Revista Gávea - 14ª Edição

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A Revista Gávea aceita propostas de artigos, mas todas as colaborações não encomendadas sáo sub­ metidas ao conselho editorial a quem cabe a deci­ são final sobre sua publicação. Os artigos deverão ser enviados nos meses de abril e de novembro. Correspondência Editor responsável da Revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 sl. 515-F


Revista Semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciência Sociais Departamento de História Coordenação de Cursos de Extensão


Editor Fundador Carlos Zilio

Assistente Editorial João Masao Kamita Roberto Conduru

Editor Responsável Arma Maria Monteiro de Carvalho

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Editor Adjunto Vanda Mangia Klabin Conselho Editorial Anna Maria Monteiro de Carvalho Antonio Edmilson Martins Rodrigues Carlos Zilio Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Maria Cristina Burlamaqui Paulo Sergio Duarte Paulo Venâncio Filho Rodrigo Naves Ronaldo Brito Vanda Mangia Klabin

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Conselho Consultivo Eduardo Jardim de Moraes Katia Muricy Margâreth da Silva Pereira Margarida de Souza Neves Ricardo Benzaquem de Araújo

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Apoio GÁVEA:

Revista de História da Arte e Arquitetura Vol. 1, n" 1 (1984) - Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História.

P rogram a d e A poio a P u bücaçúes C ien tificas

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Semestral PortuS uês' «nglês, francês e espanhol ISSN 0103 - 1996 U Arte - História - Brasil. 2. Arquitetura História - Brasil. I.

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O Desaparecimento da Imagem HUBERT DAMISCH 482

Os Sonhos Renascentistas: Cidades Ideais e Cidades Utópicas ANTONIO EDMILSON MARTINS RODRIGUES 500

Entrevista FRANZ WEISSMANN 516

O Lugar Beuys CHRISTINA BACH 532

Sobre o Conceito de Instalação FERNANDA JUNQUEIRA 550

Morandi CESARE BRANDI 570


Giorgione A Tempestade, c. 1505

Veneza, Galeria da Academ ia


O Desaparecimento da Imagem Os historiadores da arte não são, necessaria­ mente, "visuais", no sentido freudiano do termo. No entanto, a História da Arte tem em comum com a histeria, ou melhor, com a cura da histeria, a circunstância de promover um retorno sem precedentes das imagens. Retorno material, pois, por seu intermédio, diversas imagens são reintroduzidas no merca­ do e no circuito crítico; mas também retorno psíquico, no sentido propriamente arqueológi­ co, sob a forma de rememoração, de anamnese, de invenção. Psicanálise e História da Arte Exercício do olhar Tradução em imagens

HUBERT DAMISCH Tradução Anamaria Skinner Historiador da arte, filósofo, diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales. É autor de diversos livros entre os quais: Théorie du Nuage (1972), Pour une Histoire de la Peinture (1972), L' Origine de la Perspective (1987), Le jugement de Paris (1992), Traité du Trait (1995).

No exergo de algumas observações sobre o destino das imagens, o seu desaparecimento, mas também a sua volta, a sua circulação, invocarei o testemunho de Ernst Jünger: "Aí onde as imagens desaparecem, elas devem ser substituídas por imagens, caso contrário há ameaça de perda." O problema consistindo em saber a que contexto, individual ou coletivo, refere-se essa afir­ mação, e o que se deve entender aqui por "imagens", assim como por seu "desa­ parecimento", para nada dizer da "perda", que poderia ser seu corolário. Pois existem múltiplas formas de imagens, como existem, para as imagens, múltiplas maneiras de desaparecer. O tempo apaga as imagens, como também apaga os escritos. Mas seu desaparecimento material não implica que nenhum traço permaneça na memória dos homens. Assim como escreve ainda Ernst Jünger, a propósito da poesia ou das imagens da arte, "alguma coisa de indelével produziu-se. O indivíduo pode esquecer que um grande poema ou a Mona Lisa o entusiasmaram. Isso o transformou apesar de tudo [...] Talvez tenha até esque­ cido seu próprio nome — o envelhecimento não é apenas desentulho, é também ordenação."*2) O que nos remete ao problema — contrário ao do desapareci­ mento, o da "conservação no psiquismo" — que abre o Mal estar tia civilização, acerca do pretenso "sentimento oceânico" e das repercussões que pode suscitar

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no registro do imaginário. Uma imagem pode não estar mais presente à cons­ ciência- nem por isso encontra-se, necessariamente, votada ao esquecimento. Sem considerar que, na escala coletiva, com o disse recentemente Jean Baudrillard, trata-se talvez, para a imagem, do modo mais radical de desapare­ cer: emprestar seu nome a uma cultura ou a uma civilização "da imagem". Faço ver que isso não parece ser igualmente verdadeiro no que concerne ao livro, como se, diferentemente da imagem, este pudesse e devesse aspirar a impor-se e a reinar absoluto; sendo a proibição das imagens proeza, por excelência, das culturas do livro, quando não de um livro, um livro único, como o deus que o celebra; ao passo que a imagem está inserida, desde o com eço, e pela sua própria natureza, num circuito ininterrupto de trocas, de traduções, de conversões, de transposições, e primeiramente, de descrições, de interpretações (dever-se-ia dizer que a imagem é politeísta?). Se essa circulação é interrompida, passa-se de um funcionamento considerado "norm al" a uma disfunção patológica; a crítica cedendo lugar, nos termos de Gilles Deleuze, à clínica. O próprio Freud terá tido, no início, ao menos desde o tempo dos Estudos sobre a histeria, a comprovação clínica não som ente do desaparecimento das imagens, mas também do que constituía paradoxalmente sua preliminar, ou seja sua volta, seu reaparecimento. O problema consistindo em que, com os histéricos lidava-se - segundo ele, conforme um jogo de oposições que corres­ pondia a um lugar comum na época - com "visuais", que convinha associar ao trabalho — essencialmente discursivo, baseado numa relação linguageira da análise, especulando sobre o interesse intelectual que tal trabalho não poderia deixar de despertar no doente. Se Freud está certo, esse traço bastaria para explicar que o retorno das im agens", sua reaparição (Der Wiederkehr von Bildcrn) parecia esbarrar, nos histéricos, em menos resistência do que às idéias; tendo o médico, que ainda não seria propriamente um psicanalista, menos dificuldades com eles, desse ponto de vista, do que com os obsessivos. O essencial continua­ va sendo que a perspectiva de um desaparecimento das imagens não se deixas, então, dissociar de sua volta, de seu reaparecimento e reciprocamente: um e desaparecimento e a volta das imagens; o seu reaparecimento estando, por assim dizer, lado a lado, clinicamente falando. Sobre essa questão, só nos resta passar a palavra a Freud, que, aliás, “ e“

6SperOU para fazer uso dela' de um modo, nesse caso, característico: H ° 7 a lmagem reapareceu na fembrança, o sujeito afirma, às vezes, que

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palavra que acabamos de encontrar em Jünger, a respeito da velhice]. A própria imagem mnemónica fornece a orientação; indica em que direção o trabalho [tra­ balho de desentulho, mas também de ordenação, para retomar, aí ainda, a dis­ tinção introduzida por Jünger] deverá comprometer-se." E, chegando a esse ponto, Freud narra o diálogo que se instaurou, então, entre o médico e seu paciente: "Olhe mais uma vez a imagem. Ela desapareceu?" — "No seu conjun­ to sim; mas vejo ainda um detalhe. (Im ganzem ja, aber dieses Detail sehe ich noch) — Então é porque deve ter sua importância. Ou você percebe algo de novo ou o que resta lhe sugerirá uma idéia." Uma vez o trabalho terminado, o campo visu­ al toma-se livre e pode-se evocar uma outra imagem. Mas, às vezes, a mesma imagem continua teimosamente a apresentar-se ao olhar interior do doente (vor dem innerem Auge des Kranken) embora ele já a tenha descrito. Trata-se então, para mim, do indício de que o doente ainda tem alguma coisa importante a dizer-me a respeito dessa imagem. Desde o momento em que ele a revelou, a imagem desaparece à maneira de um espectro redimido que encontra finalmente descan­ so (wie ein erlöster Geist zu Ruhe eingeht). " (3) Se insisti em citar integralmente esse texto, que me pareceu sob todos os aspectos inaugural, é porque ele encontra uma repercussão nesta práti­ ca que pode ser a da história da arte. Os historiadores da arte não são, neces­ sariamente, ainda falta muito para isso, "visuais", no sentido em que o entendia Freud. Mas se a história da arte assume facilmente, na prática, o modo obsessi­ vo, apesar disso ela tem em comum com a histeria, ou em todo caso com a cura da histeria, a circunstância de ter sido e permanecer a agente de um retorno das imagens sem precedentes na história. Retorno material, como eu dizia há pouco de sua desaparição, na medida em que, por sua intervenção, diversas imagens perdidas, ou ameaçadas de o serem, foram e são efetivamente reintroduzidas no mercado e no circuito crítico. Sem falar no trabalho permanente de conservação, de limpeza e de restauração, quando não de reconstrução, a que as imagens da arte estão obrigadas para, apesar das dificuldades, perdurarem, pois nossa época gaba-se de uma grande expertise em matéria de conservação do patrimônio imagístico. Mas retorno "psíquico" também, uma vez que o trabalho concernente a essas mesmas imagens toma facilmente a forma de rememoração, quando não de anamnese, ou até mesmo de invenção, no sentido arqueológico do termo. De fato são a invenções desse tipo que se dedicava o famoso Morelli, em quem con­ cordamos em reconhecer, se não o primeiro dos grandes "connaisseurs"(como são chamados), em todo caso, o inventor de um método que não terá deixado de chamar a atenção de Freud, a ponto de ele ter pensado que poderia compará-lo ao da psicanálise, por aplicar-se, ao menos em teoria, em tomar evidentes detaGÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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lhes tão ínfimos quanto o corte de uma unha, o lóbulo de uma orelha, que pas­ savam muitas vezes despercebidos e podiam, a partir daí, ser tomado- por carac­ terísticas de um artista expressamente designado. Método de que Morell feito o melhor uso quando visitava as reservas dos grandes museus da Europa para neles descobrir obras-primas a que ninguém prestava atenção: tal como a Vénus adormecida de Dresde, por muito tempo condenada ao anonimato, como sob o efeito de uma perturbação de memória, e que bastaria ostentar B0V.imente o prestigioso nome de Giorgione para que retornasse, no final do século passado, à plena luz dos salões de exposição. Se insisto no trabalho propriamente arqueológico qil£ 8€ eiuontra no ponto de partida da história da arte, sem que por essa razão ela a isto se reduza, mas que fornece-lhe o material que lhe é indispensável, ao mesmo tempo que um olhar exercido desde o primeiro contato, é porque, evidentemente, tal trabalho apresenta, com relação à psicanálise, uma forte carga metafórica. Ora, parece ocorrer de outro modo quando se trata do trabalho de interpretação. 1 como admitir, efetivamente, ao menos no campo dos estudos sobre a arte, que a análise possa ter como conseqüência as imagens desfazerem-se pouco a pouco e tornarem-se cada vez mais esmaecidas, até que desapareçam completamente, ao modo — seria preciso repeti-lo? Sim, sem dúvida, e teremos de conservar algo de tocante (eu disse bem: tocante), o modo de presença que pode ser o das ima­ gens da arte — de um Geist, um espectro, um fantasma, um retormnle, que, ao ser liberto, redimido (mas em erlösen há lösen: "d esatar", "desenredar", resolver , como se diria de um problema ou de um enigma) encontraria final­ mente descanso. Se a interpretação, se a própria descrição têm um sentido, em matéria de arte, elas não deveriam, ao contrário, levar a reforçar o impacto das imagens, dar a estas mais corpo, recolocá-las continuamente em atividade, quan­ do não em trabalho? É licito que se formule a questão relativa ao título que um histori­ ador da arte italiano, especialista em arte antiga e em subsistência das formas arqueológicas no tempo do Renascimento clássico, Salvatore Settix deu a seu livro sobre A Tempestade, tema pintado pelo mesmo Giorgione, cujo nome acabamos de evocar a propósito da Vénus adormecida: La Tempesta interpretata. 1™

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Galeria de Veneza: como se a obscuridade das reservas em que estava encerrada a Vénus de Dresde tivesse sido substituída, no caso, por esta, mais densa ainda, do enigma que esse quadro proporia. Não tenho a intenção de discutir aqui a "solução" encontrada por Settis: isto é, de que se trataria, no caso, de um exemplo particularmente bem realizado dos jogos eruditos com que se entretinham os nobres venezianos que eram os comanditados de Giorgione, e dos mistérios ou dos enigmas debaixo de cujos véus eles ofereceriam a seu cenáculo matéria para interrogar-se e meditar. Se levamos em conta a demonstração que ele pretende fazer a partir de fontes iconográficas bem vindas, A Tempestade reduzir-se-ia a uma imagem de Adão e Eva em trajes modernos (ao menos, no caso de Adão, pois vestida, a pretensa "Eva" quase não está), do modo como, três séculos mais tarde, os visitantes do Salão do Recusados irão ver no Déjeuner sur T lierbe de Monet, uma versão, em trajes de aprendiz de pintor, do Concert Champêtre, tradicionalmente atribuído ao mesmo Giorgione. Quanto à lição que os familiares do palácio Vendramin supostamente tiraram da imagem, ela decorria, se levarmos em conta Settis, uma vez descoberto o "tema escondido" da obra, do aspecto novo, e por assim dizer insólito (e sublinho aqui a palavra aspecto), sob o qual se apresentava a cena tal como fora pintada por Giorgione para satisfazer à encomenda que lhe havia sido feita do quadro: "Em A Tempestade, como em Pic [de la Mirandole], Adão não ergue o rosto arrogante do rebelde na direção da cólera divina; ele é apresenta­ do, no começo da história humana, depois da expulsão do Éden, cercado de "hieróglifos" que traçam os limites de seu destino, ou seja, o trabalho, o sofri­ mento, o pecado e a morte. Sob o clamor da voz divina, a consciência de si parece traduzir-se, em primeiro lugar, por uma meditação sobre o lugar do homem no mundo." (5) O enigma que A Tempestade representou durante muito tempo para os historiadores da arte, antes que Settis tivesse a intenção de tornar visível o que chama de "tema escondido"; esse enigma, que o título do quadro vem duplicar, corresponderia, desse modo, ao que teria sido o programa da obra até mesmo em sua forma, seu princípio, sua estrutura mesma: sendo de responsabilidade do pintor transformar um esquema iconográfico tradicional e dele fazer uma imagem cifrada que corresponda ao anseio do comanditário. Ora, seja o que for que Settis pretenda, e ainda que a solução a que ele chegou comportasse, como se diz, uma parcela de verdade (mas essa "verdade", como entendê-la, e como levá-la em conta?), essa interpretação não considera a atração singular que A Tempestade continua a exercer, em nossos dias, sobre os visitantes da Galeria de Veneza, independentemente de estarem eles informados acerca dos jogos que GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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eram do gosto da sociedade veneziana na época de Giorg.one. Caso .gnorasscmos a qualidade propriamente pictural da obra, a imagem desse casa que se instala numa paisagem singular seria propícia a sustentar um .............. . a que a referência à história de Adão e Eva, longe de fa z e r cessar, fome, ona um novo alimento: o homem de pé, em trajes de época, apoiado num longo bastão, a pouca distância de um fragmento de arquitetura antiga, contemplando uma mulher nua, que aperta contra o seio uma criança, e que sentada não muito perto dele (como ocorre com Adão e Eva, nas imagens citadas por Scttis para ap o itt sua demonstração) mas a alguma distância, o que por si só causa problemas e so pode levar o espectador a questionar-se sobre o provável elo existente entre i-sses dois (ou três) personagens. Como causa problema a distância, ainda, em que essa "natividade" insólita situa-se com relação à cidade fortificada, em belr/ada por um grande edifício com cúpula que, sob um céu to rm e n to s o , i obro o espaço do fundo da composição, e do qual a cena que ocupa o primeiro plano se encontra separada por um rio atravessado por uma ponte. Outras imagens poderiam ser cham adas a comparecer aqui, sem que por isso a "interpretação" que Settis dá de A Tempestade seja necessariamente falsa. Por exemplo, uma miniatura francesa do século XV, conservada na Escola de Belas Artes, e que faz parte integrante de uma série intitulada Os quatro esta dos da sociedade: a imagem do Estado selvagem retoma o dado iconográfico depreendido por Settis, excetuando que, caso se trate de "A dão" e "Eva", sua pilosidade abundante substitui-lhes o pudor (sem falar) no filho único, como ocorre em A Tempestade, ali onde as imagens do casal primordial associam regu­ larmente o filho Abel a seu irmão Caim). Que essas imagens pertençam a um conjunto ou a uma série mais vasta, em princípio aberta, fica evidente. O que, ao contrário, causa dificuldade, é o ataque sem atenuantes dirigido por Settis con­ tra aqueles que tomariam o que ele chama de "análise do conteúdo", por um obstáculo ao prazer que se experimenta diante da pintura: em lugar de confundir o trabalho de interpretação com a solução de um enigm a, seria preferível inter­ rogar se acerca do que vem a ser o próprio da constituição estética (não temamos a palavra) a que a obra se submete (o que é completamente diferente de transmitir uma "mensagem"), e eventualmente, acerca da estrutura de enigma que seria a de A Tempestade, e que prescreveria ao quadro que continuasse a P seu efeito, ao passo que a interpretação teria alcançado seu objetivo asstm como o método catártico, aplicado à histeria, fazia desaparecer os seus sinomas, sem que por tsso agisse sobre suas causas, nem habilitasse o médico a

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o ™ " ,3 COnStÍtU* âo histérica: o enigma exigindo menos uma solução e ele proprio responder a uma pergunta não formulada, não formuGÁVEA. 14 (14), setembro 1996


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lável, que, através dele, retorna incessantemente. Ou para dizer tudo claramente: como ficaria, ainda que fosse na própria perspectiva aberta por Settis, o interesse de um amador contemporâneo por essa obra que, embora não desconhecendo Pic de la Mirandole, nem por isso deixasse de ler Freud, e também Lacan, a ponto de ter aprendido com este último que um quadro é, em primeiro lugar, um dis­ positivo em que cabe ao sujeito — eu de fato disse: ao sujeito — encontrar suas marcas, referenciar-se enquanto tal? Não me esconderei aqui por trás da fórmula preguiçosa que pres­ creveria que, em matéria de arte, a interpretação seria necessariamente inter­ minável, posto que a obra, a "obra prima" seria, em princípio, inesgotável. O ver­ dadeiro problema, tal como Walter Benjamin soube enunciá-lo de modo diversa­ mente sutil, com relação às obras literárias, consiste no fato de "o círculo inteiro de sua vida e de sua ação possuírem tantos direitos, diríamos mesmo mais direi­ tos, que a história de seu nascimento, a ponto de ser menos problemático apre­ sentar as obras em correlação com seu tempo, do que, no tempo em nasceram, apresentar o tempo que as conhece, isto é, o nosso". C) A questão que pretendo lançar aqui inscreve-se numa outra perspectiva, e recairá no destino que pode ser o da imagem depois de "interpretada", do modo como Settis gaba-se de tê-lo feito com A Tempestade. La Tempesta interpretata: isso quer dizer que depois de resolvido o caso, e deixando ao espectador, tanto quanto ao amador de pintura, a possibilidade de tirar partido como bem entenderem desse suplemento de saber, possa-se ou deva-se passar à ordem do dia, - à interpretação de um outro quadro, de uma outra imagem, à solução de um outro enigma? Como se, mais uma vez, para além da solução proposta, o quadro não conservasse todo o seu poder de enigma: um enigma relacionado, desde o primeiro contato, no presente caso, à marcada diferença entre os sexos, um vestido e o outro despido, assim como acontece ainda com o Concert champêtre ou Le déjeuner sur V herbe; mas não sem que aqui a presença de uma criança nos joelhos da mulher sentada, nua, na paisagem, deixe de causar efetivamente problema e induza a uma deriva que não basta, para suspender nem prevenir, a solução iconográfica proposta por Settis; não mais do que a marcada relação no gênesis entre o conhecimento e a queda não são suficientes para fazer calar a pergunta que qualquer imagem de uma "natividade" torna a lançar (no caso, lida-se, de fato, com uma série ou com um conjunto singularmente aberto), e até a do Cristo cujos diversos traços icono­ gráficos podem ser encontrados em A Tempestade, a começar pela coluna em primeiro plano, ou a cidade ao longe, sem falar da "nova Eva", cuja presença, aqui e lá, aparece deslocada, e do pai presumível tanto quanto meditativo. A Tempestade, por certo, continua pendurada nas cimalhas da GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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raleria de Veneza Mas como classificar a imagem, ou imagens, que a anal,se faz surgir no quadro de tal modo que a oblitera enquanto tal, a exemplo ^ M a - par retomar o título de uma novela célebre de Henry Jam es - que pode xurg desenho intrincado de um tapete, mediante o que W i.lgenstem deserev ,e uma "mudança de aspecto"? O mesmo Henry James que num de seus ma.x I e os romances, concede um lugar notável ao que chama, ai am da. uma ,magt Portmit o fa Lady retraça, como o quer o título, traço por traço, a h-stona de um mulher, primeiramente uma jovem americana muito pobre, mas feminista ax ant la lettre, muito ciosa, em todo caso, de sua independam >a. de SUS hberdaç e. e que vem à Europa para aperfeiçoar sua educação. Chegando a Inglaterra, Isabelle vai para a casa de um de seus tios, que é im ensam ente ru o. e nensa casa encontra uma mulher chamada Merle, ela também sem dinheiro, mas que, ape­ sar disso, conhece a Europa toda e é recebida pela melhor so ciedade ( ) tk>, Cm I nado, como não poderia deixar de ficar, por sua sobrinha, não tarda a morrer, legando-lhe uma parte importante de sua fortuna. Isabelle decide, então, viajar pela Europa, tendo por acompanhante a tal senhora Merle, que a irrita e tascina ao mesmo tempo, uma aproveitando-se assim da outra, num modo de para­ sitagem recíproco e aparentemente desinteressado. Até o dia em que sua amiga a apresenta, na Itália, a um americano de meia-idade, esteta amável, sem muita consistência psicológica nem recursos financeiros, mas pai de uma interessante menina. Isabelle, abrindo completamente mão de toda pretensão de inde­ pendência, casa-se com ele, sem que se saiba muito bem a razão e fixa residência na Itália. Em pouco tempo, ela se dá conta de seu erro; mas apega-se a menina, não sem que algo da situação escape ao seu entendimento. Até o dia em que, ao voltar de um passeio nas cercanias de Roma com a enteada, entra, sem ser esperada, numa sala do palácio onde mantinha o seu m arido. Ela o encontra sen tado perto da lareira diante da qual estava a senhora Merle; um e outro olhavamse em silêncio. Sem dúvida essa cena nada tem de chocante, nem tampouco é fora de costume. Contudo, como escreve James, "a coisa fez imagem, que só durou um instante, como um súbito oscilar de luz (a sudden flickcr oflight). Suas posições relativas, a troca meditativa de olhares, atingiram-na com o uma descoberta (as something detectai). Mas, tão logo a entreviu, o todo desapareceu". ^ Depois disso, a imagem voltaria freqüentemente ao seu espírito, com o era, sem que a jamais fosse dita entre os protagonistas da história, e sem que O autor p icitasse nenhuma vez a solução do enigma que o leitor apenas entrevê: que a senhora Merle era mãe da menina, e tão bem arm ou O laço que a rk » herdeira o, apanhada, casando-se com aquele que vinha a ser o pai. Com isso, garantiu o 490

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Giorgione A Tempestade, c. 1505 (detalhe) Veneza, Galeria da Academia

futuro de todos, inclusive o da menina que, nesse ínterim, havia-se tornado uma jovem na idade de casar-se e que, graças a ela, tal como esperavam os outros dois, faria um bom casamento. Curiosamente ou não, essa revelação, essa "descoberta", não terá conseqüências. Em lugar de encontrar nisso um motivo para romper com o trio, Isabelle reagirá escolhendo a situação em que se deixa de bom grado enredar, e continuará dedicando-se a sua enteada, ao mesmo tempo em que manterá constantemente presente, no horizonte de seus pensa­ mentos, a imagem que a tinha, de fato, surpreendido. Como se a imagem que parecia decifrar o enigma de seu casamento tivesse apenas retornado e aprofun­ dado o próprio enigma de sua vida de emigrada, ou, numa palavra, de seu

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deslocamento. ... Ali ainda surge uma imagem, lá pelo m eio do livro, como uma subita oscilação de luz (à maneira do raio que atravessa o céu de A Tempestade), e que confere a esse "retrato" um aspecto totalmente diferente do que apresentar.» ate então. Agrada-me pensar que durante alguns meses que passou em Veneza, em 1881, para terminar The Portrait o f a Lady, Henry Jam es, apaixonado OOBM pela pintura veneziana e por Giorgione em particular, poderá ter visto la Tempesta na coleção Giovanelli, a qual passara a integrar alguns anos antes, graças ao apoio do governo italiano, que fez questão de impedir a sua aquisição pelo Museu de Berlim (caso, ainda e sempre, de circulação, de retornos e de des.» parecimentos). E como, efetivamente, não ficar im pressionado com a analogia, não somente entre as duas cenas, a que o quadro propõe, e a que esta no centro de The Portrait ofa Lady, mas entre o enigma que um e outro propoem: se abstrair mos a criança, ausente aqui, mas cuja ausência, precisamente, faz sentido, e ali presente, dois personagens, um contemplando o outro, levando em conta que, de A Tempestade ao Portrait, as posições se invertem, o homem estando de pé na primeira, olhando a mulher sentada; enquanto que no Portrait é a mulher quem está de pé (mas com a cabeça coberta aqui e ali), e que olha o homem sentado. Semelhante inversão combinando com a do próprio enigma, a pergunta "de quem é a criança?" sendo em A Tempestade lançada pelo pai, ao passo que em The Portrait recai, por uma jogada inusitada - se pensarmos nisso na própria mãe A inversão ainda não fica por aí, como também não a analogia; se o quadro propõe um enigma que não reclama talvez solução, a pergunta "de onde vêm as crianças? permanecendo aqui no horizonte, a imagem, em o Portrait, ao con­ trário, encontra um meio, sem que a coisa, uma vez mais, seja dita, de solucionar um enigma que paradoxalmente, não terá jamais com o enunciar-se de modo explícito. Eu poderia ater-me aqui a esse "congelam ento da imagem", fican­ do admitido que se a solução do enigma, supondo-se que seja alcançada em se tratando de A Tempestade, não teve como consequência o desaparecimento do quadro; o retorno da imagem não terá também por efeito conclamar para que, da parte desta de quem o romancista pretende traçar o retrato, haja uma tomada de consciência em termos discursivos. Mesmo observando que, num e noutro caso, se existe congelamento da imagem, deve-se evidentem ente relacioná-lo com a questão da diferença dos sexos e da parte respectiva que lhes cabe no processo da geração e da reprodução das relações sociais. O texto de Freud sobre o retomo e o desaparecimento das imagens na cura da histeria, qu e citei a o <omeçKl texto introduz, no entanto, um problema suplementai, qu e não tefíu n o s IHOOS 492

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aqui de fingir desconhecer. Pois não é a interpretação, seja ela feita pelo analista ou pelo próprio paciente, que desencadeia o desaparecimento das imagens que estarão inicialmente de volta. A imagem começa a desagregar-se (in dem Masse zerblöcke), até mesmo a tornar-se esmaecida (undeutlich) como o escreve Freud, sob o efeito único da descrição que o paciente dela fornece. Mas o que se pode dizer então, caso tivéssemos de levar adiante aqui esta lancetada? O que ocorre, o que pode ocorrer com a descrição, quando ela se detém numa imagem que retoma não ao espírito, mas ao quadro, uma imagem que não se refere unica­ mente ao “olhar interior", uma imagem que se deixa ver, uma imagem que é, ou deveria ser, objeto de percepção? Eu disse que a questão do desaparecimento das imagens não se deixa separar da de sua volta, como também não do modo como elas são apre­ sentadas ao espírito, ou a ele se impõem. As imagens a que Freud se refere, na passagem que citei dos Estudos sobre a Histeria, eram do tipo que surgiam na memória do paciente quando o médico exercia uma pressão com a mão sobre a sua testa, ao mesmo tempo que lhe ordenava que comunicasse, sem submeter a controle algum, tudo o que lhe passava então pela cabeça. Essas imagens não ti­ nham certamente a força das alucinações de que esse mesmo paciente poderia ser vítima durante uma crise ou um acesso histérico. Elas nem por isso deixavam de estar relacionadas mais ou menos estreitamente com a lembrança patogênica que estaria na origem do mal; os histéricos sofrendo sobretudo - segundo a fór­ mula célebre - "de reminiscências". Reminiscências de fato inconscientes, e que o método catártico visava a tornar visível pelo desvio da hipnose ou, quando esta fracassava, pelo artifício da pressão, a qual visava a fazer com que caíssem as resistências do ego, atacando-o de repente, e favorecendo a emergência de lem­ branças recalcadas sob a forma de idéias ou coisa, como se disse mais facilmente, tratando-se desses visuais que os histéricos eram - de imagens que iam se definindo e enriquecendo progressivamente pelo jogo de associações, a resistên­ cia traduzindo-se pela falta de nitidez das imagens e por seu caráter incompleto. Retrospectiva mente, tornava-se evidente que era justamente o essencial que fal­ tava, a imagem permanecendo por essa razão incompreensível: Freud dá o exemplo disso para a imagem surgida de um torso feminino velado, mas cujos véus, como por negligência, wie durch Nachlässigkeit (eu sublinho), apresentava um buraco, e, ao qual, o paciente deveria acrescentar depois uma cabeça, designan­ do com isso uma pessoa, indicando uma relação. A História da Arte não procede de outro modo: a pesquisa das "fontes" ou a constituição de um corpus iconográfico supõe que se deixe de lado, por meio de um jogo de associações que pode conduzir a acentuar, por um efeito GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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de emolduramento caracterizado, que expulsa para fora do campo os outros aspectos da imagem, um detalhe até então negligenciado. 1lá, nesse sentido, na Tempestade de Settis, um caso de serpente acerca do qual o mínimo que se pode dizer é que está mal esclarecido. Mas como compreender que uma imagem que era primeiramente esmaecida (undeutlich) e incompleta (unvollstiindig), como o pode ser a percepção fugidia que se tem de um quadro, num museu pelo qual apenas se passa, como compreender que essa imagem possa ganhar em nitidez e enriquecer-se progressivamente; e, ao mesmo tempo, que a própria descrição que o paciente faz dela, o fato para este de traduzi-la, de transpô-la, de convertêla em palavras tenha por efeito que ela se desfaça, que ela se desagregue a ponto de tornar-se esmaecida, indistinta? Como se, para retomar os termos de Freud, à medida que o trabalho de desentulho avança, e a descrição chega ao fim, o campo visual (das Gesichtsfeld) devesse ser deixado livre para que fosse permiti­ do a uma outra imagem instalar-se. Mas não sem que, as circunstâncias favore­ cendo, uma das imagens deixe de impor-se, com obstinação, ao olhar interior do doente, embora ele já a tenha descrito: tão logo tenha revelado o que ainda pode ter de importante a dizer a seu respeito, nem por isso a imagem, por sua vez, desaparecerá, ao modo, é preciso repeti-lo aqui, de um espectro finalmente redi­ mido e que pode descansar. Haveria muito a dizer quanto à redenção - por intermédio do dis­ curso que pode ser o da história da arte, entendida como uma disciplina her­ menêutica ou somente descritiva, —desses "espectros" ou desses "fantasmas", desses retornantes, que voltam regularmente, que seriam as imagens da arte. Digo, efetivamente, as imagens; os próprios quadros, a começar pela Vénus adormecida sendo deixados livres para descansar em toda tranqüilidade nos museus até o dia em que um intérprete decidir despertá-los, —estando conven­ cionado, antes de mais nada, que na pintura é proibido tocar. Falta-me espaço para tratar aqui o modo como se coloca o problema da imagem, e o que pode ser o seu destino sob o efeito da interpretação, até mesmo apenas da descrição; quando se passa dos Estudos sobre a histeria à Traumdeutung. Limitar-me-ei, por­ tanto, para concluir, a algumas observações que mais pertencem ao campo da paráfrase do que ao de uma análise em boa e devida forma, mas que, apesar disso, deveriam levar a esclarecer a questão que nos importa aqui, mais do que a da interpretação, a da descrição. Eu disse algumas palavras sobre o que o próprio Freud entendia por imagens, tratando-se, no caso, das que vinham ao espírito dos pacientes na cura catartica: a que deslocamento, - teórico tanto quanto clínico - terá correspondido a passagem das .magens mnésicas às do sonho, e que relação pode exis­ 494

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tir entro essas e aquelas? A questão tem o primeiro mérito de fazer aparecer até que ponto a problemática em torno da qual se ordena A Interpretação dos sonhos ainda estava relacionada à dos Estudos sobre a histeria. O que Freud esperava, então, de seu estudo do sonho é que este lhe permitisse proceder à análise de toda uma série de formações psíquicas anormais, de que o sonho parecia-lhe constituir o primeiro termo. Como se lê, desde a advertência da primeira edição da Traumdeutung, “aquele que não pode explicar a origem das imagens do sonho procurará inutilmente compreender as fobias histéricas, as obsessões, as idéias delirantes, e exercer sobre elas uma ação terapêutica". (n ) Certamente, as ima­ gens características do sonho parecem-se mais com percepções do que com ima­ gens mnésicas. Mas as imagens que se apresentavam ao paciente nos estados quase hipnóticos, correspondentes à cura catártica, não estavam desvinculadas das alucinações chamadas hipnagógicas, relacionadas à fase que precede o sono. A única diferença com relação às imagens do sonho, assim como com relação às alucinações de que sofriam os histéricos, consistia no fato das imagens mnésicas, fossem elas as mais vivas, não poderem apenas elas, sem excitação do aparelho perceptivo, adquirir o caráter objetivo que faz da alucinação o que ela é. O que levaria Breuer a formular, em princípio, que o aparelho de percepção deveria ser diferente daquele que reproduz, sob forma de imagens mnésicas, as impressões sensoriais, apesar de, efetivamente, na alucinação, o aparelho receptor ter de encontrar-se ativado, de uma maneira ou de outra Ó2)r _ tema que assumirá em Freud uma grande importância. A alucinação caracterizar-se-ia, desse modo, por uma confusão de fronteira entre percepção e rememoração. Mas e o sonho? O sonho, de que Freud nos diz: "ele alucina", e que suas alucinações —como estas de que sofre o histéri­ co - têm um sentido? O sonho que pensa por imagens, e tanto quanto possível, mas não exclusivamente, por imagens visuais? Como deixar de evocar a esse respeito o Ulisses de James Joyce, no qual Bloom, sob o efeito do meio dia, ajuda um cego a atravessar a rua, e logo lança para si mesmo, como é seu hábito, uma quantidade de perguntas, começando por esta: "Que sonhos ele pode ter uma vez que não enxerga?" (13> Pergunta que, curiosamente, não teria ocorrido a Diderot, ocupado como estava em fazer os cegos compreenderem, através do uso de bordões, qual poderia ser a função da perspectiva, ou em representar-lhes o que se devia entender por pintura: ao que - dizia - não se teria como lograr exito - por não haver a possibilidade de recorrer a uma descrição que apenas poderia fazer sentido para os que viam - senão pintando sobre a pele deles, e recorrendo com isso a uma outra forma de comércio de imagens, ao mesmo tempo que a um outro modo de relação com a pintura, do que o estritamente visual. Um comer­ GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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cio de imagens, uma relação epidérmica, táctil, corporal ou, como o diz ainda Freud, "plástica", e dotada, a esse título, de uma espacialidade própria. O sonho alucina, ele substitui pensamentos por imagens: mas não se teria meios de esta­ belecer, desse ponto de vista, nenhuma diferença entre as imagens, fossem elas visuais, tácteis ou auditivas. O importante, como insiste Freud, sendo lidar com elementos que se comportem como imagens, elementos que "façam imagem", ou seja, que pareçam-se mais com percepções do que com figuras mnésicas d-b. Ora, não acontece de outro modo com as imagens da arte, oferecidas como elas o são, à vista, e que não têm, entretanto, outra realidade senão a que lhes confere a atividade formadora da imagem. O sonho pensa por imagens, o que supõe uma transposição, uma tradução, até mesmo uma "conversão", que pode ir até à transformação dos pen­ samentos mais abstratos das imagens plásticas, como parecia indicá-lo as experi­ ências de Silberer que retiveram por algum tempo a atenção de Freud: o tal Silberer chegando mesmo a adormecer num banho quente, pensando na Crítica da razão pura, para observar melhor o fenômeno. Interpretar o sonho correspon­ deria, portanto, a agir contrariamente a esse processo, e substituí-lo, esse sonho, - aí ainda, apenas parafraseio Freud, - por alguma coisa que possa inserir-se na cadeia dos atos psíquicos, assim como ocorre com as imagens mnésicas na cura da histeria. O que confirma que não basta que uma imagem desapareça: é pre­ ciso ainda que ela seja substituída por uma outra imagem, ou pelo discurso, pela descrição, pela interpretação, sem o que, como escreve Jünger, "há ameaça de perda'. Aí ainda, a análise de um sonho levada a termo, ao menos provisoria­ mente, devia deixar o campo livre para o sonho seguinte, o ganho estando tanto mais garantido pelo fato do sujeito, Freud em primeiro lugar, revelar-se, na sua auto análise, um bom sonhador ' e que, aí onde as imagens desapareciam, ou­ tras logo as substituíam, para o maior benefício da análise. Mas o essencial está relacionado ao propósito que é aqui o meu, e vem a ser que: o único meio para que imagens alucinatórias dos sonhos sejam conhecidas é sob a espécie mnésica. Ora, o sonho apresenta-se na lembrança que dele guardamos após o despertar, sob dois aspectos distintos (e aí, ainda, eu sub­ linharia o termo aspecto). Se esquecemos ao despertar a maioria dos sonhos, e outros só subsistem por pedaços, certas imagens oníricas podem impor-se ao modo de corpos estranhos cuja presença tem algo de obsessivo, sendo a única maneira de agir sobre elas integrá-las, de um modo ou de outro, à narrativa. Pois o sonho não pensa apenas por imagens. Mais próximo nesse aspecto (tal como Patnck Lacoste acertadamente se deu conta) do cinema do que da pintura à qual Freud o compara, o sonho organiza essas imagens em cenas, ou como diz ainda 496

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Frcud, ele dramatiza um pensamento, sem excluir qualquer congelamento da imagem. Para retomar a distinção que a teoria do cinema estabelece entre imagem e plano, eu diria que o erro é talvez de se falar das imagens do sonho como se se tratasse de outro tanto de imagens fixas, ao passo que elas antes seri­ am comparáveis a planos, ou como diz ainda Deleuze, a “imagem-movimento”. O problema, desde então, seria proceder à divisão, no texto do sonho, quando não no próprio sonho, entre o descrito e o narrativo, entre o que se pode descrever, e o que não se deixa senão narrar. Ficando estabelecido que se o texto do sonho” existe, ele se resume ao relato que dele podemos fazer para nós-mesmos, ou que dele fazemos para o analista; a análise incidindo, final­ mente, sobre o texto do sonho e não sobre o próprio sonho. Ora todo o problema consiste nisto. Tendo por suposição pensar por imagens, o sonho só é, de fato, acessível em posterioridade, é só se presta a análise sob a forma discursiva, cor­ rendo o risco de uma recriação completa; aí onde os sonhos de que não con­ seguimos lembrar-nos são - como os escrevia Michel Leiris no seu Diário, sob a influência na época da descoberta da psicanálise e tirando ele mesmo a prova disso, no ano em que aparecia a primeira tradução francesa da Traumdeutung, como objetos de que conheceríamos apenas os ângulos, sob a forma mais abstra­ ta: sua medida em graus. Um desses ângulos aparece freqüentemente na memória, mas, apesar de nossos esforços, permanece despojado e não pode revestir-se de matéria alguma; temos somente a percepção de sua acuidade, como a do cotovelo de um desconhecido que esbarrasse em nós, de lado. Belo exemplo, seja dito cn passant, de uma imagem que nada tem de visual, vindo do mesmo autor que dizia ver nos sonhos menos imagens misturadas ao seu sono, do que a própria imagem de seu sono/1'7) Sem dúvida a imagem, as imagens con­ tinuam a insistir, em algum lugar, no relato que delas se faz, como o fazia esta de um espaço inteiramente abstrato, no qual o sujeito não seria mais do que um ponto matemático deslocando-se ao longo de uma linha, no deserto da cidade pavimentada de palavras", a que se reduzia, para o autor de Aurora, o mundo de seus sonhos/18) Ainda que a descrição fosse conveniente, ela não teria por final­ idade deixar ver, do mesmo modo que as descrições de quadros a que Diderot procedia nos Salões não visavam a deixar que seus correspondentes vissem as obras cuja reprodução não lhes podia propor, mas somente a permitir ao crítico que falasse delas de uma maneira que fizesse ao mesmo tempo sentido e imagem.

O texto do sonho não se faz acompanhar de ilustração alguma: e se existe reprodução, no caso particular, ela procede de uma transposição, de uma GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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tradução, de uma conversão de sentido contrário ao trabalho do sonho; a análise consistindo apenas em apreender o sonho na armadilha da língua, de transfor­ má-lo em objeto de discurso, ou seja, uma operação que não pode deixar de ter retomo. Assim como o é para todo discurso sobre a arte, o qual só tem sentido se correr o risco de um curto-circuito. Se a cena da qual a heroína de James foi teste­ munha repentina; se essa cena fez para ela imagem, foi porque a situação cos­ tumeira, em que a jovem senhora esperava encontrar seus dois parceiros falan­ do de uma coisa ou de outra, transmitiu-lhe então a impressão de que a conver­ sa entre eles tinha, naquele momento, convertido-se numa forma de silêncio familiar (hadfor the moment converted itself into a sort o f fam iliar silencé). A dificul­ dade do discurso sobre a arte - no que diz respeito à psicanálise, limito-me a for­ mular a questão - consiste no fato de que se espera dele que se iguale a esse silên­ cio capaz de criar a condição de aparecimento da imagem, permanecendo aten­ to ao fato de tal silêncio ser o resultado de uma conversão, ao mesmo tempo que provém, como o faz a imagem, pelo menos a imagem fixa, a imagem congelada, de um modo de interrupção, de curto-circuito, de mudança de aspecto. Não se permite, em princípio, tocar na pintura. Mas descrevê-la, e mais ainda interpretála é, efetivamente, uma outra maneira de tocá-la, com todos os riscos que isso implica, a começar por este, de responsabilidade das palavras que celebram a sua presença, de seu desaparecimento.

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Notas ( 1 ) Emst Jünger, Les Ciseaux, tr.fr., Paris, 1990, p. 9. ( 2 ) Und, p. 15. ( 3 ) Sigmund Freud et Joseph Breuer, Stadien über Hysterie, G. W., I, p. 282-283; trad. fr.. Etudes sur Vhysterie, Paris, 1967, p. 226-227. ( 4 ) Salvatore Settis, La Tempesta interpretata, Turim, 1978. O editor francês quis, sem sombra de dúvida, desfazer a armadilha que este título por demais seguro e peremptório encobria, substituindo-o por um outro, cuja ambigüidade, do nosso ponto de vista, é reveladora: A Invenção de um quadro: "a tempes tade" de Giorgione, 1987. ( 5 ) op. cit., trad. fr., p. 143. ( 6 ) Cf. o catálogo da exposição Les manuscrits à peinture en France, 1440-1520, Paris, Bibliothàque Nationale, 1993, catal. ( 7 ) Walter Benjamin, "Histoire littéraire et science de la littérature", trad. fr. In Poésie et Revolution, Paris, 1972, p. 14. ( 8 ) "There was nothing to schock; they were old friends in fact. But the thing made an image, lasting only a moment, like a sudden flicker of light. Their rel ative position, their absorbed mutual glaze, strucked her as something detect ed. But it was all over by the time she had fairly seen it", Henry James, The Portrait o f a Lady, ch. XL, Norton critical edition, New York, 1975, p. 343. ( 9 ) "Der Hysterische leide grösstenteils an Reminiszenzen", Freud e Breuer, Studien..., op. cit., p. 86; trad, fr., p. 5. (10) Ibid., p. 284; trad, fr., p. 228. (11) Freud, L’Interprétation des rêves, trad, fr., Paris, 1967, p. 1. (12) Freud e Breuer, Etudes..., trad, fr., p. 151. (13) James Joyce, Ulysse, trad, fr., Paris, 1948, p. 179. (14) Freud, L’interprétation des rêves, trad, fr., p. 52. (15) Ibid., p. 90. (16) Michel Leiris, Journal, Paris, 1992, p. 82. (17) Ibid., p. 75. (18) Ibid., p. 93.

Agradwe^os^o^ro^Hubert'oam tsch^porhave^cedldo este artïgo°com1exclusividade para publicação na Revista Gávea. GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Os Sonhos Renascentistas: Cidades Ideais e Cidades Utópicas O artigo discute as formas de conhecimento do renascimento quanto à cidade, problematizando-a a partir de dois autores: Leon Alberti e Thom as Morus. A discussão complementa-se por dois pontos que configuram a pertinência da discussão quanto ao modo de tratar as cidades construídas nas Américas durante o período do renascimento: cidades ideais ou cidades utópicas? Cidades Renascentistas Cidades Ideais/Alberti Cidades Utópicas/Morus

ANTONIO EDMILSON M. RODRIGUES Livre-Docente em História do Brasil, professor do Programa de Mestrado em História Social da Cultura da Puc/Rio e do Mestrado em História da UERJ, também leciona na graduação de História da UFF.

A cidade é um texto a ser decifrado. Como corpo, a cidade é vivida; como figura, pode ser descrita; como texto, é lida. ^ A expressão "renascimento" ao ser ouvida projeta sobre quem a escuta a imagem do movimento que, pelo grau de sua importância, configura a identidade da cultura ocidental quanto às suas origens intelectuais e que, por isso, define-se como oposto à Idade Média, assumindo a monumentalidade de caracterizar-se como uma ruptura com todas as formas anteriores de pensamen­ to. Essa definição envolve a constituição de um campo de oposições que coloca como contrários: Idade Média e modernidade, vida ativa e vida contemplativa, imanência e transcendência, mundo fechado e universo infinito, religião institu­ cional e secularização, corporativismo e individualismo, racionalidade e irra­ cionalidade, ciência e mitologia e luz e trevas, dentre outros pares. Cada um desses pares tendem a revelar não apenas a distância entre um período e outro, mas as diferentes experiências decorrentes de ações práticas que envolvem universos de valores símbolicos distintos. Os afastamentos tor­ nam-se mais radicais quando se verificam os espaços onde essas experiências ocorrem e se concretizam na forma de realizações políticas, sociais e econômicas. Leon Battista Alberti, De re aedificatoria. Manuscrito do Século XV, frontispício, Modena, Biblioteca Estense (cat. 2). In Leon Battista Alberti, a cura di Jo sefh Rykwert e Anne Engel, Mi ano, Electa, Milano Elemond Editoti Associati, 1994, p.82. GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Enquanto o mundo feudal vincula-se à senhoria e em tom o dela organiza edefine os seus valores, o mundo moderno toma forma e adquire significado na cidade. A pergunta óbvia é a da existência de mais uma oposição, entre rural e urbano, que constitui-se como um par de contrários no qual estão inscritos todos os outros pares de opostos. A resposta, no entanto, é negativa. Não no sentido de aceitar a inexistência de diferenças, mas na referência interpretativa. Ela é negação de um modo de tratam ento, da consideração do campo de oposições como relevante para o conhecim ento do renascimento como expressão da modernidade. E essa negação pode resgatar um campo interpretativo novo no qual inclusive os pares anteriorm ente identificados estão presentes mas perdem a sua relevância explicativa e incorporam um sentido novo, onde as oposições transformam-se em com plem entariedades culturais a partir dos quais é instituído o critério da compreensão. Neste aspecto, a cidade não é produto da modernidade e nem construída como idéia no renascimento, nem pode ser considerada como marca inconfundível da civilização m oderna, pois, se observam os a paisagem medieval, além dela ser pródiga em cidades, várias características das cidades chamadas de modernas já estão presentes nos m odos urbanos da Idade Média. O que se propõe não é tomar a cidade com o o modo de estabelecer a diferença radical entre a Idade Média e o Renascimento e nem associar as cidades à fundações míticas ou absolutas. O que se quer demonstrar é que a identidade das cidades não se prende as pedras que compõem os seus muros e as suas casas, mas às formas-idéia de suas construções e do engenho criativo de dar-lhes a beleza, a harmonia e o conforto que fazem-nas possíveis de serem habitadas pelo homem. Ou seja, o que difere o m undo feudal do mundo moder­ no não são as funções atribuídas a priori às cidades, mas os usos que são feitos delas pelos homens. Assim, não existem cidades m edievais e cidades modernas como atributo funcional, o que determina a qualificação medieval ou moderna são as formas de apropriação que são produzidas nos espaços urbanos. Jacob Burckhardt identifica a cidade como uma obra de arte o que supõe, em sua mterpretaçao, a existência de um espírito que as envolve e consolida uma deter­ minada razão que atribui sentido à relação espaço/sociedade. ' es diferentes procedimentos cotidianos de urbanidade, além de projetarem sobre as cidades sinais dem arcadores de suas singularidades, envolvem interpretações distintas do mundo natural e espiritual. A arte, assim r S \ Z ã ,CrÍaÜVa qUC 56 t0m e da renascença, demonstra as erenças quanto a Idade Média, especialm ente no tocante à invenção da perspectiva e a constituição do mundo artístico com o decorrente da força do homem, Z

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através da idéia e da experiência da natureza. As cidades, neste contexto, apre­ sentam-se como um locus de ação de toda a renovação característica do período. A beleza não mais se afirma como dado que provém da providên­ cia, mas como uma forma de qualificação daquilo que é a paisagem natural, na qual não se pode prescindir do homem e de seus modos de ver e fazer. Dessa forma, as experiências distintas produzem resultantes diferentes só que as diferenças decorrem dos novos usos. As experiências se realizam no plano daquilo que identifica-se como complementariedade, ou seja, nessas experiên­ cias é obrigatória a presença das tradições anteriores ao lado das novas invenções e descobertas, não só porque a presença dessas tradições revela o plu­ ralismo do pensamento moderno como quantifica o vigor do novo e o qualifica como tal. Nada daquilo que qualifica o explendor do moderno pode ser resul­ tado de uma ruptura que anule o antigo ou o velho, já nos dizia Vassari (3). Ao contrário, as experiências são caminhos de tensão onde características aparente­ mente opostas se intercambiam e assumem novas formas. O resultado é que não se pode considerar o renascimento como um momento de ruptura que anula a tradição anterior e nem, no limite, opor o saber escolástico ao saber racional, pois, é da presença dessas múltiplas formas de pensamento que se abrem os novos horizontes para o mundo e para o homem. Talvez a abertura do mundo e os novos horizontes criados pelo alargamento do olhar do sujeito-homem sejam as imagens mais conclusivas da grandeza do mundo moderno. Nesse processo de abertura descobriu-se um quarto continente - a América -, depois, colocou-se a Europa diante do Novo Mundo e produziu-se uma sensação de inacabado que abalou as bases do pen­ samento medieval e do primeiro renascimento, na medida em que, atuou como promovedor de novas linguagens, novas geografias e novas formas de com­ preensão dos homens, ampliando o conceito de alteridade. Mas, principalmente, redundou no ato de complementariedade entre os continentes, produzindo uma reflexão humanística que teve como uma de suas consequências a constituição de uma idéia de história onde presente, passado e futuro podiam ser imaginados a partir de um mesmo lugar. A abertura do mundo associada à renovação mental do homem renascentista exerce sobre essa Europa moderna uma ação que altera valores, instaurando o campo da crítica e a valorização dos métodos de comparaçao, que, por um lado, permitem determinar modos diferenciados de ações e praticas soci­ ais na cidade e, por outro, provocam o progresso, associando-o a civilização. A Europa constitui-se moderna ao mesmo tempo em que a América GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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é descoberta e incorporada como área complementar, ou seja, o Novo Mundo tem a função de animar as marcas do moderno, dando-lhes novos alentos e pos­ sibilitando um novo campo de experimentações. Entretanto, o resultado que parece mais expressivo é o de ter con­ duzido à idéia de universalização, onde as diversidades e as singularidades são essenciais para definir o caráter aberto e infinito do olhar humano, pois constituem a base da produção do saber renascentista e acentuam a dimensão cosmopolita do homem. E isso configura a condição de entender a noção de Novo Mundo e o espaço onde sua existência real torna-se concreta por conta não apenas da novidade das novas terras mas da presença nessas "terras maravilho­ sas" das nuanças do pensamento renascentista. O que, como decorrência, estabelece um vínculo forte entre o Novo Mundo e a Europa renascentista, não porque se verificam os movimentos das descobertas, mas pela complementariedade cultural, pelo espelho que reflete a vontade e o poder de domínio do homem e isso está presente na construção das cidades coloniais ibéricas, mesmo que autores com o Sérgio Buarque de Holanda, associem as cidades portuguesas às feitorias. No entanto, na contramão, de Sérgio Buarque têm-se Angel Rama (4) que traça o perfil racional de edificação na América, projetando a noção de cidade dos trópicos como ordenada por princí­ pios decorrentes das cidades reais européias. Todas essas questões merecem maiores aprofundamentos. No âmbito deste trabalho, entretanto, elas serão ape­ nas apresentadas na forma de hipóteses heurísticas que terão em comum a função de demarcar as relações de com plem entariedade na Europa e entre a Europa e a América. A consequência imediata dessa proposta é rever o sentido de colonial dado as terras do Novo Mundo. M esmo que não se altere a qualidade do conceito é essencial que à noção de espaço colonial seja agregada o modo novo de estar no mundo produzido pelo renascimento e a conclusão provisória é a possibilidade do humanismo renascentista estar presente na configuração e na representação européia do Novo Mundo com o atributo do caráter moderno do novo continente. Não se entenda, com essa proposta de interpretação, que se quer anular a dimensão repressiva do domínio político da Europa sobre a América, o que se sugere e ultrapassar as interpretações que se apegam as "culpas" e que ti icam o novo contimente. Ao lado da incorporação econômica nos moldes dos princípios renascentistas, há uma incorporação mais ampla, também mítica, i

CZ ° r s7 enl" humanista do renascimento construir uma imagem real o ovo un ° como referência para a crítica social, que tanto incorporou a re eitura dos mitos da antiguidade clássica com o as experiências de alteridade

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Mapas dos Monumentos Históricos de Roma na Época do Papa Nicolau V. Florença, Biblioteca Medicea Laurenziana In Leon Battista Alberti, a cura di Jo sefh Rykwert e Anne Engel, Milano, Electa, Milano Elemond Editori Associati, 1994, p. 139.

produzidas pelas viagens maravilhosas dos europeus no fim da Idade Média e no início do renascimento. Essa mítica, que em alguns casos tornou-se poética, só adquire força quando a realidade do Novo Mundo mostra-se aparelhada para funcionar como espelho da realidade européia, decorrendo desse processo duas figuras, a Nova Europa e o Novo Mundo. As duas figuras só se constróem porque os relatos proGÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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duzidos contém aspectos que configuram as suas representações espaciais e, mais a frente geográficas, tom ado-as capazes de serem descritas e figuradas. A espacialidade encontrada nas descrições divulgam as descobertas e aprimoram as imagens das figuras e dão-lhes capacidade de interação, provocando dis­ cussões e aproximando a mítica ideal do real. São as teorizações e reflexões daí decorrentes que estabelecem a constituição de um lugar no pensamento m oderno para as noções de "cidade ideal" e de "utopia". Um lugar de encontro e desencontro, de aproximação e afastamento, mas sempre um topoí. Para fins de análise, alterar-se-à a relação, produzindo uma associação que possui um elem ento comum - cidade -, uma designação plural - cidades - que não toma as noções na sua exclusiva dimensão de ideal ou de utopia: cidades ideais e cidades utópicas. As cidades ideais distinguem -se das cidades utópicas? Françoise Choay (5), em sua interpretação de Alberti e M orus, afirma que há diferenças. Concorda-se com a distinção provisoriam ente com o recurso heurístico se se con­ sidera utopia no seu sentido transcendente, definindo-a como um lugar no futuro. Mas, se considera-se utopia no sentido da construção racional de um "não lugar", as cidades utópicas e as cidades ideais descrevem formas de construção e resultados arquitêtonicos do am biente urbano decorrentes de usos dos elementos sistematicamente organizados num espaço ainda não visível e todos eles encontráveis nas cidades reais. Ambas as adjetivações das cidades confluem para o estabelecimento de um espaço de crítica que é elaborado a partir da experiência real, por isso, a radical ironia ou o radical desprezo por determ inadas práticas das cidades reais surgirem com uma força arrasadora. Tanto as cidades ideais como as cidades utópicas sao "projetos" <6), transbordam os lim ites do real e, por isso, passíveis de serem descritas de forma ficcional, mas não se contrapondo em termos lógicos a nhum dos aspectos reais da cidade, apenas colocando-os em maior evidência e modificando os seus usos, adaptando-os à crítica da situação real. A ^or<’a das 'm agens ideais e utópicas está em elas poderem ser figuitas e representadas espacialm ente porque os seus elementos são

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' ° ^ue facilita a com unicabilidade de suas imagens, tomando-as c Z

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m antend° a sua qualificação de projetos. Um exemplo de

de Garèanh 6 A ‘f 0™’’ 30 da Abad'a de Telêm a"encontrada nos capítulos finais comanda T

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° " de deP ° is da « tó r ia dos "gargantualistas", o seu

prêmio. QuandcMdxega^ v o ^ d c " ^ ^ daqUe'eS qUe ‘U,aram 3 ^ 'ad° T de uma das grandes abadias da Euro “ a ' ° COmandan,e a direça° uropa. A resposta do monge inicia a descnçao 506

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espacial da nova abadia e introduz os elementos de oposição às situações reais, pois, na resposta o monge descarta a possibilidade aventada por Gargantua, dizendo-se incapaz de dirigir a ele mesmo e ressalta os aspectos negativos das grandes abadias. Surpreendente, no entanto, é que ao terminar a resposta, a pro­ posta de "Frei Jean" é a construção de uma abadia - Telêma. Assim, a nova abadia, construída do nada, identifica o ideal como o novo e nega a possibilidade de surgir da reforma de qualquer outra abadia, con­ figurando a idéia de um "outro lugar" ou de um "não lugar". É uma abadia mista, onde habitam homens e mulheres, tem a forma de um héxagono com tor­ res em cada ângulo, torres curvas, como indicava Vitrúvio, para que a visão seja total da região em torno. Sua porta principal localiza-se na frente de um rio e ela contem tudo que se imagina para a vida do homem e da mulher, desde oficinas até lojas, sem que em nenhum momento se estabeleça qualquer relação de obri­ gatoriedade de trabalho nesses lugares, já que o lema da abadia é fazer o que se quiser fazer. Dessa forma, a arquitetura de Telêma, reune conforto, harmonia e prazer e projeta-se como obra de arte, obra do gênio humano por excelência. O último capítulo de Gargantua descreve uma situação particular­ mente interessante, pois, radicaliza a surpresa do novo e ironiza a capacidade racional de interpretação do homem, fechando o livro e afirmando os princípios que norteiam a abadia, como também demonstrando que, tanto no caso das cidades ideais como no das cidades utópicas a demarcação dos limites do lugar e sua ordenação lógica são requisitos essencias para a liberdade e a autonomia daqueles que a habitam: uma boa definição do lugar toma possível um conheci­ mento exaustivo da natureza e dá ao homem capacidade de aumentar a sua condição de humanidade. Mas voltemos ao final. Na base da abadia havia uma inscrição que aparentemente descrevia uma maldição e Gargantua, respondendo a pergunta de Frei Jean sobre o seu entendimento do que estava na inscrição, atestava ainda a existência de perseguições de todo o tipo que deveriam acabar, basicamente, colocando em sua boca uma crítica a nova abadia, no sentido de que mesmo com tudo novo, há sempre no final a marca do desastre. A resposta de "Frei Jean e digna de ser citada na integra:

.

Por São Goderan - exclama o monge - não tenho a mesma opinião: o estilo e de Merlin, o profeta. O senhor pode descobrir nisso as alegorias e interpretações que bem entender. Sonhe o senhor ou quem quiser, à vontade. Quanto a mim, nao vejo "

-

aí senão uma descrição velada do jogo de péla . W

Outro aspecto que remete para a relação entre ideal e real é que aos poucos os usos verbais vão se modificando, iniciam-se no tempo futuro e, con-

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Ambito del Laurana. Cittä ideale, U rbino , G alleria Nazionale delle Marche In Leon Battista Alberti, a cura di Jo s e fh Rykwert e Anne Engel, Milano, Electa, M ilano Elem ond Editori A sso c ia ti, 1994, p.375.

forme a narrativa avança tomam o tem po passado como base, aproximando a descrição de um situação real. Assim com o lelêm a, também a Cidade do Sol de Campanella, a Ilha da Nova Atlântida de Bacon e outras descrições dos novos descobrimentos como as que são feitas por André Thevet em Singularidades da França Antártica podem ser figuradas e representadas espacialm ente, alias só adquirem sentido q o o texto narrativa possibilita a passagem da realidade invisível para a ção real e concreta de uma sociedade em funcionamento, demonstrando ção no m undo real, especialm ente pelo detalhamento e o cuidado de ** j do maior número possível de elem entos componentes das ddades

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f •eta am ento' vezes/provoca equívocos quando se trata de deliraS C° m ° m u" d° rea' As fronteiras físicas são delimitadas por ele

complicad‘ r ra,S e Sâ° m ais fáCeÍS de Vlsual'z« , as fronteiras p o lc a s são um o não lugar. ’ P° ' S' 3 fUnÇ80 de conectar o lugar real com o nenhum lugar ou nentes do mundo re l' C° mpllcador e ° esquecim ento de determinados compodos enquanto a u s ê n c i a s ^ 0 ° Sp' la‘S e cem itén os, passíveis de serem explicajeção da vida ideal que ~ 3 ^°notaçao de exem plaridade dos modelos e da proa ela relacionado tenha 3 mite, em Prm cípio, que a morte ou qualquer fato q presentação na cidade..

Morus. Todo o Livro n ond C^a<^eS utc)P*cas é sem dúvida a Ilha da Utopia de tuadamente espacial e oc & ^ descrcve ° lugar físico e social da Utopia, é acenS pnncíPios morais e éticos decorrem em seu aspecto de 508 GÁVEA. 14 (14), setembro 19%


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força do modo de inserção no espaço. No caso de Alberti, há dificuldades de encontrar autores que compartilhem a idéia de que sua produção, de uma ampli­ tude temática imensa, vá além do que especificamente observações pontuais sobre pintura e arquitetura e que nesse conjunto de reflexões a construção das cidades ideais apareça fragmentada. A hipótese é que distinto de Morus, onde a cidade utópica toma forma na Ilha da Utopia, Alberti, pelo seu alto grau de intervenção no cotidiano, apresenta a construção da cidade ideal de forma assistemática. Entretanto, basta ler com atenção as suas reflexões para se sentir tomado por uma sensação estranha de que a cada passo da leitura, não só o mundo renascentista com todas as suas nuanças ganha forma, mas as situações adquirem a qualidade da construtibilidade e da espacialidade. Para manter essa leitura interpreta ti va de Alberti é preciso ultrapassar as visões que se constru­ iram de Alberti, principalmente, a de Giorgio Vassari que o reduz a mera orga­ nizador de métodos dos outros. Muitos procuram a sua cidade ideal em desenhos ou projetos, outros em cidades reais que mereceram de Alberti algum tipo de intervenção. Poucos, entretanto, procuram a sua cidade ideal costurando por dentro os seus textos. As interpretações produzidas sobre Alberti consideram sua obra nas suas dimensões pontuais, dando-lhe a qualificação múltipla de filósofo, arquiteto, pintor, crítico, escultor e etc a partir de uma perspectiva de especiali­ zação, deixando de lado o que era a atmosfera intelectual do renascimento, e perAnônim o, Cittá ideale, Berlin, Staatliche Museen. In Leon Battista Alberti, a cura di Josefh Rykwert e Anne Engel, Milano, Electa, Milano Elemond Editori Associati, 1994, p .375.

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dendo tempo, pois com esse procedimento elim inam a condição de estabelecer associações entre suas contribuições, logo com Alberti que procurou manter um princípio de vida comum. São essas conexões entre seus textos que nos habilitam a perceber/imaginar as suas cidades ideais. No caso de Alberti é fundamental que se trabalhe com o plural - cidades ideais - pois seu discernimento do mundo e sua perspicácia quanto às relações entre hom em e espaço obriga-nos a pensar na multiplicidade de arranjos distintos com relação à cidade. Se a leitura de "De re aedificatoria" procurar algo mais do que leis para a construção, identificar-seão propostas e princípios das cidades ideais e críticas às cidades reais. A cidade ideal de Alberti está num pequeno comentário que estabe­ lece, por exemplo, a aproximação entre a casa e a cidade; a cidade ideal é igual a casa ideal o que determina a localização dos critérios de harmonia, beleza, confor­ to e equilíbrio como pre-requisitos para as cidades ideais. A arquitetura e a pintura são tomadas pelo humanista como chaves para demonstrar a potência do homem em ultrapassar a natureza sem deixar de imitá-la na sua configuração matemática, elaborando, a partir daí, a teoria das proporções. Quando Alberti descreve algum processo de construção, mesmo que ele seja técnico ou mecânico, relata os modos como os homens os usam para dar maior produtividade aos materiais, chamando atenção para a relação entre teoria e prática ou idéia e realização. Por isso, não há condições de designar Alberti pintor, escultor ou arquiteto, ele é um homem do renascimento, atua de forma plural. Essa forma de ação intetectual que envolve pensamento e realização é comum nas cidades de Florença e Roma, onde a vivência do cotidiano não separa o conhecimento do viver e a produção do conhecimento da existência de cidadão. Assim, talvez as cidades ideais de Alberti possam estar em Brunelleschi ou em Donatello ou, talvez, em Masacio, Bosch, Dürer ou Piero de la Francesca. Da mesma forma, para entender M orus é preciso ultrapassar os lugares comuns de interpretações absolutas e procurar os motivos e os princípios das cidades utópicas em Erasmo, Damião de Goés, no movimento Devotio oderna, nos relatos dos descobrimentos portugueses e espanhóis e nos debates ctuais, políticos e diplomáticos da Holanda, não para reduzir suas reflexões a meras descrições daquilo que ouvia, mas para mostrar a força da inventiva individual e o espirito aberto de Morus. _ j

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m asPec*° que me parece com um a Alberti e Morus é a preocunascentista da comunicação, da divulgação dos feitos, embora reconheça

™ ÇaS en! T 05 SéCUl°.S XV e XVItal devam ser consideradas como mente a â n ^ H ^ 1Stmções entre Alberti e Morus. Mas, refiro-me pontualansta da erud.ção e a vontade de produção que leva-os em busca de um 510

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horizonte infinito e que os torna portadores do sentido de abertura do mundo. Neste aspecto de troca de informações deve ter representado impor­ tante contribuição para Morus, a ação de Juan de Ovando, presidente do Conselho das índias, que bombardeou os funcionários das índias com inquéritos que continham grande quantidade de informações pormenorizadas sobre a geografia, o clima, os produtos e os habitantes das possessões americanas da Espanha" (4), em 1570. Essa iniciativa "mostra quão decisiva podia ser a actuação de um só indivíduo numa posição-chave, mas reflecte também uma aspiração mais geral da época para ordenar e classificar" (10). Essa atitude de Juan de Ovando possibilitou o conhecimento de hábitos e costumes do Novo Mundo através das respostas fornecidas pelos fun­ cionários espanhóis, estabelecendo os resultados como lugar intermediário entre a realidade observada e a produção das imagens. Transparecem nessas iniciati­ vas algo mais do que conhecer para explorar, há a presença do humanismo renascentista e a vontade de conhecer o outro mundo. Esse conhecimento do Novo Mundo acarreta o desenvolvimento da crítica social e desempenha papel importante na produção das cidades ideias e utópicas. Entretanto, a força dessas respostas críticas é maior porque o Novo Mundo foi dado a conhecer e gerou um processo de rediscussão do significado da civilização e da idéia de Europa. Os relatos das índias indicam, por vezes, assombro e, por outras, superioridade e desprezo, mas qualquer que seja a atitude o resultado anuncia contrastes. É essa condição do texto-relato que o faz surgir como intermediário, como um lugar nenhum, e que é diferente em Montaigne e em Córtes. A circu­ lação das informações e as comparações que elas permitem levam tanto a pro­ dução do conceito de "guerra justa" como ao conceito de bom selvagem , sem que Montaigne ou as autoridades papais tenham estado no Novo Mundo. Mas além desses conceitos de ordem moral ou econômica, também surgem apreci­ ações que associam modos e costumes ao lugar natural. Algumas relacionandoas através do mito de uma volta da fabulosa Idade de Ouro , outras ao projeto de uma troca capaz de fazer a Europa superar suas crises. Essa segunda forma de relacionar a apreciação é que culmina na pro­ dução das cidades ideais e das cidades utópicas, possibilitando agora uma dife­ renciação entre elas. As cidades ideais vinculam-se a um projeto de reformas das cidades reais. Seu espaço construtivo não é equidistante da cidade real. A cidade ideal convive com a cidade real e funciona como alarme em situações de crise. Essa noção decorre do primeiro humanismo renascentista, anterior ao realismo de Maquiavel, no qual Alberti tem uma presença significativa e que diante das cnses opta pela capacidade vigorosa do homem renascentista superar os seus limites. GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Dessa forma, as cidades ideais são imaginadas a partir da dinâmica interna das cidades reais, não necessitando de um elemento externo para adquirirem sentido e ganharem forma. Por isso, sua representação imagéhca tende a associá-las à cultura aristocrática, ao refinam ento nobre e a arte no senti­ do de sua força estética. Entretanto, são essas cidades ideais que se afirmam como modelos para a construção das cidade coloniais na América Ibérica. Os critérios de ordem das cidades ideais tem uma dinâmica assegurada pela geometrização de sua im agem , que é, ao m esm o tempo, o limite de sua característica ideal e também sua fronteira. As cidades utópicas, ao contrário, constituem-se a partir de um espelho externo para depois voltarem-se para dentro das cidades reais, precisam de um espaço constituído com o /,alhures,'ou "lu g ar nenhum para existirem. Por isso, são mais difíceis de serem construídas no imaginário e possuem um orde­ namento fisico muito mais detalhado. Com o já são produções da segunda fase do humanismo, posterior à Maquiavel, as cidades utópicas expressam valores éticos e morais, associando-os ao lugar geográfico, quase todas tendo como ele­ mento comum estarem separadas do mundo real pelo braço de mar ou por um rio, adquirindo a feição de uma "ilh a" isolada. O detalhamento dos costumes, hábitos e instituições é a forma de projetar radicalmente suas críticas ao mundo real, diferenciando-se das cidades ideais nas quais a estética da cidade gera um prazer capaz de alterar hábitos e produzir novas relações de sociabilidade. Nas cidades utópicas há que se traba­ lhar, a ideia de produção mantem-se presente com o ponto de equilíbrio entre os habitantes, já que a propriedade privada foi abolida. Nas cidades utópicas há um aparente cancelamento do "eu" e os ideais de liberdade e autonomia são regulados pelos preceitos morais contidos em cada um daqueles que habitam as cidades utópicas. Nas cidades ideais man­ tém-se o eu renovado e a noção de sujeito adquire o sentido de criador e plane­ jador. Entretanto, uma leitura atenta das cidades utópicas mostra que o cancela­ mento do eu é um processo de intervenção ativa do sujeito, que ao ser capaz de perceber o desastre, com o fim do cam inho de grandeza do homem renascen­ tista, propõe uma cura diferente daquela que está presente nas cidades ideais . sa cura projetada como cancelamento e/ou intervenção aproxima Morus e aquiavel. Também, para o florentino trata-se de superar o desastre que se p ma e também a cura verifica-se pela produção de uma imagem de inter­ venção que no caso de M aquiavel é a de um "p rín cip e", que metaforicamente é a imagem do homem em sua tentativa desesperada de superar o desastre. No caso de Morus é a Ilha da Utopia que se afirm a como metáfora da nova 512

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cidade/nova humanidade. Essas correspondências configuram a condição "tentativa" de ultra­ passar as interpretações aprisionantes de Alberti e Morus e organizam uma pos­ sibilidade de estabelecimento de um campo de complementariedades entre eles, reduzindo as diferenças sem eliminá-las e ampliando as semelhanças e podem ser resumidas da seguinte forma: a. a produção de Alberti e Morus têm um profundo sentido humanista que privilegia o homem como sujeito-construtor do mundo e promovedor das mudanças com o objetivo de transformar o mundo na melhor morada do homem, próxima a idéia da felicidade eterna e do Jardim do Paraíso; b. embora humanistas, ambos possuem um sentido crítico muito apu­ rado com relação as atitudes e pro­ In Thom as Morus, postas humanistas, transformando A Utopia, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s/d. suas propostas em projetos radicais de manutenção da dignidade, liberdade e V t O P I A B i n s v c, ab t a b v l a autonomia dos homens; isto levou Quentin Skinner a observar em Morus uma "crítica humanista ao humanis­ mo" c. a força de suas considerações provém da capacidade do olhar de ambos para observar o mundo em sua dimensão universal, tendo como pro­ cedimento metodológico a busca não de resultados finais mas da compreen­ são de cada um dos momentos da pesquisa; o resultado é que seus olhares veêm mais longe e relacionam o particular e o geral; constroem, nesse sentido, um lugar teórico diferente, a partir do qual não só percebem os seus modos de conhecer mas descobrem os modos de conhecer dos outros, ga­ nhando a condição de estarem além dos limites do conhecimento formal do mundo; esse lugar, culturalmente cons­ truído, resulta de um movimento com­ plexo de conhecimento; é um lugar GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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O s Sonhos Renascentistas: Cidades Ideais e Cidades Utóp«

ocupado por experiências que se sucedem no tempo e que não se reduzem uni­ camente às práticas cotidianas de ambos, mas incorporam as vivências e os debates intelectuais; d. ambos preocupam -se com o lugar-espaço onde essas transfor­ mações adquirem forma e tomam sentido e com o um espelho constróem o seu contrário ou o seu inverso, às vezes de form a m ais radical e irônica como em Morus, às vezes, utilizando a pedagogia do convencimento do Quatrocentto, como Alberti; e. os resultados espaciais de am bos se universalizam; qualquer um que hoje os leia achará relações com a realidade contemporânea; Primeira Carta Portuguesa da Baía do Rio de Janeiro . Mapa do Cartógrafo Real Luis Teixeira, datado de 1573-1578. S e rviço de Documentação Geral da M arinha dop Brasil.

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fpor último, ambos inserem-se na produção matemática do espaço urbano que utiliza as formas esféricas em oposição ao quadrado da antiguidade; a cidade não apenas define-se espacialmente como geograficamente. Essas correspondências confluem para uma observação referente a constância da imagem da "ilha" no pensamento renascentista que aproxima nossas considerações em torno da associação das formas esféricas aos modos de representação de algumas cidades ideais e utópicas. Penso, por exemplo, na Ilha de Vera Cruz, que adquire tamanha importância que na carta de Caminha rela­ tando a descoberta ao rei de Portugal - depois de descrever as terras imensas, ter­ mina-a localizando-se na Ilha de Vera Cruz - , na legendária "Hespaniola" de Colombo, na Ilha de Atlântida - da fascinante utopia tecnológica de Bacon, da Ilha da Utopia de Morus - que se define como ilha por uma intervenção técnica de seus habitantes que a afastam do continente - e, por último, a Ilha onde Shakespeare ambienta o seu belo texto "A Tempestade". O que nos leva, como hipótese, à idéia de que a cultura geográfica não possui, tanto quanto outros saberes no renascimento, autonomia, basta observar as denominações que a naútica dá aos pontos de segurança da circu­ lação, associando a dimensão integral do homem: Cabo das Tormentas e Cabo da Boa Esperança. Resta-nos, agora, explorar, para o futuro, um lugar onde as cidades utópicas e as cidades ideais concorrem entre si: o Novo Mundo. N o tas ( 1 ) DUBOIS, Claude-Gilbert. O Imaginário da Renascença. Brasília, Eunb, 1995. ( 2 ) A Cultura do Renascimento na Itália. SP, Cia das Letras, 1988. ( 3 ) A tipologia proposta por Vasari, associa o moderno ao antigo e diferencia os dois do velho que para ele está associado ao gótico. ( 4 ) As diferenças entre os dois autores citados podem ser observadas na compara ção entre Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, publicada pela edi­ tora José Olympio e A cidade das Letras de Angel Rama, publicada pela edi­ tora Brasiliense. ( 5 ) A Regra e o Modelo. SP, Perspectiva, 1986. _ ( 6 ) Para a definição do conceito de cidade ideal em sua relaçao com a cidade real é importante a leitura do capítulo segundo de ARGAN, Giulio Cario. Historia da Arte como História da Cidade. SP, Martins Fontes, 1991. ( 7 ) Gargantua. SP, Hucitec, 1982(caps. LII a LVIII). í 9 ] i S T r e f e r L i a encontra-se no livro de ELLIOT, J.H. 1492-1650. Lisboa, Editorial Querco, 1987, p.52. ü n

Velho Mundo o o Novo.

S w In NER, Quentin. Los Fundamentos dei Pensamiento Político Moderno. I. El Renadmiento. México, FCE, 1985, 3a. parte, cap. IX.

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Entrevista Entrevista realizada na residência de Franz W eissmann, em 13 de abril de 1996, por Paulo Sergio Duarte, Paulo Venâncio Filho e Vanda Klabin. Escultura Arte Construtiva Figura Geométrica

FRANZ W EISSM A N N

Gávea Para começar eu queria perguntar uma coisa muito genérica, mas acho que tem uma pertinência: num país, numa cultura que preza tanto o impro­ viso, a desorganização, o inacabado, o provisório, por que essa persistência de uma arte construtiva que quer organizar, que quer ser racional, que quer ser con­ tra o provisório? FW Exatamente. Me parece que para se opor a essa desorganização, a essa confusão toda, o artista está instintivamente idealizando uma condição mais organizada e mais limpa e então trabalha, talvez inconscientemente, nesse senti­ do de reorganizar as coisas no curso do mundo, eu suponho... Gávea

A experiência da arte seria um modo exemplar também de organizar...

FW

O campo político e social também, o econômico; pôr o mundo em ordem.

Gávea

Como é que você inicia uma escultura?

FW Eu começo com pequenos trabalhos manuais com papel, com chapa fina, para visualizar aquilo que a gente está imaginando, porque o desenho não satisfaz nesse lado. A idéia da forma ela vai se precisando através de um dese­ nho ou através de alguns elementos, da dobradura de papel... fazendo pequeni­ ninho, depois vai aumentando... Vai aumentando até achar... que a gente nunca chega a um ponto final. A gente vai caminhando, caminhando... Gávea Você é o único escultor brasileiro de grandes dimensões, me parece. Quando você começou a ser escultor, você já pensava que a escultura era uma coisa em grande dimensão e que a escultura moderna, concreta, tinha que estar num espaço público? Atelier de Franz Weissmann, 1994 Foto Gilson Ribeiro GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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* Entrevistj

I

Grande Flor Tropical, 1989 Aço Corten, 7,0 x 6,50 x 6,50m Memorial da A m érica Latina, Praça C ívica , B arra Funda, Sào Paulo Foto Rôm ulo Fialdini

FW Sempre defendi que a arte deve ser posta para o povo participar. É a melhor maneira de você educar o povo. É através da arte. A escultura deve ser posta nas praças, na rua. Aí o povo passa; passa um dia, passa outro dia. No primeiro, acha que aquilo é uma porcaria, mas depois vai aprendendo, vai assimilando. Tenho uma experiência muito interessante com uma escultura na Vieira Souto d). Eles agora tiraram. O vendedor de pipocas disse: "É, no inído não gostei, mas agora já estou gostando!". Essa é uma maneira de educar o povo, e assimilar o que é obra de arte. Acho m uito importante por escultura na rua, nas praças. Gavea FW Gávea

Você vê suas peças im ediatam ente em grandes dimensões? Eu sempre im aginei elas já em dim ensões maiores. Como é que você decidiu introduzir a cor na sua escultura?

fundo eu queria ser 518

co*or*r os meus trabalhos, talvez, porque no Pintor, mas o destino me levou para outro caminho.

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FRANZ WEISSMANN

Depende do tipo de escultura: a minha aceita perfeitamente a integração de cor. É uma unidade formal e jogo então com planos que atuam. Numa escultura ao ar livre, jogo muito com a incidência de luz, de sombra e de valor. Então, ela muda. Dependendo do lado, muda de cor, de aspecto. Acho que não é uma sim­ ples aplicação de tintas. Procuro integrar a cor dentro do espírito da própria escultura. Há esculturas que suportam cor e outras que não suportam cor, porque o próprio material já tem a sua. No fundo, tudo é cor, o material tem cor. Tudo é cor! Depende de um interpretação. Gávea A cor foi introduzida nos anos 70, no seu trabalho Cada uma de suas esculturas, até então, tinham uma única cor. Há três, quatro anos atrás, você fez uma experiência, pela primeira vez, com esculturas que não são monocromáticas. Esses trabalhos foram chamados de uma homenagem a Mondrian. FW Foi Maria Eugênia (Maria Eugênia Franco, crítica de arte, esposa de Franz Weissmann) que as chamou de mondrianescas. Gávea

Como você vê, hoje, essa experiência?

FW Essa foi uma experiência dentro do conceito construtivo. Construí uma escultura - chamada escultura linear -, então eu senti que tinha muito espaço vazio, espaço perdido. Percebi a necessidade de preencher esses espaços para fazer o jogo, ocupar o espaço vazio e então surgiu também uma questão assim: "Isto só não resolve. Então eu tenho que jogar com cor. Vou jogar com cores". Nasceu daí essa necessidade de colorir que não era a minha idéia inicial. Eu nunca pensei no Mondrian. Tive necessidade de encher o espaço de cor, então surgiu... Não fui eu, foram os outros que chamaram de homenagem a Mondrian porque eles acharam que tinha uma certa afinidade com as pinturas do Mondrian. Esse nome não nasceu de mim porque não era a minha intenção. Eu tenho no galpão estruturas lineares, vocês podem ver, sem preenchimento de espaços. Então eu... Gávea É sobre o mesmo assunto que eu queria perguntar o seguinte: eu acho que essas cores não são bem Mondrian. Para mim são Van Gogh porque me parece que são umas cores que têm um fundo de expressividade. Vocêum cons­ trutivo tão sereno já fez umas esculturas amassadas tempos atrás. Então sua cor tem alguma coisa de expressivo. Nesse sentido que é uma cor mais Van Gogh que uma cor Mondrian.Você concorda? FW Não. Não sei. Porque eu costumo usar cores primárias, agora se entra o espírito do Van Gogh não sei, porque o Van Gogh foi o meu primeiro iruciador. Quando eu descobri a pintura de Van Gogh fiquei ass.m num estado de GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Entrevista

febre. Disse: "Que maravilha! Que pintura fantástica!" e, não sei, sabe? Conscientemente eu não estava pensando nisso nao.. Gávea Mas eu acho que a pergunta anterior toca num sentido. Já repeti muito isso: os impressionistas pintavam o espaço vazio existente entre o olho do objeto, ou seja, o objeto da pintura do impressionista era o vazio e não a coisa mesma, ou seja, ele pinta o que está entre o objeto e o olho dele e esse vazio é o objeto da pintura do impressionista. O Van Gogh quer anular essa distância entre objeto e a coisa mesma e a cor passa a ter uma plenitude como se a retina tocasse a própria cor. Toca o céu, toca o mar, toca o verde, toca o trigo, encosta no trigo. Então a pergunta anterior procede, porque a cor na sua escultura tem essa vocação a existir como cor em si. Você já disse uma vez que é como se a escultura fosse de cor, não que ela fosse pintada. FW Exatamente. Eu procuro essa integração da cor na própria escultura. Suponhamos, essa coluna (mostra uma das suas esculturas na sala), eu a vejo preta, compreende? (Mostra outra escultura) Não é uma escultura pintada de vermelho. É uma escultura vermelha. Aquela coluna também... eu a vejo ver­ melha, essa aqui já vejo dessa cor, amarelo-limão. Nessa ali, não vejo outra cor além da que está aqui no espírito dessa escultura, porque se vê que o amarelo se expande, é uma cor alegre, comunicativa e o verm elho é uma cor mais concen­ trada, mais agressiva. O vermelho agride e o preto... acho o preto uma cor muito presente. Tem muita presença, mas é uma cor mais tranqüila. O vermelho grita. O amarelo para mim canta. E uma cor que canta e há uma unificação desse plano de jogo que acho importante nesse caso. Eu faço também esculturas sem pintura nenhuma, da cor de ferrugem, que acho muito bonito. A cor do aço acho muito bonita. Mas isso são conceitos... Gávea Quando você faz essas esculturas em grandes dimensões em espaços públicos, como se dá a questão de estar no espaço urbano, de estar den­ tro da cidade? Qual a relação que se impõe? O espaço, a escultura, a cor como... FW Tudo é importante. Você vê, por exem plo, a escultura do Memorial (2), exige cor e presença. Ela cria um ambiente... Se essa escultura fosse na cor de ferrugem do aço, me parece que não ia funcionar. Tinha que preencher esse espaço. Ela funciona em relação à arquitetura... A do Banco Itaú,@) por exemplo, eu jogo com cor de ferrugem, mas ela se casa perfeitam ente com essa parede de concreto armado. Se casa muito bem e aqui tem uma bandeira azul. É uma pista por onde entram os carros, porque é uma escultura portal. O Setúbal me pediu para estudar exatamente uma escultura portal. Ele queria uma escultura monu­ mental nesse edifício novo que construíram para concentrar toda a direção do Tfaii '

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Portal, 1992 Aço corten natural e concreto armado pintado, 15,00 x 10,00 x 10,00m Edifício Itaú, Banco Itaú, Praça do Metrô Conceição/Jabaquara - São Paulo

Gávea Quando você vai colocar uma peça num determinado lugar, numa praça, existe também o projeto do arquiteto, você sente que a cor é uma... FW Eu estudo o ambiente. Então digo para o arquiteto: "Espera aí. Você quer uma escultura, então eu quero estudar o lugar onde ela vai ser colocada para estar de acordo, para ela se integrar no ambiente onde ela vai ser colocada, senão não funciona". O problema de cor também entra nesse caso. A dimensão, tudo isso. Eu estudo muito as dimensões porque senão não funciona. Você vê, por exemplo, no Memorial, o Niemeyer me chamou: "Ah eu quero uma escul­ tura sua." Eu perguntei: "Mas Niemeyer, para onde é? Para o interior ou exteri­ or?" "É para o lado externo". Então ele me mostrou a maquete e eu disse: "Então eu quero ir a São Paulo para ver o ambiente onde ela vai ser colocada". Vi aque-

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uois Cubos Lineares Virtuais, 1954 Ferro Pintado (preto e branco), 55 x 77 x 55 mm. baso 85 x 85 mm Fase Grupo Frente Foto Paulla Pape

la área árida, ele não plantou grama, não plantou nada porque disso que send< uma área pública o pessoal ia estragar tudo. Eu fui aumentando, aumentando E ele: "Ah mas está muito grande". Respondi: "Eu estou estudando em relação í sua arquitetura". Ela podia ser um pouco maior, m as aí foi um problema d< material que eu não consegui. Ela está bem lá. Podia ser um pouco maior mas ai é o problema de limite de aço. Gávea E o Calder e a cor do Calder. Você teve alguma inspiração? São experiências diferentes mas...

FW

Para mim é importantíssimo. Ele está no outro caminho, mas para mim e um os espaço publico.grandes escultores. Ele é um grande escultor moderno publico, do Gávea FW

É verdade que o Fontana foi muito importante para você? Fontana foi importante para mim e uma descoberta, porqu

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Entrevista

FRANZ WEISSMANN

Fontana conseguiu romper a bidimensionalidade da pintura. Ele furou o plano para criar uma bidimensionalidade. Para mim foi muito importante. Gávea Essa é uma experiência parecida àquela sua de buscar o vazio , o vazado. Fontana abriu o espaço? FW E possível. Inconsciente. Conscientemente não, mas é possível que haja uma influência do Fontana nessa atitude de furar a parede para ver o outro lado. Gávea Sua escultura é muito de acabar com o que tem dentro... Porque o que tem dentro a gente imagina que é o desconhecido, que é o misterioso. Você quer ir lá e abrir tudo. FW

Descobrir o mistério.

Gávea Que outros artistas além do Fontana foram importantes para a sua formação? Brancusi... FW O Pevsner foi muito importante, ...construtivista. O Brancusi, claro. O Brancusi é o máximo, mas a gente sempre nasce de alguém. A gente nasce de alguém, de uma mãe, de um pai. Fica mamando no seio da mãe e depois larga a mãe para encontrar o seu caminho. Hoje nesse labirinto de experiências, desde o início de século, tudo é possível, do impossível... Agora com a nova tendência da informática... a doença do computador, a escultura virtual é a que aparece numa tela, não é? Gávea:

Nós vamos ver um Weissmann virtual?

FW Eu vou mostrar um virtual para você ver que entra na virtualidade (...) É mais ou menos a idéia da desmaterialização da escultura. Eu desmateria­ lizo a escultura, então ela não tem mais a matéria física praticamente. Eu mais ou menos tento esse rumo. O que eu chamo de cubo virtual. Gávea

Uma sugestão do espaço...

FW

É. Que tem que completar.

Gávea Mas isso não remete já a certas coisas do seu começo, quando você retira uma esfera ... FW

Eu trabalhei muito em fio de aço e fui simplificando e simplifican-

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Entr

do... "Ih! Mas tá ficando é bom! Não tem mais nada' boi assim, numa esptvie de um estado de angústia; fui fazendo, fui sim plificando e então ficou num fu* so. Gávea

Isso foi nos anos 50 ainda, não é?

FW

É.

Gávea

Aquilo me lembra, também é outro cam inho, mas

alguma i oisa de

Giacometti. FW Exatamente. Eu tive uma certa influem ia t oim vei a ta/er também esculturas em fio, em barro, gesso, bronze. Isso deve ter sido para mim uma n-rt.i influência do Giacometti. Gosto muito do trabalho dele Porque a i oisa tu . 1 urna escultura virtual, porque ela não existe mais. Gávea Eu gostaria de perguntar também, Franz, se vtxé sente alguma afinidade com a escultura minimal, com esse problem a da senahdade e das t,<r mas simplificadas... FW Minha escultura é também uma escultura essencialmente mínima Eu chamo de escultura essencial. Uso os elem entos essencialm ente Fu tiro tixlo o supérfluo fora e procuro sempre o mínimo possível. Gávea exemplo?

Você gosta de alguns desses artistas am em anos, o lo m Smith, por

FW

Gosto muito, gosto muito.

Gávea E as placas amarrotadas e am assadas, que você fez na Espanha' Esses trabalhos trazem uma questão da luz dentro deles, não é? O Mano Pedrosa, em um artigo em 65 que fala de uma claridade virginal, t r a n s lú c id a . Gostaria que você falasse um pouco sobre eles. FW Eu senti uma certa ansiedade de rom per com tudo, com toda a parte construtiva e organizada. Com ecei a amassar o mundo, não é? I u qucna sim­ plesmente algo amarrotado e jogava então com planos, com lu uma espécie de uma febre que passou...Tem uma coisa que o foão Cabral escreveu sobre a minha exposição dos amassados em M adrid. Você®iá leram ” I muito bonito. Gávea

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Você falou de uma série de filiações GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

expressionistas. Da importàn-


FRANZ WEISSMANN

Coluna em Cantoneiras Diagonais, 1985 Aço Corten, 2,50 x 0,50 x 0,50m Parque Ibirapuera, Sáo Paulo Foto Rômulo Fialdini

cia de Van Gogh, depois você falou do Giacometti... E essa adesão à forma geométrica? Porque é muito rigorosa essa visão na sua obra, salvo o intervalo que a gente não pode chamar de interregno - dos amassados em Barcelona, nos anos 60, que é um período muito curto, você trabalha com uma geometria muito rigorosa, essas formas puras estão impregnadas em toda a sua obra. Esse diálo­

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Cubo Desarticulado, 1987 Múltiplo/Série "Pequenos Form atos" Alumínio Pintado, 0,20 x 0,30 x 0,20m , em posições variáveis Foto Rômulo Fialdini

go, essa expressividade em forma geométrica, com o é que você vê isso? Porque é uma coisa complicada. FW É bastante complicado. Não é fácil definir. É sempre uma expressão da personalidade e talvez uma expressão, vam os dizer, controlada. Calculada, controlada. Gávea

A geometria para você é como uma disciplina.

FW Uma disciplina. Toda arte no fundo é construtiva. O pintor constrói. Ele destrói mas ao mesmo tempo constrói. Eu acho que toda arte é construtiv a porque ele cria. O artista que é o inventor e o criador, então ele constrói no sen­ tido mais genérico. Gávea FW

Você ficou quanto tempo na Escola de Belas Artes? Tres anos, mas fui reprovado em todas as matérias!

Gavea

Sua primeira viagem de volta à Europa foi quando?

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GÁVEA. 14 (14), setembro 1996


evista

FRANZ WEISSMANN

FW Em 1959. Porque o meu sonho era conhecer o Extremo-Oriente - A índia, o Japão e toda aquela área. Eu sempre fui um grande leitor da litera­ tura asiática, principalmente da índia e da China. Então eu queria conhecer o país de corpo e alma. Eu também que­ ria conhecer o Japão, porque o japonês de lá não é o japonês daqui! (Um país supercivilizado. Puxa! Uma ordem, uma limpeza! Nunca vi...). Depois de um ano na Europa peguei um navio japonês e fui direto para o Japão. Depois do Japão fui para a índia, viajei toda a índia e toda essa parte - o Camboja, a Tailândia... viajei tudo aquilo sozinho. Gávea Você primeiro, depois o Amilcar, foram alunos do Guignard, não é? FW Não. Não. Eu fui colega do Guignard. Fui professor... porque o Guignard me pediu para participar da Escola como professor. Fui professor de gravura e o Amilcar era aluno. Ele começou com Guignard na pintura, depois ficou insatisfeito com o traba­ lho, então foi para o meu rumo, para tentar escultura. Ele começou comigo. Ele é um pouco mais moço que eu. Ele deve estar com setenta e poucos. Eu estou com oitenta e poucos. Gávea O Guignard era uma pes­ soa de diálogo, de conversa sobre escultura?

Torre Neoconcreta, 1958 Ferro Pintado (Preto), 1,40 x 0,55 x 0,55m Museu Nacional de Belas Artes Foto Henrique Sodré

FW Sobre escultura não. Ele participou das minhas aulas, assistiu às minhas aulas. Eu introduzi inclusive o chamado modelo vivo que era inédito. Ele participava das minhas aulas. Tenho fotografias com ele lá na minha aula. Agora, ele era pintor... GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Entrevi^

Gávea

Você queria ser pintor, não é?

PW

Eu queria ser pintor.

Gávea

E essa passagem para a escultura. Primeiro você fez esculturas fi-

gurativas em terracota, não é? py j É. Só figurativo mas... tinha que ser modelado em barro. Saí. Eu acho que fui para Belo Horizonte para me livrar desse ranço. Foi lá em Belo Horizonte que então participei da escola do Guignard na parte de escultura. Gávea Os trabalhos que você produziu nessa época da escola do Guignard eram já em alumínio e ferro? FW Eu já comecei em ferro. Com ecei já em vergalhões de ferro, chapas de ferro... Saindo aos poucos do figurativo. Até as minhas pinturas começaram a ser geometrizadas. Então já não era mais figura. Já tinha um conceito geométri­ co. Aí comecei a furar o cubo, quer dizer, senti a necessidade de furar o cubo. Gávea Você mandou para a Bienal em 1959 e o trabalho foi recusado. É ver­ dade, Weissmann? Por falta de acabamento, por falta das soldas? FW Aí já tive essa necessidade de vazar o cubo. Mas então eu vazei o cubo. Foi rejeitado porque, segundo o com issário espanhol - tinha um comissário espanhol lá - achou que estava mal feito. Eu disse para ele: “Mas aquela foi feita em Belo Horizonte, não foi feita na Suíça, nos Estados Unidos, na Alemanha... Gávea

Era de latão, não é?

De latão polido. Com um m etro de ladó. E não aceitaram. Fiquei doente. Eu vivia na m aior miséria do m undo... porque a solda, quando se solda a chapa ela trabalha, então havia pequenas ondulações, muito mais como estava polido, com aquele efeito então... Acabou na sucata! Gavea

Nessa epoca você já tinha conhecim ento do Max Bill?

nasceu o c u b ^ v ^ d f P T ^ ° “ Sab‘a 11116111 era ° Max BiU. Não conhecia... Como Aquela loucura Fnfã^ 3 V° Z ^ °r 111113 necessidade mesmo de romper com tudo.

a fig^a S SU

±

to° ^ qUeT

a figura geométrica mais simples. Achei que

geometnca meus sunples era o cubo. Foi depois que vi as obras do Max BUI-

Cjciv0 num determinado m om ^nt^™ 0 3 Ll^ia C lark e ° Hélio Oiticica se dirigiram, para uma arte de participação do público, de sen528

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FRANZ WEISSMANN

Cubo vazado, 1951/1952 Aço inox s/ madeira, 90 x 100 x 90mm Foto Rômulo Fialdini

sorialização e você e o Amilcar ficaram num caminho que a gente poderia chamar mais de tradicional entre aspas, quer dizer, vocês não foram para esse tipo de experiência. Você pode explicar isso de alguma maneira? FW O Oiticica procurava mais com esse tipo de comunicação. A Lígia Clark também. Para mim a Lígia Clark foi muito importante. Uma artista muito avançada no tempo. Aquelas coisas que ela fez de borracha. Gávea

As obras moles, não é?

FW Obras moles. Aí já entra a participação. Você pede para a pessoa mexer porque senão... "Não, não mexe. Não põe a mão!", diz: "Mexe!". Sempre defendi a participação direta do homem. Eu já naquele tempo fazia estruturas de módulos soltos. Na exposição que fiz em 70 e poucos, em Antuérpia, meus tra­ balhos tinham elementos soltos. Em Veneza também levei muitos elementos soltos, mas ninguém aceitou. Gávea

Aquelas esculturas de Antuérpia e de Veneza tem alguma coisa GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Quadrado em Torção no Espaço, 1985 Aço Corten, 2,00 x 2,00 x 1,00m Casa de Cultura Laura A lvim , R J Foto Rômulo Fialdini

desse espírito porque parece que convidam o indivíduo a atravessar, a entrar dentro da escultura, porque elas são... FW Para entrar, para atravessar... porque disseram que a minha escul­ tura era transitável, mas não habitável porque chovia dentro. Porque é impor­ tante a pessoa entrar na escultura para ver de dentro para fora. Não só ver de fora para dentro. De dentro para fora! Gávea Você acha que hoje já existe uma arte que usa o computador como forma de expressão? O que eu conheço é muito pré-Cezaniano. Qualquer Cézanne é superior à maioria das artes feitas em computador que eu conheço. Porque está no início. Está muito no início ainda, mas vai se desen­ volver. Eu acredito porque você vê, tudo que começa assim... A primeira tele­ visão era uma coisa... hoje tem essa maravilha. Vai melhorando. Vai mudar o conceito. Vai mudar. Gávea Como você se sente nesse final de século de transformações muito grandes, Internet, essas coisas todas isso te estimula você acha que dá ainda para fazer arte? Ou você acha que não tem mais nada a ver com isso que está aconte­ cendo? 530

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FRANZ WEISSMANN

FW Não! Quê isso! A arte existe desde que o homem nasceu nesse mundo e ela continuará existindo de uma forma ou de outra. Vai mudar, talvez. O conceito de arte vai mudar. N otas (1 ) Escultura em frente a Casa de Cultura Laura Alvim, RJ. ( 2 ) Escultura do Memorial da América Latina, no bairro da Barra Funda, cidade de São Paulo. ( 3 ) Escultura-pórtico na entrada principal do edifício-sede da empresa holding do grupo Itaú, Praça do metrô Conceição/Jabaquara, cidade de São Paulo.

A obra de Franz Weissmann é o ponto de partida para a compreensão de um dos capítulos mais ricos da arte brasileira: a reinvençáo do espaço pelas experiências das correntes construtivas. Franz Weissmann nasceu na Áustria, em 1914, imigrando para o Brasil com a fam ília aos 10 anos de idade. Em 1946, convidado por Guignard, com ele colabora na criação da Escola de Arte Moderna de Belo Horizonte, onde funda o atelier de escultura. Juntos inauguraram o primeiro ensino de arte moderna na capital mineira. Foram alunos da escola, entre tantos artistas, Amilcar de Castro, Farnese de Andrade, Mário Silésio, Mary Vieira, Wilde Lacerda, Wilma Martins, Wolney Pedrosa, Yone Fonseca. Em 1954, participa do Grupo Frente, no Rio de Janeiro, e das exposições de arte concreta do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Rio, em 1956 e 1957. Ainda em 1957, recebe o Prêmio Nacional de Escultura da Bienal de São Paulo e, em 1958, o Prêmio de Viagem ao Exterior do Salão Nacional de Arte Moderna. Em 1959, assina o Manifesto Neoconcreto participando das exposições do movimento. De 1960 a 1965, trabalha na Europa, em Paris, Roma e Madri. Nesse período modifica-se sua linguagem, realizando uma experiência expressionista, única em seu percurso. Em 1968 retoma a questão construtiva. Nos anos 70, incorpora cores vivas nas esculturas, sempre monocromáticas. Em 1971, participa da Bienal de Escultura ao Ar Livre de Antuérpia e, em 1972, da Bienal de,Veneza. Desde os anos 70 vem realizando diversas obras monumentais em espaços públicos do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Em 1994 apresentou, em São Paulo e em Belo Horizonte, uma nova experiência escultórica intitulada, pela crítica de arte Maria Eugênia Franco, sua mulher, série "mondriana". Seu trabalho faz parte do acervo das mais importantes instituições brasileiras. Esculturas monumentais de Weissmann se encontram expostas em locais públicos e incorporadas ao acervo de empresas. No Rio podemos vê-las no Parque Carlos Lacerda, na Lagoa Rodrigo de Freitas, em frente à sede da IBM, na Av, Pasteur, em Botafogo, no Centro Universitário Cândido Mendes, na rua da Assem bléia, no Centro. Em São Paulo, no Parque Ibirapuera, em frente ao Museu de Arte Moderna, nos jardins da Fundação Armando Alvares PenteadoFAAP, no Pacaembu, no Centro Empresarial Itaú, no Jardim Conceição, no Memorial da América Latina, na Barra Funda, na av. Paulista, em frente à filial do Banco do Nordeste. Em 1993 Weissmann recebeu o Prêmio Nacional de Arte do Ministério da Cultura. GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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A m em รณria de George M aciunas Academ ja de Arte de Dusseldorf 7 de julho de 1978


O Lugar Beuys Pensado em sua propriedade, o espaçar é a livre doação de lugares, em que os destinos do homem em sua habitação voltam para a graça de um abrigo, para a desgraça do desabrigo ou até para a indiferença de ambos. Espaçar é a livre doação de lugares em que surge um deus, dos lugares em que os deuses fugiram, dos lugares em que o aparecer do divino há muito se retrai. ^ Estética Contemporânea Arte Conceituai Actions

CHRISTINA BACH Programadora Visual graduada pela Escola de Belas Artes da UFRJ, formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil (PUC/RJ) e aluna do Programa de Mestrado em História Social da Cultura (PUC/RJ).

O presente texto procura ver o lugar histórico do artista (2) Joseph Beuys (Krefeld,1921-Düsseldorf,1986) e de sua atuação. Tenta compreender a composição arte-mitologia onipresente em sua obra para, depois de tantas análises, procurar uma interpretação com certo matiz próprio. E o próprio aqui refere-se à Beuys mesmo, o que lhe é próprio: o pensamento alemão e a crise européia. As polaridades exploradas são as que estruturam a história deste pen­ samento: Natureza/Cultura, Europa/Ásia, Aufklärung/M itologia. Assim, procurou-se olhar sua obra com o auxílio de pensadores germânicos e este foi o primeiro sentido que se abriu para determinar o lugar-Beuys. Todavia, tomandose esta perspectiva histórica de lugar, desvelou-se em seguida uma compreensão diferenciada: não mais era o contexto em que vivia, e sim o que Beuys fazia - fun­ dação de lugares, e lugares plenos de discursos. Um lugar que é logos - a lin­ guagem é para mim a primeira forma de escultura ou pensar é esculpir, dizia. A conclusão que se depreende da atuação de Beuys e sua relação com a mitologia é de uma arte falante - fala mitológica e crítica, a respeito da história da arte e principalmente de sua própria cultura/civilização. Seu materi­ al de trabalho é estritamente e em todos os sentidos, autóctone - move-se pelos fragmentos do Romantismo e do Expressionismo, passa pelo Construtivismo, redimensiona o Experimentalismo e ultrapassa a arte Conceituai, já que o seu fazer não visava só evidenciar conceitos, mas fustigá-los. Após breve análise de seu pensamento, a questão será saber como uma instalação que, estruturalmente, GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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0 Lugar BeL

é apenas mais uma inserção no espaço, torna-se em Beuys, uma obra falante O Lu g a r H istó rico de B e u y s

A pergunta pelos valores contem porâneos (que carregam o germe niilista desde o início da modernidade histórica) é originária: o homem moder­ no fora alijado dos conceitos de verdade, unidade e fm i que garantiam a unidade do mundo. A contradição a que se vê lançado - a de não suportar o que não pode negar - é a tensão que ambienta as vanguardas históricas. Ampliada pelo malestar da Primeira Guerra, intensifica-se na Segunda, quando o homem perde de todo a convicção de dono de seu destino. Aos artistas, restam a participação política ou a evasão para a América. O artista alem ão reflete sobre a ruptura do homem com sua dig­ nidade - sua obra evidencia esteticam ente o enfrentamento dessa crise, a ausên­ cia ou a transposição impensada de valores históricos. Beuys não compactua nem suporta a indiferença, pelo contrário, vê a necessidade de nova orientação, mesmo política, para a arte. A obra confunde-se com o homem/artista uma vez que é nele como homem contemporâneo, que nasce a questão: verificando-se ou não a efetivação de sua própria vivência estética. Esta transubstanciação arte/artista resulta do com pleto entrelaçam ento com o mundo operante, envol­ vente, produto da aderência das circunstâncias da vida do artista aos valores que o cercam. Por isto trata as contradições e am bigüidades da atualidade com as mesmas armas do real, gerando controvérsias de ordem moral quanto às suas condutas - um paradoxo, considerando que o artista prima pela honesta compati­ bilidade de posturas sociais e argum entações artísticas, sendo impossível nele distinguir ação e paixão. Sua imagem pública confunde o não-iniciado acercado pacto estabelecido com a ética. Como um vidente, ele alerta que quando a vida se toma de todo consciente/cotidiana, a arte desaparece. A reivindicação de uma nova função para a arte feita por Beuys tem um óbvio precedente em Duchamp, para quem ela é reflexão, um procedimento conceituai, quase uma ética. Venâncio Filho reconhece no ready-made do francês o limite da arte e acrescenta que além do ready-made, ou tudo se transforma em arte ou e desaparece ). O pathos da atuação do pensam ento beuysiano é o da união .,

humanas. O Expressionismo dera, de certa forma, continuidade ao agneriano de arte total, reunira as m ais variadas realizações artísticas em

ua motivação. Pode-se dizer que Beuys vai, até certo ponto, retomá-lo quando suas operações estéticas tomam um intenso caráter multimídia. mnripm n^° ^re^a a autonom ia da arte como fizeram os ortodoxos modernos, mas insiste na sua não-diferença com o mundo, e o faz com inteligên534

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CHRISTINA BACH

cia atualizada de quem conhece a sua materialidade cultural. O que o artista pede é da ordem de um Conceito Ampliado dc Arte, no qual não haveria espaço para categorias e critérios anteriores advindos da modernidade - o que ele faz é inten­ sificação da realidade, Realismo. Há muito que a arte moderna fazia parte dos objetos auto-reflexionantes, autotélicos, reunião de signos, simultaneamente significantes e significados, que, não se importando com a relação homem/mundo, era decodificada apenas pelo métier. Conhecerá outra função com Beuys e Wahrol no segundo pós-guerra, quando certas disposições amadureceram. Os impulsos que estavam por detrás da abstração não eram só de caráter estético: a arte teve mesmo, por vezes, que virar estratégia de sobrevivência. Legítimo herdeiro do Romantismo e do Expressionismo alemão, Beuys detém um tipo de atividade artística que o coloca em sincronia com a ordem/desordem vigente, e pergunta pelo significado/não-significado da existência contemporânea e por suas seqüelas. Ele recusa o culto da arte como ofício sagrado e inspirado do gênio e de obras-primas ou atividade de agregação de materiais; renuncia ainda à categoria de intelectual. Doravante, a obra de arte não se definirá por um estilo, mas por um modo de enfrentar a realidade, i.e., um modo de ser: o artista deve ocupar posição central. A familiaridade dos signos mitológicos não consola: pede, isto sim, reação e transcendência para a aventura existencial contemporânea. Evocando mitos apenas à título de análise histórica, Joseph Beuys assume papel de vate trazendo tensões primevas para o presente: o estra­ nhamento violento deste embate, não ameniza a exasperação, mas quer co­ mover para que o sofrer não silencie. O fato plástico parece possuir atributos para-estéticos a serem desvendados, não economizando reflexões teóricas e problematizando questões novas ou antigas. São ameaças permanentes de catástrofes, tragédias imanentes, sugestões apocalípticas e escatológicas que não permitem contemplação desinteressada, pois exigem entendimento. São também perguntas sobre tudo o que aconteceu na pátria de Schelling, Beethoven e Goethe. A sua arte deve ser constrangedora, para que leve os espectadores a deixarem a atitude receptiva, transfigurando-se em autêntico coro trágico. A tripla reivindicação função/crítica/reconstrução para a arte já é tradicionalmente um pedido da angustiada Alemanha e Beuys é alemão par excellence. Com ele assistimos ao retorno do anseio romântico de totalidade, a arte voltando a tentar responder pela cultura. Notoriamente Beuys recolocou a Alemanha do segundo pós-guerra em evidência no circuito internacional de arte e cultura, posto ocupado pelos EUA, para onde emigraram os principais artistas da vanguarda histórica GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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européia (Duchamp fora o primeiro a ali se estabelecer). Daqui por diante a arte não poderá ser o que ela foi até então, m uito m enos o homem europeu. A ativi­ dade artística deverá ser construída de tal form a que seja resposta imediata à dis­ persão - objetos ansiosos, por excelência problem áticos. A questão atinge funda­ mentos morais na medida em que pergunta pelo que será da arte numa sociedade que permitiu o genocídio: Beuys vai pensar nada menos do que a pos­ sível ligação entre Goethe e Hitler. Outro nó a se resolver será o do fracasso dos ideais social-democratas pretendidos pela Bauhaus, que previam uma sociedade sem classes, mas que privilegiara o artista incum bido da tarefa de projetá-la. A C rise Eu ro p éia

A preocupação com um possível resgate espiritual remete, decerto modo, ao quase manifesto filosófico de Edmund 1lusserl, A C rise da Humanidade Européia e a Filosofia (1935), onde advertia para o perigo que residia na falência da humanidade européia, desta humanidade que havia perdido a significarão de depositária espiritual herdado da Antigüidade Grega e que ela mesma teria alterado (4>. Beuys tem a mesma disposição para m anifestos de índole político-filosóficos onde a tônica é a crítica ao irracionalismo advindo da perda do sentido vital do racionalismo grego, logos - o saber substancial perdido pela civilização moderna. O artista dirige-se ao homem ocidental cuja história fragmentada torna sua contemporaneidade tão contraditória, propondo até um retorno à sabedoria natural. A perda da totalidade que a filosofia representava, como ciên­ cia única e universal, a mais alta criação espiritual grega, na medida que abraça­ va tudo o que é, resultava do típico desm em bram ento do cartesianismo, a diver­ sificação em ciências particulares que pretendiam dar conta separadamente das diversas manifestações do ser, setorizando o conhecim ento em dois monstros, que são a ciência e a filosofia moderna. Beuys, assim como Husserl nos idos de 30, viu a urgência de com preender o espírito, já que a origem da crise estaria no naturalismo com que a modernidade pretendera dar conta dos acontecimentos espirituais do homem, ou mais especificam ente no objetivismo que confere ao espírito uma realidade natural. O tão nefasto naturalism o, segundo o pensador, vem a ser a banalização e o em brutecim ento da força do espírito, deixando de ser espírito para se tornar algo apreensível com o matéria. Beuys reivindica a universalização de seu material biográfico, expondo-se como fenômeno europeu, criticando a Aufklärung que teria mergu­ lhado o homem num frio niilismo. O artista ritualiza seus atos, usa terminologia cristã ou símbolos trazidos dos mitos para obter uma renovação espiritual através do retorno à sabedorias pré-científicas e até pré-letradas. Tanto quanto 536

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CHRISTINA BACH

Husserl, alerta sobre a confusão que afeta as relações de método e de conteúdo da ciência da natureza e a do espírito, que torna-se insuportável. A perda da espiritualidade, isto é, da autocompreensão do espírito, significa perda da tota­ lidade e o domínio da barbárie objetivista. É preciso que o espírito seja tratado como espírito de maneira sistemática, o que significará em Husserl um novo racionalismo: A crise da existência da Europa tem apenas duas saídas: ou a Europa desaparecerá se tornando sempre mais estranha à sua própria significação racional, que é seu sentido vital, e soçobrará ao ódio do espírito e à barbárie; ou bem a Europa renascerá do espírito da filosofia, graças à um heroísmo da razão que se sobreporá definitivamente ao naturalismo f5\ Assim como Beuys, que espera a reconquista de valores históricos e adota esta missão ao pedir um novo homem, renascido do sofrimento e paixão, para que se preserve a imaginação humana e a expressão criativa como tarefa infinita, Husserl aguarda renovação do racionalismo, com a mesma finalidade: A ratio que está agora em questão é a operação do espírito que se compreende a ele mesmo de maneira realmente universal e realmente radical; esta compreensão toma a forma de uma ciência universal, capaz de responder por ela mesma e que inaugura um mundo absolutamente novo de atividades científicas, onde todas as questões imagináveis encon­ tram seu lugar: as questões do ser, as questões de norma, as questões ditas da existência (6). Se, por um lado, Beuys e Husserl adotam questões originárias semelhantes, por outro lado é preciso obviamente diferenciá-los no que concerne aos impul­ sos intelectivos: o primeiro é um romântico especulativo, o outro, como atesta a totalidade de sua obra filosófica, um meticuloso racionalista. O diagnóstico é o mesmo, o remédio é que é diferente. O Experimentalismo de Beuys deixa patente sua ruptura com a tradição e recusa dos conceitos do passado, pois sua obra é projeto, futuro o fim do seu empreendimento. A experimentação visa verificar a existência - o ser da arte, o que não deixa de consoar com suas buscas. A maneira de Husserl, não parte da própria idéia ou conceito de arte para verificá-la, assim como o pensador não parte da noção de natureza ou de um dado conceito de lógica para fazer sua filosofia científica. Beuys procura não só alterar velhos limi­ tes, também aponta outros. A atuação de Beuys lembra a de um xamã, guardião das tradições de um povo, sacerdote não entronizado oficialmente, e que nas tribos primitivas era dotado do poder de comunicação entre forças superiores e inferiores. O que aparece como estado de transe é aguda lucidez de quem vive a aventura da contemporaneidade. Ele reitera o personagem pleiteando o encargo de educar os povos para que possam alcançar o estágio espiritual elevado, aguardado para o terceiro milênio, consoante a antroposofia de Rudolf Steiner. Cabe recordar a GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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0 Lugar Bei declaração de Duchamp sobre a importância das relações que afetam o espectador e o artista, o indivíduo e a coletividade: o artista não cumpre sozi­ nho o ato de criação, porque é o espectador qu e estabelece o contato da obra com o m undo exterior decifrando e interpretando suas qualificações profundas e, desse modo som a sua própria contribuição ao processo criador í7>. Tal ascensão à um estado d'alma só pode ser alcançado atra\és de esforços individuais de regenera­ ção de pensamento que visa escapar ao materialismo contemporâneo. Beuys confronta natureza, civilização moderna & dinheiro na action / like America and America likes me (1974), quando se fecha durante três dias numa galeria de New York, junto /V r* tecom um coiote que constantemente I like Am erica and Am erica likes me urinava num exemplar do Wfl/J Street Galeria René Block, NY, 1974 Journal. O artista polemiza com a ciên­ cia, a economia e a tecnologia, que ao darem um salto qualitativo desde o final do século passado, acentuado pelas duas grandes guerras, identificaram-se com o poder político. As realizações Beuys são sempre formas visíveis desta mesma filosofia que prega a necessidade de mudança de condição social feita à base de transformações espirituais, uma nova sociedade renascida do caos. Liberdade e criatividade são noções insepa ráveis para o artista.

.

A pedagogia criativa de Beuys, sua eloqüência verbal e artística, colocam-se contra o silêncio de Duchamp, criticando-o na action O Silêncio di Marcei Duchamp está sendo supervalorizado (1964), onde afirma que o francês estancara no momento em que estava por desenvolver uma verdadeira teoria dt arte. Discordando do conceito de anti-arte de Duchamp, pois o considera apenas estagnação, Beuys imagina-se seu continuador. Vai concordar, no entanto, no que tange à constestação da arte reconhecida pela sociedade como digna de \akr mas ao contrário do francês que não nutria ambições didáticas, pretende corrigi la. À bicicleta de Duchamp {La Roue de Bicyclette, 1913), que não vai a lugar 538

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algum, contrapõe sua arte-veículo que pretende a tudo e a todos alcançar. O uso recorrente de materiais provenientes da abelha, alude a sociedade que tudo transforma coletivamente, através do trabalho organizado e democrático: o caos em ordem, materiais maleáveis em esculturas funcionais ou em esculturas cristalinas. Outra vez assinala-se a influência do pensamento antroposófico de Steiner que, em Sobre Abelhas (1923), descreve o exemplarismo da sociedade das abelhas, propondo-a como modelo para os homens, que devem ser gloriosos no seu poder e beleza, jamais atuando para a autodegeneração. Em Como Explicar Obras de Arte à um Coelho Morto (1985), Beuys fala da irrelevância da explanação sobre arte (os homens sabem mesmo o que é arte ?) e elege o mel e o ouro como elementos que inspiram transformação e mistério na sua criação e origem. O emprego de materiais orgânicos, a gordura e o mel, deve-se ao caráter instável dessas substâncias naturalmente indeterminadas. Influenciáveis pelo calor e pelo frio, permanecem em contínuo processo de transformação. Através delas, o artista sonda o conceito que produz formas, procurando fazer refletir sobre a matéria anterior à forma, antes de ser in-formada. A matéria, vista desta maneira, é pura possibilidade/potencialidade a ser percebida/apreendida.

O silêncio de Marcei Duchamp está sendo supervalorizado Estúdio de TV, Dusseldorf,1964

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o Lugar Bei A contemplação da obra visa a pulsação mais íntima do material, isto é exempli­ ficado em Cadeira com Gordura (1963). A cunha formada pela gordura contra o ângulo gerado pelo encontro do encosto com o assento da cadeira designa a força que dá forma ao indeterminado, bem com o desafia a disciplina imposta pelo objeto civilizado cadeira. O equilíbrio, segundo Beuys, deve ser alcançado pois inexiste na realidade; para tanto, sugere o modelo ecológico. Isto é fazer o que o artista

Rainha das A b elhas, 1952 Cat. Secret block, n8 74

chamava de escultura social produto Ho , icão divnifir-«r,H P Um Pensamento que privilegia a intuiçao, aigniticando-a como a mais alta fnrm-, a ~ „ M V 6 ele reauestinrmnHo a ‘orma da razao. Pensar é esculpir - resumia organismo de uma T ^ °?®rações* Uma empresa coletiva/não-coletiva como m“

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sem abrir mão das relações" m odT 6 “ meSm° 6 de SU3 ‘iberdade mento é formalizadnr b ^ ° ° ProPosto por Beuys. Se todo procediormahzador, todos produzimos formas, somos todos a r tis tl desde 540

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Como explicar obras de arte à um coelho morto Galeria Shm ela, Dusseldorf, 1965

sempre. Como Duchamp, Beuys torna-se dispositivo artístico e concordam sobre as relações afetadas pela arte: Todos através de Duchamp faziam arte. Estavam implí­ citos em seus procedimentos uma supressão de si mesmo enquanto indivíduo particular e a manifestação de impulsos anônimos e coletivos (8) . Por sua vez, Beuys afirmava constantemente que Todo homem é um artista (versão contemporânea de Todo homem é um poeta, de Novalis ?). Há algo do âmbito do incompreensível na obra de Beuys, certa

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impenetrabilidade, embora costumasse apresentar imagens ou relíquias do seu processo de criação. Associados à lembranças autobiográficas, onde o passado está presente pedindo futuro, os materiais recorrentes que emprega tornam-se autênticos talismãs: vida e obra se tornam ferram entas para a consagração da existência, modo de evidência estética que rompe com o belo/contemplação e emancipa o escultor da forma. Beuys usa m ateriais miseráveis e mesmo indig­ nos, ou seja, não-civilizados. A matéria efêm era, deformante, afronta a clássica eternidade do mármore - a sua nobreza, substitui-se os refugos. O transtorno da matéria exibe o próprio material existencial que está em jogo: a arte agora é meio e não fim. Evoca o mito como chamado à ordem do espírito: deseja-o tomando consciência de si. A alta espiritualidade é caracteristicamente germânica, instru­ mento constante de sua luta. Beuys fala da capacidade de transformar a vida cotidiana em espiritualidade através da inteligência transformadora do homem que tudo pode desenvolver e faz aparecer o Belo e o Bem - pois as transfor­ mações da matéria devem contribuir para a evolução do homem e sua obra. Como no antigo paganismo de sua gente, o homem é o verdadeiro herói para o artista e Beuys está interessado na sua soberania pois pensar é digno de reis - ou seja, cada um deve procurar a própria racionalidade dentro de si. O animalis homo foi substituído pelo sapiens e assim pode criar os meios necessários para gerar limites - a religião, a cultura filosófica e a política - e assim todos garantiriam espaço de sobrevivência, mas agora é a sua própria racionalidade que demonstra falência de organização e de emprego. Beuys pergunta simultaneamente pelos condicionadores culturais e por valores além da razão. A biografia de Beuys é fon s et origo de seus insights: apenas a privação e sofrimento podem abrir a mente do homem a tudo que está escondido dos outros 0 artista, ao participar de uma espécie de ritual prim itivo de renascimento junto aos Tártaros, tem o corpo e a mente transtornados pela dor, algo sempre presentificado no seu novo estado espiritual através de adereços, roupas ou pinturas, semelhante ao processo ritualístico de iniciação xamanística. Aquele que passa pelas pro\ ações é, de certa forma, mais forte que a morte, alcança cura/poderes atrav és da artt e deverá transmiti-la aos seus, podendo organizar energias vitais elhantes às que necessitou. Assim podem os ver os seus materiais como puro potencial enérgico em repouso. É legítimo afirm ar que a afinidade de Beuys com o primitivo e com o mítico resulta de um êxtase dionisíaco no qual o religioso é do pelo profético/mágico, tornando-o intermediário entre microcosmos e macrocosmos. j tividade artística será plena de sím bolos pois a arte em conceito ampliado tem natureza energética, total inter-ação com o mundo. Pretendendo a 542

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reconquista dos valores históricos, imagina que a arte venha tomar-se obra da própria verdade. Suas obras, em essência, submetem-se às suas próprias expe­ riências de mundo. É consoante ao modus operandi duchampiano, cuja obra máxima Grand Verre consiste num somatório de experiências de caráter existenciais, assemelhando-se à um totem. Tanto o francês como o alemão dispõem de mitolo­ gia individual que servirá de fundamento a um conhecimento universal. Duchamp, se não foi exatamente modelo para Beuys, possibilita sua contemporaneidade. Obra e M itologia

O mito, linguagem genética de um povo, é carga de vida antes de se tomar cultura, civilização ou história. É a poética do mito que faz um povo dis­ tinguir-se da natureza. Beuys dizia: o mítico significa o segredo )ião declarado da vida e é o trouvadour que revela o mundo oculto pelo cotidiano, espetáculo do qual par­ ticipamos sem perceber. A mitologia nos ilude com a ressonância de um sentido pro­ fundo, sempre escondendo e jamais exprimindo, esclarece Schelling, acrescentando que o atrativo próprio reside no fato de ele nos simular ou mostrar à distância um sentido que continuamente se retrai e o qual somos obrigados a confessar sem, no entanto, poder alcançá-lo í10) . Este sentido potencial do mito é semelhante à verdade, hábitos dos tempos de ingênuo ateísmo, libertos de culpa religiosa. Os mitos pertencem à ordem natural e não sobrenatural como nas Escrituras. As representações que se associavam à natureza há muito perderam-se, tornando-se somente religiosas. O artista não prega a funcionalidade do mito, e sim a eficácia do seu estímulo. A idéia encarnada torna-se símbolo. Assim é com os mitos, assim é com a arte de Beuys, mensagem cifrada de significações abstratas e concretas simul­ taneamente próximas e distantes. Significados atemporais e que, estranhamente, concordam com o aqui e agora. Através dos mitos, tem-se a possibilidade de con­ siderar sobre a existência, suas causas e conseqüências, paradoxos e ambigüidades - novas possibilidades para o real. O prazer espiritual, mítico ou religioso, é semelhante ao prazer estético desinteressado. A idéia de totalidade compreen­ dia sujeito e objeto, natureza e espírito, e nada teria sentido isoladamente. A arte, para Schelling, ocupa posição privilegiada: a inteligência estética é formalizadora, criadora de mundos. A arte é acesso intuitivo ao Absoluto, anulam-se oposições e exprime-se a identidade dos contrários. O sentido do mito não é exterior a ele, o registro das decodificações mitológicas é o registro da tradução: A mitologia não é alegórica, é tautegórica. Para ela, os deuses são seres que existem real­ mente, que não são uma outra coisa, que não significajn outra coisa, mas que significam somente aquilo que eles são n l) . GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Nos desenhos de Beuys figuram o oculto, imagens ostensivamente primitivas, camufladas pelo racionalismo da era moderna. Desenhos para futuras actions/celebrações que, por sua vez, são também projetos. É um imprimir-exprimir o sagrado - material im palpável, manchas que celebram as forças primordiais. Entidades quase orgânicas, proteiformes, por \ezes indiscerniveis, dominados pela urgência em reconciliar o homem com a realidade. 0 primitivo xamã transfigura-se em artista, no m ais alto nível do desenvoh imento civilizatório: interpenetrando passado e futuro, ambos cumprem papel pedagógico, mostrando que tanto a intuição quanto o conhecimento são dádivas sagradas. Formando espaços de interesse estético, constituem manifestações do espaço mágico divino, convidam à experiência da natureza, a comunhão entre arte e vida. Observando desta forma, o desenho é linguagem auxiliar para o rito. As manchas em sua maioria são negras ou sépias, rudimentares, registros pré-culturais que não se deixam apreender intelectualmente. Atingem sobretudo à alma desavisada, inspirando desejos hum anitários, mas atávicos. Suprimindo a idéia de individualismo, caracterizam sofisticada sabedoria arcaica. O voca­ bulário é elementar, imagens de significação ampliada, abertas ao questiona­ mento constante comum, pois o Leitmotiv é o hom em e a sua origem - kosmos, i.e., matéria-prima do mito. Fala ao homem ainda indistinto do kosmos, participante do próprio devir ou da sua eterna Gestaltung. Pálidas pistas para antigas e ínti­ mas expectativas. As configurações teriomórficas, de extraordinária plasticidade, car­ regadas de referências históricas, significados m itopoéticos ou puramente auto­ biográficos, são autênticos símbolos existenciais. Veados, renas, hienas, raposas e o chacal provenientes da floresta germânica, imagética de tradição regional, aparecem em traços rarefeitos que passam a idéia da delicadeza do sentido, a fragilidade da identidade que se dissolve a todo momento para se recompor no instante seguinte. Imagens fugidias e esquálidas provenientes da memória mís­ tica do mundo, existem em algum lugar e aspiram a reatualização de experiên­ cias anteriores melancolia e êxtase presentes num a única imagem. A fluidez dos traços e debilidade dos contornos transmitem só significados - não há propriaente conteúdo estrutura primária a ser desvelada pelo espírito desarmado (e somente por este), posto tratar-se de alusões fragm entadas e difusas. Puros eles ritualísticos, por isso mesmo originários, intuições em estado bruto. 0 animal ah configurado é alimento. É forma de manipular deuses ocultos nos o jetos naturais através de símbolos (syrnbola). A possibilidade de interpretação anc as ou das anotações aparentemente acidentais de Beuys parece, à 544

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primeira vista, arbitrária. Porém a suposta subjetividade do artista é a mesma do seu povo, povo da terra, das lutas ou dos tempos dos anseios românticos. São idéias étnicas (Vólkergedanke) tangíveis em imagens, reconhecíveis universalmente porque são manifestações locais das idéias ele­ mentares (Elem entargedanke) da humanidade. A cor é terra, preta, orgânica, pigm entos primários, matéria-prima (Urstoff) mesmo de vida, representação pura, que não con­ sagra a plasticidade da substância, antes atua antropologicamente para a afirmação de um espaço real. O seu caráter anti-urbano conjura o espírito Sem título, 1958/1959 Cat. Secret block ne 277 da terra (Erdgeist), sem consideração pelo tradicional efeito estético. O aspecto eternamente provisório reflete a maleabilidade que deseja para a estru­ tura social alternativa - pedido para que se dê atenção aos sinais nebulosos envi­ ados pela intuição humana a prevalecer sobre tendências destruidoras e mortais. O informe e o etéreo propõem direitos à liberdade intuitiva - formas de precisão impressionista mas extremamente eloqüentes e prescindem de comentários: sempre foram identificadas, sentidas e até temidas. Formas que são apenas indí­ cios de situações e apelam para o déjà vu da mente - imagens primárias (urtümliches Bild). Conteúdos sem formas fixas, conservam o aspecto inacabado, cons­ tantemente em transformação, tanto quanto o homem e seus materiais. Não há sequer vestígios do Belo mediterrâneo, suas cores ou seu ero­ tismo, posto que o trabalho de Beuys é reendereçamento do Romantismo, seqüências pictóricas simbólicas ou condensações sintáticas que remetem sempre ao processo autogerador do espírito germânico. Inexiste o Belo convencional, temos, isto sim, uma metáfora da beleza contemporânea que concorda com Kenneth Baker quando a descreve como sendo da ordem de uma beleza latente, i.e., um medo de perder a realidade crua de nossa existência a3>: traços robustos que marcam graficamente a presença do homem/artista, indivíduo privado de sua própria integridade humana, fragmentos de realidade não-industrial. GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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o Lugar Bau* Os objetos de Beuys carregam uma co n cen tra d o de \crdade intima só apreensível de maneira sinestésica, já que sào aspectos táteis, senso riais de fenômenos que pedem a transubstancializaçào da realidade em te I ste com­ plexo energético pulsante mostra o indizível, traz a luz a tunçao simK»lu.i e, a maneira da mitologia, faz a transmissão das formas pela ipinl a l i<mu J.i ter »..o forma pode ser conhecida Paradoxalmente trata se de objetos nuniem us que. embora inteligivelm ente reco­ nhecíveis, não permitem outra apreen­ são do seu nexo que não seja através dos sentidos. Beuys tenta estim ular a sensibilidade e a percepção dos ho­ mens para além dos cinco sentidos reconhecidos: a eles acrescenta os sen­ tidos vital, o espacial, o temporal, o cinético, o térmico. Em O Bando (1969), é possível verificar que o bando, com ­ posto de cerca de vinte trenós-animais, cada qual carregando um rolo de feltro (para aquecer), gordura (para alim en­ tar) e uma lanterna (para guiar), está em permanente movimento, i.e., como se saísse incessantem ente do automóvel-ambulância. O artista dis­ pôs com tamanha precisão os objetos que a impressão de movimento é cons­ tante: transmitem o sentido de urgên­ cia, atitude típica de um grupo de resgate de emergência, pronto para intervir/invadir/escapar. Em ligt(1 958-85) P muito embora o título "Transe” seja complementar, como em toda a pro­ dução de Beuys, é possível experimenO Bando „ 3 monumentalidade da obra, de proporções arquiteturais vão do temor ao conforto pleno o .i vendo totalmente o ambiente a -

mesmo material, admite conotactV

Prospect 69, Dusseldorf

continua t alternadamente.

®*n)lado, disposto<m OOtORM^Cnfoi* "ístmmento sufocada pelo

S,mU tâneas tan*° d c material de isolamenCÁVEA. 14 (14), setembro 1996


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Plight (Transe), 1958-85 (segunda sala) Centre Georges Pompidou, Paris

to (solidão, abandono), como de proteção (calor). A impossibilidade de apreen­ der o sentido, propor um logos final, é semelhante à realidade: arrebatamento da pura experiência inefável, unicamente oferecida pelo sublime contemporâneo. Logos e O ia-logos

A obra de Beuys é falante, nunca pára de falar, procura o acesso à verdade, corporificando-a. Assim, não é errado chamá-la Instalação Verbal, com a qual argumenta sobre o fracasso de um mundo que sobrevive a si próprio. A obra é o veículo para diálogo com o homem. É sua própria voz que fundamenta espaços, i.e., in-forma, é abertura de sentido e portanto, ação/verbo. Se o espaço é sentido, então é logos - linguagem - fenômeno originário do homem de habitar em meio ao sentido. A linguagem vai sempre se efetivar porque o homem é o sersentido - e é seu originariamente ser uma provocação (dia-logos). A atividade artística beuysiana no todo é da ordem de um lugar/espaçar, doação de sentido para quem a experimenta. Nas sábias palavras de Martin Heidegger (15); o espaçar instala o livre, que se abre para o homem estabelecer-se e habitar. A obra de Beuys é doação de lugares - possibilidades de sentido. A criação se dá a partir da palavra, da formulação do nome. O dis­ curso de Beuys tom a-se escultura em oposição à tridimensionalidade da escul­ tura clássica. Beuys afirmava que a linguagem é para mim a primeira forma de esculGÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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O L u g a r Beuys

tura, cujos princípios, desde o tempo do Fluxus, sào BÓdO-«tétfcDB < ÒB»O grupo, Beuys atuou entre 1962 e 1965 em diversas actions, nas quais os materiais tinham origem estritamente existencial. Como base de p e n s a m e n t o o I luxus encontra no movimento (Bewegung) de Heráclito a sua m otivação e, nos materiais não ortodoxos e rejeitados, a flexibilidade com que pretendiam arquitetar mudanças de consciência. Como os materiais, rejeitados são os próprios homens, agora abandonados à própria sorte, mas detentores da historia a degradação do indi\ 1 duo é a degradação da própria história. O Fluxus pensa na arte dialogando com o real e o espaço não mais como entidade geométrica fechada, e sim como dimen são de vida. Arte e artista tornam-se modelos de comportamento estetico ein con­ traposição às normas de coação: daí a ostentação pública da operaçao artistua, a improvisação de acontecimentos espetaculares, . 1 partk ipaçflo tisn.i n.»s No caso particular de Beuys, a linguagem é o elem ento fundamental. Buscando equivalência a r t e /mundo, seu logos é político, e evnlencia-se plasticamente. O discurso, a palavra, a linguagem como um tinio sào partes indissociáveis de sua obra. Como na época antediluviana, quando o sa crifício adquiria condição de linguagem, ou nos tempos de barbárie trutiYnicB, que instauraria o reino dos homens livres. Para o s primitivos, a arte nào tinha caráter individual, era ação coletiva, irradiaçflo de cultura, aproximando-se do seu Conceito Ampliado de Arte. O artista funde teoria de arte ao pnSprio fazer, deixando a arte de ser expressão dela mesma, para aluar em co-perten. fanatk) arte-vida. Ora, forçar os limites da arte significa axxtpliá la \ « n g g ân d l d t Beuys como artista se prende ao caráter autêntico da sua obra que. am orada em

sistema artístico vigente, pois nào era 548

G á v e a , 14 (14), setembro 19%


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esta a questão central, e sim o homem e sua ética do fazer visando uma possível reconstrução da existência através de modelos de procedimentos que o va­ lorizem. O homem deve ser tal qual o demiurgo de Platão que não é onipotente: faz o kosmos tão bem quanto possível e tem de competir com os efeitos contrários da necessidade (17)Notas ( 1 ) HEIDEGGER, Martin. Arte e Espaço. In: Arte e Palavra, vol. 2, Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, 1987, p. 93. ( 2 ) Utiliza-se aqui as palavras artista e arte apenas para obter-se melhor articu­ lação no texto. No entanto, para evidenciar a impropriedade dos termos, optou-se no decorrer do trabalho pelo uso do itálico. A visão que aqui procu­ ra-se ter de Joseph Beuys não é só a de um fazedor de fatos plásticos, mas do alcance da sua atuação contemporânea. No mais, o próprio Beuys recusa para si o título de artista e a definição tradicional de arte para suas realizações ( 3 ) VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcei Duchamp, Editora Brasiliense, São Paulo, 1986, p. 9 e 72, respectivamente ( 4 ) STRASSER, Stephan. Introdução de La Crise de l’Humanité Européenne et Ia Philosophie, de Edmund Husserl, In: Revue de Métaphysique et Morale, n° 3, Madrid, 1950, p. 227. ( 5 ) HUSSERL, Edmund. La Crise de l'Humanité Européenne et la Philosophie, p. 258 ( 6 ) HUSSERL, Edmund. Op. Cit. p. 256. ( 7 ) VENÂNCIO FILHO, Paulo. Op. cit. p. 75. ( 8 ) VENÂNCIO FILHO, Paulo. Op. cit. p. 22. ( 9 ) CAM PBELL, Joseph. As Máscaras de Deus. Mitologia Primitiva. Editora Palas Athena, São Paulo, 1982, p. 56. ( 10 ) SHELLING, F. W. J. Introdução à Filosofia da Mitologia, In: Arte e Palavra, vol. 4, Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, 1989, p. 74. ( 11 ) TORRES FILHO, Rubens, Schelling, F. W. /. In: Os pensadores, introdução, p. XIII. ( 12 ) ADRIANI, Gõtz. Drawings, Objects and Prints. Institute for Foreign Cultural Relations, Stuttgart, 1989, p. 21. ( 13 ) BAKER, Kenneth. Um uso para o belo, In: Revista Gávea. n° 2, PUC/RJ, 1985, p. 105. ( 14 ) CAM PBELL, Joseph. Op. cit. p. 57. ( 15 ) HEIDEGGER, Martin. Op. cit. p. 93. ( 16 ) BAKER, Kenneth. Op. cit. p. 103, citando Martin Heidegger ( 17 ) PETERS, F. E. Termos Filosóficos Gregos, Fundação Calouste Gulbekian, 2 ' edição, Lisboa, 1974, p. 49.

Agradeço a orientação do Prof. Ronaldo Brito na monografia de conclusão do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC/RJ, da qual este texto e parte integrante.

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Robert Smithson Spyral Jetty, Utah, 1968/70


Sobre o Conceito de Instalação O artigo traça considerações sobre o conceito de "Instalação" através da análise de trabalhos contemporâneos, levantando questões e bus­ cando referências sobre a origem e desen­ volvimento do termo “Instalação" na arte atual. Arte Contemporânea Minimalismo Anti-Arte Ambiental

FERNANDA JU N Q U EIRA Artista plástica, graduada em Pintura pela Escola de Belas Artes, UFRJ. Formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, PUC, RJ.

Sobre o conceito de in s ta la ç ã o So that in terms o f my own work you are confronted not only with an abstraction but also ivith the physicality o f here and now, and these two things interact in a dialectical method and it's what l call a dialectic o f place. 0 )

O pequeno trecho, extraído de uma entrevista com Robert Smithson, em 1970, evidencia a natureza dialética do trabalho do artista. Fazer Arte era atuar na própria emergência, na experiência do fenômeno, radicar no "aqui e agora", explorar enfim as possibilidades do mundo, sem a prioris que determinassem este ou aquele procedimento.A "dialética do lugar"compreende assim a unidade dual da fisicalidade do mundo e sua espiritualidade implícita, constituída pela experiência do sujeito no mundo. Smithson desenvolve seus conceitos "site"e "non-site" - em tradução literal, "lugar"e "não-lugar"- para explicitar esse campo de convergência formado pela bipolaridade mente e matéria, arte e realidade. Nos limites amplos desse diálogo, representado pela "manobra Indoors e Outdoors"- dentro e fora, exterior e interior - a obra de Smithson insta­ la sua poética.É o real do mundo, presentificado na matéria física, areias ou pedras, coletadas no "site" pelo artista, que vem a instalar-se na galeria. "Container "abstrato, o "Non-Site"reconduz por sua vez à experiência dialética do lugar - "Site". Pois o "estar aqui', à volta desses "largos e abstratos mapas feitos em três dimensões" (^), convoca o sujeito a reexperimentar a imensidão de suas possibilidades espaciais. O mesmo sentido pleno de imensidão que encon­ tramos na sua já icônica obra, "Spiral Jetty", em Great Salt Lake - Utah 1968 / 70, onde Smithson manifesta, de modo incontestável, sua concepção de Land Art . Os próprios relatos do artista permitem compreender melhor o sig­ GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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S o b r e o C o n c e it o de Instalaç

nificado desse processo interativo experimentado pelo artista na construção da obra. Inicialmente, Smithson estava interessado na cor vermelha das salinas, que obtinham essa cor graças ao acúmulo de algas e micro-bac terias nas águas. A cor vermelha era um "part-pris" do artista , como se esta já houvesse gravado seu simbolismo no espírito do artista. Ele buscava um determinado lago vermelho, não um lago qualquer. Após uma série de investigações pela região e finalmente , no próprio lago , encontra em Rozel Point, a coloração desejada. Mas não tinha idéia ainda da obra que conceberia no local. A concepção de sua forma só vai sur­ gir quando o artista //experim enta"fenom enológicam ente o local escolhido. A idéia da espiral emerge de circunstâncias vividas às margens do lago de "Great Salt ". No ideas , no concepts, no systems, no structures, no abstractions could hold themselves together in the actuality of that evidence. ^ É portanto na atualização da interação sujeito-mundo, na unidade que se estabelece e chega a dissolver as dicotomias vigentes, que a forma emer­ gente torna-se uma circunstância inapelável. Ela é fruto de uma experiência fun­ dadora. A potência da obra confirma sua constituição relacional: não existe obra sem o lago e sem o espaço circundante. Relação espacial indissolúvel - obra e espaço - tornam-se um todo constituinte, que inclue o sujeito que ali possa estar. So bre o te rm o " In sta la ç ã o "

A referência à experiência de Robert Sm ithson introduz, de maneira sensível, as principais questões que o conceito de Instalação pode suscitar. dadas as de\ idas proporções, traria para o nosso propósito a mesma sig­ nificação que o vermelho adquiriu para Smithson: um parti pris, um sentido primeiro e quase imperativo. spm

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. denominaÇâ° "instalação "costum a abranger genericamente um

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mente na posse desse conceito.É interessante verificar, a título de curiosidade, que a palavra Instalação já era utilizada na América mais genericamente para especificar, na margem de fotos publicadas em livros ou em catálagos, a vista geral de uma exposição: Installation view. E que tanto poderia se referir à exposições de grandes painéis de pintura como de escultura ou mesmo de novos experimentos surgidos nos anos 60, ainda sem denominação específica. Em seu significado literal, a expressão "vista da instalação propõe considerar não somente a obra em si , mas a circunstânçia de unidade: espaçoobra. Tal relação espaço físico-obra não era certamente novidade em Artes Plásticas. Podemos evocar operações intencionais análogas tanto em Malevich que montava seus "quadros"de forma singular nas paredes - como em alguns trabalhos dadaístas, sem mencionar as instalações dos grandes painéis de Monet. A Escultura, naturalmente, mais que outros meios plásticos, sempre configurou, pela própria natureza tridimensional, uma relação mais evidente com os dados espaciais. No entanto, o que se torna única e premente na propos­ ta atual é a intenção manifesta de inserção da Arte no real, na concretude do mundo. O desejo de trabalhar com os dados reais do mundo está patente em quase todas as manifestações a partir dos anos sessenta. A sensação de esgota­ mento e esvaziamento dos meios plásticos tradicionais ao final dos "cinquenta', a insatisfação generalizada provocada pela possível "morte da Arte",pressiona as linguagens da Arte e vai levá-las a explorar novos caminhos.Há uma retoma­ da das questões esculturais, por causa de sua materialidade e concretude, e toda a sua variedade de implicações espaciais. Neste sentido, as observações de Rosalind Krauss são particular­ mente oportunas. Fornecem indicações significativas para a leitura do processo moderno da escultura - que parece ter sido relegado a segundo plano - e demonstram como a experiência contemporânea aponta justamente para o rompimento dessa categoria. O "campo ampliado' conceituado por Rosalind Krauss, proporciona uma nova abordagem para a pluralidade das experiências que surgem, tentando articular na sua lógica operacional e perceptiva, uma série de combinações efetivas, livres dos limites de um único conceito. No entanto, discutir a validade de seus termos, implicaria em enfrentar a fundo a pro­ blemática dos conceitos "Moderno e Pós- Moderno , manifestados por Kiauss, ao considerar que tais obras configuram o ponto nev rálgico em torno do qual se organizam os conflitos entre essas questões. Ao compreender a complexidade dessa discussão, é mais apropria do, portanto nos limitarmos as análises estéticas e, principalmente, assinalar a sua reflexão em torno da condição moderna da Escultura, a sua negatividade e GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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absoluta "perda de lugar". Este ponto nos perm ite considerações em tomo das obras qualificadas como in situ , site especificity e ambientais , termos utiliza­ dos na época e que antecedem a denominação "Instalação". Seria Instalação um termo genérico que, de certa maneira, derivouse conceitualmente dessas experiências fundadoras? Ou um termo específico para designar apenas certo tipo de obra? Seria válido fixar limites, tomá-la como um meio plástico ou uma forma de linguagem? De certo modo, o contexto de sua procedência nos indica, ao contrário, propósitos m ais amplos, que visavam jus­ tamente romper com as tradicionais divisões em categorias. Se for este o caso, como vê-la restrita a um novo meio, sem levar em conta sua origem transgres­ sora... Em que medida, por outro lado, a radicalização inicial acabou por se tornar prática corrente, mais um tipo de linguagem ? De todo modo , isso nos levaria a uma digressão em tomo das definições e entendimentos acerca da formalização do fazer da Arte em catego­ rias e, mais adiante, a pensar sobre o que determina o "ser"da Pintura, da Escultura... E se enfim realmente existe definição que sustente por muito tempo uma determinação a priori do "ser", conquanto adm itim os que a Arte seja exata­ mente esse eterno fazer e refazer em torno de sua própria validade enquanto Arte. O sentido do ser da Escultura, da Pintura ou até mesmo da Instalação, estaria a todo momento sendo feito e refeito em cada pintura , em cada escultura, em cada instalação. Isto sim, nos dá um enfoque mais fenomenológico. A fim de atendermos a esse propósito, nada mais lógico do que iniciar as análises pelas obras conceituadas como Instalação. Visando apreender em sua própria constituiç~ terial, a natureza dos pensamentos que sobrevêem dessa relação circuns­ tancial, as implicações reflexivas de suas experiências e referências históricas. Jo sé R esend e e o M in im a lism o In sta lação de J o s e R e se n d e - G a le ria C â n d id o M e n d e s, R J . 1982

rude acumula t ^ P^ StiCa 6 homoSê" ^ quase corpórea, do material ruae acumula-se por toda a superfície do chão Ta w • tempo acolhedor para o espírito Amlh a ^ * aSSePt,CO' 30 mesm0 O abriga, amortecendo os sons e recobrind " ° ^ ^ reVestimento * * guidade de uma operação que, ao retirar do ° Va2,° Const,tul-se assim a ambi' anunciar o vazio inh-n 1 ° csPa<*° as coisas e simultaneamente porém, porque d

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P°la opacidade negra que assusta e r e r i a T ^ f e s L ^ 0 <feSabÍtada E a nâo SCr - certa afinidade nos retém an.ii i c ‘ ^tando qualquer emoção definível n aqui silenciosos, calados. Pequeno compressor ligado m ovim enta de modo contínuo e 554

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aleatório um tubo de plástico sobre a superfície, mas essencialmente é isto: bor­ rachas pretas "incorporando" o espaço, todo o espaço, até mesmo o ar. Ar impregnado pela aspereza de um odor que, involuntariamente, suscita lem­ branças de uma oficina mecânica. Talvez não sejam aqui pertinentes, as recor­ dações. E por isso, anódinas que são, não interferem na evidência da situação na condição manifesta de sua exterioridade. A presença enigmática da máquina reforça a impessoalidade do espaço e o cheiro exalado confirma apenas o "estar", nada além de camadas de borracha preta estendidas pelo chão. Uma vez "instalados"no silêncio dessa massa negra, enfrentamos a tarefa instável de percorrer a pé esse mar amorfo. Entre os pólos do lúdico e do incerto, percebemos a possibilidade de atravessar, sobre essa matéria incons­ tante, o espaço da sala. E o atravessamos para nos dar conta de que assim o faze­ mos sem outro sentido ou propósito, a não ser aquele mesmo de percorrê-lo, para senti-lo como matéria e superfície. O que a obra permite, com sua aparente­ mente simples redução plástica, é a emergência de uma situação esvaziada e instável, apesar das reminicências "protetoras". É o nosso corpo que se "instala' Instalação de Jo sé Resende, 1982 Galeria Cândido Mendes, RJ


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fragilmente na incerteza dessa superfície , situa-se espacialmente como referên­ cia especular da obra. Nada existe aqui para ser contem plado sob o modo tradicional de olhar uma "obra de Arte". Por um lado, nenhum a interioridade, completa abstração formal. A ausência de discurso narrativo e a redução à essência míni­ ma de potência visual e material remetem, sem dúvida, aos procedimentos mini­ malistas. Inclusive por tratar-se de matéria industrial, inócua, sem qualidade, sem a marca expressiva de um fazer. Por outro, o adensamento do espaço, cau­ sado pela matéria negra da borracha, promove a unidade da obra, sua enfática contingência espacial. O sentimento de unidade e totalidade que nos envolve resulta justamente da experiência investida pelo nosso corpo com o parte dessa matéria macia, porém instável e tosca. Semelhante afinidade corporal não se identifica somente com a matéria: compreende "existencialm ente" o vazio que a cerca. Entre o esvaziamento espacial e a corporeidade do material "re-situamos"a dialética existencial cotidiana. Só assim podemos de fato estar aqui. Se algo nos impulsiona para fora é a perplexidade do "n ad a"qu e perpassa a obra; ou a exigência contínua e humana do sentido - um sentido único e ordenador que sus­ tente o velamento do vazio. A noção de e sp a ç o no M in im a lis m o

O estranhamento é uma notória particularidade do moderno e di contemporâneo. O seu desígnio é esse descentramento constrangedor do eu, ess< suposto "eu"que habitaria o interior de nossos corpos. O que nos inquieta é l eventual ausência dessa interioridade. Como se agora ela se estendesse à exterio ridade do corpo ou à própria densidade dos materiais. Até o momento nossos corpos e nossa experiência de nossos corpos conti miam a ser o assunto dessa escultura _ mesmo quando o trabalho é constituído dt toneladas de terra... (5) Ainda que radicalmente abstrata na concepção, a escultun minimalista, a que Rosalind Krauss se refere acima dá seguimento ao pensamenti de duas figuras cruciais na recente história moderna: Rodin e Brancusi, que recolocam i ponto de origem do sentido do corpo. (6) A obra de Resende promove esse sentido do corpo, sem dúvida para atualizar os procedimentos minimalistas em uma "Instalação". Pois aqu não se trata mais de escultura... como conceituar tal obra enfim? O que a dis tingue dos procedimentos do minimalismo? Talvez vincule-se indiretamente è obra de Richard Serra, Casting - metal derretido entre o chão e a parede, um£ sucessão de listras de metal - ou as placas de metal de Cari André," Twelve cop556

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per comer", quem sabe mesmo à "Contingent"de Eva Hesse, pela exploração das qualidades inerentes do material. As referências trazidas pela obra de Resende vão nos permitir desviar nossa atenção de suas questões específicas para discutir em termos mais amplos o processo desencadeado pelo surgimento

Cari André Lever, 1966 National G allery of Canada, Otawa GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Sobre o

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Richard Serra Tilted Arc, 1981 Instalada na Federal Plaza, New York, NY

destes e de outros trabalhos - alguns dos quais rehu ionados m.»i" ac »ma texto da década de 60. Não havia, é certo, o conceito de "Instalarão

lats obras não ,,’M‘

concebidas intencionalmente no â m b i t o d lC tU lS C rftp p O I t» im o DUO bora alguns livros publicados posteriormente venham assim denominá-las 1la permanecem diretamente ligadas às questões da 1 SCultura 1 nesse ca mp se produzem as rupturas, consideráveis, a ponto de abalar O propno conceito de "Escultura". Com certeza , os procedimentos minimaUstas apresentados p«* primeira vez em 1966, na exibição "Primarv StTUCtUieB* tornaiam BUW) ir'*"s elástico o campo das significações escultóricas. O Minimalismo tencionava, de imediato« aboltr 06 ulti mo- v ttO p ** do formalismo europeu. A base de toda idéia d éles é a baU m çt.. OOCÍ f * * cm st num canto e então equilibra com outra no outro can toW A nova estratégia composicional será "uma coisa depois da outra", isto é, re p e tiç ã o e - en a li d a d e 1 pR tende anular quaisquer significados ou nexos tora desse ato OS ma te n a i - uti 558

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lizados, tijolos e elementos fabricados industrialmente, primam pela opacidade e resistem à manipulação. Esse procedimento radical manifesta a recusa da "importância lógica de um espaço interior da forma"celebrado ao máximo pela escultura do início do século. O termo minimalismo por si mesmo, aponta para a idéia de redução da Arte a um ponto de esvaziamentoÁ8) Esta nova ordem não-racionalista em termos composicionais, com o esvaziamento decorrente das reduções plásticas, próprio ao minimalismo, instala um novo sentido nas experiências espaciais da Escultura. A partir daí podemos especular em que medida tais procedimentos viriam a ser significa­ tivos para os movimentos geradores do que posteriormente passou-se a chamar "Instalação". Quando Cari André alinha sua coluna de tijolos no chão do museu produz uma nova configuração espacial. A "coluna sem fim"de Brancusi é a obvia referência. Só que aqui ela não mais se verticaliza - limita-se a percorrer o chão, dura e concretamente. É o chão que se alonga. Sendo o objeto escultórico isento de qualidades de superfície - são apenas tijolos - inexiste o olhar atento para sua condição aparente. O que a obra evidencia, essencialmente, é a estrutu­ ra de uma situação espacial. Essa redução plástica permite a quem ali está, a per­ cepção nítida, o envolvimento concreto com o espaço circundante. E não se trata, no caso do Minimalismo, de espaço virtual ou transcendente. É o espaço real do mundo, quer se trate do espaço institucional de museus e galerias ou mesmo o de ruas e prédios, que não deixam aliás de ser instituições urbanas. A obra não se coloca ali ou adiante: é uma ‘ instalação do espaço que surge concomitante à presença escultórica. As coordenadas de percepção que são estabelecidas não existem somente entre o espectador e o trabalho, mas entre especta­ dor, a obra e o espaço habitado por a m b o s A totalidade da obra consiste, em últi­ ma instância, em tal relação. Sem ela, inexiste obra. Poderia se objetar que a escultura, tradicionalmente, sempre trabalhou afinal com questões espaciais. Sim, mas o minimalismo e sua concepção estritamente abstrata e redutora radi­ caliza essa relação, melhor ainda, atua nessa relação. Há uma interdependência constitutiva entre objeto e espaço. Site especificity - em tradução literal, "sítio específico"- era o termo minimalista para designar a especificidade da circunstancia espacial da obra. Algumas obras de Richard Serra seriam também boas demonstrações dessa interdependência constitutiva. As circunstâncias relacionais obra - espaço atuam às vezes de forma lúdica, as vezes crítica, mas todas apontam para uma reali­ dade visual antes desapercebida. GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Richard Serra Strike: To Roberta and Rudy, 1969-71 Coleção Giuseppe Panza di Bium o, V arese, Itália

To remove the work is to destrói/ the ivork. 0 °) Com essa declaração, Serra acirrou o debate público em torno da retirada de "Tilted Arc" de uma praça em Manhattan. "Tilted Arc"foi concebida para atuar, de modo crítico, no espaço público ao qual se destinava. Removê-la, recolocá-la em outro contexto, signifi­ caria anular a "situação"que a constituia enquanto obra. A atenção a essa "situa­ ção específica é recorrente em Serra, mesmo em trabalhos que se destinam ao espaço fechado da galeria. Neste local, as esculturas de Serra trabalham não "para" mas em oposição ao espaço ao redor. Strike , por exemplo, é uma operação crítica ao espaço tradicional de uma galena. Trata-se de uma simples placa de aço pesando cerca de três toneladas. Esta placa de aço não é entretanto o trabalho. Para tornar-se a escultura 560

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Strike , a placa de aço teve que ocupar o lugar, assumir a sua posição calcada no canto da sala da galeria, bifurcando o ângulo exato onde a parede encontra a p a r e d e . A situação espacial passa a ser, portanto, elemento constituinte da obra. Serra enfa­ tiza que a experiência da Escultura só existe no lugar em que ela reside. Espaço A m biental In s ta la ç ã o : " D e s v io para o v e rm e lh o "- Cildo M e ire lle s, M A M /R J

Red is the most joyfull and dreadfull tliing in the physical universe, it is thcfiercest note, it is the highest light, it is the place ivhere the ivalls ofthis world o f ours wear the thinnest and something beyond burns throughS12) A cor vermelha , mesmo na completa abstração, parece dispor de uma tensão, uma situação-limite, proporcionada por qualidades físicas de impregnação. "É uma situação ótica real, cientifica mente comprovada - a tendên­ cia das ondas luminosas a se desviarem (na refração) para aquela de maior exten­ são, a vermelha." <13) O trabalho de Cildo Meirelles "Desvio para o vermelho" comprova o desvio científico por intermédio de um "desvio estético". A instalação é engen­ drada pela saturação da cor vermelha. A referência do poema, trazido por Smithson, proporciona um ajuste perfeito. Circunscrito a essa situação-limite, o "vermelho" de Cildo ocupa o espaço ora de forma leve e familiar, ora estra­ nhamente perturbadora. A menção ao "atelier rouge" de Matisse - feita pelo críti­ co Ronaldo Brito no texto de apresentação - seria assim uma evidência concreta. No aspecto cotidiano de uma sala, em que todos os materiais, desde a mobília até quadros e detalhes de decoração, são vermelhos, a saturação da vista promove uma visão quase planar. Não fosse pela constatação de estarmos dentro desse vermelho, o que modifica inteiramente a relação com a obra. Esse mesmo ver­ melho, contínuo e feliz, inconstante em sua reverberação luminosa e existencial, Matisse apresentou em seu célebre "atelier , liberando totalmente a cor de íeftrências narrativas. Daí em diante, a cor, autônoma, estrutura o espaço. A situação proposta por Cildo Meirelles reafirma a dimensão estrutural da cor no real. O mundo se faz vermelho, estamos a experimentá-lo no atordoamento de uma ló­ gica inusitada. Mas é um vermelho que não oprime, reverbera luminosamente, quase com humor.E nos surpreende a possibilidade poética de um cotidiano matizado de carmins e cádmios, escarlates, vermelhos densos ou claros. Mas acontece o "desvio"e este pertuba "fisicamente o mundo. É verdade que o mundo é o que vemos, contudo precisamos apren­ der a vê-lo.l14) E aprender a vê-lo" significa alçar nosso conhecimento ao nível do "saber" que constitue essa visão. A Arte consiste, fundamentalmente, na repoGÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Cildo Meirelles Desvio para o verm elho, 1984 Museu de Arte M oderna, R J

tencialização desse "ver". Mas é justamente no "d esv io ", entendido como afas­ tamento de direção ou posição normal de uma ordem , que ela opera. Ou podemos mesmo dizer que só aí - na enunciação dessa ordem oblíqua - ela se constitui como Arte. E esse desvio atravessando a contingência natural das coisas, é o que vai permitir repor a consistência "sen sível" do mundo enquanto fato e problema estéticos. Um pequeno vidro entorna, estranhamente, uma quantidade incon­ gruente de líquido vermelho, mais adiante, uma pia inclinada jorra, obliqua­ mente, água vermelha de sua torneira. E a perturbação do vermelho - "dreadfull thing , the fiercest note - expande sua conotação misteriosa e aterradora. O desvio que alinhava, impecável, as bordas do real, transparece na substância líquida que transborda. Tudo se dá como se a interioridade fosse um contínuo implausível, assustadoramente maior do que o corpo que a contém. Assim a obra 562

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se presentifica - na materialidade do ambiente vermelho e na dissolução das substâncias vermelhas que a percorrem, pois é justo que a imaginemos cheia de condutos misteriosos. Tanto quanto em Matisse, a cor na obra de Cildo é o fator que per­ mite aproximar elementos e situações díspares. É ela que "instala" o espaço e promove a densidade sensível da obra. Não vemos somente o vermelho. Estamos "instalados" no vermelho. Na extensão do vermelho, ao redor e aos nossos pés, percorremos a consistência expansiva e modular de sua cor. Não só aos olhos, mas a todo o corpo, essa possibilidade se prolonga. Significa que é todo esse "corpo"- na posse de suas faculdades e potencialidades - que enxer­ ga" a cor. Radicalmente vermelhos "estamos - dentro e fora. As paredes \ermelhas são a metáfora desse mundo paradoxalmente

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carnal

e translúcido.

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Pulsante. Como se fosse possível, voltarmos os olhos para dentro de nosso corpo, e dali a visão se fizesse perplexa. Ao dizer isso, no entanto, percebemos que não poderia existir mais um interior - corpo - e um exterior - sala. Experimentar a intensidade "ambiental" do vermelho, de certa m aneira realiza essa conjugação na qual a suposta interioridade estende-se e se volatiza na luminosidade atmos­ férica da cor "instalada" - e vice-versa. Compreendemos, por fim, que "D esvio para o vermelho" conduz ao ponto exacerbado - cromático e "espiritual"- do "estar", do "lugar" da existência enfim. E da anterior "fam iliaridade" do am biente - onde repousavam, plácidos, objetos e mobílias comuns - passamos a sentir a enigmática presença opaca de "coisas". A nti-arte A m biental

"Habitar um recinto é mais do que estar nele, é crescer com ele, é dar sig­ nificado à casca-oco".<15) A proposta "am biental" de "D esvio para o vermelho" encontra referência imediata na própria experiência da arte brasileira. Antecedendo em quase vinte anos a obra de Cildo Meirelles, no contexto tumultuado da década de 60, Hélio Oiticica, artista e teórico, trazia à discussão reflexões e considerações acerca de um novo "comportamento perceptivo" na arte contemporânea. O termo "Anti-arte Ambiental", procurava conceituar um novo campo de investi­ gações e, em essência, liberar as Artes Plásticas de suas convenções tradicionais, propor participações mais significativas do espectador. Desde já observamos que a concepção de "espaço ambiental" adquiria no âmbito da arte brasileira conotações subjetivas e vivenciais. "O ver­ dadeiro fazer da obra seria a vivência do espectador". H6) Essas idéias e produções, por sua vez, derivavam com toda certeza das experiências desenvolvi­ das pelo Movimento Neoconcreto. O Movimento Neoconcreto se caracterizou justamente pelo caráter experimental. Partindo das idéias construtivas segundo o modelo da Arte Concreta, acabou por com preendê-las de modo mais livre e amplo, resgatando assim a noção de subjetividade. Apesar de manter certos vín­ culos com a ideia de transformação social através da Arte - legado do movimen. , tmt'VO SUas U^ 'as permaneciam num terreno especulativo. É nesse amb.to experimental e no processamento de suas idéias e produção, que o Neoconcrehsmo age, transgredindo as normas da Arte. nalmentp num™ 11-'"10. esPaÇ<1 - a experiência Neoconcreta baseava-se principalmente numa orientação fenomenolóoíra o « rHHn instrumental mas um coninnfr» h« klca- ^ esPaÇo Neoconcreto não é um dado ti conjunto de vivências intensam ente experimentado. 564

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" Um campo de projeções e envolvimento" <17). E é justo através da vertente que operava de modo a romper com os postulados construtivistas, Hélio Oiticica, Lígia Clark e Lígia Pape que podemos aferir propostas mais radicais. Os "bichos" de Lígia Clark são, neste sentido, decisivos para compreender esse novo campo de atuação da Escultura, no limiar de sua ruptura. A ênfase sobre a participação cada vez mais ativa do espectador dirige-se para a superação do objeto como fim da expressão estética. As novas propostas que surgem na década de 60, ora se lançam às modalidades vivenciais dos objetos ou de "apropriações" de coisas, ora se deslocam para o campo de manifestações "am bientais". Revitalizar a linguagem da Arte, aproximá-la das questões existenciais, inserí-la no mundo real, eram os preceitos que regiam as manifestações vanguardistas da década. Arte não seria mais a produção de "objetos" estéticos para o consumo de uma minoria, mas uma experiência liber­ tadora. Isto implicava uma nova posição do artista frente à sociedade. Seu "dever"social era, justamente, estender os processos criativos ao público. "Tropicália", a obra síntese de Hélio Oiticica, transformou-se no Hélio Oiticica Penetrável, 1969 (maquete) Do livro: Projeto Construtivo Brasileiro

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símbolo por excelência desse "desejo"e dessa vontade libertadora dos anos sessenta. Concluída em princípios de 1967 e exposta em abril do mesmo ano ela seria, nas próprias palavras do artista, a primeira tentativa consciente e objetiva de impor uma imagem obviamente "brasileira ao contexto atual da Vanguarda e das manifestações em geral da Arte N a c i o n a l . O s elementos im agctkos, usa dos pelo artista, como bananeiras e araras, a construção pobre, típica das ta\ elas, representavam o ambiente tropical e a face 'negativa da sociedade brasileira, marginalizada nos morros. Mas Oiticica enfatizava que tais elementos, apesar de seu manifesto conteúdo, não encontrariam sentido se não fossem considerados os elementos vivenciais diretos/19) "Tropicália,,não é pois uma "representação". Conhecê-la implica "penetrá-la". Pisar na terra, conduzir os passos incertamente por corredores apertados e labirínticos para, ao final, deparar-se com uma escuridão onde uma TV funciona continuamente. Trata-se de um barraco de favela, quem já entrou num, o sabe. E, na mesma clave, é o "lugar" inapropriado, vazio e deserto da contingência existencial humana. Todos os "penetráveis" conduzem sempre a esse mesmo lugar, "sem lugar" - a esse núcleo que " devora" - o que leva Oiticica a caracterizar o penetrável "Tropicália" como a obra mais antropofágica da arte brasileira. Assim como na sala - ambiente de Cildo M eirclles, compreendemos o espaço de modo afetivo e "envolvente", porque aí estão cifrados os signos cotidianos de nossa existência. Não são "am bientes" abstratos descontextualizados. Mas espaços concretos, reais, que, no m esm o movimento familiar que aproxima e envolve, nos lançam à circustância insólita e incerta do sujeito no mundo. O mundo é o que percebo, mas sua proxim idade absoluta, desde que examinada e expressa transform a-se também, inexplicavelm ente, cm distância irremediável . (20) O Conceito de Instalação

O conceito mais amplo de Instalação foi gerado, sem dúvida, no contexto experimental dos anos sessenta. No entanto, ao que tudo indica, a posse efetiva do termo só pode ser verificada a partir da década de setenta/21) Dos múltiplos conceitos e termos que o experimentalismo desse período nos legou In Situ, Site Especificity, Objeto, Ambientação e outros - o termo Instalação parece ser hoje aquele que a prática artística tomou para si , visando catalizar justa­ mente as várias qualidades e condições manifestadas por cada um deles. Existe, certamente, um princípio genérico na sua conceituação. Como 566

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Walter De Maria New York Earth Room, 1977 Dia Center for the Arts

vimos, o termo não chega a qualificar a especificidade da obra. No seu âmbito estão circunscritos desde obras minimalistas e Land Art, até trabalhos de caráter metafórico. Tal elasticidade conceituai, nada categórica, é intrínseca à sua condição. Diríamos que ela prescinde da necessidade de um suporte ou matéria específica para sua realização - como o necessitam a pintura ou escultura. Pode no entanto, utilizar vários recursos plásticos e ser uma "outra coisa". A Instalação pode ser sim­ plesmente o "vazio". Sabemos disso desde que Yves Klein "instalou" sua "Exposition du Vide" em Paris, no final dos anos cinquenta. Esta "outra coisa" que a Instalação afirma está inscrita nitidamente nas análises feitas até agora. E o que parece ser a circunstância mais evidente de sua proposta é a possibilidade deste "evento", constituído por uma unidade tripartida: sujeito - obra - espaço. Na verdade, só devemos chamar "obra" à totalidade resultante da relação entre a coisa instalada, o espaço constítuido por sua instalação e o próprio espectador. Pois este não se encontra fisicamente fora da obra, a con­ templá-la como realidade virtual. Ao contrário ele a ' habita . Alojado ali, sua visão toma posse da circunstância imediata da obra. Ou,também é possível, dialéticamente, que na operação de apropriação desse espaço, ela venha a nos expulsar. Penso aqui, particularmente, na instalação de Walter De Maria, New York Earth Room". O artista ocupa a galeria com toneladas de terra preta e interGÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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diH nossa entrada: se o fizéssemos, a laje cederia ou estaria na iminência de ceder: o peso da terra lotando a sala é a medida máxima perm.hda pelo calculo tstrutural

..[nsta|ar" apr0xima-se efetivam ente de alguns de seus

sentidos literais: "tomar posse, investir, estabelecer, dispor para func.onar, alo,ar, abrigar...'^22) „ Compreendemos como esse espaço foi sendo gradualmente apro­ priado" pelas experimentações artísticas. Desde a abordagem formal e prag­ mática do espaço de exposição, própria aos m inim alistas, até Robert Smithson que a retoma para aventurar-se no espaço aberto e contingente do mundo, na sua paisagem natural.Essa abertura para as possibilidades espaciais do mundo tanto em Robert Smithson, como em Walter De Maria, Michael Heizer e outros não significa somente um deslocamento físico em relação às ambiguidades e limitações dos espaços institucionalizados mas com preende uma ampliação e repotencialização do fenômeno Arte. A geração de 1960, encontrou no texto de Merleau-Ponty, as análises de "uma espacialidade sem coisas, as quais concederam o lastro intelectual e teórico pra suas preocupações..."^)' A fenomenologia de Merleau - Ponty prossegue a tentativa iniciada por Husserl de uma "volta as coisas mesmas", não as coisas em si, mas a "inten­ cionalidade" das coisas imediatas. Significa a possibilidade de localizar a coisa em "ato" e organizar o saber desse momento que contitui o mundo. Robert Smithson, entre outros de sua geração, compreende a dialética instaurada por esse "corpo pensante" da Fenomenologia, que pretende romper com a dualidade da metafísica ocidental, as contradições entre o sensível e o inteligível, a essência e a aparência. A convergência desse gênero de pensam ento artístico com o pensa­ mento de Merleau-Ponty não foi casual. No cerne de suas manifestações estava desde o início, a necessidade de redefinir as questões da Arte, repensá-la enquan­ to experiência fundamental do sujeito no mundo contemporâneo. E o mundo não e mais coisa dada, objetivada pela ciência, e sim o processo contínuo e renovado de constitui-lo enquanto mundo. Neste sentido, a Arte seria meio e instru­ mento desse saber . O que implicaria uma reform ulação conceituai de sua própria prática enquanto Arte. Resultando em uma prática, não mais definida a priori, mas radicada na experiência sensível do artista. Esse novo redirecionamento da Arte levou-a contudo, posterior­ mente a superva orizar o "processo"e a "idéia"da Arte em detrimento do obje­ to estetico. Esta desmaterialização"da obra, visada pela Arte Conceituai, não consegum, entretanto, ,solar o núcleo resistente da criação artística - a idéia ou 568

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FERNANDA JUNQUEIRA

conceito - do corpo manipulável da exposição".<24) "En revanche, ce que I 'Art Conceptuel a mis en avant, par son propre retrait du monde materiel, c ’est le referent, fragment, ou qualité du réel présent là dans l'espace et le temps de la sitution de mise en vue". <25) Superadas as contradições e exigências de pureza que delimitavam as conceituações da Arte, a prática da Instalação procura hoje atualizar tanto os procedimentos teóricos da Arte Conceituai quanto investir na "materialidade sensível" do mundo.Sua mobilidade plástica e conceituai permite uma plurali­ dade de recursos e aceita todo gênero de associações metafóricas. Consciente deste apresentar-se como sua realidade primeira e que constitui a experiência imediata do espaço, tenta dispor da matéria "real"do mundo com a mesma desenvoltura com que a verdadeira poesia se apossa do "enigma" da palavra. N o tas

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SMITHSON, Robert. The Writings o f Robert Smithson, New York University Press Idem. Idem. KRAUSS, Rosalind. A Escultura no Campo Ampliado. In Revista GÁVEA, n°.l KRAUSS, Rosalind. Passages in Modern Sculpture, Ed. The Mit Press Idem. STELLA, Frank, in KRAUSS, Rosalind. Passages in Modern Sculpture. KRAUSS, Rosalind. Passages in Modern Sculpture, Ed. The Mit Press GRIMP, Douglas, in "Redifining site especificity", Richard Serra Sculpture. SERRA, Richard, in "Redifining site especificity", Richard Serra Sculpture. GRIMP, Douglas, in "Redefining site especificity", Richard Serra Sculpture. SMITHSON, Robert. The writings o f Robert Smithson. BRITO, Ronaldo. Texto de apresentação da Instalação Desvio para o Vermelho MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. Ed. Perspectiva OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Ed. Rocco

) ) ) ) Idem. 17 ) BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. Ed. Funarte 18 ) OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto. Ed. Rocco

( 19 ) Idem. MERLEAU- PONTY, Maurice. O visível e o invisível. Ed. Perspectiva í 20 ) Com o comprova o levantamento feito em revistas especializadas de Arte ( 21 ) entre os anos 60 e 70, na biblioteca da "University of New York", N.Y., 1992. ( 22 ) Dicionário Aurélio Buarque de Holanda. ( 23 ) KRAUSS, Rosalind. Richard Serra Sculpture. POINSOT, Jean Marc. "L'In Situ et la circunstance de sa mise en \ue Musee . ( 24 ) U s Canhiérs Natinal D'Art M oderne du. Centre Georges Pompidou, n. 28,1989. ( 25 ) Idem.

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N a tu reza M o rta , I9 6 0 F re d e ric k e M a re ia W e is m a n B e v e rly H ills


Morandi O aparente contraste nos desenhos de Morandi entre a validade da sua imagem total e a incerteza do traço trêmulo ao qual ela é confiada leva Cesare Brandi a se valer da lin­ guística para constatar que "a linha incerta ou trêmula não refere-se ao plano da expressão mas pertence à forma do conteúdo." A trajetória artística de Morandi, através de suas aproximações a divergências em relação aos vários movimentos que, desde 1911 suce­ deram-se na arte européia, do futurismo ao cubismo, à pintura metafísica de De Chirico e Carrá até o contato mais profundo com Cézanne, revela a autonomia, deste grande artista, da cultura figurativa. Com seu processo criativo Morandi soube transformar a ínfima relação com os simples e humildes objetos do seu quotidiano em obra "de alta alquimia cromatico-luminosa". A incerteza do traço Aproximações e divergências da arte européia século XX Artista humilde e sublime

CESARE BRANDI

(1906-1988) Tradução de Maria Pace Chiavari Foi professor de História da Arte na Universidade de Palermo e mais tarde na de Roma. Amigo, cor­ respondente e crítico de Morandi, publicou seu primeiro texto sobre o artista em 1939 e o último em 1984. Escreveu, entre outros, os seguintes livros: "Dialoghi delia Pittura, delia Poesia, delia Scultura e deli' Architettura" (1945-1957), "Segno e Immagini"(1960), "Teoria dei Restauro" (1963), "Struttura e Architettura” (1967) e “Disegno delia pittura italiana" (1980).

Lembrança de M orandi

Ainda poucos meses atrás, ao vê-lo, diziam, é um carvalho, Morandi, vai chegar aos cem anos. O que parecia um fácil vaticínio era reforça­ do pelo fato de que só ele, entre os artistas de sua idade, continuasse a pintar mantendo um nível muito alto sem nenhum daqueles sintomas de senescência que empobrecem uma imagem, aparentemente a mesma. Como tinha pintado quando jovem, ainda pintava paisagens e naturezas mortas: como tinha começa­ do a pintar, muito cedo, em via Fondazza (1)eem Grizzana,(2) assim continuava a pintar em Grizzana e em via Fondazza. Eram sobretudo, senão as mesmas paiGÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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saeens, os mesmos objetos cobertos de pó, am ontoados ma.s que alinhados, num canto de seu atelier. Mas são justamente esses objetos, que rejuvenesciam prodieiosamente na passagem do olho à consciência, os mesmos que me pareciam, quando os revia no atelier, cada vez mais velhos, cada vez mais empoeirados e caídos, como se tivessem já concluídos, há muito tem po, suas existências de objetos. Enquanto que, para M orandi, eram o lume misterioso que se inflamava como na primeira vez que os descobrira, substraindo-os do fluxo quotidiano da vida. Como na primeira vez, mas não da mesma maneira, porque a arte de Morandi não foi imóvel, não se transmitiu de ano em ano como se reproduzisse de uma célula formal idêntica. A insistência no mesmo tema, ao invés de enfraquecer a expressão, dava ao artista a segurança para rarefazer ou bloquear ulteriormente a imagem, exatamente como nas variações sobre um motivo em que as sucessivas elaborações não enfraquecem nem empobrecem a primeira exposição. Assim resultavam aquelas imagens: com o que investidas ou por uma luz lunar ou pela luz da memória, pela luz do dia ou por uma luz depositada como poeira sobre suas superfícies. Estavam sempre para além da luz do ambi­ ente em que se encontravam, como se aquele pequeno quadro fosse uma janela aberta para um outro mundo. Aquele mundo astral da forma, ao qual também parecia pertencer Morandi, incorruptível no lenho duro e tenaz em que parecia esculpido. Assim o tinha revisto, apenas um ano atrás, quando de uma sua vinda a Roma: no entanto, talvez o mal já estivesse incubando, aquela doença inexo­ rável que iria pegá-lo pela garganta como um assassino. Bem diferente era seu aspecto quando fui visitá-lo pouco mais de um mês atrás. Morandi já estava estendido na cama mas, felizmente, não sofria, pensava padecer das sequelas de uma pleurite e esperava todavia se levantar e retomar seu trabalho. Ficara feliz cm \er me e não queria deixar-me ir embora, enquanto que eu temia cansá-lo, eu que sabia e de\ ia fingir que acreditava naqueles projetos de trabalho pungentes: expunha os a mim com um fio de voz que descia m ais rico de luz que de voz em eio à barba branca. Queria antes que fosse ao lado, em seu atelier, para ver as últimas coisas que tinha pintado; um m inúsculo quadrinho com flores, para um suíço, e uma natureza morta. A matriz da natureza morta estava ainda e a mesa, pobre e humilde com o sempre: a natureza morta pintada era pinao rn pc uca cor em malhas largas, por assim dizer, resplandecente e opaca, ao mesmo ipmnn — 1_

velozes, " l — P *""— tor que a Itália tevo Hf. a ‘ , l cm clue e ^e soubesse, a obra do maior pinq leve depols da morte de Tiepolo. O pinfor que devolveu Ifália, GÁVEA. 14 (14), setembro 1996


CESARE BRANDI

durante cinquenta anos, a própria autonomia da cultura figurativa. Com isto, certamente não quero considerar Morandi uma expressão autóctone, o que seria elogio insulso, antes condenação, porque significaria algo de popular: Morandi escolheu a nova tradição pictórica, que era a herança do impressionismo, e com ela reatou, mas foi a partir daí que começou seu caminho, escavando-o paciente­ mente num terreno virgem ou abandonado. Sempre presente e vigilante, pronto para corrigir seu rumo mas nunca para invertê-lo, Morandi, ainda em vida e há tempos, era um clássico que milagrosamente trazia seu classicismo para o pre­ sente histórico, sem precisar do passo atrás que impõe o passado. Sua pintura tinha vencido de modo tão absoluta que podia se permitir ser diversa de tudo que lhe estava em volta e não ser antiquada e, enfim e sobretudo, não ser nunca segundo a própria maneira. Por isso a pintura de Morandi, Morandi ainda vivo, era como se tivesse já recebido o julgamento da posteridade. Privilégio, acredito, de que só alguns, muito grandes, gozaram e que, afortunadamente, na sua modéstia, apesar da qual não lhe faltava consciência de seu valor, Morandi saboreou. Com efeito, até o fim ele pôde se dar conta que o tempo não tinha ofus­ cado seu nome, não tinha prejudicado a admiração que se alastrara à sua volta. Tampouco deve tê-lo amargurado a dúvida, a pior para um grande artista; a de não ter produzido obra válida. O fato de ter-me feito ver suas pinturas recentes me dá certeza de que, até o limiar extremo, o abrigo imaterial e luminoso da arte não veio a lhe faltar. (1964) Os Desenhos de M o ra n d i

Os desenhos de Morandi, mais que as gravuras, onde a imagem recebe uma formulação lentíssima, com os contínuos cruzamentos de hachuras que se sobrepõem precisas e insistentes como fios de chuva, se apresentam um dilema que, creio, jamais tenha sido oferecido com tamanha crueza por desenho algum. O dilema é o seguinte: a imagem é enquadrada, trazida à luz de repente, como que tirada de uma gaveta: sua presença é indubitável. Eis, porém, que os contornos, aos quais a imagem é confiada, são trêmulos, incertos, podem até parecer traçados pela mão vacilante de um velho ou de uma criança. Alhures, relacionando os desenhos com as pinturas, expliquei a razão, uma razão formal, pela qual aqueles contornos ondeiam, tremem. Mas agora pretendo seguir um caminho diferente, pelo menos em parte. Ainda que, em sua maioria, tenham sido seguidos, ou por uma pintura a óleo ou por uma água forte, esses desenhos não são exatamente trabalhos preparatórios. Mesmo porque o elemento primário que utilizam, a linha, na pintura vai desaparecer, pelo menos naquilo que lhe é próprio. E, também nas gravuras, não se haverá de encontrá-la naquela forma GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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M o ran d i

porque, então, é o escalonamento luminoso e crom ático dos planos, obtido com a diversa intensidade das hachuras e do cruzamento das mesmas, que irá deter­ minar a epifania da imagem. Nos desenhos, ao contrário, as hachuras ou o esfu­ mado são levíssimos; acompanham, não se antecipam ao delineamento, \eloz mas como se fosse incerto, claudicante-do que se aproveitarão descaradamente os falsários. É este então o dilema: aquele tremor da linha não será só um estu­ do preparatório, uma fase, da imagem definitiva? Ou, ao contrário, a imagem definitiva será a do desenho, sem a pretensão de remeter nem á pintura nem à gravura? Em se tratando de um artista cuja obra teve um altíssimo conteúdo for­ mal, conservado pelo mesmo até o fim, não me parece qe seja um problema a ser desprezado. Além disso, é preciso lembrar que Morandi não subestimava abso­ lutamente seus desenhos: muitos são assinados e datados, nem mais nem menos do que as obras pictóricas e as águas-fortes. Assim, uma pergunta nos persegue: se não sobrevivesse nenhuma obra de Morandi além de seus desenhos, cada um destes seria digno de ser con­ siderado em si, sem a referência obrigatória às telas ou às gravuras? Nestes desenhos há uma estrutura assim tão coerente a ponto de podermos incluí-los entre as obras de arte autônomas e não subsidiárias da pin­ tura ou da água-forte? tsta análise, que me parece irrecusável, qualquer que seja sua con­ clusão, delineou uma oposição binária entre a validade da imagem total, tal como se produz sobre o papel, e a incerteza do traço que a realiza. Assim enucleada, esta oposição leva, então, com o conseqüência lógica, a constatar que os dois termos da oposição não são independentes um do outro, não podem ser examinados separadamente, fenomenologicamente, devem antes ser apreendi­ dos, juntos, nessa oposição. O que significa, caso o raciocínio esteja certo, que o determinar-se da imagem de um desenho de Morandi não fica enfraquecido pelo desenho trêmulo e que, por outro lado, este contribui de modo eficaz para a va­ lidade da imagem. A este ponto, nos damos conta, porém, que o raciocínio voltou a si mesmo: a constatação da validade da im agem tinha sido feita no começo, e o que nos estimulava a tentar entender era com o a imagem pudesse ser coextensiva a um traço de contorno tão incerto, irresoluto, trêmulo. Então a contradição existe, mas é aparente: a verdadeira oposição é entre, de um lado, um traço de contorno, rígido ou mesmo dútil, mas com o uma régua de chumbo, e, do outro, o traço trêmulo que não é “referencial" desse tremor. A oposição que estabelece então e entre um traço de contorno meramente referencial e outro que, ao contrário, é referencial só em parte. Talvez assim deu-se um passo à frente. 574

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CESARE BRANDI

Natureza Morta, 1953 Coleçào Particular

Porque, afinal, onde está o traço meramente referencial? Não esta no desenho, mas na interpretação que nós damos à imagem como referente e, então, e só então, o traço torna-se um traço tremido, porque as coisas não tremem na natureza, a não ser que o ar quente se interponha entre nossa retina e o objeto: como acontece no verão na praia ou nas ruas cobertas de asfalto superaquecido. GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Logo, a nossa interpretação do traço tremido refere-se simplesmente ao objete anterior ao desenho que pressupomos como matriz do próprio desenho. E de que modo o pressupomos, pode-se perguntar. É conhecido de todos, chegou ate a ser objeto de referências fotográficas, o fato de que Morandi compusesse suas naturezas mortas com uma minúcia que chegava até a tingir os objetos, pelo menos em parte: nem a poeira sobre as garrafas tinha outra razão que não fosse a de "fazer" cor. Então não inventamos nada quando retroagimos de uma natureza morta à natureza real ou à paisagem. Esta, aliás, (ou não fui eu mesmo que já o relatei) na maioria das vezes, era uma paisagem longínqua, olhada com o binóculo, mas, em virtude da distância, afetada por aquela bruma, inapreensível e luminosa, que, em vão, tantos, na época, procuraram arrancar do mestre, não chegando senão a um confuso claro-escuro. Mas quando passamos, por mais legítimo que possa parecer, do desenho ao objeto ou ao assemblage de objetos que o precedeu, não ficamos no mesmo nível. Da mesma maneira que não ficamos no mesmo nível quando, cindindo o plano da expressão daquele do conteúdo, no exame do significante ou do significado de um signo lingüístico, distinguimos uma forma e uma subs­ tância. Naquilo que a imagem tem de referencial, ela é assimilável ao signo lingüístico e pode-se tentar reconstruir sua estratigrafia, do mesmo modo que distinguimos no significante dois strata, a "form a" da substância fônica de que é composto e quando, no significado, distinguimos igualm ente a "form a", ou seja, como diz Barthes, na esteira de Hjelmlev, a organização formal que assume o significado, por ausência ou presença, de um sinal sem ântico, e uma substância, e isto é sentido "positivo" e as conotações que a ela aderem. Por exemplo: o vocábulo rosa, como significante tem sua forma na forma gramatical que lhe é reconhecida (substantivo feminino singular) e a substância no agregado fônico do qual e o resultado; no que concerne o significado, reconhecer-se-á sua subs­ tancia no esquema preconceitural que subentende o vocábulo e, sua forma nas varias opos.çoes da rosa em relação ao reino mineral e animal etc. Por exemplo, se digo que a rosa tem quatro patas, a asserção é inaceitável por causa da subsÜm?ém° S‘S P7 Ue * rosa pétalas, não pernas, mas é inaceitável também por causa da orma do significado, porque a rosa pertence ao reino vegetal e nao ao animal: se passarmos do campo linguístico, onde a noção de forma do significado revela-se particularmente árdu-, , . ? nhamos, a gastronomia, e tomarmos como exemplo u m " * Y ° Camp° ' SUf><>‘ dade de signo, ele se deixa analisar, no ^ 7 ” qUa' “ como é cozinhado - e terá a substância do peixe conTo <=• fi faVeS manelra P xe como significante -, enquanto o 576

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CESARE BRANDI

modo como se apresenta representará a forma: no fato de ser peixe comestível \ê-se a substância do peixe como significado e, no fato de se opor à carne como símbolo do dia de abstinência católico, reconhecer-se-á a forma do significado. Experimentemos agora aplicar essa análise aos desenhos, e, então, aos desenhos de Morandi. O plano da expressão é determinado pela técnica peculiar utilizada, linha de contorno, hachuras, claro-escuro e bico de pena, a lápis etc.: mas aqui distinguiremos a forma na técnica peculiar e a substância do material empregado: passando ao conteúdo, o que se representa é a substância, enquanto a forma será identificada pela específica caracterização espacial, lumi­ nosa, cromática. Uma vez feita essa distinção, voltando aos desenhos de Morandi, descobre-se então que a linha, à qual se confia Morandi, pertence à forma da imagem como signo considerado no plano da expressão mas, em virtude da situação espa­ cial que caracteriza o fato de aparecer, ela pertence à forma do conteúdo. O fato, pois, de a linha ser não resolvida, incerta ou tremida não se refere ao plano da expressão, mas ao do conteúdo. Consideremos então um desenho infantil qualquer. Diante dele, uma vez que nossa atenção dirige-se só à imagem como signo, independente­ mente de valores formais presumidos, poderíamos distinguir o plano da expressão daquele do conteúdo. Aqui, a hesitação, o desleixo no traço linear pertencem igualmente à imagem como significante; quando passo, porém, a examinar a mesma imagem no plano do conteúdo, percebo que, enquanto cabe à substância representar uma certa coisa do mundo exterior, a forma do conteúdo não se apresenta como uma organização formal, apresentar-se-á como carência de estruturação, tanto espa­ cial quanto cromática... O conteúdo, ao invés de se organizar como denotcitum em si, limita-se a sugerir, por aproximação, o ponto de partida existencial ao qual se refere o denotatum. Considerado como signo, o desenho infantil, então, é carente, no plano do conteúdo, da forma do conteúdo. Uma vez estabelecido este ponto, voltando ao desenho de Morandi, descobrimos que a linha incerta ou tremida é função da nova estruturação espa­ cial-luminosa que o conteúdo deve assumir para realizar a presença determina­ da que Morandi pretende. No desenho infantil, ao contrário, o conteúdo incerto e aproximado procede de uma forma incerta e rudimentar. A relação então se inverte, porque, em Morandi, aquela específica qualidade do traço linear deriva da nova estrutu­ ração que o conteúdo assume em oposição ao dado natural, enquanto que, no desenho infantil, a oposição ao dado natural é só aparente, como consequência GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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M orandi

Natureza Morta: Três estudos 1948 Coleção Particular Bolonha 578

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da incerteza do significante. Em Morandi, o conteúdo precede, enquanto no desenho infantil precede a expressão... Este resultado é paradoxal só na aparên­ cia e corresponde exatamente aos resultados de uma análise estabelecida a par­ tir do ponto de vista da presença, da pura forma e, na qual se reconhece que a linha trêmula, aparentemente incerta, é função da vibração luminosa e da situ­ ação espacial, não tridimensional, tampouco bidimensional, e que Morandi pre­ tende alcançar. Essa última analise poderia parecer uma interpretação con­ fortável, destinada a eludir o problema, um fazer da necessidade virtude, enquanto que, formulada no plano linguístico, a análise permitiu reconhecer facilmente que a aparente falta de resolução linear no plano da expressão toma­ va-se nova estruturação graças à forma do conteúdo; não era portanto a linha que determinava a imagem, mas sim a imagem que determinava a específica acepção da linha: enquanto que, no desenho infantil, a indecisão passava do traço linear para o conteúdo intencionado numa substância elementar, sequer estruturado de novo.(1968) 0 Instante Fugaz

Precisaria um proêmio, no gênero daqueles que Vasari redigia para introduzir a história dos seus artistas, para dispor condignamente a vida humilde e sublime de Morandi na Bolonha dos primórdios do século XX. Humilde, porque foi dotado da mais sincera discrição e da modéstia mais desar­ mada; sublime, porque nenhum artista italiano foi maior que ele; e, também no panorama europeu, no sentido da qualidade, ainda que comparações entre artis­ tas e avaliações devam ser evitadas, não foi inferior a ninguém. Diferente radi­ calmente de todos, Morandi, permaneceu diferente ao longo de todo o seu ca­ minho: a alternância dos vários movimentos que desde 1911 sucederam-se na arte européia não fizeram antes senão acentuar a diferença e suas divergências, depois daquela primeira e fugaz aproximação ao futurismo e ao cubismo. Uma aproximação que Morandi, intimamente, depois, recusou asperamente, com também aquela, brevíssima, à pintura metafísica que, no entanto, teve alguma influência em suas primeiras publicações artísticas, até 1920, ainda que segundo modalides nada semelhantes às de De Chirico e de Carrá. Na realidade, a pintura de Morandi fica como uma ilha na arte européia do século XX, mas não nasce como fenômeno relegado à proviria, e que o isolamento artístico de Bolonha teria justificado. Mesmo viajando muito pouco e nunca para o estrangeiro, Morandi orientou-se pelo que via nas raras publi­ cações de arte moderna, pelo pouco que chegou a Bolonha da tempestade futu­ rista e do nascente Cubismo. Move-se, portanto, em meio ao que tem de melhor GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Natureza Morta, 1959 Coleção Particular

na nova tradição figurativa que surge com o Futurism o e sobretudo com o Cubismo, no pouco que pôde ver reproduzido, e sobretudo Picasso e o primeiro Derain, antes que se tomasse por demais prudente. É daqueles anos atormenta­ do um cactus, daqueles com gomos e forma esférica, de uma beleza parecida com a de um turbante quatrocentista que, mais do que o Cubismo, lembrava Piero delia Francesca e os marcheteiros nativos de Lendinara. Atrás daquele cac­ tus, Morandi tinha pintado um auto-retrato, claramente cubista, mesmo sem fratura de plano, só com uma volumetria densa, firme, m as com uma luz "pierfrancescana". Morandi, parece incrível, considerava-o uma vergonha na sua vida, e não ficou satisfeito enquanto não conseguiu recomprá-lo e destruí-lo. Ainda existe, no entanto, reproduzido na revista Valori Plastici. Quanto à pintu­ ra metafísica, esta nasceu perto de Bolonha, em Ferrara. Mas o que Morandi dela extraiu, foi só o sentido de um espaço rarefeito, estranho à realidade, e, sobretu­ do, nele imergiu aquela luz antelucana que acaricia e torneia os manequins e as garrafas, que fazem sua aparição já em 1918-19. Aquela luz tem muito a dizer sobre o clima figurativo de Morandi: e a luz do Giotto de Assis (ele foi a Assis 580

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CESARE BRANDI

com Riccardo Bacchelli) e sobretudo de Masaccio e de Piero delia Francesca. Assim Morandi foi logo à fonte viva e indestruvível da grande pintura italiana, que dsde o Giotto de Assis até o último Canaletto e ao Tiepolo, alimenta cinco gloriosos séculos de pintura. O único contato com os modernos, que Morandi aceitasse era com Cézanne, mesmo o conhecendo só de ouvir falar; daquele gigante, porém, era suficiente uma gota para vivificar, como uma pitada de fermento para fazer crescer a massa do pão. Sua primeira paisagem, de 1911, agora desaparecida, tem uma estrutura simples de cristas e sulcos, com uma cor que é pouco mais que o claroescuro, numa luz mesclada de ar e da bruma leve das colinas de Bologna, que Morandi tanto amava. Aquela paisagem, tão concisa e firme, não teve seqüência conhecida. Morandi dirigiu-se alhures, começou as naturezas mortas à maneira de Boccioni - as "Bagnati allungate", estas realmente "cézannianas". Até começarem aquelas naturezas mortas sólidas como de mármore e claras como a lua. São poucas e de uma beleza sideral, raríssimas e, por isso, sem preço. Chegase assim a 1920, quando acontece a mudança a olhos vistos. A rarefação metafísi­ ca pára de repente, a atmosfera se adensa, a cor ganha espessura. Começam aquelas disposições de objetos como se fossem peões, sem qualquer referência a almoços ou a mesas de trabalho, objetos pobres, como os de um convento franciscano, de homem pobre, como era Morandi, nascido de pais pobres e não de intelectuais. Mas aquela cor que se coagula torna-se sempre mais submissa e, paralelamente às pesquisas para as gravuras, dispõe-se de um modo que é fun­ damental para entender, na sua essência, a pintura de Morandi. É o que alhures já chamei (1939) de cor de posição. Consiste num fato elementar, notório, aliás, a qualquer um que se interesse por gravura: o de vari­ ar, com a diversidade das hachuras ou só com o contorno, o tom de uma área em relação a uma outra contígua. A diversidade das hachuras não constituem senão um diferente título de luz projetado na área e, além de valer como luz, sugere uma tonalidade diferente, subentende um pigmento que contrasta com aquele que está ao lado. Ora, este sutil artifício, Morandi o transfere à pintura para obter uma fusão luminosa mais intensa, e, diria, um olhar contínuo, como uma inin­ terrupta emissão luminosa. Morandi, então, não procura obter um tonalismo numa base monocromática: Morandi nunca pintou um monocromo. Mas aquele equilíbrio supremo de tonalidades, mesmo afastadas entre elas, é obtido gradu­ ando o índice de luz de cada área cromática, independentemente da colocação espacial, que pode comportar, sobretudo nas paisagens, ajustes prospéticos de cor. Morandi não tirou de modo algum essa sutileza quase indescritível do GÁVEA. 14 (14), setembro 1996

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Impressionismo francês, que nunca a utilizou, sendo diferente o pnncp.o espa­ cial que move o Impressionismo; ou seja, uma inversão do ponto de vista prospético, do horizonte ao espectador. Esta foi a grande descoberta dos impre­ ssionistas, não teorizada mas totalmente espontânea e imediata, que truncou de repente o desenvolvimento espacial prospético da Renascença. Daí a pintura italiana usufruir do Impressionismo, porque o Impressionismo nega implícita­ mente o princípio fundamental da referência da pirâm ide ótica ao horizonte. Morandi, então, não podia ser auxiliado, em sua obra de alta alquimia cromático-luminosa, por aquele grande movimento artístico que tinhase voltado em sentido oposto àquele - renascentista - na direção do qual, momo com uma tática diferente, dirigia-se Morandi. E digo tática porque, na pintura, a referência fica no horizonte, mas o que muda é aproximação, as abreviações, as repentinas sínteses, o supremo anacoluto de áreas longínquas improvisa mente aproximadas. Indagar, assim no interior do processo criativo de Morandi, não sig­ nifica violá-lo, nem dissolvê-lo. É o único modo para dar-se conta do quanto é consciente essa pintura altíssima, que não confia na inspiração, mas domina, con­ trola até os mínimos pormenores, e estes concordam do mesmo modo que, num período, concordam os tempos dos verbos e as pessoas, o singular e o plural. Análises desse gênero resultam obviam ente árduas e parecem se opor à solaridade, à imediatez dessa pintura, delicadam ente oferecida tanto à mente quanto aos sentidos: falar dela de modo tão difícil parece violá-la. Mas não há outro modo para fazer entender que as garrafas - aque­ las famosas garrafas - não valem como garrafas, nem subtendem alguma outra coisa. A pintura de Morandi é isenta de símbolos e de alegorias. Uma pesquisa iconológica seria tempo perdido, caso dirigida a seus objetos. Morandi os abstraía perfeitamente do contexto familiar para promovê-los, não a símbolo, mas a imagem. Tal constituição de objeto" era, nele, totalmente consciente; ele antes intensificam o estratificar-se da poeira ou, então, tingia de maneira total­ mente arbitrária as suas humildes caçarolas. Ninguém podia pretender ensinara orandi que aqueles objetos escondiam um símbolo, talvez sexual, porque a sua fabulaçao acontecia no nível da mente e não dos sentidos escondidos. Nem, por *! ' precisava mudar os seus objetos, que, do com eço ao fim, permaneceram os am r Sm e8 T Mn° COm° OS b° neCOS ^ " âo ™ . E quando um quadro corrí '" t a8nan.1/ lnslstiu Para cl ue M orandi fizesse para ele um

muito aborrecido: X d a ^ ^ q u l n d ^ M precioso e belíssimo, de que Morand',’

embaraçado e' Posso 8arantira" tÍ8° ' mUÍ'°

soa gentil e condescendente como ningu éiT f “ H ^ MaS C° m° *** 8> m, foi desencavar um pequeno violão 582

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ndi

CESARE BRANDI

de criança, daqueles que encontram-se nas feiras, e uma vulgar trompeta de lata. Assim pintou o quadro, quase todo num só tom, com uma luz clara por detrás. Aqueles eram por acaso de cristal de rocha? ou de metal precioso suas pobres cafeteiras? O que precisava para investir sua fantasia eram pobres motivos, coisas que não significavam nada por si mesmas, para que ele pudesse fazer com que elas nada significassem. Foi assim que se formou, consolidou e voou o artista mais humilde e elevado dos Novecentos. No último quinquênio de sua vida, de 1959 até 1964, pareceu que a pintura de Morandi tivesse mudado ou que estava prestes a mudar. Improvisadamente, não só no tratamento veloz das aquarelas, o pin­ cel de Morandi traçava listas largas, sem unificá-las, não relacionava os objetos a uma distância aproximada, estivessem eles sobre uma mesa ou no interior de uma paisagem. Lembro muito bem que muitos, mesmo admiradores fiéis de Morandi, que peregrinavam na direção de via Fondazza ou da casa na montanha, em Grizzana, ficavam atônitos, sem que ousassem porém uma apreciação ou arriscar uma pergunta: mas se aqueles quadros não estavam acabados... porque, então, Morandi os assinava? Porque, de fato, estavam absolutamente acabados, no sentido que a imagem muito fresca era fixada como uma flor pelo orvalho. A segurança daquelas extraordinárias pinceladas, tão extraordinárias quanto as de Velásquez (que de perto não se vê nada) garante, se se pudesse porventura duvi­ dar, que os dons de pintor de Morandi chegaram até à pintura da pintura, feita de toques, de pinceladas de raspão, sem perder uma gota daquela maravilhosa subs­ tância cromática, que era espaço, luz e cor em estado fluido como um perfume ou um líquido etéreo. Sua visão não tinha mudado, mas a aparição da imagem tinha se tornado ainda mais instantânea, vívida: o átimo fugaz. E naquele abrir fugaz apagou-se. (1984) N o ta s (1 ) Via Fondazza é o nome da rua em Bolonha onde Morandi morou toda a sua vida. ( 2 ) Grizzana é a aldeia nos Alpes italianos onde Morandi passava as férias.

Artigos publicados no livro Morandi. Cesare Brandi, Editora Riuniti - Roma, 1990.

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O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação lato sensu, foi formado há 16 anos. O Curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira aprendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar.

Coordenador Acadêmico Anna Maria Monteiro de Carvalho Professores

Anna Maria Monteiro de Carvalho Antonio Edmilson M. Rodrigues Fernando Cocchiarale João Masao Kamita Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Margareth da Silva Pereira Roberto Conduru Ronaldo Brito Sheila Cabo Geraldo

Esta publicação, além do Programa de Apoio a Publicações Cientificas, SCT/PR, CNPq e FINEP, contou também com o apoio da Fundação Nacional de Arte FUNARTE e da Secretaria Municipal de Cultura.



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