ordens, mas uma desordem demoníaca colocando ao homem seu vazio essencial, colocando-o pênsil em uma perplexidade sem logos. Se o acaso e a espontaneidade explodissem no seio da matéria recusariam ao homem o conforto inerente à idéia de Natureza que, depositária da verdade universal, expõe um eixo de organização cerrada, homogênea e contínua onde o Ser se debruça no reconhecimento incessante de sua semelhança, de sua face enquanto mesmo. A matéria ativa, sem o controle da Forma, à mercê de sua potência louca, transformaria a face do mundo incessantemente dando-lhe um devir maléfico onde o homem, fragmento e efemeridade, ocuparia um lugar provisório, acidental e mal definido: uma sombra, uma más cara errante entre o nascer e o morrer. A fantasmagoria demoníaca aparece em todas as épocas. Mas o século XVI foi especialmente fascinado por uma estética espectral, especialmente obcecado pela lou cura e pela morte(2°). O tema do labirinto é por sua vez, sempre recorrente: se Pontormo fez de sua própria casa um labirinto onde acabaria por se trancar; Hans Vrederman de Vries em seu livro H ortoru m n V iradoriorum F o rm a e (Antuérpia, 1583) desenhou os primeiros jar dins labirínticos que logo se espalhariam por toda a Europa; o parque de Bomarzo plane jado por Vicino Orsini (1568) é um labirinto anamorfótico onde tudo é deformado, até as estradas, e onde criaturas grotescas e gigantescas se degladiam: o espaço é uma paisa gem diabólica e orgiástica que tenta superar o caráter contraditório dos fenômenos pela surpresa atordoante. 170
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MARISAflórido cesar Escuridão e entranhas da matéria, será este o sentido do termo "grotesco"? "La Grottesca e G rottesco, com o derivações de grotta (gruta)"*21*, designou determinada espécie de ornamentação encontrada no fim do século XV durante escavações feitas em diversas regiões da Itália, recebendo também na segunda metade do século XVI a desig nação de sogni d ei p ittori. O mundo enrolando-se sobre si mesm o: das raízes e galhos que se enroscam e desenroscam nos grotescos de Rafael (nas L og g ie Papais), florescem corpos híbri dos, máscaras e candelabros (o indefinível e o cognoscível?) se entrelaçam e se alternam em um equlíbrio insólito. Por mais alegre e inofensiva que pareça a ornamentação grotesca de Rafael, algo de inquietante aflora... Uma estranheza que se torna mais assustadora em outros ar tistas italianos como Agostino Veneziano ou Lucca Signorelli (afresco da catedral de Orvieto) onde torvelinhos de corpos fantásticos e distorcidos formam um subsolo soturno repleto de desassossegos. Que alquimia estranha brota das sombras destas "cavernas", desdobrando-se para além das formas facilmente identificáveis, "naturalmente percebíveis? Q ue introduz
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O Transtorno da Matéria no Maneirismo um universo construído sobre ambivalências, entrelaçando medo e desejo, dúvidas e cer tezas, o repouso e o movimento, horror e nostalgia? Horror por uma realidade onde o conceito de Ser e de Natureza ameaçam não mais responder às demandas existenciais? Nostalgia por um universo lógico e orde nado onde espelhar-se é salvar-se? Grutas, cavernas, antros, abismos, labirintos. Em que fonte original foi be ber a ornamentação grotesca? Na "antiga magia romana das grutas' l22>como suspeita Gustav Hocke? Do culto egípcio e cretense do Labirinto onde deambulava insone e sem trégua o Minotauro, vertigem/lucidez, besta/hom em , prisioneiro de sua própria ambigüidade? Mas o labirinto é uma prova aflita que precede geralmente a cav ern a../23' A caverna figura no pensamento primitivo, nos mitos de origem como re nascimento ou iniciação — a materialização do regressus a n d uterum definido por Mircea Eliade(24L Na tradição grega, a caverna era o Cosmos: "A iniciação trabalha precisamen te nesta zona de passagem dos sonhos e idéias, a gruta é o palco onde a luz trabalha as trevas de ignorância"(25) diz Bachelard. Imaginação e conhecimento: se a gruta é uma espécie de matriz universal de onde gefminam os seres vivos, uma espécie de oráculo onde a voz da matéria ressoa sua sabedoria profética, é também o antro, a cavidade escura e subterrânea dos limites in visíveis, das formas difíceis e fugazes, o abismo irredutível abrigando nas trevas a evasão, o delírio, a morte. Na "cavidade perfeita", com o diz Bachelard, "está a mais fundamental das ambivalências, a ambivalência da vida e da morte" — "está o segredo de um mundo intei ro em seus elementos'^26). Segredo que Dioniso por um orifício no alto da gruta tentava apreender. Guar dião mascarado do antro, possuía ao mesmo tempo o poder de prender suas vítimas e de libertá-las — de iniciá-las em sua loucura ou devolvê-las à luz do dia, à luz do re conhecimento, do sol invisível de Platão guiando a alma até o mundo das "realidades , o mundo do Inteligível, o mundo das Formas... O mito da caverna nunca encerrou apenas um simbolismo cósmico, mas tam bém ético e moral: se Jesus nasceu em uma gruta, a caverna tam bém é a porta do Inferno, morada do Senhor da Matéria, o Purgatório onde acontecem os suplícios da carne e a pervesão do espírito. I ara muitos alquimistas, o princípio material da morte foi misturado ao princípio da vida no momento do pecado original. O pecado original pôs o verme na ma ça e todos os frutos do mundo em suas realidades e metáforas ficaram estragados. Uma matéria de ruína, infiltrou-se em tudo. Daí em diante a carne é uma falta em seu próprio ser"<27) (Bachelard). O Mal é então essa espécie de vivência do alheamento? Esse desequilíbrio ou esconhecimento oriundo da metam orfose sem fim da matéria, deste "algo" que não gávea,
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MARISAaÓRIDO CESAR é jamais idêntico? Dessa multiplicidade das aparências que se devora e nos devora em um devir sempre outro? A figuração do diabo não seria concebida sempre do mesmo modo nas di ferentes etapas da história do Cristianismo: pequenas "diferenças" iriam surgindo duran te os séculos, abrindo lacunas, interrogações... o que seria uma imaginação do demonía co, como ela se manifestou, quais foram suas transformações... P. Francastel, em A rea lid a d e figu rativ a, sustenta a hipótese de que a ico nografia monstruosa do diabo através da Idade M édia não se desenvolveu a partir da ima ginação dos artistas, mas da "interpretação estilizada de coisas mais ou menos vistas"*28*. Ou seja: das festas medievais, das cerimônias que marcavam as estações do ano, onde o diabo aparecia ao público "concretamente" tanto sob uma forma semi-humana quanto sob a de um animal monstruoso. A miniatura do Saltério de São Luis de Indeburgo (Dinamarca, séc XIII) I exemplifica: na cena do juramento, o clérigo Théophile vende sua alma a um diabo que é um ator que usa uma máscara de demônio, com chifres e uma pequena cauda. Nesta, como em outras representações do maniqueísmo medieval os "Príncipes do M al" trajam "roupas de diabo e usam máscaras". Máscaras que Francastel percebe em algumas ilustra ções como herança de uma tradição antiga — herança dos sátiros, mais precisamente da tragédia. Herança de Dioniso, o deus que se dissolve e comunga com a matéria? Ter-se e perder-se, o despedaçamento e o renascimento de Dioniso. "O que sugere esse despedaçamento, em que consiste propriamente a paixão dionisíaca, equivale a uma transform ação e m ar, águ a, terra e fo g o , e que portanto temos que considerar o es tado de individuação com o a fonte e o primeiro fundamento de todo o sofrimento, como algo repudiável em si mesmo"*29* (Nietzsche, A o rig em d a tragédia). Decifra-me! Imploram as máscaras trágicas! Atrás da máscara está o impensado, o que não tem forma porque não tem ser: conflito entre a definição e a estranheza, é a pluralidade do devir engendrando seus outros, a mobilidade da matéria, que a máscara tenta fixar — o ter-se e perder-se inces sante que o saber trágico exalta e teme. É o "M istério de Dioniso que Nietzsche reconhe ceu como a "origem da tragédia", através do qual os gregos celebravam a vida e a morte em um mesmo culto ao deus do disfarce e da embriaguez. "Usar a m áscara", diz J.P. Vernant, "é possuir, deixar de ser o que é e encar nar durante a mascarada o Poder do além que se apoderou de nós e do qual imitamos ao mesmo tempo a face, o gesto, a voz"*8^*. Era então a presença da divindade chamada ao ritual, êxtase e delírio ao ser possuído pelo outro, fundir-se a ele no transe místico para, ao mesmo tempo, apropriar-se de seu saber original e estranhar-se, destituir-se de si, metamorfosear-se: participar assim da dança dos fenômenos
a máscara, mediando a
relações entre o homem e o mundo, conformava o corpo à alteridade devoradora da physis sagrada. GÁVEA. 11 (11), abril 1994
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I
Luca Signorelli "Juízo Final", Detalhe — Afresco 1499-1504 Capela Saint-Brice, Catedral de Orvieto
No entanto, mesmo quando o saber prescindiu da possessão, e a Razão, aprendendo a dar sentido à realidade, permitiu ao heleno hum anizar as imagens de seus deuses, Dioniso — o Louco, e Gorgó (górgona-medusa) — a M orte, nunca se revelaram sem a proteção de suas máscaras, pois era impossível encarar o terror de sua alteridade ra dical sem L ogos. As máscaras assaltam o universo artístico m aneirista. Estão nos grotescos de Rafael; nos demônios de Lucca Signorelli; nas ilustrações da C o m m ed ia Dell' A rte de Callot; nas "Cabeças pintadas" de A rcim boldo onde inúmeras realidades vegetais ou ani mais esfacelam a carne de um rosto; nos demônios do Palácio de Zuccari com suas janelas em forma de máscaras (como se fosse necessário intermediar o corpo edificado à ocasionalidade ardilosa do ar, da luz, da paisagem...). O feio e o monstruoso habitam uma zona obscura e maculada, ameaça de uma matéria que se rebela quando a Forma se distancia. M as essa contam inação" em sua exposição pode, através da arte, ser apri sionada, submeter suas quimeras às molduras, limites, estilos: redimir-se na expectativa de uma ordem unitária que deve outra vez realizar-se. Pois o fantástico da máscara no tempo do ritual era reunir em um só corpo
Frederico Zuccari "Janela do Palácio Zuccari" 1592 Roma
fremente, as forças vitais e esparsas das aparências. No maneirismo, o corpo representado ora se alonga, ora se contorce, ora se comprime na gravidade da matéria, ora se estende no transe místico (como no Enterro do Conde de Orgaz" de El Greco ou no "Juízo Finar de Tintoretto)
um movimento que
nos recorda ora uma possessão, ora um abandono... GÁVEA. 11 (11), abril 1994
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O Transtorno da MatĂŠria no Maneirismo
MARISAflorido cesar Na sua acepção clássica o termo “pessoa" (do latim p erso n a ) deriva de más cara. Máscaras do teatro trágico, derivando daí mais duas significações: “personagem" e "fazer ecoar a voz" (com o o ator através da máscara). Invocando seus monstros e máscaras, a arte nos coloca em contato com o outro radical que nos habita e erra à nossa volta, o outro de nossa loucura e de nossa mor te; recusando-nos uma face humana, mcusa-nos uma inteligibilidade fácil, o "idêntico" da pessoa (aquele que coincide consigo mesmo) — a máscara só esconde para melhor perscrutar o indefinido e suas inúmeras aparências... No seio das substâncias, os alquimistas do século XVI, como Paracelso, bus cavam reunir as realidades do cosmo e as realidades humanas do microcosmo ao mesmo tempo em que declaravam a contradição fundamental que acontece no interior das apa rências: uma "Contra-Natureza lutando contra a Natureza e essa luta é íntima"*31*. É correto que as origens históricas não servem senão como pretexto, um ful cro dissimulado sobre o qual uma nova forma de arte, com um interesse totalmente novo, vem se inaugurar. M as não se pode negligenciar os sentidos acumulados, a força original que emerge com vigor tal que transforma e é transformada. Há um longo percurso entre os diabos mascarados do Medievo, Senhores da Matéria, e o quimério maneirista. Como se a diferença exteriorizada dos primeiros, uma diferença estrangeira, fosse se deslocando pelos séculos para a consciência do indivíduo. O outro deixa de "encarnar" o drama coletivo da humanidade para se caracterizar na cons ciência humana como sua "dualidade"'32*. , Se o M aneirismo é o "Mundo com o Labirinto"*33* como supõe G . Hocke, é o caminho confuso e asfixiante que antecede e conduz à caverna... sucederá então que uma potência em devaneio arrastará as entranhas desta caverna à superfície, extravasan do seus antros e porões, derramando sua sensualidade carnal por sobre as fronteiras de um espaço que se dilui na extensão infinita de uma matéria transbordante, uma matéria barroca. Uma potência capaz de reverter na dinâmica da imaginação, o pavor em maravilhamento: Dom Quixote (Séc. X V II) ao sair da gruta de Montesinos: "Não é um inferno, é a morada das maravilhas. Sentai-vos. meus filhos, escutai bem e acreditai. ,34)
Giuseppe A rcim boldo "A Água"
1527-1593 Kunsthistorisches Museum, Viena G Á VEA . 11 (11), abril 1994
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N o ta s
( 1 ) ARGAN. Giulio Cario. História da Arte co m o História da Cidade, trad. Pier Cabra. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p.130 ( 2 ) PANOFSKY, Erwin. Idea. col. "Tel". Éditions Gallimard, 1989, p.101 ( 3 ) ARGAN, Giulio Cario, op. cit. p.130 ( 4 ) citado por ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto, col. Debates . São Paulo. Perspec tiva, 1985, p.135 ( 5 ) Idem, ibidem, p.135 ( 6 ) MONTA1GNE, Michel de. "Ensaios Il/Cap. XII", in Montaigne. trad. Sérgio Milliet, col. "Os Pensadores". São Paulo, Abril Cultural, 1991 ( 7 ) PANOFSKY, Erwin. op. cit. p.105 ( 8 ) Idem, ibidem. ( 9 ) citado por HOCKE, Gustav R. Maneirismo: O M undo com o Labirinto, trad. Clement Mahl, col. "Debates". São Paulo, Perspectiva, 1986. p.97 (10) Na metafísica de Platão, a Verdade do Ser transcende a multiplicidade da aparência, sua FORMA é não-visível, interna e apreensível apenas pela razão: o ser real só se reconhece, só se distingue como o Mesmo, no mundo das Idéias onde se imobiliza, mantendo sua totalidade e unidade. Platão garantiría o que as tramas da linguagem já haviam cumpliciado: o elo entre a forma e a idéia, termos afins provenientes da mesma palavra grega — eidos. (11) HOCKE, Gustav R. op. cit. p.98 (12) ARGAN, Giulio Cario. op. cit. p.150 (13) Idem, ibidem, p.151 (14) FOUCAULT, Michel. "A prosa do mundo", in As Palavras e as coisas, trad. S. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 1987, p.37 (15) PANOSFSKY, Erwin. op. cit. p. 117 (16) Idem, ibidem. (17) Idem, ibidem, p.107 (18) Na metafísica aristotélica, as idéias como essência das coisas não podem existir inde pendentemente das coisas de que são essência — o mundo das idéias é categoria do nos so intelecto. A realidade é um composto de matéria-forma. A matéria como substrato e potência passiva onde acontece a mudança, mas ela mesma inerte, etema e indestrutível, é o não ser por acidente, depende de uma inteligência que a preceda e a atualize: a Forma, o princípio ativo. Há portanto uma Forma das Formas, uma inteligência universal ou primeiro-motor emprestando à Natureza causalidade e finalidade. (19) DONNE, John. Primeiro Aniversário: Uma Anatomia Do Mundo (The First Anniversary: An Anatomy Of The World)", in Poesia M etafísica/U m a Antologia, trad. Aíla de Oliveira Gomes. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p.5 5 (2 0 ) O elogio à loucura como capacidade ilimitada da imaginação para "reverter" e "transformar a realidade em Tesauro (cit. por Gustav Hocke, op. cit. p.119) ou "transcendêa em El greco (visto sua obsessão pelo asilo de loucos em Toledo) é só um dos aspectos deste fascínio. A loucura no séc XVI deixa de ser "exterior", o outro se transfere para o universo solitário e incomunicável do sujeito. (2 1 ) KAISER, Wolfgang. O Grotesco, trad. J. Guinsburg, col. Stylus. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1986, p.17 (2 2 ) HOCKE, Gustav R. op. cit. p.116 CHEI ARD, Gaston. A Terra e os Devcmeios d o Repouso, trad. Paulo Neves da Sil va. Sao Paulo, Martins Fontes, 1990, p.161 (24) citado por CHEVALIER. Jean e CHEERBRANT. Alain. D i c H o n m i ^ S y m b o l, ftris. Éditions Júpiter, 1982, p.180 (25) BACHELARD, Gaston. op. cit. p.156 (26) Idem, ibidem, p.158
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\!AR1SA fló r id o
c e sa r
(27) Idem. ibidem, p.55 (28) FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa, trad. Mary Barros. São Paulo, Perspec tiva. 1982, p.355 (29) NIETZSCHE. "O nascimento da tragédia no espírito da música", in Nietzsche, trad. Ru bens R. Torres Filho, col. "Os Pensadores". São Paulo. Abril Cultural, 1980, p.18 (30) VERNANT. Jean Pierre. A morte nos olh os. trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro, Jor ge Zahar. 1988. p.104 (31) BACHELARD, Gaston. op. cit. p.55 (32) FRANCASTEL. Pierre. op. cit. p.369 (33) HOCKE. Gustav R. op. cit. (3 4 1 CERVANTES. Miguel de. Dom Quixote d e La Mancha, trad. Almir de Andrade e Mil ton Amado, parte II. cap. XX. Rio de Janeiro, José Olympio, 1958.
Este texto éparte da monografia apresentada como t "A Inocência da Especialização em História da Arte e Arquitetura a quem especialmente agradeço. Matéria", realizado sob orientação do Prof. JoseThomaz Brum, a quem espec 179 GÁVEA. 11 (11), abril 1994
Teoria Acadêmica, Arquitetura M oderna, Corolário Brasileiro Aceito para publicação em junho de 1993. Versão condensada e revista de artigo publicado em An,ilt;s d o In s titu to de Arte Ibero-Am ericano da Uni versidade de Buenos Aires, n° 26, 88. 0 artigo de C.E. Comas esclarece, inicialmente, o dé b ito da a rq u ite tu ra de Le Corbusier para com a Teo ria A cadêm ica. Le Corbusier é aquele que, sob cer tos aspectos, atualiza a Tradição ao m anter fu n cio nais as idéias de Com posição e Caráter, idéias que perm itiríam à obra exprim ir tanto o geral — "espirito da é p o c a " q u a nto o particular — "e sp írito do lu gar". Para o autor, a arquitetura moderna brasileira con cretiza, sim ultaneamente, estas duas possibilidades. Teoria Acadêm ica A rq u ite tu ra M oderna A rq u ite tu ra Brasileira CARU3S E D U A R D O
D IA S
C O M A S
Arquiteto, crítico, mestre em arquitetura e desenho urbano pela Universidade da Pensilvânia e professor adjunto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS.
Corbusier descreve sua visita de 29 a São Paulo e Rio como corolário bra sileiro'' (Corbusier, 30). Profecia pura. Uma série de obras exemplares consolida o prestí gio da arquitetura nacional entre 36 e 45. Não é segredo a filiação corbusiana de Ministé rio, Pavilhão de Nova York, Grand Hotel de O u ro Preto, Pampulha, Park Hotel de Friburgo. Nenhuma delas se pode dizer derivativa. Sua originalidade vai além da superfície. Implica total dominio da sintaxe geométrica e construtiva da arquitetura moderna em sua vertente mais sofisticada. É com total conhecimento de causa que Lúcio Costa chama Cor busier de Brunelleschi do século, o gênio cuja obra cristaliza um estilo autêntico e se cons titui herdeira legítima da melhor tradição acadêmica (Costa, 34). A importância da Escola de Belas Artes francesa na produção arquitetônica do século XIX dispensa comentários. Sua influência sobre a gênese da arquitetura moderna é reconhecida já há bastante tempo (Banham, Rowe, Colquhoun). Dada a educação de Lúcio e sua distância das polêmicas européias da década de 20, não lhe era difícil observar as raízes acadêmicas de muitas expressões, argumentos e projetos em Vers u ne A rchitecture, Oeuvre Com plete e P récisions.
^ n£ é:i0 ^ Educação e Saúde (atual Palácio Gustavo Capanem a) Am Jane,r9 - 1937 1943 qui etos: Lúcio Costa, Affonso E. Reidy, Jorge M oreira, Carlos Leão, F o tn n rT Ce^ S e 0scar Niemeyer tografia: Eduardo Mello, 1986 - A rq u iv o IBPC 181
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Teoria Acadêmica, Arquitetura Moderna, Corolário Brasileiro Nesta perspectiva, estilo deve entender-se com o conjunto organicamente con sistente in clu in do tanto elem en tos d e arqu itetu ra q u a n to elem en to s e prin cípios d e com p o s iç ã o arqu itetônica. O entendimento pressupõe, em teoria, a plausibilidade de distin guir entre geometria e materialidade do edifício, entre os espaços e volumes que contam e os elementos técnico-funcionais que o concretizam, paredes, colunas, entrepisos, cober turas e demais componentes construtivos isoladamente incapazes de fechar espaço ou vo lume. A redução desses elem en tos d e arquitetura a seus fundamentos geométricos essen ciais é postulado formal básico da arquitetura moderna. Composição pode traduzir-se por coordenação dos elementos de arquitetura e dos espaços e volumes que os mesmos consti tuem, para conformar proposição artisticamente válida. Lúcio sabia que a estrutura independente era o fundamento técnico do esti lo e possivelmente intuía que seu fundamento geométrico-construtivo se havia batizado Dom-ino para assinalar tanto o caráter combinatório e casual do jogo arquitetônico quanto, etimologia ajudando, a autoridade da regra sem a qual nenhum jogo pode começar. Ostensivamente, D om -ino é imagem que acom panha a predicação de uma independência funcional e formal entre vedação e estrutura possibilitada pela construção em esqueleto: uma planta livre em que a configuração da vedação obedecesse a raciocíM aison Dom -ino (esquema estrutural) 1914 Le Corbusier
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CARLOS EDUARDO DIAS COMAS nios primariamente topológicos e náo necessariamente idênticos em pavimentas diferen tes, a configuração da estrutura obedecendo a raciocínios primariamente geométricos e uni tários. Livres do encargo rígido de suportar, as paredes agora deslizam ao lado das colu nas impassíveis, param a qualquer distância, ondulam acompanhando o movimento do tráfego e permitem outro rendimento ao volume construído, concentrando o espaço onde ele se faz necessário, reduzindo-o ao mínimo onde ele se apresente supérfluo. Por outro lado, Dom-ino era também uma precisão sobre essa estrutura in dependente que se postula condição arquitetônica normativa. Não se trata de uma estru tura qualquer, mas de um sistema de lajes paralelas repousando sobre fileiras paralelas de suportes e prolongando-se em balanço, sem o concurso de vigas aparentes. Vigas aparen tes interromperíam a continuidade horizontal do espaço e comprometeríam a liberdade visível das paredes. O emprego de balanços implica in-congruência entre perímetro das lajes e perímetro da malha de suportes, permitindo que uma fa ch a d a livre fosse comple mento correspondente à p la n ta livre. Especificando lajes e vedações de superfície contí nua e considerando a possibilidade de gerar superfícies virtuais pela percepção de supor tes alinhados, Dom -ino privilegiava a apresentação do edifício como um construto multiplanar. Com o recurso ao balanço, o princípio de independência entre vedação e estrutura se desdobrava em independência entre vedação e suporte, entre vedação e laje, suporte e laje. Dom -ino proclama uma condição normativa que tem horizontalidade, re gularidade, ortogonalidade e repetitividade com o atributos, mas qualifica sua hegemonia através da introdução de um vazio vertical, um intercolúnio diferenciado e balanços dis tintos nos lados compridos e estreitos de cada laje. Nem constância dimensional se diz re quisito obrigatório para os intercolúnios do sistema de suportes, nem congruência de pro jeção se vê imperativa no sistema de lajes. A configuração de intercolúnios diferenciados abria possibilidades de enriquecimento rítmico. A configuração independente de lajes dis tintas permitia introduzir acentos verticais no espaço. Se a presença de irregularidade e sin gularidade pode justificar-se na configuração de lajes ou malha de suportes, a ausência de ortogonal idade tampouco ficava fora de cogitação. Dom-ino postulava uma sintaxe geométrico-construtiva aberta a uma considerável variedade de possibilidades compositivas, dentro de um marco em que prevalecia a idéia de arquitetura como um debate entre elementos constitutivos relativamente independentes. O debate se podia manifestar em interior e exterior. D om -ino insinuava a possibilidade de fundir, em uma única doutrina, uma concepção plástico-ideal da for ma arquitetônica, de severidade clássica, com uma concepção orgânico-funcional associada ao informalismo pitoresco. Como diría Lúcio, o cristal podia conter a flor ou vice-versa; como diria Corbusier, o "prisma puro” podia alternar com o jogo de volumes . Dentro de um repertório de partidos, composições volumetricamente subtrativas ou subdivisivas — de fora para dentro — eram tão lícitas com o composições aditivas ou multiplicativas — de dentro para fora. Por outro lado, os novos princípios compositivos da "planta e faG Á V EA . 11 (11), abril 1994
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Pavilhão do Brasil Feira de IMova York Arquitetos: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer Fotografia: S. Lincoln — Arquivo IBPC
chada livres” levavam certamente à dispersão centrífuga de interesses focais que Rowe chama de "composição periférica" (Rowe, 57). Não implicavam, no entanto, como notou o mes mo Rowe, a negação radical de princípios compositivos tradicionais como frontalidade, axialidade, simetria e centralização. Em qualquer plano, cabia reiterar um debate ambiva lente e mesmo ambíguo, em que a insistência em uma paridade inclusiva de termos pola res contrastados importava muito mais que a síntese de contrários ou a afirmação de hie rarquias. Tudo isso posto, cabe notar que algum pragmatismo e muita preocupação com a satisfação do espírito por parte de Corbusier favoreciam a contenção e a internalização da variedade formal implícita em Dom-ino. Comparação entre a obra do mestre fran cês até 45 e a série de obras brasileiras citadas revela que a adesão de Lúcio e Oscar à com posição moderna se dá sob o signo da exuberância e da extroversão. Exuberância, nos diz o dicionário, é superabundância que se manifesta prolífica, plenitude que transborda, ani mação, vivacidade. Vigor e viço quase excessivos. A extroversão corresponde a uma sina184
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Grand Hotel de Ouro Preto 1940 * Arquiteto: Oscar Niemeyer Fotografia: Arquivo IBPC
lização expansiva dessa exuberância, marcada e marcante em qualquer apreciação da obra desde fora. A exuberância não se evidencia apenas na multiplicação de soluções formais para os mesmos elementos de arquitetura, nem na multiplicação de revestimentos que con trasta com a pureza franciscana das "villas" brancas ou nas curvas notórias que fazem con traponto a ortogonais e oblíquas, quase em pé de igualdade. E qualidade que transparece na deliberada predileção pela composição que multiplica volumes, ainda quando progra ma e situação permitiríam ou favoreceríam o “prisma puro". O Ministério pode ler-se co mo dois blocos que se cruzam em T ou um bloco elevado flanqueado por dois blocos bai xos de eixo longitudinal alinhado; seu auditório se vê cunha trapezoidal semi-encaixada que tensiona os extremos de um bloco horizontal. Piso e canteiros paralelos ao bloco ou blocos baixos insinuam volumes adicionais. No pequeno hotel serrano, o corpo de servi ço se justapõe, esparramado, a um bloco principal cuja integridade volumétrica desde a entrada se dissolve em volumes virtualmente superpostos na fachada para o parque. No G Á V EA . 11 (11). abril 1994
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Teoria Acadêmica, Arquitetura Moderna, Corolário Brasileiro hotel mineiro, as elevações laterais sugerem um geodo rompido ao meio, a fachada princi pal acusa uma decomposição do bloco em volumes superpostos, as habitações e seus bal cões coroando o conjunto de espaços coletivos. Multiplicação volumétrica e as ambivalências e ambigüidades aí observadas são ainda mais espetaculares no Pavilhão de Nova York, onde a estratificação horizontal observada desde a rua aparece transformada, do jar dim, em palácio de ordem colossal acompanhado de uma profusão de edículas. Composi ção aditiva informa os edifícios que integram a Pampulha, independentemente de seu porte. Até a Casa do Baile se desdobra em dois corpos, salão e coreto tenuemente unidos pela marquise cujo contorno reproduz grafismo de nuvens ou projeção de copas reunidas. A extroversão se registra recorrente na externalização acentuada dos prin cípios de independência entre vedação, suporte e laje. A externalização é relativamente dis creta no Ministério. Faz-se presente na ordem colossal do bloco do salão de exposições, que envolve o desalinhamento de bordos de laje de entrepiso e cobertura. A ordem colos sal reaparece no Pavilhão, onde a externalização do debate vedação-suporte-laje atinge pa-
Park Hotel Nova Friburgo/RJ, 1944 Arquiteto: Lúcio Costa Fotografia: Arquivo IBPC
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roxismo virtuosístico, já exaustivamente analisado (Comas, 89). A obra corbusiana reve la duas soluções típicas de pavimento térreo, exemplificáveis através de Garches e Savoye. Em Garches, o "pilotis" está totalmente recoberto, sua presença se inferindo por trás da janela horizontal. Em Savoye — ou em Cartago — as colunas periféricas do "pilotis" se deixam totalmente à mostra, as vedações dispondo-se recuadas. Não há precedente para um pavimento térreo como o do Pavilhão, em que a exibição da profundidade total do "pilotis" se alterna com episódios onde paredes ocul tam colunas periféricas e episódios onde paredes se dispõem por trás dessas colunas a dis tintas distâncias. O mesmo m otivo se repete nos dois hotéis, acompanhado de fragmento de ordem colossal em O uro Preto. No Cassino da Pampulha, a fachada principal é verda deira radiografia de uma secção comportando salão de pé-direito duplo e mezanino lateral. A exuberância se combina com porosidade também sem precedentes e a com binação resulta na extroversão da experiência de "promenade architecturale patrocinada pela "planta livre . Poroso é o térreo do Ministério, com seu pórtico vazio entre extremos
Cassino da Pam pulha Belo H o riz o n te /M G , 1942 Arquiteto: Oscar Niem eyer Fotografia: Arquivo IBPC
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Teoria Acadêmica, Arquitetura Moderna, Corolário Brasileiro sólidos, porosos igualmente o térreo e o andar nobre do I avilhão, porosa a base do Grand Hotel e a fachada traseira de Friburgo, a Capela e a Casa do Baile da Pampulha. Não se trata apenas de uma interpenetração exterior-interior explícita, mas de estratégia sofisti cada. O percurso de acesso se dilata, antecipando e exacerbando a percepção dos interio res ou contrastando, eventualmente, com sua simplicidade tranqüila. Essas diferenças não se justificam apenas por idiossincracias de arquitetos. Na tradição acadêmica, composição correta — aderindo aos postulados vitruvianos de firmeza, solidez e beleza — devia conjugar-se à caracterização apropriada. C aracterização, diz Quatrem ère de Quincy, ó a arte d e to m a r sensíveis, p e las fo rm a s m ateriais, as q u a lid a d es intelectuais e as fo r m a s m orais q u e p o d e m ser expres sas através d a arquitetura ou d e to rn a r co n h ecid as a natureza, p ro p ried a d e, uso e p rop ósi to d e um ed ifício através d a h a r m o n ia ou con v en iên cia d e su as partes constitutivas (De Quincy, 1799). Simplificando uma longa tradição, Guadet fala da expressão de caráter co mo fonte legítima de diversidade arquitetônica e distingue um caráter representativo de programa de um caráter genérico, representativo de cultura ou civilização (Guadet, 1904). Em qualquer caso, as estratégias de caracterização se podiam dizer simila res, envolvendo as especificidades compositivas de planta, elevações e disposição de mas sas construídas, questões de tratamento de superfícies com o a medida, seleção e coníor-
Pampulha, Belo H o riz o n te /M G 1942 Arquiteto: Oscar N iem eyer ' Fotografia: M arcos G a u th a ro t - Arquivo IB P C
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CARLOS EDUARDO DIAS COMAS mação dos ornamentos e decoração, assim com o a escolha de materiais e técnica constru tiva. Dada a aliança implícita entre caracterização e uma memória prévia, cabe falar de estratégias de caracterização substantiva e estratégias de caracterização adjetiva. As pri meiras envolvem a reprodução, em projeto novo, de precedentes arquitetônicos cultural mente associados ao problema em questão, quer na acepção abstrata de estilos ou tipos, quer em termos de detalhes, fragmentos ou obras concretas. As segundas corresponde a inclusão, em projeto novo, de atributos culturalmente associados a soluções típicas para o problema em questão, severidade, graça ou rusticidade, por exemplo (Comas, 88). Ca ráter — expressão de uma anatomia, uma fisiologia, uma fisionomia. Não cabe dúvida que a aspiração explícita de expressão do “espírito da épo ca por parte da vanguarda moderna européia podia traduzir-se, academicamente, como a caracterização genérica do "espírito da época". Mudanças sociais, econômicas e técnicas validavam a renovação do repertório de elementos, princípios e esquemas compositivos que informavam a praxis arquitetônica. Dado o seu anti-historicismo, não surpreende que buscasse referências fora do território tradicional da arquitetura: na engenharia civil e na construção vernacular, nos artefatos industriais e na pintura. Silos, fábricas, pontes, han gares, arranha-céus, transatlânticos, aeroplanos e automóveis eram os produtos emblemá ticos da era, tanto como as abstrações de Kandinsky, o cubismo de Picasso e Braque, os experimentos suprematistas e neoplásticos. A racionalidade técnica, a verdade dos mate riais, o despojamento e simplicidade formais de componentes claramente articulados distinguiam os primeiros, a revalorização da planaridade e da multiplicação dos pontos de vista eram a contrapartida da rejeição do modelado e da perspectiva pelos outros. Movi mento, serialidade e contraste tinham relevância. Estaticidade, centralização e hierarquia não faziam mais sentido. Construção, indústria e pintura avalizavam a simplificação e a minimalização formal dos elementos materiais da arquitetura, o repúdio do ornamento mentiroso e uma composição centrífuga onde a assimetria dinamicamente equilibrada subs tituía a simetria hierática. Contudo, o entendimento da arquitetura como construção qua lificada persistindo, é a estrutura em esqueleto — justificadamente apontada condição nor mativa da construção na era maquinista — que vai ancorar a postulação de renovação compositiva corbusiana. A postulação inclui renovação do conteúdo das quatro estratégias aponta das por Quatremère, em termos substantivos e adjetivos. Sob outro ângulo, a obra cor busiana bem se pode considerar intento de caracterização apropriada dos tipos arquitetô nicos da era da máquina, quer respondendo a programas sem precedente histórico ou a programas de antiga linhagem. Em qualquer caso, alusões tipológicas ou iconográficas e efeitos sensacionais programaticamente consistentes ocorrem com freqüência, mesmo que as alusões sejam fragmentárias ou subversivas. Por último, tanto na invenção do brisesoleil", versão moderna do muxarabi, quanto no Palácio dos Soviets ou na casa Errazuris se pode ver que Corbusier não era alheio à preocupação de caracterizar o espirito do lugar . G Á VEA . 11 (11), abril 1994
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Teoria Acadêmica. Arquitetura Moderna, Corolário Brasileiro A caracterização do "espírito da época” obcecava a vanguarda moderna eu ropéia, que tinha como problema a afirmação de modernidade assente na tradição conju gada com a afirmação de nacionalidade dentro da comunidade internacional. Em 36, a opção pelo estilo moderno — de cunho internacional — já p e r si conotava, para políticos e intelectuais como Capanema, uma opção pela modernização técnica e social que não co nhecia fronteiras, em forma análoga à conotação de religiosidade associada ao estilo góti co. Ao mesmo tempo, os exemplos corbusianos mostravam com o o estilo se podia infletir para fazer transparecer a especificidade de uma geografia em fiel acordo com estratégias de caracterização já codificadas, em substância, pela teoria acadêmica. Não é inocente que, no final da memória da Universidade do Brasil, Lúcio fale em caráter local parafraseando Quatremère de Q uincy (Costa, 36). Nem era inconve niente, para a sinalização desse caráter, que os elementos de arquitetura preconizados por Corbusier parecessem concebidos expressamente para os trópicos e fossem tão facilmente assimiláveis a uma tradição construtiva racional e nacional, em particular ao colonial mi neiro do século XVIII. Afinal, a essa primeira cultura urbana brasileira estavam associadas as primeiras reivindicações de independência política do país, motivadas pela aspiração de deixar na terra a riqueza aqui encontrada. Diversificação formal, exuberância, extroversão, porosidade e o epicurismo dialético aí implícito foram oferecidos e aceitos como atributos de uma paisagem, um cli ma, um temperamento barroco, mas não engalanado. A multiplicação de alusões tipológicas e iconográficas que se encontram em Ministério, Pavilhão, hotéis e Pampulha pode ser lida como reivindicação de herança onde uma tradição moderna dada por assente se enlaça com a tradição disciplinar mais antiga. A mensagem assinalava uma terra risonha e franca povoada por homens cordiais, com o pé no chão e a mentalidade aberta. Ficção pura mas enormemente atrativa, uma amável aparição enviada para ornamento de um momento". Concorde-se ou não com esse discurso genérico, é preciso reconhecer que essas realizações impressionam enquanto caracterização apropriada de programa e sítio. É deles que, em última instância, o impulso à diversificação formal extrai legitimidade. A coluna de secção redonda do Ministério é vestígio clássico adequado a representação monumental, a coluna metálica em H do Pavilhão evoca a realização miesiana em Barcelona, a secção quadrada dos pilares de Ouro Preto se assimila à estrutura de pau-a-pique corrente no entorno, o pau-roliço de Friburgo reforça a rusticidade da im plantação. A opção pelo "brise" no Ministério visava a evitar um aspecto comum de apar tamentos (Costa, 36). Cortinas de enrolar não propiciariam o mesmo vigor de definição de uma elevação classicamente tripartite. As placas horizontais de cimento no Ministério dão lugar ao brise vertical em treliçado de madeira azul em O uro Preto, que atende à orientação distinta e presta homenagem à tradição colonial sem deixar de conotar moder nidade, como o telhado inclinado de uma água que exibe francamente sua planaridade. 190
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Capela de Sâo Francisco Pam pulha. Belo H o rizo n te /M G . 1943 Arquiteto: Oscar Niemeyer Fotografia: Arquivo IBPC
Na Capela da Pampulha, o "brise” é vertical mas de alumínio, toque industrial que atuali za a tradicionalidade do encargo. Nos edifícios profanos da Pampulha, o azulejo é de sé rie, na Capela integra painel pintado à mào, como nos velhos claustros da Bahia. O partido do Ministério reforça a hierarquia diferenciada das ruas limítro fes e deixa clara a distinção entre espaços cerimoniais coletivos e espaços de trabalho. O rendilhado e o refrão curvilíneo do Pavilhão tudo devem à ratificação de uma situação (Costa, 39). O hotel urbano faz jus ao nome e assume foros de "palace". O hotel serrano se dá ares de casa-grande e senzala. Na Pampulha, o Cassino é uma "villa" moderna, es pelhos e cetins constituindo cenário conforme um ritual mundano. O Iate Club é casa-bote, a Casa do Baile um cilindro arcaico. Na Capela, evocações de hangar se mesclam com a linearidade da rememoração religiosa de arco e abóbada. Alusões palacianas se encontram no Ministério e no Pavilhão, a severidade dórica do primeiro contrastando pertinentemente com a elegância jônica do segundo. A superestrutura do Ministério o apresenta como um navio azul cujo fundo é a Baía de Gua nabara, metáfora associável não só à locação como a aspiração da instituição de avançar na cristalização de um destino brasileiro. As ambigüidades do Pavilhão são teatrais como convém a uma Feira impermanente e dão testemunho, sem complexo, de um moderno de múltiplos filões, construtivismo e racionalismo italianos compreendidos. O apalacetado do hotel mineiro se contrapõe à rusticidade contemporânea de Friburgo. O garbo mascu lino do Iate se opõe à rotundidade da Casa do Baile, as curvas da fachada terrestre da Capela são ideograma dos morros circundantes. A exemplificação não se pretende exaustiva. E suficiente, no entanto, para mostrar a fecundidade de uma categorização teórica que postulava a boa arquitetura coGÁVEA. 11 (11), abril 1994
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late Club Pam pulha, Belo H o riz o n te /M G , 1942 Arquiteto: Oscar Niem eyer Fotografia: M arcei G autherot
mo composição correta com caráter apropriado, assim com o de um entendimento evolucionário da obra corbusiana. A vanguarda moderna européia desprezava a palavra com posição, porque conotava dependência e manipulação deliberada de precedentes formais. O tabu imposto sobre a caracterização era ainda mais forte, porque esta pedia reconheci mento e manipulação deliberada dos significados convencionais que o tempo e o hábito haviam emprestado àqueles precedentes. Estudos recentes mostram que composição e ca racterização não eram necessariamente instrumentos de um conservadorismo esterilizante no século passado. O corolário brasileiro" demonstra que o mesmo pode dizer-se do papel que desempenharam neste século.
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CARLOS EDUARDO
DIAS COMAS
B ib lio g ra fia
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Algumas Considerações Antropológicas sobre o Ensino Artístico Este artigo foi solicitação da Revista Gávea ao autor. O artigo aborda o ensino da arte de um ponto de vista antropológico questionando o papel do ensino artísti co no sistema educativo. Ao precisar a especificidade da prática artística o autor problematiza a formação do artista, considerando o sentido de liberdade e o ques tionamento da tradição proposto pela arte moderna. Por fim propõe que se pense o ensino artístico levando-se em consideração duas vertentes interligadas: a arte da técnica e arte do pensamento. Arte Formação do artista Antropologia
JO SÉ A N T O N IO
B. F E R N A N D E S D I A S
Antropólogo, professor da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
Ao pensar mudanças na presença das artes no sistema educativo será útil con frontar algumas questões a ela referentes. Entre elas, que lugar e papel devem aí ocupar?, que ensino, de quê, na área artística? São questões delicadas, quer pela sua complexidade intrínseca, que só poderá ter respostas, conceituais e institucionais, também complexas quer pela desordem que podem produzir numa situação sedimentada, no sistema de ensino her dado (rejeitando as artes do domínio do sério, ou do ensinável), e no corpo docente da área artística (refugiando-se passivamente na construção de clichês sobre inimigos das ar tes e dos artistas). Abordá-las-ei aqui da dupla perspectiva de docente (de Antropologia, ten do também já leccionado a cadeira de Sociologia) da Faculdade de Belas-Artes da Univer sidade de Lisboa, e de antropólogo, de formação e de profissão; interessado no estudo com parativo da cultura material nas nossas sociedades e nas sociedades não industriais, com particular ênfase nos objectos artísticos, nos objectos de culto e de crença, e nos objectos da vida quotidiana. M enos para apontar respostas do que para reflectir sobre os sentidos das próprias questões, de modo a contribuir para uma visão complexa do campo, que in forme as respostas que venham a ser dadas. Por essas razões, profissionais, de conhecimento e de experiência, o foco da minha atenção será aquilo a que chamamos "artes plásticas . Mas estas são um dos gêne ros artísticos das nossas sociedades, e, com o reflicto em termos da antropologia social e cultural, a arte, aquilo a que chamamos "arte , será considerado como um dos gêneros G Á V EA . 11 (11), abril 1994
Algumas Considerações Antropológicas Sobre o Ensino Artístico culturais em que as nossas sociedades e os seus membros se expressam. Assim, a reflexão valerá certamente para todos os gêneros artísticos, tendo em conta as especificidades pró prias aos meios que cada um emprega e às suas histórias particulares. Encarar as artes como um gênero da nossa cultura expressiva, as práticas ar tísticas como práticas simbólicas, implica várias coisas. Que os produtos artísticos, enquanto resultado de práticas simbólicas, são entidades dinâmicas — enquanto veículos materiais, perceptíveis pelos sentidos, estão essencialmente envolvidos na variabilidade de padrões estéticos; o seu campo semântico (em que se interpenetram intimamente dimensões cog nitivas, emotivas, e volitivas) é aberto, sem limites determinados, e como tal ganham e per dem significados; podem produzir efeitos nos estados psicológicos e nos comportamentos daqueles que lhe são expostos. Que são expressão objectual, material, de uma experiência — uma sequência isolável de acontecimentos externos e das nossas respostas internas a eles, o que nos acontece na vida perante situações que ressaltam da rotina e do repetitivo, ou que os desordenam e rompem. Q ue estão essencial mente envolvidos em processos so ciais e processos psicológicos, não podendo ser isolados das pessoas que os usam. Que, enquanto realidade simbólica, estão intimamente relacionados à realidade pragmática — para lhe dar ordem, e sentido, mas também usando criativamente a desordem, para a ul trapassar, ou para criticar princípios axiomáticos herdados que se tornaram obsoletos, im próprios para dar conta da vida contemporânea; sendo portanto um factor na acção so cial, com um potencial criativo e inovativo. Que coexistem nas nossas sociedades lado a lado com rituais sagrados e seculares, com o desporto, com os divertimentos em geral. E que, como estas outras práticas simbólicas, partem de elementos do familiar para os desíamiliarizar, para gerar uma pluralidade de modelos alternativos, capazes de influenciar os comportamentos. Tudo isto aponta para uma concepção da prática artística, na criação e na recepção, como um modo humano e universal de relação com o mundo. Victor Turner distingue-o do da vida quotidiana e da esfera do trabalho, que são o domínio da adapta ção racional de meios a fins, da operação invariante das relações de causa-efeito, da racio nalidade, do senso comum; e que designa por "modo indicativo da cultura". As artes, di ferentemente, pertencem ao modo subjuntivo ou conjuntivo da cultura" — o domínio do como se, da hipótese, da fantasia, da conjectura, do desejo; quando as estruturas da experiência são analisadas e os seus factores recombinados, mais ou menos ludicamente, com mais ou menos liberdade; explorando sempre, em maior ou m enor grau, a variação e a experimentação, para suspender a realidade pragmática e simbolizar num vínculo ma terial uma outra realidade. Se nos objectos e nas práticas rituais das sociedades não-industriais, a sus pensão do mundo conhecido do quotidiano é imediatamente recoberta por sistemas cosmológicos, que lhe oferecem um suporte ancestral, consensualmente legitimado, tal como nos rituais sagrados e seculares que nas nossas sociedades coexistem ao lado das artes, nestas 196
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IOSÉANTÔNIO B. FERNANDES DIAS não há um mundo transcendente prévio e recorrente que a prática artística materialize. O desconhecido, o nâo-quotidiano, o novo emergem da própria obra artística, como resul tado de uma exploração consciente, savante, e continuamente gerada, das possibilidades criativas da forma, experienciadas durante a própria criação da obra. Aqui, no caso das artes nas nossas sociedades, trata-se menos de produzir um fundamento ancestral da vi da, mas de deslocar os seus membros para um estado de maior flexibilidade perante ela, e a possibilidade de a modificar; ou, pelo menos, e também sempre, de tornar mais tolerá vel o sistema tal com o existe, libertando-nos temporariamente das suas obrigações, dos seus ritmos e das suas representações; abrindo acesso ao jogo das idéias, das fantasias, das relações sociais, estimulando forças criadoras nos indivíduos e nos grupos. A estas diferenças entre objectos e práticas rituais, das nossas sociedades ou não, e objectos e práticas artísticas, corresponde uma maior individualização da tarefa de produção de símbolos. Embora possam continuar a ter efeitos colectivos, as obras artísti cas tendem a ser mais idiossincráticas, subtis, concorrendo entre si pelo reconhecimento; são criação de indivíduos reconhecidos, em grupos particulares; com competência técnica e intelectual para construírem obras que podem ser de alguma maneira significativas, que podem proporcionar uma experiência, um encontro sensível do inverosímil. Por estas razões, à educação artística compete um duplo lugar e um duplo papel no sistema de ensino. Como modo humano particular de relação com o mundo, de ve ser parte da educação geral com o fim de exercitar e desenvolver essa potencialidade presente em todos os seres humanos. Mas deve também constituir-se como uma forma ção profissional específica, se atendermos à especialização das actividades artísticas; propondo-se preparar indivíduos capazes de funcionar como artistas, agora. Num caso ou noutro, o da educação artística como parte da educação geral, e o da formação específica, qualquer discussão sobre que ensino, sobre o que ensinar ga nha em complexidade, em rigor, e em fecundidade, se partir de uma interrogação coeren te sobre o estado actual da prática artística. É necessário ter em conta que o que ainda designamos por uma noção úni ca, Arte, não constitui de modo nenhum, hoje, um campo unitário. A sua complexificação começa a afirmar-se no século XIX, que Ernst Gombrich denomina, na sua história da arte, "A revolução em permanência". Inicia-se aí uma série de rupturas da tradição, clássica primeiro, de qualquer tradição depois, que vem até aos nossos dias. Marcarei, de forma esquemática e breve, dois momentos fortes neste mo vimento, que virão configurar o que cham am os arte contemporânea. O primeiro fizeram-no, no início deste século, os artistas que confrontaram o dilema da própria existência da arte quando novos m edia vinham assumir muitas das suas funções públicas tradicionais. Quer quando se mantiveram nos limites dos gêneros históricos — a pintura, a escultura — mas alterando o seu estatuto, libertando-as da sua função de reflexão de realidades extra-artísticas, e tomando-as coisas autônomas, pintura G Á V E A . 11 (11), abril 1994
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Algumas Considerações Antropológicas Sobre o Ensino Artístico pura, escultura pura; ou tomando-as materializações, figuras, de processos interiores, men tais e emocionais, quer quando transbordaram desses limites tradicionais do campo artís tico, em práticas objectuais que apropriam elementos do mundo material e objectos reais (das coUages, aos reaây m ade, aos o b jects trouvés, às a ssem b la g es e acumulações, etc); em práticas ambientais que trabalham na própria realidade, com espaços reais, arquitectónicos (artísticos ou não) ou exteriores (ambientes, instalações, la n d a r t ), ou em práticas comportamentais que integram pessoas e acções nos espaços (performances, acções). Entre uns e outros, a noção de Arte perde qualquer função normativa; à prá tica artística atribui-se uma ausência de fronteiras — estéticas (sensíveis), semânticas e prag máticas. A bertu ra estética (sensível), quer a nível de materiais, quando produz e cria
a partir de materiais feitos com propósitos não-artísticos quaisquer materiais, quer a nível dos procedimentos de construção, quando substitui o princípio da composição pelo jogo das justaposições e agrupamentos orientado pela exploração das potencialidades expres sivas dos materiais crus. Do que resulta uma dificuldade crescente de distinguir só pelo olhar, à vista desarmada, entre objectos artísticos e todos os outros objectos materiais. Tudo é, tudo pode ser arte. A bertu ra sem ântica, ou de funcionamento semiótico, quando problemati-
za as relações entre a representação e o reproduzido, estabelecendo uma identidade entre ambos os níveis. E, conseqüentemente, desloca a capacidade de produzir sentido, da refle xão icónica tradicional entre esses dois níveis, para a exploração de relações associativas entre o objecto artístico e os seus elementos objectuais e o seu contexto externo; através da descontextualização semântica dos elementos reais que empregar. E que tem como conseqüência principal a instabilidade de evocação, de ressonâncias, que estes objectos pro duzem nas suas recepções pelos espectadores. Objectos enigmáticos por natureza, capa zes de estimular evocações infindas nos espectadores, não permitindo interpretações unívocas, eles abalam qualquer princípio de identidade, qualquer identificação. A sua expres sividade é sem limites, inconfinável. A bertu ra pragm ática, no que toca ao seu lugar no mundo da vida social e cultural, e ao seu papel no mundo das experiências dos indivíduos. Quando, para além
de reproduzirem a realidade, se propõem instaurar o real, tomar uma posição na própria constituição da realidade. Quer possibilitando uma presença ao inverosímil quer suspen dendo a identidade, o sentido unívoco do real, e reinvestindo-o como um potencial de as sociações e significações novas. Quando a obra se torna menos um objecto a contemplar do que um campo de forças que age sobre o espectador. Por um lado, e na medida em que cada obra é singular, ele precisa penetrar o princípio, o conceito que lhe subjaz e que a torna significativa, para a poder apreciar. E, atendendo à sua abertura semântica essen cial e sem limites, cada obra só se realiza em cada recepção. O espectador é cada vez me nos espectador e mais um participante na obra. Assegurando-lhe um estado de liberdade, 198
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JOSÉ ANTÔNIO B. FERNANDES DIAS a capacidade de se libertar das sedimentações sincrónicas do mundo externo e do mundo interior, de o transform ar e se transformar. Gostaria ainda de marcar uma segunda descontinuidade, face à noção cate górica e normativa de A rte. Esta nova situação, em que estamos mergulhados, vejo-a pes soalmente como um desenvolvimento, um acentuar do caracter problemático da própria categoria Arte. No momento em que a vanguarda, como idéia do desenvolvimento histó rico da arte, deixa de orientar a prática artística, em que é encarada como uma tradição, ao lado da tradição histórica (pré-moderna). Se no primeiro momento a descontinuidade no interior do domínio artístico se evidenciava já na multiplicidade de teorias, concepções e práticas, estas são ainda ordenáveis segundo uma série de possibilidades conflitantes que se sucedem no tempo, sendo a última a aparecer sempre a vanguarda. Agora a situação é diferente: aquilo que continuamos a reunir sob a noção de arte é antes uma vizinhança de práticas e conceitos diversos, irreconciliáveis, mas não conflituosos. Face a esta situação, podemos então interrogar-nos: se a arte era uma coisa que estava sempre a mudar, se o que hoje cham am os arte é constituído por uma multipli cidade aberta de práticas não conflitantes, mas divergentes em aparência, em conceito, em objectivos, em justificações; então, é ensino de quê, o ensino da arte? O breve esboço do estado da arte hoje era indispensável para pensar esta questão. Ele permite evitar o erro fácil de reduzir a educação artística ao domínio de técni cas, e à formação do gosto, à aprendizagem de princípios estéticos, segundo uma bipolarização tradição/modernidade, para a manter ou para a ultrapassar; como se a modernida de e a actual constelação de práticas a que cham am os arte também pudessem identificarse por princípios unitários, amplamente partilhados, recorrentes e relativamente estáveis. Coloca a questão num nível mais profundo e correcto: o de uma discussão coerente sobre o conceito de arte no nosso tempo. E sobretudo evidencia uma situação em que a prática artística não se esgota,' não se limita aos objectos artísticos. Em que se enfatiza o caracter processual, criativo e experiencial da arte, e se resiste a uma visão imanentista do objecto artístico como uma entidade formal, autônoma e autoritária. Na criação, os procedimen tos (mentaise técnico-formais) de que os produtos são o traço, o rasto, assumem um papel pelo menos tão importante quanto estes. Q uando produz, o artista não produz só um ob jecto material, mas também uma concepção de que a obra vai ser o veículo e a confirma ção. E na recepção esses resultados não são também todos autocontidos, determinados e finais; antes situações, cheias de potencialidades evocativas e sugestivas. Parecem-me aspectos fundamentais a ter em consideração quando se pensa a educação artística hoje. Ajudam ainda a distinguir o ensinável do que o não é. A posi ção central do n o v o , da capacidade de uma manifestação artística poder ser para nós instauradora de sentido, de poder alargar a nossa relação com o mundo, como critério de va lorização da pratica artística, implica que a criação artística é ela própria impelida por um componente irredutível de desconhecimento. Q ue não se confunde com espontaneidade, G Á V E A . 11 (11), abril 1994
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Algumas Considerações Antropológicas Sobre o Ensino Artístico pureza ou inspiração. Pois bem, não me parece que se possa ensinar a consciência intensa desse desconhecimento. Os pontos de vista dos professores (e é irrelevante se são grandes artistas ou artistas menos grandes) não a substituem, evidentemente. Além deste, há ou tros elementos do processo criativo que não são ensináveis, e que seria interessante isolar cuidadosamente do que pode ser ensinado — a inventividade, a intuição, por exemplo. Dentro do domínio do ensinável é possível, então, pensar, e decidir o que se deve ensinar. Nos dois casos que se consideraram, da educação artística na educação geral e como formação específica. A concepção performativa da arte contemporânea que atrás apontei, a interpenetração íntima e sempre singular entre actos mentais e técnicos, de que resulta a obra, aconselha a abandonar radicalmente o modelo das velhas academias e conservatórios: a idéia de que há uma inspiração com o dom, e a noção associada de que ao professor só compete fornecer o treinamento técnico necessário à sua expressão. Independentemente das técnicas que se ensinem, fundamentalistas (tradicionais) ou vanguardistas (novos ma teriais, novas ferramentas), enfatizar o seu papel na formação de artistas é enganar-se so bre a natureza da arte contemporânea. Esta exige que se integrem os dois sentidos que com preendia o termo latino de que o nosso derivou — ars: — a arte d a técnica (de saber produzir artefactos como a natureza produz fenômenos), co mo quando se designa por arte o saber do ferreiro, ou do canteiro ou do estofador; — a arte d o pen sam en to (das operações mentais para conhecer e representar o real), como quando se designavam por arte as regras da argumentação lógica, ou por arte das estrelas o que hoje chamamos astronomia. O artista contemporâneo faz-se por preparação técnica e por preparação in telectual. Por isso, aplicar tinta na tela e falar sobre pintura (ou o equivalente em qualquer outro meio) não basta para formar artistas hoje. E, se consideramos a prática artística co mo uma resposta criativa ao mundo contemporâneo; se identificamos a excelência de uma obra pela sua capacidade de sintetizar forma e conteúdo, pela impossibilidade de distin guir entre a técnica e a imagem; então, a preparação intelectual não pode cingir-se à análi se mais ou menos sistemática de obras-modelo, e à exploração de problemas e soluções entendidos a partir delas por inferência racional. Neste caso corremos o risco de uma "arte calculada , equivalente paralelo da arte acadêmica . O conhecimento das obras existen tes e reconhecidas é indispensável, e deverá abarcar para além da história da arte tradicio nal, profundamente eurocêntrica, e definida nos seus princípios gerais a partir de uma si tuação histórica particular que se projecta para toda a história, para integrar manifesta ções artísticas de todos os tempos e de todos os espaços, na sua diversidade. Mas não é de todo suficiente. A educação artística deve, para além do treinamento técnico, que também deve ser o mais amplo possível, e do ensinar a apreciar, exactamente habilitar os estudantes a abranger o mundo presente, e a desenvolver uma relação singular consigo próprios, 200
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JOSÉ ANTÔNIO B. FERNANDES D IA S
e com o seu ambiente, natural, social e cultural. Seja ela apropriativa, citacional, irônica, crítica ou paródica. É necessário habilitá-los com a capacidade de discernirem possibilida des fecundas e eficazes de actos criativos. E para isso é indispensável introduzi-los aos dis cursos sobre os vários aspectos do mundo contemporâneo. Sobre o lugar da criação artís tica e do indivíduo neste mundo. São discursos que se prolongam em palavras e materiais, que transitam, para trás e para diante, de artista a artista, de obra a obra, de tendência a tendência. Por isso a sua introdução deve ser feita a partir de obras artísticas. Até por que, para as compreender e apreciar, acabamos sempre por ter de tocar em assuntos que estão além dos ensinados numa formação clássica — sociológicos, históricos, políticos, científicos, econômicos, psicológicos, antropológicos. Se não o fizermos, a história da ar te contemporânea não será mais do que um desfile gratuito de modas. E, pensando também nas duas vertentes da educação artística, valerá ainda a pena atender a um outro aspecto da situação actual atrás mapeada, em torno das artes plásticas mas extensível a outras práticas artísticas: o transbordar dos gêneros e meios tra dicionais; e considerar a existência de outros, que entretanto surgiram. O campo dos me dia mecânicos, sem dúvida, a fotografia, o vídeo, os multimedia, mas também os resul tantes da exploração de cruzamentos de gêneros tradicionais — a instalação, por exem plo, ou a perform ance, a dança-teatro...
Texto realizado para o Getap, Ministério de Educação de Portugal, no contexto da "Conferência Nacional do Ensino Artístico" e publicado em W A A - Ensino Artístico n? 7, Coleção Cadernos Pedagógicos, Porto, Ed. Asa, 1992. G Á V EA . 11 (11). abril 1994
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Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger Neste artigo S. Huchet discute o im pacto provoca do pelo advento da máquina na arte de Fernand Lé ger. Para o artista, a arte, para participar ativamente de seu tempo, deve estabelecer uma equivalência en tre a imagem que produz e a nova realidade social e tecnológica. Dentre todas, o cinema é aquele que apresenta a imagem mais viva do real. À pintura cabe ría o papel pedagógico de preparar as massas para os novos valores plásticos da "civilização maquinista". Fernand Léger A rte -M u n d o Equivalência
STÉPHANE HUCHET Tradução Anamaria Skinner
Historiador de Arte e autor de uma tese de doutorado "A configuração do mundo estético dos anos 20". Ensi nou estética dos anos 20 na Universidade de Paris VIII.
O s futuristas disseram-no antes de Fernand Léger. Sua época é difícil. Des de 1909 seus manifestos iconoclastas proclamam a única verdade de seu tempo: velocida de, mecanização, subversão dos valores. No cotidiano caótico e violento, a lei é movimen to. O mundo voa... O modelo do avião fascina, na Rússia, na Itália, na França, as vanguardas. Em Paris, pouco antes da Guerra de 1914, Fernand Léger experimenta um choque estético, em companhia de Marcei Duchamp que se pergunta se a arte poderá para o futuro rivali zar com a perfeição das máquinas, no Salão de Aviação. A guerra, tão celebrada pelos fu turistas, é como uma dança da mecânica. Em 1920 aparecerá em L Esprit N ouveau, a grande revista de Corbusier, um manifesto do futurista Marinetti, "dança da aviação , dança da metralhadora”... O mundo está aprisionado no sonho ou no sonho ruim tecnológico. Na França, durante a Guerra, Léger escreve ao poeta Blaise Cendrars: O espetáculo das divi sões pululantes. O soldado cheio de iniciativa. Depois mais e mais novos exércitos de ope rários. Montanhas de matérias brutas, de objetos manufaturados... Motores americanos (...) geléia inglesa, tropas de cada país, produtos químicos alemães, o bloco da culatra de uma 75, tudo traz a marca de uma unidade fantástica (1’. Em um poema ultra-modernista, 7Eu matei”, escutemos Cendrars: "a água, o ar, o fogo, a eletricidade, a radiografia, a acús tica, a balística, a matemática, a metalurgia, a moda, as artes, as superstições, a lâmpada, as viagens, a mesa, a família, a história universal, os oceanos. Os submarinos imergem. Os trens rodam. Filas de caminhão trepidam. Fábricas explodem. A multidão das grandes G Á V EA . 11 (11), abril 1994
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Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger cidades se arroja ao cinema e disputa os jornais... Tenho o sentido da realidade, eu poeta. Agi. M atei. Como aquele que quer viver"(2). Essas palavras expressam uma lírica da máquina, do desvario maquínico da vida. A civilização americana fascina igualmente: Francis Picabia vê em Nova York uma cidade cubista. Assim como Picabia e Duchamp, Léger participa de Armory Show em 1913, o primeiro grande momento da modernidade artística nos Estados Unidos. A era é da eu foria tecnológica, do otimismo "aerodinâmico", como a definiu retrospectivamente o crí tico americano Clement Greenberg(3). E nesse contexto "mecanófilo" internacional que será analisada a versão que Fernand Léger dá para isso, este pintor que, em 1910, pretendia desconjuntar os corpos em seus quadros mais "tubistas" do que cubistas, e começava a expor junto ao m a rch an d e dono de galeria dos cubistas Daniel-Henri Kahnweiler, com Braque e Picasso. Como Léger concebeu o sentido de sua atividade artística, sobretudo depois de 1918, esta é a questão que nos interessa aqui. Depreende-se dessa cena teórica, uma vi são da arte e de seu papel em um mundo posto sob o signo da máquina. Veremos que Lé ger orienta suas visões teóricas por três domínios: o quadro, o cinema — que propicia as formulações mais interessantes — , e as formas mais sociais de expressão da criatividade popular na arte espontânea dos comerciantes (as vitrines), nas ruas, no espetáculo que a sociedade oferece a si mesma. Não se deve nunca esquecer a idéia fundamental que Léger faz de sua épo ca: a de uma civilização da máquina. Esta constitui uma espécie de imperativo categórico na passagem à obra iconográfica e pictural. Outra idéia-chave, a de uma imagem de arte pensada em sua equivalência com a realidade no plano dos elementos plásticos e das intensidades. Essa imagem deve contribuir para manter juntos, na igualdade de uma analo gia, a arte e o mundo. Para dizer de um modo um pouco rude, Léger procura definir a validade de uma obra de arte atual em nome de uma simbiose necessária da imagem de arte com os aspectos plásticos essenciais da realidade social e tecnológica circundante.
No anteguerra, Léger já concebia seu trabalho de pintor em termos de rea lismo visual. Mas a noção de realismo não tem nada a ver aqui com uma imitação qual quer ou cópia dos objetos. Compreenderemos isto melhor mais adiante. A idéia de pro duzir uma imagem de arte equivalente ao mundo em seus aspectos plásticos essenciais vi sa, de preferência, aexpressáo de uma fisionomia do mundo comum à arte e a sociedade. Como já vimos, Léger ficou fascinado por uma visita, um dia, ao Salão de Aviação, diante dos "belos objetos metálicos duros, fixos e úteis, o aço de infinitas varie dades funcionando ao lado dos vermelhões e dos azuis na potência geométrica das formas",4). Por essa razão o veremos recomendar aos visitantes dos salões e aos amantes da arte que passassem dos Salões artísticos para os Salões industriais pela simples razão de 204
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STÉPHANE HUCHET que a verdade plástica aí se encontra. Léger proclama-se também o cantor do povo que ele encontrou, e de quem esteve próximo durante a Guerra, por razões morais que não estão muito longe de uma vaga idéia de autenticidade da psicologia popular ou operária. Mais simbolicamente (ou ironicamente?), ele enaltece o canhão, "esta culatra de 75 aberto em pleno sol que, diz ele, me ensinou mais, no que concerne à minha evolução plástica, do que to dos os museus do mundo"*51... Dessas afirmações surpreendentes, percebe-se a lição no quadro de 1917 intitulado O jo g o d e cartas (129x193), que representa soldados jogando cartas. Trata-se de uma imagem exaltante, no motivo do cilindro, herdado muito suma riamente de Cézanne, a nova composição mecânica do homem em estado de guerra, sua anatomia e sua silhueta mecanizadas estando reduzidas a uma combinação de formas frag mentadas e articuladas. As mãos são garras mecânicas. Na Alemanha, houve uma experiência igualmente traumatizante da Guer ra, mas cujo efeito se viu acentuado pelo fato da derrota e do caos econômico e social que daí resultou. Podem ser lidas linhas surpreendentes de Walter Benjamin, em Rua de m ão única (1928), intituladas "em direção ao Planetário", que analisam a grande Guerra como um ensaio trágico de parir um novo cosmos, um cosmos que agrida violentamente a natu reza e, que, em compensação, espalhe a morte sobre a terra. Este novo corpo nascido dentro do espírito da técnica", do qual a Guerra era a irrupção, seria preciso, em seguida tentar dominá-lo, avalia Benjamin. A utilização do tema e da imagem da guerra em Léger, de pois da experiência, participará de uma forma de convenção. Encontra-se, em seus textos, Fernand Léger "Partie de Cartes" 1917
Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger um tom futurista para afirmar a vida atual como "estado de guerra". Assim lê-se, de seu próprio punho, em 1925: "...o estado de guerra nada mais é do que a vida em ritmo acelerado. (...) A vida revela-se aí profunda e trágica. O s homens e as coisas sáo vistos em toda sua inten sidade, seu valor hipertrofiado, examinado sob todos os aspectos, tende a arrebentar. (...) ... aí está porque admiro profundamente minha época (...) que, com seus enormes óculos, vê claro e quer ver sempre mais claro, aconteça o que acontecer. Acabou a névoa, o claro-escuro, trata-se do advento do estado de luz Muito positivista e empirista, Léger escreve noutra parte que quando ele "caiu na realidade" do cano de 75 e da guerra, sua marca foi indelével. "Retomado da guerra, continuei a utilizar o que eu tinha sentido no front. Durante três anos utilizei as formas geométricas, período que será chamado a época mecânica'"'7L Porém mais do que um elemento biográfico, é uma filosofia subjacente ao realismo de concepção que situa a riqueza das idéias de Léger em um terreno mais precisa mente teórico. Tanto do ponto de vista iconográfico como estilístico, a imagem de arte de ve ao menos tornar possível a identificação de seu enraizamento histórico. Em um texto de 1913, intitulado "As origens da pintura e seu valor representativo", Léger escreve efeti vamente que a compreensão da pintura atual nascida na França é de um conceito univer sal que permite a todas as sensibilidades se desenvolverem". Léger reforça seu argumento sobre o ser com este conceito universal tão im portante: "quando uma arte como esta possui todos os meios, que lhe permitem realizar obras absolutamente completas, ela deve impôr-se durante muito tempo. Chegamos, es tou convencido disso, a uma concepção de arte tão vasta quanto as maiores épocas prece dentes: mesma tendência às grandes dimensões, mesmo esforço partilhado por uma coletividade"(g). Esta conjugação da durabilidade e da permanência de um conceito univer sal da arte — sobre a qual não se saberia dizer o muito de reminiscência hegeliana que a trama sem dúvida inconscientemente, mas que relata bem a sensibilidade conceituai e construtivista que teve como aliados tantos artistas dos anos 1920 — , assim como o dinamis mo que contém na obra, desde 1913, seus Constrastes de fo rm a s (um dinamismo às vezes chamado divisionismo dinâmico"), não é paradoxal. Trata-se, na linguagem empírica de Léger, de um tema gerador. Ele pensa a elevação ou a consagração do presente ao estatuto de archè: a extração do princípio fundador da plasticidade de seu tempo, de seu aspecto, de sua fisionomia... Para o mestre da estética mecanomorfa, os contrastes picturais do anteguerra, e que irão se petrificando nos quadros de sua época mecânico-geométrica com achatamentos rigorosamente delimitados, cristalizam, ao nível dos formantes da imagem, a realidade intensa do mundo moderno, urbano e contrastado. O conceito universal é, efetivamente, a linha-força do novo ser do mundo. Em termos mais psicológicos, isso significa que "o 206
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STÉPHANE HUCHET conceito moderno (...) é a expressão total de uma geração nova da qual ela sofre as neces sidades e responde a todas as aspirações"*9). Guillaume Apollinaire enaltecia Léger, desde 1913, por ter-se "entregado com felicidade ao instinto da civilização em que ele vive"*10). Essa opinião sugere a preocupa ção de Léger em inscrever sua obra no horizonte absoluto do mundo por meio de um de sejo de superação da prática autônoma da arte, que nunca faz, no entanto, a economia da especialização que é a otimização de uma competência. Na vasta literatura teórica dos anos 20, são abundantes as apologias líricas até mesmo militantes do modelo da máquina. As imagens mecanomorfas buscam dar uma representação do mundo em termos de significação artística. Não se trata de estetizá-lo, mas de conceber uma imagem equivalente, oriunda de um realismo de concepção. Mas com Léger, não alcançamos, no entanto, um terreno teórico tão avançado quanto o dos construtivistas russos. Estes procurarão fundir a atividade artística com a totalidade da vida, para participar na produção de uma nova realidade social e política. Se entre os cons trutivistas russos, o "artista" é convidado a desaparecer e a reabsorver sua atividade nu ma forma de engenharia, com Léger o artista permanece investido de seu papel pouco ro mântico de mediador entre a sociedade e a verdade da história. O pensamento de Léger acerca do papel do artista, do estatuto da arte, participa de seu tempo mas permanece bas tante equilibrado, populista também. Esse pensamento não é portador de fermento revo lucionário, apesar da paixão sincera pelo operário, e pelo sentido artístico espontâneo do povo. E aliás esta tão grande afirmação das qualidades artísticas inconscientes do povo, esta referência voluntária ao sentido do concreto, que conferem um toque sobretudo sentimental ao populismo de Léger. Este contrasta historicamente com o construtivismo russo que, em sua utopia social e artística, não lança nunca um olhar sentimental sobre o povo, mas faz dele o substrato de uma refundição revolucionária da sociedade. O artista é, portanto, o intermediário da nova natureza maquínica e técnica. O realismo de concepção deve afirmar a interdependência da obra e do mundo e confor mar seus modos e suas estruturas. Um esteta francês contemporâneo de Léger escrevia que o desejo dos futu ristas havia sido de "conform ar nossa vida ao dinamismo vivo sem cessar renovado pela atividade de ordem mecânica", e citava o filósofo Vladimir Jankélévitch. Este julga que a arte verdadeira é a que dá o sentimento imediato da vida mais intensa e mais expressiva, ao mesmo tempo a mais individual e a mais social"*11). Léger não era evidentemente o único a pensar assim. Trata-se de dar corpo, fazer com que essa assunção do objeto ganhe vida significando artisticamente o real. Trata-se ainda de reunir objetivamente em imagem o corpus figurativo, o material dado e disponível da realidade circundante. Essa promoção do objeto ao primeiro grau iconográfico, do objeto significante (automóvel, locomotiva, avião, fábrica, transatlântico, cidade, cartaz, todo o vocabulário industrial da sociedade moderna), consiste em apreender o objeto-mundo em termos de significação artística. G Á V E A . 11 (11), abril 1994
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Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger Léger apresenta assim o seu regime: "a arte é subjetiva, (...) mas uma subje tividade controlada e que se apóia numa matéria primeira objetiva' (...) A obra plástica é o estado de equívoco' desses dois valores, o real e o imaginado. Encontrar o equilíbrio entre esses dois pólos, aí está a dificuldade, mas dividir a dificuldade em duas e só tomar uma ou outra, fazer abstrato puro ou imitação, é na verdade muito fácil, e evita o proble ma no seu total"*12). A arte é uma espécie de tela onde o artista deposita os objetos que, por sua mediação, a "matéria primeira" oferece. Para o pintor apanhado "entre uma cifra realista e uma cifra invenção", é preciso "centrar"*13*. Encontramo-nos, portanto, pela força das coisas, em estado de invenção e de equivalência, e só aí está a razão plástica"*14). Esta fór mula de Léger é forte. A razão plástica, razão econômica, é um trabalho de equivalência arte-mundo, uma maneira de troca de suas linhas de forças plásticas... um trabalho que está momentaneamente condenado a manter uma distância mínima entre o real e o ima ginado pois sua fusão, tão sonhada pelos construtivistas russos, ainda é irrealizável. E a figurabilidade do mundo que as obras de Léger querem testemunhar. Os temas figurativos, engrenagens maquínicas, "Elementos mecânicos", "Gare", "Cidade", "Re bocador
ou este transatlântico do qual Le Corbusier dizia que ele representava "a pri-
Fernand Léger “ Le Cirque"
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STÉPHANE HUCHET meira etapa na realização de um mundo organizado segundo o espírito novo", constituem os dados figurativos do real. O artista torna sensível visualmente esta capacidade do mundo em ganhar fisionomia, a figurabilidade disto que organiza a plasticidade da sociedade mo derna, técnica e urbana. Na obra, a "matéria primeira" 'fermenta' como se diria de uma massa que fermenta' que ela cresce'. Há uma espécie de constituição visual, em imagem, dos tra ços salientes através dos quais o objeto-mundo se oferta ao olhar e à intuição. A metáfora repousa na idéia de extração, de abs-tração dessa matéria primeira objetiva que o mundo forma em sua plasticidade. (Seria uma dimensão aristotélica). Produto da terra, ou idéia relatando o cosmos industrial ou maquínico brilhando acima do mundo como sua nova constelação, a matéria primeira é assimilada por Léger a um mineral, a um recurso natu ral. Cantor de uma mitologia da beleza moderna, ele insiste na multiplicação das sensa ções e das impressões das quais o homem moderno é o objeto. Assim, nas paisagens que perderam sua razão de ser natural ou sua transcendência estética tradicional, despojadas de sua soberba em proveito das estradas de ferro e dos automóveis, o cartaz amarelo ou vermelho, gritante, "é a mais bela das razões picturais novas que existem "^5). O realismo de concepção implica um pôr-se em imagem inventivo, quer di zer, verdadeiramente concebido do real. Do mundo onde viver Léger até a imagem, há pas sagem, tornar-se imagem, tornar-se emblema, acontecimento visual. Existe uma reserva de imagens. O que as faz tornar-se concretas? A arte só tende a colocar os termos dessas questões. Léger fala de um fenômeno coletivo moderno que o artista antecipa numa presciência e uma intuição das mutações da sensibilidade. Trata-se aqui empiricamente da idéia da imaginação com o síntese do diverso dado no mundo, da imaginação como produtora, no sensível, dos esquemas prometidos à inteligência ou ao entendimento. A imaginação, segundo Léger, seria como uma potência em relacionar-se com as formas a priori da sen sibilidade que são o tempo e o espaço. O 'belo' de Léger alcança modestamente o Belo Kantiano na medida em que ele propõe uma iniciação à inteligência do real, um primeiro grau, sensível, de conhecimento. A imaginação é de fato a veia poetizante da razão; ela é como uma operária do conhecimento. A história das idéias artísticas e estéticas dos anos 1920 nos ensina quanto a imaginação, nem sempre nomeada, é uma potência, uma faculdade de concepção para realizar, no sensível, a cristalização das linhas de forças que organizam o real. Ou simplesmente para projetá-las pois o estado de equivalência mantém um equi líbrio e um desvio, o quadro tem uma moldura: sua verdade é icônica e isolada também do exterior do qual ele não cessa, no entanto, de falar e para o qual acena...
"É p re cis o utilizar plasticam ente to d o s esses valores novos, p ro cu ra r su a equivalên cia". L éger con cebe, a o la d o d a a rte orn am en tal qu e d ep e n d e d a arquitetura, o o b je to d e arte: "(quadro, escultura, m áq u in a, objeto), v a lo r rig oroso em si, feito d e con cen tra çã o e d e intensidade, an tid ecorativ o, contrário d e u m a parede. C oord en ação d e to d o s o s m eios plásticos possíveis, agrupam ento d o s elem en tos em contrastes, mulGÁVEA. 11 (11), abril 1994
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Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger tip licação n a v a ried a d e, brilh o , luz, o p e r a tiv id a d e . in ten sid ad e-v id a, o to d o cercado p o r um a m old u ra, iso la d o , p er so n ific a d o
(1&).
Essa passagem termina em uma espécie de descrição do processo fotocinematográfico. Na série dos objetos de arte, a aparelhagem cinematográfica é ao mesmo tempo, quadro, escultura, máquina, objeto, operatividade, enquadramento e personifica ção. Ela representa o acontecimento artístico mais verdadeiro graças a sua estrutura maquínica. Pode-se efetivamente identificar, nos escritos de Léger, três tipos de cenas ar tísticas: o quadro, a rua, o cinem a... Suas naturezas respectivas torna-os dissemelhantes, mas todas três estão em relação com um mesmo universo dinâmico e contrastado. Assim, Léger elogia produções espontâneas do artista-com erciante, criando a arte das vitrines. "Nesses homens aí, escreve ele, nesses artesãos, existe um conceito de arte incontestável, ligado ao objetivo comercial, um fato plástico de ordem nova e equivalente às manifesta ções artísticas existentes, quaisquer que elas sejam "( 17). O artesão, com dedilhado de afi nador" tem a precisão de uma m áquina que se ignora. Ele possui o gênio do objeto e de sua entrada em valor. Há uma funcionalidade estética do com ércio que fascina Léger. Ela abala o preconceito comum relacionado à hierarquia das artes, que ele considera desde então caduco e prescrito. No entanto, a inconsciência do artesão a respeito da qualidade artística de seus trabalhos e exposições em vitrine — uma qualidade que concorre com a pintura — leva Léger a recolocar o problema do papel, próprio do artista, de iniciador e de media dor das novas formas de sensibilidade. Se, nas produções espontâneas da rua, produções artesanais, comerciais ou anônim as (automóveis, bicicletas, iluminação elétrica, publici dade, cartazes etc), há a matéria primeira de uma percepção máxima mas difusa da beleza e da mitologia modernas, o quadro permanece todavia objeto de uma percepção mediatizada e menos imediata, isto é, mais intensiva, da realidade. Ele é, escreverá Léger em 1939, uma realidade encerrada . Por volta de 1925, seus quadros tornam-se particularmente estáticos. Trata-se talvez do resgate da equivalência e do equilíbrio entre real e imaginado. Curiosamente também, o quadro é pensado por Léger, com o capaz de preparar as massas muito pouco cultas a aderir às form as plásticas de sua época, pois seu gosto levam-nas, infelizmente, na direção de uma pintura com assunto, historicamente ultrapassada. O quadro de equivalência toma-se um lugar de form ação estética, m as tam bém a cena de um recuo ligeiramente frio de Léger de suas posições positivistas e pedagógicas. A equivalência da qual o quadro é a escola visual e inteligível é de fato concebida com um imenso atraso com relação ao cinema. O cinema é o intermediário verdadeiro do tempo da máquina rainha. Léger trabalhou para o cinema: cenários geométricos para o filme de Marcei L Herbier 1'Inhum aine (1923); um cartaz para o filme de Abel Ganoe La R ou e, (1921), verdadeiro poema cinematográfico e hiper-realista do detalhe e do fragmento de objeto, em sua avaliação; 210
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Fernand Léger "B allet M écanique" 1924
um filme sem roteiro que é uma criação pessoal Ballet m écan iqu e (1924), do qual dirá que
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é possível considerar aí "a imagem móvel com o a personagem principal''*18*. "O Ballet mé-
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canique data da época que os arquitetos falaram de civilização maquinista. Há nessa épo ca um novo realismo que eu, pessoalmente, utilizei nos meus quadros e neste filme. Este filme é sobretudo a prova de que as máquinas e os fragmentos, que os objetos usuais, são possíveis e plásticos''*19*. Isso que Léger chama "ator objeto" ensina ao espectador a "ver o visível que só fazemos perceber em 80% dos casos (...) A personalidade dos objetos vem cada vez mais em primeiro plano". Diante deles, o homem se apaga e confia sua criatividade ao cinematógrafo para "regular seu advento"*20*. O objeto cercado e revelado pela câmera "concor re para o respeito da vida". O objeto por si mesmo é capaz de tornar-se uma coisa absolu ta, emocionante e trágica"*21 *. Com certeza, as intuições de Léger antecipam em quinze anos as teses de Walter Benjamin sobre a aclimação, pelo cinema, das massas à nova estrutura maquinista do mundo assim como aos choques da vida moderna. O cinema é o olho da civilização maquínica sobre o real, um olho técnico de que o espectador se apropria. Ne le, o espectador faz a experiência do real e da nova realidade sensorial e sensível do mun do mecanizado. Essa câmera é uma máquina que se alimenta disto que ela pode personifi car e revitalizar. Ela devolve uma aura à natureza esclerosada das coisas. O aparelho con duz o olhar e a percepção para uma nova natureza objetiva. O real se apresenta pela me diação de uma linguagem maquínica que é ela mesma uma cena de in(ter)venção do real. GÁVEA. 11 (11), abril 1994
Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger A escolha que a arte opera na matéria primeira do real é a outra tace do advento desse real. Em nome de um realismo de concepção, a vida é percebida por Léger como um cine ma. Vida cinética, rítmica, que só ela relata autenticamente a realidade moderna. O cine ma é como a glória formal e expressiva da civilização mecânica transformada numa se gunda natureza. Nunca Léger foi tão entusiasta e militante quanto a respeito de cinema. É até mesmo enfático, o que surpreende da parte de um hum anista; mas suas falas são mais retóricas do que literais em primeiro grau: ele fala efetivamente, na organização plástica dessa nova cena cinematográfica (e teatral), de um "material hum ano inteiramente novo que "seria tratado imperiosamente"! (22); de uma dimensão humana que até aqui era do minante e que desaparece"; que "o homem se torna um m ecanism o como o resto, (e que) de objetivo que ele era, transforma-se em um m eio"... M as essas fórmulas que podem pa recer cínicas (ou sinistras) à vista das tragédias por vir da história, participam no ponto principal das idéias reinantes sobre o teatro e o espetáculo nos grandes laboratórios da mo dernidade artística como a Bauhaus com as concepções de O skar Schlemmer e MoholyNagy sobre a abstração, a mecanização e a despersonalização. Trata-se de arrastar numa mesma dinâmica atores objetos e atores humanos. Em seu texto de 1924, intitulado "O espetáculo, luz, cor, imagem móvel, objeto-espetáculo", Léger afirma, desde a primeira frase, que ter de falar do espetáculo e encarar o mundo em todas suas manifestações visuais diárias"(23>. Este é o procedimento da vida, sua dimensão espetacular. A multiplicidade dos efeitos entrevistos torna necessá ria uma parada sobre esse imenso álbum fotográfico que é o mundo. Esta parada no espe táculo permite entregar-se a um modo de exercício visual agudo. Um primeiro grau de to mada de consciência visual implica essa parada quase fotográfica onde nosso olho interroga as coisas e os objetos em toda consciência. "Uma vida dura, seca, precisa, o micros cópio em toda coisa, o objeto, o indivíduo revistado, exam inado em todas as suas aparên cias, o tempo, a dimensão tomada a sério, o segundo e o milím etro (como) medida cor rente, uma tal corrida à perfeição que o gênio inventivo é levado a seus extremos limi tes ...'-"V Este é o material ao mesmo tempo bastante concreto e bastante abstrato que cons titui uma espécie de solo transcendental para a invenção estética. Nesse texto surpreendente, Léger deriva também para curtos momentos de sociologia: a loja, a rua comercial e ilumi nada suscitam um enfeitiçamento que faz dos consumidores vítimas, esta arte do espetá culo urbano exagerando na arte católica da persuasão sensível (uma referência, sem dúvi da, à estratégia de reconquista das almas pela Igreja Católica através de uma teatralização da liturgia, durante a Contra-Reform a...). São considerações empíricas mais sensatas que levam a crer que as análises de Walter Benjamin sobre a aura da mercadoria — constitutivas de uma arqueologia do capitalismo mercantil do século XIX —, coincidem necessariamente com a feição da época, a época de Léger e de Benjamin. Os passeios visio nários de Benjamin estão muito próximos da idéia de uma "rua considerada como uma das belas-artes"<25). Q vaior plástico absoluto do objeto usual resulta tanto de uma mu212
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STÉPHANHHUCHET tação da sociedade no domínio da moda, por exemplo, como do efeito quase educador do cinema sobre as sensibilidades. O cinema é o suporte de uma nova percepção do tecido e do movimento da vida. E Benjamin o dirá quinze anos mais tarde: ele adapta fisiologicamente as massas aos choques da vida moderna. Léger pensa, em termos longinquamente nietzscheanos, em uma revisão guerreira dos valores. A percepção difusa, manifesta, tri dimensional e mesmo quadrimensional (o tempo) dos novos valores plásticos é o objeto de uma percepção sintética no cinema. Este a condensa e enriquece de hiper-realismo, de hiperlucidez, de hiperverdade de que é portador. O cinema é o laboratório da nova sensi bilidade. Como diz Léger, ele "se enquadra no ritmo atual muito naturalmente"(26), até penetrar no tecido microscópico do real, o que é uma fidelidade total à verdade do fato fotográfico. Compreende-se agora, o quadro aparece muito retirado. Na medida em que é concebido, através de sua iconografia mecanista, como uma confirm ação analógica de um l i|»o de experiências perceptivas, sua imagem é sustentada por uma psicologia antes tradicional da percepção. A equivalência é um ponto teórico estabelecido entre o real e a sensibilidade perceptora. Léger investe-a em um papel antes pedagógico. Ela fica aquém dos valores de vanguarda encontrados no cinema. Sua estética da quintessência maqui nista, da iconicidade da máquina como modelo, sofre às vezes em razão do estatuto de mediação de que se encontra investida. No fim dos anos 30, talvez sob a influência da Frente Popular, Léger preconizará para o operário a freqüência da pintura, uma espécie de acul turação pictural, porque o quadro é um objeto de arte que tem mais ou menos unanimi dade, e ele inicia. O cinema é de fato o verdadeiro quadro vivo do mundo. Ele provoca e acelera o ritmo cotidiano. Qual é, portanto, o regime da representação no pensamento de Léger? A ima gem mecanomorfa não trai desejo algum de reabsorção no mundo, isto é, de morte da ar te ou de difusão do poderio da arte na vida com o nos construtivistas russos. Léger conti nua muito pedagógico. Trata-se para ele de dar a ver, politicamente populista mas sem fer mento da revolução. Ele pertence a uma espécie de linhagem intelectual francesa na refe rência a um suporte figurativo. A psicologia purista da percepção em Amédée Ozenfant e Le Corbusier, no começo dos anos 20, repousava na idéia de um teclado de sensações capazes de suscitar no indivíduo reações-tipos. Tem-se uma expressão importante dessa tendência estética pedagógica no livro que D. H. Kahnweiler, o célebre m arch an d dos cubistas, publicará em 1946 sobre Juan Gris. Ele antecipa uma teoria da escrita figurativa que se ajusta ao espírito das obras de Léger. Kahnweiler julga que "os homens sempre encon traram, na pintura e na escultura de seu tempo, uma representação exata de mundo exte rior"*^). Posição pouco original. Mas, continua Kahnweiler, "só o homem que está fa
miliarizado com a pintura de seu tempo vê na verdade plenamente
O quadro faz ver
o real e o renova. "Não são os pintores que imitam um mundo exterior do qual só temos conhecimento muito vagamente, no limite de nossos sentidos: são eles que criam este mundo G Á V EA . 11 (11). abril 1994
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Do Quadro ao Cinema: a Equivalência da Arte e do Mundo Segundo Fernand Léger (...) são eles que o fazem ver parecendo com suas obras (- 9). Com esses emblemas gráfi cos" que "armazenou na sua im aginação" é que o espectador" constitui seu mundo ex terior"... <30>. Esta é a "função biológica da pintura". Kahnw eiler afirma portanto que "a velha tese da arte plástica espelho do mundo precisa ser invertida: é o mundo exterior que é o espelho da arte plástica"(31>. Kahnweiler pensa em termos de "escrita", ou de pictografia, ou de ideo-grafia esta interdependência da pintura e do mundo, esta constituição visual ou fenomenológica do mundo nas formas plásticas. Há em Léger uma A isthèsis da qual poder-se-ia tomar emprestada a defini ção de Hubert Damisch: "ela fornece (...) a base sistemática em relação à qual (as expe riências plásticas) compõem-se e ganham um sentido, um alcance histórico ,331. Esta Ais thèsis representa assim uma produtividade geral assentada sobre, e assentando uma figurabilidade da realidade. Além disso, existe semelhança entre a figura e a coisa significada. O quadro estabelece, como correlato da figurabilidade do mundo, uma legibilidade da ima gem. Paradigma da escrita ainda. E preciso ler o quadro com o uma proposição. As ima gens estão aí com vistas a um sentido. O Ver articula-se a um Saber. O trabalho do "realis mo de concepção" está na articulação do dizer com o percebido. Discurso-Figura: modelo do signo e do pensamento verbal... E por essa razão que o estético espontâneo de Fernand Léger é clássico, mes mo se sua poética iconográfica está à procura das intensidades modernas. Ela é uma mis tura de positivismo, de sensualismo e de lirismo. Mas ela visa a uma forma de apresenta ção sensível dos esquemas estruturais constituindo a plasticidade de sua época. Como es creveu Hubert Damisch, os gestos de indicação e de designação "inscrevem-se no contexto de um espetáculo (...) um espetáculo regido pela fala e inteiramente implicado no circuito de uma comunicação..."(33). O s quadros de Léger são com o ícones equilibrados, aos quais poder-se-ia quase, em termos kantianos, cham ar de uma beleza aderente. Ela se concentra na apre sentação de uma idéia-tipo ou de um modelo ideal que é a civilização maquínica: um no vo corpo orgânico. Léger proclama a liberdade poética dos elementos materiais e composicionais da pintura, mas ele reduz sua visão estética ao nível de uma teoria da mímesis (exceto no cinema). Sua idéia da equivalência comporta uma visão de um porvir aerodi nâmico, mas ela mantém a arte em um horizonte separado. A imagem e a iconografia or denam uma parada, preconizada por ela mesma, nos constituintes plásticos da vida mo derna em todas suas dimensões. Mas, nada além de uma parada, uma suspensão do curso das coisas. Seu entusiasmo pelo cinema bem prova o quanto ele tinha consciência de que a verdade residia nesse ritmo cinematográfico louco que o quadro fixa. Ele não ficou de fora desse élan comum aos artistas de todos os horizontes internacionais dos anos 1920. A razão estética e social do construtivismo russo era edificar um Adão -standard. Léger só é um eco fraco disso, mas consciente de que seu alicerce repousa não mais "na técnica da natureza (Kant), mas na natureza da técnica"... A técnica como nosso destino. 214
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NE HUCHET Notas (1 ) Citado por WILLETT, John. The New Sobriety. Arts and Politcs in the Weimar Period. (1917-1933). Londres. Thames and Hudson, 1978, (p. 31). ( 2 ) CENDRARS, Blaise. J'ai tué. Paris, A La Belle Edition, 1918. Ilustrado com 5 dese nhos de Fernand Léger. ( 3 ) GREENBERG, Clement. Art and Culture. Beacon Press, Boston, 1961. (4 ) LÉGER, Fernand. "Lésthétique de la machine: 1'objet fabriqué, lartisan et Partiste", Bulletin de 1‘Effort M odeme. Paris, 1924, in Fonctions de la peinture, Paris, Denoèl, 1984. (p. 62). ( 5 ) Citado por NERET, Gilles. Léger. Paris, Éditions Casterman, 1990. (p. 66). ( 6 ) LÉGER. Fernand. "Lesthétique de la machine: 1'ordre géométrique et le vrai", Pro. pos dartistes. Paris, í$25, in Fonctions de la peinture. op. cit. (p. 66). ( 7 ) Citado por NERET, Gilles. Léger, op. cit. (p. 81). ( 8 ) LÉGER, Fernand. "Les origines de la peinture et sa valeur représentative", Montjoie. Paris, 1913, in Fonctions de la peinture, op. cit., (p. 16). ( 9 ) lb id ..( pp.18-19). (10) Citado por GARAUDY, Roger. Pour un réalisme du XXè siècle, dialogue posthume avec Fernand Léger. Paris, Grasset, 1968. (11) SEROUYA, Henri. "Philosophie du futurisme", La vie des Lettres et des Arts. Paris, outubro 1924, nV 18. M. V. JANKÉLÉV1TCH, estudo sobre Bergson..., La Revue Philosophique. Paris, maio-junho 1924. Reproduzido in LISTA, Giovanni. "Dossier: le futurisme et le cubo-futurisme". Cahiers du Musée National dArt M odeme, Centre Georges Pompidou, Paris (pp. 483-484). (12) LÉGER, Fernand. "Notes sur la vie plastique actuelle", Kunstblatt. Berlim, 1923, in Fonctions de la peinture. op. cit., (p. 47). (13) ______ . "...1'ordre géométrique et le vrai", art. cit., in op. cit. (p. 63). (14) ______ . "Note sur la vie plastique...", art. cit., in Ibid. (p. 48). (15) ______ . "Les réalisations picturales actuelles", Soirées de Paris, 1914, in Ibid. (p. 21). (16) ______ . "...1'ordre géométrique..." art. cit., in Ibid., (p. 65). (17) ______ ."Lesthétique de la machine: 1'objet fabriqué..." art. cit., in Ibid. (p. 57). (18) ______ . "Autour du Ballet Mécanique", in Ibid., (p. 165). (19) Ibid. (p. 164). (20) ______ . "Le ballet-spectacle, l'object-spectacle", B u lletin d e I E ffort M o d em e. Paris, 1925, in Ibid, (p. 146). (21) ______ . "...1'ordre géométrique..." art. cit., in Ibid., (p. 67). (22) ______ . "A propos du cinéma", Cahiers dArt. Paris, 1933, in Ibid., (p. 170). E "Le ballet-spectacle,..." art. cit. (pp. 144-145). (23) ______ . "Le spectacle: lumière, couleur, image mobile, objet-spectacle", Bulletin de 1'Effort M odeme. Paris, 1924, in Ibid., (p. 131). (24) Ibid. (p. 134). (25) ______ . "La rue: objets, spectacles", Cahiers de la République des Lettres. Paris, 1928, in Ibid., (p. 68). (26) ______ . "A propos du cinéma", in Ibid., (p. 168). (27) KAHNWEILER, Daniel Henri. ]uan Cris, sa vie, son oeuvre, ses écrits. Paris, Gallimard, 1946, (p. 102). (28) Ibid. (p. 103). (29) Ibid. (30) Ibid. (p. 93). (31) Ibid. (p. 107). (32) DAMISCH, Hubert. Théorie du nuage. Pour une histoire de la peinture. Paris, Éditions du Seuil, 1972. (p. 211). (33) Ibid. (p. 137).
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NÚMEROS PUBLICADOS
ALBERTINA M. CARVALHO Ambiguidade: O Enigma de Volpi. ELIZABETH CARBONE BAEZ A Academia e seus Modelos. LÍDIA VAGC Iberê Camargo: Pulsào e Estrutura. MARIA CRISTINA BURLAMAQU1 Lygia Clark: A Dissolução do Objeto. VANDA MANGIA KLABIN A Questão das Idéias Construtivas no Brasil: O Momento Concretista. ISABEL ROCHA Arquitetura Rural do Vale do Paraíba Fluminense no século XIX. ANNA MARIA M. DE CARVALHO A Espacialidade do Passeio Público de Mestre Valentim. CEORGES DUBY O Nascimento do Prazer da Arte. JOSEPH RYKWERK A Nefasta Influência dos Arquitetos Bouliée e Durand sobre a Arquitetura Moderna. ROSALIND KRAUS A Escultura no Campo Ampliado. HUBERT DAMISCH Oito Teses a favor (ou contra) uma Semiologia da Pintura.
SON1A ROTBERG A Abstração Geométrica na Obra de Milton Dacosta. CARLOS ZILIO Quem deu Asas a Imaginação ou a Propósito de Santos Dumont. EDUARDO JARDIM DE MORAES Notas sobre a Contribuição de Weber para a Definição de uma História e de uma Sociologia da Arte. JORGE CZAJKOWSKI Arquitetura Brasileira: Produção e Crítica. COLIN ROWE (com ROBERT SLUTZKY) Transparência: Literal e Fenomenal. MYRIAM ANDRADE RIBEIRO DE OLIVEIRA A Arquitetura e as Artes Plásticas no Século XVIII brasileiro. REYNALDO ROELS JUNIOR Mutações da Arte na Modernidade. CARL E. SCHORSKE Mabler e Klimt: Experiência Social e Evolução Artística. GIULIO CARIO ARGAN Calder. RONALDO BRITO Possibilidade de Pintura: Dois Exemplos. KENNETH BAKER Um Uso para o Belo.
LUIZ FERNANDO FRANCO Warchavchik e a Arquitetura. MARIA LU1SA LUZ TAVORA O Concurso de Fachadas de 1904 no Rio de Janeiro. ENTREVISTA Lúcio Costa sobre Aleijadinho. RODRIGO NAVES O olhar difuso. Notas sobre a visualidade brasileira. KATIA MURICY Tradição e barbárie em Walter Benjamim. HAROLD ROSENBERG Willem de Kooning. CLEMENT GREENBERG Depois do expressionismo abstrato. EUGENIO DORS O Paraíso Perdido.
SHEILA CABO GERALDO Barrio - A Morte da Arte como Totalidade. WASHINGTON DIAS LESSA Design e Estilo. BERENICE CAVALCANTE Etiqueta, Estética e Poder: a Cultura do Barroco. MARGARIDA M. RODRIGUEZ RAMOS Elementos do Barroco Italiano na Talha Joanina. SONIA MARIA GONÇALVES SIQUEIRA A Teatralidade no Barroco Religioso Brasileiro. FRANÇOIS LYOTARD Barnett Newman - O Instante. JACQUES HENRIC Barnett Newman - Com Deus sob a Gramática. PHILIPPE JUNOD O Futuro no Passado.
PAULO VENÁNCIO FILHO Os Retratos dos Imperadores. VIVIANE FURTADO MATESCO Hélio Oiticica: A Questão da Estrutura-Cor. BERNADETE DIAS CAVALCANTI O Orientalismo no Século XIX e a Obra de Pedro Américo. MARGARIDA DE SOUZA NEVES As "Arenas Pacíficas". MARIA LUISA LUZ TÁVORA A Gravura Brasileira - Anos 50/60. ERNST GOMBRICH Hegel e a História da Arte. MEYER SCHAPIRO Coubet e as Imagens Populares.
1 GLÓRIA FERREIRA £bóirl$gem Crítica da Escultura de Amílcar de Castro. N1AR1AEQUARDA MAGALHÃES MARQUES Goeldi e a Cena Urbana Moderna. VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA Lasar Sega!!: A Doçura do Conhecimento Solidário. RICARDO BASBAUM Pintura dos Anos 80: Algumas Observações. MARIA ANGÉUCA DA SILVA De Wright a Pollock. LUIZ ESPERLLAGAS GIMENEZ Gaudi - Sistemas Conceituais Marginais. YVE-ALA1N BOIS Historização ou Intenção: O Retomo de um Velho Debate. HANS-GEORG GADAMER A Imagem Emudecida. CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE E ARQUITETURA NO BRASIL DA PUC RJ Breves Relatórios.
ROBERTO CONDURU A Pólvora e o Nanquim. MARIA HELENA DE CARVALHAL JUNQUEIRA A Pintura Profana no Rio de Janeiro Setecentista. EL1ZABETH CARBONE BAEZ A Pintura Religiosa e o Universo Colonial. MARTA QUEIROGA AMOROSO ANASTACIO Arquitetura Civil no Rio de Janeiro Setecentista. ANNA MARIA F. MONTEIRO DE CARVALHO O Passeio Público e o Chafariz das Marrecas de Mestre Valentim. SUELY DE GODOY WEISZ Um Estudo da Imaginária Setecentista Carioca. VERA REGINA LEMOS FORMAN Dois Mestres Imaginários: Simâo da Cunha e Pedro da Cunha. CLAUDIA MORENO DE PAOLI LUIZ ANTONIO LOPES DE SOUZA Do Rio de Janeiro no Século XV1I1. Um Olhar sobre a Arquitetura Religiosa. ANA MARIA MESQUITA Azulejaria Setecentista no Rio de Janeiro. HELOÍSA MAGALHÃES DUNCAN A Talha Religiosa da Igreja do Mosteiro de Sào Bento. MARIA EDUARDA CASTRO MAGALHÃES MARQUES VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA A História da Construção da Capital.
MARGARETH DA SILVA PEREIRA A Arquitetura Brasileira e o Mito. ILEANA PRAD1LLA CERÓN Castagneto: O Jogo do Ambíguo. TITO MARQUES PALME1RO A Estética de Kant. ROBERTO CONDURU "O País Inventado" de Antonio Dias. GERD A. BORNHEIM Introdução à Leitura de Winckelmann. NOEMI SILVA RIBEIRO A Obra Gráfica de Goeldi. O Esboço de uma Cronologia. BERNARD BLISTÈNE Fontana: O Heliotrópio Contemporâneo. ENTREVISTA Anselm Kiefer - Pintar como Feito Heróico.
LUIZ CAMELO OSÓRIO DE ALMEIDA A Estética Romântica e Joseph Beuys. ANNATERESA FABRIS A Parábola do Semeador. JOÃO MASAO KAM1TA Mira Schendel: O Desafio do Visível. CECÍLIA COTRIM MARTINS DE MELLO Goeldi e Iberê: Romantismo e Atualidade. DAVID CURY Reverso Ser no Contemporâneo (arte conceituai, body art, land art). LUIZ COSTA LIMA O Controle do Imaginário e a Literatura Comparada. ELIANNE ANDRÉA CANETTIJOBIM O Risco e o Olhar: Sobre a Imagem da Cidade do Rio de Janeiro. ALAN COLQUHOUN Racionalismo: Um Conceito Filosófico na Arquitetura.
RONALDO BRITO O jeitinho moderno brasileiro. KATIA MURICY Machado de Assis, um Intempestivo? JORGE CZAJKOWSKI A Arquitetura Racionalista e a Tradição Brasileira. CARLOS ZILIO O Centro na Margem. ANNA MARIA FAUSTO MONTEIRO DE CARVALHO A Madeira como Arte e Fato. ANTONIO EDMILSON MARTINS RODRIGUES O Ato de Descobrir ou a Fundação de um "Novo Mundo JOSÉ THOMAZ BRUM Arte e Ascese em Schopenhauer. HUBERT DAM1SCH A Astúcia do Quadro.
O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação lato sensu, foi formado há 13 anos. O Curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira aprendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar.
Coordenador Acadêmico Carlos Zilio
Professores
Anna Maria Monteiro de Carvalho Antonio Edmilson M. Rodrigues Carlos Zilio Fernando Cocchiarale João Masao Kamita Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Margareth da Silva Pereira Roberto Conduru Ronaldo Brito