Revista Gávea - 2ª Edição

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Revista de História da Arte e Arquitetura

GÁVEA Sonia Rotberg

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A abstração geométrica na obra de Milton Dacosta

Carlos Zilio

Quem deu asas à imaginação ou a propósito de Santos Dumont

Eduardo Jardim de Moraes

Notas sobre a contribuição de Weber para a definição de uma história e de uma sociologia da arte

Jorge Czajkowski

Arquitetura brasileira: produção e critica

Colin Rowe (com Robert Slutzky)

Transparência: literal efenomenal

Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

A arquitetura e as artes plásticas no Século XVIII brasileiro

Reynaldo Roels Junior

Mutações da arte na modernidade

Carl E. Schorske

Mahler e Klimt: experiência social e evolução artística

Giulio Cario Argan

Calder

Ronaldo Brito

Possibilidades de pintura: dois exemplos

Kenneth Baker

Um uso para o belo


GAVEA EDITOR RESPONSÁ VEL Carlos Zilio CONSELHO EDITORIAL Candace Albertal Lessa Gustavo Meyer Jorge Czajkowski (professor de Arquitetura no Brasil) Margarida de Souza Neves (<diretora Dept. de História) Maria Cristina Burlamaqui Reynaldo Roels Junior Ricardo Benzaquem de Araújo (professor Dept. de História) Ronaldo Brito (professor de A rte Moderna) Vanda Mangia Klabin Wilson Coutinho (professor de Estética)

GÁVEA — revista semestral do Curso de Especialização em História da A rtee Arquitetura no Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Departamento de História e Coordenação de Cursos de Extensão A correspondência relativa à revista deverá ser endereçada a: Carlos Zilio. Editor Responsável, Revista.GÁVEA. Rua Marquês de São Vicente. 225. casa XV. Gávea. Rio de Janeiro. CEP 22453. O partido gráfico da revista Gávea é baseado na revista October Setembro de 1985

REVISÃO TIPOGRÁFICA Claudia Maria Brum Arruda PRO G RAM AÇ ÃO VISUAL Diter Stein A R TE H N A L C. R. Henriques

Apoio Cultural Bittencourt S.A.


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Sonia Rotberg

A abstração geométrica na obra de Milton Dacosta

Carlos Zilio

Quem deu asas à imaginação ou a propósito de Santos Dumont

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Eduardo Jardim de Moraes

Notas sobre a contribuição de Weber para a definição de uma história e de uma sociologia da arte

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Jorge Czajkowski

Arquitetura brasileira: produção e crítica

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Colin Rowe (com Robert Slutzky)

Transparência: literal e fenomenal

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Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira

A arquitetura e as artes plásticas no Século X V III brasileiro

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Reynaldo Roels Junior

Mutações da arte na modernidade

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Carl E. Schorske

Mahler e Klimt: experiência social e evolução artística

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Giulio Cario Argan

Calder

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Ronaldo Brito

Possibilidades de pintura: dois exemplos

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Kenneth Baker

Um uso para o belo

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Apresentação

CARLOS ZIUO

Este número de Gávea demarcará mais precisamente a experiência que vem sendo desenvolvida pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Enquanto os artigos do primeiro número foram ex­ clusivamente de alunos, o atual possui uma presença maior do corpo docente. Assim, o universo das questões trabalhadas pelo Curso ganham uma expres­ são mais ampla. Com o segundo número, Gávea procura manter a coerência da sua inser­ ção na universidade, tendo um duplo referencial: tratar a História da Arte e da Arquitetura como portadoras de um saber específico e, ainda, considerá-las dentro de um campo interdisciplinar. Nossa intenção é que esta reflexão ganhe alguma ressonância e que este segundo número traga elementos ca­ pazes de aprofundar o debate cultural.



A abstração geométrica na obra de Milton Dacosta

SONIA ROTBERG

A chamada fase dos “ castelos” , das “ cidades” , dos “ quadrados” ou de “ abstração geométrica” aparece num dos mais ricos momentos da história da arte no Brasil e re­ presenta uma contribuição relevante para a arte construtiva brasileira. Tendo ocorrido na década de 50, período em que o concretismo e o neoconcretismo foram sem dúvida os fatos artísticos de maior repercussão e questionamento, ela foi produzida à margem desses dois pólos, uma vez que o artista não se engajara em nenhuma dessas vertentes do construtivismo, e significou uma resposta muito pessoal à intensa motivação da época. A euforia da política desenvolvimentista do pós-guerra tomara conta da nação, a ins­ talação de unidades industriais, a exemplo da indústria automobilística, transformou-se em foco de irradiação de padrões modernos de consumo e produção e justificava a neces­ sidade crescente de tecnologia. As cidades brasileiras refletiam essa situação e o fenômeno da metropolização ultrapassa o Rio de Janeiro e São Paulo atingindo outras capitais. Essa situação provocou um estímulo novo em nosso meio artístico e cultural, cabendo especial importância à arquitetura brasileira, que desempenhava papel preponderante no campo estético. Surgiu então uma reação à arte subjetiva e expressiva do modernismo brasileiro manifesta através de uma necessidade de ordem e disciplina, uma “ vontade de construir” , que acarretou uma singular mudança de sensibilidade de nosso meio artístico. Comentando a exposição brasileira itinerante apresentada em Viena, no ano de 1959, da qual participaram, entre outros, Volpi, Dacosta, Lygia Clark, Dério Vieira e Serpa, o crítico Jorge Lampe afirma que o domínio da abstração geométrica na produção artística brasileira tem raízes profundas na realidade de nosso país e chama a atenção para o seu tempo de duração, resistindo à “ moda” internacional, uma vez que na Europa e nos Es­ tados Unidos predominava o abstracionismo lírico. Ele vê nas obras daqueles artistas “ uma vontade profunda de construir que se posicionava paralelamente à arquitetura brasileira, então em pleno apogeu” 1. Em depoimento a Frederico de Morais, Milton Dacosta reconheceu: “ Aquela fase dos quadrados significou a necessidade de uma certa disciplina... Naquele tempo, acredito, era um jeito, um modo de ser” 2. Não terá sido, portanto, mera coincidência a manifes­ tação da necessidade de maior ordem e disciplina justamente nesta época, a ponto de fazer


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o artista substituir a temática da figura humana por uma linguagem geométrica abstrata. Não se pode, contudo, deixar de registrar que nas fases anteriores Milton Dacosta já vinha manifestando esse espírito de renovação e essa vontade de construir através da crescente abstração de suas figuras. Para ele, diz Mario Pedrosa no jornal Correio da Manhã, em dezembro de 1950, “ o modernismo já veio como tradição” . N o contexto da arte moderna no Brasil, de um ponto de vista mais geral, Milton Dacosta é situável na geração que já se ocupava em debater as questões inerentes ao próprio campo da arte. Não mais constituía preocupação a busca da identidade nacional ou o desejo de imprimir à cultura nacional o sentido de brasilidade e/ou ligação com pro­ blemas sociais, traços distintivos das gerações anteriores. É possível realmente dizer que Milton Dacosta partiu do cubismo, após rápida passagem por Cézanne, e que ele seguiu uma tendência crescente a dar ás suas figuras valor universal, compondo-as em sínteses geométricas de ‘‘forte potência generalizadora” . O espaço na obra de Milton Dacosta Segundo G. Cario Argan \ a concepção de espaço na primeira metade do século XX seria, a rigor, definida entre dois pólos, representados por Morandi e Mondrian; e, se tivesse que ser concebido em triângulo, o terceiro vértice seria Klee, com a introdução da dimensão do profundo, do inconsciente. Dentro desse quadro, ao se tentar explicar a concepção de espaço no conjunto da obra de Milton Dacosta, ela talvez seja situável entre Morandi e Klee, apoiada no cubismo, tomada como o solo do percurso entre esses dois pólos. Na fase dos “castelos” , todavia, introduz-se um outro elemento, de caráter ambíguo, representado pela influência de Mondrian. Esta se faz sentir na divisão das linhas dentro do esquema horizontal-vertical e no dinamismo dos planos coloridos, os quais, entretanto, ao invés de irradiarem para o es­ paço como acontece em Mondrian, ficam contidos na atmosfera estática e subjetiva dos fundos sempre em tons escuros. Seria como se a objetividade e a clareza de Mondrian vies­ sem misturadas à atmosfera de Morandi e á poética de Klee. Delineiam-se, pois, nesse momento as matrizes teóricas de maior influência na obra de Milton Dacosta: o cubismo, a metafísica de De Chirico e Morandi, Klee e, de maneira ambígua, na fase dos “castelos” , Mondrian. O cubismo está presente na obra de Milton Dacosta através de seus princípios básicos, sobretudo como determinante de suas formas. Estas são construídas racionalmente, num espaço concreto ao qual se integram e rela­ cionam, correspondendo analítica ou sinteticamente aos vários pontos de vista do obser­ vador. Essa multiplicidade de pontos de vista traz a inclusão do fator “ tempo” , uma vez que esse tipo de observação implica sucessão e, não, simultaneidade, só podendo se rea­ lizar no decorrer de um período. Natureza ou objeto são reduzidos a seus elementos essen­ ciais, despojados de tudo o que é supérfluo, podendo chegar ao grau de abstração ocorrido na fase dos “ castelos” . Do cubismo Milton Dacosta captou também a liberdade em reor­ ganizar a figura humana, a determinação de construí-la. Não obstante o figurativismo praticamente constante na sua obra, essas figuras sempre foram, de certo modo, abstratas. Mas o cubismo nunca lhe bastou. “ Esse caçula de Picasso é cada vez mais atraído pela solidez das formas italianas” , diz Mario Pedrosa no jonal acima citado. E, à seme-


Giorgio Morandi, Natureza Morta,

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lhança de tantos outros artistas, Milton Dacosta fez uso criativo da herança cubista, usan­ do seus métodos para fins expressivos. Na pintura metafísica, e sobretudo em Morandi, buscou “ esse espaço que pertence ao mesmo tempo à natureza e à consciência, que não se dá como construção hipotética de uma espacialidade universal mas como espaço vivido e amalgamado com o tempo da existência” \ Tanto Morandi quanto Mondrian partem, embora em direções opostas, do postulado cezanniano, istoé, de que “ o espaço é a realidade tal como é experimentada pela consciência e esta não é total se não unifica o objeto com o sujeito da experiência” \ O espaço morandiano não visa chegar a um conceito, mas parte dele, da perspectiva euclidiana, do espaço teórico e “ chega ao espaço concreto da unidade ambiental” . Mondrian parte do espaço empírico, do ambiente, e chega a um espaço teórico. Enquanto De Chírico destruía a perspectiva euclidiana, colocando-a como significante do Vazio, enquanto o cubismo destruía essa mesma perspectiva, concretizando o espaço através de planos geométricos trazidos para a superfície do quadro, Milton Dacosta atua à semelhança de Morandi. Ouçamos Argan a esse respeito:“ Tudose dá por relação... E as relações se determinam no transcurso da experiência vivida da pintura: o significado dos valores muda sempre porque a experiência é vida e a vida é sempre diferente” \ Só por es­ se caminho encontra-se explicação para a espécie de lirismo característica da obra de Mil­ ton Dacosta. E, finalmente, afastando-se do conceito de “ realidade constante” de Mondrian, segundo o qual a realidade é subtraída à sensação e imobilizada no espaço e no tempo, Mil­ ton Dacosta aproxima-se de Klee, do seu conceito de que a realidade é submetida a uma variação contínua pela “ experiência dos atos, dos sentimentos, das percepções, englobando toda atividade do artista: racional e irracional, visual e psíquica” 4. Essa variação contínua da realidade que, na obra de Klee, se manifesta tanto por uma ininterrupta criação de for­ mas como pela interpretação da essência do homem, aparece em Dacosta como uma cons­ tante recriação da figura humana e, excepcionalmente, no momento de abstração radical, por uma linguagem puramente geométrica. Ainda ao nível teórico, existem na obra de Dacosta vários elementos que a enqua-


Milton Dacosta, Construção Abstrata Sobre Fundo Vermelho, óleo sobre tela, 72 x 91 cm. Coleção Manchete

dram dentro dos princípios enunciados por Klee em sua Teoria da Arte Moderna. Assim, na página 34, o artista suíço diz: “ O domínio gráfico, pela própria natureza, empurra facilmente para a abstração...'’ “ Quanto mais puro o trabalho gráfico, quanto mais im­ portância é dada às bases formais de uma representação gráfica, mais se diminui o aparelho próprio à representação realista das aparências.” Sobre Milton Dacosta, diz Mario Pedrosa: “ À medida que ele apura sua maestria linear começa a recriar a figura humana no sentido de tomá-la universal, empurrando-a para a abstração” 5. Ainda podem ser vislumbrados elementos de outros conceitos de Klee, como, por exemplo, quando “ detecta a tendência entre artistas jovens á cultura dos meios plásticos: sua cultura seletiva e seu emprego em estado puro” ; ou quando afirma que a obra está acima da lei porque, mesmo sendo uma coisa acabada, dentro de sua finitude, tem algo de imponderável; ou ainda quando afirma que “ as realidades da arte não reproduzem o visível


Abstração geométrica em Dacosta

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com mais ou menos temperamentos, mas tornam visível uma visão secreta” 6. Nada melhor do que este último conceito para estender a ligação Klee - Milton Dacosta à fi­ losofia de Merleau-Ponty. Para finalizar a análise do relacionamento entre a obra do artista brasileiro e as suas matrizes teóricas coloca-se a questão do construtivismo. A partir do momento em que a arte passa a ser encarada como uma forma autônoma do conhecimento, o que ocorreu após o rompimento com o espaço renascentista, a partir de Cézanne e do cubismo, ela tende para a abstração. E essa abstração corresponde à independência do trabalho de arte frente à realidade empírica. Enquanto algumas correntes abstratas se dirigiram para o sensível, para o lirismo, o construtivismo encaminhou-se para a razão, buscando integrar a arte à ciência e à tecnologia e participar das transformações sociais. O construtivismo em Milton Dacosta, no entanto, parece seguir em direção oposta. Até certo ponto, ele acompanha a posição de Picasso quando, ao criticar o construtivismo, dizia que este, ao invés de buscar a estrutura na razão, ‘‘deveria buscar a verdadeira esMilton Dacosta, Construção Sobre Fundo Preto, 1955, óleo sobre tela, 1,20 x 1.60 cm. Coleção Alexandre Franco Dacosta


Paul Klee, Lugar Eleito (1927)

trutura do ser no irracional” . E se o irracional se dá como imagem, a forma não pode ser mais que a estrutura da imagem. ...“ Quando Picasso decompõe a figura humana, as diversas faces da figura revelam diversas ‘verdades’ distintas. É, pois, a ambigüidade, a contradição interna, a que deforma e decompõe a figura e a reconstrói segundo sua ver­ dadeira e intrínseca estrutura” \ É válido até imaginar que a ambigüidade do ser humano, como tema da maior parte da obra de Dacosta, vai ao encontro de sua necessidade de liberdade de criação, de cons­ trução e, ao mesmo tempo, lhe permite dar vazão a seu lirismo, permite o diálogo cons­ tante entre o “ intuir e o construir” . O construtivismo de Milton Dacosta manifesta-se portanto na disposição consciente de transmitir o seu contato com o mundo, sua vivência como homem no mundo. A fase dos “castelos Milton Dacosta vinha se desenvolvendo, como vimos, dentro do pensamento construtivista e sem dúvida vivenciou, na década de 50, aqueles fatores que determinaram o aparecimento do concretismo e neoconcretismo e toda aquela singular sensibilização de nosso meio artístico. Aceitando a arte como uma forma do conhecimento, que, por ser universal, é necessariamente abstrato, ele chega á fase das naturezas-mortas que se pres­ tavam a variações plásticas mais ousadas: a decomposição dos objetos em planos aos quais passou a imprimir ritmo. É interessante constatar o avanço de Milton Dacosta do cubismo para a abstração


Abstração geométrica em Dacosta

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geométrica através de algumas naturezas-mortas: em 1949, um trabalho francamente cubista em que objetos, ainda figurativos, se relacionam com os planos sendo por eles delimitados e onde o ponto de vista do observador pode estar em cima ou de lado; em 1954/1955, uma de suas obras primas, Natureza Morta.sobre Trilhos, na qual os objetos já aparecem decompostos e arrumados em planos para obter uma sucessão rítmica. Essa sucessão rítmica é precursora da série seguinte, a dos “ castelos” ou “ cidades” , que tam­ bém podem ser considerados naturezas-mortas porque guardam um certo figurativismo. Talvez seja viável aqui apontar a influência de nossa arquitetura, então em pleno apogeu. Ao ritmo se sucede o jogo ótico, até aí nunca empregado por Milton Dacosta. Com isto, ele tangencia o concretismo na assimilação das inovações da linguagem visual desen­ volvidas na Europa, sobretudo por Mondrian e, mais tarde, por Max Bill e o grupo de Ulm. A presença de Mondrian é identificada no dinamismo dos pequenos planos de cor ordenados segundo os princípios de inter-relacionamento das cores: valor cromático X extensão. Contudo, essa presença aparece como um elemento ambíguo na totalidade do quadro porque, enquanto Mondrian usa esses princípios para alcançar o plano, que é o seu marco-zero, Dacosta tira dele uma certa impressão de profundidade. No seu quadro ficam ainda mais ou menos caracterizados figura e fundo. Mondrian constrói racionalmente o espaço, cristalizando apenas o momento da percepção, “ o aqui e agora” . Dacosta vive a realidade como uma totalidade, com todas as suas implicações e indefinições. É o próprio Dacosta quem fala a respeito: “ Pode parecer curioso ou inacreditável,

Piet Mondrian, Victory Boogie Woogie (1943-44) inacabado; óleo sobre tela, fita adesiva e papel colado, diagonal, 1,78 x 1,78 cm. Coleção Burton Tremaine, N. York


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mas não fui levado ao rigor do construtivismo abstrato em obediência à arte desse ou daquele mestre europeu, fosse Kandinsky, Mondrian ou Malevitch. Quer dizer, não obedeci inicialmente a uma influência deliberada, do ponto de vista conceptual” . E, a res­ peito de implicações psicológicas em sua obra, diz o artista: “ Quando eu os realizei não tinha ainda a consciência dessas implicações psicológicas. Só mais tarde vim a saber que as minhas construções constituíam representações de figuras residuais da mente humana, não sendo apenas meras composições ordenadas pela razão” 1 (o grifo é nosso). A atmosfera dos quadros remete a Klee e Morandi: o Klee que durante, anos participou da Bauhaus, jamais abandonando, entretanto, a imaginação e a subjetividade, considerando a arte como o símbolo de criação assim como a terra o era do cosmos; o poético Morandi dos fundos densos e de cores evocativas. Propositadamente deixou-se a análise da cor para a etapa final do texto. A cor em Dacosta é pensada para dar conteúdo à forma, para imprimir a necessidade de contem­ plação, para que o olhar nela se prolongue. Realmente, parece haver, no caso, uma con­ tradição entre o desenho e a pintura. O desenho é audacioso, de grande virtuosismo e precisão estilística; a cor é íntima, silenciosa, transmite a sensação de pureza. Segundo Mario Pedrosa, ele prefere “ os contrastes das largas áreas adjacentes, à la Matisse. Mas um Matisse em escala menor de ocres e terras... um Matisse italiano, isto é, de tratamen­ to mais castigado da cor...” Do acima exposto deduz-se que, na fase dos “ castelos” , Milton Dacosta trata a cor tanto racional quanto imaginariamente: racionalmente através dos dados do conhecimento adquiridos no estágio em que se encontrava a história da arte, jogando com a percepção simultânea das cores e dela tirando os efeitos desejados, inclusive perspectivísticos; imaginariamente através das tonalidades obtidas, amortecidas propositadamente, e na sua distribuição não só em faixas estreitas horizontais, representando o solo onde se equili­ bram as construções, como em chapadas amplas que funcionam como a atmosfera, o universo onde se projetam essas construções. Os materiais da pintura se integram, compõem o todo da sua obra, não só fisicamen­ te, materialmente, como filosoficamente. Para ele os materiais não são coisas mortas: se eles não reagem, não colaboram, a obra não vive. Assim é que o próprio artista prepara as telas e na sua pintura entra a crença no poder de transformação do óleo, sujeito ao tempo. A “ pintura que fica” , aquela que reage à própria vida, é obtida depois que a tela é deixada para “ amadurecer num canto do atelier” 8. O pensamento filosófico de Merleau-Ponty, embora não enunciado claramente, está subjacente à análise até agora feita sobre a obra de Milton Dacosta. A identidade substan­ cial entre o artista e o mundo corresponde ao SER primordial, o que Merleau-Ponty chama CARNE, do qual o sujeito e o mundo são diferenciações resultantes de uma fissura, sem que tenha ocorrido a total separação das partes e entre as quais mantém-se uma re­ lação de reversibilidade. Atuando no campo da percepção e transformando o fenômeno da visibilidade em sím­ bolo, a pintura, para Merleau-Ponty, é a operação que dá acesso ao SER. Por este aspecto Milton Dacosta foi visto neste trabalho. O seu espaço foi considerado, ao mesmo tempo, racional e expressivo, correspondendo ao homem em sua totalidade, mergulhado no mun­ do, dele recebendo influência e nele imprimindo a sua individualidade.


Abstração geométrica em Dacosta

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NOTAS 1. 2. 3. 4. 5.

PEDROSA, Mario. Arte Brasileira Hoje. PazeTerra, 1973. Catálogo do Museu de Arte Moderna de São Paulo — Mostra Retrospectiva de Milton Dacosta, 1981. ARGAN, Giulio Cario. El A rte M oderno. Tomo 2, Fernando Torres Editor, Valência, Espanha, 1975. PONENTE, Nello. Klee — Estudo Biográfico e Critico. Éditions SKIRA, Genève, 1960. PEDROSA, Mario. Milton Dacosta — pintura e desenho — 1939-1959 Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 1959. 6. KLEE, Paul. Théorie De L 'A rt Moderne. Denoél/Gonthier, Genève. 7. BENTO, Antonio. Milton Dacosta. Editor José Paulo Gandra Martins, RJ, 1980. 8. MADISON, Gary Brent. La Phenomenologie de Merleau-Ponty — Une Recherche des Limites de la Conscience. Éditions Klinckziek, Paris, 1973.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. ARGAN, Giulio Cario. Salvaciôn y Caída dei Arte Moderno. Ediciones Nueva Vision, Buenos Aires, 1966. 2. FRANCASTEL, Pierre. “ Peinture et Société” . Idées/Arts. Gallimard, Paris, 1965. 3. MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito. 4. FRY, Edward. Cuhism Thames and Hudson. London, 1966. 5. PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. Editora Perspectiva, São Paulo, 1979. 6. GOLDING, John. A History andan Analysis — 1907-1914■ Faber and Faber Limited, London, 1959. 7. BERGER, John. La Réussite et 1'Êchecde Picasso. Denoèl, Paris, 1958. 8. NASH, J.M . Cubism, Futurism and Construe tivism. Thames and Hudson, London, 1974. 9. ZILIO, Carlos. A Querela do Brasil. Edição Funarte, Rio de Janeiro, 1982. 10. BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo, Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. Rio de Janeiro. 11. MORAIS, Frederico. Concretismó/Neoconcretismo: quem é, quem não é, quem aderiu, quem precedeu, quem tangenciou, quem permaneceu, saiu, voltou, o concretismo existiu? Catálogo da ex­ posição Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, 1977. 12. GULLAR. Ferreira. A rte Brasileira Hoje. Paz e Terra, 1973.

SONIA ROTBERG completou o Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, da PUC/RJ.


Monumento Ă III Internacional, Tatlin, 1919-20


Quem deu asas à imaginação ou a propósito de Santos Dumont

CARLOS ZILIO

Existiría, no que a modernidade concebeu como arte, um terreno onde arte e técnica perderam seus limites definidos? Havería, dentro da rígida divisão de trabalho estabelecida no século XIX, um local onde a atividade de um Leonardo Da Vinci teria conseguido sobreviver? Um espaço um tanto difuso, sem características muito marcadas mas que, por oposição ou por simples diferenciação, teria produzido objetos inclassificáveis como pura arte ou pura técnica? Um lugar onde a atividade utilitária se confundiría com um fazer sem função prática, ou ainda, recorrendo-se ás categorias de Bataille, o trabalho e o jogo se encontrariam ? O vôo como uma atividade ligada a um dos desejos mais remotos do homem, a pos­ sibilidade de se deslocar superando as limitações de seu equipamento biológico, abre uma questão que envolve a imaginação — o deslocamento no ar — e a técnica — os meios para tornar isso possível. Essa questão se expressou na mitologia, na bruxaria, no misticismo e a razão renascentista buscou solucioná-la através da máquina de voar de Leonardo. No momento em que a arte conquista um estatuto de atividade intelectual capaz de situá-la num plano de diálogo com a ciência, Leonardo propõe uma solução engenhosa, mas ainda limitada a um modelo. O desejo de voar permanece de modo persistente, e, por sua impos­ sibilidade de solução, vai ser dissimulado ou mesmo recalcado, como sugere o quadro de Bruegel A Queda de ícaro, onde a cena é mostrada de tal forma que o elemento central — ícaro caindo — é um detalhe quase inapercebido na composição. Seria necessário esperar a Revolução Industrial para que surgissem motores capazes de dar ao deslocamento uma nova dimensão. Época das locomotivas, dos navios a vapor, e logo depois dos automóveis, momento de uma nova relação com o espaço e o tempo. Parecia não haver mais limites para a técnica capaz de fabricar e espalhar aquelas máquinas no cotidiano. Permanecerá, no entanto, o desafio do voar que os balões estavam longe de suprir. Há, ainda no século XIX, uma outra possibilidade de deslocamento, em que a arte e a vida — tomada como forma de arte — foram o veículo. Reação à uniformização trazida pela máquina, que se expressava nos artistas pela evasão interna ou pela viagem a países exóticos, quer dizer, não industrializados. O oriente invade a imaginação e a busca da


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originalidade passa pelas drogas, vestuário e comportamento. Atitudes extremadas na ân­ sia de marcar a diferença até mesmo com o comprometimento da própria vida. A figura do artista e do dandy andam juntes e a postura de “ épater la bourgeoisie" revela o desejo de conseguir abrir, no espaço dos grandes centros urbanos, uma outra posssibilidade de ocupação que fugisse à lógica da massificação. Se por um lado estes artistas cultuam o prazer do cosmopolitismo, por outro reagem aos aspectos esmagadores da individualidade. O conflito se estabelece entre a admiração e a recusa, o reconhecimento do meio e a tentativa de transgredi-lo, contrapondo á lógica in­ dustrial da eficácia aquela ditada pelo acaso, pelo jogo. Consequência desta tensão é a invenção de um tipo particular de máquina que Michel Carrouges denominou “ máquinas celibatárias” . A origem da definição de Carrouges surge a partir de dois trabalhos: o Grand Verre de Marcei Duchamp e a máquina da Colônia Penal de Kafka. Ao contrário das máquinas reais, ou mesmo de algumas ima­ ginárias que, a exemplo das ligadas à ficção científica, são racionais e úteis, as máquinas celibatárias aparecem como máquinas impossíveis, inúteis, incompreensíveis, delirantes. A máquina celibatária não tem uma razão de ser em si mesma, como aquelas governadas pelas leis da física, construídas para uma função social útil. Cada máquina celibatária é constituída por dois conjuntos. Um destes conjuntos é uma figuração sexual que se com­ põe de dois elementos: o masculino e o feminino. O outro é o mecânico e também com­ posto por dois elementos que correspondem aos elementos masculino e feminino do con­ junto sexual. Toda máquina celibatária é governada por leis da subjetividade adotando determi­ nadas figuras da física para apenas simular certos efeitos mecânicos. Uma máquina é des­ tinada a produzir, comunicar ou transformar o movimento. Uma máquina realizável ou não, em nada altera a sua natureza essencial. As “ máquinas celibatárias” são máquinas mentais, cujo funcionamento imaginário produz um movimento real do pensamento. Esta foi a relação mais radical que a arte estabeleceu com a máquina no sentido de preservar a subjetividade. Seria uma reação em que a arte, ao se ver recusada pela técnica, incorpora seus mecanismos de modo a pervertê-los. Outro extremo da relação entre arte e técnica surge das tendências que se desenvol­ veram a partir de William M orris e que após diversas contribuições e transformações foram sistematizadas didaticamente pela Bauhaus. Trata-se do Industrial Design, que procura inserir a forma dentro do universo da técnica de modo a produzir uma. síntese capaz de aprimorar os objetos. Disciplina cuja economia é claramente vinculada aos métodos de produção e circulação dos produtos industriais. Seria o extremo oposto às máquinas celibatárias, uma vez que, enquanto estas permanecem no campo da arte uti­ lizando a técnica como uma espécie de modelo, o Industrial Design se afasta do campo da subjetividade ao se situar na relação direta com a técnica e a produção. Neste caso não se trata mais de artistas, mas de produtores especializados. Entre estas duas posturas, ocor­ reram ainda outras possibilidades. Num terreno pouco definido, muitas vezes contrário ao discurso defendido pelos seus protagonistas. Aproveitando a expressão quase-cinema de Hélio Oiticica poderiamos chamá-las de quase-arte e quase-técnica. São, por exemplo, al­ gumas experiências construtivas de Tatlin e o trabalho de Santos Dumont.


O balão de corrida de Santos Dumont

Detalhe do Balão n? 4

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É conhecida a posição de destaque de Tatlin no Construtivismo Soviético. Para esta vanguarda a questão era incitar os artistas a dedicarem-se à produção, através de uma fusão com a técnica, e, sob a égide da arquitetura, impor à arte a sua negação. De uma maneira mais politizada, irão repetir, após algum tempo de prática exclusivamente artistica, o mesmo caminho que no resto da Europa teria a Bauhaus como centro. A questão era diluir a arte na vida, de modo a transformar a sociedade através da estetização do social, o que, em última análise, resultaria na formação de um novo homem. Se tomarmos duas obras significativas de Tatlin, o M onumento à III Internacional e o Letatlin — um engenho para voar — (a coincidência com Santos Dumont não é mero acaso), veremos que são trabalhos que se afastam da ortodoxia construtivista. A pretensão do M onumento à III Internacional em ter um destino funcional — torre de rádio e centro de reuniões políticas — foge irtteiramente à realidade da situação econômica e política que vivia a União Soviética e as críticas de Trotsky a este respeito tiveram a intenção de trazer Tatlin à realidade. O desejo que envolve o monumento não é em absoluto o da sua destinação funcional, mas o de criar uma escultura símbolo do seu tempo. Para isso, Tatlin propõe uma nova percepção do espaço, do movimento e da estrutura interna dos objetos defrontados com recursos técnicos recentes. Evidentemente, é uma obra realizável, mas a sua impossi­ bilidade se dava porque fugia ao pragmatismo exigido pela produção industrial. De fato, o que caracteriza o monumento é justamente objetivar visualmente algo que a dinâmica das sociedades industriais havia perdido sem perceber, o sentido da utopia. Já o Letatlin provoca uma situação ainda mais característica da relação entre arte e técnica na obra do artista. Ao se retirar para uma torre, como se o artista engajado com o progresso houvesse regredido a uma situação pré-industrial, Tatlin se dedica a construir um engenho para voar. Como já havia feito Santos Dum ont, Tatlin passa longo tempo a observar o vôo das aves e, com um material extremamente simples e anticonstrutivista, elabora seu engenho. Nunca se soube se Tatlin tentou voar ou não, ou mesmo que tenham posteriormente testado o aparelho. No entanto, é inegável a perfeita lógica construtiva do objeto que resultou numa forma extremamente significativa, sugerindo leveza e liber­ dade, provocando o olhar a recuar para um momento sem data na sua relação com a na­ tureza, momento inaugural em que o homem pensou a possibilidade de voar, instante de puro ousar. O desejo de voar em Santos Dumont não obedece a um cálculo próprio a um inventor da época, pois não possuía uma identidade plena com os mecanismos da produção de uma sociedade capitalista, pelo contrário, sua atitude tem um pouco das suas origens pessoais. Filho de um cafeicultor e engenheiro, pioneiro na mecanização da lavoura no Brasil, San­ tos Dumont guarda esta ambigüidade do primitivismo do meio rural que convive com téc­ nicas adiantadas. Entusiasta do progresso, para ele as máquinas tinham um caráter lúdico, além de serem idealizadas como um patrimônio da humanidade. De certo modo, Santos Dumont se movia no lado oposto ao da Revolução Industrial. Suas roupas excêntricas e elegantes, seu comportamento pouco convencional, suas ati­ tudes extravagantes, como a de comer numa mesa de três metros de altura, situavam-no claramente como um dandy. O vôo que busca realizar mais que uma iniciativa identificada


A propósito de Santos Dumont

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com a Revolução Industrial deve ser visto como um gesto de liberação, capaz de fazer o homem superar a massificação e propiciar a cada indivíduo a possibilidade de outros es­ paços. Mas não era apenas através do comportamento que se manifestava a incompatibi­ lidade de Santos Dumont com a sociedade industrial. Naquilo que poderiamos chamar sua “ vida profissional” a mesma atitude se repetia. Desde as inúmeras descobertas que fez para a conquista da dirigibilidade até os vôos do 14-Bis, nunca patenteou qualquer invento e o prêmio em dinheiro que recebeu ao contornar a Torre Eiffel foi simplesmente dis­ tribuído entre os pobres de Paris. A conquista do ar, um objetivo que perseguia com ob­ sessão e muito trabalho, no entanto, tinha um aspecto descompromissado e próximo a um esporte, como aliás, era uma característica de grande parte da aristocracia da época no seu relacionamento com certas máquinas, como a fotográfica, o automóvel e o avião. A atitude aparentemente inconseqüente de Santos Dumont é que irá retirar sua atividade das descobertas que se inseriam imediatamente na dinâmica do sistema indus­ trial, aproximando-o da lógica do jogo, colocando a técnica no mesmo registro da arte, ligadas por um movimento de negação aos princípios da regularidade do trabalho. Daí o sentido lúdico do seu procedimento, pois, assim como na arte, Santos Dumont manteve-se num domínio onde a idéia de criação conservou todo o seu sentido. A polêmica com os irmãos Wright ganha aqui o seu significado. O capitalismo, en­ quanto modo de produção, impõe suas leis a qualquer tendência que pretenda subtrair-se às categorias da economia burguesa. Os irmãos Wright representavam o ponto de vista dominante. Santos Dumont era um marginal neste sistema, um excêntrico que não cum­ pria o procedimento estabelecido por esta lógica. Evidentemente não se tratava de uma postura claramente política, mas de um descontentamento natural com a massificação e uma extrema necessidade de preservar sua individualidade, em poder “ alçar vôo” . Não é por acaso a forte impregnação estética de seus balões, dirigíveis e aviões. As formas são precisas, geométricas e econômicas, como convém a um quase-pré-construtivista. Quando Cézanne na época de Jas de Bouffon fala que era preciso reduzir a forma ao cone, à esfera e ao cilindro, sutilmente detectava uma nova visualidade que informava a civilização da máquina. As máquinas de Santos Dumont seguem esta lógica, ditada em grande parte pelas necessidades da aerodinâmica, mas articuladas por uma fina sensibi­ lidade. A exatidão de seu dirigível de corrida, uma forma limite, ou o “cubismo” do 14Bis obedeciam a esta nova visualidade que pouco depois, através do Cubismo e, sobretudo, do Construtivismo, iria irromper no repertório da arte. Este mesmo compromisso com a estética na obra de Santos Dumont pode ser encon­ trado em sua casa de Petrópolis, a Encantada. Ali, temos a precisão de um espaço que se constitui a partir de uma escala que se situa entre a exata sensação de amplitude e de in­ timidade. Sua forma e situação dão a sensação de que paira no ar, e as múltiplas surpresas que oferece, como a entrada pelo telhado, o degrau de pés, armam um dispositivo de des­ coberta e de jogo. A casa nos toma, nos maravilha. O trabalho de Santos Dumont permanece neste limite da técnica quase-arte que não possui a adequação á racionalidade do design, nem o delírio da máquina celibatária. Uma técnica quase-arte ou uma arte quase-técnica, como em Tatlin. São trabalhos-limite den-


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tro das tensões que envolveram a relação entre arte e técnica. Ambos participam de um gesto de pura criatividade, de um instante mítico e sagrado na medida em que vencem os interditos que asseguram o tempo profano e o transcendem.

BIBLIOGRAFIA BÀTAILLE, Georges. Oeuvres Complètes, vol. IX, Gallimard, Paris, 1979. CARROUGES, Michel. Les Machines Célibataires, Chêne, Paris, 1976. FRANCASTEL. Pierre. A rt et Technique, Denoêl/Gonthier, Paris, 1975. SENNA, Orlando. Alberto Santos D um ont, Brasiliense, São Paulo, 1984. V1LLARES, Henrique Dumont. Quem deu Asas ao H om em , M EC/INL, Rio de Janeiro, 1957. Catálogo: Junggesellenmaschinem/Les Machines Célibataires, Alfieri. Itália, 1975.

Em memória de Fernando José Leite Costa (Peixinho).


Notas sobre a contribuição de Weber para a definição de uma história e de uma sociologia da arte

EDUARDO JARDIM DE MORAES

Max Weber nunca realizou seu projeto de elaboração de uma Sociologia da Arte. Mesmo seu trabalho mais “ acabado” sobre o assunto — Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música — publicado postumamente, permaneceu incompleto. O texto in­ vestiga com profundidade questões relativas ao processo de racionalização interno da his­ tória da música ocidental. Além da contribuição substantiva que traz para os estudos da nossa música moderna, ele dá a possibilidade de se verificar, através de um esforço de ex­ plicitação, as idéias do autor a respeito das tarefas de uma História da Arte, de sua me­ todologia e do modo como nela comparece o conceito de progresso. Voltaremos, mais adiante, a estas questões1. Por ora, interessa ressaltar que os problemas relacionados aos fundamentos socio­ lógicos referidos no título não foram desenvolvidos. O leitor de Weber, interessado em sua visão do problema, está, desta forma, obrigado a buscar, aqui e ali, em sua obra gigantes­ ca, os elementos que possam compor, ao menos, um roteiro de discussão. Nosso trabalho tem apenas esta pretensão — a de propor um roteiro, não tanto bi­ bliográfico, mas sobretudo temático, que possa servir de base para o aprofundamento de uma pesquisa sobre a História e a Sociologia da Arte na perspectiva weberiana.

Duas questões maiores norteiam a investigação de Weber neste campo. A primeira diz respeito a questões metodológicas e epistemológicas próprias destas disciplinas. A segunda se insere no projeto amplo de elaboração de uma Sociologia da racionalização. É verdade que estas duas questões estão conceitualmente interligadas — a possibilidade de uma reflexão epistemológica e metodológica tal como proposta por Weber só se torna possível se considerarmos o avanço do processo de racionalização no contexto ocidental moderno, delimitando uma esfera autônoma da experiência estética e abrindo caminho para uma investigação especializada a seu respeito. Aqui, tomaremos cada uma destas questões separadamente e procuraremos, sempre que for possível, tematizar a sua articulação.


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I — Questões Metodológicas e Epistemológicas de uma História e de uma Sociologia da Arte Em 1912, a Associação de Política Social, a que Weber pertencia, propôs à apreciação de seus membros uma série de questões de caráter polêmico, na época, no âmbito da pes­ quisa social. Entre elas figurava a de considerar a legitimidade ou não do uso do conceito de progresso no tratamento dos temas pesquisados. A resposta de Weber, extremamente cautelosa, à solicitação da Associação está con­ tida em seu ensaio sobre O Sentido da “Neutralidade Axiológica" nas Ciências Socio­ lógicas e Econômicas2. Ela pode ser resumida em poucas linhas: o uso do conceito de progresso no campo das ciências sociais pressupõe a sua definição com um sentido bastante restrito. Progresso deve ser entendido apenas na acepção de aprimoramento técnico. Esta restrição na definição do conceito se articula, ao mesmo tempo, à delimitação do campo da própria ciência social — esta deve se manter no plano da elaboração de juízos de fato, devendo-se evitar confundi-lo com o campo da avaliação, onde são elaborados juízos de valor. A resposta dada por Weber podé ser considerada em duas direções. PrimeiramenÇe, importa situá-la no contexto geral da sua teoria da ciência. Em seguida, interessa avaliar sua importância para o campo de uma História e de uma Sociologia da Arte. Max Weber tem clareza de que o campo das ciências a que se dedica — as que hoje costumamos chamar de ciências humanas — lida com realidades relacionadas-a-valores (Wertbeziehung). Diferentemente do que ocorre no caso das ciências da natureza, no campo das ciências humanas estamos em contacto, com nossos valores, com um mundo que é, ele próprio, mundo constituído por valores. O problema da objetividade do co­ nhecimento das ciências humanas adquire, assim, uma densa complexidade. O enfrentamento, por parte de Weber, desta complexa problemática busca, certa­ mente, garantir o caráter objetivo dos juízos científicos. Isto não é assegurado, entretanto, pela desconsideração dos conteúdos valorativos. Ao contrário, pela sua explicitação, ao sublinharmos nossos compromissos valorativos com os temas que pretendemos investigar é que podemos, por um efeito de exposição, neutralizar a carga valorativa contida em nos­ sas declarações. Weber vai ainda mais longe: a possibilidade de elaborarmos questões relevantes para a pesquisa científica deriva, de forma significativa, da nossa paixão pelo tema que nos propomos investigará Esta carga valorativa contida na relação entre o sujeito e o objeto da investigação cons­ titui, ao mesmo tempo, a chave que abre o caminho da compreensão e aquilo que deverá ser neutralizado para que o conhecimento se constitua com pretensão de objetividade. De qualquer forma, a ênfase dada aos aspectos subjetivos presentes na elaboração do processo cognitivo não deve ofuscar a tese central da teoria da ciência de Max Weber: a reivindicação da objetividade do discurso científico e, nessa medida, a exclusão dos juízos valorativos do âmbito da ciência. A este esforço de exclusão por neutralização dos elemen­ tos valorativos, Weber associou o conceito de interpretação axiológica que permite evi-


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denciar os pontos de vista subjetivos pressupostos na investigação científica Weber sabia o quanto o conceito de progresso estava permeado de conotações valorativas. Ele deriva seu significado de uma compreensão filosófica do processo histórico onde este é avaliado como uma trajetória ascendente para a realização de fins últimos. Ora, é esta concepção filosófica da história, que projeta na leitura do real um sentido preconcebido, que, aos olhos de Weber, parece impedir a apreensão objetiva do mundo social. Neste sentido, as restrições impostas à definição do conceito de progresso respon­ dem a uma dupla exigência. Por um lado, visam eliminar os preconceitos filosóficos valorativos ligados a esta noção. Por outro, em um sentido positivo, garantem um lugar para o seu uso ao lhe atribuir uma função apenas descritiva, relativamente ao que pode ser empiricamente verificado. O único progresso no campo da experiência humana que pode ser medido é o que se refere ao aperfeiçoamento técnico na organização dos meios para o atingimento de fins estabelecidos. A teoria weberiana da ciência, sua concepção da objetividade, sua crítica da utilização do conceito de progresso continuam, até hoje, a alimentar a discussão dos estudiosos, sobretudo dos que se dedicam ao tratamento de questões relativas à epistemologia das ciências sociais. Há, porém, um aspecto da teoria de Max Weber, nem sempre suficientemente su­ blinhado, cuja importância me parece fundamental. Trata-se da sua vigorosa polêmica contra as teses positivistas. À primeira vista, o tom das teses weberianas aparece como uma apologia da obje­ tividade científica e apenas isto. Seus propósitos, para uma análise mais acurada, se re­ velam, no entanto, muito mais ricos e instigantes. Na verdade, a teoria da ciência de Weber, com sua recorrente reivindicação da distinção entre os juízos científicos e os juízos de valor, constitui um esforço grandioso na defesa da liberdade da avaliação e da determinação autônoma dos fins contra as ingerências da teoria. Os alvos da crítica weberiana são, basicamente, a pretensão reivindicada pela ciência de impor determi­ nações à esfera dos juízos de valor. Contra a idéia de uma ética científica, de uma política científica, de uma estética científica, Max Weber opõe limites — os limites que separam a esfera da teoria da esfera da liberdade (moral, política, estética). Portanto, o significado último da teoria da ciência weberiana repousa na idéia de uma crítica da ciência. A crítica tendo por função, aqui, a delimitação rigorosa do âmbito em que se elaboram os juízos científicos. E isto por uma razão de fundo: está interessando, acima de tudo, a Max Weber abrir caminho para a consideração de uma Filosofia dos Valores que garanta uma pluralidade irredutível de pontos de vista nas esferas valorativas — seja na política, na moral ou no campo da apreciação estética. As repetidas referências a uma metafísica politeísta contidas nos textos de Weber in­ dicam a sua preocupação maior — ao situarmo-nos no campo da valoração, estamos con­ denados à experiência da pluralidade. Esta, tanto pode se orientar por uma atitude dialógica, como pode ser marcada pela violência do conflito em que deuses e demônios se en­ frentam.


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De que forma estas preocupações metodológicas e epistemológicas mais amplas se manifestam no caso das pesquisas em História e Sociologia da Arte? Inicialmente, elas conformam a definição de seu próprio estatuto enquanto disciplinas científicas. Em segundo lugar, esclarecem a possibilidade do uso do conceito de progresso no âmbito de uma História da Arte. Ao se pretenderem dotadas de um estatuto científico, a Sociologia e a História da A r­ te se obrigam a restringir suas investigações ao âmbito do que é, impedindo-se incursões na esfera do dever-ser. Estas disciplinas, como todas as demais disciplinas científicas, apresentam pressupostos valorativos. Estes, entretanto, escapam a toda demonstração por meios científicos. Eles podem, certamente, ser explicitados. Podem, mesmo, ser rejei­ tados. Não podem, entretanto, ser submetidos às determinações elaboradas pela teoria científica. Max Weber se inspira aqui no procedimento adotado pela crítica kantiana. Kant havia, na Crítica da Razão Pura, partido da afirmação de que “ a verdade científica existe e é válida” . O objetivo da crítica não consiste, entretanto, na apreciação do valor que a ciên­ cia possa ter. Esta é uma questão que não pode ser decidida teoricamente. O propósito da crítica kantiana é, antes, o de se perguntar a respeito das condições de possibilidade da constituição da verdade científica. O mesmo ocorre com as disciplinas cujo objeto é a produção artística. A estética, tomada como uma ciência, não se pergunta a respeito do valor da obra de arte. Ela deve se contentar com se ater a uma investigação a respeito das suas condições de possibilidade. Utilizando as expressões do próprio Weberr ‘‘A estética pressupõe a obra de arte. E, em conseqüência, apenas se propõe pesquisar o que condiciona a gênese da obra de arte. Mas não se pergunta, absolutamente, se o reino da arte não será um reino de esplendor diabólico, reino que é deste mundo e que se levanta contra Deus e se levanta, igualmente, contra a fraternidade humana, em razão de seu es­ pírito fundamentalmente aristocrático. A estética, em conseqüência, não se pergunta: deveria haver obras de arte?” 1 As mesmas preocupações que norteiam o que se disse até aqui a respeito dos pres­ supostos últimos das ciências da arte — a impossibilidade de sua demonstração por meios científicos — incidem sobre a caracterização das proposições elaboradas ao longo da pes­ quisa nestas disciplinas. Elas devem se constituir dentro dos limites estritos do campo empiricamente verificável, não podendo (sob o risco de atentar contra a dignidade, ao mesmo tempo, da elaboração científica e da apreciação estética) avaliar esteticamente a matéria ar­ tística. Enfatizo mais uma vez o propósito último de Weber. Sua preocupação de fundo é antidogmática. Ele pretende liberar o campo da avaliação estética, onde se afirma nossa liber­ dade, das determinações advindas da esfera da investigação científica. Estas observações nos conduzem a considerar o modo como Weber define a presença do conceito de progresso no campo da História da Arte. A análise se inicia pela distinção entre duas definições do conceito. A primeira enten­ de por progresso um crescimento valorativo presente na história da arte, nos moldes como esta é compreendida a partir de uma Filosofia da História. A partir desta ótica, ao his-


Weber, a história e a sociologia da arte

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toriador competiría, necessariamente, avaliar, de um ponto de vista estético, este processo evolutivo em suas diversas fases. Evidentemente, esta primeia definição é rejeitada por Weber para efeito de sua definição das tarefas de uma História da Arte. “ Para a História da Arte não existe verdadeiro ‘progresso’ na arte, no sentido da avaliação estética de obras de arte a título de realizações significativas. Realmente, tornase impossível efetuar tais avaliações com os meios de uma investigação empírica, pelo que ficam para além do âmbito de suas tarefas.” ^ O conceito de progresso pode ser tomado, porém, em uma outra acepção. Esta é rei­ vindicada como constituindo o “ autêntico terreno da história da arte” 6 Aqui o progresso poderia ser verificado no sentido da determinação dos “ meios técnicos que uma vontade artística utiliza para uma dada intenção” . Consideremos o tratamento dado por Weber às realizações da arte gótica e poderemos perceber o alcance de suas afirmações. A arte gótica é compreendida por Weber como uma autêntica revolução. Esta deve ser apreciada pela História da Arte do ponto de vista de seus condicionamentos materiais, técnicos, sociais e psicológicos. Sem dúvida, foram determinados “ conteúdos de senti­ mento” , “ suscitados por motivos sociológicos e religiosos” que condicionaram o desen­ volvimento de um processo de racionalização dos meios técnicos, característico do que costumamos chamar de estilo gótico. Uma História da Arte deve, certamente, dar conta destes condicionamentos. O con­ ceito de progresso não comparece, no entanto, ainda, neste passo da análise. Ele compa­ rece, propriamente, no exame do processo da racionalização dos meios técnicos que per­ mitiu a solução, até então não alcançada, de problemas de natureza especificamente ar­ quitetônica. As questões de natureza técnica enfrentadas pelo gótico consistiram no tratamento do problema da cobertura de determinados tipos de espaços. A solução tecnicamente ótima encontrada foi a invenção dos contrafortes capazes de distribuir a pressão de uma abóbada em forma de aresta. Esta racionalização da técnica abrangeu não apenas a esfera estrita da arquitetura, mas, posteriormente, conduziu, entre outras coisas, a um novo caminho na concepção da escultura. Colocada nestes termos, em termos de aperfeiçoamento técnico, a questão do pro­ gresso na História da Arte se afasta de uma dupla tentação normativa. Por um lado, em nenhum momento esteve em jogo avaliar a qualidade estética da arquitetura gótica re­ lativamente à arquitetura românica ou à renascentista. Ao contrário, frisa-se aqui a sua específica racionalidade. Por outro lado, afasta-se, mesmo, a perspectiva de uma avaliação estética de um objeto artístico tomado individualmente, em benefício da compreensão do fenômeno do progresso técnico, em sentido próprio. As observações feitas por Weber relativamente ao progresso na História da A r­ quitetura devem se aplicar também à História da Música e da Pintura. No último caso, a obra de Wõlfflin comparece como exemplar no respeito que manifesta aos procedimentos metodológicos mencionados. Em cada um destes casos — História da Arquitetura, da Música, da Pintura —o que deve estar em jogo é “ a radical separação entre a esfera dos valores e a esfera empírica” . Em outras palavras, é a idéia de que “ o emprego de uma determinada técnica, por muito


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avançada que seja, não traz a menor indicação quanto ao valor estético da obra de arte” . O problema central, para Weber, da distinção entre juízos de fato e juízos valorativos repousa na sua concepção do processo de modernização de que nos ocuparemos adiante. Para esta concepção, a modernidade se caracteriza, no plano da cultura, pela autonomização das esferas cognitiva, moral e (o que nos interessa) a esfera da produção e apreciação estéticas. A partir do momento em que os elementos unificadores destas es­ feras, no universo tradicional, desmoronam, é possível se falar em modernização em vários sentidos. No sentido, primeiramente, da própria liberação de cada uma das esferas da cultura com relação a uma representação unificadora (geralmente de tipo religioso). No sentido, ainda, da autonomização destas esferas entre si. Por esta razão é que podemos, em nosso caso, falar de um conhecimento científico da produção artística como algo diferente da produção e da apreciação da arte. Em um terceiro sentido: a racionalização destas esferas se dá segundo padrões de racionalidade específicos para cada uma delas. O que conduz à consideração de tensões, compromissos e interrelações que, entre elas, passam a existir. Mas há, ainda, um outro sintoma da racionalização da vida moderna que convém destacar. A autonomização das várias esferas dá cultura conduz a um processo de espe­ cialização que comporta a elaboração de critérios específicos para o tratamento de cada uma delas e à formação de quadros de especialistas. Em nosso caso, a teoria científica da arte e seus teóricos, a crítica de arte e seus críticos e a própria experiência da criação e de um estilo de vida de artista adquirem uma existência setorizada. Esta, por sua vez, tende a se distanciar da experiência comum. A vida do homem moderno, no plano da cultura, se dá neste terreno onde há alheamento com relação â experiência comum, tensão com ela e a busca de construir canais de comunicação. Voltaremos a considerar estas questões na segunda parte de nosso artigo.

NOTAS 1. Die rationalen undsoziologischen Grundlagen der Musik foi publicado, pela primeira vez, por Theodor Kroyer, em 1921. Marianne Weber o introduziu como apêndice da segunda edição de Economia e Sociedade, em 1925. A edição de Economiay Sociedad, México, Fondo de Cultura Economica, contém a tradução do texto. 2. As informações relativas â elaboração deste texto de Weber podem ser encontradas no artigo de Ralf Dahrendorf, “ Ciência Social e Juízos de Valor” , publicado em Sociedade e Liberdade, Brasília, Ed.UnB, 1981. O ensaio O sentido da ‘Neutralidade Axiológica’ nas Ciências Sociológicas e Econômicas” foi traduzido para o português em Max Weber, Sobre a Teoria das Ciências Sociais, Lisboa, Editorial Presença, 1979.3456 3. Ver a este respeito “ A Ciência como Vocação” em Ciência e Política: duas vocações, São Paulo Cultrix, 1970. 4. Ciência como Vocação, ed. cit., p. 37. 5. O Sentido da “Neutralidade A xiológica"..., ed. cit.,p. 161. 6. As referências que seguem são todas de O Sentido da ' ‘Neutralidade Axiológica

.., ed. cit.


Arquitetura brasileira: produção e crítica

JORGE CZAJKOWSKI

A irrelevância estética da maioria das obras recentes de nossa arquitetura reflete aquela que tem sido, nos últimos 20 anos, a característica dominante da maneira de fazer arquitetura no Brasil: o pragmatismo. Não se trata, é claro, de uma opção independente e interna de uma determinada área profissional, mas da resposta a uma série de pressões externas, sódo-econômicas e cul­ turais, que se manifestam em vários níveis, desde as ofertas do mercado de trabalho até a própria imagem que a sociedade tem do arquiteto. Para satisfazê-las o arquiteto “ artista” das décadas anteriores voltou à carga transformado no técnico objetivo e confiável. Essa transformação só fez acentuar um problema que a arquitetura enfrenta desde o século pas­ sado: a dissociação entre arte e técnica. A Academia procurou neutralizar essa dicotomia privilegiando sempre o aspecto da composição arquitetônica. Os modernistas quiseram solucioná-la através da proposição de modelos tipológicos funcionalmente referidos aos diversos programas. A questão da forma estaria automaticamente resolvida ao ser estabelecido o modelo definitivo de cada pro­ grama, considerada a técnica construtiva a ser empregada. O nosso “pragmatismo” , em nome do progresso, também supõe uma adequação da obra a meios e fins racionalmente estabelecidos, mas as premissas dessa “ racionalidade” não são realmente objetivas. É o reino de uma falsa funcionalidade: a memória é posta de lado e cada obra visa instaurar o universo arquitetônico a partir de si mesma. O modelo deixa de ter relevância e a indi­ vidualidade da obra acaba “ garantida” por uma manipulação gratuita da forma. Nas escolas de arquitetura a tônica das disciplinas de projeto é o exercício desse for­ malismo, aliado a uma objetividade rasteira na solução dos problemas funcionais e cons­ trutivos. Mesmo história e teoria costumam ser ensinadas de uma maneira auto-referida e linear, fato sucedendo fato num galope através do tempo que, quando muito, é enriquecido pela esquematização da paisagem pela qual passa esse galope. Em conseqüência desse tipo de apropriação da racionalidade, história e teoria não chegam a se constituir em instru­ mentos de trabalho para a arquitetura, e acabam relegadas a uma condição de subjetividade supérflua. Nossas escolas almejam ser escolas profissionalizantes. Procuram oferecer ao aluno uma noção empírica de como trabalhar e é exatamente por isso que têm contribuído pouco


f o t o : C la u d ia d e P a o li

Lúcio Costa, Residência em Araruama (1935)

para uma profissionalização efetiva. Não é tanto a falta da prática de prancheta que as prejudica — três meses de estágio num bom escritório suprem facilmente essa deficiência — nem se coloca em questão a importância do aprendizado da “ firmeza” e da “ como­ didade” das quais fala Vitruvio: elas são os pré-requisitos de qualquer boa obra. Mas tão importante quanto isso tudo é a discussão das idéias, o desvelamento da intenção, do ar­ tifício. É primordialmente a idéia que dá forma á arquitetura, que faz dela uma Arte, que a inscreve no território da Estética. E esta é a discussão que carece ser travada nas escolas. Fora das escolas a discussão teórica também é rara. Várias foram as razões que con­ tribuíram para a virtual inexistência de uma crítica da arquitetura no Brasil. A principal foi, talvez, o fato de que a natureza complexa da arquitetura parecería sugerir que só um prático profissional poderia transitar satisfatoriamente por seu território. Isso acarretou um entrave de cunho ético. Entre nós, até bem recentemente, o mundo arquitetônico es­ tava restrito a relativamente poucas pessoas, que se conheciam e evitavam fazer publi­ camente quaisquer referências â obra de um colega — a não ser que fossem superficiais e muito elogiosas para não suscitar melindres ou suspeitas de rivalidades. Por outro lado, essa restrição tácita do direito de pensar a arquitetura, franqueado apenas à própria classe, tendeu a resultar em análises compartimentadas, que abordam seja a história factual, seja a relevância social, seja o aspecto construtivo ou ainda o formal, refletindo claramente os vícios da formação profissional. Raras são as exceções a esse quadro, muito poucos os tex­ tos que tratam a obra arquitetônica como um fenômeno estético em toda a magnitude.


Arquitetura brasileira: produção e crítica

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A eclosão e o transcurso da arquitetura moderna brasileira das décadas de 40 e 50, quando esta atingiu um inquestionável patamar de qualidade e identidade próprias, são in­ teressantes casos de estudos: colocam em evidência com bastante clareza o funcionamento do mecanismo da produção arquitetônica entre nós. A época, sócio-economicamente, não é nem mais nem menos excepcional que outros momentos de nossa história, mas a nova arquitetura vem a reboque de um movimento intelectual. O pano de fundo para a sua eclosão foi a discussão sobre “ Brasil” e “brasilidade” , que se acirrou a partir da Semana de 22. Depois, apareceu uma causa a ser defendida: a implantação da arquitetura moderna, transformada, por seu caráter idealista e utópico, numa luta do Bem contra o Mal. Tam­ bém a presença de Le Corbusier, que transmitiu a sua doutrina ao mesmo tempo racional e subjetiva a um núcleo influente de arquitetos cariocas, foi um desvio da regra geral de ab­ sorção de teorias de segunda mão. Finalmente o elemento catalizador foi a atuação de Lúcio Costa, guia teórico e crítico, figura fundamental a partir do início dos anos 30, sem­ pre e ainda — apesar de tudo — insuficientemente entendido e estimado em sua real di­ mensão. Niemeyer, Reidy, os irmãos Roberto e as outras glórias da arquitetura brasileira desse período fazem parte de um “ clima” , um fervilhamento intelectual. É muito importante perceber que as bases teóricas desse movimento foram lançadas antes da produção efetiva das obras, e que essas obras nunca foram devidamente estudadas e avaliadas. Esgotado o impulso gerador que lhes deu início, ficaram reduzidas a meras referências formais, ex­ ploradas abusivamente durante alguns anos, na falta de uma produção teórica suficien­ temente forte para deslanchar uma nova fase criativa. A “ escola paulista” , em São Paulo, e o brutalismo analítico, no Rio, tentaram preencher o vazio, mas ambos se ressentiram de princípios pouco abrangentes. Sem uma consciência crítica formada não existe avaliação correta da produção ar­ quitetônica. Conseqüentemente, a experiência realizada perde sua relevância específica como Saber. Sem um embasamento teórico fazer arquitetura é como conduzir um carro sem destino: a proficiência técnica torna-se mais importante que o objetivo da viagem. O ciclo do modernismo brasileiro se esterilizou naturalmente com o passar dos anos e acabou desarticulado pelas modificações concretas ocorridas na vida nacional, onde a adoção de um modelo de governo autoritário e tecnocrático levou o pragmatismo à atual preeminência. No campo da reflexão as tentativas de reagir a esse estado de coisas tenderam a uma “ sociologização” da análise arquitetônica, que, na verdade, diluía a compreensão do ob­ jeto arquitetônico propriamente dito. Por essa mesma época os arquitetos europeus e americanos, decepcionados quanto à eficácia da arquitetura como instrumento de transformação social, voltaram-se para uma manipulação hedonística do vocabulário. A arquitetura pós-moderna fechou-se em si mes­ ma, tornou-se um jogo de referências linguísticas que se pretende simbólico. Sua liberdade em relação aos preconceitos do modernismo — que aspirava a uma condição de a-historicidade graças à sua racionalidade funcionalista — é, sem dúvida, positiva, e sua diferença frente à situação brasileira consiste exatamente na adoção de sistemas formais. Mas esse caminho de especulação linguística não é, necessariamente, o caminho que serve ao Brasil. Aqui ele tende a virar um arremedo, uma apropriação da memória alheia, desvia a atenção das particularidades da nossa realidade. Sem produção teórica ficamos à mercê das


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informações superficiais que nos chegam da vanguarda estrangeira, apostando numa fic­ tícia universalidade dos significados. É impossível uma relação saudável com o exterior sem uma valorização correta de nossa própria tradição. Se compreendermos a tradição como a coexistência do passado e do presente em um só tempo, tal como coexistem em um só tempo lugares distintamente situados na geografia, perceberemos que se abre uma nova perspectiva para a teoria e a história: elas passam a ser úteis. A tradição, assim definida, é um conhecimento que se or­ ganiza topologicamente. Trabalhar com ela deixa de ser o reverenciamento reacionário e formalista de relíquias para transformar-se na busca atual de um sentido. Não se trata de valorizar a erudição, numa atitude que coloque a cultura como a mar­ ca da elite. Nem é esta uma argumentação que favoreça a reflexão em detrimento da prática, num sistema que antagonize teoria e prática. È, ao contrário, a defesa da indis­ solúvel ligação da teoria e da prática no fazer arquitetônico. É a defesa do enriquecimento da prática pela re-admissão do pensamento teórico como instrumento prático de trabalho.


Transparência: literal e fenomenal

COLIN ROWE (COM ROBERT SLUTZKY) Tradução: Lélia Mendes de Vasconcellos

Transparência 1951. 1. A qualidade ou condição de ser transparente; diafaneidade 1615. Aquilo que é transparente 1591. b. espec. Uma pintura, gravura, inscrição ou artifício sobre alguma substância translúcida que se tome visível sob a incidência da luz 1807. c. Uma fotografia ou pintura sobre vidro ou outra substância transparente para ser vista transpassada pela luz 1874. 3. Uma burlesca tradução da forma de tratamento alemã Durchlaut. Transparente. 1. Ter a propriedade de transmitir luz, assim como a de tomar completamente visíveis os objetos situados além. b. Penetrante, como a luz 1593. c. Que admite a passagem de luz através de interstícios (raro) 1693. 2. fig. a. Aberto, cândido, ingênuo 1590. b. Facilmente visto através, reconhecido, ou detectado; manifesto, óbvio, 1593.

“ Simultaneidade” , “ interpenetração” , “ superposição” , “ ambivalência” , “ espaçotempo” , “ transparência” ; estas palavras, e outras como elas, são muitas vezes usadas como sinônimos, na literatura da arquitetura contemporânea. Estamos familiarizados com as manifestações às quais são aplicadas — ou então assim pretendemos. Essas são, cremos nós, as características formais específicas da arquitetura contemporânea, e, como respon­ demos por elas, raramente procuramos analisar a natureza de nossa reação. Certamente pode ser fútil tentar fazer instrumentos críticos eficientes de tais definições aproximadas. Talvez qualquer tentativa resulte em sofismas. No entanto, torna-se também evidente que, a menos que a natureza evasiva dessas palavras seja examinada, podemos incorrer no perigo de interpretar equivocadamente as formas intencionalmente complexas às quais elas às vezes se referem e é por esta razão que aqui se fará uma tentativa para expor certos níveis de significado aos quais o termo “ transparência” tem sido incorporado. Pela definição do dicionário, a qualidade ou estado de ser transparente é uma condição material: aquela de ser permeável à luz e ao ar, o resultado de um imperativo intelectual, de nossa busca constante de tudo aquilo que deveria ser facilmente detectado, perfeitamente evidente; e um atributo da personalidade: a ausência da malícia, pretensão ou dis­ simulação. E assim, o adjetivo transparente por definir um significado puramente físico, por funcionar como um honorífico crítico, e por ser dignificado pela atribuição de um valor moral, é uma palavra ricamente carregada de possibilidades tanto de significado como de más interpretações.


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Mas, além dessas conotações aceitas, a transparência, enquanto condição a ser des­ coberta numa obra de arte, foi incorporada por níveis mais amplos de interpretação que são admiravelmente definidos por Gyorgy Kepes, na sua Language of Vision: Se alguém vê duas ou mais figuras superpostas uma à outra, cada uma delas reclamando para si própria a parte superposta comum, então está se confrontando com uma contradição de dimensões espaciais. Para resolver esta contradição, é preciso aceitar a presença de uma nova qua­ lidade ótica. As figuras são dotadas de transparência; isto é, elas são capazes de se interpenetrar sem uma destruição ótica de uma pela outra. Transparência, entretanto, implica mais do que uma característica ótica, implica uma ordem espacial mais abrangente. Transparência significa uma percepção simultânea de diferentes localizações espaciais. O espaço não só recua, mas flutua numa contínua atividade. A posição das figuras trans­ parentes tem significado indefinido quando se passa a ver cada figura ora como a mais próxima, ora como a mais afastada” 1. Assim, é agora introduzida uma concepção de transparência bastante distinta de qualquer qualidade física e muito remota da idéia de transparência enquanto clareza per­ feita. De fato, por essa definição, a transparência cessa de ser algo que é perfeitamente claro e, ao invés disso, toma-se algo que é claramente ambíguo. Esta definição também não é inteiramente esotérica; como bem percebemos quando lemos sobre ‘‘planos trans­ parentes superpostos” , e sentimos que há algo mais em jogo além da simples transparên­ cia física. Por exemplo, Moholy-Nagy, na sua Vision in M otion, refere-se constantemente a ‘‘folhas transparentes de celofane” , ‘‘plástico transparente” , ‘‘transparência e luz mó­ vel” , ‘‘as radiosas sombras transparentes de Rubens” 2. Uma leitura cuidadosa do livro poderá sugerir que para ele a transparência literal é muitas vezes preenchida com certas qualidades metafóricas. “ Algumas superposições da forma” , diz Moholy, “ escapam das limitações de tempo e espaço. Elas transformam singularidades insignificantes em com­ plexidades significativas... As qualidades de transparência das superposições sugerem muitas vezes também uma transparência do contexto, revelando qualidades estruturais não observadas no objeto ’ \ E ainda comentando o trocadilho joyciano, o que ele chama de as múltiplas aglutinações de palavras” de James Joyce, Moholy acha que essas se constituem na tentativa prática de construir uma totalidade a partir de uma engenhosa transparentização’ das relações’ Em outras palavras, ele parece ter sentido que por um processo de distorção, recomposição e dotible entendre, uma transparência lingüística (a equivalente literária da “ interpenetração sem destruição ótica” , de Kepes) poderia ser efetuada e quem quer que experimentasse uma das “ aglutinações” de Joyce desfrutaria a sensação de olhar através de um primeiro plano de significância para outros que lhe são posteriores. Assim, para dar início a qualquer investigação sobre transparência, é preciso esta­ belecer uma distinção básica: transparência pode ser uma qualidade inerente da substância como numa malha de arame ou numa parede de vidro — ou pode ser uma qualidade inerente de organização tal como Kepes e, em menor grau, Moholy, sugerem. Por esta razão pode-se, ainda, fazer a distinção entre duas espécies de transparência: a real ou li­ teral, e a fenomenal ou transparência aparente.


Possivelmente, a nossa percepção da transparência literal deriva de duas fontes: o que se poderia chamar de “ estética da máquina” e da pintura cubista. A nossa percepção da transparência fenomenal provavelmente deriva apenas da pintura cubista. Certamente qualquer tela cubista de 1911-12 serviria para ilustrar a presença dessas duas ordens ou níveis do transparente. Mas, ao considerar fenômenos tão desconcertantes e complexos quanto aqueles que caracterizam a pintura cubista, o futuro analista leva desvantagem. É presumivelmente por esta razão que, quase cinqüenta anos após o evento, ainda nos ressentimos da falta de uma análise desapaixonada da conquista cubista^. Existem, em abundância, explicações que obscurecem os problemas pictóricos do Cubismo. É possível encará-las com ceticismo, assim como é possível ser cético em relação às duas plausíveis interpretações que lhe são dadas e que envolvem a fusão de fatores tem­ porais e espaciais, situando o Cubismo como uma premonição da relatividade e, como tal, como pouco mais que um subproduto natural de uma determinada atmosfera cultural. Como Alfred Barr nos diz, Apollinaire “ invocou a quarta dimensão... num sentido metafórico, mais do que num sentido matemático” 6, e, ao invés de tentar relacionar Picasso com Minkowski, seria, para nós, preferível referir-se a fontes de inspiração menos discutíveis. Um Cézanne tardio, tal como por exemplo o M ont Sainte Victoire, de 1904 (Fig. 1),


Figura 2

no Museu de Artes da Filadélfia, é caracterizado por certas simplificações extremas, entre elas principalmente a insistência altamente articulada em apresentar toda a cena a partir de um ponto de vista frontal. A supressão de elementos que muito obviamente sugerem profundidade acarreta a contração do primeiro plano, do plano médio e do plano de fundo, resultando num plano pictórico decididamente compacto. As fontes de luz são claras porém múltiplas. Uma observação mais atenta do quadro revela uma inclinação para a frente dos objetos no espaço, o que é reforçado pelo uso de cores opacas e contrastantes e tornado mais enfático pela interseção dos limites da tela com a base da montanha represen­ tada. O centro da composição é ocupado por uma malha consideravelmente densa de li­ nhas oblíquas e retilíneas e esta área é suportada e estabilizada por uma malha mais insis­ tentemente vertical e horizontal, que introduz um certo interesse periférico. Frontalidade, supressão de profundidade, contração do espaço, definição de fontes de luz, o inclinar-se à frente dos objetos, palheta restrita, malhas oblíquas e retilíneas, propensão para o desenvolvimento da periferia, todas são características do Cubismo analítico. Nas composições típicas de 1911-12, liberadas da obrigação mais imediata da representação, elas assumem uma maior evidência. Nessas pinturas, além do fracionamento e da recomposição dos objetos, talvez sejam o maior achatamento da profundidade e a ênfase dada à malha que mais chamam a nossa atenção. Descobrimos então uma so­ breposição de dois sistemas de coordenadas. Por um lado, um arranjo de linhas oblíquas e curvas sugere uma certa recessão espacial diagonal. Por outro, uma série de linhas ho­ rizontais e verticais implica uma contraditória afirmação de frontalidade. De um modo geral, as linhas curvas e oblíquas possuem uma certa significação naturalística enquanto as retilíneas mostram uma tendência á geometrização do plano pictórico. Mas ambos os sis-


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temas de coordenadas não só contribuem para a definição das figuras simultaneamente num espaço extendido e sobre a superfície pintada, como também suas interseções, so­ breposições, entrelaçamentos, seu desenvolvimento em configurações maiores e instáveis, permitem a gênese da temática cubista típica. Mas, à medida em que o observador distingue entre todos os planos originados por essas malhas ele se torna progressivamente consciente de uma oposição entre certas áreas de pintura luminosa e outras de uma coloração mais densa. Ele distingue certos planos aos quais é capaz de atribuir uma natureza física próxima do celulóide, outros cuja essência é semi-opaca, e ainda outros cuja substância é totalmente oposta à transmissão da luz. E pode descobrir que todos esses planos, translúcidos ou não, independentemente do seu contexto representativo, se acham implicados na manifestação que Kepes definiu como transparência. A dupla natureza dessa transparência pode ser ilustrada pela comparação e análise de um Picasso meio atípico, The Clarinet Player (.Fig. 2), e um Braque bem representativo, The Portuguese {Fig. 3), ambos de 1911. Em ambos os quadros uma forma piramidal sugere uma imagem, mas, enquanto Picasso define sua pirâmide por meio de um contorno forte, Braque usa uma inferência mais complicada. O contorno de Picasso é tão assertivo e independente de seu fundo que o observador tem de alguma forma a sensação de uma figura positivamente transparente sobre um espaço relativamente profundo, e só mais tar­ de ele redefine esta sensação para permitir uma real superficialidade do espaço. Mas com Braque a leitura do quadro segue uma ordem reversa. Um entrelaçamento altamente ar­ ticulado da malha horizontal e vertical por linhas incompletas e planos intrusos, estabelece um espaço primeiramente superficial e só gradualmente o observador torna-se capaz de in­ vestir o espaço de uma profundidade que permita á figura assumir substância. Braque oferece a possibilidade de uma leitura independente da figura e da malha. Picasso mal o consegue. A malha de Picasso é agrupada dentro de sua figura ou então aparece sob a for­ ma dê incidente periférico cuja intenção é estabilizar a figura. As diferenças de método nessas duas pinturas poderíam facilmente ser superenfatizadas. Por momentos elas poderão parecer semelhantes ou diversas. Mas é necessário as­ sinalar que estão presentes neste paralelo as intimações de direções diferentes. Em Picasso, temos a sensação de olhar através de uma figura colocada num espaço profundo, enquanto que no espaço superficial, achatado e lateralmente extendido de Braque, deparamo-nos com um objeto sem materialidade conspícua. Num, recebemos a previsão da transparência literal; no outro, da transparência fenomenal. Essas duas atitudes diversas se tomarão bem mais evidentes se for tentada uma comparação entre as obras de dois pintores um pouco mais tardios como Robert Delaunay e Juan Gris. Simultaneous Windows de Delaunay, de 1911, e Still Life de Gris, de 1912 (Figs. 4 e 3), incluem ambas objetos que são presumivelmente transparentes: janelas e garrafas. Mas enquanto Gris suprime a transparência literal do vidro em favor da transparência da malha, Delaunay aceita com irrestrito entusiasmo as qualidades ardilosamente reflexivas das suas aberturas vitrificadas superpostas. Gris, a partir de um sistema de linhas oblíquas e curvas, tece uma espécie de espaço planar e corrugado e, na tradição arquitetônica de Cézanne, assume fontes luminosas definidas mas variadas visando ampliar tanto seus ob­ jetos quanto sua estrutura. A preocupação de Delaunay com a forma pressupõe uma


atitude inteiramente diversa. Para ele as formas — um grupo de edifícios baixos e vários objetos naturalísticos que lembram a Torre Eiffel, por exemplo — nada mais são que refrações da luz que ele mostra em termos análogos ao da malha cubista. Mas, apesar da geometrização da imagem, a natureza geralmente etérea tanto das formas de Delaunay como de seu espaço parece mais característica do Impressionismo, e esta semelhança é reforçada por sua fatura. Em contraste com as áreas chapadas e planares, de cores opacas e quase monocromáticas, que Gris investe com um grande valor tátil, Delaunay enfatiza uma caligrafia quase impressionista. Enquanto Gris define explicitamente um fundo, Delaunay dissolve as possibilidades de um fechamento tão cabal de seu espaço. O plano de fundo de Gris funciona como um catalizador que localiza as ambiguidades de seus objetos pictóricos e engendra seus valores instáveis. O desagrado de Delaunay para com um procedimento tão específico deixa as ambiguidades latentes e sua forma sem solução, ex­ posta, sem referência. Ambas as operações poderíam ser reconhecidas como tentativas de elucidar a complexidade congestionada do Cubismo Analítico, mas se Gris parece ter in­ tensificado algumas das características do espaço cubista e de ter imbuído seus princípios plásticos de uma nova audácia, Delaunay foi levado, talvez, a explorar as sugestões poéticas do Cubismo, divorciando-as de sua sintaxe métrica. Quando alguma coisa da atitude de Delaunay se funde com a ênfase que a estética da máquina vota aos materiais e é aguçada poi* um certo entusiasmo por estruturas planares, a transparência literal torna-se completa, e é talvez o trabalho de Moholy-Nagy que mais apropriadamente a ilustra. Em seu Abstract ofan A rtist, Moholy nos conta que por volta de 1921 suas “ pinturas transparentes” tornaram-se completamente libertas de todos os elementos reminiscentes da natureza e, para citá-lo diretamente: “ Eu vejo hoje que isto era o resultado lógico das pinturas cubistas, que eu havia estudado com admiração” ^ . Não é relevante para a presente discussão se a libertação em relação aos elementos reminiscentes da natureza é a continuação lógica do Cubismo ou não. Mas tem uma certa importância saber se Moholy conseguiu ou não esvaziar seu trabalho de todo conteúdo naturalístico. Sua aparente crença de que o Cubismo apontou o caminho para uma liber-


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tação das formas pode justificar a análise de uma de suas obras em paralelo com outra pin­ tura pós-cubista. La Sarraz, de Moholy, de 1930 (Fig. 6), podería ser comparada a um Fernand Léger, de 1926, Three Faces {Fig. 7). Em La Sarraz, são impostos, sobre um fundo negro, cinco círculos conectados por uma faixa em forma de S, dois conjuntos de planos trapezoidais de cores translúcidas, al­ gumas barras horizontais e verticais, um generoso salpicado de luz e de manchas escuras, e uma certa quantidade de pinceladas levemente convergentes. Em Tbree Faces, três áreas principais que expõem formas orgânicas, artefatos abstratos e formas puramente geo­ métricas são reunidas por faixas horizontais e um contorno comum. Léger, em contraste com Moholy, alinha seus objetos pictóricos ortogonalmente tanto entre si como em re­ lação aos limites de seu plano pictórico. Ele pinta seus objetos com uma coloração chapada e opaca, construindo uma leitura do fundo através da disposição comprimida de superfícies altamente contrastantes. Enquanto Moholy parece ter aberto uma janela para uma versão pessoal do espaço sideral, Léger, trabalhando dentro de um esquema quase bidimen­ sional, alcança uma claridade máxima das formas “ negativas” e “ positivas” . Por causa das restrições, a pintura de Léger toma-se carregada de uma enganadora sensação de profundidade com uma transparência fenomenal singularmente próxima daquilo que atraía Moholy nos escritos de Joyce mas que ele próprio, apesar da transparência literal de sua pintura, não quis ou não pôde alcançar. Pois, apesar da modernidade de sua temática, a pintura de Moholy ainda apresenta o fenômeno pré-cubista convencional de primeiro plano, plano médio e fundo, e, apesar do entrelaçamento bastante casual entre os elemen­ tos de superfície e de profundidade, introduzidos para destruir a lógica desse espaço

Figura 6


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profundo, a pintura de Moholy pode ser submetida somente a uma única leitura. Mas o caso de Léger é muito diferente. Pois Léger, através da refinada virtuosidade com a qual reúne os constituintes pós-cubistas, torna completamente evidente o comportamento multifuncional das formas claramente definidas. Através de superfícies planares, através de uma ausência de volumes que sugerem sua presença, através da sugestão mais que da existência de uma malha, através de um interrompido padrão de tabuleiro de xadrez es­ timulado por cor, proximidade e discreta superposição, ele leva o olho a experimentar uma exaustiva série de organizações maiores ou menores dentro de um todo. A preocupação de Léger é com a estrutura da forma, a de Moholy, com materiais e luz. Moholy aceitou a figura cubista mas retirou-a de sua matriz espacial. Léger preservou e mesmo intensificou a tensão tipicamente cubista entre figura e espaço. Essas três comparações podem esclarecer algumas das diferenças básicas entre trans­ parência literal e fenomenal nas pinturas dos últimos quarenta e cinco anos. A transparên­ cia literal tende a ser associada com o efeito trompe l 'oeil de um objeto translúcido num espaço profundo naturalístico, enquanto a transparência fenomenal parece ser encontrada quando um pintor procura a apresentação articulada de objetos frontalmente alinhados num espaço raso e abstrato. Mas, considerando transparências arquitetônicas ao invés de pictóricas, surge uma inevitável confusão. Pois, enquanto a pintura pode apenas sugerir a terceira dimensão, na arquitetura ela não pode ser suprimida. Dotada das dimensões reais ao invés de sua si­ mulação, a arquitetura pode possuir a transparência literal como um fato físico, mas a transparência fenomenal será mais difícil de ser alcançada. É, de fato, tão difícil discuti-la que geralmente os críticos procuram sempre associar a transparência em arquitetura ex­ clusivamente à transparência dos materiais. Assim Gyorgy Kepes, tendo providenciado uma quase clássica explicação do fenômeno como aparece em Braque, Gris e Léger, parece achar que a analogia arquitetônica deve ser encontrada nas qualidades físicas do vidro e dos plásticos, que o equivalente das composições cuidadosamente calculadas do cubismo e do pós-cubismo será descoberto casualmente nas superposições fornecidas pelos reflexos acidentais da luz brincando por sobre uma superfície polida e translúcida^. Similarmente, Siegfried Giedion parece assumir que a presença de uma parede inteira de vidro na Bauhaus (Fig. 8), com “ suas extensas áreas transparentes” , permite “ as relações de planos flutuantes e superpostos do tipo que aparece na pintura contemporânea” , e reforça esta sugestão com uma citação de Alfred Barr sobre a característica “ transparência de planos superpostos” no Cubismo Analítico. Em L Arlesienne de Picasso {Fig. 9), a pintura que fornece suporte visual para essas inferências de Giedion, tal transparência de planos superpostos é facilmente encontrada. Picasso oferece aí planos aparentemente de celulóide, que o observador tem a sensação de atravessar com o olhar, e, ao fazê-lo, suas sensações são, sem dúvida, de alguma forma semelhantes àquelas de um observador de uma das oficinas da Bauhaus. Em cada caso, uma transparência de materiais é descoberta. Mas Picasso, no espaço lateralmente cons­ truído da sua pintura, também oferece ilimitadas possibilidades de interpretações alter­ nativas, através da compilação de formas maiores ou menores. L'Arlesienne tem o sig­ nificado instável e dúbio que Kepes reconhece como característico da transparência. A


Figura 7

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Figura 9


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parede de vidro na Bauhaus — uma superfície sem ambigüidades por sobre um espaço sem ambigüidades — parece estar singularmente livre dessa qualidade, e assim, na busca de evidências daquilo que designamos por transparência fenomenal, seremos obrigados a recorrer a outros exemplos. A Casa Stein, de Le Corbusier, em Garches (Fig. 11), quase contemporânea à Bauhaus, pode ser comparada a ela. Superficialmente, a fachada que dá para o jardim e as elevações da oficina da Bauhaus {Fig. 10) não são diferentes. Ambas empregam lajes em balanço e ambas têm o térreo recuado. Nenhuma das duas tem interrupções no movimen­ to horizontal do envidraçamento e ambas apresentam a superfície envidraçada dobrando nos cantos, continuando nas fachadas laterais. Maiores semelhanças não serão encon­ tradas. A partir desse ponto poder-se-ia dizer que Le Corbusier está preocupado sobretudo com as qualidades planares do vidro, enquanto que Gropius se interessa principal mente pelos atributos translúcidos desse material. Com a introdução de faixas de muros de altura quase igual àquela das faixas de vidro, Le Corbusier enrigece seu plano de vidro e cria uma tensão geral da superfície. Gropius dá à sua superfície translúcida a aparência de estar pen­ durada na platibanda, que avança um pouco à guisa de uma sanefa de cortina. Em Garches é possível ter a ilusão de que as esquadrias continuam por trás da parede, na Bauhaus nin­ guém pode se permitir tal especulação, pois é evidente que as lajes estão pressionando a janela por trás. Em Garches o pavimento térreo é concebido como uma superfície vertical atravessada por um conjunto de janelas horizontais; na Bauhaus a aparência é de uma parede sólida perfurada pelas janelas. Em Garches o que é indicado explicitamente é a estrutura que


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suporta as vigas em balanço do andar de cima; na Bauhaus aparecem pilastras espessas, que não têm relação imediata com a idéia que se faz de uma estrutura aparente. Pode-se dizer que no bloco-oficina da Bauhaus, Gropius está absorto pela idéia de estabelecer um embasamento sobre o qual dispõe um arranjo de planos horizontais, e que sua preocupação principal é o desejo de tornar visíveis dois desses planos através de uma membrana de vidro. O vidro não parece provocar tal fascinação em Le Corbusier, e, embora obviamente se possa ver através de suas janelas, não é aí que vai estar situada a transparência de seu edifício. Em Garches a superfície recuada do pavimento térreo é re-introduzida na cobertura através das duas paredes soltas que limitam o terraço, e a mesma afirmação de profun­ didade é dada por portas-janelas de vidro nas paredes laterais, que terminam as linhas da fenestração (Fig. 12). Através deste artifício, Le Corbusier faz passar a idéia de que imediatamente por trás de seu pano de vidro existe uma*estreita camada paralela de espaço. Isto implica mais uma impressão: a de que, limitando por trás essa camada estreita, existe um plano ao qual pertencem a fachada do térreo, as paredes soltas da cobertura e os batentes internos das portas de vidro laterais. Embora possamos argumentar que a exis­ tência desse segundo plano é fruto muito mais de um artifício teórico do qye de uma realidade física, mesmo assim sua presença é inegável. Levando em consideração a super­ fície de vidro e concreto e esse plano imaginário (mas quase tão real quanto o outro) to­ mamos consciência de que aqui o efeito de transparência é conseguido não através de uma janela mas pelo fato de percebermos duas entidades distintas “ que se interpenetram sem que haja a destruição ótica de uma ou de outra” .

Figura 11


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E esses dois planos não são tudo, pois uma terceira superfície paralela é introduzida pela parede do fundo do terraço. Outras mais são sugeridas pela mureta da escada do jar­ dim e pelos guarda-corpos do terraço e do balcão do segundo pavimento. Por si só, cada um desses planos é incompleto e mesmo fragmentário, mas é com esses planos paralelos servindo de referência que a fachada se organiza, e que fica indicada uma estratificação em camadas verticais do espaço interno, formado por uma sucessão de espaços paralelos que se extendem para os lados, e não em profundidade. É este sistema de estratificação espacial que torna a fachada de Le Corbusier tão próxima do Léger que já examinamos. Em Three Faces, Léger concebe seu quadro como um painel modelado em baixo-relevo. Dos três campos principais que o compõem (que se superpõem, se encavilham, se incluem e se excluem um ao outro) dois estão envolvidos de forma muito próxima numa relação de profundidade equivalente, enquanto o terceiro cons­ titui uma coulisse que avança e retrocede. Em Garches, Le Corbusier recria o plano pic­ tórico de Léger através de uma ênfase marcante na visão a partir de um ponto de vista frontal (às vistas preferidas da casa só se permitem os mais leves desvios da perspectiva paralela). O segundo plano, em Le Corbusier, corresponde à tela em Léger. Outros planos são impostos em cima ou subtraídos desse dado. O espaço profundo é conseguido através do mesmo sistema em coulisse: a fachada é recortada e a profundidade inserida dentro d° vazio resultante. Estas observações que parecem indicar que Le Corbusier terá conseguido eliminar a tri-dimensionalidade inerente à arquitetura requerem explicação, e, para providenciá-la, faz-se necessário proceder a uma discussão do espaço interno do edifício. Desde logo esse espaço parece estar em completa contradição com a fachada, particularmente no andar principal (Fig. 12), onde o volume revelado é quase que oposto àquele que se podería es­ perar. Assim, o pano de vidro da fachada do jardim parece sugerir, por trás dela, a presen­ ça de um único grande espaço, cuja dimensão principal seria paralela à fachada. Mas as divisões internas do espaço desmentem qualquer destas colocações, mostrando em vez dis­


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so um volume maior perpendicular à fachada. Tanto nesse volume principal quanto nos espaços subsidiários que o cercam, a predominância dessa direção é enfatizada pelas pa­ redes periféricas. Mas a estrutura espacial deste pavimento é obviamente mais complexa do que aparenta ser à primeira vista, e nos leva a uma revisão dessas suposições iniciais. Gradual­ mente, torna-se evidente a extensão para os lados da estreita camada de espaço paralela às fachadas. A ábside da sala de jantar, a posição da escada principal, o vazio, a biblioteca, tudo reafirma essa mesma direção. Por meio desses elementos, pode-se ver que os planos percebidos na fachada operam uma profunda modificação no volume interno, aproximan­ do-o da sucessão estratificada de espaços pouco profundos que é sugerida pela fachada. Muito mais poderia ser dito sobre uma leitura dos volumes internos em termos de planos verticais, e uma leitura dos planos horizontais, os pisos, revelará características semelhantes. Assim, após constatar que um piso não é uma parede e que planos não são pinturas, ainda poderiamos examinar esses planos horizontais da mesmíssima maneira como fizemos com a fachada, mais uma vez selecionando Three Faces como um ponto de partida. Um similar do plano pictórico de Léger pode agora ser oferecido pelos telhados da cobertura e do pavilhão elíptico, pelo topo das paredes laterais e de um mirante um tanto curioso — todos pertencentes ao mesmo plano (Fig. 13). O segundo plano corresponde agora ao terraço maior e o espaço deslizante flui através do corte na laje que leva o olhar para o terraço inferior. As semelhanças são muito mais óbvias quando se considera a or­ ganização do pavimento principal. Pois aqui o equivalente vertical ao espaço profundo é introduzido pela altura dupla do terraço externo e pelo vazio que liga a sala de estar ao hall de entrada. Le Corbusier trata o espaço de sua área central da mesma maneira como Léger extende as dimensões espaciais da sua através da articulação dos limites internos dos painéis exteriores. Essa casa, portanto, apresenta a contradição de dimensões espaciais que Kepes re­ conhece como sendo característica da transparência. Há uma dialética entre o fato e a sugestão. A realidade do espaço profundo é constantemente confrontada com a indicação do espaço raso, planar. A tensão daí resultante conduz de leitura em leitura. Cada uma das cinco camadas de espaço que dividem verticalmente o volume da construção e das quatro camadas que a cortam horizontal mente, chamará altemadamente a nossa atenção, e a malha espacial resultante propiciará uma contínua instabilidade interpretativa. Esses refinamentos cerebrais são raramente visíveis na Bauhaus. Uma estética dos materiais não tem paciência para com eles. Só é literal a transparência que Giedion aplaudiu no bloco das oficinas da Bauhaus. Em Garches é a transparência fenomenal que chama a nossa atenção. E se tivemos um certo sucesso em relacionar a conquista de Le Corbusier com a de Léger, com igual justificativa poderemos aproximar as produções de Gropius e Moholy. Moholy estava sempre preocupado com a expressão do vidro, do metal, das substân­ cias refletoras e da luz, e Gropius, pelo menos nos anos 20, parecia estar igualmente preocupado com a idéia de usar materiais por causa de suas qualidades intrínsecas. Pode-se dizer, sem injustiça, que ambos receberam um certo estímulo da experiência do De Still e dos Construtivistas russos e ambos, aparentemente, relutaram em aceitar certas conquis­ tas mais parisienses.


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Foi em Paris que se explorou mais a fundo a “ descoberta" do espaço planar do Cubis­ mo. E foi lá que a idéia do plano pictórico como campo uniformemente ativado foi in­ teiramente compreendida. Em Picasso, Braque, Gris, Léger, Ozenfant, nunca temos cons­ ciência do plano pictórico funcionando passivamente. Tanto o plano como espaço ne­ gativo quanto os objetos colocados sobre ele, como figura positiva, são dotados de igual potencial de estímulo. Mas fora da escola de Paris esta condição não é típica, embora Mondrian, um parisiense por adoção, constitua uma grande exceção, assim como Klee. Mas uma rápida olhada em qualquer dos trabalhos representativos de Kandinsky, Malevitch, El Lissitzky, ou Van Doesburg, revelará que estes pintores, assim como Moholy, raramente sentem a necessidade de providenciar qualquer referência espacial distinta de seus objetos principais. Eles até estão prontos a aceitar uma simplificação da imagem cubista, com uma composição em planos geométricos, mas não aceitam a equivalente abs­ tração cubista do espaço. Por essa razão, suas pinturas mostram figuras que flutuam num vazio infinito, atmosférico e naturalista, sem a rica estratificação parisiense do volume, e a Bauhaus pode ser aceita como o seu equivalente em arquitetura. É por isto que no conjunto da Bauhaus, a estratificação espacial não chama a nossa atenção apesar de nos depararmos com uma composição de edifícios em “ lâmina” , cuja forma parecería sugerir uma leitura espacial em camadas. Através do direcionamento dos blocos dos dormitórios, dos escritórios administrativos, e da ala da oficina, o pavimento principal parece sugerir uma canalização do espaço numa só direção. No térreo a rua trans­ versal, as salas de aula e a ala do auditório sugerem um movimento em direção contrária, perpendicular. Não se dá preferência a nenhuma das direções, e o dilema resultante é resolvido — e nesse caso é a única solução possível — dando-se prioridade aos pontos de vista em diagonal. Van Doesburg e Moholy evitaram a frontalidade cubista, o mesmo fez Gropius. É significativo que enquanto as fotos publicadas de Garches evitam os ângulos diagonais, as fotografias da Bauhaus são constantemente reafirmadas pela quina translúcida do bloco de oficinas e por elementos como os balcões do dormitório e a laje protuberante sobre a en­ trada das oficinas, que requerem, para sua compreensão, a renúncia ao princípio da fron­ talidade. Em planta, a Bauhaus revela uma sucessão de espaços, mas raramente uma “ con­ tradição de dimensões espaciais . Usando as vistas diagonais, Gropius exteriorizou as direções opostas de seu espaço, deixando-as fugir para o infinito. Por não querer atribuir a elas qualquer diferença qualitativa ele impediu a possibilidade de qualquer ambigüidade em potencial. Assim, somente o perímetro de seus edifícios apresenta o caráter de uma dis­ posição em camadas, mas estas fatias de prédios raramente atuam no sentido de sugerir um espaço em camadas — seja interno ou externo. O observador, ao lhe ser negada a possi­ bilidade de penetrar num espaço estratifícado formado pior planos reais ou projeções imaginárias, também deixa de experimentar os conflitos entre um espaço explícito e um outro implícito. Ele pode desfrutar da sensação de olhar através do vidro e de ser capaz de ver o interior e o exterior da construção simultaneamente, mas, ao fazê-lo, sentirá muito poucas das ambíguas emoções que derivam da transparência fenomenal. Mas, levando-se em conta que Garches é um bloco único e a Bauhaus é formada pior


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Figura

um complexo de alas, uma comparação minuciosa entre as duas não é justa para nenhuma delas. Pois é possível que dentro das limitações de um volume único possam ser inferidas relações que numa composição mais elaborada estarão fora dos limites das possibilidades. Por esta razão talvez seja mais adequado fazer a distinção entre transparência fenomenal e literal através de uma outra comparação entre Gropius e Le Corbusier. O projeto da Liga das Nações de Le Corbusier, de 1927 (Figs. 14 e 15), possui, como a Bauhaus, elementos e funções heterogêneas e, em decorrência, uma organização volumétrica complexa. Utiliza, tal como a Bauhaus, blocos de lâminas, mas as semelhanças param por ai. Enquanto na Bauhaus os blocos se entrelaçam numa articulação que lembra muito as composições construtivistas, na Liga das Nações esses mesmos blocos estreitos e longos definem um sistema em camadas mais rigoroso, até, que aquele posto em evidência em Garches. No projeto da Liga das Nações a extensão lateral caracteriza as duas alas principais da administração, qualifica a biblioteca e a área de depósito de livros, é reenfatizada pelo pátio de entrada e pelo foyer do auditório da Assembléia Geral e chega a dominar até mesmo o próprio auditório. Neste, o pano de vidro nas paredes laterais, ao perturbar o foco normal da sala, em direção à cabine presidencial, privilegia a mesma direção transversal. Mas a


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introdução contraditória do espaço em profundidade se dá de uma maneira peremptória, principalmente através de uma forma losangular cujo eixo passa pelo bloco da Assembléia Geral, e cujo contorno se define pelo espelhamento virtual do desenho do auditório nas vias de acesso á cour d honneur. Mas, tal como em Garches, as sugestões de profundidade inerentes a esta forma são constantemente contrariadas. Um corte, um deslocamento e um deslize para o lado ocorrem ao longo da linha do eixo menor. Como figura, o losango é repetidamente atravessado e fragmentado por uma série de referências laterais — por ár­ vores, por circulações, pela densidade dos próprios edifícios — de tal forma que, finalmen­ te, em razão de uma série de implicações positivas e negativas, toda a área toma-se uma espécie de discussão monumental, uma altercação entre um espaço real e profundo e um espaço ideal e planar. Suponhamos o Palácio da Liga das Nações construído e que um observador se aproxima dele seguindo o eixo do auditório. Ele está obrigatoriamente sujeito a uma atração magnética da entrada principal, que vê emoldurada por uma barreira de árvores. Mas estas, interceptando a sua visão, introduzem também a deflexão lateral de seu in­ teresse, de tal maneira que ele se toma consciente, sucessivamente, em primeiro lugar de uma relação entre o bloco dos escritórios à direita e o parterre do primeiro plano, em segundo lugar, de uma relação entre as alamedas e o pátio do Secretariado. Na área ar­ borizada, por baixo das copas baixas das árvores, estabelece-se uma tensão ainda maior: o espaço, que se abre em direção á Assembléia Geral, é definido por, e lido como, uma projeção da biblioteca e do depósito de livros. Finalmente, ultrapassando o bosque que for­ ma um volume às siias costas, o observador acha-se de pé num terraço baixo, de frente pára a praça da entrada, mas separado dela por um espaço tão vasto que é somente pela for­ ça propulsora da caminhada já realizada que ele se habilita a alcançá-la. Seu raio de visão está desimpedido e ele tem à sua frente o Edifício da Assembléia Geral em toda a sua ex­ tensão, mas uma inesperada falta de focos de interesse compele seu olhar a deslizar ao longo dessa fachada, irresistivelmente atraído para os lados, para a vista dos jardins e do lago mais adiante. E se o observador se voltasse de costas para essa vastidão que o separa de seu objetivo óbvio, e olhasse para o bosque que acabou de atravessar, veria que o deslizamento lateral do espaço torna-se ainda mais determinado, enfatizado pelas próprias árvores e pela alameda transversal que leva a um recuo em ranhura, ao lado do depósito de livros. E, mais ainda, se nosso observador é um homem de uma certa sofisticação, e se o rompimen­ to de um volume ou barreira de árvores por uma rua lhe sugere que a função intrínseca dessa rua pode ser a de penetrar outros volumes e barreiras similares, então, por inferên­ cia, o terraço no qual ele se encontra tornar-se-ia não um prelúdio para o auditório, tal como sugerido por sua posição axial, mas uma projeção dos volumes e dos planos do edifício de escritórios com o qual está alinhado. Essa estratificação, artifício que constrói, substancializa e articula o espaço, constituise na essência dessa transparência fenomenal que tem sido apontada como sendo carac­ terística da principal tradição pós-cubista. Ela nunca foi observada no prédio da Bauhaus, pois lá, obviamente, manifestam-se concepções de espaço totalmente diferentes. No projeto da Liga das Nações, Le Corbusier fornece ao observador uma série de pontos de visão bastante definidos. Na Bauhaus o observador fica sem esse tipo de referência. Em-


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bora o projeto da Liga das Nações faça amplo uso de áreas envidraçadas, excetuando-se apenas o auditório, tamanha superfície envidraçada não tem maior importância. Na Liga das Nações, as quinas e os ângulos, indicadores das dimensões espaciais, são definidos e precisos. Na Bauhaus, Giedion nos diz, eles são “ desmaterializados” . Na Liga das Na­ ções, o espaço é cristalino, enquanto na Bauhaus é o envidraçamento que dá ao prédio uma “ translucidez cristalina” . Na Liga das Nações o vidro produz uma superfície tão precisa e tensionada quanto o couro de um tambor, enquanto na Bauhaus as paredes de vidro “ fluem uma para a outra” , “ fundem-se uma na outra , “ envolvem o edifício todo , e, agindo como ausência de planos, “ contribuem para um processo de soltura que atualmen­ te domina o panorama arquitetônico” 1". Mas buscamos em vão esta “soltura’ no Palácio da Liga das Nações. Lá não há evidência de qualquer desejo de evitar as distinções claras. Os planos de Le Corbusier são como facas prontas a dividir o espaço em fatias propor­ cionadas. Se pudéssemos atribuir ao espaço as qualidades da água, então seu edifício seria como uma represa, por meio da qual o espaço é contido, moldado, conduzido, canalizado e finalmente derramado nos jardins do parque ao longo do Lago de Genebra. Enquanto que, por contraste, a Bauhaus está ilhada num mar de contornos indefinidos, como um arrecife suavemente banhado por uma maré plácida (Fig. 26). A discussão acima, sem dúvida exageradamente longa na análise de dois projetos, um mutilado e o outro não construído, fez-se necessária para esclarecer as premissas espaciais que tornam possível a transparência fenomenal. A intenção primordial não era afirmar que a transparência fenomenal — com toda a sua ascendência cubista — é um constituinte obrigatório da arquitetura moderna, nem que a sua presença garante a ortodoxia arqui­ tetônica. Tratava-se, simplesmente, de proceder à caracterização de uma espécie, e, tam­ bém, de prevenir a confusão entre espécies.

NOTAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10.

KEPES, Gyorgy. Language o f Vision, Chicago, 1944. p. 77. MOHOLY-NAGY, László. Vision in motion, Chicago, 1947, ps. 188, 194, 159, 157. Idem, p. 210. Idem, p. 350. Entre as exceções estão estudos como o de Alfred Barr e publicações como a de Christopher Grey, Lubist Aesthetic Theory, Baltimore, 1953, e Winthorp Judkins, “ Towards a Reinterpretation of Cubism” , A ri Bulletin, Vol. X X X , n? 4, 1948. BARR. Alfredo. Picasso: Fifty Years ofhis A ri, New York, 1946, p. 68. MOHOLY-NAGY, László. The Neu> Vision and Abstract ofan A rtist, New York, 1947, p. 47. KEPES, Op. Cit., ps. 79, 117. GIEDION, Siegfried. Space Time and Architecture, Cambridge, Mas. ed. 1954, ps. 490, 491. Idem. p. 489 e Siegfried Giedion, Walter Gropius, New York, 1954, p. 54-55.

“ Transparency: literal and phenomenal” Escrito em 1955/56. Publicado em: The Mathemaiics o f the Ideal Villa and other Essays, The M .I.T. Press, Cambridge,


A arquitetura e as artes plásticas no século XVIII brasileiro

MYRIAM ANDRADE RIBEIRO DE OLIVEIRA

Inicialmente, gostaríamos de salientar a dificuldade de enquadrar nos limites de um breve texto de síntese1 as múltiplas e variadas manifestações da arquitetura e das.artes plásticas no século XVIII brasileiro, período de apogeu e coroamento da longa fase de maturação cultural e artística elaborada nos séculos precedentes, que assistiram ao trans­ plante e aculturação da civilização européia portuguesa na Terra de Santa Cruz. Política e economicamente este apogeu artístico beneficiou-se da prosperidade geral e paz relativa que caracterizam o século, que conheceu o fim das grandes invasões estran­ geiras e um novo ciclo econômico baseado no ouro das Minas Gerais. As regiões que con­ centravam, então, o poder político e econômico da colônia constituem-se em importantes centros culturais, evoluindo, até certo ponto, em circuito fechado, em virtude das enor­ mes distâncias que os separavam e da precariedade das comunicações. Essas regiões são, primeiramente, o nordeste, que apesar do declínio da produção açucareira mantinha uma certa estabilidade econômica, revigorada na segunda metade do século pela ação da companhia geral do comércio de Pernambuco e Paraíba, criada pelo Marquês de Pombal. Em seguida Minas Gerais, onde, graças às descobertas auríferas, im­ planta-se uma nova civilização, que rapidamente alcança e chega mesmo a suplantar os antigos núcleos litorâneos em riqueza material e desenvolvimento cultural e artístico. Finalmente o Rio de Janeiro, porto enriquecido com o comércio das minas e transformado em sede do governo dos vice-reis a partir de 1763, medida que precipita a decadência e es­ tagnação da antes próspera Bahia, cuja economia já se encontrava seriamente ameaçada pelo declínio da produção açucareira. Às regiões mencionadas vem somar-se, já na segunda metade do século XVIII, uma área do extremo norte, com sede em Belém do Pará, que conhece excepcional desenvol­ vimento no período, graças á ação de uma outra companhia de comércio, a do Grão Pará e Maranhão. Focalizaremos separadamente e em rápidos flashes a arquitetura e as artes plásticas desses diferentes centros culturais do Brasil setecentista, procurando integrá-las em cor­ rentes estilísticas comuns que, apesar das variações regionais, são uma das tônicas do período, sucedendo à relativa uniformidade artística dos primeiros séculos da colonização.


Forro da nave da Igreja da Conceição da Praia, Salvador, perspectiva ilusionista barroca. José Joaquim da Rocha


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A identificação de três correntes principais fundamenta a periodização do século em ciclos estilísticos, correspondendo, os dois primeiros, a fases diferentes do barroco, e o úl­ timo, ao ciclo rococó, este com manifestações sobretudo no campo das artes ornamentais, tanto no que se refere à decoração interna (talhas e pinturas) quanto externa (relevos escultóricos) dos monumentos religiosos. Antes de passarmos à análise desses ciclos, uma ressalva, entretanto, se impõe. A ex­ tensão do tema a ser tratado tomava obrigatória uma seleção, e, uma vez que optamos pela periodização a partir de correntes estilísticas, a abordagem da arte religiosa adquire sig­ nificação primordial, pois foi nesse campo que os estilos se manifestaram no Brasil colonial de forma plena e abrangente, como salientou Germain Bazin2. A igreja atuou, sem dúvida, como principal mecenas da arte desta época, marcada ainda pela ideologia contra-reformista e seu permanente objetivo de propaganda religiosa missionária. Entretanto, ao contrário do que se verificara no século XVII, que consagrou, como é sabido, o predomínio das ordens religiosas no campo da produção artística, na igreja brasileira do setecentos são as associações leigas que assumem posição de primeiro plano no setor. Esta situação de privilégio das associações leigas, conhecidas pelos nomes de confrarias, irmandades e ordens terceiras, tem origem longínqua na crise que se es­ tabelecera entre o governo português e os jesuítas, culminando na drástica medida de ex­ pulsão em 1759 e decadência generalizada das demais ordens religiosas, motivada, entre outros fatores, pelo excesso de interferências do poder civil, aliado à onda de laicismo gerada pelo século das luzes. Completam-se ainda edificações de conventos e mosteiros iniciadas no século XVII, mas praticamente não há novas fundações. O monumento religioso típico do setecentos brasileiro é a igreja de irmandade, de proporções singelas e requintada ornamentação. Sua proliferação maior foi na região de Minas Gerais colonizada no período e onde as ordens religiosas eram expressamente proibidas pelo governo português. Mas pode ser consi­ derada como característica geral da arte religiosa do século XVIII brasileiro a progressiva ascensão de artistas leigos, em sua maioria mestiços nascidos na própria colônia. O fato é de grande relevância para o desenvolvimento artístico do período, uma vez que esses artistas, mais independentes do que seus predecessores religiosos subordinados às oficinas conventuais, foram naturalmente mais abertos à assimilação de novas tendên­ cias estilísticas, como as plantas curvilíneas e a ornamentação rococó, assim como à incor­ poração de traços culturais autóctones, elaborados pela mescla racial. IP Ciclo Barroco — 1700/1730 Nas três primeiras décadas do século XVIII, a arquitetura permanece fiel aos prin­ cípios maneiristas que a haviam caracterizado até então. Aliás, de um modo geral pode-se dizer que a arquitetura religiosa no Brasil só começa realmente a se barroquizar a partir da quarta década do século, primeiramente com a introdução de plantas curvilíneas (também chamadas borromínicas) e em seguida com o desenvolvimento da decoração externa das fachadas, sobretudo no que se refere às portadas, aos frontões e aos coroamentos de torres (sob esse último aspecto constitui exceção, sem dúvida inspirada no barroco hispano-a-


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mericano, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Salvador, datada de princípios do século). Fachadas e plantas continuam, portanto, retilíneas e de grande simplicidade ornamental na primeira metade do século XVIII, mantendo a tradição do século anterior. A igreja é delimitada externamente por um volume retangular, ligeiramente desigual por causa dos ressaltos que marcam os desníveis de altura dos telhados. Dentro deste volume os cômodos se encaixam logicamente uns nos outros, englobando nave, capela-mor, sacristia transversal nos fundos do edifício e corredores em toda a extensão lateral. Um segundo pavimento forma tribunas sobre os corredores e adiciona um segundo salão acima da sacristia, denominado consistório e destinado às reuniões das irmandades. A evolução faz-se no sentido de maior simplificação e elegância dos volumes, tornando-se os corre­ dores cada vez mais estreitos, ou reduzidos ás laterais da capela-mor a partir da segunda metade do século. A esse exterior simples e despojado contrapõe-se a exuberância decorativa da or­ namentação interna, onde já imperava o barroco desde os últimos anos do século XVII. Daí a expressão “ igrejas forradas de ouro” , de acordo com a fórmula consagrada de Robert Smith, tão típicas do mundo lusitano, suntuosas cavernas douradas, com paredes e tetos inteiramente revestidos de talha dourada e pinturas encaixadas em opulentas molduras formando caixotões. Até por volta de 1730 o estilo dos retábulos é o chamado “ nacional português” , que pode ser facilmente identificado pelo emprego de colunas torsas como elemento de suporte, profusamente decoradas de enrolamentos de folhas de acanto ou videiras, passáros fênix e figurinhas de anjos. Na parte superior estas colunas são inter­ ligadas por arquivoltas do mesmo formato, toda a estrutura deixando um amplo núcleo central aberto, destinado â colocação da imagem do santo padroeiro. É importante frisar que as dimensões da imagem determinavam sempre a altura e o número de degraus es­ calonados do trono destinado â sua apresentação, variando as dimensões de ambos os elementos em sentido inversamente proporcional. O retábulo “ nacional português” , criação própria do gênio lusitano, pois não tem equivalentes em outros países europeus, difundiu-se por todo o Brasil, tendo sido exaus­ tivamente reproduzido e praticamente sem variações nas diversas regiões, ao longo das três primeiras décadas do século. Conjugado aos “ forros em caixotões” , característicos do período, tipificam os interiores religiosos do primeiro ciclo barroco brasileiro, de que cons­ tituem exemplares de primeiro plano, pela qualidade da talha, pinturas e perfeita ho­ mogeneidade estilística, os interiores da Capela Dourada, de Recife, Igreja de São Francis­ co de Assis de Salvador e, em Sabará (Minas Gerais), a Capelinha de Nossa Senhora do Ó e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. 2? Ciclo Barroco — 1730/1760 Por volta da quarta década do século, modificações fundamentais são introduzidas no quadro, até então estável e homogêneo da arquitetura religiosa colonial, modificações es­ tas processadas de forma diferenciada nos diversos centros religiosos, particularmente os nomeados acima, onde o desenvolvimento social e político propiciado pela riqueza fa­ vorecera a constituição de pólos culturais.


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Começando pela talha, onde em primeiro lugar se manifestaram modificações estilís­ ticas importantes, temos a progressiva substituição do “ nacional português” pelo cha­ mado estilo joanino , diretamente inspirado no barroco seiscentista romano e conhecido por este nome por ter vigorado em Portugal durante o reinado de D. João V, cujas pre­ ferências artísticas dirigiram-se para a Itália, interrompendo o processo autóctone. Caracteriza-se o retábulo joanino pela importância dada à estatuária integrada na talha, assim como pelo emprego de colunas salomônicas e dosséis no coroamento, cujo protótipo é o famoso baldaquino de Bemini na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Já a partir de 1726 o novo modelo é adotado na Igreja da Penitência do Rio de Janeiro pela mão dos artistas portugueses Manuel de Brito e Francisco Xavier de Brito, esse último deven­ do ter, posteriormente, importante atuação em Minas Gerais, onde influenciaria notadamente a formação do Aleijadinho escultor. Como na fase anterior, os interiores das igrejas desse novo período continuam a se apresentar como deslumbrantes cavernas douradas, todos os espaços disponíveis das paredes e tetos preenchidos pela decoração de acordo com o princípio barroco do “ horror vacui . Na ornamentação dos tetos, desaparecem os caixotões para darem lugar a pinturas ilusionistas em “ trompe ro e il” , que recobrem forros abobadados em tabuado corrido, es­ pecialmente concebidos para receberem este tipo de pintura. Os exemplos precursores de tetos em “ trompe ro e il” no Brasil encontram-se na já citada Igreja da Penitência do Rio de Janeiro e são de autoria de Caetano da Costa Coelho, que neles trabalhou a partir de 1732. Seguem de perto os princípios estabelecidos para esse gênero de pintura pelo jesuíta italiano Andréa Pozzo, autor de um tratado teórico inti­ tulado Perspectivae Pictorum atque Architectorum, publicado inicialmente em 1693 e reeditado inúmeras vezes no século XVIII, tanto na língua latina original como em suces­ sivas traduções nas principais línguas européias. Uma discrepância, entretanto, das pinturas em perspectiva ilusionista dos forros das igrejas brasileiras, comparativamente aos protótipos europeus, é a ausência da visão em perspectiva do quadro central com personagens, característica esta que também predo­ mina nas versões portuguesas do gênero. Esta adaptação algo provinciana poderia talvez ser explicada pela arraigada tradição lusitana do “ quadro de altar” , possibilitando co­ municação mais direta com os santos, retirados assim das inacessíveis alturas celestiais em que são apresentados nos modelos italianos e espanhóis, para uma situação familiar e tranqüilizadora. Na Bahia atuou o principal pintor brasileiro do gênero, José Joaquim da Rocha, cuja obra-prima é sem dúvida o forro da nave da Conceição da Praia, em Salvador, cuja pers­ pectiva arquitetônica, tratada com grande virtuosismo, configura acima das paredes reais do edifício um segundo pavimento ilusório, com requintada arquitetura de balcões, ga­ lerias e variados elementos ornamentais. Também em Recife desenvolveu-se importante escola regional de pintura ilusionista de forros de igrejas, com ramificações nos atuais estados da Paraíba e de Alagoas. Ainda insuficientemente conhecida e pesquisada, esta escola contou, entre outros, com o nome do pintor João de Deus Sepúlveda, autor do monumental forro da nave de São Pedro dos Clérigos de Recife, que tem no quadro central a figura do príncipe dos apóstolos em trajes


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pontificais, abençoando todo o mundo católico. Em Minas Gerais, os principais forros deste estilo ainda conservados encontram-se na região de Diamantina e têm caráter retardatário, como aliás toda a arte colonial do fechado distrito diamantino, verdadeiro ‘‘estado dentro de estado , por imposição do governo por tuguês. São quase todos de autoria do pintor José Soares de Araújo, natural da cidade de Braga, em Portugal, e posteriores ao ano de 1765, que assinala a chegada do artista a D iam antina.

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Quando conjugados a retábulos de estilo joanino, os tetos em pintura ilusionista bar roca perfazem sua plena identidade artística pela perfeita correspondência em termos de cronologia de estilos. Entretanto, raros são os exemplos brasileiros de interiores de igrejas perfeitamente homogêneos, primeiramente porque pressupõem toda a decoração talha e pintura — executada no mesmo período, o que nem sempre era possível em virtude da insuficiência de recursos financeiros para levar adiante duas frentes simultâneas de tra­ balhos dispendiosos, em seguida por causa dos modismos de época que muitas vezes ocasionaram substituições. Còm relação ao período que nos ocupa, a Igreja da Penitência do Rio de Janeiro é certamente um exemplar raro de perfeita homogeneidade estilística, assim como a Igreja da Ordem 3? do Carmo de Diamantina, apesar da defasagem cro­ nológica já mencionada. Com relação à arquitetura vemos, neste período que assistiu ao apogeu do ciclo mineratório baseado no ouro das Minas Gerais e às mais significativas realizações do bar­ roco no Brasil nos campos da talha e pintura, lentamente também começaram a se barroquizar os volumes arquitetônicos dos templos, cuja primitiva rigidez vai aos poucos sen­ do substituída por ritmos mais movimentados ao gosto da estética do momento. A graciosa Igreja de Nossa Senhora do Outeiro da Glória no Rio de Janeiro, cuja planta resulta do encaixe de dois polígonos alongados, e a demolida São Pedro dos Clérigos da mesma cidade (nave elíptica com intersecção de capelas semicirculares) são conside­ radas exemplos precursores do fenômeno, por datarem ainda do segundo quartel do século XVIII. Em seguida duas outras igrejas, uma em Pernambuco, a de São Pedro dos Clérigos de Recife, e outra em Minas Gerais, a Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, também adotaram o partido de naves poligonais, enxertadas, entretanto, em volumes ex­ ternos retangulares, de acordo com o partido tradicional das igrejas brasileiras. Finalmente, na virada do quinqüênio, surgem em Minas Gerais duas igrejas revo­ lucionárias para o contexto da época, as de Nossa Senhora do Rosário de Ouro Preto e São Pedro dos Clérigos de Mariana, cujas plantas, constituídas de elipses entrelaçadas, de­ rivam, em última instância, dos princípios da arquitetura barroca estabelecidos na Itália no século XVII pela famosa dupla de arquitetos romanos, Berninie Barromini. A do Rosário de Ouro Preto inclui ainda torres circulares na fachada, que não se sabe se faziam parte do projeto primitivo, pois datam de época ligeiramente posterior. As torres redondas, que se transformariam num verdadeiro “ leit-motiv” da ar­ quitetura religiosa mineira da segunda metade do setecentos, parecem, ao que tudo indica, constituir autêntica recriação regional, uma vez que inexistem nos protótipos italianos e têm raríssima incidência na arquitetura européia do século XVIII em geral. Marcam um


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Forro da capela-mor da Igreja Matriz de Santa Bárbara, Minas Gerais, perspectiva ilusionista rococó. Manuel da Costa Athaide

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tempo forte na estruturação das fachadas das igrejas do Aleijadinho, provavelmente o primeiro a empregar o motivo, logo imitado por seus contemporâneos em toda a regiào mineradora.

3? Período — Ciclo Rococó — 1760/1800 O ciclo rococó da arte colonial brasileira do século XVIII, apesar de interessar par­ ticularmente à decoração interna e externa dos monumentos religiosos, teve também manifestações no campo da arquitetura, de que constituem exemplos primordiais as igrejas projetadas pelo Aleijadinho em Minas Gerais. Estas igrejas são as de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco de Assis em Ouro Preto e São Francisco de Assis de São João dei Rei, esta última tendo tido bastante alterado o risco da fachada, como pode ser constatado comparando-se o monumento atual com o risco original do Aleijadinho conservado no Museu da Inconfidência de Ouro Preto. Em todas elas chamam imediatamente a atenção as elegantes torres circulares e as magníficas portadas com relevos em pedra-sabão, trans­ posição a céu aberto do vocabulário decorativo “ rocaille” que caracteriza também a decoração interna dessas igrejas, perfeitos exemplares de homogeneidade estilística do ciclo rococó. Geralmente considerada como a obra-prima da arquitetura religiosa do período, a igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, cujo projeto original data de 1766, tem audaciosa fachada resultante do agenciamento de curvas e contra-curvas na melhor tra­ dição borromínica. Entretanto, apesar do arredondamento de certos ângulos, não há projeção curvilínea das paredes laterais como em São Francisco de Assis de São João dei Rei ou nas igrejas do Rosário de Ouro Preto e São Pedro dos Clérigos de Mariana, men­ cionadas no item anterior, mantendo-se o conjunto do edifício bastante tradicional em ter­ mos arquitetônicos. Aliás, de um modo geral, tanto na Europa quanto no Brasil, poucas inovações carac­ terizam a arquitetura religiosa rococó comparativamente á barroca, e sua incidência, na maioria das vezes, tem caráter predominantemente funcional. Assim, em Minas Gerais, as proporções singelas das igrejas e capelas da segunda metade do século XVIII, já que destinadas a suprir as necessidades de uma única irmandade, e o maior número de aber­ turas nas paredes, proporcionando ambientes claros e arejados, onde a luz natural jorrando livremente, além de reduzir a mera função simbólica de dispendiosa utilização de velas de sebo, enfatiza, de forma adequada e de acordo com os padrões do estilo, os delicados motivos ornamentais do rococó destacados em ouro sobre fundos brancos ou coloridos em suaves tons pastéis. São verdadeiros poemas sinfônicos de luz e cor os interiores destas igrejas mineiras, nos quais talha e pintura conjugam-se harmoniosamente, produzindo impressão geral de graça, leveza e alto requinte decorativo. Em oposição aos ciclos barrocos analisados, o estilo dos retábulos no ciclo rococó não segue padrão unitário, e só na região de Minas Gerais, onde o rococó expandiu-se de forma mais livre e abrangente pela ausência, entre outros fatores, das tradicionais ordens reli­


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giosas, pelo menos quatro tipos diferentes coexistiram, todos eles sem protótipos europeus precisos. O mais popular foi o tipo que batizamos de retábulo de “ linha Servas” por ter dele feito uso em todas as suas obras o artista de origem portuguesa Francisco Vieira Servas e que pode ser facilmente reconhecido pela presença no coroamento de um gracioso motivo ornamental de linhas sinuosas, comparado por Germain Bazin à forma da “ arbaleta” utilizada pelos arqueiros medievais. Já Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, criou um tipo próprio no qual a estatuária de grande porte tem importante presença no coroamento, como nos retábulos joaninos, sem dúvida influenciado por Xavier de Brito, como já foi dito. Sua obra-prima no gênero é o retábulo principal da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, onde a talha extravasa o âmbito do retábulo propriamente dito para se expandir também pela cúpula e pelas paredes laterais da capela-mor, recriando, em ritmo rococó, isto é, com movimentos mais largos baseados no contraponto dos fundos brancos, a tradição barroca lusitana das “ cavernas douradas” . Para não nos alongarmos demais deixaremos de lado a descrição dos outros tipos de retábulos do período, passando diretamente à análise das pinturas de forros, gênero que no ciclo rococó também conheceu extraordinário desenvolvimento em Minas Gerais, con­ figurando autêntica escola regional, sem protótipos europeus claramente identificáveis, como no caso da talha. Nestes forros a perspectiva arquitetônica em “ trompe l’oeil” , antes organizada em trama compacta e de colorido sombrio, abre-se agora em amplos espaços vazados, pintados em tonalidades claras, e sua função parece ser apenas a de sustentar na região central uma ampla tarja, suntuosamente emoldurada de rocalhas, guirlandas e outros temas ornamen­ tais, na qual figuram os personagens celestiais. Os forros de Manoel da Costa Athaíde em São Francisco de Assis de Ouro Preto e matrizes de Santa Bárbara e Itaverava seguem todos este partido de composição, que coexistiu em Minas com um outro, bem mais simples, no qual a perspectiva ilusória é reduzida a um simples muro-parapeito que serve de moldura às laterais da abóbada, deixando vazia toda a parte central, na qual fica por assim dizer completamente solta a tarja ou medalhão com os personagens celestiais. Este segundo partido foi de longe o mais adotado, certamente pela maior facilidade e pelo menor dispêndio de execução, contando-se, entre os artistas que dele fizeram uso, Fran­ cisco Xavier Carneiro e os pintores recentemente identificados na região do Rio das Mor­ tes, Manoel Vitor de Jesus e José Joaquim da Natividade. Apenas em uma outra região brasileira, correspondendo prioritariamente ao atual Estado de Pernambuco e em menor escala aos de Alagoas e Paraíba, o ciclo rococó co­ nhecería, como em Minas Gerais, manifestações abrangentes e originais, interessando simultaneamente os campos da arquitetura, escultura e pintura de forros de igrejas. No campo da arquitetura a região elaborou um tipo de fachada extremamente gracioso, no qual chamam imediatamente a atenção as ondulações da cimalha e do frontão e o coroamento em forma de bulbo das torres laterais, em soluções variadas como nas igrejas mineiras. O movimento se inicia a partir de 1760, em igrejas como as de São Bento de Olinda e Nossa Senhora da Conceição das Jaqueiras, que já apresentam cimalhas li-


Tipos de Retรกbulos llesenhos de Roberto Lacerda


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geiramente arqueadas e frontões de linhas sinuosas, anunciando a evolução que se proces­ saria em seguida no sentido de uma dinamização crescente das linhas arquitetônicas destes dois elementos. Torna-se então uma constante nas fachadas das igrejas pernambucanas da segunda metade do século XVIII o movimento ondulatório das cimalhas, que arremetem contra o frontão e nele penetram, projetando-o em ascensão vertical. Na igreja do Convento do Carmo de Recife este movimento ascendente do frontão é particularmente enfatizado pela inversão em contra-curvas das ondulações da cimalha, em solução de ab­ soluta originalidade. À esquerda da igreja conventual, a Capela dos Terceiros merece tam­ bém referência especial pelo curioso desenho do seu frontão, lembrando o das cabeceiras de camas de estilo D. José, como assinalou Germain Bazin. Aliás, o desenho de linhas es­ tilizadas, conjugando curvas e contra-curvas em forte oposição, é típico do rococó da região, e está também presente no coroamento de retábulos do período, como os do altarmor da Misericórdia de Olinda e os do altar do Crucifixo da Sé na mesma cidade. Esses retábulos formam um tipo específico, que se destaca no quadro geral da talha pernam­ bucana do período pelas características regionais fortemente acentuadas, ao contrário, por exemplo, do tipo que se popularizou a partir do modelo proposto pelo altar-mor do Mos­ teiro de São Bento de Olinda, diretamente inspirado em protótipos portugueses. Finalmente, com relação á pintura de forros, registramos recentemente a existência em Pernambuco de um ciclo rococó claramente identificável, o que constituiu para nós uma surpresa, pois supúnhamos manifestações abrangentes deste gênero de pintura no período circunscritas à área de Minas Gerais. Todavia, a partir da análise de exemplares de forros como os da Igreja Matriz de Santo Antônio, Carmo e Rosário dos Pretos em Recife, juntamente com os de algumas igrejas da Paraíba e de Algoas, como a Ordem 3? do Carmo de João Pessoa e Nossa Senhora dos An­ jos de Penedo, fica patenteada a realidade de um tipo regional de pintura em perspectiva de estilo rococó. Esperando que pesquisas posteriores venham esclarecer melhor o assunto, registramos, entretanto, que a composição desses forros pintados tem certo parentesco com um tipo de forros mineiros do mesmo período, no qual a perspectiva arquitetônica é reduzida a muros-parapeitos laterais. Como em Minas, esses forros pernambucanos têm na parte central amplo espaço vazio onde se destaca a tarja com personagens celestiais emoldurada de nuvens e rocalhas, mas apresentam perspectivas arquitetônicas laterais mais elaboradas, geral mente figurando balaustradas decoradas com vasos de flores. Resta-nos falar do Rio de Janeiro e de Belém do Pará, centros que também integram de forma significativa o panorama arquitetônico e artístico brasileiro da segunda metade do século XVIII, apesar de não terem conhecido um ciclo rococó abrangente e plenamente caracterizado, como Minas e Pernambuco. A influência preponderante da arte da corte de Lisboa, sem dúvida em virtude das for­ tes ligações políticas estabelecidas no período entre a capital portuguesa e as duas cidades portuárias brasileiras, faria com que tanto nas igrejas do Rio de Janeiro construídas na época quanto nas da longínqua Belém, prevalecesse a marca do estilo pombalino, adotado nas reconstruções de Lisboa após o terremoto de 1755, sob a égide do Marquês de Pombal.


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O pombalino, caracterizado como uma espécie de “ regulamentação neoclássica do rococó” , substitui os complicados perfis arquitetônicos próprios do estilo por volumes mais simples, com ênfase nas estruturas, além de reduzir a ornamentação externa e inter­ na a elementos essenciais, nos quais, entretanto, continuam presentes formas decorativas do vocabulário “ rocaille” . Nas igrejas projetadas ou construídas em Belém pelo arquiteto de origem italiana Antônio José Landi, estes aspectos podem ser facilmente identificados, assim como, entre outras, nas de São Francisco de Paula e Ordem 3? do Carmo do Rio de Janeiro, apresentando inclusive esta última belas portadas pombalinas em pedra de lióz, importadas de Lisboa em 1760. Nas citadas igrejas cariocas, duas pequenas capelas inter­ nas, a do Noviciado do Carmo e a de Nossa Senhora das Vitórias de São Francisco de Paula, merecem referência especial pela qualidade de seu revestimento de talha rococó, documentalmente atribuída a Valentim da Fonseca e Silva, mais conhecido por Mestre Valentim. O rococó foi, portanto, também adotado na decoração interna das igrejas do Rio de Janeiro, que se afastam nesse ponto das de Lisboa, onde suas manifestações restringem-se às depurações impostas pelo pombalino. Entretanto, uma certa rigidez arcaizante ou academizante pode ser detectada nos retábulos deste estilo conservados na antiga capital dos vice-reis, prova de que o estilo não encontrou aí terreno fértil para um desenvolvimen­ to autônomo, levando à criação de tipos regionais, como no nordeste e na região das Minas.

NO TAS 1. Texto originalmente elaborado para conferência apresentada no “ Colóquio Internacional — O Século XVIII e o Brasil” , Brasília, 4/7 de junho de 1984.2 2. A principal referência bibliográfica para o estudo da arte colonial brasileira continua sendo a tese de Germain Bazin, cuja publicação francesa data de 1956/58 e só recentemente foi editada no Brasil com o titulo de A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, 2 volumes. Rio de Janeiro, Editora Record, 1983. Estudos abrangentes e atualizados do tema constituem ainda os recentes ensaios de Benedito de Lima Toledo ‘‘Do século XVI ao iniciodo século XIX: maneirismo, barroco e rococó” , in História Geral da Arte no Brasil, vol. I, São Paulo, Instituto Walther Moreira Salles, 1983, p. 88-298, e Augusto Carlos da Silva Telles. “ O Barroco no Brasil: análise da bibliografia critica e colocação de pontos de consenso e de duvida , in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n? 19, Rio de Janeiro, SPHAN/ Pró-Memória, 1984, p. 124-137.


M utações da arte na modernidade

REYNALDO ROELS JUNIOR

Desde a década de 30 até o final da de 50, Adorno produziu uma série de escritos, atualmente bastante difundidos, nos quais emerge todo um questionamento com relação ao papel social da arte, em especial a música, e seu destino na modernidade, quando passa a ser objeto de manipulação pela indústria cultural1. Tais trabalhos buscam construir uma sociologia da arte que dê conta, a um só tempo, do material artístico em sua autonomia e de seu significado no quadro das relações sociais em que se insere. O tema central de Adorno: as mutações sofridas pela arte sob o efeito de sua apro­ priação pelo sistema de relações sociais burguesas. O fenômeno por ele observado: o es­ vaziamento da música de seu conteúdo de verdade, esvaziamento operado quando aquelas relações se tornam dominantes. Tendo tido um papel predominantemente sublimador desde a antigüidade, em virtude de sua ambivalência'como instância ao mesmo tempo disciplinadora (seu lado “ apolíneo” ) e libertária (seu lado “ dionisíaco” ), a música veio a ser­ vir, quando da ascensão da burguesia, como arma contra a dominação aristocrática: o style galant, enquanto rejeição da ordem barroca imperante nas cortes européias, surgiu como uma “ promessa de felicidade” para a burguesia que apenas tomava consciência de si2. A música exercera, assim, um papel crítico e revelara uma situação real vivida pelos ho­ mens, acenando, com sua linguagem universalizante, para o fim das diferenças entre eles. Uma vez instalada no poder, contudo, a própria burguesia acaba por retirar à música seu conteúdo crítico. Já denunciada a dominação aristocrática, já cumprido seu papel, portanto, aquele conteúdo poderia, agora, denunciar a dominação que a burguesia passa a exercer. O esvaziamento se dá com a transformação da música em mercadoria: de valor de uso que era, a música passa a ser um valor de troca — e, afinal, no capitalismo, o que não é mercadoria não é coisa alguma. Como mercadoria, como produto massificado, despeja-se no mercado uma avalanche de bens incapazes de portar qualquer conteúdo crítico: a música ligeira e a música popular; e, ainda como mercadoria, neutraliza-se a única forma musical virtualmente capaz de portar aquele conteúdo: a música séria Massificado tam­ bém ele próprio, o ouvinte moderno toma-se incapaz de discernir o conteúdo do que ouve, regredindo sua discriminação auditiva a um estado em que o banal e o relevante atuam com igual força. A música na modernidade serve apenas de fundo para o silêncio que se ins-


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tala entre os homens massificados. Pois, “ ...se ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ouvir” 1. Ao esvaziar a obra de seu conteúdo, a indústria cultural massificadora oculta a essência da experiência estética. Se nenhuma das formas musicais em curso na modernidade tem mais o conteúdo crítico capaz de dar a conhecer aos homens sua condição social massificada idêntica àquela a que estão submetidos os produtos do trabalho, pois que o próprio homem se tor­ nou uma mercadoria — o gosto individual sucumbe à opinião pública. Incapaz de agir criticamente sobre o que lhe é dado ouvir, o indivíduo não pode senão aceitar como ver­ dade aquilo que lhe é imposto de fora, e fazer dessa imposição aquilo de que gosta: na ten­ tativa de preservar sua subjetividade ao comprar um “ sucesso” que já não pode julgar, ele preserva sua paz de espírito ao julgar o dinheiro que por ele pagou. A música não mais promove o reconhecimento do que quer que seja; o ouvinte moderno não mais se reco­ nhece em sua própria música, seja porque ela não pode mais promover tal reconhecimen­ to, seja porque o ouvinte não o pode compreender — sequer sabe que existe. Na moder­ nidade, a massificação da obra é um instrumento que, ocultando a essência da experiência estética, escamoteia a verdadeira natureza das relações sociais. A observar que não se trata de uma interpretação conspiratória da história que atribua à classe dominante a produção de uma verdade para si (a música séria) e uma não-verdade para as demais classes que domina (a música ligeira e a popular). Tanto uma quanto as outras são falseadas pelo sistema de relações sociais em que emergem: o efeito de ocultamento da verdade contida na experiência estética não é privilégio (ou desmérito) de nenhuma delas em particular; ao contrário, permeia todas as manifestações da arte mas­ sificada pela indústria cultural. A não-verdade que daí resulta é apresentada enquanto ver­ dade para a classe dominante, antes de ser apresentada como verdade para as outras clas­ ses. Estamos diante, não tanto de um programa deliberado de esvaziamento da arte de seu conteúdo,, quanto do efeito produzido pela própria natureza do sistema capitalista de produção. (Note-se que, aí, Adorno se coloca em oposição radical a Benjamin, para quem a massificação da obra poderia tornar-se um fator de democratização da arte.) Tanto mais que, como indica Adorno, é no mínimo problemática a tentativa de amarrar a música a sua “ origem social : se ela possui caracteres sociais específicos, não se pode, por outro lado, explicá-la pelos interesses ou tendências sociais particulares. À parte qualquer sentimento de nostalgia para com um momento privilegiado na relação entre o espectador e a obra, superado em seguida por outro momento em que aquela relação surge sob uma forma degenerada, a intenção de Adorno é indicar uma trans­ formação na função social da arte (que não se confunde com seu significado social): outrora consciência adequada das relações sociais, ela se tornou, no momento presente, uma ideologia, aparência socialmente necessária. De um lado, a “ ...arte responsável orienta-se por critérios que se aproximam muito dos do conhecimento: o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso” 5e, assim, ela é um instrumento capaz de produzir, se não o co­ nhecimento, ao menos a consciência adequada de uma realidade. De outro lado, ela “ ...se torna ideologia quando objetivamente falsa, ou enquanto contradição entre sua deter­ minação essencial e a sua função (...) enquanto recurso imediato da dominação, mas tam­ bém enquanto forma de falsa consciência, enquanto achatamento e harmonização de con­ tradições” 6.


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Já Max Weber e, depois dele, Habermas trataram do conhecimento (científico: o conhecimento por excelência na tradição ocidental) como uma ideologia. Ambos distin­ guem o conhecimento teoricamente produzido pela ciência, da ideologia da ciência — são diversos e operam em registros distintos, na medida em que, se a ciência pode justificar racionalmente seus resultados, não pode justificar a si própria da mesma maneira, mas apenas enquanto valor, quando então ela assume a forma de uma ideologia7. Quando transplantada para a arte, a questão não vai sem problemas sérios. Em primeiro lugar, a arte não constitui um conhecimento da mesma ordem da ciência: ela é “ consciência adequada , nos mesmos termos empregados por Adorno. Não se trata de uma oposição entre conhecimento e ideologia, ou cairiamos no que Badiou, ao criticar as abordagens marxistas tradicionais da arte, chama de “ discordância cruzada” , em que a atividade ar­ tística é situada na superestrutura ideológica mas mantém relações “ clandestinas” com o conhecimento: situação em que seria necessário esclarecer os vínculos que a boa arte man­ tém com a verdade — e a má arte, com a ideologia8. A tese de Adorno gira em torno da noção de consciência adequada ou, encurtando o caminho, consciência de classe. Assim, a consciência de classe poderia ser a matriz de uma verdade na arte, quando ela refletisse corretamente uma situação de classe; ou ela, ao contrário, seria a matriz de uma não-ver­ dade na arte, no caso de ela ser a expressão de valores de classe alienados. Com isso, é necessário introduzir uma noção bastante problemática — a alienação. Pois esta é uma noção que só pode ser definida se definido simultaneamente seu contrário — a não-alienação. No caso, esta última pode ser considerada como a representação das condições reais de existência das classes, aparecendo então a alienação como a representação de condições de existência falsas ou imaginárias. O problema assim colocado, contudo, não resolve o impasse inicial, porque a consciência de classe, seja ela alienada ou não, é uma forma ideológica, na medida em que é um reflexo das condições (reais e imaginárias) de existên­ cia das classes; ela é representação da forma como são vividas aquelas condições — ou já não poderiamos mais falar em consciência. Se a arte estiver atrelada, portanto, à questão da consciência de classe — uma ideologia que revela e oculta, ao mesmo tempo, as con­ dições de existência das classes —, toda arte deverá carregar em si, independentemente de ser boa ou má arte, elementos que revelem e ocultem ao mesmo tempo a condição das classes. O que, por fim, resulta em ter de distinguir entre a boa e a má ideologias para que se chegue à boa e à má artes. Postular que a arte, enquanto consciência de classe, possa ser portadora de uma verdade e, no momento seguinte, uma instância ocultadora daquela ver­ dade, pode ser uma proposição politicamente útil, mas certamente com pouco valor ex­ plicativo. Na realidade, Adorno pretende menos explicar do que encontrar uma saída para a questão que o preocupa: a instrumentalização da arte em uma sociedade cada vez mais racionalizada, em que os meios técnicos de administração das questões adquirem primazia sobre os fins políticos gerais da sociedade. A causa por ele defendida é a da repolitização da arte enquanto esfera em que emerge a denúncia daqueles fins, capaz de superar os entraves criados pela racionalização. (Não se trata de propor uma arte engajada, no entanto. Através de extensa argumentação técnica que não interessa expor aqui, Adorno demons­ tra ser o significado político da arte imanente ao próprio material artístico, e não ao seu


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“ conteúdo” — motivo pelo qual, talvez, tenha ele preferido tratar mais da música do que de qualquer outra forma artística. A arte engajada, enquanto tal, não atacaria o cerne da questão.) Fica-se, desta maneira, com a arte enquanto questão subversiva na qual, a uma or­ dem, pode-se opor uma ética; em que, a uma razão, pode-se contrapor uma vontade racional, pois, assim como a racionalidade do mundo moderno é fundamentalmente ir­ racional, a ética que se lhe opuser pode perfeitamente ser racional. Sem paradoxo algum, como ele tenta demonstrar recorrendo ao style galant como modelo de rebeldia que se ins­ titui em ordem. E se, pelo lado interno da arte, a repolitização poderia ser um recurso para romper com sua manipulação pela indústria cultural, resta ainda o lado do público: aquela não seria viável “ ...se houvesse resistência, por parte do público (...) capaz de romper, com suas exigências, as barreiras que delimitam o que o mercado lhes oferece” 9. É preciso, assim, um duplo esforço de repolitização, tanto pelo lado da produção artística quanto de seu consumo. O que permitiu o style galant como crítica relevante da socie­ dade foi exatamente aquilo que a racionalidade moderna liquidou: o indivíduo, fundante do gosto, substituído pela massa caricaturada em soma de individualidades, incapaz de, em seu estado atual de alienação, ceder aos apelos para fazer a função social da arte novamente corresponder a seu significado. Que caminhos poderão ser tomados a esse respeito, essa é uma questão que Adorno deixa em aberto: mesmo por ser imprevisível o que poderá resul­ tar desse estado de degenerescência, quer da arte, quer de seu público, seja para melhor, seja para pior. Talvez a vertente mais rica da questão tenha sido apenas tocada por Adorno, para, logo em seguida, ser deixada de lado, em parte talvez pela necessidade de enfatizar os efeitos da manipulação do gosto pela indústria cultural. A distinção possível entre uma ideologia da arte e o discurso da arte (tal como, em Weber ou em Habermas, temos um discurso da ciência diverso de uma ideologia da ciência) poderia resultar em um tratamen­ to mais fértil do problema. Assim como a vulgarização da ciência, que a transforma em ideologia, não neutraliza seu significado (encontra-se aqui a mesma defasagem entre fun­ ção e significado sociais), também a manipulação da arte não necessariamente neutraliza seu significado. Tal distinção é reconhecida, mas não tratada, por Adorno, com o resul­ tado que, ao fim, toda arte perde seu sentido diante das condições sociais atuais: pois aquela que for capaz de fazer frente a essas condições tornará a ser autêntica, quebrando-se o círculo vicioso em que se encontra a arte na modernidade. Se é possível apontar uma defasagem entre a obra e a experiência vivida através dela (já se chamou tal defasagem o drama da arte moderna: para poder afirmar-se em sua autonomia, ela precisou abrir mão de sua relação com o espectador), isso não implica que ela tenha sido condenada à im­ potência. a tensão entre sua função e seu significado atuais pode estar servindo para abrir brechas na ordem que manipula aquela função para ocultar seu significado.

NOTAS I

e ^ escr'tos sobre música mais conhecidos, alguns estão traduzidos para o português: “ SchoenJ Hf o rogresso ( . travinsky e a Restauração’ , ambos reunidos em livro com o titulo Filosofia da


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Nova Música (São Paulo, Perspectiva, col. “ Estudos” , 1974), ao qual Adorno acrescentou uma in­ trodução; "O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição” e “ Idéias para uma Sociologia da Música estão incluídos no volume dedicado á Escola de Frankfurt da coleção “ Os Pensadores” ; W. Benjamin, M. Horkheimer, T h. W. Adorno e J. Habermas, Textos Escolhidos (São Paulo, Abril Cul­ tural, 1980). Outros trabalhos, notadamente aqueles sobre Wagner, Mahler e o jazz, ainda não foram traduzidos para o português. 2. Trata-se aqui do bourgeois gentilhom me dos salões cultos nas capitais do século XVIII, e não do citoyen pressuposto pelas sinfonias de Beethoven. A notar a defasagem entre o lugar clássico de emergência da consciência burguesa, a França, e aquele do desenvolvimento do novo estilo: os experimentos e as con­ sequências mais radicais foram realizados nas cortes da Europa Central. As criticas de Rousseau à ordem barroca foram muito mais importantes que as suas experiências musicais. 3. Não é questão aqui de a música séria ser a música das classes dominantes, e a popular, aquela do povo. Adorno não compartilha dessa idéia, uma vez que, para ele. a música é indistintamente apropriada pela indústria cultural e o efeito de mascaramento de seu significado afeta os ouvidos em todas as classes. O que não quer dizer que a “ boa música” esteja ao acesso de todos, mas que nem mesmo aqueles que a ela têm acesso a compreendem. Aliás, a existência das variantes erudita e popular em música (o fenômeno é praticamente desconhecido pelas demais artes, além de estar restrito ao ocidente moderno) não pode ser explicada pelos conceitos correntes de “ culto” e “ espontâneo” , que supõem a divisão social da pro­ dução artística. A música popular nada tem de espontânea e, em boa parte dos casos, sequer tem raizes populares. Muito da música popular internacional tem origem no lied clássico e romântico — formas cultas simplificadas para a execução doméstica, assim como as transcrições para duo ou trio de árias de Mozart, ou mesmo de sinfonias inteiras de Beethoven, “ populares” desde o início do século XIX, senão antes. As trilhas sonoras divulgadas pelo cinema, em nada eruditas, revelam a influência de com­ positores tão espontâneos quanto Tchaikovsky, Grieg, Gershwin e Rachmaninoff. As manifestações musicais do ocidente mais aparentemente desligadas da produção de elite — do folclore ao rock — ainda seguem princípios estabelecidos, em sua maior parte, no âmbito da música tonal culta: a escala diatônica, a modulação, o ritmo e a métrica, predominantes por mais de 300 anos. A revalorização, ora em voga, da música popular, quando em detrimento do que se convencionou chamar, pejorativamente, de arte “ de elite", não passa, no melhor dos casos, de interpretações pela metade de teorias como a de Bourdieu, que não vê na arte erudita qualquer valor transcendental, e só a considera sob o ponto de vista do reconhecimento de privilégios sociais — o “ consumo conspicuo das classes abastadas . Mas, tam­ bém. pelo mesmo motivo, não reconhece qualquer valor na arte popular, que para ele — e, também, em boa parte, para Adorno - não passa do resíduo descartado pela arte culta. 4. ADORNO, Th. W. “ O Fetichismo na M úsica...” , op. cit., p. 166. 3. Id-, íbid., p. 165. 6. Id., “ Idéias para uma Sociologia da Música , op. cit., p. 260e ss. 7. Cf. WEBER. M. “ Ciência como Vocação” em Estudos de Sociologia (Rio de Janeiro, Zahar, 1974); H ABERM AS, J. "Ciência e Técnica enquanto Ideologia” em Benjamin et al., op cit. 8. BADIOU. A. “ A Autonomia do Processo Estético” em Eduardo Prado Coelho (org.), Estruturalismo Antologia de Textos Teóricos (Lisboa, Portugália, s.d., p. 398 e ss.). 9. ADORNO, Th. W. "O Fetichismo na Música...” , op. cit., p. 179.

Agradeço a Wilson Coutinho pelo incentivo e por sua leitura atenta e comentários, sempre pertinentes. As falhas são, naturalmente, de minha responsabilidade. REYNALDO ROELS JUNIOR é aluno do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, da PUC/RJ.



M ahler e K lim t: experiência social e evolução artística

CARL £. SCHORSKE Tradução: Ana Cristina Figueiredo e Gustavo Meyer

Todos os que se voltaram para a vida quase mítica de Gustav Mahler devem ter-se defrontado com o marcante episódio de sua partida de Viena após sua demissão da Hofoper.l A19 de dezembro de 1907, na Westbanhof, uma multidão de admiradores, secre­ tamente mobilizados para evitar publicidade, reuniu-se na plataforma para dar adeus ao venerado diretor. Quando o trem pôs-se em movimento na manhã cinzenta, a multidão permaneceu alguns minutos num silêncio sombrio, transida. Então, Gustav Klimt, nor­ malmente o mais silencioso dos homens, encontrou uma voz para todos. Encontrou-a numa única palavra: “Vorbei O que passou? No nivel mais óbvio, claro, tratava-se da década em que Mahler reinara na Ópera, revitalizando aquela arte de corte dentro de uma rigorosa disciplina bur­ guesa e uma absoluta dedicação à própria arte. Mas para Klimt, que não tinha mais afi­ nidade com a música do que Mahler com a pintura, a partida do maestro estava carregada de ressonâncias ainda maiores. Durante 1907, o próprio Klimt sofrerá terríveis reveses em sua vida pública de artista. Elevado, a princípio, pela oficialidade imperial e municipal, a representante de primeira grandeza da modernidade artística na Áustria, logo foi aban­ donado por seus patronos políticos sob a impiedosa pressão de seus críticos da antiga es­ querda liberal e da nova direita cristã. Ele se confinara a um estreito círculo de admira­ dores e patronos particulares. Durante quatro anos sua obra não foi exibida em Viena. Como Mahler, ainda que tendo partido de um ponto diferente, Klimt participou do grande esforço para revitalizar as artes na Áustria, e, através da arte, regenerar a cultura austríaca como um todo. As carreiras desses dois artistas muitas vezes correram para­ lelamente, cruzaram-se ocasionalmente, e, freqüentemente, responderam de maneiras semelhantes à mesma crise da sociedade e da cultura liberais. Em 1907, os esforços de am­ bos para revitalizar a cultura austríaca pareciam estar bloqueados. / Nascidos com uma diferença de apenas dois anos, Klimt e Mahler foram educados na autoconfiante cultura do liberalismo ascendente do final dos anos 1870. À medida que a ’ Passou. (N. T.) Esta e demais expressões em alemão estão no original em inglês.


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burguesia apropriou-se das artes tradicionais da Á ustria, construindo seu novo mundo de Recht e K ultur*, as artes teatrais e representativas ocuparam uma posição central. En­ quanto os melhores pintores de Paris, ou mesmo Berlim, já haviam há muito abandonado a pintura decorativa em favor de telas autônomas para um mercado anônimo, Klimt, como, antes dele, Makart, foi atraído para a pintura arquitetônica como ainda sendo o ramo mais prestigiado de sua arte na Áustria. ' D urante os anos 1880, enquanto Mahler iniciava sua carreira de maestro em salas de ópera do interior, Klimt também trabalhava em teatros, pintando tetos e murais nos teatros de Fiume e Karlsbad. Sua encomenda máxima foi para decorar uma grande escadaria no novo teatro municipal de Viena, na Ring­ strasse, com uma série de pinturas de teto com cenas teatrais, desde o festival de Dioniso até os tempos modernos. O programa desses painéis mostra o quão intimamente o velho liberalismo havia integrado as visões teatral e histórica. Cada mural celebrava a unidade do teatro e da sociedade, enquanto a série como um todo representava a absorção triunfante do teatro do passado no rico ecletismo da cultura da Ringstrasse. Assim, uma cena do teatro dè Shakespeare representava não apenas os atores no palco, mas também o público da época que se espelhava no teatro. Mais ainda: Klim t registrou na pintura seu próprio sentido de identificação com a cultura à qual servia como artista. Retratou-se, em com­ panhia de seu parceiro e de seu irmão, como um m em bro da platéia elizabetana. Como os antigos pintores que se colocaram como testemunhas em cenas dramáticas da religião cris­ tã, Klimt historicizou-se como participante da religião da arte dramática vienense. Em 1887, o Conselho Municipal encomendou a Klimt e seu parceiro, Franz Matsh, a pintura do velho teatro municipal, antes da mudança para o novo prédio. Não apenas o palco, mas também os patronos foram imortalizados na pintura. Klimt fez um retrato de grupo, reunindo aristocratas e burgueses cultos, de Viena, inclusive a atriz Katherina Schratt, amiga do imperador, o Dr. Theodor Billroth, e o futuro prefeito Karl Lueger. O trabalho valeu-lhe o Prêmio do Imperador em 1890, e assegurou sua reputação de jovem pintor de destaque. O estilo e o idioma icônico com que Klimt trabalhou nessa década de formação re­ fletiam os valores da alta cultura na Ringstrasse. N o seu A ten a , feito para o grande vestíbulodo Kunsthistorisches M useum, em 1891, o espírito histórico positivista celebra um triunfo quase fotográfico (Fig. I). A deusa é modelada de uma maneira sólida, suavemente realista. Segurando sua pesada Nike e sua lança, ela posa como uma jovem matrona vienense experimentando um traje de baile. Com precisão estudada, Klimt coloca como fundo uma parede com o idioma ornamental da Grécia clássica. Com a mesma fidelidade histórica, ele pinta mulheres representativas de outras grandes épocas culturais para os tímpanos do museu — egípcias, renascimentistas, etc. Assim, enquanto Klimt identificava-se inteiram ente com a cultura da Ringstrasse, Mahler tomava um caminho um tanto diferente, ligando-se a uma orientação fortemente ta 6 nac*ona^^ue ernP°lg°u a jovem burguesia depois da Guerra Franco-Prussiana. ara xalmente, o sentimento populista mais intensificado de Mahler estava relacionado ao ato e que ele era, por formação intelectual e educação, se não por origem social, em ro e uma classe mais elevada do que a de Klim t. Filho de um gravador de ouro, * Direito e cultura (N. T.)


Fig. I. A tena (tím pano da escadaria do K u n sth isto risc h es M useum ), 1890-91

Klimt, com seus dois irmãos, estava destinado por seu pai ao artesanato. Assim frequentou apenas a Escola de Artes e Ofícios, e não teve nenhum acesso formal à cultura de elite. Como um artista artesanal, Klimt foi o executor dos programas decorativos definidos por seus patronos, cuja cultura aceitou acriticamente, porque de uma classe superior à sua, até os anos 1890. Ainda que o pai de Mahler tenha começado como ven­ dedor ambulante judeu, ele e sua mulher prezavam a alta cultura alemã. Para cultivar os dons musicais do filho, enviaram-no para o Conservatório em Viena com quinze anos de idade, garantindo, porém, sua formação humanística no ensino secundário e a ida para a universidade. Ainda que o Conservatório fosse uma cidadela da ortodoxia musical clássica, Mahler, e muitos de seus companheiros, eram inteiramente fascinados por Richard Wagner. Para um jovem tão imerso na leitura de filosofia e literatura como Mahler, Wagner represen­ tava muito mais do que apenas um radicalismo musical. Durante os anos em que Mahler esteve na universidade (1878-1881), Wagner era o herói dos movimentos estudantis nacionalistas e populistas, com fortes tendências antiliberais e sociais. Mahler reforçava essa ideologia com seu próprio romantismo de cunho popular, enaltecendo o povo como a


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expressão do genuíno e do natural no homem. Foi assim que ele se voltou para a poesia popular reunida no Knaben Wunderhorn como a principal fonte de inspiração literária em suas primeiras décadas como compositor (através das quatro primeiras sinfonias). O fato de que os colecionadores da poesia folclórica do Knabem Wunderhorn na era napoleônica, Arnim e Brentano, fossem jovens aristocratas révoltés contra a elite cultural afrancesada de seu tempo, torna facilmente compreensível a redescoberta de seu populismo romântico por Mahler durante a crise da cultura liberal. A relação entre origem social e comprometimento ideológico era paradoxalmente in­ versa em Klimte Mahler em seus primeiros anos. Klimt, o artista da classe artesã, tomava seus assuntos e iconografia quase que exclusivamente da cultura aristocrática clássica da elite burguesa. Mahler, herdeiro da Bildung* burguesa, exaltava as verdades do povo. Nas Ueden eines fahrenden Gesellen, que surgiram de uma experiência pessoal de amor nãocompreendido, Mahler deu maior vulto a seu individualismo romântico, identifícando-se com um artesão. “ As canções foram concebidas em conjunto” , escreveu, “ como se um trabalhador ambulante que tivesse sofrido um golpe do destino saísse para o mundo e agora vagasse sem destino” . 2 Klimt não expressava tal afinidade com a sorte do homem do povo. Apenas o engajamento de suas respectivas artes com o teatro, e sua devoção por um ideal de teatro como um espelho público do homem, davam uma plataforma comum para Mahler e Klimt, esses dois filhos tão diferentes da era da Ringstrasse. II Em meados da década de 1890, Klimt começou a mudar em uma direção que o levou para mais perto das idéias de Mahler. Ele tornou-se, de fato, o líder dos Jungen nas artes plásticas. Uma revolta de geração contra o velho liberalismo, o movimento vagamente chamado die Jungen apareceu primeiro na política, entre jovens universitários, nos anos 1870, com reivindicações de reformas sociais e nacionais. A esta leva pertenceram não apenas Mahler e seu amigo o filósofo Siegfried Lipiner, mas também Theodor Herzl, Sigmund Freud, Heinrich Friedjung e Victor Adler. Por volta de 1890, o movimento expan­ diu-se para a literatura, onde a revolta contra a moralidade burguesa tomou a forma menos política de exploração da sexualidade, suas glórias e suas angústias. Em 1897, os artistas plásticos, por sua vez, romperam com seus mestres na Künstlerhaus e fundaram a Seces­ são. Klimt foi seu primeiro presidente e spirtus rector, mas seus ideólogos foram dois veteranos dos Jungen na política e na literatura, Herm ann Bahr e Max Burckhard. Am­ bos tinham sido wagnerianos e nietzscheanos, ambos ligados a teatro — Bahr como autor e crítico, Burckhard como diretor do teatro municipal desde 1890. Na revista da Secessão, Ver Sacrutn (o próprio título proclama a finalidade regenerativa do movimento), os dois porta-vozes declararam guerra à cultura mumificada dos antigos. Foi em suàs páginas que Adolf Loos primeiro atacou a Viena da Ringstrasse como uma cidade de Potemkim. No primeiro número da Ver Sacrum, Klimt exibiu uma torrente de experiências es­ tilísticas. colofãos, desenhos bidimensionais, esboços a lápis, desenhos de tipos, cartuns. Proclamava-se tanto a dissolução como o renascimento. O manuseio livre e inventivo que Formação. (N. T.)


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Fig. II. Teseu. cartaz para a Primeira Exposição da Secessão, 1897


Fig. III. Palas Atena, 1898

Klimt fazia de seu rico repertório de matéria visual lembra uma das irônicas transfor­ mações temáticas e a experiência formal da Primeira Sinfonia de Mahler, embora Klimt ainda não houvesse tentado uma forma estruturada comparável. Como Mahler, quando trábalhou Frère Jacques como tema fúnebre, Klimt quebrou as referências fixas de imagens familiares e a coerência de associações tradicionais, associando novos significados a velhos símbolos icônicos, numa espécie de forma metamórfica na qual a contradição lógica aparece como verdade orgânica. Ele transmitiu a idéia crítica de que as coisas não são o que parecem, não apenas pela fratura do sistema de signos, mas também por rápidas mudanças de estilo, semelhantes ao abandono de M ahler de uma textura orquestral única em favor de agrupamentos instrumentais sempre cambiantes. O populismo, note-se, não teve a menor importância para Klimt, donde ele não empregou, como Mahler, iconografia popular para transmitir seus próprios valores. Sua crítica da cultura dominante era ex-


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clusivamente estética e psicológica. Até para proclamar sua ruptura com ela usou a própria iconografia clássica. Para a primeira exposição da Secessão, Klimt fez um cartaz proclamando a revolta de geração. Escolheu como veiculo o mito de Teseu, que matou o brutal Minotauro para libertar a juventude de Atenas (Fig. II). Observemos que Klimt não apresenta o tema diretamente, mas — de acordo com seu compromisso com a poderosa tradição de teatro da Áustria — em forma de uma cena dramática, como se fosse o primeiro ato do drama da Secessão. Atena, sábia virgem protetora da pólis, tinha sido escolhida pelos liberais aus­ tríacos para ser posta em frente ao novo Parlamento como um símbolo da comunidade política racional. Klimt apropria-se dela como patrocinadora da libertação das artes pela juventude. Percorreu-se o caminho da política à cultura como o local da ação. A técnica de representação de Klimt mudou junto com seu engajamento. Em sua primeira Atena, no tímpano do museu, a deusa tinha um corpo, substância. Agora, no cartaz, ela é bidimensional — a nova maneira de Klimt formular uma abstração. Atena patrocina uma idéia dramática; já que esta ainda não está realizada, ele a apresenta descorporificada, alegórica, no palco. Uma pintura mais importante de Atena, em 1898, mostra o crescimento de Klimt na exploração subversiva do estilo metamórfico (Fig. III). Para entendê-lo, deve-se ter em vista uma outra figura feminina que Klimt imaginara como um símbolo de seu engaja­ mento com a verdade para o homem “ moderno” : Nuda veritas. Ela começou como um desenho bidimensional para a Ver Sacrum. Depois, para Hermann Bahr, Klimt fez uma outra versão, modelada, carnal, emblemática de suas pesquisas artísticas da vida erótica. Na versão final de A tena, o destino da Nuda veritas converge com o da deusa. A própria Atena, longe da simples solidez de sua persona no Kunsthistorisches Museum, ou da abs­ tração bidimensional do cartaz de Teseu, está agora vagameftte modelada, impassível, mas com força enigmática. H á, porém, mudanças maiores ainda no caráter da Atena. A tradicional Nike, vitória alada, não está mais nas mãos de Atena. Em seu lugar está Nuda veritas empunhando seu espelho para o homem moderno. Mas também Nuda veritas mudou. Antes, uma figura desgarrada, bidimensional; agora, a mulher sensual da versão de Bahr, de cabelos ruivos flamejantes. Aqui temos um ponto crucial na emergência de uma nova cultura a partir da antiga. Klimt distorceu a velha iconografia de um modo real­ mente subversivo: Atena, deusa virgem, símbolo recente da pólis constitucional austríaca e de erudição ordenadora, agora empunha em seu globo a sensual portadora do espelho do homem moderno. Klimt dedicou-se tanto á transformação dos símbolos quanto à dessublimação da arte. No mesmo ano, 1898, Klimt também ingressa no mundo de idéias em que Mahler já se movia. Pintou, para a sala de música de Nicolaus Dumba, dois painéis representando a função da música de duas maneiras contrastantes: um, Schubert ao piano, é histórico e social; o outro, Música, mostrando uma sacerdotisa grega cõm uma citara, é mítico e psicológico. Nesses painéis, a alegria biedermeieriana e a inquietude dionisíaca confron­ tam-se no salão. O painel de Schubert (Fig. IV) representa a Hausmusik , a música como * Biedermeier: Um dos últimos períodos do Romantismo alemão em que dominou o gosto essencialmente burguês; marcou o início da decadência do romantismo nos países de língua alemã. *’ Música doméstica. (N. T .)


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o ápice estético de uma existência social ordenada e segura. A cena é banhada de uina cálida luz que suaviza os contornos das figuras como que para integrá-las numa harmonia social Na composição formal e temporal, é uma pintura de gênero histórico, bem na linha das pinturas de Klimt para o teto do teatro municipal. Mas agora a substancialidade da­ quelas antigas obras, com seu engajamento positivista para recriar realisticamente wie es eigentlich gewesen*, foi diligentemente expurgado. Adaptando técnicas impressionistas ao seu trabalho, Klimt substitui a reconstrução histórica pela evocação nostálgica. Ele nos mostra em sua pintura um sonho amável, apaixonado, mas etéreo, de uma inocente e reconfortante Hausmusik, uma arte que servia a um a sociedade confortável. Vem logo à memória a canção do próprio Schubert, A n die M u sik, na qual o poeta agradece a sua holdeKunst** por “ transportá-lo para um mundo m elhor . Como muitos outros burgueses seus contemporâneos, Klimt recorda a antes odiada época de Metternich como a graciosa e simples era de Schubert — um paraíso perdido biedermeieriano. É o mesmo mundo que Mahler resgatou na utopia mais deliberadamente de cunho popular, menos elitista, do alegre e angélico coro do movimento final da Quarta Sinfonia; ou então nas danças ligeiras das Terceira e Quarta Sinfonias; e nos termos absolutamente biedermeierianos que usa na partitura para as indicações para os intérpretes, tais como “behaglicht , 'gemàchnicht (aconchegante, confortável). O outro painel é muito diferente, tanto em idéia quanto em execução (Fig. V). Em contraste com o espaço dissolvido do impressionismo no Schubert, Klimt ocupa a tela com símbolos arcaicos representados realisticamente, como se tivessem sobrevivido enquanto restos arqueológicos. A concepção de arte e os símbolos para veiculá-la mostram a dívida de Klimt para com duas figuras que desempenham um importante papel em toda a crise do racionalismo fin-de-siècle, e que trouxeram Klimt para o mundo filosófico de Mahler: Schopenhauer e Nietzsche. A música aparece na pintura de Klimt como uma musa trágica, uma cantora, com o poder de transformar os instintos sufocados e o misterioso poder cósmico em harmonia. Os símbolos que a acompanham são os que Nietzsche usou no Nascimento da tragédia: o instrumento da cantora é o de Apoio — uma citara; mas a matéria de sua canção parecería ser de Dioniso. N o túm ulo de pedra atrás dela estão duas figuras: uma é Sileno, o companheiro de Dioniso, a quem Nietzsche chamou “ um sím­ bolo da onipotência sexual da natureza” e o “ companheiro dos sofrimentos do deus” . A outra figura é a Esfinge, mãe devoradora de seus filhos, encarnação do continuum metamórfico do animal e do homem, do terror e da beleza feminina. Sileno e a Esfinge pa­ recem representar as forças instintivas sufocadas que o mago de Apoio, do túmulo do tem­ po, evocará em canto. Assim, em frente ao paraíso histórico perdido, suavemente apai­ xonado, de Schubert, estão os símbolos arquetípicos das energias instintivas, aos quais a arte tem um acesso misterioso através do pesado tampo de pedra da arca da civilização. Para Klimt, como para Mahler na Terceira Sinfonia, o grande deus Pã parece ajustado à compostura e simplicidade biedermeieriana, num a estranha dialética de vitalismo de­ moníaco e ingenuidade histórico-utópica.

Como realmente aconteceu. (N. T.) Arte sagrada. (N. T.)


Fig. V. Música, 1898


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III Enquanto Mahler passou a ser considerado um músico filosófico, Klimt em geral é visto como o pintor da vida sensual. Entretanto, seus contemporâneos mais perspicazes tinham uma visão mais abrangente. “ Gustav K lim t” , escreveu o poeta Peter Altenberg, ‘‘você é ao mesmo tempo um pintor de visão e um filósofo moderno. Em suma, um poeta moderno” . Uma encomenda para pintar o teto do salão cerimonial da nova Universidade de Viena deu a Klimt a oportunidade de apresentar integralmente sua visão filosófica an­ tecipada na sala de música de Dumba. As autoridades docentes e o ministro da Cultura escolheram um tema central para as pinturas do teto no espírito do Iluminismo tradicional: o triunfo da Luz sobre as Trevas. Klimt deveria produzir representações alegóricas de três das quatro faculdades: Filosofia, Medicina e Jurisprudência.3 N o Filosofia, Klimt demonstra ser ainda herdeiro de uma cultura teatral (Fig. VI). Ele nos apresenta o mundo como se o avistássemos do fundo do teatro, como um theatrum m undi na tradição barroca. Mas enquanto o theatrum mundi barroco era nitidamente estratificado em céu, terra e inferno, agora a terra parece ter desaparecido, dissolvida numa fusão das outras duas esferas. Os corpos entrelaçados da humanidade sofredora se deixam levar lentamente, sem paradeiro, suspensos num vácuo viscoso. Vindo da escuridão cósmica — as estrelas estão bem atrás — uma pesada esfinge sonolenta emerge pouco nítida e ameaçadora, vista apenas como uma condensação do es­ paço atomizado. Apenas o rosto na base do quadro sugere, em sua luminosidade, a exis­ tência de uma consciência. Das Wissen*, como o catálogo a intitula, é colocada sob as luzes da ribalta no lugar do ponto virado ao contrário, como se estivesse nos intimando, a platéia, a penetrar no drama cósmico. Aqui a visão de Klimt do universo é a mesma de Schopenhauer — o mundo como vontade, como energia cega num torvelinho interminável do novo sem sentido, do amor e da morte. Em sua Terceira Sinfonia, Mahler desenvolveu, em 1895-96, uma visão do universo semelhante á concebida pelo vitalismo schopenhaueriano. Mas Mahler manteve um cosmos ainda organizado segundo a hierarquia barroca do ser, enquanto o cosmos de Klimt era amorfo. Onde o pintor e o músico convergem é na imagem crucial do intérprete do cosmos. Para Klimt é das Wissen\ para M ahler é o solista no quarto movimento da Terceira Sinfonia que canta o sombrio e rapsódico ‘‘Canto ébrio da meia-noite”'* de Zaratustra. De fato, a magnífica versão musical de M ahler para o canto de Nietzsche per­ mite ao observador do Filosofia de Klimt outro tipo de acesso á visão de mundo doloro­ samente psicologizada daquela geração intelectual — uma visão que afirma simulta­ neamente o desejo (Lust) e sofre a mortal dissolução das fronteiras entre o eu e o mundo que o desejo ordena. É uma visão cósmica totalm ente subversiva da visão de mundo libe ral-racionalis ta:

A sabedoria. (N. T.)


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Ô homem! Presta atenção! Que diz a meia-noite em seu bordão? “Eu dormia, dormia... Fui acordada de um sono profundo: Profundo é o mundo! E mais profundo do que pensa o dia. Profundo é o seu sofrimento — E o prazer — mais profundo do que a ansiedade. A dor diz: “ Passa momento! ” Mas quer todo o prazer da eternidade — Quer profunda, profunda eternidade*

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O Mensch! Gib acht: Was spricht die tiefe Mitternacht? Ich schlief, ich schlief— Aus tiefem Traum bin ich erwacht;— Die Welt is tief, Und tiefer ais der Tag gedacht. T iefistihr Weh— Lust—tiefer noch ais Herzeleid; Weh spricht: Vergeh! Doch alie Lust will Ewigkeit— will tiefe, tiefe Ewigkeit!

A explicação de Nietzsche para o seu “ Canto da Meia-Noite” no apaixonado final de Assim falou Zaratustra parece ter sido escrita para elucidar a pintura de Klimt. Nietzsche chama a cantora da meia-noite de “ esta poeta ébria” que tornou-se, como sugerem seus brilhantes olhos arregalados, “ hiperacordada” (überwach). Como a poeta de Nietzsche, a Wissen de Klimt mergulha no sonho da dor — e mais, deseja (Lust) a própria dor — para afirmar a vida em sua misteriosa totalidade: “ Vós dizeis ‘sim’ a um único desejo? Ó amigos, então dizeis ‘sim ’ a toda dor” . Como na cadeia flutuante da humanidade, “ todas ascoisas(. ..)são interligadas, entrelaçadas, enamoradas. (...) Assim vós amareis o mundo” . Mas não era assim que os docentes da Universidade de Viena conheciam ou amavam o mundo. Com sua sombria visão nietzscheana, Klimt atingiu um ponto nevrálgico do corpo acadêmico. Um grupo de professores, liderado pelo filósofo ético positivista Friedrich Jodl, lançou uma campanha contra o trabalho de Klimt. No ano seguinte, 1901, Klimt deparou-se com a oposição vinda de outro setor quando terminou sua segunda pin­ tura da Universidade, M edicina, executada num espírito semelhante. Desta vez foram a nova diretoria e os anti-semitas cristãos que lideraram a campanha levando a questão para o Parlamento. Não posso traçar aqui as vicissitudes da chamada crise da Deckengenmàlde (pintura de teto). Contudo, sua estrutura é importante para a compreensão dos fatores sociais que afetaram Klimt e o caráter de sua arte. Até aquela crise, as encomendas do estado lhe propiciaram o que a ópera havia propiciado a Mahler: uma sólida base para sua sobrevi­ vência e um importante veículo para suas idéias artísticas. O estado austríaco, a partir de 1897, demonstrou-se especialmente compreensivo com a nova arte da Secessão, extendendo seu patrocínio aos artistas através de encomendas e incumbências didáticas. Esta sim­ patia oficial pelo modernismo na arte estava relacionada com a crise política. Quando o conflito de nacionalidade paralisou completamente a constituição da Áustria, o chamado Ministério Burocrático, que havia substituído o governo parlamentar (1900-1904), procurou dissolver as tensões políticas através de uma campanha bipartida de moderni­ zação. De um lado a cultura, e de outro o desenvolvimento econômico, segundo o pro­ grama do ministro-presidente Koerber. A partir de então, enquanto a maioria dos estados europeus rejeitava a modernidade na arte em sua política cultural, o estado austríaco a

* Tradução de Mário da Silva em Assim falou Zaratustra, Circulo do Livro, São Paulo, s/d.


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defendia deliberadamente como um contrapeso cosmopolita transcendente a todas as divisões nacionais. ^ . Logo, entretanto, os ataques públicos á arte moderna converteram o patrimônio cul­ tural do governo num risco político. As pinturas da Universidade eram um ponto fun­ damental dessa mudança, e Klimt foi sua vítima na medida em que o governo passou a moderar sua estratégia frente à oposição. Assim, o M inistro da Cultura que havia defen­ dido Klimt e seu Filosofia com firmeza contra o protesto dos professores em 1900, co­ meçou a ceder quando a nova diretoria levou seu ataque ao Medicina até o Parlamento. Klimt reagiu com rancor e mágoa. Suas duas respostas — luta e fuga — encontraram, expressão em dois grandes trabalhos: sua ira, em Jurisprudência; sua retirada, no cha­ mado friso de Beethoven. Juntos marcaram o fim da fase pública e filosófica de Klimt e o desenvolvimento de uma nova estética ornamental abstrata para o mundo privado da elite culta ao qual se confinou. Em sua terceira pintura para a Universidade, Jurisprudência (Fig. VII), Klimt solta toda a sua ira sobre seus detratores. Para a cultura do liberalismo, nada era mais sagrado que o império da lei. Em seu esboço preliminar para o Jurisprudência em 1898, Klimt havia refletido essa afirmação inequívoca da lei através de uma imagem idealizada da Jus­ tiça pronta a destruir o terrível monstro do crime com sua espada. Na versão final, reconcebida em 1901, sob o impacto dos ataques ao Filosofia e ao Medicina, Klimt desloca nossa simpatia da Justiça para a sua vítima. O réu-vítima é entregue ao vácuo submarino onde as fúrias de olhos vazios executam sua malfadada presa humana. Muito acima dele estão os juizes, de cabeças pequenas. As imagens simbólicas de Justiça, Verdade e Lei são pura­ mente decorativas — longe de e indiferentes ao sofrimento com o qual estão associadas. Finalmente, neste espetáculo cruel, a punição é sexual, é a extinção da vítima masculina por um pólipo em forma de útero num mundo aquoso onde serpenteia, tentacular, o cabelo feminino. Assim, Klint expressou não apenas seu ódio pela autoridade pública nes­ sa visão de Jurisprudência, mas também sua própria impotência como vítima diante dela. O ponto de contraste psicológico com essa grande obra é o friso que Klimt executou em 1902 para a exposição sobre Beethoven da Secessão, para a qual Mahler também con­ tribuiu. Raramente os artistas participaram de tam anho ato coletivo de narcisismo como o fizeram os secessionistas nessa exposição onde celebraram um artista, o escultor Klinger, celebrando um outro artista, o compositor Beethoven, como um deus olímpico comandan­ do uma grande águia com o poder da arte. O friso de Klimt usou o último movimento da Nona Sinfonia de Beethoven para apresentar a busca do homem pela felicidade. Uma vitória sobre as forças hostis” é conquistada pelo vôo das almas sobre elas, chegando finalmente ao utópico paraíso da arte (Fig. VIII). Lá, ‘‘o desejo de felicidade encontra seu descanso, na poesia . ^ Em contraste com o realismo moldado das imagens inferiores em Jurisprudência, estas são novamente bidimensionais como nos primeiros desenhos de eseu e de Nuda veritas na Secessão; isto é, eles pertencem , para Klimt, ao reino do ideal, na° do real- O painel culmina nas palavras de Schiller na Ode à Alegria: Dieser Kuss der ganzen Welt . Mas Klimt suprimiu do beijo o sentido revolucionário com que Schiller e Este beijo de todo o mundo. (N. T .)


Fig. VI. Filosofia, 1900


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Beethoven o haviam investido como símbolo da fraternidade do homem. Apresenta, em vez disso, a satisfação erótica — um beijo de amantes sob um arco em forma de útero. 0 ideal não é mais social, como era para Schiller e Beethoven, mas pessoal e psicológico. 0 poder de sublimação da arte proclama uma fantasia narcisista de potência, uma consu­ mação sexual para compensar a terrível derrota registrada no Jurisprudência. Após os anos de crise, Klimt interrompeu suas pesquisas psicológicas e deixou-se levar pela corrente das artes aplicadas que engolfou o movimento da Secessão em sua se­ gunda fase. Por quatro anos Klimt não expôs suas pinturas. Quando apresentou novamen­ te seus trabalhos, na Kuntschau 1908, demonstrou o quanto o formalismo simbólico do friso de Beethoven havia se tornado seu idioma básico. Adaptando ao retrato o elementarismo bizantino, a bidimensionalidade e as formas cristalinas como pedras preciosas do artdéco, pintou seus ricos personagens virtualmente enquadrados em cenários estilizados e opulentos dos quais as formas orgânicas estavam rigorosamente excluídas. Seus inte­ riores fantásticos criaram uma atmosfera sibarítica ideal onde permaneceu apenas o mais abstrato simbolismo como alusão ás regiões subterrâneas dos instintos que ele antes re­ presentara com cândida sensualidade. O pintor da exploração psicológica e do mal-estar metafísico tornou-se, então, o pintor do belo na vida da alta sociedade, afastado e isolado das pessoas comuns num meio ornado de jóias e geometrizado.

IV Para Mahler não menos que para Klimt, os anos de 1900 e 1901 foram anos de provação pessoal, de um choque traumático com a sociedade e de uma conseqüente reorientação artística. As diferenças entre os dois tornaram-se mais claras através de suas reações, tanto psicológicas quanto estéticas, a experiências um tanto semelhantes de rejeição e hostilidade que os levaram a se retirar do espaço público. Ao contrário de Klimt, Mahler ocupava um alto posto oficial, o de diretor da Ópera da Corte, talvez a posição mais exposta do mundo da arte austríaca. Contudo, Mahler usufruiu, ao contrário de Klimt, do apoio incondicional de seus superiores políticos por quase uma década. Os problemas externos de Mahler até o final de seu mandato, em 1907, não eram com seus superiores, mas com seus músicos, com a crítica e com o público. Os estudiosos há muito identificaram o verão de 1901 como um momento crucial na carreira de Mahler como compositor. Naquele ano ele retomou à sua nova casa de verão em Wõrthersee inteiramente exausto. E, no entanto, nos meses de julho e agosto produziu uma admirável série de composições: sua última canção do Wunderhom, sete canções de Rückert (incluindo três dos Kindertotenlieder) e o movimento scherzo da Quinta Sinfonia. A dimensão dos contrastes presentes nestes trabalhos é realmente espantosa: canções populares versus poesia romântica intimista; preocupações sociais versus impulsos psi­ cológicos profundos; idéias verbais como matéria musical versus música “ pura” sem a ajuda de programas; sinfonia monumental versus canção confessional. Nessas polaridades residiam os elementos heterogêneos do passado e do presente de Mahler que estavam sen­ do discriminados e reordenados em sua arte nesse início de século. Por trás dessa mistura de idéias como compositor havia uma crise em sua carreira


«

Fig. VII. Jurisprudência, 1903-7


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como regente. Na Ópera, certamente, ele havia alcançado uma posição sólida por volta de 1900, introduzindo com sucesso na companhia as mudanças necessárias para pôr em prática seus padrões precisos para um desempenho de conjunto. O público e a crítica deram-lhe reconhecimento suficiente para fortalecer seu ego contra os julgamentos ne­ gativos a que está inevitavelmente sujeito o trabalho de um diretor de ópera. Foi mais como regente da Filarmônica de Viena que Mahler provocou muitas críticas hostis que o magoaram profundamente. Nessa função, as idéias e os interesses de Mahler como com­ positor convergiram com suas concepções como intérprete especial mente de Beethoven, seu herói da cultura. Assim, tanto em suas composições como em suas inter­ pretações, buscou pureza e luminosidade em cada detalhe, mas, com freqüência, só as atingia, na opinião dos ouvintes habituados a um desempenho diferente, às expensas da linha mestra da obra. O que para Mahler era um claro esboço dos elementos individuais que constituem uma composição, parecia a seus ouvintes uma fragmentação do todo. Um crítico francês mais favorável chegou a reclamar em 1900: ‘‘Um propósito é descoberto em cada nota; tudo é tornado explícito; a estrutura é investida de tanta complexidade que o projeto básico é destruído.” 7 Além do mais, em suas interpretações das obras de outros autores, assim como em suas próprias composições, M ahler ampliou drasticamente o tom emocional da música, exigindo mais tanto da platéia quanto dos músicos. Transformou a apresentação tradicional com novos experimentos, reinstrum entaçãoe um novo equilíbrio instrumental. Mahler insistia em afirmar-se como o representante do compositor, mas sua incansável busca pela verdade do compositor tornou impossível para a orquestra prendê-lo até mesmo às suas próprias e bem resolvidas interpretações. Assim como Klimt encontrou sua primeira oposição significativa quando chocou a academia modificando a imagem solidamente estabelecida da filosofia, Mahler provocou um sério antagonismo quando desafiou a leitura corrente do mais definido de todos os heróis musicais, Beethoven. O que os professores da Universidade, em seu protesto, foram para Klimt, os músicos da Filarmônica, em sua resistência, foram para Mahler: defensores profissionais em seus domínios culturais dos modos de pensar e sentir do século dezenove. Mahler, entretanto, era mais diretamente dependente de seus opositores do que Klimt. Como membros da orquestra da Ópera, os músicos estavam sob seu comando, uma vez que ele havia sido designado diretor pela Corte. Mas como membros da Filarmônica, uma associação independente, eles haviam eleito M ahler como seu regente e, portanto, possuíam uma autoridade coletiva sobre ele. O mais ousado entre eles fez Mahler sentir cada vez mais o veneno de sua desaprovação a partir de seu primeiro concerto de Bee­ thoven em 1898. A música de Beethoven era o pólo mais constante de controvérsia entre Mahler e seus críticos, precisamente porque Beethoven era um herói para ambos os lados. Mahler justificava suas alterações na instrumentação como necessárias para devolver à obra de Beethoven a pureza da linha e o equilíbrio da textura que haviam sido destruídos pelas mudanças nos instrumentos desde a época do compositor e para superar a pouca nitidez da acústica das grandes salas modernas. O ataque à sua versão “ supercolorida ” das partituras de Beethoven atingiu o seu clímax numa execução da Nona Sinfonia, em fevereiro de 1900. Mahler fez um panfleto defendendo seu procedimento como devotado a “ um só fim — buscar a vontade de Beethoven até suas mínimas manifestações ” .8


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Ao descontentamento da orquestra e aos ataques dos críticos conservadores junta­ ram-se também as vozes dos anti-semitas, do mesmo modo como aconteceu com Klimt. A resposta de iMahler foi resoluta e audaciosa. Em seu segundo programa da Filarmônica da temporada de inverno de 1900, incluiu sua própria Primeira Sinfonia. O direito da escolha de Mahler foi desafiado por um dos membros da orquestra que fazia parte do comitê da Filarmônica. Mahler havia originalmente denominado sua Primeira Sinfonia de Titã. Ela celebrava a luta, o sofrimento e a derrota do indivíduo heróico. Agora, intrepidamente colocava-a no programa da Filarmônica entre duas obras clássicas que lidam aproxima­ damente com o mesmo tema: A s Criaturas de Prometeu, de Beethoven, e a abertura de Manfred, de Schumann. Prometeu também era um Titã, criador do homem e formador da cultura; o Manfred de Byron era uma figura faustiana, que heroicamente desafiava o mun­ do dos espíritos. Se Mahler almejasse o sofrimento e a rejeição, não poderia ter imaginado um meio mais eficaz de atraí-los para si do que essa auto-identificação com esses grandes compositores. Foi o mesmo tipo de desafio que Klimt lançara a seus inimigos da Univer­ sidade em Jurisprudência. Na esteira da tumultuada recepção de sua Primeira Sinfonia pela crítica e pelo pú­ blico, Mahler parece ter perdido o senso de proporção. Num amargurado discurso a seus músicos, acusou-os não só de hostilidade mas também de deslealdade. “ Eu não agi como um homem ofendido e ferido em seu orgulho, mas como um general abandonado por suas tropas” , afirmou com um semblante extenuado pouco convincente. 9 Uma grave doença logo sobreveio ao impacto traumático da experiência com a Filarmônica. A 1? de abril de 1901, Mahler demitiu-se do cargo de regente frustrado e derrotado. V Tendo como pano-de-fundo sua profunda crise de rejeição como regente e compo­ sitor, Mahler gerou, durante suas férias de verão em 1901, a reação criativa que mudou as premissas ideativas de sua música e deu outra virada em sua vida artística. Talvez não seja demais afirmar que ele matou, nas composições que produziu então, tudo que antes lhe dera esperança na humanidade: sua fé no povo e na infância. Ambos, certamente, foram revistos sob a influência da retirada e da m orte.10 Escreveu a última de suas canções do Wunderhom, “ O menino tambor” — a mais sombria de todas. O menino tambor do poema fracassou em suas atribuições, e caminha para a morte decretada pela sociedade. Como uma criança que vai dormir, diz “ boa noite” para seus camaradas e para o mundo. Não há nada de titânico que se relacione a esse austero canto de execução de um jovem comum. O Knaben W underhom, em cuja filosofia telúrica Mahler tanto se apoiara em suas quatro primeiras sinfonias, na forma de experiências populares concretas, também caminhava para a morte com o jovem tambor. Mahler saía da poesia popular para a poesia artística — para Friedrich Rückert, um romântico que falava com a forma cultivada da introspecção e da alienação do mundo que convinham ao estado de espírito de Mahler. Nem o Titã de Mahler sobreviveu à sua mudança espiritual. Nas canções de Rückert, o Titã é substituído por um sofredor crônico, sufocado pelo peso da vida e da morte. A última delas, “Perdido para o mundo” (“ Ich bin der Welt abhanden gekommen” ), é a expressão pungente, ainda que serena, da situação de um homem voltado para si mesmo: morto para


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os desafios do mundo onde havia desperdiçado sua substância, vive agora resignado e só, em seu paraíso, seu amor, sua canção. A combinação de afirmação dionisíaca e alegria biedermeiriana que Mahler compar­ tilhou com Klimt nos anos 1890, e que expressou na Terceira e na Quarta Sinfonias, deram lugar à sombria visão de 1901. Do lado dionisíaco, no “ Canto da meia-noite '’ do Zaratus-tra de Nietzsche, no meio da Terceira Sinfonia, M ahler afirmara o desejo e a vontade de viver, mesmo com a certeza da dor e da morte. Em “ Um M itternacht” , uma nova canção noturna da série de poemas de Rückert, de 1901, o artista toma subitamente consciência de sua mortalidade, e desiste da vida. A identificação de Mahler da esperança na humanidade com a imagen da infância e do popular teve sua expressão mais brilhante, mais exaltada, na infantil utopia biedermeieriana com a qual coroou a Quarta Sinfonia. Nas Kindertotenlieder ele descarta a idéia da infância como a luz do mundo, colocando-a sob a pesada sombra da morte. A fé no popular e a esperança na infância perdem seu lugar na obra de Mahler. Não apenas na es-

Fig. VDI. O friso de Beethoven .detalhe do


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colha de textos — com sua mudança da poesia popular para a poesia literária —, mas tam­ bém na música, ele dá adeus a seu engajamento cultural populista. No scherzo da Quinta Sinfonia, também escrito no verão de 1901, Mahler destrói virtualmente as danças po­ pulares juntamente com as simples valsas burguesas, usando-as como símbolos cfe pra­ zeres falsos e frágeis, fazendo então emergir as poderosas forças do caos e a Angst existen­ cial. A realidade excêntrica que ele atribui à música é nietzscheana, fragmentada, mas o compositor não a confronta nem com sua antiga resistência titânica nem com a afirmação zaratustriana.11 Mahler profetizou, quase insolentemente, que esse scherzo logo seria inacessível tanto para os músicos como para o público. Os regentes iriam “ torná-lo ri­ dículo” , e o público — ‘ ‘Ó ceus! — que espécie de imagem farão deste caos que está sem­ pre criando um novo mundo que no momento seguinte decai, dos sons primitivos do mundo, dos rugidos dos mares revoltos, das estrelas dançantes.” 12 Frente a uma realidade mundana concebida cada vez mais como dolorosamente nãohomogênea, Mahler procurou consolo não mais nas utopias populares, mas na paz trans­ cendente, metafísica. Esse estado de espírito encontrou uma poderosa expressão na Quinta Sinfonia, em seu místico movimento adagietto, tecido em torno do tema da canção “ Per­ dido para o mundo” , de Rückert. Como a experiência social de Mahler aprofundou seu pessimismo, sua introversào psicológica e seus impulsos religiosos alimentaram-se um ao outro, gerando novas idéias musicais de grande força. VI Em 1902 Mahler juntou-se a Klimt e aos artistas da Secessão na celebração ao Beethoven de Klinger. Como Klimt, Mahler centrou sua contribuição sobre a Nona Sin­ fonia e sobre a “ Ode à alegria” de Schiller. Como Klimt, ignorou a ênfase titânica e prometéica que caracterizava a estátua de Klinger, apesar de sua longa convivência com o tema. Klimt tinha dado á sua interpretação da Nona um caráter erótico, transmutando o beijo da fraternidade universal de Schiller em um beijo de satisfação erótica. Tal era sua utopia, seu refúgio contra os julgamentos pelos quais passara na crise da Universidade. Havia aí. também, provocativamente, um dos elementos que mais chocavam seus an­ tagonistas: a explicitação do sexo. A contribuição de Mahler foi bem diferente, mas também de acordo com sua ex­ periência recente. Ignorou a sensibilidade de seus críticos no que mais os irritava, rearranjando Beethoven, e reduziu uma parte do coral da Nona Sinfonia para conjunto de sopros. Numa atitude semelhante á de Klimt, a parte escolhida não foi a convocação de Schiller em prol da irmandade universal, que tanto agitara a alma liberal européia. Mahler, ao contrário, escolheu a lembrança de Schiller da multidão de desprezados pelo criador que devem estar no firmamento. Ihr stürzt nieder, Millionen? Ahnest du den Schõpfer, Welt? Such ihn überm Sternenzelt! Uber Sternen muss er wohnen.* * Ajoelhai-vos, ó milhões? / Mundo, vês teu criador? / Além dos astros o procura, / Sobre estrelas há de estar. (Tradução de Roswitha Kempf em A poesia alemã — Breve Antologia. Massao Ohno Editor, s/d.)


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Esta escolha era coerente com o deslocamento de IVlahlcr do cenário terrestre e populista da realização do ideal humano para um cenário transcendental. Era coerente também com a disposição de Mahler nessa época o silêncio das vozes que Beethoven fez cantar esta im­ pressionante passagem do poema de Schiller, para deixar falar os instrumentos de sopro numa linguagem sem palavras. Nos anos seguintes, até o fim de sua gestão na diretoria em 1907, enquanto Klimt pintava isoladamente para seu pequeno círculo de elite, Mahler voltou-se com vigor re­ novado para o grande público em seu trabalho na Ópera. Seu parceiro na transformação do aspecto visual do teatro operístico foi Alfred Roller, amigo e colaborador próximo de Klimt na Secessão. Nas memoráveis montagens de Tristão e Isolda, Fidélio e Dom Giovanni, Roller e M ahler criaram uma encenação coesa e simplificada. Juntos tiveram êxito na modernização da mais tradicional e prestigiada arte cênica austríaca. “ Toda a arte moderna” , afirmou M ahler em entrevista à imprensa, “ deve servir ao palco. Note-se: a arte moderna, não a Secessão. O que importa é a colaboração de todas as artes. Não há futuro para os velhos clichês; a arte deve chegar aos figurinos, ao cenário, tudo que possa revitalizar uma obra de arte.5,13 Essa fórmula continha não apenas a recuperação do an­ tigo, mas também legitimava o novo. Através de obras originais que expressavam idéias e sentimentos inaceitáveis às for­ ças, antigas e novas, que detinham o poder cultural na Áustria, Mahler e Klimt sofreram derrotas que os levaram a repensar e refazer as premissas e finalidades de suas obras. Am­ bos mantiveram uma permanente fidelidade ao teatro, a arte soberana que cada um serviu no início de sua carreira. Nos seus últimos anos na Ópera, Mahler aprendeu a fazer da arte antiga o caminho do novo espírito, dando um exemplo vivo da virtude regenerativa da modernidade, bem como do valor contemporâneo da herança tradicional. Foi assim que ele se tornou a figura cultural reverenciada e idolatrada da^ vanguarda intelectual vienense. Foi assim que o silencioso Klimt, que a sua maneira compartilhava muito da experiência de Mahler como artista, encontrou le mot juste verdadeiramente apropriada para aquele grupo de fiéis reunidos na Westbanhof quando disse “ Vorbei' ’.

NOTAS Uma versão mais antiga deste artigo saiu nas atas do Colóquio Gustav Mahler. 1979. publicadas por seu or­ ganizador, a Oesterreichische Gesellschaft filr Musik, em seu Beitráge, 1979-81. meu livro detalhada desta análise do desenvolvimento de Klimt pode ser encontrada em meu livro Fm-de-siècle Vienna (Nova York: Knopf, 1980). capitulo 5. Mahler íRprrm ^ v ,tZ ’ai? ^ ro de 1885. Gustav M ahler, Briefe, organizado por Alma Maria Mahler (Berlim, Viena, Leipzig; Paul Zsolnay, 1952), p. 34. luz sobre as^trevas' ^ra° Z ^ atsc^ ’ devia executar Teologia e o painel Central representando O Triunfo da

5 CJSX chnrl Zar“thu.stra' Part* 3. capítulo intitulado “ Das andere Tanzlied” . :>. Ui. bchorske, Ftn-de-stècle Vienna, p 238-244 7

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Ch, dT Í ' UCk fin<i" ^1re StiUung in de, Poesie.” t doem Kurt Blaukopf, Gustav Mahler (Nova York, Washington 1973) p 158

mònica £ v t n T p 149-58 ' m ' City, N.Y.; Doubleday,

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d° « * ' * M»hle, c L o rege„,e da FitarOT Hen" Louis U Grange. Ga,dea


Mahler e Klimt

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9. Citado em La Grande, Mahler, p. 603. 10. Sobre a dimensão psicológica e outras dimensões do trabalho de Mahler no verão de 1901, ver a penetrante e sensível análise de Stuart Feder, “ Gustav Mahler um Mitternacht” , International Review of Psychoanalysis, 7 (1980); 11-26. 11. Para uma análise social da obra de Mahler que usa esse scherzo como seu eixo central, ver Vladimir Karbusicky, Gustav Mahler und seine Umwelt (Darmstadt; Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1978). 12. Citado em ibid., p. 1. 13. Blaukopf, p. 174. Figura 1 reproduzida por cortesia do Kunsthistorisches Museum, Viena. Figuras 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 reproduzidas por cortesia da Galerie Welz, Salzburgo.


Calder

GIULIO CARLO ARGAN Tradução: Maria Pace Chiavari

A relação entre objeto e espaço (em termos gerais, entre o Ser e o mundo) é o grande problema da escultura. A dificuldade em resolvê-lo indica uma condição de mal-estar do homem moderno, sua relutância em reconhecer-se e integrar-se no seu mundo. Alguns escultores, percebendo a crise, passaram sem hesitar ao pólo oposto da escultura clássica, com seu domínio seguro da forma sobre o espaço. O tema deles é a exigüidade, a irrelevân­ cia da coisa no espaço infipito, no não-limite da quarta-dimensão. Assim descobriram a plástica do gume, do fio, do ponto, do átomo; demonstraram que o finito, mesmo reduzido a estes termos, se desforra sempre do infinito, interrompe a sua continuidade, o divide. Para os geômetras e os topólogos, como Pevsner ou Lippold, a quarta dimensão encontra, todavia, um ponto firme na trama filiforme do objeto; para os poetas e homens de letra, como Giacometti, o espaço-tempo é sobretudo tempo e o objeto não define um lugar, mas um instante. Calder, que é um otimista, está certo de que entre a coisa e o espaço será possível uma coexistência pacífica e animada: tudo depende do entendimento, de achar a dialética da relação. Uma vez que, no fundo, o seu interesse é moral, a lei da sua escultura ainda é, se bem que pareça estranho, a mímese. Para insinuar-se na realidade viva joga com a astúcia, se disfarça: simula o arbusto e a borboleta, o balanço e o murmúrio das folhas nos ramos. Inventa uma natureza artificial porque os homens “ artificiais” se iludem em viver num ambiente natural e conforme. À sua fácil sabedoria não falta uma nota de angústia: em um mundo frenético e agitado faz pacatamente o elogio do movimento inútil, sem direção nem finalidade, que é somente divertimento e jogo. Assim, talvez sem o saber, reencontra uma fonte preciosa e quase esquecida do pensamento estético moderno: a tese moralista da artejogo de Schiller. Também ela partia da crítica da sociedade contemporânea, da certeza da gravidade de uma contradição que só o “ instinto do jogo” teria conseguido resolver, dirigindo os ânimos para uma condição de liberdade pura, desinteressada e inocente. Com aquilo que é agradável, bom, perfeito, o homem só se comporta seriamente, mas com a beleza ele joga. ” Calder, então, joga e ensina a jogar porque, liberando-se no ritmo fácil do jogo, os homens podem ver a natureza sob a espécie do belo ao invés da do útil. Certo, a sua moral é simples como aquela das fábulas de Walt Disney. Mas a conta dos lucros e perdas pode explicar muitas coisas. De quantas ânsias foi necessário se libertar


para tornar lícito aquele pequeno arbítrio, quantos onerosos legados do passado foi preciso jogar fora para chegar á leveza do jogo e da fábula? Bastante longa, e tudo menos alegre, é a história deste sagaz resgate de uma pequena liberdade contra uma grande obsessão: não esqueçamos que, no caminho que conduz a Calder, encontra-se Klee, para o qual a liber­ dade não era jogo, mas morte. Segura de sua frágil porém autêntica conquista, a arte de Calder também se propõe, como a de Klee, a um fim educacional. É uma didática plana e persuasiva como a dos jardins de infância; e, mais uma vez, se poderia resumir tudo com as palavras de Schiller: “ Ao homem educado na arte, que faz um uso tão pequeno de sua liberdade, não se deve tirar o arbítrio” . 1V56

Salvezza e Caduta nell’Arte Moderno - II Saggiatore. Milão - 1977



Possibilidades de pintura: dois exemplos

RONALDO BRITO

A leitura da pequena tela de Eduardo Sued (s/titulo,óleo s/ tela, 46 cm por 61 cm, 1985), respeitando a sua extrema singularidade, deve se apoiar em duas referências básicas e até certo ponto antitéticas — o esquema neoplástico de Mondrian e o raciocínio cro­ mático de Matisse. A divisão do espaço inegavelmente bidimensional, em tensões ho­ rizontais-verticais, remete ao enunciado pictórico de Mondrian e à sua espécie de demons­ tração lógica — nada senão um todo, uma estrutura de pintura. O paradoxo de uma ordem construída por assimetrias — uma harmonia final obtida graças à interação de partes desiguais — está na origem do esquema de Sued. Diante dessa ordem, contudo, a sua posição seria, a rigor, crítica. Como se sabe, o dinamismo neoplástico aspirava a uma solução ideal, arquetípica, limite inclusive do próprio gênero pintura, superado então pelo aparecimento de uma consciência plástica universal. Nesse sentido a arte lograria, a seu modo, uma verdadeira subsunção lógica. E é nada menos do que o Real, o Absoluto, o que esse pensamento plástico pretendia alcançar e explicitar. Daí, saindo por assim dizer da Caverna, ele vir a iluminar o mundo, reorganizá-lo a partir de sua evidência espiritual. Todos os que possam olhar lado a lado um Mondrian e um Van Doesburg, por exem­ plo, perceberão a diferença material entre uma ordem plena e atual e uma competente ilustração da ordem; entre uma pulsação ascética, sim, controlada, sim, mas virtualmente inesgotável, e uma equação visual em estado mais ou menos neutro. O quadro se deflagra, incessante, em Mondrian, apenas se explica em Van Doesburg. E obviamente àquela or­ dem voraz e sempre reposta — menos ordem portanto do que visada de ordem — que a tela em questão se reporta. Ainda assim, conservo o perigoso termo, de um modo crítico. Porque no approach fenomenológico de Sued a pintura necessitaria ser uma dialética in­ terminável. As diferenças infinitesimais de ordem, o seu caráter inesgotável, obrigam o artista a uma ascese escrupulosa e, no entanto, sem telos. Mondrian, é verdade, abolira no fim da vida as linhas pretas ou as duplicara audaciosamente, permitindo uma sugestão mínima de profundidade; acentuara ainda consideravelmente o jogo cromático na es­ truturação da superfície. Telas como os Boogie-Woogies e New York desconcertam exatamente por subjugarem séries complexas, variáveis inúmeras, debaixo da Idéia. Nun­ ca, na pintura moderna, houve um modelo construtivo tão francamente liberal: aceitando


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a trama dos acontecimentos, a medida moderna e vertiginosa de sua sucessão, ela pratica uma ordenação que se faz acompanhando e solucionando o acaso, negociando com o im­ previsível. Fiel à sua origem, entretanto, o quadro em Mondrian resume o processo da pintura em proposição, em linguagem-formal na acepção estrita do termo. A natureza, o outro da pintura, está definitivamente ultrapassada, o eu empírico igualmente. A ativi­ dade da pintura, alçada ao grau máximo de abstração, vê-se constrangida a duvidar de sua própria validade como exercício estético. A intenção final não é estar-no-mundo, emo­ cioná-lo ou esclarecê-lo esteticamente. É, isto sim , formular as leis, os princípios univer­ sais que o regem. Mesmo telas palpitantes como os Boogie-Woogies perseguem a meta de presidir o mundo, situá-lo idealmente. Chegaríamos, pois, a uma pintura da ciência, o pic­ tórico elevado à categoria de investigação científica. A superação da Consciência e da Representação acontece pela força do método e do conceito. Também para Sued o objeto da pintura seria, de saída, transcendental, todo os ele­ mentos já viriam despregados da empiria e se apresentariam como fatos históricos devi­ damente codificados. A operação do trabalho, todavia, consiste em repor em questão a sua condição de existência. Quer dizer, a constituição do mundo. Essa constituição não é pas­ sível de abstração pelo simples motivo de que é ela o próprio tema da Abstração e ine­ xoravelmente deve passar pela percepção bruta da coisa, pelo objeto opaco do mundo, que deixará para trás. Por isto esse espaço totalmente articulado acabaria por assim dizer indecidível — o resultado inclui a origem, abriga o “ arbitrário” , as peripécias de suas mar­ chas e contramarchas. Ao invés de um enunciado, teríamos uma experiência (no sentido hegeliano) da ordem. Ao contrário do genial M ondrian, o Atual aqui não se impõe como Evidência e sim como Aventura. Tanto quanto em M ondrian (com a sutil interrupção das linhas antes de tocar as bor­ das, ensejando a “ nós” completarmos a ordem) esse campo visual solicita uma percepção ativa que sustente a estrutura e não somente a constate e contemple. Mais ainda, porém, a estrutura é transitória, recorrente e, em última instância, especulativa: ela não esquece, não cansa de indagar o seu sentido e a sua direção. O quadro, assim, não aparece como resposta mas interrogação. E esta virá só na qualidade de pintura, no tempo lógico e trans­ cendental, sim, também físico e concreto do trabalho artístico. Os segmentos (retângulos) interagem de maneira assimétrica e isto é decisivo, com certeza. Enquanto segmentos, contudo, guardam uma certa interioridade. Densos e intensos esses segmentos operam no limite da congruência: resistem ao olhar ansioso em juntá-los parte-a-parte, compõem uma “ trança” que pressupõe uma espessura do plano, um “ volume” de superfície. É indispensável, portanto, tomar o esquema de Sued como um momento de um processo cujo termo final jamais enxergamos mas, quase fisicamente, pressentimos. Esse pressentimento dá o tônus de sua poética e o afasta da lógica formal neoplástica. A maes­ tria, no caso, consiste em manter esse pressentim ento ao nível do Atual, sem transformáo em a go virtual, alguma memória anterior ao quadro ou alguma visão posterior a ele. rata se, sim, e um olhar da imaginação que outro titulo atribuir a essa combinatória singu ar írre utível à esfera da comutabilidade? M as, sem dúvida, uma estrita imaginação e e ementos que produz séries paradoxais, em estágio de abertura permanente. Encon. sim uma constância apoiada em manobras implausíveis e que subsiste no regime


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do instável. O milagre em Mondrian é que a ordem “ absoluta” escape a uma apreensão derradeira e comande uma perceção sempre ávida e insuficiente. O extraordinário em Sued é que uma estrutura tão ambígua consiga fixar-se, por um instante que seja. O sur­ preendente é uma ordem tão extravagante afirmar-se tão resolutamente. Com o dogma das cores primárias, o neoplasticismo assumia ostensivamente a arte como pensamento autônomo, mathesis ao invés de mímesis. Quaisquer referências à natureza eram banidas em favor da formalização de uma linguagem pura. Embora utili­ zando uma paleta neoplástica (misturando-a porém a um verde e um magenta nada or­ todoxos), a tela de Sued movimenta um raciocínio cromático matissiano. As cores cha­ padas, luminosas, dominam contrastes variados e extremos. Aspiram quase, matissianamente, à condição de cores-idéias, na medida em que carregam o mínimo imprescin­ dível de pigmento e dispensam tratamento de superfície. Substantivas e patentes, estas são cores guiadas para a evidência máxima, votadas à exterioridade. Com respeito ao pequeno óleo a alusão às colagens de Matisse parecerá talvez fictícia. Nas grandes telas essa filiação se exibe flagrante. O problema, entretanto, é o mesmo: soltar decididamente as cores e ainda assim conservá-las em rigorosa relação estrutural, eis o desafio. Com tal profusão de cores armar uma grade neoplástica, “ livre” que seja, seria pelo menos uma tarefa arris­ cada. Por outro lado, uma “ improvisação” cromática presa a um esquema dado ficaria, em tese, condenada ao fracasso. E, no entanto, muito claramente, a pequena tela atua nes­ te ou entre este duplo território. Ela parece somar, ou intrincar, a atualidade abstrata de Mondrian à atualiade sensível de Matisse. Em todo caso, artisticamente, “ resolve” a an­ títese. E me apresso em esclarecer o Sensível em Matisse. De fato, ninguém mais cartesiano, ninguém mais intelectual quando o assunto é a razão da cor na modernidade. A dis­ tância metódica, a maníaca concentração sobre o problema da cor como relação, atestam na obra de Matisse um pensamento pictórico altamente abstrato, sem concessões mun­ danas. Mas a razão da cor coincide precisamente com a forma elevada da emoção da cor, tomada agora a nível transcendental, como autêntico modo de estruturação do real. O sentimento da cor passa a ser um modo insígne de captação do real. A sua universalidade estaria implicitamente igualada à universalidade da palavra (Logos). Essa nova univer­ salidade é mais uma prerrogativa da liberdade do homem moderno diante do mundo, mais uma prova de confiança no potencial estético da vida. E essa confiança atravessa o lirismo ingênuo, a empatia imediata com a natureza, porque emana diretamente da força emancipatória da razão moderna. Mas por isto mesmo a autonomia da pintura em Matisse não precisa se fazer às custas de uma atitude agressiva, autoritária, frente à natureza. Simples­ mente esta não lhe opõe resistência — a pintura transfigura serenamente a empiria e a natureza, celebra poeticamente a transcendência do mundo do homem. A harmonia dinâmica de Mondrian postula um valor Axiomático, a de Henri Matisse exalta um valor propriamente Estético. A pequena tela de Sued, por sua vez, embora sis­ temática, não reivindica a autoridade de axioma; e apesar da exuberância cromática tam­ pouco anuncia uma celebração estética do mundo. Uma dúvida a percorre e impulsiona avessa tanto à estratificação lógica quanto à depuração estética. O seu efeito como obra de arte, nada desesperador, seria com certeza inquietante. O instável e o estranho constitutivos


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da vida humana, o drama do mundo enfim, se mostram refratários à racionalização ou â sublimação integrais. Eles vem portanto assimilados, interiorizados, nas cores hteralmente vivas e em suas relações imprevisíveis, na própria serialidade “ absurda” . Nem cálculo lógico, nem cotidiano sublime, a tela aparece como momento estético em suspenso, atirada a uma contemporaneidade em tudo e por tudo irredutível a definições á priori. Ela se expõe frontalmente no mundo justo para instaurar uma dialética acerca de seu funda­ mento e de sua história. Do mesmo modo, acredita firmemente na arte: desde que não venha decretada como tal.

A tela de Jorge Guinle (óleo s/tela, 36cm x 78cm, 1984) lembra espontaneamente o expressionismo-abstrato de Willen de Kooning. Logo a seguir, porém, toma-se percep­ tível a distância e a ironia frente ao heroísmo existencialista característico da Action-Painting. Há um quê luminoso demais, leve e matissiano demais, o clima geral é o de uma paródia. Paródia, bem entendido, que ocorre a nível da própria fenomenologia da Action, como uma repetição reflexiva e desencantada do processo. Muito além das imagens, ou meramente os clichês, o que se ironiza é o telos, embora problemático, dessa Ação, é a crença mesmo que corroída e angustiada no Todo. Sumária, casualmente, o artista agora fecha a borda inferior e uma das laterais do quadro com rápidas pinceladas contínuas e se dispõe a atacar intempestivamente a superfície. O procedimento implica, quase, a prévia anulação do drama gestual expressionista-abstrato — este vai fechando intensamente a trama pictórica até alcançar a superfície para explodi-la na face do mundo. Jamais as imagens flutuariam indiferentes no espaço sob o risco de diluição no ilusionismo e retomo


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ao esquema figura e fundo que tenta pateticamente violar. A fixação dos limites será, por­ tanto, parte integrante e importante, eventualmente o momento crucial da estrutura. No pequeno óleo de Jorge Guinle isto acontece e não acontece. A manobra, sem dúvida, atesta a bidimensionalidade do quadro e traz á tona as pinceladas com um peso material. Mas somente para definir o território onde os gestos vão se exercer entre a pura pulsào da pintura e a impossibilidade histórica de pintar — algo de novo, é claro. Sobra uma certa fúria de pintura que, no âmbito da grade cubista, evidencia finalmente a aporia da arte no mundo: sem funcionar mais como “ janela” , dispositivo representacional, per­ manece atrás do “ plano” do real, pairando em um limbo imaginário. De Kooning e seus companheiros desdenhavam o programa construtivo de inte­ gração e participação da arte no mundo moderno. O transe da Action, contudo, também era movido por um credo radical: nada menos do que a absorção total no Ser da pintura. Os gestos iconoclastas, banais e transgressivos seriam ao mesmo tempo inaugurais, senão míticos — detinham o poder mágico de reassumir e revitalizar o sujeito massificado da civilização tecnológica. O perímetro da tela se negava a ser instrumento ou teatro de coisa alguma — ali e só ali pulsava a possível conquista do nexo, absurdo e precário que fosse, o diálogo vivo entre biografia e história. A arte voltava inclusive a buscar um contato com a natureza, confundindo-se a ela numa espécie de unidade estranha já ao humanismo eu­ ropeu clássico. A célebre frase de Jackson Pollock — “ Eu sou a natureza” — não é mera declaração panteísta ou simplesmente o cúmulo do subjetivismo dos tempos modernos — talvez seja, isto sim, a extensão insuspeitada e escandalosa do Gênio Natural de Kant, com uma voracidade racional e uma angústia afetiva que curto-circuitavam as conexões entre pintura e natureza. E o novo “ pacto” com a natureza era selado escancaradamente contra a sociedade. Ele resultava da solidão do laboratório da arte moderna e da solidão do in­ divíduo anônimo das metrópoles. Impossível separá-las. De positivo, perversamente, havia só uma ausência: a do público, a mediação do senso-comum do qual Kant esperava tanto para a plena realização do mundo cosmopolita. Sintomática, reativamente, a nova pintura em muitos sentidos quer fazer uma arte do público e para o público. E ser a norma ou o sarcasmo, a nostalgia ou a contrafação de uma arte reconhecível pelo público; o esforço para resgatar qualquer empatia viável, a des­ crença cínica em qualquer empatia real ou ainda a vontade contraditória de forçar uma empatia qualquer. Diante dessas alternativas, eu diria que o nosso exemplo mantém uma reserva moderna; ao mesmo tempo em que, visivelmente, reage à opressão e à saturação modernas. Em de Kooning a atitude moderna prevalecia sobre as obras modernas e seus efeitos compulsórios, estes mesmos que contaminavam o seu próprio trabalho. A gran­ deza anti-acadêmica residia na possibilidade cotidiana de reprocessar a história da arte e dai retirar uma autenticidade existencial. A pequena tela de J. Guinle, ao contrário, é com­ pelida a aceitar de saída o inelutável papel de espectadora da arte. Não há mais como re­ vogar os marcos modernos ou apagar as suas inscrições quase seculares. Isto, com certeza, não encerra a questão. A arte vive de problemas tanto quanto de soluções. E, no caso, aí ela começa a vibrar — no dilema e no conflito entre espectador e produtor. A situação oferece até vantagens, ardilosas, é verdade. O tema visado é a arte e não uma brincadeira com a arte. E, no entanto, restam sobretudo o arbitrário, o descom-


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promisso e o humor como estímulos críticos. Por isto o artista lança no meio do quadro uma inopinada mancha que contraria regras elementares de composição e institui uma divisão quase rígida entre pinceladas que parecem se compatibilizar por oposição. Quase de imediato o lance evoca Jaspers Johns, o intelectual austero da Pop, desconfiando filo­ soficamente da percepção, investindo contra o primado da retina na arte, aquele pelo qual Marcei Duchamp nutria lendária ojeriza. Em nada aqui a fatura lembra o drama surdo, esquizo, do tratamento pictórico sutilmente “ grosso” de Johns, o seu refinamento um pouco mórbido porque neutro. Mas o borrão ocre/m arrom interrompe o jogo desinvolto das pinceladas, decepciona a seqüência que o olho luta a todo custo para localizar e reter. O sonho da totalidade está desfeito, a tela se declara cética quanto à verdade única e he­ róica do campo pictórico. Ao contrário, aposta num a precária solução contingente, na felicidade de um “ todo” artístico incerto e provisório; ainda assim “ todo” , ainda assim artístico. E tudo pela afirmação, o prevalecimento do ato de pintar, a transcendência do ato de pintar. Claro, o tempo desses gestos recentes, cáusticos e sorridentes, é o presente em­ pírico — eles recusam a metafísica da história, a da arte e a Outra. O trabalho não quer ser senão a prática “ livre e desinteressada” da pintura. Está destinado, pois, a conviver com um paradoxo: no presente cabe inteira a sua razão de ser transcendental. E deixa em suspenso a pergunta moderna por excelência — -o que virá a ser, no futuro, a arte? A questão é tão somente a possibilidade do exercício em aberto da pintura. A tematizaçào enfática e incansável deste exercício distingue o trabalho de Jorge Guinle. A medida de valor passa a incidir na intensidade e na força dessas manobras que, não sendo propria­ mente novas, devem ser atuais na acepção premente do termo. A meu ver a pequena tela resiste assim ao ecletismo, dito pós-moderno, em voga: an­ tes sofre e nega contemporaneamente o peso repressor da modernidade. Neste registro aparecem a sua ironia e o seu transe, desencantados mas ultra-ativos, desiludidos porém nada decadentes. Acatando os trâmites de um cotidiano anti-sublime, cada vez mais pas­ teurizado, o quadro evita a pretensão de elevá-lo ou mesmo deslindá-lo. Contudo vai to­ mar uma distância, encontrar a sua dimensão ética frente à empiria maciça e opaca. Até certo ponto, vai enfrentá-la mediante a inteligência específica de uma pintura obsecada com o percurso complexo de suas pulsões. Em um tempo de saturação histórica não existe sequer o recurso de exorcisar a arte, continuar a “ m atá-la” modernamente; tampouco o de mergulhar em busca de seu pathos original. Existe, isto sim, a opção de casualisá-la e relativizá-la, embaralhar talvez a hierarquia de seus conceitos e valores. As pinceladas à primeira vista discorrem à vontade — de fato estão empenhadas em “ esquecer” a tradição com toda a consciência e determinação. O saber da pintura (seguindo, ironicamente, a lição dos grandes mestres) precisa, como sempre, se transformar em um não-saber.


Um uso para o belo

KENNETH BAKER Tradução: Candace Albertal Lessa

Os críticos hoje evitam palavras como “ beleza” e “ belo” , como se fossem palavras feias. Talvez elas tenham sido danificadas para efeito da critica, mas creio que sofrem tanto de negligência quanto de degenerescência. Palavras como “ belo” , “ real” , “ valor” , “amor” e “energia” , que circulam incessantemente através dos meios de comunicação, foram despidas de suas nuances e adquiriram uma ressonância de falta de sentido sob capa de autoridade. Áreas sutis da experiência às quais estas palavras eram aplicadas foram também jogadas ao léu. Porém, uma parte da função social da arte é a de criar oportu­ nidades para o esclarecimento de percepções e sentimentos escorregadios, e mostrar que estes podem ser compartilhados através do enriquecimento da linguagem que os transfor­ ma em realidade comum. É preocupante o fato de que os críticos de arté não consigam fazer nada para evitar que as palavras-chave da estética se transformem em linguajar comercial e oficial. Estas palavras nos fazem lembrar a freqüência com a qual as palavras úteis são pirateadas pela propaganda e pela burocracia parâ fins pouco respeitáveis. Poucos críticos conseguem usar as palavras “ belo” e “ beleza” sem sentir uma ligeira vergonha ou ansiedade caso sejam questionados a respeito de seu sentido. O uso indiscriminado des­ tas palavras dá um sentido político errôneo ao contexto crítico: não podemos confiar no es­ critor que é alheio às manipulações do idioma estético feitas pelas indústrias de cosméticos e da moda. Eu gostaria de começar corrigindo esta negligência da crítica para com o conceito de “belo” , porque creio existirem coisas que expressamos através dos termos “ beleza” e “belo” que não podem ser expressadas de outra forma. Como a palavra “ arte” , “ beleza” parece ser a denominação de algo, ou da qualidade comum a tudo que designamos “belo” . A dificuldade está em demonstrar que as coisas que designamos belas têm em comum algo além do fato de serem “ belas” . William S. Wilson sugeriu (em carta a mim dirigida) que deveriamos falar em “ belos” , em vez de um só “ belo” , para evitar equivalências entre ex­ periências cujo sentido está em sua variedade, ou na composição de suas afinidades. É uma sugestão útil, e a utilizarei em alguns momentos, apesar de ela não nos poupar da dúvida de ser a palavra “ belo” mais precisa que a palavra “ arte” . Antes de responder a esta questão, quero deter-me na palavra “belo” como estopim retórico, ignição intelectual. Quando chamamos a uma obra de arte “ bela” , não dizemos


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quase nada, mas atingimos um objetivo que outra linguagem menos ambiciosa poderia ocultar: criamos pressões e oportunidades para explicações ou, simplesmente, oportu­ nidades para falar. Suponhamos que eu diga que uma pintura de Giorgio Morandi, Na­ tureza Morta, de 1960, é bela. Sem maiores esclarecimentos, meu comentário não seria levado em consideração como observação, mas sim como um vago gesto de aprovação que não incomodaria o ouvinte, desde que este concordasse também com a observação. Além disso, a declaração de que o quadro de Morandi é belo é, na melhor das hipóteses, uma promessa de palavras e observações que irão demonstrar ser a beleza do quadro mais es­ pecífica que os sentimentos de prazer que ele pode estimular. Esta promessa silenciosa é feita com muito mais freqüência do que se cumpre, o que faz com que o belo pareça indefinível. O que estou argumentando é que uma parte da energia que faz com que a beleza se manifeste nas obras de arte venha justamente dos nossos esforços para colocá-la em foco. Tentar definir o belo em uma obra de arte não é necessariamente tentar definir o belo, mas sim praticar e manter certos usos de nossa atenção e de nossa linguagem. A Natureza Morta de Morandi tem muitas qualidades sensoriais que caracterizam sua obra madura: um rigor gestual tremendo dentro de uma superfície pequena (25cm x 35cm), uma luminosidade que parece espalhar-se tanto nas passagens mais serenas quanto nas mais brilhantes, e uma ilusão de luz incidental tão convicente e ao mesmo tempo tão espontânea que o quadro parece emanar a luz refletida por seus objetos. Estas qualidades são absorventes, mas não esgotam o que quero dizer quando me refiro à beleza do quadro de Morandi. Mais pertinentes são as maneiras pelas quais Morandi revela um leque de possibilidades formais e significativas no processo de tomá-las válidas. Por exemplo, ele utilizou as convenções da natureza-morta para fazer com que o olhar experimente sua desorientação como se ela fosse a inquietação da consciência, e daí reconhecer-se como ins­ trumento da mente. Morandi estabeleceu a relevância entre o sujeito e a imobilidade do quadro, que se torna uma metáfora da nossa capacidade de concentração somente na medida em que exercemos esta capacidade. O tema real de seu quadro não é a imobilidade de objetos estáticos, mas uma atitude para com o tempo: a possibilidade de se pensar o tempo como oportunidade contínua de se ver o que há, o que existe. A beleza do quadro de Morandi não está em nenhum a das qualidades que mencionei, mas no relacionamento delas com nossa observação. Escolhi essa pintura como exemplo por não ser uma obra exuberante, mas sim uma obra cuja beleza é irradiada na medida em que começamos a refletir sobre ela. A beleza no quadro de Morandi é uma guirlanda de qualidades e o seu relacionamento entre si, cuja correção parece autêntica, não prescrita. A beleza do quadro nos toca quando somos dominados pela sensação de que Morandi con­ seguiu fazer de algo, ou de uma estrutura de relações, exatamente aquilo que deveria ser. A beleza em sua pintura, como também o seu significado, não é idêntica ao objeto físico, mas sim tangencial a ele. Essa beleza é a energia liberada pelos nossos esforços (mesmo que puramente subjetivos) para converter a realidade perceptiva da pintura em uma realidade social, em algo disponível e sustentado através da linguagem e da prática dos acordos humanos. Pareço estar aqui aproximando-me da definição de beleza dada por Wilson, um aumento da energia disponível . Eu faria ainda uma retificação nesta definição, dizendo


The Ughtning Field,

Walter De Maria


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que a beleza de uma obra de arte é um aumento da realidade disponível na grande área da experiência que se pode tornar solo comum quando as pessoas tentam, através do diálogo, chegar a um acordo com respeito ao que qualifica a obra como bela . O belo das obras de arte não é algo objetivo e fixo como suas medidas. E a sugestão de sua correção (de forma, concepção, execução, e suas relações) que nos alivia do desconfor­ tável desejo de querer que os elementos da obra sejam diferentes do que são. É a qualidade que aguarda uma objetivação proveniente do discurso de observadores interessados. Isto me leva a pensar que o uso legítimo da palavra belo seja o de referenciá-la á promessa de prazer de uma obra de arte, dentro de um contexto de compreensão conjugal, no processo de chegar a um acordo a respeito dos aspectos da obra que não sejam materialmente ex­ plícitos. O belo em uma obra de arte não pode ser pinçado, porque é uma qualidade virtual, e não uma qualidade literal, o que faz com que o belo nunca chegue a ser definido pela mera prodigalidade. Não pode haver critérios de beleza em obras de arte, porque, como ar­ gumentou Arthur C. D antoem Transfiguration o fth e Commonplace (Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1981), não podemos prescrever ou prever quais relações podem existir entre o artefato, e a interpretação e o contexto que fazem dele uma obra de arte. Sobre isso, devemos citar Danto: “ Em períodos de estabilidade artística, as obras de arte possuíam freqüentemente propriedades sem as quais seu estatuto de obra de arte estaria em jogo. Mas essa época já passou e, como qualquer coisa pode ser a expressão de outra, desde que conheçamos as convenções sob as quais isso ocorre e que irão explicar seu estatuto enquanto expressão, então, nesse sentido tudo pode ser uma obra de arte: não são necessárias condições préfixadas. Obviamente, não se segue daí que tudo aquilo que possa ser uma obra de arte o seja... A máquina sobre a qual escrevo poderia ser uma obra de arte, mas ocorre que não é. O que faz da arte um conceito tão interessante é o fato de que, se a minha máquina de es­ crever fosse uma obra de arte', ela não poderia ser um sanduíche de presunto, se bem que algum sanduíche de presunto poderia ser, e talvez até já seja, uma obra de arte” . Danto segue caracterizando o estatuto ontológico das obras de arte de uma maneira que se adapta a minha suspeita de que o belo na arte se comprova na ampliação de uma realidade compartilhada pelos espectadores que negociam a linguagem adequada ao que sentem e vêem numa obra de arte. Danto propõe que: ...as obras de arte são logicamente do tipo que se podem categorizar com palavras, mesmo que elas possuam equivalências reais, na medida em que as obras de arte são sobre algo (ou então que se possa legitimamente perguntar sobre o que são). As obras de arte como um todo estão para as coisas reais assim como as palavras também estão, mesmo se a obra de arte é algo real em todos os sentidos ...Isto não quer dizer que a arte seja lin­ guagem, mas que sua ontologia é similar à das palavras e que existe o mesmo tipo de con­ traste entre a obra e a realidade, e entre a realidade e o discurso” . Desta forma, o discurso sobre a arte pode ser uma maneira de ressaltar a realidade. O scurso pode não somente revelar detalhes desapercebidos da realidade física, como tam­ bém os credos da realidade sobre os quais nos dispomos a agir. Esta conclusão não é de anto, e sim minha, se bem que alguns de seus comentários sugerem que ele estaria de acor o comigo. Pode-se imaginar um mundo sem obras de arte, ou pelo menos sem


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aquilo que seus cidadãos denominam obras de arte, e este mundo seria exatamente aquele no qual o conceito de realidade ainda não tivesse surgido. O valor filosófico da arte reside no fato histórico de que a arte, ao surgir, trouxe consigo o conceito de consciência.” As belezas da natureza e da arte têm em comum que ambas são circunstanciais. Se deparo com uma magnífica vista de montanha no meio da noite, sua beleza poderá não es­ tar manifesta, mesmo sabendo que, quando mudarem as circunstâncias, poderei teste­ munhar uma visão magnífica. Um humor pouco receptivo ou uma falta de curiosidade podem fazer com que eu fique cego perante uma obra de arte. Para mim, a beleza na natureza se aproxima das primeiras definições de beleza de Heidegger (tomadas a Platão), como sendo uma emanação da afirmação do Ser, a irradiação do desvelamento do Ser. Podemos ter indícios da beleza natural em algumas obras de arte, como, por exemplo, em alguns trabalhos em pedra de Brancusi. Porém, relacionamo-nos de maneira diferente com as belezas na natureza e as belezas nas obras de arte. As belezas nas obras de arte são irradiadas com a energia da nossa atenção, e podem ser moduladas e intensificadas pelo que dizemos ou imaginamos dizer aos outros a seu respeito. As belezas da aurora boreal, ou dos cristais minerais, por sua vez, não parecem necessitar da linguagem, mas depen­ dem simplesmente de nossa capacidade de testemunhá-las, completando uma espécie de circuito ontológico no qual fenômenos passam a existir na medida em que São vistos, seja lá por quem for. A intensificação deste processo impessoal pode ser o objetivo do trabalho de alguns artistas, na medida em que o artista procura fazer de algo aquilo que esse algo “ quer” ser. Pensem em algumas esculturas de Donald Judd, em que a disposição dos materiais cria o intervalo ontológico que distingue a obra do seu substrato material. As questões sobre o belo na arte têm-se tornado mais urgentes com o declínio do modernismo, apesar de elas terem sido, em sua maioria, evitadas. Para mim, o fim do modernismo data de agosto de 1945. As armas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki eram meras granadas de mão se as compararmos ao arsenal nuclear de hoje, mas foram suficientemente poderosas para contaminar o futuro. No âmago da pintura moder­ na, como também da literatura e da música, há um apelo ao futuro para condenar a mal­ dade obtusa do passado e do presente. Apesar de os trabalhos de muitos artistas contem­ porâneos ainda estarem permeados pelo temperamento moral modernista, este tempe­ ramento é ridicularizado pela convicção difundida de que o futuro não pode ser uma melhoria do presente porque sua única herança são os meios e atributos da aniquilação mundial. O comprometimento mundial ao terror nuclear como uma estratégia para a esta­ bilidade internacional faz com que o tempo se volte decisivamente contra a humanidade. A maioria das pessoas acredita ser apenas “ uma questão de tempo” para que a desordem ou a própria tecnologia detone uma catástrofe nuclear global. Esse tipo de consciência de vida, quando não a conseguimos reprimir, coloca-nos em uma constante confrontação com a irreversibilidade da ação humana, o que pode parecer banal na maioria dos contextos, mas é ampliada quando lembramos que as grandes potências estão prontas e equipadas para acabar com a Terra. As belezas de algumas obras de arte oferecem-nos um descanso dessa consciência fortificada da vida, mostrando-nos a irreversibilidade da ação humana voltada inocentemente a nosso favor. Imagino aí grandes obras, como os grandes desenhos, que se


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destacam por uma demonstração hábil de técnica. O pós-modernismo não é um fenômeno de estilo, mas uma atitude com respe.to ao futuro. Tanto a Pop quanto a Minimal foram atitudes pós-modernas nas suas diferentes formas de desprezar a posteridade, bem antes de o term o pós-moderno tornar-se uma palavra-chave. Quero considerar uma obra pós-moderna que singulariza como nenhuma outra a necessidade de nos determos na beleza imposta pela presente situação histórica. Trata-se do The Lightning Field (1977) de Walter De M aria. The Lightning Field é uma rede de 400 hastes verticais, em aço inoxidável, distri­ buídas por uma área de uma milha por um quilôm etro (mais seis metros) no deserto do Novo México. O local é tão vasto e aberto que as 400 hastes, com duas polegadas de diâmetro cada, quando vistas de qualquer distância, pacecem possuir uma imaterialidade fantasmagórica. A peça está situada em lugar tão remoto, que a experiência da viagem para vê-la é a de deixar para trás o mundo, e o mundo da arte. De Maria escolheu esse local propositadamente; seus horizontes estão livres de qualquer elemento que dê ao visitante a idéia de tempo histórico. A retirada de todos os elementos temporais, a não ser os objetos esculturais que compõem a peça (e os veículos e acomodações no local), faz com que a visita se torne uma espécie de confrontação com a própria consciência da vida e seu con­ dicionamento pela história. É quase inevitável o pensamento de que, se o mundo se des­ truir, você está longe demais para saber o que está acontecendo. As associações marciais das formas esculturais e a apurada consciência de si como uma pequena criatura na super­ fície do planeta tornam inevitáveis os sentimentos apocalípticos. As hastes são pontudas nas extremidades — suas formas parecem ligar as armas mais antigas, lanças e dardos, aos mísseis e sensores mais modernos. Estas formas agres­ sivas que se dirigem para o céu como relâmpagos tom am -se símbolos da pressão agressiva da ciência sobre a natureza e do risco de que tal pressão possa sair pela culatra. A visão ins­ trumental de The Lightning Field é cuidadosamente elaborada, já que a obra é um recur­ so para indicar os medos cataclísmicos que todos os dias rondam nossos pensamentos. É também algo mais: uma obra que mostra como nossa atenção para com o belo nos redime do sentimento apocalíptico do presente. Não propõe uma consideração estética como um alívio para nossas circunstâncias terríveis. Ao contrário, o trabalho usa o belo dos fe­ nômenos físicos para mostrar que podemos virar o terror de nossa situação a nosso favor, usando-o para intensificar a urgência da vida. As belezas em The Lightning Field são inúmeras e sutis. A mais fácil de descrever é a floração do trabalho sob sol baixo. As hastes de aço inoxidável são essencial mente espelhos cilíndricos que condensam e refletem a luz incidente sobre eles, sendo o reflexo mais in­ tenso quando o sol está no horizonte. Na medida em que as hastes começam a queimar com a luz refletida, a intensidade da sua existência parece aumentar. A vida que adquirem parece espalhar-se por todo o ambiente que as cerca. É como se o brilho da escultura in­ tensificasse a realidade de todo o resto á sua volta. Talvez apenas intensifique a nossa aten­ ção para a realidade crua da experiência é difícil dizer. Emoldurada pelas lembranças da fragilidade apocalíptica do futuro, esta experiência permite que se complete o que de outra forma seria um pensamento impensável: que há um a força positiva na nossa consciência do estado tecnologicamente ameaçado do nosso mundo. Num a situação explosiva como a da tensão nuclear sob a qual vivemos, nada pode ser mais surpreendente que o fato de que o mundo ainda não se destruiu. As manifestações a que chamamos beleza, tanto na na-


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tureza quanto em obras de arte, sào fenômenos de intensidade. Chamam a nossa atenção para o tipo de presença específica do objeto que estamos focalizando. Precisamos da beleza e da linguagem da beleza para nos chamar a atenção para aquilo que mais tememos perder: a realidade crua de nossa existência. O belo em obras de arte raramente é uma questão de estilo. Ele não está presente no mesmo sentido em que estão presentes as obras de arte, já que interage com nossa atenção e nossas palavras, como não ocorre com os objetos. A beleza na obra de arte é uma respon­ sabilidade passada pelo artista ao espectador através de um meio. O artista não precisa bus­ car a beleza para a encontrar em seu trabalho - não é uma questão de decoração, nem design, nem técnica. É uma questão de colocar as coisas em seus devidos lugares, quais­ quer que sejam as implicações disto. As belezas latentes nas obras de arte, por sua vez. desafiam os espectadores da arte a acertarem a linguagem que irá tomá-la manifesta.

NOTA: L WILS° N , William S. ‘ Onde o amor pode ser apenas energia de atenção” , Antaeus. primavera/verâo de Tradução do artigo “ A use forbeauty” . Artforum, janeiro, 1984.


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