Revista Gávea - 4ª Edição

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G Á VE A Revista de História da Arte e Arquitetur

A Morte da Arte como Totalidade WASHINGTON DIAS LESSA

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BERENICE C J^LC A N TE

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J^^^B hnauet^E stétia^^oderaC ulturM fe MARGARIDA M. RODRIGUEZ RAMOS

Elementos do Barroco Italiano na Talha Joanina sONIA MARIA GONÇALVES SIQUEIRA

A Teatralidade no Barroco R e lig io s o ^ ^ ^ ^ ^ H FRANÇOIS LYOTARD

Barnett Newman — O Instante JACQUES HENRIC

Barnett Newman — Com Deus soM t Gramática PHILIPPE JUNOD

O Futuro no Passado


GÁVEA Editor Responsável: Carlos Zilio Conselho Editorial: Jorge Czajkowski (professor de Arquitetura no Brasil) Katia Muricy (professora de Estética) Margarida de Souza Neves (diretora do Departamento de História) Maria Cristina Burlamaqui Reynaldo Roels Júnior •Ricardo Benzaquem de Araújo (professor no Departamento de História) Ronaldo Brito (professor de Arte Moderna) Vanda Mangia Klabin Correspondência: Editor Responsável, revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 Cep 22453, Rio de Janeiro, Brasil

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Apoio:

Revisão tipográfica: Maria de Fátima Barbosa Reproduções fotográficas: Pedro Oswaldo Cruz Programação visual: Newton Montenegro de Lima Fotocomposição: Estúdio VM — Composições Gráficas Arte-final: Tonico Fernandes Produção gráfica: Gustavo Meyer Fotohtos e impressão: Companhia Brasileira de Artes Gráficas Instituto Nacional de Artes Plásticas, Funarte Bittencourt, S.A.


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4 Revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Departamento de História Coordenação de Cursos dc Extensão Janeiro dc 1987

3 SHEILA CABO GERALDO Barrio — A Morte da Arte como Totalidade 18 WASHINGTON DIAS LESSA Design e Estilo 33 BERENICE CAVALCANTE Etiqueta, Estética e Poder: a Cultura do Barroco 41

MARGARIDA M. RODRIGUEZ RAMOS Elementos do Barroco Italiano na Talha Joanina

61 SONIA MARIA GONÇALVES SIQUEIRA A Teatralidade no Barroco Religioso Brasileiro 83 FRANÇOIS LYOTARD Barnett Newman — O Instante 97 JACQUES HENRIC Barnett Newman — Com Deus sob a Gramática 107 PHILIPPE JUNOD O Futuro no Passado



SHEILA CABO GERALDO

Barrio — A Morte da Arte como Totalidade

“Agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto é o fim do seu início Torquato Neto, 8 de novembro de 1971 et semper

Investigar a trajetória da atividade de Barrio como artista nas décadas de 60 e 70 é também, e forçosamente, registrar sua tentativa de reelaborar o conceito de arte, abolindo a distância entre a arte e a vida. Mas para quem joga o jogo da arte como manifestação lúdica e libidinal, a identidade da arte procurada estará sempre associada ao sentido de transgressão que a torna indistanciável da vida. A operação de reelaborar o conceito de obra de arte está estreitamente ligada ao fim da concepção humanística de arte, já delineada no início do século com a crise das vanguardas históricas e que se convencionou chamar de “morte da arte”. A arte nessa concepção, ou seja, como uma totalidade, é a própria definição da relação “espacial e dialética” (1) entre Sujeito e Objeto, fundantes do real racional do século XVIII. Os artistas, que como Barrio pre­ tendem o fim da obra de arte, operam portanto com a destruição do real, já em crise, desde que também postos em crise Sujeito e Objeto, partes distintas da relação dual de conhecimento, própria da filosofia e ciência modernas. A crise do Sujeito e do Obje­ to — que regride à indistinção — é a própria perda da totalidade da obra e já havia sido percebida pelas vanguardas tanto construtivas (De Stjil, suprematismo, construtivismo russo), quanto negativas (surrealismo e dadaísmo). Entre as profundas modificações ocorridas na sociedade e na arte após a Segunda Guerra Mundial, os anos 60 e 70 herdam o desencanto do mundo e uma grande dose de ceticismo quanto às possibilidades regeneradoras da arte, que então voltase para si mesma num desafio dentro da própria ordem estética. E a produção própria da segunda revolução industrial, ou industrialização avançada, que passa de mercadoria autônoma (século XVIII) a produto anônimo, veiculado para um público indistinto e incapaz de formular juízos de valor. A produção de Barrio que se investiga está envolvida na tentativa de as­ sassinato da obra de arte anônima, permanentemente requerida como produto por um mercado que a devora incessantemente. Este assassinato não ocorre de modo sepa-


rado da busca de uma ressurreição para a arte. Procurando nas situações de vida, ou nos fragmentos de ação no m undo, a libido necessária à continuidade da arte, e assim do próprio homem, Barrio desenvolve a relação arte/vida no sentido da recuperação da vida e repotencialização da arte. Sabedor da impossibilidade da vitória da obra como um todo no universo desagregado e desagregador de seu tempo, gera, negando e afir­ mando a arte nos seus fragmentos, a própria falta de integridade que a possibilita so­ breviver. E sobretudo o trabalho com dejetos o que o focaliza no espaço de desestruturação do real racional e o introduz no que vai caracterizar toda a produção de seu tempo. Trabalhos como Situação ORHHHH... realizado no Salão da Bússola (MAM, RJ, 1969), quando trouxas de pano ensangüentadas ( T.E.) são expostas ao lado de sacos de papéis e jornais velhos, espuma de alumínio etc., tensionam a arte como instituição. A possibilidade de ser lixo, sobra, não ser inteiro, transforma esse trabalho num similar da situação do Sujeito e do Objeto: são partes do real que Barrio toca com ponta de estilete afiada e perigosa. Não obstante o aspecto fenomenológico que o trabalho assu­ me, na medida em que acontece no espaço indefinível da ação dos participantes que contribuem com o lixo exposto, ele se congela em registros. Esse ponto constante no trabalho de Barrio é mais um aspecto significativo, um a vez que seus registros (fotos, diapositivos, filmes) condensam vivências e se tornam mais tarde “obras” expostas co­ mo detentoras da aura que ele contesta. Mas, como diz Harold Rosenberg (2),o que se fez nesse período, apesar de estar destinado a suportar a incerteza de ser ou não uma obra de arte, nunca foi outra coisa senão um m ovimento de arte.


Situação------S....Ruas....Deflagrame'nto de Situações Sobre Ruas neiro, abril, 1970

O gesto apropriativo Durante toda a década de 60, a prática de apropriação havia estabeleci­ do significados para a arte que tiveram repercussão acentuada tanto na Europa com o nouveau réalisme, quanto nos Estados Unidos com o neodadá e o pop. Fazendo apro­ priações de objetos que, produtos da industrialização avançada, tinham sua carga de unicidade reduzida ou anulada, o movimento dos novos realistas diferia do pop e do neodadá no que diz mspeito à crença que os primeiros tinham na possibilidade de im­ pregnação da sensibilidade humana nos objetos-produtos-industriais apropriados. Os Monogolds, de Yves Klein, são tentativas de, estando colados ao real industrial, tocar o real. Já o pop e o neodadá, agindo dentro da própria ordem da arte, fazem apropria­ ções de objetos industriais, objetos da era da tecnologia (da informação e comunicação) e os levam a uma tal exaustão que atingem o ponto máximo de degradação e dissolução dos mesmos como obra de arte. O pop sabe da impossibilidade de regeneração do obje­ to e é corrosivo quanto às pretensões humanistas da arte.


A presença de Duchamp Barrio, como ele mesmo diz, havia tido, ainda na década de 60, contato com os manifestos dadaísta e surrealista, e certamente entendeu Duchamp quando es­ te, compreendendo as regras de funcionamento da instituição arte, investigava formas de fazer arte que dialogassem com a própria instituição. As apropriações feitas por D u­ champ, os ready-made, estão na ordem dos questionamentos de valor e utilidade ou, como ele mesmo afirma, são um jogo para “desencorajar a estética’’(3). O percurso que Barrio faz desde suas experiências ritualísticas com o corpo até a objetivação e orga­ nização de um espaço para a arte passa também pelas apropriações. Quando utiliza o próprio corpo no Trabalho — Processo 4 Dias e 4 Noites, em que a proposta de vivência corporal e intervenção ambiental pressupunha uma peregrinação pela cidade do Rio de Janeiro, o artista, permitindo que o automatismo (4) psíquico o encaminhasse para as mais variadas experiências corporais e sensoriais, institui suas sensações como arte, mas, acreditando no sensível, não o reduz ao que poderia ser apenas manifestações de seu ego. Ultrapassa o psicológico e procura nas apropriações a objetivação do trabalho. Próximo ao que o nouveau réalisme faz, tenta, como este, tocar o real através dos frag­ mentos. Existe, no entanto, uma distância significativa, uma vez que Barrio não o faz através dos objetos industriais, mas das relações possíveis dos Sujeitos com os Objetos. Apropriando-se do que sobrou da relação do homem com os objetos úteis, ou seja, dos dejetos, Barrio, em DEFL... — Situação — + S + .... Ruas. Deflagramento de Situa­ ções Sobre Ruas, exemplifica bem esse tipo de apropriação. Tendo como projeto o lan­ çamento nas ruas de 300 sacos de plástico contendo dejetos, ele está, através das sobras,


Movimento Congelado ( dois momentos) Cairn, Paris, 21 de janeiro, 1980 Fotos: Dominique Haneuse

Are as Sangrentas (segunda parte) Viana do Castelo, Portugal, 8 de agosto, 1975 Foto: Ursa Zanger

d eto n an d o um processo q u e encerra quase um a nostalgia das relações possíveis entre hom em e m undo. A alternativa da vivência lhe parece en tão a única possibilidade para a arte. Barrio ten ta assim a apropriação da própria vivência, da ação do h o m em q ue pode ser identificada em trabalhos com o M ovim en to Congelado (um a corda tensionada por um a pequena foice e a lâm ina de um a faca). Porém, é com Areas Sangrentas, realizado em meados dos anos 70 em Portugal, q u e ele tem o poder de trazer à tona as relações mais sim ples en tre objetos e pessoas. O trabalho, com posto de duas partes, realiza na segunda um d e b a te público, televisionado, com um a vendedora de peixes e possíveis com pradores. Todas as relações que, para aq u ela gente, passam pelo mar, pelo plâncton, pelas facas, em b ru lh o s de peixes e venda dos mesmos. Barrio interfere no cotidiano, levantando u m a questão estética, o gosto e, dessa forma, ten ta se ap ro ­ priar de um a frágil relação pré-capitalista, institu in d o um espaço de vivência para a arte q ue se localize em prim itivas relações de troca.

A vivência e o vivido O que Barrio realiza com as situações d e vida está na mesma esfera do recolhim ento de vivências q u e Schwitters fazia em M erz, q u an d o reunia o q ue não ser­ via mais para ser utilizado p o r um a sociedade, que, em ú ltim a instância, se resum e em consum ir e não consumir. Schw itters formava um a teia de coisas vividas que repotencializava a arte. No Brasil, o ca m in h o para as vivências será aberto com trabalhos d e artis­ tas com o Hélio Oiticica e Lygia Clark. Estes irão estabelecer um relacionam ento mais


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Máscaras Africanas 1974. Coleção Gilberto Chateaubriand, Rio de Janeiro Fotos: Paulo Rodrigues

complexo do observador com a obra. Com os Bichos, de Lygia, o observador estava pres­ tes a se tornar participante. Os Parangolés, os Penetrâveis, os Ninhos, os Labirintos e os Barracões, de Hélio, é que propriamente dão início às vivências. São o caminho para a participação, aberto pelo tem po fenomenológico (tem po como duração e como virtualidade) introduzido nos trabalhos pelas tendências construtivas (5) e em especial pe­ lo neoconcretismo carioca. E também o espaço neoconcreto que iria possibilitar ao observador-participante experimentar, uma vez que o próprio artista dispunha-se a vivenciar a experiência. A questão do relacionamento do sujeito com a obra foi bastante problematizada pelos neoconcretos. Neste sentido, foi importante a influência de Merleau-Ponty sobre o movimento, que, ao colocar o “sensível” como a unidade fundamental do mundo, percebera já a impossibilidade da filosofia hum anista em resolver os enigmas do real. quando esta separa a consciência do m undo, ou seja, o Sujeito do Objeto. O questiona­ mento que Merleau-Ponty faz da filosofia e ciência m odernas em seus conceitos funda­ mentais leva-o a propor um novo ponto de partida para o problema que o homem mo­ derno enfrenta: a anulação do Sujeito, ou melhor, o Sujeito instituído pelo Objeto. Pa­ ra o filósofo francês, a “vida representativa da consciência” (6) não é fundante nem definidora do que seja sujeito ou objeto: a consciência perceptiva é que funda a cons­ ciência representativa. E essa consciência perceptiva é solidária do corpo, enquanto cor-


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po próprio ou vivido. O corpo é o Sujeito e o Objeto concomitantemente (olha e se olha, toca e se toca). Ponty toma a experiência corporal como originária. As experiên­ cias de Lygia Clark com o sensível, junto às “vivências” das estruturas de Hélio, vão abrir o espaço para que Barrio pense as situações de vida como repotencialização de uma arte agonizante. Quando Barrio se apropria de uma vivência como a da peixeira em Portugal, está se apropriando e reunindo tramas de existência do homem. Mesmo em sua série de desenhos-pinturasvMáscaras Africanas, há essa tentativa de reunir expe­ riências de vida. No início dos anos 70, chegou a propor um trabalho que agressiva­ mente estimularia uma radical participação-reação. Essa participação ia do simples en­ volvimento sensorial-tátil às experiências de repulsa, dado o seu caráter escatológico.

A inutilidade e os resíduos A recusa que o artista faz do objeto de arte passa pela negação dos mate­ riais ditos artísticos e a afirmação do que H. Rosenberg (7) chama “materiais verdadei­ ros”, ou seja. a terra, a madeira, a pedra e até mesmo a carne. Estreitando sua relação com os movimentos de arte que procuram desestetizá-la e estabelecendo uma arte-pro-

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cesso q u e opere em função das forças naturais, B arrio desenvolve R odapés d e Carne (1973-1978), livro-registro do processo sofrido p o r u m p ed aço de carne exposto entre os dias 10 de fevereiro e 25 d e m arço em u m sala lacrada, te n d o no in terio r u m a lâm pa­ da de 200 W q ue deveria ficar acesa todo o tem po. É a te n tativ a de elim inar o objeto, substituindo-o por um a id éia de trabalho. Essa a titu d e circunscreve seu trabalho no que se p o d e cham ar de arte conceituai, últim o m o v im en to d e vanguarda e q u e tem o m éri­ to de p erm itir a m ovim entação livre e integral d o artista, já q u e redefine a arte com “ processo do artista’’ ou “ processo dos seus m a teria is”, elim in a n d o q u alq u er in terd ito para q u e q u alq u er coisa o u ação seja arte. D esestetizar é o q u e Barrio p re te n d e d esd e 1970, q u an d o com T.E. ex­ põe trouxas de carne e n san g ü e n tad a s e agressivas, m a n te n d o um a relação de desorgani­ zação com a ordem estética e, assim , com a p ró p ria lógica causai inerente ao real racio­ nal m oderno. Barrio vai m a n te r esse em b ate com a lógica com o um m oto de existência p ara seus trabalhos. A in u tilid a d e de trabalhos co m o 3 6 so u n d -p o in t (1984), realizado em A m sterdam , em q ue u m a concha é soprada em 36 p o n to s da cidade fazendo um ruído q u e se confunde com sons locais, será a p ró p ria desorganização, q u estio n an d o u m a ordenação em q ue cada m ovim en to tem n ecessariam en te um p orquê e um para quê. E a ação do hom em q u e precisa da razão lógica, sob p en a de ser considerada alie­ nada. Em M arfim A fricano, a apropriação do m o v im en to de ida e volta de um m etal red o n d o é tanto a negação da causalidade q u a n to a te n tativ a de estabelecer u m novo espaço para a arte q ue esteja não na alienação, m as nos resíduos.

M arginal-experim ental O experim ental, q u e para os n eo concretos dos anos 50 e 60 significa o ro m p im e n to da arte com a sociedade q u e a estra n h a e, ao m esm o tem po, a busca de um a id e n tid a d e na ru p tu ra d e seus estatu to s, terá, p ara artistas com o Lygia C lark e H é­ lio Oiticica, com o foi d ito antes, a vivência com o co n d ição in e re n te a um a nova p ro p o ­ sição q u e desejam aberta ao inesperado. A d esco n stru ção d a in te g rid ad e da o b ra com o negação de si m esm a será a herança recebida dos neoco n creto s. Mas, no final dos anos 60, correrá paralela ao resgate do m ovim en to d a d á e em especial de D u ch am p . Assim com o o dadá, os anos 70 q u e se iniciam vão o p erar d esco n stru in d o , não vão p ro d u zir obras de arte , mas p rin c ip a lm e n te intervir na cad eia ou circuito de arte, a b rin d o es­ paço para o acaso. Para os dad aístas, com o diz A rgan, “A ativ id a d e especificam ente es­ tética não p retende m odificar a condição objetiva d a existência, m as d ar u m m odelo de co m p o rtam en to livre de q u a lq u e r c o n d ic io n a m e n to ” (8).

T.B 1969. Coleção Gilberto Chateaubriand. Rio de Janeiro Foto: Paulo Rodrigues



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O experimental da década de 70 no Brasil significa estar à margem de qualquer instituição. Ser marginal é então uma recusa do papel institucional da arte (circuito) e também uma recusa de si mesmo, que se dá na recusa dos materiais instituí­ dos para a arte. O aspecto marginal do trabalho de Barrio se dá nessa mesma ordem “marginal-experimental”. Seguindo na esteira de Hélio Oiticica, quando este afirma que não existem obrigações para o artista, Barrio se move na direção da busca do impre­ visível, sabendo que a desconstrução do objeto na sua integridade é dada. E na abertura para a imagem-estrutura que os materiais são dessacralizados por Hélio, e é isso que faz Barrio em Blooshlulss, trabalho que se realiza em qualquer local da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho utiliza materiais do m undo subjetivo do artista, que reinventa relações para eles. Um lápis, um a cadeira, dois quilos de sardinha mantêm entre si as relações que instituem a arte/vida. Existem, no entanto, sem a experiência do outro, sem a vivência do espectador ou participador. O fato de existir independe de qualquer coisa; instituição, material ou pessoa podem torná-lo experimental-marginal poc exce­ lência. Isolado, como o próprio Barrio se sentia. O uso dos materiais perecíveis é, neste momento, um item extremamen­ te importante no que se relaciona com a experiência e com a margem. Rodapés de Car­ ne (9) não é apenas um trabalho com material perecível: é sobretudo um trabalho sobre o perecível e dentro do deteriorável. Atua no nível em que o material-linguagem é a própria deterioração. Desconstrói a linguagem, os materiais e o circuito, embora venha a ser recuperado em forma de livro-registro. Os registros em Barrio são a informação tensa que perpassa seu trabalho. Marginal e perecível, o trabalho sabe de sua recupera­ ção. Diante disso se deixa docilmente ser recuperado, não no instante da criação, mas no seu congelamento. Os registros são o outro de si (fotografias). O se deixar fotografar para o trabalho de Barrio, uma tentativa de assegurar o controle da recuperação. De­ certo nao o fará, mas continua a ser um espaço de negação do circuito.


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Situation — A t the Crazy Planet (Mental Elaboration)... Agosto, 1970. Coleção Gilberto Chateaubriand

A negação dos processos institucionais de veiculação de arte, assim como dos materiais e mesmo das “ tendências” correntes na arte (pop, de Lichtenstein e Warhol, o conceituai dos anos 70), tem ligação com a recuperação da negatividade dadá que os marginais farão. Não é à toa que Barrio cita, como suas referências, Duchamp, Picabia (Canibal-dadá), Man Ray e Schwitters (Merz). Mas essas não eram apenas as suas referências. Havia uma movimentação geral de negar a arte como função e como valor, assim como de negar o cinema, o teatro, a poesia e a música. Era a tendência “udigrúdi” de redução à ação imotivada e gratuita. No Brasil, essa desmistificação de valores devido ao apego dos marginais ao dadaísmo será contundente porque virá no bojo das reações contra a repressão violenta instaurada a partir de 1968. Isto fará de alguns artistas verdadeiros “marginais sociais”, no sentido criminal, pelo uso de tóxicos ou ação política. A marginalidade de Barrio não escapa desse clima de proposições anar­ quistas de comportamento. E como na poesia de Torquato Neto: “Vai, bicho: desafinar o coro dos contentes.” E o exercício de viver a invenção de comportamentos e lingua­ gens até o limite máximo que faz da produção da década uma produção marginal. O caminho da vivência marginal de Barrio é, no entanto, bastante pessoal. Poder-se-ia di­ zer paralelo ou à margem dos marginais. Ele carrega uma expressividade orgânica que se oporá à crescente racionalização dos percursos enigmáticos dos anos 70. A vivência de Barrio passa pelo descuido de seus primeiros trabalhos (lixo) e não se contamina por rigores técnicos. Mesmo com um crescente rigor na ordenação e construção das instala­ ções, estas estão longe de passar pela limpeza formal.

Politização e figuração No ano de 1969, houve no Brasil o que se convencionou chamar de “va­ zio cultural”. Isto porque verificou-se uma certa interrupção nas atividades que haviam sido bastante significativas durante os anos 60. Muitos artistas haviam deixado o país após o recrudescimento da censura. Com o AI-5, em 1968, os artistas tiveram (os que ficaram) que abrandar a referência direta ao social, que, desde o golpe militar em 1964, perpassava a produção em arte. Em 1967, a mostra Nova Objetividade, realizada no


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MAM do Rio de Janeiro, deixava claro, no texto redigido por Hélio Oiticica para o catá­ logo, que os artistas pretendiam uma “tomada de posição em relação a problemas polí­ ticos, sociais e éticos”. Havia uma postura contra o conformismo em geral (10). Mas o vazio, como ficou conhecido, estava repleto de investidas de artistas que aliavam a he­ rança experimental dos anos 60 ao desbunde que chegava aqui com o movimento mun­ dial de contracultura ou underground. Mário Pedrosa vai chamar esse período de “pós-moderno”, porque marginal ao sistema de arte e entregue ao “exercício experi­ mental da liberdade” (11). Encontrando-se nos limites da modernidade, a produção do período não possui um contorno definido, mas fazendo uma ponte para a contemporaneidade sua presentação é tensa e móvel. A geração que pretende preencher o vazio (Barrio, Cildo Meireles, Antônio Manuel, Thereza Simões, Guilherme Magalhães Vaz, Luiz Alphonsus) foi marcada pela postura que mantiveram de embate com a totalidade na arte. Essa geração só foi possível no vazio provocado pela morte da “obra de arte”; só se tornou possível porque os artistas não fazem obras, mas propõem atos, gestos, ações coletivas. Movimentam-se no plano do “agir”, no sentido de assumir o experimental. Como queria Hélio Oiticica, para quem "criar não é tarefa do artista. Sua tarefa é a de m udar o valor das coisas” (12). O movimento de contracultura propõe: transgressão das instituições pe­ la arte/comportamento desregrado. Nada tem em comum com a coerência dos discur­ sos contestadores, da crítica m ilitante ou dos programas estéticos. Este estado geral de rebeldia e transgressão transparece no Salão da Bússola, quando Barrio trabalha com material perecível e, agindo contra o mercado de arte, faz uma ação de desconstrução dentro da própria arte. Dadas as condições específicas do país e da época, essa ação foi também uma resposta ao sistema social. Os desenhos A linguagem descuidada, o uso do lixo, a imundície que são o pulsar negativo do trabalho de Barrio — no sentido de revolta contra o processo de institucio­ nalização convivem com sua produção de desenhos: obras que percorrem por dentro o circuito institucional da arte, num a aparente contradição com o percurso na organiza­ ção de situações ou fatos-problemas” que desmascaram o mito da totalidade da obra. Esses desenhos são heranças da Nova Figuração dos anos 60. As mostras Opinião 65, 66 e também a Nova Objetividade de 1967, não sendo movimentos dogmáticos, aglo­ meram muitas tendências. A Nova Objetividade reunia desde os que propunham um e o entre o neoconcretismo e a pesquisa (ambiental, vivencial e conceituai) até uma noagressiva figuração. Esta nova figuração, como tendência da arte no plano interna­ cional, tem antecedentes no pop americano, no neodadá de Jasper Johns e Rauschenerg, no nouveau reahsme de Pierre Restany e Yves Klein e na figuración espanhola g . manten o esta última um engajam ento contestatório profundamente res-


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21 Petites Sculptures en Cheveux — Mes Cheveux 1974-1976. Coleção Gilberto Chateaubriand Foto: Paulo Rodrigues

sonante entre os jovens artistas brasileiros que viviam sob o clima de opressão política e cultural. Artistas como Antônio Dias, Carlos Vergara, Rubens Gerchman se sentem ligados à situação da sociedade brasileira. Possivelmente Barrio assimilou desses artistas a figuração presente em seus desenhos. Mas se fará bastante clara a presença do movi­ mento neodadá na integração de objetos nos procedimentos estéticos, que se detecta nos desenhos do início da década de 70, dentre eles Four Days, quando incorpora a fotografia, ou nos desenhos sobre papel milimetrado, em que utiliza recortes de “qua­ drinhos” (1973), classificados de jornal (1974), pedaços de papel higiênico dobrados e colados com fita gomada em Restos de uma Borboleta, ou em O Gafanhoto e o Via­ jante com o uso do decalque e, às vezes, como em 21 Petites Sculptures en Cheveux — Mes Cheveux, cabelo e xerox. A aleatoriedade na incorporação dos elementos talvez seja o que faça dos desenhos de Barrio esses instigantes objetos de consumo. Barrio é bastante corrosivo quando sobre uma folha de xerox prende 21 cachos de seus cabelos encaracolados. Assume, mesmo nos desenhos, essa luta pelos questionamentos da arte e questionamentos de seu tempo. Tramitando entre a apropriação de objetos, resíduos, vivências, mídia (quadrinhos e classificados de jornal), está na mesma tensa reviravolta do mundo dividido. Alguns desenhos são registros, outros são repercussão. As vivências atravessam a produção dos rostos. São homens, mulheres, máscaras, que com expressi­ vidade brutal constituem um verdadeiro registro de estupefação diante do mundo. Expressão do subjetivo E notável a permanência com que a expressão do subjetivo se manifesta na produção de Barrio, seja ela pictórica ou conceituai. Este caráter do trabalho remete-nos


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ao movimento expressionista em que o sujeito im pregna o objeto numa relação de tal modo simbiótica que um anula o outro. Dessa forma inteirados, tentam o domínio do real através de um confronto direto. O artista que reconhece em si (sujeito) a unidade com o objeto e tam­ bém o desejo de domínio do real acredita na ação direta sobre este. Acredita que resol­ verá o problema de opressão agindo dirctamente sobre a realidade e, para isso, exclui qualquer experiência além da estritamente hum ana. Identificando a existência com a arte (sem distinção entre sensibilidade e intelecto), encontra, através desta, a condição de ação. O pensamento que entende a única possibilidade da arte na unidade das es­ truturas do homem e do m undo é que possibilitará, junto a evidência de que a ane é a realidade que se cria no encontro entre eles, a compreensão da ação que os expressionistas pretendem. Argan afirma: “Depois do expressionismo, a arte não é mais re­ presentação do mundo, mas um a ação que se executa’’ (13). Esta afirmativa tanto dá conta da procura de auto-suficiência, do quadro (em que a imagem deixa de ser reflexo da realidade para ter a mesma realidade), como da ação que os artistas se propõem no mundo. Artistas como Van Gogh vão tentar a unidade entre a estrutura do sujeito e do objeto, e desta forma acreditam atingir a circularidade entre o externo e o interno, num a continuidade de existência criativa que é o próprio “impulso vital’’ identificado com a arte. Para a sociedade moderna e sua inexorável ruptura entre Sujeito e Obje­ to, os expressionistas viam duas possibilidades: seguir o caminho de Gauguin, submetendo-se à condição de primitivo, ou então im por à sociedade a criação como um ato de força. O expressionismo anseia a autonomia da arte e portanto não pode deixar de entender que no seu âmbito seja possível retornar ao primitivo encontro entre Sujeito e Objeto numa relação circular. Barrio, que é chamado de “primitivo de vanguarda” por Paulo Sérgio Duarte, (14) mantém afinidades com o movimento expressionista quando, através da busca das experiências primeiras do homem no mundo, numa ótica subjetiva, tenta ins­ tituir novas relações, ou melhor, estabelece essas experiências como arte a partir da pre­ missa de que existência é arte. Mas, se arte é existência, está exposta a todos os riscos, às aventuras da existência. É dessa forma que se deve ler Série Africana, composta de 1.100 peças de pequeno formato, realizada entre 1980 e 1982. Um soma de subjetivas experiências de embate com o real. Trabalhos que percorrem as duas polaridades (externo/interno) e não se formalizam em totalidades. São desordenados grafismos do mes­ mo modo que os registros” em papel da série MINHA CABEÇA ESTÁ VAZIA SOIHHD OVISH SOHIO SH3W que mais tarde se transformarão em instalações, pinturas ou desenhos. Os registros cor­ rem o risco da existência num mundo dividido. Mas, afinal, a discussão da morte da modernidade não começa com o desencontro do homem com o mundo? Como


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criar a realidade da arte se a unidade do homem com o mundo é impossível? Barrio, que estranha o mundo que também o estranha, está no curso da tensão que estas ques­ tões suscitam e continua no caminho da instauração do real a partir de parâmetros pró­ prios. Na mesma medida em que sua criação se dá na ruptura com o exterior, se dá também na tentativa de recompor a circularidade. Primitivo na tentativa subjetiva de recuperação da arte como existência unitária do Sujeito e do Objeto, e contemporâneo na atmosfera de divisão que o seu trabalho proporciona. Esta é, sem dúvida, a questão que o faz pertinente e pulsante.

1. Giulio Cario Argan, Larte moderna 1770/1970, Firenze, Sansoni, 1982, pági­ na 678. 2. Harold Rosenberg, “Desestatização”, in A nova arte. Vvaa, (organizado por Gregory Battcock). São Paulo, Pespectiva, 1975. 3. Edward Lucie Smith, Movements in art since 1945. London, Thames and Hudson, 1984, página 11. 4. Este trabalho encontra-se registrado em um “Caderno texto”, cujas folhas encontram-se coladas, não sendo possível o acesso ao seu conteúdo, se existente. 5. O tempo como virtualidade deixa em suspenso o tempo de produção, de mo­ do a permitir a intervenção do espectador. 6. Marilena S. Chauí, Vida e obra in M. Mer/eau-Ponty. Textos escolhidos. Se­ gunda edição, São Paulo, Abril Cultural, 1984 (Os Pensadores), página X. 7. Harold Rosenberg, op. cit. 8. Giulio Cario Argan, op. cit: 9. Citado na página 10. 10. Hélio Oiticica, “Esquema geral da nova objetividade”, Nova Objetividade Brasileira, Museu de Arte Moderna, RJ, 1967. Catálogo. 11. Mário Pedrosa, "Por dentro e por fora das bienais”, in Mundo, homem, arte em crise. São Paulo, Perspectiva, 1975, página 308. 12. Hélio Oiticica, “Experimentar o experimental”, in Arte em revista 5, São Paulo, CEAC, 1981. 13. Giulio Argan, op. cit.. 14. Paulo Sérgio Duarte, "Barrio. Trajeto isolado”. Texto mimeografado. Sheila Cabo Geraldo é licenciada em Desenho e Plástica pela Escola de BelasArtes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fornada pelos Cursos de Espe­ cialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.


WASHINGTON DIAS LESSA

Design e Estilo

No horizonte especulativo contemporâneo, já se configura com razoável nitidez a relativização do adotar a filosofia e a ciência como paradigmas absolutos do conhecimento humano. A partir do século XVIII — e o surgimento da estética como disciplina específica sinaliza esta nova realidade — o desenvolvimento social leva a arte a ser progressivamente aceita como forma de conhecimento tão merecedora de atenção quanto as formas filosófica e científica, pois igualm ente importante na determinação da humanidade do ser humano. De modo similar atua a caracterização moderna de algumas atividades práticas dentro do quadro de valorização do trabalho e da produção

A forma tecnicamente racional (bicicleta Rover, c. 1888)


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a que se assiste com a ascensão do capitalismo. A engenharia, por exemplo, mesmo sen­ do categorizada como ciência aplicada por causa de sua vinculação orgânica com a ativi­ dade científica, vai se estruturando com o estatuto de forma específica de conhecimen­ to, o qual se evidencia no exame de algumas realizações tecnológicas — como a m áqui­ na a vapor de Watt — que não são deduzidas da ciência, mas explicadas por esta apostenori. Neste cenário, interessa focalizar a posição do design. O assunto é con­ troverso, pois reina na bibliografia que trata do tema uma indefinição entre os contor­ nos profissionais segundo uma perspectiva sociológica (como se insere economicamente no mercado o grupo social dos designers contemporâneos, que valores culturais veicu­ lam, que ética propõem etc.) e aqueles epistemológicos. Confunde-se a institucionali­ zação social do design como profissão (que se dá de modo mais acabado nos anos 30 e 40 deste século) com a forma de conhecimento acionada pelo designer na sua prática, que surge antes da caracterização profissional. O reconhecimento tácito desta evidência sugere, para a análise epistemológica, um exame das tentativas de busca das origens do design.

D império do estilo (bicicleta inglesa de 1946)


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Na periodização da atividade, vários são os graus de generalização possí­ veis, ensejados pela própria abrangência de uma das acepções do termo, inglês mas in­ ternacionalmente utilizado, design, que pode valer para toda a produção material do homem em todos os tempos. Inegavelmente, um designer está apto a aprender com objetos ou realizações originários de culturas pré-industriais (como, por exemplo, no caso do débito de parte do design contemporâneo para com a arquitetura tradicional japonesa). Não há duvida de que a inteligência projetual consegue apreciar generica­ mente raciocínios similares de outras condições histórico-econômicas. No entanto, esta operação, tecnicamente enriquecedora para o designer, não esclarece a relação dele com sua prática. O modelo de um anônimo artesão indígena não explica Raymond Loewy, um ulmiano ou um designer italiano superstar. Para tal deve haver um mínimo de rigor histórico no exame da dialética entre o profissional e o epistemológico. Numa primeira instância, ela se expessa em dois momentos lógicos: a) quando passam a existir condições econômico-sociais para o florescimento de uma nova prática e respectivo conhecimento, apesar de ainda não estruturados como profissão; b) quando a atividade já possui identidade profissional, ou seja, existe segundo seu pró­ prio objetivo, “personalizada” no mercado e com razoável consciência do conhecimen­ to que exerce. Embora o primeiro momento preexista concretamente ao segundo, a sua determinação só existe a partir deste, quando começa a ser buscada, com maior ou me­ nor consciência, por designers ou historiadores do design, a definição e a genealogia do conhecimento em questão. Considerando isto, é na conceituação contemporânea que buscarei detectar a dimensão epistemológica. O campo da aplicação do design consiste na projetação de mercadorias que se dividem, tendencialmente, em duas grandes categorias (1): a) produtos cujo con­ sumo envolve, fundamentalmente, relações corporais táteis por parte do homem. Estas podem ser ativas, como pegar, manipular, ou passivas, como o contato momentâneo entre o corpo e uma cadeira (em um momento seguinte ela poderá ser manipulada na sua transferência de um para outro lugar). Estes produtos são objetos utilitários — co­ mo um utensílio ou uma embalagem — ou parte de um objeto — como o comando de uma maquina automática; b) produtos cujo consumo envolve, fundamentalmente, relações de percepção visual. As informações que se relevam no ato da percepção poem ser essemialmente d< notativas estabelecendo uma relação mais estritamente utiitaria (como .m uma placa dc sinalização de trânsito, em um painel de controle de

No cenário do Palácio de Cnstjlracionalmente projetada por Paxton com preocupação mais estrutural do que estilística, o furioso ecletismo vitoriano é exibido na grande exposição de 1851


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uma máquina ou em um desenho inteligível de letras de um alfabeto), ou estruturadas sobre sugestões conotativas (como em um a eapa de disco, em um cartaz de cinema ou em um alfabeto essencialmente decorativo). Denotação e conotação expressam tendên­ cias que, concretamente. se superpõem nas mais variadas combinações. Este campo de aplicação sugere dois eixos semânticos: o da produção (e distribuição) e o do consumo destas mercadorias. Em torno do primeiro eixo se articu­ lam as questões do respeito às condições tecnológicas disponíveis para a fabricação de um produto determinado, da criatividade na utilização destes recursos, da standardização de tipos e componentes visando uma otimização da produção e distribuição de massa, da determinação de formas a partir da economia de operações e custos industriais e de distribuição, do respeito às potencialidades técnicas da matéria-prima do produto, da determinação de um repertório formal compatível com as operações industriais (uma estética da máquina), de otimização da colocação dos produtos em pontos de venda etc. Em torno do eixo do consumo se articulam as questões da “forma seguindo a fun­ ção”, da criação de novos programas de uso (ccwno nos casos da máquina doméstica de costura, da bicicleta, da lambreta ou do walk-man), da democratização do consumo (através de uma racionalização de operações e custos industriais que permita inundar o mercado de bens baratos — como no caso do modelo T de Ford), da diversificação do consumo, da integração da arte à vida (através de projetos de boa qualidade esté­ tica) etc. Tomando este universo, podem ser traçadas as tendências epistemológicas da prática do designer. Tanto no eixo da produção quanto no do consumo relevam-se para o projeto a engenhosidade, o bom senso e a invenção, presentes no saber produtivo tecnológico, e o senso estético específico da arte como conhecimento. O bom senso e a invenção, que aparecem ao longo de toda a produção econômica do homem, caracterizam-se como m odernos a partir da Revolução Indus­ trial. O bom senso, que preside a construção da evidência científica, identifica-se com o bom senso vernacular da estruturação construtiva da tecnologia, opondo-se ao univer­ so teológico do feudalismo e ao excesso de especulação teórica da cultura tradicional. A invenção, peça chave na eclosão e desenvolvimento da Revolução Industrial — já que a origem desta deve-se menos à aplicação de teorias científicas do que à engenhosidade inventiva de ferramenteiros inteligentes — igualm ente realiza o moderno. Apesar do designer se inscrever neste contexto de significação, sua colocação como inventor ou “sa­ cerdote do bom senso fica relativizada, pois o engenheiro e o arquiteto contemporâ­ neos partilham as mesmas referências históricas. Os inventores do final do século XVIII ao começo do século XX são, de modo geral, invocados como pioneiros pelas três cate­ gorias. A intenção estética na produção industrial de objetos utilitários distingue os engenheiros dos designers e arquitetos, sendo que a distinção entre estes dois últi­ mos íca por conta da restrição do campo de aplicação do conhecimento arquitetôni-


Com Wedgwood já se delineiam as perspectivas mercadológica e técnica para o projeto de mercadorias industrializadas (Queen's Ware, circa 1970. decorado com padrão Green Leaf)

co/urbanístico, voltado para a organização do espaço social. Embora alguns setores da arquitetura contemporânea reinvidiquem para si também o projeto de mercadorias, is­ to não é mais do que uma marca do desenvolvimento histórico da atividade: ao longo do século passado e começo deste, a arquitetura voltou-se não só para o espaço externo da casa, lançando as bases do urbanismo, mas também para o seu espaço interno, lan­ çando, em uma de suas vertentes, as bases do design. Não estão sendo aqui discutidos os limites simplesmente profissionais. Mesmo que arquitetos (ou engenheiros) prati­ quem design — e podem fazê-lo bem — isto envolve uma habilitação cognoscitiva es­ pecífica, diferente, na sintonia fina, daquela da arquitetura (ou da engenharia) em ge­ ral. Ao design, hoje já bem caracterizado profissionalmente, corresponde uma forma de conhecimento que funciona como núcleo epistemológio da profissão, apesar de ter surgido historicamente em outros campos profissionais, como o da arquitetura, da en­


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genharia ou das artes plásticas. Tomando como estabelecido que esta forma envolve não apenas o saber produtivo tecnológico, mas, sobretudo, a intencionalidade estética a ele associada, vale averiguar de que modo é tematizada a estética dentro do campo do design. A estética possível do objeto utilitário se coloca, tradicionalmente, atra­ vés da categoria de estilo. Deixarei de lado as acepções em que o estilo é marca pessoal em conjunto de objetos ou formas, ou pregnância formal que individualiza um peça, supondo, implicitamente, outras que componham com ela um conjunto personaliza­ do, ou lei natural absoluta cujo respeito distinguiria as realizações esteticamente boas (conforme concepção idealista). Interessa fazer um mapeamento a partir das acepções que vêem o estilo como norma que expressa um m om ento histórico-social, retomando uma discussão básica do século XIX. Neste sentido duas acepções se apresentam: a primeira, mais geral, cor­ responde a um repertório formal que a priori se impõe organicamente nas realizações de artistas, arquitetos e artesãos, caracterizando realidade histórica particular; a segun­ da é mais restrita, referindo-se, dentro do universo abrangido pela primeira, apenas a objetos e elementos arquitetônicos. Esta acepção ganha maior relevo com a transforma­ ção da realidade a que se refere a primeira. Com a Revolução Industrial se alteram de tal modo as condições de organização social que passa a não mais haver a possibilidade de existência de um estilo artístico historicamente orgânico, como o gótico ou o barro­ co, que exprimiam a coerência da estruturação do sistema de arte no interior de uma sociedade fechada. A produção industrial abala o mundo, e com ele este sistema: con­ denando o artesanato, mina o fundamento das Belas-Artes, que eram a sua realização máxima, rompendo a antiga unidade do artista com a produção. Na sociedade aberta que se inaugura, a lógica do lucro industrial decreta a liberdade forçada do artista. Mes­ mo que solicitado a continuar fornecendo modelos para a produção, esta atribuição não é mais orgânica, não lhe cabendo mais o papel de articulador principal da visualidade do entorno humano construído. E ao mesmo tem po em que, nas fileiras das Belas-Ar­ tes, grupos mais conseqüentes tentam assimilar o desmantelamento do velho sistema, partindo, progressivamente, para aventuras específicas de linguagem, a antiga categoria continua a projetar sua sombra. Em substituição ao caráter coercitivo dos estilos abran­ gentes, surge a intenção estilística, como no caso da intelectualmente construída poéti­ ca neoclássica, prenúncio do furioso ecletismo novecentista. Pois nas esferas da constru­ ção e produção de objetos, abandonadas à própria sorte pelas esferas superiores da arte, tenta se resolver autonom am ente a questão estética: artistas e arquitetos (e com eles

No pós-modernismo a consciência de linguagem vira provocaçi0 (armário Casablanca, de Sottsass, 1981)


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a indústria), sem a obrigatoriedade de produzirem segundo convenções formais apriorísticas, partem para a compilação e cópia de estilos históricos, em um muitas vezes du­ vidoso exercício de liberdade de criação. Já na segunda metade do século XVIII, a contratação, por Wedgwood, de artistas visando a elaboração de modelos para a sua fábrica de louças em Etrúria, se inscreve em um planejam ento pontilhado por procedimentos próprios do design, como a construção de protótipos, standardização de tipos ou racionalização da aplica­ ção de motivos decorativos. A dimensão estética desses produtos já se enquadra em um referencial de estilo sem raiz: caracteriza-se por um pragmatismo que leva ao abandono de modelos rococó em favor daqueles greco-romanos, bem a gosto da clientela poten­ cial. Como o neoclassicismo, que se estrutura recorrendo analiticamente ao repertório formal clássico e colocando a ênfase da prática artística no projeto intelectual da obra e não na sua execução, a produção, homologamente, adota os elementos do repertório estilístico que melhor se adequam a seus interesses. E, neste sentido, existe não apenas a dimensão mercadológica, mas uma adequação técnica (e social) entre a simplicidade das formas clássicas e as condições de produção: a sobriedade de linhas permitia, por exemplo, a substituição da pintura artesanal de motivos decorativos por métodos de trans­ ferência de desenhos impressos, uma organização mais parcelada do trabalho, uma pa­ dronização efetiva da produção etc. Já podem ser detectadas em Wedgwood as duas ten­ dências principais quanto à colocação da questão do estilo: a que o aceita e a que o nega, tendências estas que se combinam em diferentes proporções nas várias propostas práticas e formulações teóricas a partir do final do século XVIII. A primeira o percebe como categoria histórica que, embora desenraizada, pode ser atualizada e adequada à nova era industrial (mesmo que seja para negá-la e tentar regenerá-la, como no caso de William Morris), sugerindo, através da suposição implícita de uma arte globalizante pré-Revolução Industrial aplicada a uma realidade industrial a ela estranha, a categoria de arte aplicada. No entanto, sob a pressão da me­ canização da indústria, o estilo, já desenraizado, progressivamente sofre uma espécie de “desmaterialização”, que o abstrai cada vez mais dos “estilos de catálogo” compila­ dos pelas academias de arte. De conjunto de elem entos decorativos disponíveis para aplicação, tende a ser encarado como princípio de elaboração formal, seja através da criação de lógicas construtivas para o projeto, seja na aceitação progressiva de que a de­ terminação estilística deve se dar a partir de considerações técnicas de produção. No primeiro caso se situa, por exemplo, o referencial botânico/geométrico de um Christopher Dresser. Do segundo, são significativos tanto a revalorização do artesanato medie­ val por Morris, quanto a reflexão de Gottfried Semper, que busca explicar o desenvolvi­ mento dos estilos a partir de métodos básicos de fabricação, relacionados com a estrutu­ ra da habitação primitiva. E, como contrapartida desta “desmaterialização”, nasce o no­ vo estilo art nouveau, jugendstil, hberty etc. — de caráter especificamente moderno e cosmopolita. A decoração, categoria que em grande parte substancializa os estilos his-


Com o art-nouveau emerge a moderna lógica da moda (quarto parisiense por Guimard, 1905)

tóricos, apresenta padrões efetivam ente novos, sendo usada em abundância coerente com a multiplicação de bens e serviços da m etrópole capitalista. O ornam ento, além de ser aplicado, torna-se estrutura, ex ib in d o as potencialidades plásticas dos materiais e p ro ­ cedimentos industriais. Com u m a en o rm e difusão e tão onipresentf q u an to um estilo antigo, tira sua força de m ecanism o típico da sociedade industrial: a lógica da m oda, que promove a reafirmação m o d e rn a d o conceito em questão. Apesar de Percier e Fontaine já terem, em 1812, d etec tad o a identificação entre estilo e m oda prom ovida pela nova cultura urbana, som ente com o art nouveau esta realid ad e se expressa com força própria da sociedade de massa.

A segunda tendência nega a possibilidade do estilo como repertório apriorístico, buscando determinar as formas a partir das condições de produção industrial. A origem formalmente ascética da produção de massa nos Estados Lnidos (sintetizada nas propostas de um Horatio Greenough), a arquitetura metálica de engenheiros como Eiffel, o design anônimo e racional de parte da produção de objetos do século XIX, a condenação do ornamento por Loos, as propostas de standardização e padronização do Werkbund alemão, tudo isto converge em direção a um não-estilo como resultado


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de um método. E este é saudado como efetivamente adequado à era da máquina, pois fundaria uma estética absoluta, pois necessária, tendo em vista a funcionalidade na pro­ dução e no consumo. Nos moldes de tal direcionam ento no âmbito produtivo, ocorre, nas primeiras décadas do século XX, desenvolvimento similar no âmbito das categorias artísticas tradicionais. Vale examinar estas ressonâncias, já que é neste contexto que pas­ sam a existir os elementos para a conceituação profissional do design. No vazio deixado pelo desaparecimento do referencial estilístico unifica­ do, alguns artistas m antêm com sua prática a integridade de gêneros como a pintura ou a escultura, transformando-os no palco de experimentações de linguagem que vêm a repercutir no conjunto das práticas artísticas. Esta constituição de poéticas dentro de escolas ou movimentos chega a ser compreendida como um sucedâneo, restrito ao cír­ culo da arte superior, da estruturação dos antigos estilos. Deve, no entanto, ser ressalta­ da a especificidade de seu caráter: se querem diferentes do estilo histórico, colocando-se como resultado do exercício da liberdade de criação. O fato das vanguardas do começo do século XX se apresentarem como a conclusão do desenvolvimento artístico — vale dizer, como o fim da sucessão histórica dos estilos — demonstra o amadurecimento da consciência desta diferença. Começam aí as homologias com o design. A proposta, no âmbito da pro­ dução industrial de objetos utilitários, de uma linguagem plástica estruturada pela ra­ cionalidade do método e que se coloca como não-estilo, possui caráter conclusivo simi­ lar ao das teorizações referentes ao surgimento da arte abstrata. Como no caso do De Stijl e do construtivismo russo, encarados por seus integrantes como a culminância e o coroamento da história da arte. Além disso, considerando a especificidade das poéti­ cas abstratas, releva-se a estruturação da obra como composição de elementos geométri­ cos mínimos. Mesmo Kandinsky chega, depois da fase em que descobre a abstração, ao ponto, linha, plano do período bauhausiano. E o reconhecimento da geometria, “sen­ sível por parte dele e de Klee, ou “ rigoroso”, conforme a radicalização do cubismo de Mondrian e Malevitch, dispõe o pano de fundo do relacionamento da arte com a realidade industrial. Analisando em sua exemplaridade as poéticas de De Stijl e do construti­ vismo, destaca-se o programa de integração da arte à vida. Neste sentido o geometrismo é ético e visa uma regeneração da realidade, seja como reação à irracionalidade da guerra, seja como expressão do espírito racionalístico da revolução. Por outro lado, ele exprime a ^ccitação da linguagem matemática da tecnologia que marca o presente, visando identificar função artística e função produtiva através do pensamento racional. E, na medida em que a constituição de uma linguagem geométrica elemental unifica spaço e possibilidades estéticas, as fronteiras entre os gêneros artísticos são derruba, j ,° art'sta’ a£ora tom a mediação do projeto, volta a ser o responsável pela visualio entorno hum ano construído: o artista incorpora o arquiteto e conceitua o de-


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signer. Na radicalização empreendida pelo produtivismo soviético, é, mesmo, pregada a sobrevivência do exercício estético na transformação de toda a arte tradicional em pro­ jeto integrado na produção. Este quadro se complementa com a démarche do arquiteto. No marco de sua pertinência às Belas-Artes, participa ativamente da constituição das novas poéti­ cas, mas guarda, ao mesmo tempo, a sua especificidade. Para ele não existe, por exem­ plo, o problema da conquista da abstração. Juntamente com a música, a arquitetura era apontada como referência pelos desconstrutores da imagem imitativa. Contudo, existia a questão da superação do estilo como intenção estética. O reconhecimento de novos programas de organização do espaço social, que passa a existir como categoria a partir da abstração de gêneros arquitetônicos tradicionais e dispõe a constituição do urbanis­ mo e da prática própria do design; o aprendizado com a visualidade tecnológica da arquitetura dos engenheiros; a adoção de um raciocínio espacial geométrico em detri­ mento da composição através de elementos e decoração estilísticos; tudo isto inaugura a moderna arquitetura que, postulando-se funcionalista ou racionalista, também, condusivàmente, proclama o não-estilo. A identidade própria do designer contemporâneo, em sua vertente euro­ péia, começa a existir com maior nitidez neste contexto, funcionando, exemplarmente, a Bauhaus como síntese das várias propostas. Embora logo venha a surgir nos Estados Unidos dos anos 30 a figura do consultant designer; que recoloca a questão do estilo a partir do referencial mutável do consumo de massa, as raízes do design nos movimen­ tos abstratos esclarecem algumas especificidades da dimensão estética desta forma de conhecimento: a) o pensamento racional que, nas poéticas do abstracionismo geométri­ co, funciona, metafórica ou praticamente (como nos casos da Bauhaus ou do Vchutemas), como integrador das funções produtiva e artística, é, sem dúvida, passaporte efe­ tivo para o acesso do designer à linguagem tecnológica. Com presença evidente, por exemplo, na radicalização cientificizante do funcionalismo promovida pela Escola de Ulm nos anos 50, não deixa de se colocar como referência mesmo nas propostas que buscam estruturar a visualidade dos produtos com outros simbolismos que não o da racionalidade. Mesmo que as formas projetadas desprezem a questão da economia má­ xima das condições industriais de produção, conforme a postura racionalista ortodoxa, continua sendo efetivo no relacionamento com estas condições; b) cm vez da justaposição de elementos estilísticos predeterminados, a forma seria buscada como a síntese das condições de produção e de consumo. Embora nem sempre exercida, a liberdade suposta nesta fórmula tem uma de suas vertentes no conceito de estruturação elemental, tão bem exemplificado na cadeira Vermelha e Azul de Rietvelt. Tornado possível através do estabelecimento, nas “gramáticas do abstra­ cionismo, como o ponto, a linha, o plano, as cores primárias etc., dispõe as condições para a adoção de um raciocínio formal abstrato mais geral, que pode levar tanto à rein-

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vcnção estilística das últimas décadas quanto ao desenvolvimento da biônica, já intuída por Tatlin;

c) além destas duas correspondências de ordem mais palpá linguagens abstrata geométrica e a do design, existe uma ressonância conceituai que expressa alterações da sociedade como um todo. A generalização da imagem imitativa que leva à eclosão do abstracionismo é homóloga à generalização da atividade projetual. O recém-conceituado designer define seu conhecimento através da generalidade de um método voltado para bens industrializados indiferenciados. Ocupa, assim, o es­ paço que ainda restava à especificidade de um trabalho artesanal, normalmente espe­ cializado em um gênero de objeto ou de tecnologia. Neste sentido, a caracterização pro­ fissional do designer fecha o processo de generalização dos diversos trabalhos úteis em força de trabalho, promovido pelo desenvolvimento da indústria capitalista: à energia humana, indiferenciada agora, corresponde a indiferenciação da capacidade criativa (2). Todo o movimento de negação do estilo, que culmina em uma das ver­ tentes da caracterização profissional do design moderno, é negado, por seu turno, pela lógica da moda, constitutiva do mercado de massa. Nesta postulação contemporânea do estilo, porém, ele se reafirma com feições laicamente permutacionais: a diferença tende a surgir com o ritm o da sucessão das tem poradas de venda. Mesmo quando uma poética é elaborada independentem ente destes condicionamentos, é por eles captada. O próprio funcionalismo se transfigura, como constata Gropius. Além da diluição da gramática elemental geométrica na vulgarização do moderno promovida pelo art déco, a percepção do conjunto de realizações do m ovimento racionalista evidencia o caráter de linguagem possível de ser apropriada. Se no estilo histórico a dialética entre o ser coercitivo e o ser substancial define a unidade orgânica de forma entre as várias mani­ festações, na sociedade aberta capitalista é a categoria de linguagem, como possibilida­ de de codificação dentro do atomizado universo contemporâneo, que tem a primazia. Assim como o abstracionismo possibilita o reexame de toda a história da arte com olhos sintáticos , a generalidade categorial da linguagem , adequada à generalidade dodesign, permite que o designer se debruce sobre toda a produção material humana, che­ gando mesmo, equivocadamente, a pensar que sua história começa no neolítico. E é este conceito de linguagem que recicla e atualiza o de estilo, assim como é sobre ele que se erige a lógica da moda. A alternância ou superposição entre o art nouveau, o funcionalismo hist°l*C° I ° ae/ 0dÍnamÍSm0’ ° art déco, a gutte fo r m , o modernismo dos anos 50. o pop. o ig tech, os revivalismos art nouveau, 30, 50, 70, o pós-modernismo etc., compõe o campo do design no século XX. Se parte da essência da forma de conhecimento res­ pectiva se depreende do núcleo abstracionismo/funcionalismo histórico, o reconhecia t0 CS*a P^ura^dade de estilos como linguagens atualiza a compreensão desta esímcnsão estética suposta pelo não-estilo se expande com a constatação da


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importância da moda no desenvolvimento do consumo de massa, possibilitando a revi­ são da poética racionalista: à sintaxe do geometrismo elemental se agrega o reconheci­ mento da semântica, onde se funda o simbólico. E assim completa-se o referenciamento para a apreensão do social que se entrecruza no design: complementando a conscien­ tização técnica da linguagem como cerne da prática sugerida pela vanguarda abstrata, emerge a conscientização pragmática. Não mais a simbolizaçãcr da modernidade que não se reconhece como tal, própria da inteligência funcionalista, mas o exercício explí­ cito deste mecanismo de constituição de significado. O desencanto com o racionalismo ortodoxo traduz uma crítica quanto à sua transfiguração, já que passa da ética à eficiência neocapitalista. Mesmo que o reco­ nhecimento abrangente da linguagem como categoria e da lógica da moda traga o risco da atualização do design como mero avatar desta eficiência burocrática, é a aceitação do simbólico que forma uma consciência real das possibilidades e limitações do design como forma de conhecimento contemporâneo.

1. A colocação de novos referenciais para a prática, tais como o design primário dos italianos, não chega a comprometer esta categorização mais fundamental. 2. A generalização crescente esclarece, por exemplo, o surgimento do design pri­ mário. Bibliografia Adorno, Theodor W. Teoria estética. Lisboa, Livraria Martins Fontes, 1982. Argan. Giulio Cario. Larte moderna. 1770/1970, Firenze, Sansoni, 1971. Banham, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo, Perspectiva, 1975. Forty. Adrian. Objects o f desire. Londres. Thames and Hudson, 1986. Gombrich. E. H.. The Sense o f Order. Oxford. Phaidon Press, 1984. Maldonado. Tomás. El diseno industrial reconsiderado. Barcelona, Gustavo Gili, 1977. Schapiro, Meyer. “Abstract Art” in M odem art. 19th and20th centunes. New York, George Braziller. 1979. Sparke. Penny. An Introduction to design and culture. London. Allen and Unwin, 1986. Vallier. Dora. Lart abstrait. Paris. Le Livre de Poche. 1967.



BERENICE CAVALCANTE

Etiqueta, Estética e Poder: a Cultura do Barroco

Pertence a j . A. Maravall (1) a ampliação do conceito de barroco, que passou a significar, mais do que um estilo artístico, um conceito histórico, isto é, expres­ sar uma dada realidade social: o século XVII europeu. Sem abandonar a perspectiva de crise com que este século é identificado na literatura sobre o período produzida por historiadores, Maravall recupera as tensões da conjuntura, redimensionando-as como expressão de uma sociedade identificável pelo convívio de manifestações extremadas, isto é, concepções, entendimentos e formulações opostas, e em que a ameaça da insta­ bilidade e de mudança na vida social e pessoal era experimentada pelos sujeitos so­ ciais (2). A oposição e o conflito entre a difusão de anseios de liberdade — como se presencia neste período — e a presença de forças de imposição repressiva, como a mo­ narquia absoluta e a Inquisição, estariam, desta forma, na base da gesticulação dramáti­ ca do homem barroco. Fixemo-nos neste exemplo de “radicalidade” (3), pois, sem dúvida, o sé­ culo XVII é o século da monarquia absolutista, isto é, da centralização do poder e da afirmação do poder absoluto num meio social convulsionado por tensões várias. Resul­ tado de uma competição plurissecular, a hegemonia do mais poderoso significava, em primeiro lugar, a eliminação de concorrentes em potencial. É face a este quadro de com­ petitividade que se define o poder do monarca absoluto. Centralizar o poder singificava transferir para o controle real as funções tributária e militar, que passaram a se constituir em duas importantes parcelas do po­ der monárquico: o monopólio fiscal e o da violência. Esta transferência foi a base sobre a qual construiu-se o compromisso instável (4) entre o rei absolutista e a antiga nobre­ za, por deixar intocados os princípios de organização social herdados do período feudal. Num jogo duplo em que por um lado constrói seu poder à custa e às expensas das antigas atribuições da aristocracia, esta é a parcela da sociedade na qual deverá apoiar-se para enfrentar pressões dos demais segmentos da socieade, em especial da burguesia mercantil. Destituída de suas antigas funções, a aristocracia, no entanto, compen­ sou esta perda pelo lugar que passou a ocupar: a indiscutível superioridade com relação

Henri Tcstclin Luiz XIV. 1667 (d e ta lh e )


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aos demais segmentos da sociedade, na medida em que hierarquicamente se destacava dos demais. Constitui-se assim a “sociedade de corte” (5), considerada como insti­ tuição fundamental da monarquia absoluta. Deve-se aqui chamar a atenção para a du­ pla acepção com que esta expressão pode ser entendida. Em primeiro lugar, entende-se a expressão “sociedade de corte” como referindo-se a uma sociedade dotada de uma corte (real ou principesca), e totalmente organizada a partir dela. N um a outra dimensão, entende-se a corte como sendo socie­ dade, isto é, como uma formação social onde são definidas de maneira específica as re­ lações existentes entre os sujeitos sociais e onde as dependências recíprocas que ligam os indivíduos uns aos outros engendram códigos de comportamento originais. Significa dizer que a corte organiza o conjunto das relações sociais através do estabelecimento de uma rede de dependência recíproca. E neste últim o entendimento que queremos descrever a lógica da corte, ou melhor, a lógica do prestígio. A dependência recíproca transparece, por um lado, pela posição ocupa­ da pelo rei no topo da hierarquia, que, como dissemos acima, não podia prescindir do apoio e do sustentáculo da aristocracia — seus concorrentes em potencial; esta por seu turno, dependia dos favores e pensões reais, pelas razões já mencionadas. Constrói-se desta maneira uma rede de interdependência e solidariedade em que o rei controla e domina adversários em potencial, reafirmando fidelidade através da concessão, não mais de terras e sim de contribuições monetárias. No ângulo da aristocracia, depender do monarca passa a constituir-se no elemento a distingui-la dos demais, a prestigiá-la, quando consideramos seu lugar no conjunto da sociedade. Em âmbito mais restrito, isto é, da corte simplesmente, o prestí­ gio era aferido e consagrado na disputa entre seus integrantes. Assim, a concessão de favores e pensões era tam bém o mecanismo através do qual o monarca reproduzia e individualizava seu poder, m anipulando o antagonism o e a competitividade entre os demais membros da corte. Entende-se a “ individualização de seu poder” na medida em que as con­ cessões dependiam tão-somente da iniciativa do rei, segundo disposições ditadas por ele próprio, vale dizer, de seus interesses, seus propósitos, suas intenções. Fazer jus a quaisquer destas deferências demarcava a situação singular da aristocracia, que pode ser resumida no reconhecimento de sua situação de dependência. A condição de superior era tam bém vivenciada pelo fato de apenas os aristocratas poderem usufruir da proximidade do monarca. O estabelecimento desta re­ de de dependência favoreceu-se ainda do fato de os membros da corte conviverem num mesmo palácio. A proximidade espacial veio acrescentar um dado a mais para a com­ preensão da estrutura da m onarquia absolutista, pois facilitava o controle do monarca e os aristocratas. Seu reverso era a inquestionável demonstração de prestígio decora condição de hóspedes do monarca. A vida na corte revela outro traço caractesta sociedade, a não diferenciação entre a esfera pública e privada no conviver


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social. Tomando-se como exemplo a monarquia francesa, constata-se que, em Versa­ lhes. Luiz XIV era rei em sua própria casa. O cotidiano em Versalhes retrata a situação típica da monarquia absolu­ ta. que não distingue espacialmenre as atividades inerentes à vida pública — isto é, aquelas inerentes ao exercício do poder — das atividades da vida privada. Contudo, vale ressaltar que esta não distinção espacial tinha um sentido bem mais amplo por revelar a concepção inerente à sociedade aristocrática, que não concebia diferenciação e limites entre estas duas instâncias do conviver social. Mais adiante veremos o reverso desta medalha. Nestes termos, a lógica da corte im punha um tipo de vida muito espe­ cial, um conjunto de procedimentos regrados, capaz de reproduzir tanto o poder do monarca quanto o prestígio dos aristocratas, organizá-los para viver em sociedade com as tensões que lhes eram próprias e diferenciá-los dos demais, os plebeus. Esta foi a função da etiqueta. A adoção da etiqueta na corte, ou de uma vida etiquetada, quer ela fi­ xasse, por exemplo, quem podia ou não podia usar cor púrpura, renda nos punhos, ou ocupar determinado lugar numa cerimônia, participar ou não do despertar do rei, ou em que momento deste cerimonial sua presença seria permitida, constituía-se em fator primordial da reprodução desta sociedade (6). A etiqueta expressava um código de com­ portamentos originais imprescindíveis à vida na corte, permitindo-nos perceber os tra­ ços fundamentais desta sociedade, ou, se preferirmos, os elementos da cultura barroca. Em primeiro lugar, destaca-se a questão dos mecanismos de constituição e reprodução do poder do monarca absoluto e do princípio de hierarquização do social. A adoção de procedimentos etiquetados e do cerimonial da corte, com todo o simbolis­ mo que comporta, revela o recurso às formas de representação do poder, isto é, da sua visibilidade, levando-nos a inverter aqueles termos e pensar no poder da representação. Dito em outros termos, o que se busca sublinhar é a importância das formas de representação do poder real, de sua teatralização, de sua exposição. Seguindo a interpretação de L. Marin (7), os símbolos do poder real cum­ priríam a função de reforçá-lo e intensificá-lo, quer pelo fato de destinar-se a ocupar o seu lugar (substituí-lo em sua ausência), quer pelo fato de apresentar-se como a com­ provação deste poder. No limite, somente através do recurso aos símbolos é que se pode perceber a dimensão absoluta deste poder, que pretende fazer crer que o retrato do rei é o rei. Portar-se diante deste símbolo do poder exigia, de quem o olhasse, a re­ verência apropriada, vale dizer a obediência e a submissão. No campo da representação do poder, a etiqueta cumpria esta e outra finalidade na ordenação do social, pois viabilizava também a publicização deste poder. Como dissemos anteriormente, a sociedade aristocrata caracterizava-se pela não dife­ renciação das instâncias pública e privada, ou melhor, por conter fronteiras muito flui-


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das entre cada uma delas. Assim, era comum q u e algum momento da vida privada do monarca se tornasse público; isto é, o rei publicizar alguma de suas ações. Para além do fator já identificado da necessidade de dar visibilidade ao poder, de representá-lo, tal proceder conotava a noção de “público” num sentido muito particular, restrita à noção de platéia (8). Público, à época do Antigo Regime, significava não mais que uma assistência diante da qual o poder se apresentava, ou melhor, vinha à público, mesmo que fosse através da exposição de sua face privada. Este proceder reproduzia e reafirma­ va as formas teatralizadas através das quais o monarca e sua corte remarcavam as dife­ renças e a distância m aior ou menor de cada um dos “personagens” com relação ao “ator principal”, o monarca absoluto. No âm bito mais restrito da vida na corte, assim como o poder do monar­ ca, o prestígio de cada um tam bém se visualizava num viver segundo as regras da eti­ queta. A aristocracia aceitava e apegava-se a estas regras porque elas marcavam, não apenas sua diferenciação e sua distância com relação à sua principal concorrente, a burguesia,


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como revelava as diferenças entre os nobres, ou seja, o prestígio maior ou menor que desfrutavam frente ao monarca. Transparece assim uma característica singular da sociedade da corte, ou seja, o ser social de cada um de seus membros identifica-se totalmente com sua repre­ sentação. Esta, como sabemos, era dada pelos outros, pois o público — platéia para a qual destina-se a representação do espetáculo — reconhecia, pelos símbolos exterio­ res, a importância do personagem em cena. Este cotidiano etiquetado, teatralizado, da vida na corte contribuiu para a modificação da sensibilidade e do comportamento típicos da antiga nobreza militar. Além do monopólio da violência exercido pelo monarca, que obrigava os nobres a con­ trolar seus impulsos e a pacificar o meio social, a etiqueta, por ser o meio através do qual demonstrava-se e obtinha-se o prestígio, exigia também o controle mais severo das emoções e afetos. Dissemos antes que cada cortesão preocupava-se com a preservação de seu prestígio pessoal junto ao rei, bem como disputava com seus pares a conquista de favores reais. A competitividade constituía-se assim um traço característico desta socie­ dade e a observação em arma para o êxito. E possível mesmo falar na importância que o “olhar” foi adquirindo nesta ambiência. Ver e ser visto confundem-se com o ser: o que se via e o modo como se era visto constituíam-se na ponte entre a realidade e o m undo das aparências. Do olhar do rei dependia a inclusão/exclusão no círculo do prestígio, e os múltiplos olhares de seus súditos acompanhavam e conferiam o resultado do jogo das tensões entre os mem­ bros da corte. Ainda que movida por ciúmes, ambição e inveja, a aristocracia ia apren­ dendo a controlar seus impulsos, a escondê-los, agindo não mais sob o seu comando, e sim segundo as regras exteriores. A etiqueta disciplinava a aristocracia, fornecendo-lhe as regras para viver “publicamente”, “civilizadamente”, aí compreendidos os mecanismos de autocontrole de afetos e desafetos. Todavia, ainda que a aristocracia concebesse a sociedade como organiza­ da a partir da corte e por esta razão tenha pretendido manter seus privilégios através da reprodução de relações sociais hierarquizadas, o século XVII apresentava os sinais das dificuldades enfrentadas pelo regime, e é mesmo em razão destas dificuldades que redobrava-se aquele esforço. As noções de câmbio, mudança, caducidade, restauração, transformação — de movimento, enfim — incorporavam-se às experiências dos homens do século XVII. É face a esta realidade social, convulsionada por crises econômicas, levantes camponeses e revoltas sociais (9), que a monarquia absolutista quer reafirmar-se através da imple­ mentação das estratégias de manutenção e reprodução de poder descritas acima. Cabe ressaltar que, se a adoção de procedimentos etiquetados confirma


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a face barroca, teatralizada, da vida na corte, não esgota a descrição dos procedimentos utilizados pela m onarquia para enfrentar a consciência de mudança manifesta naquele período. Maravall destaca o papel desem penhado pelas festas na criação de uma cultura dirigida no sentido da manutenção da ordem. Operando com as radicalidades que considera típicas do século XVII, privilegia as tensões decorrentes da busca da novi­ dade e da resistência à novidade, para m ontar o quadro explicativo da elaboração desta cultura dirigida. Pelo luxo e pelo fausto ostentados nas festas da corte — que seviam para sublinhar a superioridade da aristocracia, a ‘'fiesta, en el siglo XVII — ha de contar con alguna invención, un mecanismo ingenioso, un artefacto inusitado, una construcción arquitetônica que, con cartón y madera u otros médios similares, simule unagrandiosidad impresionante (cuanto más deleznabes sean los materiales, más de admirar serãn los efectos que con ellos se logren" (10). Que razões explicariam a necessidade da “ invenção” e o recurso a “me­ canismos engenhosos” ? Não é gratuita a atração pelos fogos de artifício e engenhocas cênicas que criavam a ilusão de grandiosidade, fazendo com que a preferência pela no­ vidade e a artificialidade se desenvolvesse am plam ente no barroco (11). A novidade, entendida como o gosto pelo desconhecido, pelo não resol­ vido, expressa o clima geral de inquietude do século, mas pode também ser identificada ao “engenhoso artifício” da m onarquia para provocar impacto, promover o espanto e impressionar as massas, deixando o público-platéia em suspense. A desmesurada atividade em representações cênicas e a renovação das for­ mas mágicas foram recursos indispensáveis para a criação deste clima de suspense e de forte apelo à emoção. O efeito emocional provocado por um a obra de arte, uma encenação fes­ tiva, aristocrática ou religiosa, era o de criar na assistência a sensação de estar fora de si. O seu restabelecimento com a realidade se processava de forma dirigida pelo espetá­ culo que se oferecia, ou pelo tom inacabado de certas obras de arte. Seu propósito, por­ tanto, era de natureza política, pois, ao prom ovtr o envolvimento com tais encenações artificiais, produziam-se simultaneamente a atração e a subseqüente sujeição. Alcançavase, desta forma, a incorporação dos anseios de movimento, de um contínuo acontecer, mas contidos nos limites do encantam ento e do pré-dirigido. Nestes termos, pode-se afirmar que o barroco coloca o irracional a servi­ ço da manutenção da ordem. Em suspense permanece-se meramente no plano das sen­ sações do envolvimento com o desconhecido, do contato com o não resolvido, ao mes­ mo tempo em que se permanece extasiado. O que se afirma é que tais procedimentos buscavam a alienação do público-platéia. ,

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resumo>o caráter da exaltação da novidade no barroco comporta uma a cerradamente antíinovadora, conservadora, de propaganda a favor do estabe-


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lecido, embora servindo-se do novo, entendido apenas como aquilo que estaria fora da norma. A exaltação da novidade na cultura barroca limita-se e circunscreve-se a este plano da engenhosidade e da artificialidade, reduto dos anseios de liberdade que caracterizam o período. Sua redução a este plano explica a intensidade de manifestação e compensou sua interdição no plano político, religioso e filosófico.

1. José Antonio Maravall, La Cultura dei Barroco. Barcelona, Ariel, 1981. 2. Enumerando os contrastes mais significativos do período, Maravall destaca: individualismo e tradicionalismo; autoridade inquisitiva e anseios de liberdade; mística e sensualidade; teologia e superstição; guerra e comércio; geometria e capricho. 3. Maravall utiliza a palavra extremosidad para recobrir esta realidade de ex­ tremos diferenciados. Este é o entendimento que emprestamos ao termo “ radicalidade”. 4. François Furet, Penser la Révolution Française. Paris, Gallimard, 1981. 5. Norbert Elias, La Société de Cffur. Paris, Flamarion, 1985. 6. Para uma descrição mais detalhada destas regras veja-se Renato Janine Riberio, A Etiqueta no Antigo Regime: do Sangue à Doce Vida. Coleção Tudo é His­ tória 69- São Paulo, Brasiliense, 1983. 7. Louis Marin, Le Portrait du Roí. Paris, Les Editions de Minuit, 1981. 8. Jürgens Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública. RJ. Tempo Brasi­ leiro, 1984. 9. H. R. Trevor, Robcrt, Religião, Reforma e Transformação Social. Lisboa, Edi­ tora Presença/Martins Fontes. 10. Maravall, op. cit, páginas 494-5. 11. É importante relembrar que todos os mitos que exaltavam a capacidade cria­ dora e transformadora do ser humano, que no fundo se ligam à preferência pela novidade e artificialidade, desenvolveram-se amplamente no barroco. Berenice Cavalcante tem doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo. É professora de História Moderna e Contemporânea e coordenadora do programa de mestrado do curso de História Social de Cultura do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.



MARGARIDA M. RODRIGUEZ RAMOS

Elementos do Barroco Italiano na Talha Joanina

O período áureo do movimento barroco em Portugal coincide com o rei­ nado de D. João V (1706-1750), mas, em alguns casos, verificou-se a permanência, até a terceira ou quarta década do século, do estilo que o precedeu, o “estilo nacional” — na expressão de Robert C. Sm ith(l) — que correspondeu à primeira fase do barroco naquele país. Nas origens desse novo estilo, ou seja, no ponto de passagem da conten­ ção e do espírito de unidade do “estilo nacional” para a explosão decorativa e a dramaticidade do barroco joanino destacam-se alguns elementos. Entre eles, a opulência — ainda que fictícia, a nível do desenvolvimento integrado do país — advinda da desco­ berta das minas de ouro do Brasil e da exportação de toneladas deste metal para a Me­ trópole durante a primeira metade do século XVIII. A essa opulência, que acarretou um novo sentimento de poder, somou-se um espírito de emulação e, por seus m onu­ mentos e sua arte, Portugal tenta igualar-se às grandes potências européias. Em sua obra A Europa das Capitais (2), Giulio Cario Argan mostra o monumento como “tema que manifesta os valores históricos e ideológicos, constituindo o fundamento da autorida­ de...”, e aponta sua função de representação, um conteúdo ou significado ideológico sempre presente. Nos países onde o atraso social e econômico coexiste com o fanatismo religioso — como é o caso da Espanha, mas que também em parte é verdade para Por­ tugal — verifica-se na monumentalidade e sobrecarga decorativa das igrejas uma clara intenção de afirmação de poder, e a ostentação e o luxo da ornamentação sugerem e simulam a riqueza. A Roma barroca do século XVII, sobretudo, fornecerá modelos e inspira­ ção para a arte lusa do período joanino, que reorganizará seus valores visuais dentro das exigências de uma ordem econômica e social alterada por um novo momento do poder metropolitano.

Medalhão, Igreja da Ordem Terceira da Penitência Rio dc Janeiro Foto: Mariângela Castro/Fundação Roberto Marinho


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O barroco joanino No contexto da visualidade lusitana, o barroco desenvolveu-se como “bar­ roco de interior”, pois, sobrepondo-se à preocupação com a estrutura arquitetônica, foi no espaço interno das igrejas que se ofereceu campo privilegiado para o desenvolvimen­ to desta arte tipicamente ibérica que é a talha dourada e policromada. No caso específi­ co de Portugal, a madeira foi sempre a matéria primeira de seus escultores e a arte da talha não se limitou aos altares e retábulos. Ao extrapolar seus limites, a madeira enta­ lhada e dourada revestiu paredes inteiras, camuflando, e por vezes até mesmo alteran­ do, a estrutura arquitetônica das igrejas. Mais do que a intenção decorativa, a talha no interior das igrejas tinha a função de organização do espaço, e no horror vacui barroco encontrou justificativa para sua expansão incontrolável. Ao transbordam ento da talha do retábulo para as paredes da capela-mor e da nave — característica constante no período joanino — poderiamos aplicar a teoria de Wõlfflin sobre o pictórico em oposição ao linear, no sentido de que a predominân­ cia pictórica, própria ao barroco, leva o olhar a realizar um percurso complementar, pa­ ra além dos limites do objeto principal (no caso, o altar). Em Portugal, a talha dourada dos retábulos expande-se gradualm ente sobre as paredes laterais da capela-mor, trans­ formando-as em verdadeiras ‘‘cavernas douradas”. Nunca a intenção de maravilhar, procurada por todas as poéticas barro­ cas, encontrou tal correspondência quanto nestas igrejas cobertas de ouro — produtos típicos da arte barroca luso-brasileira —-, onde as faculdades intelectivas permanecem como que bloqueadas pelo brutal estímulo recebido pela imaginação. A busca do cho­ que emotivo, causado pela alteração das condições normais de visão, vai representar um dos meios pelos quais o barroco aparece como um a arte de propaganda que tem como um de seus recursos mais eficazes a persuasão através do envolvimento pelos sentidos. O ouro barroco, utilizado no sentido da transformação do espaço da igreja em um espa­ ço além da dimensão terrestre, leva-nos, por analogia, a pensar nas cúpulas e abóbadas bizantinas revestidas de mosaicos dourados, em clara conotação com o céu. No m undo ibérico, o retábulo será a expressão máxima da arte da talha, o elemento primordial da igreja. Embora sem representar propriamente um programa artístico, a Contra-Reforma originou uma verdadeira inflação de retábulos, seguramen­ te uma das manifestações mais originais do espírito barroco. Desde a primeira metade do século XVII, começam a aparecer os primeiros exemplares, dotados de estrutura ain­ da tímida, talha contida e desenho classicizante; ao longo do período barroco vão ad­ quirindo uma autonom ia própria, desenvolvendo um sentido monumental e decorati­ vo, destinado a atingir a emoção e os sentidos do fiel. ,,

, Na Península Ibérica, o protótipo é o altar da Igreja da Caridade de Sevia, o ra projetada em 1670 por Bernardo Simón de Pineda. Na Espanha, o estilo churS ará ao paroxismo a intenção m onum ental e decorativa do retábulo, que


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em Portugal terá forma mais contida. No período joanino, porém, a decoração dos alta­ res ganhou uma dimensão extraordinária, com uma criatividade que os rígidos modelos anteriores haviam contido. Destacam-se na talha do período joanino duas escolas estilísticas princi­ pais — Lisboa e Porto, com suas derivações regionais — que se apresentam distintas em alguns aspectos formais, sem cornudo deixar de expressar a mesma proposta e o mes­ mo estilo. Lisboa, por ser a sede da monarquia, oferecerá melhores condições para a atualização de sua arte, e a absorção de modelos estrangeiros se dará de forma mais direta. Já na Escola do Porto há a permanência mais acentuada de formas e tradições herdadas do “estilo nacional”, essencialmente lusitano. Assim, no desenvolvimento da talha lisboeta, se fará notar maior receptividade à influência do barroco italiano, com igual penetração de elementos do barroco da corte de Luís XIV, não somente por meio das tendências dassicizantes do gosto francês como, também, pelo espírito de luxo pro­ fano e pela passagem de um vocabulário ornamental que antecipará o rococó. Ao estabelecer uma classificação tipológica dos retábulos lusitanos, em sua obra Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil (3),Germain Bazin situa no segundo quartel do século XVIII o tipo “ D. João V com baldaquino”, nele reconhecendo, de imediato, a influência do barroco romano. Este modelo de altar teria sua origem em Lisboa e sua formação se realizaria através da Escola de Mafra e da obra do alemão João Frederico Ludovice (Ludwig), originário de Roma, onde trabalhara como ourives. O al­ tar joanino acusará as influências italianas e tenderá para um desenvolvimento da escul­ tura com valor estatuário, que, de certa forma, fará retroceder a “força biológica” apon­ tada por Bazin e que no primeiro estilo barroco cobriu inteiramente colunas e paredes com motivos vegetais, calcados sobretudo nas videiras e folhas de acanto. Reinaldo dos Santos (4) reconhece, igualmente, a influência italiana na talha joanina, sobretudo em relação à perfeição do modelado e nos temas decorativos, insistindo, porém, no fato de a concepção e composição dos retábulos deste período serem frutos da originalidade da arte lusa.

Origens: o transplante dos modelos italianos Com o objetivo de melhor situar as origens italianas do barroco joanino, cumpre destacar alguns elementos que, embora introduzidos com atraso em Portugal, influenciaram e atuaram diretamente na arte lusa do período. As gravuras e as obras ilustradas tiveram papel relevante nesse contexto, em especial os livros Aluove Inventiom, de Felipe Passarini, publicado em Roma em 1698, que trazia modelos de pequenos objetos de talha e motivos ornamentais, e Archittetura Civile, publicado em Parma, em 1711, pelo cenógrafo Ferdinando Galli de Bibiena, e que fornecerá motivos de mol-


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duras, portadas e outros elementos arquitetônicos. A obra de maior repercussão no pç. ríodofoi, seguramente, o famoso livro Perspectiva Pictorum et Architectorum, de auto­ ria do padre jesuíta Andréa Pozzo, arquiteto e pintor, publicado em Roma em I693 e 1700 e traduzido em duas etapas em Portugal no início do século XVIII. Esta obra forneceu os elementos para a estrutura do retábulo joanino, em especial os motivos de fragmentos de frontão curvo largamente utilizados no novo estilo. A influência desse liv ro _que tam bém deu origem ao gosto pela pintura de tetos em perspectiva, própria às igrejas brasileiras dos períodos barroco e rococó — é atestada por um documento que cita o retábulo da Sé do Porto, executado “seguindo as estampas do Padre Poncio”. Um outro significado contingente de modelos italianos levados para Por­ tugal se encontra nas enormes quantidades de esculturas encomendadas por D. João V a artistas italianos para adornar igrejas e palácios. Elementos da maior imponância nesse contexto foram os três coches alegóricos, de talha dourada e decorada com figuras humanas, oferecidos ao monarca pelo papa Clem ente XI, em 1718. A ourivesaria ecle­ siástica, encomendada em Roma para as principais igrejas de Portugal, também forne­ ceu todo um repertório de motivos decorativos. Entretanto, os principais responsáveis pela introdução direta em Portu­ gal dos protótipos e modelos italianos foram os inúmeros artistas atraídos da Itália dire­ tam ente por convite real, ou ainda pelo am plo mercado que se abria para a arte religio­ sa e civil, fruto da imensa riqueza advjnda das minas coloniais na primeira metade do

Padre Andréa Pozzo Desenho de altar Perspectiva Pictorum et Architectorum Roma, 1693-1700


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século XVIII. Entre os principais artistas que atuaram no período joanino, destacaram-se os escultores Alessandro Giusti e Giovanni Antonio Bellini, de Pádua; os arquitetos Filippojuvara e Nicolau Nasoni — este responsável por obras do maior significado no contexto da arte barroca do norte de Portugal; o pintor “ilusionista” Vicenzo Barcarelli e, sobretudo, o alemão João Frederico Ludovice que, tornando-se arquiteto régio, proje­ tou o palácio-convento de Mafra, cuja igreja basilical é considerada o maior m onum en­ to do gosto barroco romano na Península Ibérica. É relevante citar, neste contexto, a instalação da Capela de São João Ba­ tista— inteiramente construída em Roma — na igreja lisboeta de São Roque, em 1750. Embora cronologicamente não possa mais ser apontada como'elemento influente no gosto barroco luso, é importante assinalar o fato de ter sido encomendada em 1742 pelo rei D. João V, refletindo, assim, o gosto oficial pela arte italiana e confirmando a moda italianizante própria ao período.

Bernini: “o técnico da visão” Para melhor compreensão da influência da arte da Roma seiscentista so­ bre o barroco do período joanino, é necessário procurar compreender o papel represen­ tado por Bernini no contexto artístico de seu tempo e a extensão dessa influência no sistema expressivo do estilo barroco em seu vértice. Os próprios contemporâneos de Ber­ nini já o consideravam o gênio do século e o intérprete ideal para a restauração católica que revalorizou a cultura globalizante depois do rigor contra-reformístico, visto que, atuando em vários campos da arte, realizou a integração da pintura, arquitetura e es­ cultura no sentido da universalidade do grande estilo, próprio ao seu tempo. Para Argan, as bases da civilização moderna — calcada na capacidade técnica — podem ser encontradas no Seiscentos italiano, que reconheceu na técnica da arte a função de tor­ nar a imaginação uma realidade visível, o meio de “ultrapassar os limites do finito e do contingente”... A técnica no período barroco representaria, desta forma, um prelú­ dio à concepção moderna de técnica, ao reconhecer seu poder de criação e invenção, implicando uma ampliação da capacidade de representação mimética, herdeira do Re­ nascimento. O papel do artista — “o técnico da visão”, em expressão de Argan vé-se, pois, reforçado, por tratar-se do único ser capaz de traduzir em imagens visíveis o que a imaginação lhe sugerir. O fazer técnico se subordinará, então, ao fazer da ima­ ginação, no sentido do alargamento do espaço, do tempo e, sobretudo, do imediato. No Bernini escultor, a técnica refinada aparece como um dos elementos essenciais. Ao usar o mármore, material por excelência da escultura italiana, o artista obtém os efeitos que deseja no tratamento da pele e da indumentária, sem esconder, no entanto, a realidade do material. A imitação da natureza é por ele propositadamente realizada para demonstrar que não há nada que o homem não possa refazer. Mas


a intenção é provocar a sensação do real, mais do que procurar imitar a natureza E se busca a naturalidade, Bernini o faz para “esconder a arte’ e dissimular o artifício levar a pensar que o produto difícil é fruto de um gesto fácil, sem deixar transparecei completamente a verdade do material e do gesto. Em suma. é preciso manter um equi­ líbrio tênue entre imaginação, técnica, material e tema. para evitar uma leitura unívoca do trabalho artístico. No barroco, a representação vai ser problematizada pelo artista como um desdobramento de sua própria problematização. Victor Tapié (5) aponta o fato dos per­ sonagens de Bernini não se apresentarem jamais parados ou estáticos, mas tomados em pleno movimento, em meio a uma ação ou um gesto que se completa na nossa imagi­ nação. Um exemplo típico é o conjunto escultórico de Apoio e Dafne, representados no próprio ato da metamorfose. Ao realizar suas figuras, o artista do século XVII e Bernini é seu representante máximo na escultura — procura comunicar um estado emotivo, um a tensão que se completa e encontra eco nos sentimentos do observador, ultrapassando o simples objetivo de retratar com precisão movimentos físicos ou senti­ mentos. Tapié afirma ainda que a grande originalidade de Bernini reside no sentido

Gian Lorenzo Bernini

Apoio e Dafne


Baldaquino de São Pedro

do efeito, no poder de transformação, no “eterno tornar-se”, que marca sua obra mais do que suas qualidades decorativas e ilusionistas — uma arre que tem por meta uma ação no plano moral, sobre o comportamento humano. Assim, o ilusionismo praticado pelos artistas deste século será de ordem psicológica e não mais puramente calcado no plano visual. O baldaquino da Basílica de São Pedro, em Roma, representa o caso mais nítido deste novo tipo de ilusionismo psicológico. Ao tomar um baldaquino de procis­ são, objeto que estamos acostumados a ver em proporções geralmente reduzidas, e au­ mentá-lo até assumir a categoria de construção arquitetônica, Bernini tensiona a per­ cepção e a desloca de sua rotina. Assim, a ilusão — fato psicológico e ótico — consiste na alteração de uma condição normal, que provoca uma intensificação dos sentidos, acarretando um choque emotivo.


Elementos para a leitura da influência italiana no barroco joanino Por ter sido nos retábulos dos altares onde a talha joanina conseguiu al­ guns de seus melhores momentos e sintetizou a quase totalidade dos elementos que a caracterizam estilisticamente, é necessário observar o papel e algumas características formais dos altares no barroco italiano, e sua correlação com os exemplares mais signifi­ cativos do período joanino, dentro de uma proposta centrada na busca e análise da fun­ ção simbólica — e no caso específico, retórica — que lhes é própria e que antecede a função real. Pierre Francastel (6) afirma que "...acessórios materiais desse gênero pos­ suem valores de tal forma complexos que um a pesquisa por assim dizer vertical leva sempre a demonstrar que eles encontraram, num dado momento, seu lugar no fundo comum da hum anidade”, insistindo na validade da pesquisa do "sistema coerente de significação im ediata” em que esses elementos entram de forma global e na necessida­ de de demonstrar que cada um deles possui "um valor de referência preciso e por assim dizer espontâneo”.

O altar: porta e palco Na Itália seiscentista, os altares adquirem a conotação de entrada no es­ paço imaginário do tabernáculo e, como tal, são decorados à maneira das portas ou pór­ ticos solenes, ladeados por colunas, encimados por tímpanos ou por coroamentos pro­ fusamente decorados. Nos altares de Bernini, o espaço além do altar adquire dimensão celestial, passando o altar, e por extensão seu retábulo, ao status de porta ou arco triun­ fal de passagem ao m undo do sagrado, do divino. Diz Germain Bazin (7) que “o retábulo-mor que se abre ao fundo do santuário é um a espécie de arco de triunfo, dando acesso ao mundo sobrenatural”, c compara o papel do altar barroco, repleto de formas e de estátuas policromadas ou douradas, ao desempenhado pelos pórticos das igrejas medievais. O gosto pelo monum ental e pelo aspecto cenográfico, próprio de Berni­ ni e de todo o barroco italiano, e que será repassado ao barroco joanino, aqui também se faz presente como elem ento de apelo: por um lado, ao sensível e à emoção, e, por outro, estimulando a imaginação através da ilusão psicológica (a porta imaginária signi­ ficando a entrada no espaço sacralizado). Nos altares joaninos, a intenção de monumentalidade e cenografia so­ bressai especialmente na região do Porto, onde verificou-se uma evolução no sentido do aumento das proporções e da grandiosidade, ao contrário de Lisboa, em que predo­ mina o senso de medida e proporções — certam ente produto da influência francesa sobre a corte de D. João V. O retábulo da Sé do Porto (1727-1730), obra do entalhador antos Pacheco cuja oficina, em Lisboa, era um a das mais ativas —, é o elemento


Retábulo p rincip al, Sé, P orto

Retábulo de Nossa Senhora das Dores Igreja de São Miguel de Alfama, Lisboa

introdutor e exemplar máximo do estilo joanino na região e revela nítidas influências italianas, entre outras, a composição cenográfica formada pelas colunas e pilares e o grande e luxuoso baldaquino inspirado no de Bernini. Os ensinamentos e modelos do padre Pozzo também estão presentes e o remate da tribuna lembra claramente o dese­ nho da fachada da Basílica de São João de Latrão, constante no livro deste autor. Esta obra, que supera em proporções e grandiosidade o protótipo metropolitano da escola de Lisboa — o retábulo da igreja lisboeta do Santíssimo Sacramento (comumente de­ nominada de Igreja dos Paulistas), atribuída a Santos Pacheco -, exerceu enorme in­ fluência na escultura do norte de Portugal, e em várias igrejas do Porto e de outras cida­ des daquela região vão aparecer imitações ou variações do modelo introduzido na Sé. O retábulo da Sé do Porto é marcado pelo gigantismo e grandiosidade de seus elementos, fatores que, se por um lado foram decorrentes do próprio dado es­ pacial, por outro deixaram clara a intenção de magnificência, própria à arte da região. Coroando os altares, a presença do dossel — certamente oriundo do bal­ daquino de São Pedro — é característica marcante dos altares joaninos, contemporâ­ neos de um momento privilegiado da coroa portuguesa (8). A origem desse elemento na talha lusa é atribuída ao escultor francês Claude Laprade (1682-1/ 38), que dirigiu


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uma grande oficina em Lisboa desde 1703, realizando obras significativas. A Claude Laprade é atribuído o risco do baldaquino de madeira entalhada na Capela de Vista Alegre, em Ilhavo (Aveiro), que pode ter sido o primeiro do gênero introduzido em Portugal. A arte da corte, fiel ao senso de m edida e proporções que o barroco francês lhe incutira, vai produzir um tipo de dossel menos exuberante, e procurará manter a dignidade arquitetônica desse elemento, que no norte verá acentuado seu caráter mo­ numental e cenográfico. Na talha da região do Porto, o coroamento da tribuna será geralmente em forma de grande arco joanino encimado por dossel e sanefa, ou ainda por um gran­ de lambrequim. O exemplo mais característico é o do lambrequim do retábulo da Sé do Porto, sob o qual encontra-se ainda uma composição escultórica da Santíssima Trin­ dade, cujo modelo será introduzido no Brasil por Francisco Xavier de Brito, na Matriz de Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Preto, e na Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara (MG), motivo utilizado posteriormente pelo Aleijadinho. A região do Porto (Minho-Douro) vai criar ainda um tipo de grande dos­ sel extraído do baldaquino que, combinado com volutas e contravolutas, vai aparecer encimando vários arcos-cruzeiros de igrejas da região. Em São Francisco do Porto, este aparece em perspectiva e combinado com o baldaquino do altar-mor, dando a impres­ são de um único e grande baldaquino isolado. Sobre os altares, cortinas e panos simulados criam um efeito cenográfico inerente ao espírito barroco, marcando a passagem para o espaço imaginário do tabernáculo, o espaço criado além da percepção visual. Praticamente todos os autores que abordaram o tema barroco apontaram a busca do efeito teatral e o tratamento do altar barroco como um palco, ou seja, como um elemento premeditadamente utilizado pela Igreja para atingir seus objetivos contra-reformísticos. Acreçcente-se a isto o fato de que, em vários exemplares, as cortinas são aparadas por anjos que parecem convidar o espec­ tador a penetrar naquele espaço, se não fisicamente, ao menos com a imaginação. Na Igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma, a cena do Êxtase de San­ ta Teresa, como um espetáculo teatral, é assistida por figuras da família Cornaro em duas tribunas laterais. O teatro (no século XVII) é um dos órgãos fundamentais da vida da época”, dirá Bazin (9).

Arquitetura do altar: espaço e coluna Iratados como fachadas, os retábulos, além da função original de deli­ mitação espacial, contribuem para a representação visual de um espaço imaginário. Argan aponta a relação entre o espaço aberto, urbano e social das ruas e praças em relação espaço fechado mas nem por isso menos público — das igrejas, pátios, corredores cadarias- de palácios. Há ainda nas fachadas barrocas a dupla atração pelo exterior


Retábulo principal. Igreja de Nossa Senhora da Penha, Lisboa

e o interior, que se manifesta pela alternância de corpos plásticos em saliência (colunas, pilastras, tímpanos e cornijas), em contraste com nichos e concavidades. Neste ponto, podemos supor que a aplicação destes princípios aos “ retábulos-fachada" teria a função de estabelecer uma relação entre o espaço externo e inter­ no dos altares. Espaço interno compreendido aqui como o espaço celeste e sagrado ao qual todo cristão deve tender. Se tomarmos a disposição comum dos retábulos barrocos veremos que, com raras exceções, a organização espacial tende à busca da profundida­ de. O alinhamento freqüentemente não planimétrico das colunas e pilastras nas late­ rais e a própria disposição, em geral côncava ou ligeiramente abaulada, dos altares con­ tribuem para conduzir o olhar em profundidade, para o espaço central onde se situa o tabernáculo. O altar joanino terá sua estrutura organizada dentro de um esquema compositivo que se utilizará freqüentem ente de jogos espaciais baseados na complicação de planos e no constante estabelecimento de relações diagonais entre plantas curvas e superfícies interrompidas. As alternâncias de planos foram freqüentes no estilo barroco joanino, tanto em Lisboa, como demonstram o altar-mor da Igreja dos Paulistas e os retábulos de São Miguel, em Alfama — atribuídos por Germain Bazin a Manuel de Brito, um dos entaIhadores da Igreja da Ordem Terceira da Penitência, no Rio de Janeiro — como, sobre­


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tudo, na escola do Porto, onde os jogos de planos assumem proporções mais decisivas, o que é confirmado pela disposição das imensas colunas e pilares do altar da Sé, ele­ mentos igualmente enfatizados nos altares barrocos. Neste ponto seria pertinente recordar Georges Duby (10), que aponta a busca de modelos romanos para a arte e arquitetura do Império Carolíngio, citando especialmente as antigas colunas que, trazidas da Itália, vão ser utilizadas na capela do palácio imperial. Nesse aspecto, os vestígios da Roma antiga destinam-se à criação de uma mentalidade ligada à pujança daquele povo e que poderia contribuir para reforçar a imagem do Império Carolíngio como um novo império, conduzido por um novo Cé­ sar. Assim, as colunas assumem um valor representativo de poder e vão ser encontradas sempre que se faz necessário marcar autoridade: da Igreja nos templos religiosos, do Estado nos palácios. Nas residências civis indicarão estabilidade, status e riqueza. Colu­ nas ou pilastras — a forma já não mais importa — como dado visual elas transmitem uma mensagem que deverá ser decodificada a partir de uma ligação com valores reco­ nhecidos e, sobretudo, almejados. O barroco luso vai apropriar-se da coluna torsa desde o momento inicial, quando videiras e cachos de uvas cobrem as espiras do fuste. No segundo estilo barroco luso, estes motivos vão sendo substituídos pelas grinaldas de flores, e a escola lisboeta recriará, em talha, a coluna de bronze (salomônica) introduzida por Bernini no baldaquino de São Pedro de Roma. Este tipo de coluna apresenta o terço inferior estriado e é uma das inovações do período artístico de D. João V, nunca antes empregada na arte ibérica. A escola do Porto adotou, igualmente, o modelo berniniano da coluna salomônica, introduzido através cio retábulo da Sé, desenvolvendo paralelamente um tipo próprio: a forma “quase salomônica” apontada por Robert Smith, “em cujos fustes não há mais divisões”. Desta forma, a adoção da coluna torsa ou salomônica, em oposi­ ção ao modelo de fuste vertical, poderia acrescentar um novo componente simbólico à imagem de estabilidade proposta pela Igreja: o élan ascendente, a busca do alto. favo­ recido pelo torneado helicoidal.

A revalorização da imagem O barroco em particular o barroco italiano — vai empreender a reva­ lorização da imagem religiosa após a iconoclastia da Reforma, que rejeitou a interme­ diação entre Deus e o homem. Através da imagem, a Igreja vai procurar influir sobre o comportamento humano, fornecendo modelos de beleza interior e de virtude facil­ mente assimiláveis e que agirão sobre as intenções, predispondo e impulsionando o homem ao em e à salvação. A imagem no barroco será uma forma eficaz de comunicação dirigida para o sentimento, não exigindo um esforço intelectual ou especulativo. Assim, nos a tares barrocos — e esta observação vale para os exemplares joaninos - gradual-


Elementos do Barroco Italiano na Talha Joanina

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mente as imagens dos grandes doutores da Igreja, dos mártires e heróis dos altares dos primeiros tempos da Contra-Reforma vão cedendo espaço para imagens de santos liga­ dos à vida prática do homem comum, que representam um a intermediação mais direta com Deus. Dentro desse espírito, grandes quantidades de figuras de santos povoam os altares e as paredes das igrejas barrocas. A talha lusitana do período joanino vai caracterizar-se pela ênfase atri­ buída à figura humana, pela estatuária de grandes dimensões. Nos retábulos desse esti­ lo, o coroamento fechado das arquivoltas “românicas” do período anterior abre-se em uma explosão decorativa, abrigando os mais variados motivos, destacando-se imagens de anjos em vulto e grupos escultóricos. Nas mísulas, sustentando as colunas em esforço heróico, aparecem atlantes, reforçando a tendência ao espírito cenográfico e ao dramatismo, própria à arte inspirada no barroco italiano. Nos gestos das estátuas e imagens barrocas, podemos encontrar uma exemplificação do conceito de forma aberta que Wõlfflin opõe ao de forma fechada. Uma estátua ou imagem barroca raramente vai limitar-se ao espaço (e neste caso é necessário ter em mente sua relação com a arquitetura) que lhe é concedido. O gesto barroco é amplo, aberto e assimétrico. E difícil detectar o eixo central das estátuas, e a rotação que é imprimida aos corpos parece querer projetá-los para fora do plano. Tomemos, por exemplo, os grandes anjos sentados sobre fragmentos arquitetônicos e coroamentos dos altares e arcos-cruzeiros das igrejas joaninas do m undo luso. Pernas e braços geral­ mente extrapolam o suporte: as pernas pendem em posições naturais e os braços — geralmente um apontando para o alto — projetam-se para longe do corpo, muitas ve­ zes com gestos que parecem convidar a penetrar o espaço mais profundo da capela-mor ou do tabemáculo. Bernini já havia utilizado esse recurso em seus anjos no alto do arco de entrada da Scala Regia do Vaticano ê inúmeros escultores barrocos em Portugal e no Brasil seguirão seu gesto. Entre os motivos preferidos da talha joanina, estão figuras angélicas e ale­ góricas, nos períodos anteriores empregadas de maneira esporádica e acidental e que agora vão transformar-se em uma constante. Em rápida abordagem destas figuras em Bernini, é de se destacar sobre­ tudo a ambigüidade decorrente de sua condição de ente celestial, passível de queda e de pecado em um dado momento e que, se por um lado sucumbiram ao Mal, por outro tèm como missão não somente a guarda dos humanos contra as tentações como o combate contra o próprio Mal. Esta ambigüidade teria contribuído para “hum ani­ zar o anjo, colocando-o mais perto do homem. Há um certa sensualidade nestas figu­ ras, o que é flagrante no anjo de Santa Teresa. Por não pertecerem à categoria dos santos — estes classificados como imagens que devem transmitir um apelo de devoção e pie­ dade — foi em parte através dos anjos que a estatuária barroca conseguiu atingir a ima­ ginação, que se vê instigada por essas figuras indefinidas. Aos estáticos e enigmáticos anjos das catedrais góticas opõem-se os anjos barrocos, a própria imagem do movimen­ to, onde a busca do naturalismo na estatuária mais se definiu. As figuras berninianas


assumem posições impensáveis cm outros exemplos da iconografia religiosa, e a indu­ mentária em turbilhão muitas vezes deixa à mostra parte de seus corpos. Acompanhando os anjos, é com um encontrarem-se figuras femininas re­ presentando as virtudes teologais e morais nos retábulos e paredes laterais das capelas barrocas. No Brasil, são exemplos marcantes dessa preocupação as figuras alegóricas dis­ postas por Francisco Xavier de Brito — entalhador e estatuário da Igreja da Penitência, no Rio de Janeiro — na parte superior das paredes laterais da capela-mor da Igreja Ma­ triz de Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Preto, um dos melhores momentos da talha joanina luso-brasileira. Argan define a alegoria como a linguagem normal e favorita do monu­ mento, e este termo, longe de expressar apenas um a dimensão quantitativa e numérica de grandeza, liga-se antes à procura de universalidade. A alegoria é, pois, “a tradução de conceitos abstratos em formas visíveis” (11). Tendo em vista a universalidade do con­ ceito, sua tradução deverá se dar através de imagens generalizadas, em espaço e tempo indeterminados. A alegoria seria, assim, a ficção da arte, e o imaginário barroco vai apropriar-sc da alegoria e do símbolo, pelos quais fará um discurso indireto, não proceden­ do senão em casos raros por referências diretas. i\as igrejas barrocas justifica-se, desta maneira, a presença das figuras ale góritas representando conceitos. No caso das Virtudes, são figuras femininas acompa s e u s atributos específicos e, como os anjos, indeterminadas quanto a um temp< e espaço definidos.


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Francisco Xavier dc Brito Arco-cruzeiro, Capela-mor, Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, Ric de Janeiro Foto: Mariângela Castro/Fundação Roberto Marinho

A retomada da natureza Opondo-se ao neoplatonismo, as artes no período barroco atribuem um novo valor à natureza. De modo mais ou menos naturalista ou estilizado, a utilização do mundo vegetal na ornamentação de monumentos religiosos vai ligar-se à idéia da natureza como obra divina e, portanto, bela e digna de ser admirada. Por outro lado, a idéia de tempo e de espaço na arte do período incluía inevitavelmente uma referência e um apelo à experiência imediata. Assim como na pintura do século XVII achavam-se inseridos em contexto imaginário objetos e elementos naturais representados de modo


Francisco Xavier dc Brito Altar da nave Igreja da Ordem Terceira da Penitência, Rio de Janeiro Fotos: Mariângela Castro / Fundação Roberto Marinho

realista, na escultura — que, no caso específico dos retábulos dos altares, funcionava, como já vimos, como portas de entrada para um espaço imaginário — a referência a formas vegetais, tratadas na maioria das vezes de modo realista, dentro das possibilida­ des do material escultórico, tem por objetivo trazer de volta nossa percepção ao mundo real através de elementos familiares. No barroco joanino se verificará um enriquecimento formal e decorativo em relação ao século XVII. Nos exemplares lisboetas, será evidente o gosto pelos moti­ vos mais delicados, destacando-se entre eles os elementos fitomorfos: palmas, grinal­ das, festões de flores (rosas, margaridas, girassóis), frisos verticais de folhelhos e de bo­ tões dc plantas. O emprego destes motivos na talha dourada reflete a origem ornamen­


tal do bronze aplicado sobre o mármore, próprio ao barroco italiano, e vai opor-se total­ mente às antigas e volumosas folhas dc acanto que caracterizam o período anterior. O gosto pelas formas naturalistas é marca característica da talha portu­ guesa, ao contrário de Lisboa, onde os motivos de caráter mais abstrato vão predominar de forma geral. (Vale aqui lembrar o ornato em xadrez, de losangos matizados, de ori­ gem francesa, introduzido por Manuel de Brito em São Miguel de Alfama e repetido na Penitência, no Rio de Janeiro.) Neste aspecto, parece que o Porto não conseguiu se desvencilhar completamcnte dos modelos do “estilo nacional”, do qual teria herdado igualmente a pujança e a robustez das formas, em oposição a Lisboa, que optou por um relevo decorativo mais comedido e pela delicadeza de execução. Absorvendo a proposta e os modelos do barroco italiano, a arte do reina­ do de D. João V representou um momento privilegiado da visualidade lusitana. O trans­ plante desse estilo para o Brasil deu-se, em termos formais, através da obra de talha realizada para a Capela dos Exercícios da Ordem Terceira de São Francisco da Penitên­ cia, do Rio de Janeiro, protótipo do barroco joanino em sua versão lisboeta, obra que vai representar o corte e o momento de passagem para um a nova ordem visual na Colô­ nia. Evoluindo da contenção e do sentido de ordenação espacial e ornamental da pri­ meira fase do barroco para a explosão decorativa do segundo momento desse estilo, o


barroco joanino no Brasil adaptou-se às formulas metropolitanas, e sua visualidade re­ flete a inserção da arte portuguesas no universo colonial. Na obra de Francisco Xavier de Brito, o barroco joanino se estenderá pa­ ra a região das Minas Gerais, onde uma sociedade em formação, aberta ao experimen­ tal, e um imenso campo de trabalho advindo da riqueza do ouro propiciarão as condi­ ções ideais para o posterior desdobram ento desse estilo na obra do Aleijadinho.

Francisco Xavier de E: Capela-mor. Matriz de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Pr Foto: Renato Morgado / Pró-Merr.

1. Robert C. Smith. A Talha erv Portugal. Lisboa, Livros Horizonte, 1962. 2. Giulio Cario Argan. LEurope des Capitales. Genebra. Skira, 1964. 3. G erm ain Bazin, Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. 2 volumes. Rio de Janeiro, Record, 1983, página 259. 4. Reinaldo dos Santos. As Artes Plásticas no Brasil — Antecedentes Portugue­ ses e Exóticos. Rio de Janeiro, Edições de Ouro. 1968. página 47. 5. Victor L. Tapie, Baroque et Classictsrne. Paris. Lc Livre de Poche. 1980. página 133. 6. Pierre Francastel, A Realidade Figurativa: Elementos Estruturais de Sociolo­ gia da Arte. São Paulo. Perspectiva. 1982. página 219. . Germain Bazin, Desftns du Baroque. Paris. Hachette. 1970. página 115. 8. Se Angélico nos mostra a Virgem sentada num trono encimado por um dos­ sel. não se trata de uma invenção sem base. Em todas as civilizações o dossel é a marca da soberania, do poder real." Francastel. P. Op. cit. página 221. 9. Germain Bazin, Destms du Baroque. página 46. 10. Georges Duby, Las Sociedades Medievales. una Vision de Conjunto. 11. G. C. Argan. Op. cit. página 5". Margarida M. Rodrigues Ramos é graduada em museologia e formada pelo CurC. ^ X ^!a *zaçã° em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Pontifícia Uni­ versidade Católica. Rio de Janeiro.




SONIA MARIA GONÇALVES SIQUEIRA

A Teatralidade no Barroco Religioso Brasileiro

'Cada época ena um símbolo que é a resposta idealizada a questão de saber qual é o sentido da vida. (...) A resposta da idade barroca é que o mundo é um teatro"... Richard Alewin

Nada mais antagônico, à primeira vista, do que civilização do barroco e teatro se levarmos em consideração os antagonismos que marcaram a época, tanto do ponto de vista religioso quanto político. A única certeza que o homem do período traz éque a vida é ilusória e os sentidos, as portas para a tentação. Nada dura, tudo é apa­ rência, falsidade, ilusão. Ora, o objetivo do teatro, no Seiscentos, é justamente este: criar uma situação em que as pessoas, mesmo sabendo que não é real, nela se envolvam, confundindo realidade e fantasia. Ele se quer ilusão real num a realidade ilusória. Por­ tanto, ao representar na vida, na arte, na religião, o que se procura é sobreviver aos dualismos, fugir de um mundo de ilusões perigosas, abandonar-se num jogo em que toda a liberdade de espírito e imaginação é permitida, porque irreal. Este tempo de abdicação da realidade, de fuga para a aparência, não acon­ tece por acaso. Durante vários séculos a Europa viveu num Cosmo organizado vertical­ mente, cujo centro era Deus, e onde cada um ocupava um lugar determinado. O desti­ no humano era viver miseravelmente e se preparar para a vida eterna. Mas, após a se­ gunda metade do século XIV, as mudanças começam. Pouco a pouco, uma onda de humanismo, racionalismo, subjetivismo, individualismo, invade o Velho Continente. A era das grandes navegações tem início, ampliando o universo conhecido pelos europeus. A ciência se prepara para alçar vôos e se liberar da religião. Platão, que durante o final da Idade Média fora banido pelas idéias de Aristóteles redescobertas pela escolástica, volta à cena para ser o herói do século XVI. Tudo gira, então, em torn^ do homem, do hedonismo, do prazer das coisas belas. Entretanto, ainda no início do Quinhentos, um a voz se levanta na lon­ gínqua Alemanha e coloca um primeiro obstáculo ao desenvolvimento científico e cul­ tural do Renascimento. É a Reforma protestante. Ela questiona o avanço da ciência, o

Capcla-mor, Igreja de São Pedro dos Clérigos, Recife


antropoccntrismo, a salvação, os dogmas da Igreja católica, os abusos do clero. Rapidamente, passa a ser um pesadelo para o catolicismo, que deve set imed.atamemc combatido O instrum ento será a Contra-Reforma. O neoplatonismo, o hedonism o e o racionalismo sao varridos da Europa. A Igreja deseja como na Idade Média, controlar o processo de salvação humana, cercear as investigações científicas, retomar o teocentrismo. No campo da filosofia, Aristóteles e a escolástica retornam à cena (1). Ao lado da crise religiosa, a guerra, a fome e o medo levam a uma crise política que faz surgir o absolutismo, e ambos - Igreja e Estado - empregam a ane como meio de persuasão. A retórica aristotélica na gênese do barroco Como conseqüência dos antagonismos entre protestantismo e catolicis­ mo, entre o pensamento medieval e o renascentista, surge uma civilização que se carac­ teriza pelo dualismo, a oposição ou oposições, os contrastes e contradições, o estado de conflito e tensão oriundos do duelo entre o espírito cristão antiterreno, teocêntrico, e o espírito secular, racionalista, mundano. Daí as antíteses: ascetismo e mundaneidade, carne e espírito, sensualismo e misticismo, religiosidade e erotismo, realismo e idea­ lismo, naturalismo e ilusionismo, céu e terra. A alma barroca compõe-se desse dualis­ mo, exprimindo um a gigantesca tentativa de conciliação de dois pólos considerados en­ tão irreconciliáveis e opostos: razão e fé. O barroco é, portanto, um m undo de quimeras, de aparências, de ilu­ sões. Enquanto no Renascimento buscava-se um ideal, uma verdade, ele já as possui, bastando apenas prová-las. Para atingir tal intento, os artistas utilizam a obra aristotéli­ ca, especificamente A,Retórica. Segundo o filósofo grego, “ a retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão" (2). A obra de arte é instrumentalizada, como meio o mais eficaz para se atingir o fiel, persuadi-lo de uma verdade, verdade esta absoluta e insofismável: a dos dogmas do catolicismo. Ainda que a maior parte das figuras de retórica interesse especificamen­ te à literatura, algumas podem ser aplicadas às artes plásticas, como a metáfora, a antí­ tese, a hipérbole (3).

O conceito de teatralidade e sua influência no barroco religioso brasileiro Ainda que, em certo sentido, o term o “ teatral” sugira a idéia de falsida­ de, de drarrutiudade exagerada podendo beirar o ridículo, não há melhor termo para exprimir a arte, a religiosidade, o desenrolar da vida no século XVII.


A Teatralidade no Barroco Religioso Brasileiro

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Na esfera política, o absolutismo faz de cada hom em um duplo com vi­ das distintas: uma metade privada, em que se possui autonom ia de consciência, e uma metade pública, em que as ações e os atos são submetidos, sem exceção, à lei do Estado. A convicção é livre em segredo. Em sociedade dominam a aparência, o jogo, as atitudes estudadas. No âmbito religioso, a Contra-Reforma tam bém faz uso da duplicidade, da crise em que submerge o homem, colocado diante de valores opostos, para sistema­ tizar uma arte alegórica, retórica, persuasiva. Não há melhor maneira de ressaltar a gran­ deza, o brilho, o poder da Igreja católica, a verdade do catolicismo, do que através de uma forma de eficaz ação psicológica sobre a multidão: o.teatro. O rito transforma-se emencenação, o templo em teatro, as imagens e oficiantes em atores, o fiel em especta­ dor extasiado. Entre estes dois pólos — Rei e Deus — gravita o ser hqmano no século XVII. Ao absolutismo monárquico corresponde o absolutismo divino, o primeiro d e­ corrente do segundo. Deus reina sobre as almas como os reis sobre as pessoas, e, para impor sua soberania, ambos recorrem à pompa, à magnificência. No século da ilusão, das aparências, dos atos estudados, o teatro tem um papel destacado. Como já foi dito, as crises, os medos, as incertezas que afligem o homem do Seiscentos são utilizados por duas instituições — Igreja e Estado — que assim vêem aumentar seu poder sobre o ser humano. A Península Ibérica não é exceção, estando sob o domínio do Estado absolutista e do catolicismo da Contra-Reforma com seus dog­ mas, proibições e organismos repressores, representados, principalmente, pela Santa In­ quisição. O Brasil desde a sua descoberta foi inserido no sistema, colonizado se­ gundo os mecanismos que regem as relações entre colônia e metrópole. Junto com o Estado vem o poder religioso. Na segunda metade do Q uinhentos desembarcam, no Nordeste, as ordens religiosas, trazendo não apenas a doutrina, mas o sistema educacio­ nal, a preocupação com a evangelização dos silvícolas, a im plantação de modelos cultu­ rais e artísticos. Portanto, a arte barroca se manifesta aqui, em primeiro lugar, no campo religioso. Nas primeiras décadas do século XVII, erguem-se os primeiros mosteiros, con­ ventos, igrejas, em que a arquitetura, a talha, a imaginária são de estilo barroco. A reli; 'ãoé a única forma possível de desenvolvimento cultural até aproximadamente 1750. No novo território, a preocupação de convencer, persuadir, transformar o templo num teatro, também é uma constante. Sem a intenção de esgotar o assunto ou fazer análises estilísticas aprofundadas, vejamos como a igreja, arquitetônica e artis­ ticamente, adquire formas teatrais. Para tal, utilizaremos alguns exemplos: A Igreja do Mosteiro de São Bento e a Ordem Terceira da Penitência, no Rio de Janeiro, Nossa Se­ nhora do Pilar, em Ouro Preto, Nossa Senhora dà Conceição da Praia, em Salvador, São Pedro dos Clérigos, no Recife.


Mosteiro dc São Bento, Rio de Janeiro Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, Saha Plantas: A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, Germain Bazin I

Plantas e outros elementos O Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro (1618), corresponde aos primórdios do barroco religioso brasileiro. Em 1668, começa a ser reformada por Frei Ber­ nardo de São Bento Corrêa de Souza, apresentando, desde então, nave central e naves laterais mais baixas, com altares, encimadas por grandes tribunas que se abrem para o corpo da igreja através de vastas arcadas; o arco-cruzeiro também foi aumentado e o coro colocado sobre um pórtico profundo. A Igreja da Ordem Terceira da Penitência, na mesma cidade, apresenta basicamente igual tipo de planta. Nave dc dimensões restritas e capela-mor, ambas de espaço retangular tradicional. A maior diferença existente entre elas está na disposição das naves e corredores que ligam o coro à sacristia e púlpitos. Enquanto na primeira São Bento — eles correspondem às naves laterais, na segunda são externos, permi­ tindo a ida e vinda dos clérigos sem serem notados; apenas as tribunas que se sobre­ põem a elas abrem-se para a nave. São templos que possuem o mesmo partido arquitetônico retangular fa­ cilmente apreensível. O sentido teatral é dado pela decoração e organização interna dos elementos. Igrejas forradas de ouro, com capela-mor (palco) profunda, nave (que cor­ responde à platéia do teatro) distribuída segundo a condição social dos fiéis (os ricos assistem às cerimônias confortavelmente instalados nas tribunas), e separação entre na­ ve e capela-mor marcada pelo arco-cruzeiro (proscênio) profusamente trabalhado, reco­ berto de talhas. Finalmente, não podemos nos esquecer da sacristia, na parte posterior do templo, que corresponde aos bastidores do teatro. Mas a idéia dc que tudo é ilusão e aparência chega à arquitetura religio-


sa, que transforma desde então o espaço num espaço aparente, ilusório. A igreja ainda é retangular, mas ao penetrar no átrio, o fiel se vê num espaço poligonal, criado pelo arquiteto para iludir. O primeiro exemplo, ainda bastante discreto, é o de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador. Externamente, a forma é retangular, mas internamente pode-se observar um polígono irregular representado pela nave com ângulos chanfrados nos cantos, que começa no coro e termina no arco-cruzeiro, e um retângulo, repre­ sentado pela capela-mor. Nas laterais, existem seis capelas bem profundas, flanqueadas por dois corredores, fora da construção, encimados por tribunas. Os responsáveis pelos riscos da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto, e da Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, ousaram ainda mais para criar um espaço teatral. Não abateram simplesmente os ângulos da nave, mas inseriram um octógono no interior de um retângulo. A primeira, tal como é vista de fora, compõe-se de dois blocos de cons­ trução regulares: um bem alongado, que contém a capela-mor e a sacristia, ao qual se tem acesso por intermédio de dois corredores encimados por tribunas por onde a luz penetra na nave —, e outro que é o corpo da igreja. Sem tocar na arquitetura exte­ rior, Antônio Francisco Pombal (1736) transforma completam ente a nave, encaixando no interior do retângulo um decágono de forma elipsoidal, cujos dois lados são forma­ dos pelo arco-cruzeiro e pelo arco do coro; os outros, por grandes arcos abatidos. Estes lados estão inscritos entre pilastras duplas caneladas de ordem compósita, que susten­ tam uma possante cornija. A segunda, a Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, é considerada a obra-prima do arquiteto Manuel Ferreira Jácome. Composta também


dc dois retângulos, o m enor deles encerra, apenas na parte interna, uma nave de forma octogonal, ladeada por dois corredores. Se a Igreja do Mosteiro de São Bento e a Ordem Terceira da Penitência apresentam elementos, sobretudo em seu interior, que as aproximam claramente do espaço teatral, as semelhanças no tocante às plantas são ainda maiores quando se com­ para o teatro com as três últimas.

As fachadas Ao contrário das fachadas dos templos italianos, movimentadas, com con­ cavidades e formas convexas, as fachadas portuguesas e brasileiras, até o rococó, primam pela sobriedade. O efeito teatral é obtido, sobretudo, pelo contraste entre a área exter­ na despojada e o interior ricamente ornam entado e cenograficamente distribuído. De São Bento a São Pedro dos Clérigos, a evolução é nítida. A fachada deixa de ser uma composição em que entram apenas torres sineiras limitadas por pirâ­ mides e frontões triangulares rígidos, para se elevar, se movimentar, como exige o espí­ rito do barroco. As cimalhas começam retas e terminam onduladas. Os frontões aumen­ tam de tamanho, transformando-se em volutas. O frontispício penetra no interior da igreja ou, ao contrário, o traz para a rua, se abre em janelas, óculos, cobre-se de carteias. As portadas emolduram a passagem dos fiéis. Nada é fixo, nada é real. Tudo é aparente, movimento, forma que se transfigura em nova forma.

Igreja da Ordem Terceira da Penitência, Rio dc Janeiro


Anjos sobre o cntablamento, capela-mor Matriz de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto

O cenário das grandes representações: a imaginária, a pintura, púlpitos e retábulos Todas as igrejas aqui descritas apresentam internamente uma certa dis­ posição cenográfíca. Ao contrário da arquitetura, que adquiriu essa característica aos poucos, a imaginária, a pintura, a talha e os púlpitos sempre tiveram em vista objetivos teatrais. As recomendações da Contra-Reforma levaram a uma revolução na arte da pintura e escultura sacras. Os efeitos foram sentidos também na colônia. Desde o início, a imaginária, a pintura religiosa local, procura persuadir, comover, levar ao en­ tendimento da mensagem da Igreja, através do uso de gestos teatrais, expressões de so­ frimento, dor, representação de mártires, heróis etc. No Mosteiro de São Bento, anjos, santos, personagens da história da Igreja estão representados teatralmente. Exemplo são os dois arcanjos que guardam a entrada da capela-mor e olham, como se fossem espectadores, Nossa Senhora do Monte Serrat sobre o trono no retábulo principal; os anjos que repousam sobre as colunas laterais, no arco-cruzeiro, e carregam o cálice e a cruz; os santos em talha que recobrem as pare­ des da nave, esculpidos metaforicamente com seus atributos e instrumentos de santifi­ cação.


Manuel de Brito Capela-mor, Igreja da O rdem Terceira da Penitência, Rio dc Janeiro Fotos: Mariângela Castro / Fundação Roberto Marinho

Para as paredes e o teto abobadado da capela-mor, Frei Ricardo do Pilar pintou quatorze painéis, com mártires e santos da Igreja em posições teatrais ou mortos — a morte é um dos temas preferidos do barroco. O teto entre o arco-cruzeiro e o coro não tem pintura figurativa, mas imi­ tação de mármore, recurso ilusionista típico do teatro, em que um objeto aparenta ser outro. A Igreja da Penitência e a de São Bento, no Rio de Janeiro, têm as pare­ des cobertas de talhas e povoadas por uma m ultidão de anjos, santos, todos representa­ dos cenograficamente, como os dois serafins que se encontram sobre o entablamento ao lado do arco-cruzeiro e dão ao fiel a nítida impressão de que abrem uma cortina para que se possa ver um a encenação pungente que se desenrola no altar-mor. Da mes­ ma forma, os anjos que seguram a tarja sobre as arquivoltas deste arco-cruzeiro parecem o coroamento de um luxuoso pano de boca, separando público e atores. Nas laterais, santos em preciosos retábulos se apresentam metaforicamente com seus atributos ou olhando com expressão de êxtase para o céu — como Santa Delfina — que se acha num nicho entre os altares de São Gonçalo Am arante e São Vicente Ferrer. Com plementando a decoração teatral desta “caixa de ouro”, Caetano da oé o pinta oito painéis para a capela-mor e recobre o teto abobadado da nave ™ P‘ntura ilusionista, de caráter alegórico, em que santos e doutores da Igreja veem Sao Francisco de Assis no céu, rodeado de anjos. •

i M m uitos cenários abre-se diante do cristão que penetra o inde Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Preto. Das paredes da nave saltam anjos.


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Do entablamento sobre as tribunas que dão para a capela-mor, outros anjos tocam cla­ rim, miram-se ao espelho, anunciam a glória do Reino dos Céus. Nos altares laterais, as imagens dramáticas, martirizadas, olham para o espectador que contrito contempla a cena. No teto da nave, em molduração complexa, figuram painéis de bordos recortados, tendo, ao centro, o Cordeiro sobre a Cruz, representando metaforicamente o Filho de Deus feito homem. Nossa Senhora da Conceição da Praia, Salvador, não traz a profusão de efeitos comuns às igrejas do barroco. Mas se as paredes têm pouca decoração, o teto da nave, executado por José Joaquim da Rocha, filia-se às concepções ilusionistas barro­ cas de origem italiana. Sobre colunas em que se encontram sentadas personagens da Igreja, aparecem o céu, Deus Pai e o Espírito Santo; logo abaixo, São João Evangelista e Cristo Flagelado rodeiam o Cordeiro de Deus. Na parte inferior, a Virgem está rodea­ da por quatro mulheres, representando, metaforicamente, os quatro continentes. São Pedro dos Clérigos, Recife, é mais sóbria, com poucas imagens. Já o teto da nave, autoria de João de Deus Sepúlveda, possui belíssima pintura arquitetô­ nica, que mostra, alegoricamente, São Pedro abençoando o m undo católico. A pintura do forro do coro é trabalho de Manuel de Jesus Pinto, onde se vê Cristo entregando a Pedro as chaves da Igreja. Ainda aqui há o emprego de recursos alegóricos, especificamente a metáfora. Quanto aos púlpitos, eles têm papel destacado na arte barroca. Nas igre­ jas aqui representadas, eles estão dispostos nas laterais — lado do Evangelho e da Epís­ tola — recobertos por dosséis com lambrequins, que os tornam semelhantes a um pal-


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co que, ao descerrar a cortina, deixa ver a personagem em ação, chegando-se até eles por meio de corredores laterais. Isto permite um maior impacto sobre os fieis, que não pressentem a chegada do pregador. Repentinam ente ele assoma à porta e. do parapeito encimado por cortinas entreabertas, fala dramaticam ente à platéia atenta. A imaginária, a pintura e os púlpitos concorrem para transformar o inte­ rior da igreja num espaço teatral, mas nada se compara ao efeito dos retábulos. Estes se destacam como verdadeiros cenários, abraçando as laterais e subindo ao encontro do teto do templo. Assim como no teatro barroco o palco é ocupado horizontal e vertical­ mente, o retábulo ocupa a capela em ambas as direções. Nada pode ficar vazio. Toda a extensão da parede deve ser tomada por colunas, quartelões, camarim, trono, elemen­ tos decorativos, anjos, santos, personagens bíblicos, a Trindade. São Bento, no Rio de Janeiro, tem o seu interior inteiramente revestido de talhas. Levou setenta anos para ser concluída, e o douramento ocorreu entre 1734 e 1736. Devido às modificações, seus retábulos são de estilo joanino (4). Ainda no Rio de Janeiro, a Ordem Terceira da Penitencia também é to­ talmente revestida de talhas executadas por dois grandes mestres, Manuel de Brito e Francisco Xavier de Brito. Em ambas as igrejas, volutas, folhas de acanto, anjos, marga­ ridas e medalhões irrompem das paredes diante do fiel aturdido. Nos retábulos, santos não são apenas imagens, mas personagens dramáticas. Entretanto, para Germain Bazin, a primeira igreja é mais teatral, mais expressiva: “...existe nesta floresta de acantos e mesmo na sua execução mais sumária — como se a mão estivesse sendo levada por um impulso que a im pedia de concluir — um toque de entusiasmo que atinge as raias do misticismo. Na Penitência, como em todas as obras da Escola de Lisboa, sempre dis­ ciplinadas por uma estrita vontade rítmica e conduzida por um cinzel erudito, a beleza é puramente formal. Intelectualizada, jamais provoca a explosão dos sentimentos líri­ cos” (5). Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto, teve o retábulo da capela-mor exe­ cutado pelo mesmo entalhador que trabalhou na Penitência, Francisco Xavier de Brito. Permanece o sentido teatral devido, por exemplo, à altura do trono onde se encontra a Virgem — dá a impressão que ela desce do céu ao encontro dos seus devotos — em rela­ ção à posição dos santos nos altares laterais. Em Nossa Senhora da Conceição da Praia, Salvador, os retábulos, todos de estilo joanino, devem ter sido iniciados antes de 1765, ano em que a igreja foi consa­ grada. E, apesar de m anterem muitas das características teatrais, foram reduzidos a um acessório arquitetônico. O espaço interno tem um tratamento arquitetural, em pedra de cantaria, com pilastras, arquitraves e molduras. As modificações realizadas em São Pedro dos Clérigos, Recife, devido, sobretudo, aos estragos feitos na madeira pelo cupim , tornaram neoclássicos os retábu­ los e diminuíram grandem ente os efeitos teatrais. O estudo destas talhas nos mostra que o grau de teatralidade depende astante da região. Isto irriplica dizer que com o deslocamento da sede do governo para


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o Rio de Janeiro e o enriquecimento da área mineira, o estilo barroco encontra seu apo­ geu. As igrejas são recobertas de elementos decorativos, as talhas povoadas de anjos, volutas. folhagens nativas. Tudo buscando um efeito teatral, como fora previsto pela Contra-Reforma. Já a Bahia atravessa um período de estagnação, sobretudo por se tor­ nar região periférica, o que pode ser comprovado, observando-se a própria construção de Nossa Senhora da Conceição da Praia, onde os recursos para o término das obras foram oferecidos pelo rei de Portugal, optando-se por um interior mais sóbrio. A ousa­ dia. o cunho teatral ficam por conta da arquitetura e pintura do teto. Pernambuco, ain­ da que não tenha problemas econômicos, utiliza em São Pedro dos Clérigos o teatro principalmente na arquitetura e decoração da fachada. Contudo, é inegável que, inde­ pendentemente de qualquer tipo de problema, uma certa dramaticidade sempre pode ser notada nos retábulos. Entretanto, este cenário criado pela arte barroca não atingiria plenam en­ te seu objetivo sem a contribuição de uma iluminação adequada. Ainda neste aspecto, arquitetos, escultores e pintores tornaram-se especialistas. Desde o momento em que surgem, no Renascimento, edifícios construí­ dos especilicamente para funcionarem como teatro, a preocupação com a luz é uma constante. Isto porque a iluminação é muito importante no teatro, servindo para subli­ nhar o efeito dramático, salientar a plasticidade do corpo humano, ressaltar determ ina­ dos personagens, aumentar o impacto emocional sobre os espectadores. Com esses mes­ mos propósitos, as igrejas do barroco recebem focos de luz em certas áreas, enquanto outras permanecem na penumbra. Invadindo o interior do templo através de janelas, clarabóias, óculos etc., a iluminação destaca a dramaticidade das imagens nos retábulos, os gestos e atitudes do pregador no púlpito, e, na pintura, o uso do claro-escuro coloca em evidência as princi­ pais personagens. É ela que amplia os efeitos teatrais da imaginária, pintura e dos retá­ bulos. Finalmente, não podemos nos esquecer do papel da música e oratória sacra, que acentua o clima de teatralidade do barroco religioso. Já no início da vida brasileira, se fazia música nos núcleos principais da colônia. O som sempre foi conside­ rado elemento de edificação religiosa e, também aqui, nasceu misturado com a reli­ gião. Não há cerimônia religiosa como missas, casamentos, enterros, sem m ú­ sica. Porém, a música religiosa está sujeita a contrato, seja por uma das numerosas con­ frarias (em rivalidades constantes), seja por parte do Estado. Os próprios músicos per­ tencem, aliás, freqüentemente, a irmandades e também a um a corporação profissional. A música acentua o caráter*dramático, teatral, que a Igreja pretende alcançar. Assim como a música auxilia a criar um a atmosfera propícia à devoção, a retórica é o instrumento usado pelo pregador para tocar os fiéis. Por intermédio de palavras, gestos eloquentes e teatrais, entonações diversas e recursos cenográficos, ele pretende atingir todos aqueles que vão aos ofícios religiosos.


O ritual litúrgico: a movimentação dos atores O fiel que atravessa o adro de um tem plo barroco, chamado pelo toque dos sinos e guiado pelas torres que se destacam, não imagina o mundo de ilusões que o espera. Ao ultrapassar o paravento, o véu descerra-se e a decoração exuberante sai dos retábulos e vai se apossando de todos os espaços livres. Ao levantar o olhar, ele vê o próprio teto se abrir, e o céu surgir coberto de nuvens, anjos, santos, Deus Pai. 0 forro foi rompido para mostrar o Paraíso e a corte celeste. A um sinal vindr» dos bastidores, castiçais e lampadários são acesos, im­ primindo vida às imagens que povoam os altares e sobem pelo entablamento. ilumi­ nando o palco, submergindo a nave em penumbra. A emoção estética é o início da emo­ ção religiosa. O cristão sente que está num espaço consagrado. A porta da sacristia é descerrada e um a procissão de oficiantes e acólitos solenes, em paramentos ricamente adornados e coloridos, atravessa o arco-cruzeiro, sob uma nuvem de incenso, em direção à capela-mor. Com uma genuflexão, começa o es­ petáculo. A partir de agora, e até o término da cerimônia, todos os sentidos dos espec­ tadores serão estimulados: a visão, pelas imagens que expressam toda a gama dos senti­ mentos, da dor ao cxtase; a audição, pela música que ecoa na nave. pela voz do prega­


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dor no púlpito; o olfato, pelo perfume do incenso que se espalha pelo ar. Nada foi es­ quecido pela Igreja na luta contra o protestantismo. Estamos no cenário de uma festa que tem características operísticas. No Brasil, como na Europa, a vida é sonho, o mundo, ilusão, e o catolicismo, o único cami­ nho possível para a vida eterna. Resta ao homem render-se, participar das comemora­ ções em homenagem ao Criador, envolver-se na profusão de cores, sons, formas, ima­ gens, cheiros. Profusão barroca. A descoberta do território traz para a colônia as ordens religiosas, passo decisivo para o êxito da Contra-Reforma, porque possibilita a expansão do catolicismo premido na Europa pelo avanço da Reforma, ameaçado de ficar restrito, principalmen­ te, à Península Ibérica. Com os religiosos, vem a ideologia tridentina e o estilo barroco. As igrejas construídas — a partir do momento que materiais e técnicas construtivas o permitem — lembram o teatro. E o mesmo agenciamento espacial, imagens dramatica­ mente representadas, retábulos que mais parecem cenários, efeitos luminosos que res­ saltam os atores, ritos encenados tal qual peças. Aqui, como lá, a arte serve para per­ suadir os fiéis da verdade do dogma católico. Artistas locais, imbuídos do mesmo sentimento religioso, se dedicam a construir igrejas que buscam retirar da emoção estética emoções religiosas. A arte bar­ roca, ligada à religião, com seu ilusionismo, sua movimentação e teatralidade, uma vez transposta para o Brasil, só desaparece quando o neoclássico se impõe como estilo do­ minante, após a segunda década do século XIX.

1 Daniel-Rops. UÉg/ise de la Renaissance et de la Reforme: une ère de renouveau. La Reforme C athohque, página 136 "... Pio V (1566-15 2) proclama Santo Tomás de Aquino doutor da Igreja (1567). E as universidades receberam ordem de ensinar o tomismo." 2. Aristóteles. A arte retónca e arte poética, página 34. 3. Metáfora—Segundo Germain Bazin (in D estins du baroque, página 42) ".é o discurso indireto da arte da oratória, que consiste, para exprimir as qualida­ des de uma coisa, legar-lhe as verdades de uma outra. Nas artes plásticas, a metá­ fora se traduz pelo emprego da alegoria, que inspira a imensa simbologia de to­ da a arte da época barroca.” O quadro torna-se uma arquitetura fingida, as cariátides são esculturas fingidas. Ela foi posta a serviço dos objetivos persuasórios do poder espiritual e do poder temporal. Antítese — Aparece por intermédio do culto dos contrastes, por exemplo, do recurso ao exagero nos relevos, ao^hoque de coloridos etc. Plasticamente, a antí­


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tese pode também ser exemplificada pela ação que imprime movimentos contrá­ rios ao corpo, destinados a enfatizar as paixões da alma. Hipérbole — É uma afirmação exagerada que foi traduzida artisticamente no barroco pelo prazer em representar, de modo enfático, santos tendo nas mãos crânios, retratar o êxtase, o martírio, a morte. 4. Robert C. Smith — A talha em Portugal, página 95. O estilo joanino “éo vocabulário próprio do barroco seiscentista romano (...) em que predominam con­ chas, feixes de plumas, palmas, volutas entrelaçadas, grinaldas c festões de flo­ res, especialmente: margaridas, rosas, girassóis, e frisos verticais de folhelhos e botões de planta. No aparato do estilo, figura uma diversidade de baldaquinos e sanefas, de cortinas e panos, de fragmentos de arcos e outros motivos arquite­ tônicos. (...) São acompanhados de figuras angélicas e alegóricas. (...) Mantém-se a coluna espiral, como baluarte principal do retábulo, modificando-se os seus ornatos na luz do novo gosto romano. Assim, desaparece gradualmente a parra de uva para dar lugar à grinalda de flores, ainda que ficassem, na maioria dos casos, as espirais iguais do fuste pseudo-salomônico. Em certos retábulos de grande qualidade, porém, aparece o tipo berniniano, o verdadeiro salomônico, com o terço inferior estriado". 5. Germain Bazin — Arquitetura religiosa barroca no Brasil volume I. página 330.

Bibliografia Abbagnano, Nicola. D icionário de Filosofia. São Paulo, Mestre Jou, 1970. Alewyn, Richard. LU niverse du baroque. Genève, Editions Gouthier, 1964. Argan, Giulio Cario. LEurope des capitales 1600-1700. Paris, Editions dArt Albert Skira, s.d. Aristóteles, Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s.d. Barata, Mário. Igreja da O rdem Terceira da Penitência do Rio de Janéiro. Rio de Janeiro, Agir, 1975. Bazin, Germain. A rquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro, Record, 2 volumes, s.d. Bazin, Germain. D estins du baroque. Londres, Hachette, 1970. Daniel-Rops, LEghse de la Renaissance et de la Réforme: une ère de renouveau La Reforme Catholique. Paris, Librarie Arthéme Fayard, 1955. Mâle, Emile. Lárt religieux après le Concile de Trente. Paris, Librarie Armand Collin. 1932. Orozco Diaz, Emilio. El teatro y la teatralidad d ei barroco: ensayo de introducion al tema. Bar­ celona, Editorial Planeta, 1978. Smith, Robert C. A talha em Portugal. Lisboa, Livros Horizonte, 1962. Weisbach, Wcrner. El barroco arte de la contrarreforma. Madrid, Espasa-Calpe, 1942. Sonia Maria Gonçalves Siqueira é licenciada em História e em Estudos Sociais c formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.


CARLOS ZILIO

Barnett Newman — Depois da Queda

“First tve feel, then we fali." James Joyce cm Ftnnegan 's Wake. citação que abre o texto de Barnett Newman para o catálogo da sala norte-americana da VIII Bienal de São Paulo.

Atribuir a uma determ inada obra um valor decisivo na configuração de um período da história da arte é uma questão complexa. A unanimidade em torno de Cézanne, apesar de uma certa má vontade dos surrealistas, é fato raro. Se considerar­ mos, por exemplo, o expressionismo abstrato, qual a necessidade que teríamos de op­ tar, para citarmos apenas estes, entre Jackson Pollock, Mark Rothko e Barnett Newman? 0 importante seria compreendermos a relação de complementação entre os três, cada um abordando uma faceta do novo dentro do conjunto de uma produção que possui um significado articulado. A proposição que fiz para que fosse dado neste número da revista um destaque a Newman, logo apoiada pelo conselho editorial, teve como critério tão-so­ mente a minha vivência de artista, onde, além da admiração e do afeto, tenho procura­ do manter uma relação produtiva com sua pintura. A obra de Newman sempre me trans­ mitiu o sentimento de que não se tratava de apenas mais um bom pintor, mas que havia ali uma rara qualidade em saber formular um sistema visual capaz de marcar, como um rastro no tempo, o signo da presença sensível do homem. Sua pintura levou ao paroxismo a conquista moderna de tomar a arte na sua materialidade. A eliminação do conflito figura/fundo encaminhou seu trabalho a uma radical valorização do plano da tela. A pincelada é praticamente imperceptível, a cor surge da superposição de camadas e se estende por amplas superfícies que se limi­ tam de modo tenso, ou são cortadas por faixas verticais ligeiramente irregulares (zips). A grande escala das pinturas imprime sua presença física e estabelece uma relação de interação com o espectador. A partir daí está montado o dilema Newman, onde, nos oferecendo todas as possibilidades para uma leitura formalista, dota este sis­ tema de um enigmático poder de significação, irredutível à simples associação dos seus elementos constitutivos. Sendo, sobretudo, um pintor, Newman produziu com Broken Obelisk


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uma das mais im portantes esculturas da história da arte. Nesta obra, o marco clássico do obelisco com o seu poder de afirmação antropocêntrica e vigor hierárquico é inverti­ do por um equilíbrio precário que transforma a ocupação impositiva do espaço pela consciência da fragilidade humana. A escultura nos remete à interrogação de Cézanne “...mas o centro? Eu não posso encontrar o centro." Em 1965, por ocasião da VIII Bienal de São Paulo, Barnett Newman rea­ liza a sua maior exposição fora dos Estados Unidos até então (1). No âmbito da delega­ ção norte-americana, sua presença é a de um pintor consagrado ao lado de jovens artis­ tas. A quantidade de trabalhos expostos, o destaque que tem no catálogo e a condição que impõe de ser hors-concours realçam esta sua posição. O próprio artista comparece à Bienal e, além de São Paulo, visita o Rio. Entre seus trabalhos, foram expostas telas como Vir Heroicus, Sublim is (hoje no MOMA), Shintng Fortb-to George (hoje no Cen­ tre Pompidou), Concord, The Wild, U/ysses, Day One, The Third e as esculturas, Here I e Here II. A compreensão profunda do moderno no Brasil passa necessariamente pelas primeiras Bienais de São Paulo. Através delas, nossos artistas tiveram a oportuni­ dade de ver reunida parte significativa daquilo que de mais importante a arte moderna produziu. O impacto que estas exposições provocaram deixou evidente os limites do nosso modernismo e estabeleceu as bases para a sua superação. Já a mostra de Newman parece ter passado desapercebida, na medida em que não houve nenhum a repercussão na produção brasileira. Destituída de qual­ quer consagração histórica, o registro onde foi recebida correspondia ao de um artista contemporâneo de prestígio em seu país. No Brasil, dos pintores expressionistas abstra­ tos, apenas Pollock era mais conhecido. O único referencial que alterava um pouco a situação da pintura de Newman é que a VIII Bienal vivia um momento importante na disputa pela hegemonia do mercado de arte entre Europa e Estados Unidos. Esta luta, que havia se iniciado com a premiação de Robert Rauschenberg em 1964, na Bie­ nal de Veneza, prosseguia agora em São Paulo. O júri internacional divide o grande prêmio entre dois artistas europeus: Alberto Burri, representante da Itália, e Victor Vasarély, pela França. O distanciamento de vinte e um anos nos permite perceber claramente as injunções políticas e mesmo as limitações do juízo crítico que cercam o julgam ento de uma obra de arte. Mesmo considerando-se a investida bem organizada dos americanos em torno do domínio do mercado e até das injunções políticas que a arte assumia como propaganda da ideologia norte-americana, é evidente que se passava na Bienal uma luta entre uma concepção academizante da arte moderna e a sua possibilidade de renovação. A pintura de New­ man, por exemplo, incidia sobre uma tradição abstracionista esgotada, que se limitava a preencher o pequeno formato da tela através de regras de composição que sustenta­ vam um naturalismo residual. No âmbito da pintura brasileira, viviam-se os últimos momentos de uma


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outra disputa, no caso, entre o abstracionismo informal e as correntes construtivas, ao mesmo tempo em que apareciam as primeiras influências pop. Neste conjunto de ten­ dências havia um denominador comum, que era o fim da pintura. Da parte dos abstra­ tos informais, salvo exceções como Antonio Bandeira e principalmente Iberê Camargo, oendosso dado à pintura representava, de fato, a sua negação, uma vez que se vinculava aos mesmos princípios exauridos da Escola de Paris. Os construtivos, tanto os concretistas como os neoconcretos, através de procedimentos distintos, acabam simplesmente por negar a pintura como meio contemporâneo de arte. Já as primeiras manifestações ligadas direta ou indiretamente ao pop retiveram desta apenas o seu aspecto mais su­ perficial, também antipintura. Os expressionistas abstratos haviam, a partir da década de 40, revelado o poder interno de renovação da pintura, demonstrando que os problemas que ela vivia na Europa não eram próprios ao esgotamento de um meio de expressão, mas de lingua­ gem. A pintura de Newman situava-se fora do maniqueísmo em que a arte brasileira havia caído (2). O seu poder estava justamente na inteligência com que se repensava a tradição moderna fora de qualquer dogmatismo, trabalhando sistemas tão diversos como os de Matisse e Mondrian. De qualquer modo, o processo de nossa arte havia se constituído de tal maneira que o trabalho de Newman possivelmente era visto pelos informais como construtivo e vice-versa. Daí suas telas terem passado praticamente, por assim dizer, em branco. Após a Vlll Bienal de São Paulo, as tendências ligadas ao pop e à arte conceituai aprofundaram a negação da pintura na arte brasileira. Ultimamente, com a nova voga internacional, a pintura, como nos anos da “peste” tachista, volta a ocupar os espaços dos nossos museus, bienais e galerias. É, portanto, uma ocasião propícia para repensarmos a trajetória da arte brasileira e a sua relação com a pintura. As primeiras bienais de São Paulo serviram para demonstrar nacionalmente o óbvio: que as transfor­ mações profundas na produção de arte ocorrem principalmente através do contato dire­ to com as obras que fizeram a história da arte e a reflexão sobre elas. A falta de acervo não se preenche com idéias, mas na ausência de bons museus e exposições, esta lacuna pode ser amenizada através de um a indagação crítica do material que, por meio de li­ vros e revistas, chega até nós. É o que pretendemos com a publicação dos dois artigos sobre Barnett Newman.

1. A delegação norte-americana na VIII Bienal de São Paulo era composta por: Barnett Newman, Larry Bell, Billy Al Bengston, Robert Irwin, D onaldjudd, Larry Poons e Frank Stella. 2. Para os concretistas, a pintura reduziu-se a um jogo formal baseado nas leis da Gestalt. Q uando fugiam desta direção mecanicista, a tendência era de prosse-


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guir com a mesma ordem platônica que norteava a tradição construtiva européia Newman, por seu lado, baseava-se justamente num esquema formal aberto t na valorização do sujeito. Já os neoconcretos vão desenvolver uma trajetória crescen­ temente antipintura. Depois de desfeito o grupo, as obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica (incorporando influencias fora da órbita construtiva como. por exemplo, Marcei Duchamp) tornam-se cada vez mais intransigentes quanto à pintura.

Broken Obelisk. aço cor-ten, 792x267x267cm. 1%

A liberdade de espaço, a emoção da escala humana, a santidade de lugar são o que estão a mover-se. Não tamanho (eu quero superar tamanho), não cores (desejo criar cor), não área (quero declarar espaço), não absolu­ tos (quero sentir e conhecer acima de tudo). O fetiche e o ornamento, cegos e mudos, impressionam apenas aos que não podem encarar o terror do “eu ”. Terrível e constante, o “eu” é para mim a matéria da pintura e da escultura. O jogo de artifícios formais, sua manipulação, o emolduramento do es­ paço, a associação (livre ou não) de áreas, cores, linhas, qualquer que seja sua razão de ser, abstrata ou não, deve conduzir à negação do “eu” atra­ vés de fetiches com ameaças de fogo e enxofre e através de ornamentos com êxtases de vodu. Ao invés do apaixonar-se, o que ocorre é o apaixonarse consigo próprio, o amor do xamã por si próprio. Como a imagem, fei­ ta pelo homem, do artista, ao invés de o artista como homem, inspirado e inspirador, fetiche e ornamento requerem apenas uma emoção — o culto de si próprio pelo artista e pelos que ele possa intimidar. Em vez de uma eloqüência que sente o que diz e dá vida à lama, não importam a mágica e as técnicas, o que ainda nos resta é muita lama. A vida, como toda obra de arte verdadeira, é, apesar de tudo, sempre positiva. Barnett Newman, texto publicado no catálogo da sala norte-americana para a VIII Bienal de São Paulo.






françois iyo ta rd

Barnett Newman — O Instante

O anjo Seria preciso distinguir entre o tempo necessário ao pintor para a execu­ ção de um quadro (tempo de ‘produção’), o tempo requerido para olhar e compreen­ der essa obra (tempo ‘consumo’), o tem po a que a obra se refere (um momento, uma cena. uma situação, uma scqüência de acontecimentos: o tem po do referente diegético, da história contada pelo quadro), o tem po que leva para chegar até o espectador desde sua criação' (seu tempo de circulação) c enfim também, talvez, o tempo em que a obra cela mesma. Este princípio, cm sua ambição infantil, permitirá isolar diferentes ‘luga­ res’ de tempo. O que distingue a obra de Newman, no corpus das vanguardas e espe­ cialmente no do “expressionismo abstrato” americano, não é o fato dela estar obcecada pelo problema de tempo, esta obsessão é partilhada por muitos pintores; é que a obra de Newman dá para isso uma resposta desconcertante: a de que o tempo é o próprio quadro. Para identificar c desenvolver este paradoxo, um modo pertinente seria confrontar o 'lugar do tempo’ newmaniano àquele que reage as duas grandes obras de Duchamp. O Grand Verre (1) c Etant Donnés referem-se a acontecimentos, o desnudar-se da IWanée, a descoberta do corpo obsceno. São uma coisa só, o advento da feminilida­ de, o escândalo que é ‘o outro sexo’. No retardem vidro isso ainda não se deu; nos arbus­ tos, por detrás das frestas, já. As duas obras são duas maneiras de representar o anacro­ nismo do olhar no que diz respeito ao ato de desnudar-se. O ‘assunto’ da pintura é ccrtamente o instante, o clarão que cega, uma epifania. Mas, segundo Duchamp, esta ocorrência, a feminilidade, não pode ser levada em conta no tempo do olhar da virili­ dade. Resulta daí que o tempo necessário para ‘consumir’ (sentir, comentar) estas obras é por assim dizer infinito: está preenchido pela procura da aparição (termo duchampiano) em si mesma, cujo desnudar-se é o analogon sacrílego e sagrado. A apa­ rição consiste em acontecer alguma coisa que é outra. Como o outro poderia estar figu­ rado? Seria preciso que este fosse identificado, o que é contraditório. Duchamp organi­ za o espaço da tAariée segundo o ‘ainda não’ e o de Sendo Dados segundo o não mais’. O observador do Grande Vidro espera Godot; atrás da porta de Etant Donnés o voyeur persegue Albertina desaparecida. As duas grandes obras de Duchamp articulamse entre a perdida anamnese proustiana e a paródia becketiana de prospectiva.

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Um quadro de Newman não tem por objetivo demonstrar que a dura­ ção excede a consciência, mas de ser ele mesmo a ocorrência, o momento que acontece. Duas diferenças com Duchamp: uma de ‘poética’, por assim dizer, e a outra de temáti­ ca. Ainda que de longe, o tema ducham piano pertence a um gênero: às Vaidades; o de Newman pertence às Anunciações, às Epifanias. Mas a distância entre as duas poéti­ cas plásticas é ainda maior. Um quadro de Newman é um anjo. Não anuncia nada. é o próprio anúncio. O compromisso em termos plásticos das grandes peças de Du­ champ é de frustrar c olhar (o espírito), porque ele tenta representar analogicamente como o tempo frustra a consciência. Porém, Newman não representa uma anunciação inapresentável, ele a deixa apresentar-se. O tem po dispendido para ‘consum ir’ um quadro de Newman é total­ mente diferente daquele exigido pelas grandes obras de Duchamp. Nunca se termina de contar o>Grand Verre e Etant Donnês. O relato, os relatos envolvem a Manée induzi­ dos pelos nomes estrangeiros esboçados sobre pedaços de papel das Boites, refletidas sobre o Verre, representadas pelos críticos. A narratividade se restringe, quase desapare­ ce nas instruções de montagem de Etant D onnés, mas rege o próprio espaço da creche obscena. Ela narra um a natividade. E o barroquismo dos materiais também exige rela­ tos. Uma tela de Newman opõe às histórias sua nudez plástica. Sem alusão, tudo está presente: dimensões, cores, traços, a ponto de torná-la um problema para o crítico. O que dizer que já não esteja dado? A descrição é fácil, mas sem graça como um a paráfrase. A melhor glosa consiste num a interrogação: o que dizer?; na exclama­ ção: ah!; na surpresa: mas é isso! Outras tantas expressões para um sentimento cujo no­ me na tradição estética moderna (e na obra de Newman) é o sublime. E o sentimento que se mostra. Não há, portanto, quase nada para ‘consumir’. Não se consome a ocor­ rência, mas somente o seu sentido. Sentir o instante é instantâneo. A obrigação A ruptura tentada por Newman com o espaço das vedute afeta o funda­ m ento pragmático desse último. Não é mais um príncipe-pintor, um eu que deixa ver a sua glória (em Duchamp, sua miséria) a um terceiro (incluindo-se ele mesmo, naturalrpente) de acordo com a estrutura comunicacional que serviu de base para a moder­ nidade clássica. Duchamp trabalha o mais que pode essa disposição, especialmente através de pesquisas sobre um espaço multidimensional e suas formas de articulação. A obra em seu conjunto se inscreve na grande articulação temporal cedo demais/tarde demais. Trata-se sempre do demais, que é o índice da miséria, enquanto a glória, assim como a generosidade cartesiana desejam o como deve ser. No entanto este trabalho de Du­ champ e executado sobre uma mensagem pictórica, plástica, transmitida por um emis­ sor, o pintor, a um destinatário, o público, a respeito de um referente, de uma diegese,


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que o público tem dificuldade de ver, mas que o incita a olhar, através dos mil estrata­ gemas e paradoxos preparados pelo pintor. O olho explora sob o regime do: Adivinha. O espaço newmaniano não é mais triádico, no sentido em que ele seria instanciado sobre um emissor, um destinatário e um referente. A mensagem não fala década, não emana de ninguém. Não é Newman quem fala, quem faz ver pelo movi­ mento da pintura. A mensagem (o quadro) é o mensageiro, ele diz: “eis-me aqui”, istoé. eu sou teu ou sê meu. Duas instâncias: eu, tu, insubstituíveis e que não ocorrem senão na urgência do aqui-agora. O referente (aquilo de que fala o quadro), o emissor (seu autor') não têm pertinência, mesmo negativa, nem tam bém como alusão a uma presença impossível. A mensagem é a apresentação, mas de nada, isto é, da presença. Esta organização pragmática está m uito mais próxima da ética do que de qualquer es­ tética ou poética. Para Newman, trata-se de dar à cor, à linha, ao ritmo, a força de uma obrigação, numa relação cara a cara, na segunda pessoa, aquela em que o modelo não pode ser: vê aquilo (lá), mas Vê-me, ou melhor. Escuta-me. Pois a obrigação é um m o­ do do tempo muito mais do que do espaço, e seu órgão o ouvido mais do que o olho. Newman leva ao extremo a refutação do distinguo introduzida pelo Loocoon de Lessing, refutação que constituiu, sem dúvida, a principal proposta das pesquisas das van­ guardas. desde Delaunay ou Malevitch.

O tema O tema da pintura não está, propriamente, eliminado. Em um dos seus Monólogos, intitulado The Plasmic Image (1943-45), Newman enfatiza a importância do tema para a pintura. Na falta de tema, escreve ele, ela se torna ornamental. E preciso reconhecer no surrealismo — esteja ele moribundo — este mérito: ao manter a exigên­ cia do tema, ele impediu a nova geração americana (Rothko, Gottlieb, Gorky, Pollock, Baziotcs) de se deixar seduzir pela abstração vazia em que as escolas européias sucum­ biram a partir dos anos 10. Segundo Thomas B. Hess o tema da obra de Newman era a própria cria­ ção artística, símbolo simplesmente da Criação, segundo a Gênese. Podemos admiti-la como se admite um mistério, ou pelo menos, um enigma. Newman escreve no mesmo Monólogo: o tema da criação é o caos. Diversos de seus títulos de quadros orientam a interpretação para a idéia (paradoxal) de começo. O Verbo como um clarão nas trevas ou uma linha sobre uma superfície deserta separa, pressente, institui uma diferença, faz sentir através dessa diferença, por menor que esta seja, e inaugura, pois, um mundo sensível. Este começo é uma antinomia. Ocorre no m undo como sua diferença inicial, o início da sua hi? tória. Não faz parte deste mundo uma vez que o engendra; cai de uma pré-história ou de um a a-história. Este paradoxo é o da performance ou da ocor­ rência. A ocorrência é o m om ento que vem ou chega imprevisivelmente, mas que uma vez aí toma lugar na cadeia do que aconteceu. Qualquer momento à condição de ser



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apreendido conforme seu q u o d de preferência ao seu quid, é início. Sem este clarão, não haveria nada, ou o caos. O clarão está aí todo o tem po (como o instante) e nunca está aí. O mundo não pára de começar. A criação em Newman não é o ato de qualquer um, mas o que ocorre em meio ao indeterminado. Se existe tem a, este é o atual. Ele acontece aqui, agora. O que acontece (quid) vem em seguida. O início é que há... (quod)\ o mundo, aquilo que há. Duchamp tinha por tema o inapreensível do instante que ele tentava representar através de artifícios espaciais. A obra newmaniana, a partir de Onement (1948), deixa de remeter, através de uma tela, a uma história situada do outro lado, história esta tão depurada, e supremamente simbólica como é, em Duchamp, a desco­ berta. a ‘invenção’ ou a ‘visão’ do outro (sexo). Se considerarmos os quadros do começo (nos quais Newman se torna Newman), que se sucedem em fluxo: Onement I, Galaxy, Abraham, The Name I, O nem ent II cm 1949, Joshua, The Name II, Vir Heroicus Sublimis em 1950-51, ou a série de cinco Untitled, de 1950, que The W ild conclui, dentre os quais cada peça mede de um a dois metros de altura por quatro até quinze centíme­ tros de largura, veremos que estas obras não ‘narram’ evidentemente qualquer aconte­ cimento, que não se referem fígurativamente a cenas retiradas de relatos conhecidos por espectadores ou que sejam reconstituíveis por eles. Elas simbolizam, sem dúvida, acontecimentos como seus títulos sugerem. E estes títulos autorizam, em certa medida, o comentário hebraizante de Hess, assim como permite também o que se conhece do interesse de Newman pela leitura da Torah e do Talmude. Embora o próprio Hess con­ fesse que Newman nunca utilizou a pintura para transmitir uma mensagem ao especta­ dor e que também nunca ilustrou uma idéia ou pintou uma alegoria. A não-figuratividade das obras, ainda que simbólica, deve servir de princípio regulador para o comen­ tário. Se questionarmos unicamente a apresentação plástica, o que se oferece ao olhar, sem auxílio das conotações sugeridas pelos títulos, não nos sentiremos somen­ te mantidos à distância de toda interpretação como também o próprio deciframento do quadro — sua identificação pelas linhas, cores, ritmo, formato, escala, material (meios e pigmentos) e suporte — parece fácil, quase imediato. À primeira vista ele não contém segredo algum de feitura, nenhum a habilidade capaz de atrasar a inteligência do olhar e, logo, de excitar a curiosidade. Não é sedutor, não é equívoco; é claro, direto , fran­ co, "pobre". É preciso adm itir que cada uma dessas telas, mesmo as que fazem parte de uma série (e será mais ainda o caso das quatorze Stations pintadas entre 1958 e 1966), não têm outra finalidade senão a de serem por si só um acontecimento visual. O tempo do que é descrito (o clarão do punhal erguido sobre Isaac), o tempo de des­ crever aquela época (os versículos correspondentes do Gênese) deixam de estar dissocia­ dos. São condensados no instante plástico (linear, cromático, rítmico) que o quadro é. Este se alça. diria Hess, como o chamado do Senhor que suspende a mão de Abraão,



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e acrescentaríamos, mas com maior sobriedade: alça a si mesmo como o faz a ocorrên­ cia O quadro apresenta a apresentação, o ser se oferece aqui, então. Ninguém, sobre­ tudo Newman. mc faz vê-lo. no sentido de contá-lo. interpretá-lo. Eu (o espectador) não sou nada além daquele que presta ouvidos ao som que chega até mim do silêncio; o quadro é este som. um acorde. Alçar-se, tema constante em Newman, deve ser inter­ pretado como ficar atento, escutar. O sublime A obra de Newman taz parte da estética do sublime introduzida por Boileau em sua tradução de Longin. Lentamente elaborada na Europa desde o final cio século XVII, teve em Kant e Burke seus analistas mais escrupulosos, e o idealismo ale­ mão. o de Fichtc e de Hcgel especialmente, reconheceu, a partir dos princípios nela esboçados (embora não os levasse em conta), que o todo do pensamento e da realidade forma um sistema. Newman havia lido Burke. Achava-o “surrealista” demais (num monólogo intitulado O Sublime ê Agora). No entanto, Burke coloca, a seu modo, o dedo sobre um ponto essencial do projeto newmaniano. O delight, este prazer negativo que caracteriza, contraditória e, quase ncuroticamente, o sentimento sublime, advém da suspensão de uma dor ameaçadora. A esta ameaça de que estão carregados determinados “objetos” e situações, e que pesa sobre a autoconservação, Burke chama “terror”; as trevas, a solidão, o silêncio, a proxi­ midade da morte podem ser “ terríveis” no sentido em que o olhar, um outro, a lin­ guagem. a vida vão faltar? Sente-se como muito provável que dentro em pouco nada mais aconteça. O que é sublime é que no âmago desta iminência do nada, alguma coi­ sa aconteça; apesar de tudo, um ‘ter lugar’ que anuncia: tudo não terminou. Um sim­ ples ‘olha aí’; a ocorrência menor é este lugar. Ora, Burke atribui àpoetry, que nós chamaríamos escritura, esta finali­ dade dupla c contrária de espalhar o terror (nós diriamos: de ameaçar que a linguagem cesse) e de relevar o desafio desta fraqueza do verbo, suscitando ou acolhendo a ocor­ rência de uma frase “ inaudita”. Q uanto à pintura, ele a julga incapaz de preencher, na sua ordem, este ofício sublime. A literatura é livre para combinar as palavras e expe­ rimentar as frases; ela possui um poder ilimitado que é o da linguagem em sua sufi­ ciência; mas a arte de pintar permanece, aos olhos de Burke, subjugada pelos limites dá representação figurativa. Com uma simples expressão como o Anjo do Senhor; es­ creve ele, o poeta abre para o pensamento a possibilidade de associações infinitas: ne­ nhuma imagem pintada pode igualar-se a esse tesouro, pois ela não pode jamais ultra­ passar aquilo que o olho pode reconhecer. Sabemos como a pintura surrealista tentou contornar esta insuficiência, colocando o infinito na composição. Elementos decorativos nem sempre reconhecíveis, mas, pelo menos, definidos, estão ordenados em conjunto de modo paradoxal (a partir


Shining Fortb (To Georee) nlâ„¢

" 2cm 1961


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do modelo do trabalho do sonho). Esta ‘solução’ permanece, no entanto, passível da objeção formulada por Burke, contra o poder de sublimação da pintura: não se faz mais do que reunir de outra maneira os ‘restos’ vindos da “ realidade perceptiva”. E se New­ man julga Burke ‘‘surrealista demais” é porque sendo pintor vê bem que esta condena­ ção não pode estar certa, a não ser numa arte que se obstina em representar, a se fazer reconhecer. Na Crítica da Razão Pura, Kant esboça, rápida e como que involun­ tariamente, uma outra solução para o problema da pintura sublime. Não se pode, escreve ele. apresentar no espaço e no tempo o infinito da potência ou o absoluto da grandeza, que são puras Idéias. Mas podemos ao menos fazer alusão a elas, “evocálas”, através daquilo que ele batiza de uma “apresentação negativa”. Deste paradoxo de uma apresentação que não apresentava nada, Kant dá como exemplo a proibição das imagens pela lei de Moisés. Isso não passa de uma indicação, mas anuncia as saídas abstracionistas e minimalistas através das quais a pintura procurará evadir-se da prisão figurativa. Em Newman, esta evasão não consiste em ultrapasar os limites fixados para o espaço figurativo pela Renascença e pelo barroco, mas em rebater o tempo fac­ tual, em que a cena’ lendária ou histórica ocorria, sobre a apresentação do próprio ob­ jeto pictórico. A matéria cromática, sua relação com o material (a tela, às vezes deixada sem preparo) e sua disposição (escala, formato, proporção), é somente isto que deverá suscitar a surpresa admirável: a maravilha de que alguma coisa ‘seja’ de preferência ao nada. O caos ameaça, mas o clarão do tzintzum , o zip que partilha as trevas, que de­ compõe como um prisma a luz em cores, e que as dispõe na superfície em um universo. Newman dizia que era antes de tudo um desenhista. Há uma santidade do traço em si. O local “ Meus quadros não se prendem nem à manipulação do espaço, nem à imagem, mas a uma sensação de tempo”, escreveu Newman num monólogo inacabado, de 1949, e que se intitula: Prologue for a New Esthetic. Esta sensação, especifica ele, não é o "sentido do tem po que fo i o tema subjacente da pintura e que aí misturou sentimentos de nostalgia e de grande drama, sempre feito de associações e de história". Aqui se interrompe o manuscrito do Prólogo. Mas as linhas que precedem esta inter­ rupção permitem elaborar um pouco mais o tem po em questão. Newman conta que em agosto de 1949 visitou os tumulus (ou mounds) dos índios Miami no sudoeste de Ohio, assim como a fortificação indígena de Newark também em Ohio. " D e p é diante dos tumulus de Miamisburg (...) fiqueiconfuso", es­ creveu ele, "pelo caráter absoluto da sensação, por esta simplicidade que falava por si mesma!' Numa conversa posterior, contada por Hess, ele glosaria este acontecimento do local sagrado. Olha-se o local e se pensa: “eis-me aqui e... além, lá embaixo para


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(além dos limites do local), o caos, a natureza, os rios, as paisagens... mas aqui se ad­ quire a sensação da própria presença... a idéia me veio de tomar o espectador presente, a idéia de que o ‘hom em está presente...’ Hess aproxima esta declaração do texto que Newman escreveu em 1963 para apresentar a m aquete de uma sinagoga que ele concebeu e construiu com Robert Murray para a exposição Recent American Synagogues Architecture. A sinagoga é urii tema ideal para o arquiteto que não está preso a nenhuma organização de espaço, a não ser aquele que ele julga traduzir melhor o mandamento: saiba de antemão o local em que você se encontra. E um local, Makon, onde qualquer homem pode ser chama­ do a se levantar e ler seu texto diante da Torah (...) Minha intenção é criar um local, não um ambiente; recusar a contemplação dos objetos rituais (...) Aqui, nesta sinagoga qualquer homem sentado está só no seu dugout, esperando ser chamado, não para su­ bir um caminho, mas para subir a colina de onde, sob a tensão do tzintzum que cria a luz e o universo, ele pode tom ar consciência do sentido total da sua própria personali­ dade diante da Torah e de seu Nome. A colina central onde se lê a Torah está inscrita sob o nome de m o u n d sobre os esboços e a planta. Esta condensação do espaço indígena e do espaço judaico tem sua ori­ gem e sua meta na tentativa de captar a “presença”. A presença é o instante que inter­ rompe o caos da história e confirma ou simplesmente lembra que “há” um existir an­ terior a qualquer significação daquilo que existe. E uma idéia que se pode permitir chamar de mística, uma vez que se trata do mistério do ser. Porém, o ser não é o senti­ do. Se acreditamos nisso, Newman, ao se revelar no instante, proporcionaria à “persona­ lidade” seu “sentido total”. A expressão é duplam ente infeliz. No caso presente nem a significação, nem a totalidade, nem a pessoa estão em jogo. Estes momentos vêm "após” alguma coisa ter ocorrido, a fim de situá-los. Makon significa “local” mas este “local” é também o nome bíblico do Senhor. E preciso entendê-lo como na expressão francesa avoir lieu, isto é, significando o futuro. A paixão Em 1966, Newman expôs no Guggenheim as quatorze “Stations of the Cross , o calvário, intitulando-as Lamma Sabachtani, o grito de desespero que Jesus cru­ cificado emitiu para Deus: “ Por que me abandonaste?” “ Esta pergunta, sem resposta”, escreve ele nas notas que acompanham a exposição, “acompanham-nos há muito tempo, desde Jesus, desde Adão. É a pergunta original. Versão hebraica da Paixão: a reconciliação da existência (e da morte) com o significado não ocorreu. O Messias, por­ tador dos sentidos, se faz sempre esperar. A única “ resposta” nunca ouvida à pergunta do abandonado não é “sabe por que” mas “sei”. Newman intitulou Be, um quadro, re­ tomado em 1970, ano de sua morte, sob o título Be I (Segunda versão). Uma outra tela, denominada pelo m archandque o apresentou em Nova York, em 1962, Ressurec-


H ere I, bronze, 272x72x69cm, 1962


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tion, foi exposta no Guggenheim, em 1966, junto com as "Stations”, sob o nome de Be II (iniciado em 1966). No livro de Hess, a reprodução da obra traz a legenda: “First Station. Be II”. Compreende-se que não se trata de forma alguma com este Sê da ressur­ reição no sentido do mistério cristão, mas da recorrência de uma prescrição emanando do silêncio ou do vazio e que perpetua a paixão, reiterando-a pelo seu início. No aban­ dono do sentido, a deontologia do artista consiste em produzir o testemunho de que "existe” sob a ordem do ser. Convém à prova do crime, que se torna assim o quadro, não oferecer nada par ser decifrado e, menos ainda, interpretado. "Daí a utilização dos foscos, das cores não moduladas, mais tarde das cores ditas ‘elementares’ nos Whos afraidofRed, Yel/ow a n d B lu e (1966-1967). Neste últim o título, o ponto de interroga­ ção é Arrive-t-il? e o A fraid deverá, acho, ser entendido como uma alusão ao terror burkeniano que envolve a "delícia” do acontecimento, o alívio, "de que haja”. O ser se anuncia no imperativo. A arte não é um gênero definido por um fim (o prazer do destinatário), menos ainda um jogo cujas regras deveriam ser des­ cobertas; ela cumpre um a tarefa ontológica, isto é, cronológica. Cumpre sem terminála. E preciso recomeçar sempre a testemunhar sobre a ocorrência, deixando-a ser a ocor­ rência. Nas primeiras esculturas de 1963-66, intituladas Here I, Here II, Here IIIcomo no Broken Obelisk, term inado em 1961, reconhecemos tantas versões tridimensionais do Zip, que vem riscar inelutavelmente, mas nunca no mesmo local, todos os quadros com sua rasura retilínea. A verticalidade em Newman não tem apenas a conotação da elação, o cortar com o abandono e o não-sentido. Ela não se levanta somente, mas desce e fulmina. A ponta do obelisco invertido toca o cume da pirâmide, como no teto da Sistina o dedo de Deus toca o de Adão. A obra se ergue naquele momento, mas o raiar do instante desce sobre ela romo um m andam ento menor: "Sê”.

Nota: Interrompo o estudo aqui. Falta m uito para ser dito. Em tempo, reconhe­ ço meu débito para com Thomas B. Hess (in m em ona) pelo seu Banett Newrnan. As informações que lemos estão apoiadas na tradução francesa de MarieThérèse Endes e Anne-Marie Lavagne. publicada no catálogo da exposição do Grand Falais em Paris (10 de outubro — 11 de dezembro 1972) pelo Ministère des Affaires Culturelles e pelo Centre National d Art contemporain. Dezembro, 1983 N.T. O título do Grande Vidro é Noiva despida p o r seus celibatários, mesmo: a sua metade inferior se chama M áquina cehbatária\ apuei Paulo Venáncio Fi­ lho. Marcei Ducbarnp, Brasiliense. 1986. p. 13. Optamos por manter os títulos das obras de Duchamp e Newman no original francês e inglês, respectivaménte.




JACQUES HENRIC

Barnett Newman — Com Deus sob a Gramática

É melhor avisar logo: quem, diante do Who's afraidof Red, Yellow and Blue III, do Stedelijk Museum d ’Amsterdam, não experimenta o momento intenso de paralisia nervosa, de respiração suspensa e sufocamento, esse instante da Station ao lon­ go da qual o vazio bruscamente começa a proliferar à sua volta, a puxá-lo dali e a leválo aos mil pontos do espaço; a determ inar seu lugar e a expulsá-lo no mesmo movimen­ to. Alguém que não perceba que essa pintura faz um barulho que podemos ouvir e esse barulho é um ronco surdo de braseiro que se prende à pele, pelo lado de dentro, e a respiração, alguém que não seja, então, invadido por um sentimento, misto de hor­ ror e alegria, não descobrirá m uita coisa nas linhas que se seguem. Sempre podemos situar Newman na história das formas. Fizemo-lo. Aliás, foi o que mais fizemos. Pelo menos no que concerne ao que chamamos de “posterida­ de” (com exceção de dois de seus críticos, H. Rosenberg, e T. Hess a quem convém prestar a devida homenagem). Sempre podemos analisar o como de Newman. Isto se deve ao nosso lado fin de siècle. O nosso assemelha-se ao precedente. Enormemente vulgar, po­ derosamente afetado. Lata de lixo e mundanalidade. Naturalismo grosseiro e vanguardismo precioso. O longo estertor do começo\ como a água se transforma em nuvem, as nuvens em água, o feudalismo em capitalismo e o capitalismo em socialismo e prin­ cipalmente como o socialismo não pode transformar a si mesmo em goulag e como a pintura surrealista atravessando o Atlântico transforma-se em expressionismo abstrato e como dois zips laterais reforçam a dualidade para você enquanto aqui uma faixa verti­ cal determina o plano do quadro e lá este zip aqui é o complemento daquele zip lá e aí estão as duas partes da tela, remetidas uma à outra. É pródigo mútuo e como New­ man transpôs e foi mais longe do que Lascaux depois Giotto, depois os outros, depois como ele mesmo graças à lei implacável do progresso contínuo das formas e o espírito humano é enfeitiçado pela estrita miséria animal ou pelo primeiro trapo ao alcance da mão embebido no primeiro líquido à sua frente. Tudo isto é demonstrável e o foi. No entanto, Newman tomou cuidado de anunciar outras cores: “a fina­ lidade da linguagem pictórica deve ser visão ou iluminação — a forma é uma coisa viva, um veículo para um pensamento abstrato complexo, para o sentimento de terror que experimentamos diante do desconhecido” — “a profundidade na arte deve ser atin­ gida através de uma aproximação do tipo c e r i m o n i a l " “experimentar temor, o que causa medo e a tranqüilidade no interior de si” — “ transformar a geometria numa


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língua de paixão”. Será necessário insistir para entender que nós estamos numa amplitude de ondas e num espaçe (ou num outro espaço) diferente dos que são regidos pelo estímulo do duodecímetro e da atividade formalista. Pavor, paixão, língua, pensamen­ to. Como montar o pensamento com linhas? Como com a cor dizer a vertigem do pen­ samento? Como com as linhas e cores viver um a paixão? Será que esquecemos que a série das “Station of the Cross” traz como subtítulo: Lama Sabachtani— Porque, por­ que... Eis a outra dimensão da aventura de Newman. De fato, existem alguns pintores, cujas obras nada têm a ver como o ‘vá como puder’ das formas e o colorido, para os quais a pintura é um ato poético abrupto, solitário, absoluto. ‘‘Não posso viver se não posso pintar”, repetia Newman. Para ele, a arte está próxima do sagrado; o primeiro ato manual do homem não foi uma olaria, explicava, mas a reprodução da imagem de um deus e acrescentava: ‘‘Pintar é destruir a parede.” Fazendo eco a Van Gogh “o que é desenhar? Como chegamos lá? E a ação de abrir caminho através do muro de ferro invisível que parece estar entre o que queremos e o que podemos. Como devemos atra­ vessar essa parede já que de nada adianta bater fortemente? Devemos escavá-la e atravessála lenta e pacientemente. Romper a bolsa. Sair, nascer enfim. IJma segunda vez, a ver­ dadeira Be I, Be II. Enfim de pé. Nou>. A pintura: ‘‘um ato de desconfiança contra o pecado original.” Adão e Eva. Name II. Fazer, com o caos do mundo e da história, e com o seu próprio: Traçar o último filete de eletricidade dos zips para organizar o ina­ nimado, o desmoronado, o petrificado. Forças contrárias às dos primeiros quadros: re­ pulsivas e dilatantes. O nem ent I, Onement II. É provável que aqueles que nunca bate­ ram contra a parede e vão adiante, em sono leve, não possam compreender o que New­ man pretende como significação quando afirma que o vermelho dos seus quadros é para ser atravessado como a ponte de Brooklin. Provavelmente jamais verão a fina franjá chamuscada que faz esse débil vermelho, esse amarelo ou esse azul, e em seguida recobre tudo com débil e gasta fala, pois é preciso ter ouvido em lugar de olhos para escutá-la. The Voice (1950): resposta de Abraão após o preto sobre o fundo preto, branco sobre fundo branco. Black Fire White Fire, 1 e 2. Ainda é preciso para sentir que a Geometria essencial está em jogo nas telas de Newman, não deixar de dar ouvi­ dos como fazemos antes de sair, retornando antes mesmo de termos efetivamente saído. Aconteça o que acontecer, diante destas cores reais, este azul real, este amarelo real, este vermelho real estamos verdadeiramente diante ou já estamos den­ tro mesmo, atrás, abaixo, além? cores palpáveis ‘‘como você andando na frente do quadro”. E recomendável não confundir o fio de voz e a ventriloquia; o sopro, a flatuência a tempestade e o peido. Cacatum non est pictum . Alguns pintam. Newman é um desses. Enquanto que outros Os outros fazem quadros. As obras de arte. Que podem ser belas ou feias. Que. são frequentemente belas. Que sao expostas, compradas, guardadas cm cofres ou museus. Podem scr originais, inovadoras, resolvendo do melhor modo este ou aquele


B a rn c tt N e w m a n — C o m

D e u s s o b a G ra m á tic a

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problema de espaço, de perspectiva. Que podem ter uma rica posteridade. Que consti­ tuem, em suma, o que chamamos uma data. A história da pintura está repleta dessas datas. Elas estabelecem cronologia e genealogia. Newman pertence sobretudo àqueles que pintam para aprender e para ser. Here one “saber antes onde estamos para saber quem somos e aonde vamos”. Here two espalhar a cor com amplo gesto da hipótese: caminhar às cegas em direção ao passado e ao futuro numa interrogação angustiada do presente. Agora, N ow I, Now II, Lerrance, Ullysses... Artaud: “Ninguém jamais es­ creveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, inventou senão para sair do inferno.’’ Esta famosa parede. Assim é Newman. Em sentido oposto aos que fazem quadros, ele vai do abstrato ao concre­ to e não o inverso. Ainda Artaud, do México, justamente, desta terra indígena pela qüal Newman também se apaixonaria: “as grandes imaginações não são aquelas que fazem aflorar o sensível sob a multiplicidade de seus aspectos, mas aqueles que em meio aos sensíveis movem-se com essa espécie de virtude alquimista que pertence ao estado de sono. “Recusa do anedótico, da representação descritiva, natureza ou psicologia”. New­ man interessa-se pelas tradições artísticas não-européias, a pintura dita primitiva, as pro­ duções simbólicas da pré-história. Trata-se de retomar uma pintura cujo espírito se per­ deu desde a Renascença e que se dizia ‘um meio de revelação’. De libertar-se, como ele explica em um de seus numerosos textos polêmicos. “Impedimentos da memória: associações, nostalgia, mito...” Daí sua rejeição para com o realismo, o formalismo, o expressionismo, o surrealismo, o simbolismo, todos os movimentos ou correntes man­ chados a seus olhos, de naturalismo. Mesmo a abstração dos puristas europeus como Kandinski e Mondrian parecelhe ainda prisioneira do sistema de representação. Ele considera seus amigos Rothko e Gottlieb muito apegados aos mitos arcaicos. Aliás, ele mesmo, no começo,chegou ao simbolismo das formas; facilmente percebemo-lo ao ver as telas de 1946/1947 como Pagan Void, The Comand, Genetic Moment, The Begining... É esta razão provavelmente que teria levado Newman a destruir todos os quadros anteriores a este período. Momento da tabula rasa. O nem ent I: de agora em diante não convém mais significar, mas afirmar. “Si mesmo, terrível e constante. “ Meu propósito é criar um lugar, não uma circunvizinhança”. Forma, cor, espaço começam a estirar-se infinitamente. Be I, Horizon Ught, Vir Heroicus Subhmis, Cathedra... O que se produz nessa pintura nas­ cente. É da ordem de uma concentração intensa e de um esquartejamento doloroso. Uma formidável música esse poder de devoração tranqüila que deixa enfim tudo ver sem medo. Primeiro Quem tem medo... em 66. De alguns lugares comuns atuais: O tema da pintura moderna abstrata não tem nenhuma importância; o que conta é o ato da produtividade em si, o porquê. Para Newman o assunto c de


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uma importância crucial. Q uem o negligencia é o decorador. Ele assinala um fenôme­ no de crise moral com relação à pergunta “quem pinta ? Entretanto, a ideologia da arte como reflexo de seu tem po ou prenuncio das revoluções vindouras lhe é absoluta­ m ente estranha. Nada de comum com a vanguarda do início do século, principalmente com a vanguarda russa. A arte nada tem a ver com a política, o artista também não. No entanto os pintores por quem Newman se interessa são os realistas sociais mexicanos (preocu­ pação em atingir o grande público). Ainda assim Newman é candidato nas eleições municipais. Sente-se atraído por uma política vagamente anarquista e denuncia o co­ m unismo no qual ele vê um a forma perigosa e de totalitarismo que ameaça a arte e a liberdade. Ele lê Kroptkine, Herzen, Thoreau. Ele poiemiza contra a arte isolucionista americana, questiona o “ nacionalismo exarcebado” e aos apelos à raça”, e a todas as formas de “etnismo” ; Newman se diz um intelectual cosmopolita. Após a Primeira Guerra Mundial e a grande crise econômica, ele afirma que a pintura não pode mais ser o que era antes. Lace curtain for Major Daley é uma obra “engajada”: protesto contra o anti-semitismo e chamada para a existência dos cam­ pos de concentração nazistas. Cada tela, segundo Rosenberg, é também a inscrição de um fato biográfico e histórico. Um pin to r não é um teórico. A prática antes. Newman, no entanto co­ meça por escrever e teorizar. D urante cinbco anos ele pára de pintar para “refletir” (ex­ periência pouco comum a julgar pela abundante, irreprimível e precipitada produção dos pintores atuais. Uma exposição a cada seis meses. Comparem com Newman que teve sua primeira individual aos quarenta e cinco anos, sua primeira retrospectiva aos cinqüenta e três, e não fez senão dez individuais durante sua vida. Com mais de cinqüenta anos ele não vende nada; enquanto seus amigos estão no ápice da glória, ele aposta nas corridas de cavalo para tentar inutilm ente ganhar algum dinheiro). A moral não é o domínio da arte. A partir daí que sentido pode ter um exílio interior? De quarenta e nove a cinqüenta e dois para Newman. E o fato de passar oito meses trabalhando um quadro pequeno. De ficar dez dias sem comer nem dormir? De trabalhar com formas tão grandes que nenhum a galeria pode expô-las? De viver mais de um ano com uma pintura, O nem ent I, para tentar compreendê-la apostenonl Um ateher é um santuário”, diria Newman. “Não posso viver se não posso pintar.’ Stendhal: “A pintura não passa da moral construída.” Newman: “Um homem passa a vida toda trabalhando num a só pintura qu num a única peça de escultura.” A questão do seu acabamento é um a decisão a partir de considerações morais. “Há uma tendência a olhar para as grandes pinturas de uma certa distância. Nestas exposições as grandes dimensões devem ser vistas de perto.” A imersão no sentido. Este sentido que Newman escamoteia servindo-se estritam ente de sua arte. Linha, forma, cor a ponto de não utili­ zar senão as primárias. Evocou-se m uito a Grécia, o judaismo, a cabala, o cristianismo, a respeito de Newman. Seria ele, talvez, o mais chinês dos ocidentais? O mais taoísta.


Barnctt N e w m a n — C o m D e u s s o b a G r a m á t i c a

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Seu modo de trabalhar o vazio: sua passagem, seu recorte milimétrico como nas obras Cãthedrã, The ll ild Queen of the night... Do vazio em direção às formas retornando ao vazio. I ma operação de força e das forças. Seu ponto de referência no espaço, seu inventário, sua compatibilidade e a cor intervindo como ponto de apoio para uma de­ las. Partilha. Rompimento e dissolução silenciosa. Últimos golpes de sondas e gongos: os zips. Medir no espaço o que corresponde às nossas próprias bases genéticas. (Genetic moments. Genesis. The Break.) Nascimento e morte. Vida e morte. (The Station o fth e cross.) Nosso próprio fundo homicida. Não é de se adm irar que esses imensos campos de cor façam estendendo-se sob nossos olhos esse sussurro lento, insuportável, de uma pele. que arde e se fecha em torno de si mesmo. A pintura como uma série de raids. Absorção flexível da matéria pela luz: entre as cores. Lastração e delastração. Vibrações. The voice o f fire. White and h o t. Logo o corpóreo e o m ental dominados por este sopro devastador. A arte de ver começa assim, pelos dedos, a ponta dos dedos, um tremor, um frio. isso segue pelo braço, cotovelo e articulações do ombro após ter forçado o pu­ nho e isso continua, escorre com o sangue fogo branco entre nervo e osso, olho e coturno, isso segue o movimento mesmo do pensamento. Pintar c olhar o que foi pintado. Hiatus perpetuados. Gestos de recémnascido, até o fim, o último. Repetição do grande tonitruante começo. A série de fra­ cassos. O pai diante de seu primeiro filho. Fracassando, recomeçando, fracassando ou­ tra vez. A sucessão dos fracassados; o velho motor da história. Um encadeamento de lapsos. Para Newman o trágico não passa disto: “ por muito heróico que sejam nossos atos, por inocentes ou morais que pareçam, terminam em um trágico fracasso causado por nossa incapacidade para compreendê-los ou controlar os seus resultados na socieda­ de; o ato individual é um gesto feito no caos; por isso somos impotentes de uma espécie irremediável.” Cada um a de nossas ações confina a catástrofe. Nunca terminamos de cair. Os cristãos falam de pecado original, os gregos invocam o Destino, os psicanalistas, os atos falhos. Os poetas, estes como Baudelaire (que Newman lê apaixonadamente), escreveu sobre o Mal, sobre a insana mania de geração à qual é submetida a espécie, o que nos faz nascer “entre excremento e urina’’. E contra este desastre infinitamente retraçado que Newman pinta. As etapas de uma Paixão (“The Stations”...) Estas vastas superfícies de cor uniforme nada mais são do que um movimento de desesperada resis­ tência. Um exorcismo sem ilusões. O contrário mesmo de miragem, já que de fato tudo o que Newman pinta é da ordem do milagre. A História. Newman, pouco antes da Segunda Guerra Mundial: “Che­ gamos finalmente à posição trágica dos gregos... A nova tragédia é de novo a tragédia da ação no caos da sociedade: é interessante notar que esta idéia grega se encontra tam­ bém entre os hebreus.” Por mais abstrata que seja, a obra de Newman é provavelmente a que mais contém a tragédia de seu tempo.


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Alguns pontos de referência 1937: Artaud de volta da Irlanda. Episódio da bengala de Saint Patrick. Sabe-se crucificado em Gólgota. Início do périalo do exí­ lio. Pouco depois, a Europa em guerra. França ocupada. Abraham, em 49. Preto betu­ minoso. Os pais e os filhos. A colina dos crânios. 49, é a morte de Artaud. The world one; two edges. O ano anterior: oito meses para espalhar sobre um pequeno formato uma cor mineral que pareça com a pigmentação da terra, vermelho indígena ou terra de Siena. Schoenberg acaba a partitura dos dois primeiros atos de Moisés e Aarão II. Deixou a Europa pelos Estados Unidos. Batizado desde a infância, ele reintegra a religião ju­ daica, em 23 de julho de 1933, na sinagoga de Paris. Em 40, torna-se cidadão america­ no. Pound, por sua vez, deixou os Estados Unidos e vive na Itália. Em 38, Freud teve de deixar Viena para fugir das perseguições nazistas. Em 44, Pound foi preso por cola­ boração com o fascismo italiano. Em 45, o m undo inteiro descobre o horror dos campos de extermínio nazista. 51: Schoenberg morre sem ter podido terminar sua ópera. Newman trabalha “The Stations of the Cross”. Prática, em série, preto e branco. Quatorze quadros. “Por detrás da pintura preta, o frio suor da agonia e o sangue da cor” (T. Hess). Newman “A Paixão não é um protesto mas uma declaração”. Ressurreição. BE II. De novo, a cor. Newman, a propósito deste quadro, de velocidade de execução, evoca o “gol­ pe” do duelo zen, “rápido e louco”. O Pensamento. De Kooning lembra que no momento em que Rothko m uda de nome, de mulher, de estilo; quando Franz Kline se reconhece em São Paulo no caminho de Damas (luz ofuscante, paralisia, renascimento); Newman fecha-se no escuro, segundo sua própria expressão e pinta Abraham. Seu pai acabava de morrer. O clarão do Zip que atravessará Newman, mais tarde, quando tem sua primeira crise cardíaca teria o efeito de um a iluminação. “ Isso parece”, diria ele estranhamente, “uma psicanálise imediata. Pintar. “Medir-se com o caos.” Movimento de conhecimento. Trans­ formar os elementos plásticos em "plasma m ental”. “Transformar a forma em uma no­ va espécie de totalidade . Distância entre as extremidades. Grécia/Palestina. Jericó/Chartres. Dionysius/Abraham/The Stations o f the Cross. Divisões infinitas. “Uma língua da paixão. Ou o pensamento como crucifixação. A questão sem resposta de que fala Newman. Lamma, lamma... Terror e alegria.” Heróica e sublime. Vir heroicus sublimis. Pertinência da observação de De Kooning: sim, talvez, o que vive Newman, na e através de sua pintura está próximo do que experimentou São Paulo. Santo Agosti­ nho, Pascal... Esta entonação atingida pela arte da qual fala Bataille. na vizinhança da morte. Se não nos convém, cruel, morrer no arrebatamento. pelo menos ele tem a virtude de consagrar um m om ento de nossa felicidade à igualdade com a morte.’ São rodos esses caminhos aí que Newman refaz na sua pintura. O de Mozart. bem como o de Baudelaire, o dos heróis bem como o dos profetas, os da história e os da mitologia. Isaías, Homero, Ulisses, Adão, Newman.


The Gate. รณleo sobre tela, 239xl93cm, 19รณ4.


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A influência recíproca das palavras sobre a pintura. O título das telas. As declarações de Newman. É preciso toda a fatuidade e o pedantismo dos críticos atuais, franceses ou americanos, para afirmar com soberba que se Newman tivesse tido à sua disposição um discurso “ moderno” (entenda-se o seu e traduza-se por psicanalíticomarxista) não teria jamais enlouquecido a esse ponto, falando da cabala ou de Jesus Cristo. A voz de Newman. Grave e velada, de asmático. Fundo de cinzas e rever­ so do sopro. O lorgnon seu terceiro olho. E o gesto preciso do cirurgião. Procurar a face escondida da cor. O azul sobre o azul, o amarelo sobre o amarelo, o vermelho sobre o vermelho. As séries: uma prática de cortar o cordão umbilical e soltar. A verdade, quando se manifesta, faz às vezes um barulho de serrote. No bloco congelado do tem­ po. Cada cor não podendo nunca juntar-se a ela mesma: a pintura de Newman atesta isso. Adão e depois Eva. Zip. Quem sente o serrote passar senão o próprio Newman? E ei-lo. Outcry. Entre dois quadros, duas cores, duas extremidades, numa fenda da His­ tória, estas “duas formas implacáveis” das quais fala Santo Agostinho, entre o que ain­ da não está morto e o que ainda não nasceu. Entre os dois espaços. PrimordialLight. Profile o f light. M idnight blue. Prodigioso poder desta pintura. A cor e o mundo pre­ sos entre estas duas extremidades absolutas; do que nunca foi até o que jamais será. O Apocalipse, em suma, um soco. Voice o f fire. A aventura hum ana de Newman não aparecerá banal — e sua obra igual a mil outras, simples estágio na história das formas — senão àqueles que se obstinam em denegar o pensamento para afirmar um sentido. Para dar a eles mesmos um sentido. A espécie humana e sua geração enfim justificadas e evidentemente o intercâmbio que daí provém. O navio pavilhão do Progresso Universal continua a navegar. Os seus ratos não vão abandoná-lo. Às vezes, eu ouço por baixo das telas de Newman o sinistro baru­ lho que fazem seus dentes quando eles tentam miseravelmente roer esses pedaços de infinito.

Traduções: Augusto Newton Goldman


The Promtse, รณleo sobre tela, 132xl78cm, 1949



PHILIPPE J U N O D

O Futuro no Passado

Costuma-se dizer que o século XIX foi o século da História, teoria cor­ roborada até pelos que pertenceram a este século, tentados, às vezes, a compartilhar desta honra com os membros do século anterior. No prefácio do seu romance histórico utópico Uchronie (1876), Charles Renouvier descreveu o século XVIII como o “primei­ ro da humanidade em 1.800 anos”, explicando que "vemos a humanidade se obser­ vando como um objeto... Este é, portanto, o século da História, fato que nos surpreen­ dería ainda mais se hoje não fôssemos historiadores e antiquários de todas as coisas, e, ouso dizer, a qualquer preço” (1). Anos mais tarde, a percepção desta hipertrofia histórica se expandiu e sofreu um severo escrutínio por parte de Charles Morice em La littérature de tout à l'heure (1889), que após definir o seu século como “o século dos historiadores”, con­ cluiu: “Aí se situam todo o seu mérito e todos os seus erros. Esta curiosidade pelo pas­ sado é bela embora seja apenas uma bela coisa morta, um trabalho fundamentado sobre as ruínas dos tempos passados, se uma fé firme e viva no futuro não o faz brilhar como um farol que ilumine o sombrio futuro... Esta grande preocupação com o passa­ do demonstra uma importância em suportar o presente e em preparar o futuro.” Mais adiante, o autor especifica seu diagnóstico, bastante significativo: “O sentido histórico é um sintoma de velhice de uma raça, um sinal de decadência” (2). O que é o historicismo? Vai além da intenção deste artigo definir o agre­ gado de fenômenos entre os quais estabelecemos um denominador comum chamado “historicismo”. Pretendo apenas refletir sobre os problemas relacionados à sua defini­ ção. Simplifícadamente poder-se-ia dizer que o historicismo implica ao mesmo tempo uma filosofia e uma visão da história, uma teoria da evolução e uma percepção do tempo histórico. É muito difícil dissociar estes elementos intuitivos e conceituais interrelacionados, fato que por si só marca os limites desta discussão. Em vez de sistemati­ camente questionar os historiadores e os filósofos do tempo, tentarei revelar os sinais de um novo modo de viver o tempo da história à medida que os mesmos aparecem nas criações dos artistas e nos relatos críticos.

Hubert Robcrt Ruínas Antigas. óleo


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A percepção do tempo, assim como a percepção do espaço, à qual está intimamente ligada, é uma variável histórica. Para reforçar este ponto de vista, basta compararmos os relatos das diferentes épocas no tocante à relação entre o presente e a antigüidade. Na dedicatória a Brunelleschi, da versão italiana do tratado Deliapittura (1436), Alberti desenvolveu uma idéia que estava destinada a um grande futuro, ou seja, marcar a rivalidade entre os modernos e os antigos. Os modernos possuíam maior mérito, segundo ele, porque, ao contrário dos seus ilustres precursores, não pos­ suíam modelos de onde aprender ou seguir. Isto é menos surpreendente quando con­ siderarmos que os resquícios da antiga cultura visual, especialmente da pintura, eram esparsos no início do século XIV quando somente os textos (Plínio, Vitrúvio) permi­ tiam vislumbres de um esplendor perdido. Portanto, a projeção albertiana de uma história dividida em três fases (Idade do Ouro, Idade Média e Renascença) lembrava a estrutura ternária da época cristã: Paraíso Terrestre, Queda e Redenção. Três séculos depois, Reynolds (3) e Diderot desenvolveram um argumento oposto: não possuímos grande mérito porque podem os copiar nossos antepassados; sendo os primeiros, eles é que foram os criadores. Podemos ver aqui um novo esquema do tempo cíclico empa­ relhado com a conscientização nostálgica de estar atrasado demais e, portanto, conde­ nado a repetir o que já fora feito. Tanto para Alberti como para Reynolds, a história ainda era unidimensional: havia o passado e o presente, o antigo e o moderno, e a escolha tinha apenas duas alternativas: inventar ou copiar. O único modelo era o antigo e suas reencarnações (por exemplo, a Renascença). As gerações posteriores, no entanto, se defrontaram com uma escolha mais variada: o passado subdividido numa série de concorrentes op­ ções de estilo, cada uma delas investida de uma variedade de associações éticas, políti­ cas e históricas. Devia-se escolher o grego ou o gótico? O clássico ou o exótico? O chi­ nês ou o hindu? Esta nova situação, junto ao espetacular crescimento de possibilida­ des, deu origem a uma nova justificativa de escolhas e, deste modo, a uma nova filoso­ fia na história das formas. Uma carta datada de 26 de novembro de 1820, escrita pelo pintor Peter Von Cornelius ao príncipe da Bavária, revela ainda outra conscientização histórica. Quan­ do lhe pediram uma opinião sobre os planos do Walhalla, um projeto para um monu­ mento nacional alemão, Cornelius exprimiu seu desapontamento pelo fato de o prín­ cipe não haver escolhido o original, o genuíno estilo alemão, isto é, o gótico. Contudo, sua crítica ao estilo neoclássico é apenas relativa: os italianos de Brunelleschi a Bramante poderíam com legitimidade recorrer aos modelos antigos, contanto que os mes­ mos fossem empregados dentro de um espírito “ nacional” que justificasse a cópia. A teoria explícita da evolução contida na assertiva de Cornelius é a seguinte: “Tudo que c \ivo adquire sua forma externa através de profundas determinações e cresce organica­ mente a partir daí, a tal crescimento e desenvolvimento nós chamamos de história; nada pode escapar à história, muito menos a arte.”


Hubcrt Robcrt Fonte Monumental, desenho

Ficamos surpresos com a coincidência: é precisamente numa época em que a unidade estilística parece estar rompendo, em que um nascente ecletismo traz consigo um livre-arbítrio para escolher uma linguagem formal, que se define uma teo­ ria determinista do crescimento orgânico, como se a autenticidade que Cornelius tenta asseverar tivesse que redimir a gratuidade da referência em relação a um antigo estágio cultural. No exato momento em que a evolução das formas parece hesitar, se dispersar e certamcnte se subdividir, a continuidade histórica é proclamada por decreto e fun­ damentada na teoria da necessidade interna, um conceito também destinado a um futuro promissor. Em outras palavras, a teoria de Cornelius parece ter assumido aqui um papel de compensação em relação a uma prática reveladora de uma crise: a crise da consciência histórica. É como se o fato de se recorrer a uma imagem natural — a do crescimento natural — tivesse que corrigir a fraqueza de um elo cultural, o-relacionamento que liga a criação à tradição. A distância negada por Cornelius ao favorecer o neogótico não só separa a forma e o conteúdo como tam bém o passado e o presente. A percepção desta distância foi dolorosa, testem unhada pelas diferentes tentativas de restauração artificial que constituíram os renascimentos. Gostaria de centralizar minhas reflexões sobre o histoncismo em torno desta noção de distância que considero primordial. A teoria de Panofsky sobre o para-


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leio entre uma consciência histórica m utante e o desevolvimento da perspectiva albertiana na época da Renascença consolida o relacionamento objetivo entre o apreciador e o objeto visto, a objetividade da visão. Ao contrário da Idade Média, que possuía a tendência de viver a antigüidade no presente, isto é, de modernizá-la, a Renascença apresentou através dos seus projetos arqueológicos uma descontinuidade (da Idade Mé­ dia) entre o presente e o objeto da sua nostalgia. E uma idéia fascinante, na medida em que permite a Panofsky desenvolver sua tese sobre perspectiva como forma simbó­ lica. O exemplo, porém, parece imperativo demais, por creditar a Renascença como fenômeno progressivo, que só ocorrería muito mais tarde, quase ao final dessa época. Na realidade, se colocarmos classicismo versus historicismo em vez de Idade Média versus o Quatrocentos poderemos aplicar o mesmo esquema e verificarmos que a perspectiva arqueológica progrediu de uma maneira espetacular. Isto levanta o problema da loca­ lização e do status do movimento neoclássico: deveria ser considerado como a última “renascença” (para empregar a terminologia de Panofsky) ou como o primeiro revival isto é, o início do historicismo? Para mim, esta pergunta (talvez um tanto ingênua) tem o seu valor por esclarecer a maneira pela qual empregamos as categorias históricas sem tomarmos co­ nhecimento dos riscos de nossa compartimentação. O neoclássico só pode ser conside­ rado como um ponto de entrelaçamento. Nos seus primórdios, o monopólio das refe­ rências ao passado estava com as artes grega e romana, monopólio que logo seria amea­ çado pelas referências às artes etrusca e egípcia. A volta davidiana à antigüidade, colo­ cada como uma extensão do classicismo de Poussin, assumiu uma certa continuidade com a tradição, enquanto a referência aos ideais republicanos de exempla virtutis re­ presentava a vontade de viver a antigüidade no presente. Contudo, à medida que o conhecimento arqueológico cresceu e o dese­ jo de uma reconstituição precisa se tornou radical, os artistas desenvolveram uma cons­ cientização da ruptura, da perda irreparável, perda daquilo que anteriormente permi­ tia uma inocente adesão ao passado. Certamente houve algumas tentativas em tornar real um estágio histórico passado, como nos movimentos dos “Barbus”, dos “trovado­ res”, dos “nazarenos”, e dos “pré-rafaelitas”. Foram, porém, tentativas desesperadas que apenas sancionaram e tornaram óbvia a imensa distância que tentavam vencer. A perda da inocência, preço dessa historicidade vivida de uma nova maneira, está cla­ ramente expressa nas diferentes tentativas do século XIX em busca do primitivismo e da ingenuidade. Para se resumir esta evolução, poderiamos dizer que se a Idade Mé­ dia vivia o passado no tempo presente, a Renascença e o classicismo viviam seu passado num tempo conhecido em francês como le passé composéy ou seja, no perfeito com­ posto, um passado que se estende até o presente. A sensibilidade histórica do século XIX, por outro lado, foi conjugada no imperfeito, ou às vezes, como veremos mais tarde, como um futuro no passado, uma espécie de antecipação retrospectiva. Em outras palavras, no final do século XVIII, uma crise de consciência


J. B. P iran c si Templo de Saturno, erroneam ente d e n o m i n a d o Templo de Concordia. Vedute di Roma, 1774

histórica afetou a percepção do tempo. Isto ocorreu principalmente em relação à per­ cepção do presente, então assomada por uma espécie de precariedade ou de relativida­ de que penso tenha sido o resultado de um processo de distanciamento. Para descrever o fenômeno, faço uso do Traité de caractérologie, de Le Senne (5), com sua distinção entre caracteres “ primordiais” e “secundários” : o primeiro “pertence o mais possível ao presente e esquece o passado e o fututo” enquanto o caráter secundário é definido pela “solidariedade entre a dependêcia sobre o passado devido a extensão das suas im­ pressões e a ação em direção a um futuro distante”. E claro, não se pode conceder mais que um valor descritivo a estas definições, e tenho bastante consciência da dificuldade em se aplicar uma análise de casos singulares a uma geração inteira. Entretanto, a percepção do tempo é primordialmente uma realidade de consciência individual (mesmo que não possa evitar um condicionamento sócio-cultural) e a verdade é que se encontram estas características que definem a consciência histórica coletiva de uma época em diversos indivíduos. Um exemplo: Restif de Ia Bretonne, que por acaso é o autor de um dos primeiros romances antecipatórios (Les Posthumes, 1802), escreveu na sua autobiografia Monsieur Nicolas: “ linha como meta principal


yteJV J of~ J litih s , a / tt s . t f e o /d Jiú rru tn nta/fft •

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me preparar para futuros aniversários, um gosto que mantive por toda a minha vida e que, sem dúvida, será um dos últimos a me deixar. Para mim, o futuro é uma profun­ da e aterrorizante brecha que não me atrevo a antever; embora eu faça o que todos os que têm medo de água fazem: atiro uma pedra primeiro. Se algo me ocorre, anoto e em seguida acrescento: O que pensarei dentro de um ano, neste mesmo dia, nesta mesma hora? Este pensamento me excita.” E mais adiante: “Adoro o presente, em se­ guida me volto para o passado; gosto das coisas que são como coisas que não são mais e se m inha alma estiver num a condição conveniente... eu atiro uma nova pedra no fu­ turo e o rio do tempo deverá fazê-la emergir no seu fluxo” (6). Parece-me que a estrutura do tempo vivido, como aparece no curioso texto de La Bretonne (que não posso deixar de considerar como sintomático), pode ser encontrada em diferentes confissões nos séculos XVIII e XIX. A fenda do presente dilacerado entre o passado e o futuro provocou impulsos contraditórios: progresso e tradição, os dois mitos que guiaram a consciência histórica de um século obcecado com sua entrada na história e com sua identidade histórica. A crise de identidade se mani­ festou em diferentes níveis, tornando difícil reduzi-la a uma definição esquemática. A malaise existencial, provavelmente mais bem expressada pelo famoso quadro de Gauguin, D ’o ü venons-nous, qui sommes-nous, oü allons-nous? (1897), foi imediatamen­ te percebida como tal. Falando de seus contemporâneos, Musset declara que os mes­ mos se dividem em lamentar as glórias passadas e esperar uma liberdade incessante­ mente adiada , enquanto o seu Confessions d'un enfant du siècle, testemunha já pelo título uma dolorosa conscientização histórica. O diagnóstico foi tentado mais tarde.


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B a tty L an g le y R u ín a s o r n a m e n ta is p a ra ja rd in s , 1728

No livro intitulado Une maladie morale, le mal du siècle (1880), Paul Charpetier cha­ ma o final do século XVIII de o início ‘‘de um grande período de melancolia” (7). As causas deste fenômeno são certamente por demais complexas para serem desenvolvidas aqui. Pensa-se, é claro, nas mudanças econômicas, tecnológicas, sociais e políticas que sacudiram a Europa naquela época. Os primórdios da industria­ lização, a Revolução Francesa e suas conseqüências, e a chegada ao poder da burguesia são elementos determinantes. Contudo, gostaria de relembrar a importância das cau­ sas “internas”, isto é, as causas culturais. O campo estético foi sacudido no século XVIII por uma crise que aba­ lou todo o seu sistema de valores. Nos séculos anteriores, a qualidade de um trabalho era dimensionada em relação ao padrão do passado, isto é, por sua adequação à tradi­ ção. Com a chegada do que ainda chamamos — na falta de um termo melhor — de romantismo, a inovação e a originalidade conferiram sobre uma obra de arte um valor cüja consagração se projetaria no futuro. O artista chamou para si o status de profeta, insistindo em possuir poderes visionários que seriam reconhecidos pelas futuras gera­ ções. Stendhal escreveu para os leitores do final do século XIX, isto é, muito depois da sua própria morte. Mesmo assim, os frenéticos partidários da “tábula rasa” encon­ trariam com frequência ancestrais que os tornassem parte de uma genealogia. Este re­ flexo aparece através da história da avant-garde, muitos anos depois do início do sécu­ lo XX. Temos aq u i o q u e eu já disse d a nova “ m u ltid im en sio n alid ad e” da his­ tória. Até W in ck e lm a n n , o padrão estético v inha m antendo, pelo m enos na aparência,


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sua singular identidade: o antigo. É verdade que todos os artefatos neodássicos rede­ finiram ou reinventaram seu classicismo e que a antigüidade do renovatio carolíngeo .íão era a dos humanistas da Renascença ou a de Poussin ou David. Contudo, sua esco­ lha era dupla: o clássico ou o não-clássico. A história era como uma trajetória linear feita de uma alternação de progresso e decadência, de renascimento e esquecimento, de aproximação ou desvio de uma norma considerada como invariável, qual seja: esca­ par ao tempo. Neste sentido o romantismo poderia ser definido como a recusa explíci­ ta e definitiva da univocidade dessa norma. Contra o monopólio do ideal mediterrâ­ neo, os românticos opuseram a restauração das tradições nacionais, sejam vindas do Norte ou do Leste. Colocava-se Ossian em oposição a Homero, Dürer em oposição a Rafael, o gótico contra o dórico. Para alguns, tudo que possuía uma aparência clássica se tornava suspeito, fazendo com que os irmãos Goncourt pudessem escrever: “Existem apenas dois tipos de pintores: os primitivos e os pintores da decadência. Os outros não são nada.” (Encontramos aqui o movimento binário: para o passado e em direção ao futuro.) Os “outros”, os que preferiram restaurar o ideal do antigo, o fizeram deliberadamente. O “neogrego” possuía, portanto, um significado totalmente diferente do pri­ meiro neoclassicismo, precisamente por causa desta deliberação. E neste novo contexto, caracterizado por uma pluralidade de opções es­ tilísticas e culturais, que se definiu o novo relativismo histórico. Delacroix escreveu o seu artigo Des variations du beau abrindo caminho para Riegl, o teórico do Kunstwollen, e para todas as reabilitações do nosso século. Todavia, essa mutação capital teria sido impossível sem outro fenômeno que nos afetaria ainda mais: a extensão daquilo que Malraux chamou de nosso “ museu imaginário”. Não se pode subestimar a impor­ tância da mudança que afetou o horizonte cultural, a partir do final do século XVIII como resultado da extraordinária expansão do conjunto de documentos iconográficos disponíveis. O efeito cumulativo do desenvolvimento da arqueologia, da multiplica­ ção de museus, do crescimento dos meios de reprodução e difusão e ainda da expansão colonial modificou radicalmente o campo de consciência histórica, tanto geográfica quan­ to cronologicamente. O gosto pelo exotismo, reforçado pelos meios e pela freqüência das viagens (não só à Itália) acrescentou uma dimensão universal ao mapa cultural, enquanto a busca de arcaísmos mais remotos dava novas dimensões à epopéia ociden­ tal. Aos resultados da arqueologia devemos acrescentar a contribuição de novas ciên­ cias, tais como a paleontologia, que acrescentou uma pré-história à história, reforçan­ do, desta forma, os laços da relatividade. No seu famoso Discours sur les révolutions de la surface du globe (1812), Curvier expôs sua teoria das catástrofes (8), que m uito impressionou a imaginação dos seus contemporâneos, além de deixar algumas marcas na pintura e na literatura da época. Uma vertigem da percepção do tempo histórico enfatizou a precariedade do presente. O súbito crescimento do conhecimento histórico e da geografia cultural pôs à luz a inseparabilidade dos eixos temporais e espaciais. Os lugares privilegiados desta


O F u ru ro n o P assad o

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junção eram o museu e o jardim. Num museu, o tempo e o espaço histórico foram exibidos num espaço para amostragem, a galeria. No jardim anglo-chinês, o conjunto de fabriques e a amostragem de estilos transformavam, através de uma caminhada, o novo eixo paradigmático em um sintagma, que é precisamente o princípio do ecle­ tismo. Em ambos os casos, encontra-se a justaposição do sucessivo com o simultâneo, o mesmo efeito de acumulação anacrônica que aparece em diversos quadros do século XIX representando a evolução da humanidade. O historicismo é também uma visão sinóptica da história devido a sua natureza enciclopédica. Podemos seguir o desenvolvimento desta visão através de uma série de imagens que, preparadas por Piranesi ou Pannini, prefíguravam as grandes decorações didáticas e monumentais do subseqücnte academicismo. LApothéose dHornere< de Ingres, no Louvre, o hemiciclo de Delaroche na Ecole des Beaux-Arts e o Albert Memorial, em Londres, são exemplos clássicos no limitado campo da história das artes. Aliás a pintura histórica geralmente possuía a tendência de se tornar a pintura da história, como foi ilustrada por Chenevard em seu projeto para o Pantheon, um corolário para o quase contemporâneo La legende des siècles (1859), de Hugo. Este hauriu sua inspiração na fonte, em contato com os Filósofos da história, Hegel, Ballanche e Edgar Quinet. O fenômeno não era novo: o programa do Pantheon germânico do Walhalla, uma geração anterior também tinha sido projetada por um historiador, Johannes von Müller, cujos cursos de história na Universidade de Gottingen tinham sido freqüentados por um jovem estudante, seu futuro cliente Luís da Bavária. Porém, a visão sinóptica de Chenevard, sua “palingenesia” ou “a marcha da humanidade em direção ao futruro, passando por sofrimentos e alternâncias por meio das ruínas e re­ nascenças”, foi estendida em escala universal e marcada por uma forte dose do sincretismo herdado de Creuzer, um historiador religioso. Isto é, as dimensões cronológicas e geográficas se misturavam de uma forma espetacular. Se por um lado a mistura de diferentes momentos e lugares num espaço de museu tinha o valor sintomático que lhe conferimos, devemos, no entanto, encon­ trar outras pistas para confirmar nossa definição no que poderia ser chamado de a "ima­ ginação histórica” da época. Neste sentido, o século XIX foi o século da alienação e da nostalgia, definindo o paralelo entre a percepção do tempo e do espaço. Assistia-se ao nascimento de uma nova forma de utopia, a "ucronia”. Estas viagens através do tempo, sugeridas pelos novos gêneros literários, como o romance histórico e a literatu­ ra antecipatória, respondiam a uma necessidade de exotismo cronológico. Por outro lado a nostalgia se desdobrou no espaço e foi se situar em lu­ gares longínquos, à custa do anacronismo geográfico — como o Pavilhão Real de Brighton e certos quadros de Gustave Moreau. Sob este ponto de vista, o orientalismo e o saudosismo são fenômenos estritamente paralelos, que, às vezes, podem ser combi­ nados. como demonstrado pelas teorias das origens orientais do gótico. O ponto cru­ cial ou o denominador comum destas diferentes manifestações é sempre a idéia (ou


a sensação) de “distância”, que pode ser tanto espacial como temporal. Neste particu­ lar, a Lettres Persannes (contemporânea ao gosto pela Chinoiserie, que por sua vez abriu caminho para o subseqüente niponismo) previa o tema da ruína antecipada: se distan­ ciando do “aqui” por um lado e do “agora” pelo outro. Para comprovar a adequação de um paralelo espacial e temporal, gostaria de citar um texto de William Hazlitt, publicado em 1821, com o título revelador de “Por que Objetos Longínquos nos Agra­ dam ”. Após estabelecer o valor estético da distância espacial associando-o com o infi­ nito e o passional, Hazlitt disse: “A distância no tempo tem quase o mesmo efeito que a distância no espaço.” O texto joga com a analogia entre os dois tipos de distân­ cia. Partindo da experiência íntima do tempo individual, vivido como um presente monótomo situado entre as memórias do paraíso perdido da infância e as esperanças de um futuro paraíso imaginário, o homem passa pela metáfora “da viagem da vida” para viajar pelo tempo histórico e em seguida para “regiões longínquas”. O que torna estas experiências válidas é a distância entre nós e o objeto percebido: “E o intervalo que nos separa dela... que nos excita...” (9). No Salon de 1767, de Diderot, encontraremos associações semelhantes nas meditações sobre as ruínas de Hubert Robert. A contínua exaltação da profundi­ dade, da inacessibilidade, da distância e da área (todos constituindo uma intuição muito precoce do conceito de espaço pictórico) está intim am ente associada com sonhar sobre o tempo vivido e o tempo histórico. “O efeito destas composições... é a de deixá-lo numa doce melancolia”, escreve Diderot, definindo o que ele chama de “as ruínas poé­ ticas”. A cronologia e a geografia estão conjugadas para alimentar a nostalgia: “Ande pelo mundo afora, mas mande dizer onde está, na Grécia, em Alexandria, no Egito, em Roma. Abrace todas as épocas, mas não se deixe ignorar a data do monumento... neste sentido, deixe que as suas sejam ainda ruínas eruditas” (10).


F rançois B a rb ie r C asa em fo rm a d e c o lu n a d ó ric a a r r u i n a d a , c o n s tru íd a p a ra o C h e v a lie r R a cin e d e M o n v ille e m su a p ro p rie d a d e c h a m a d a D esert de R e íz , 1 80

Parece-m e interessante que, ao m esm o tem po em que as ruínas voltem a entrar no cam po d a arte contem porânea, existia um a tentativa de en ten d e r o surgi­ m ento de um a nova consciência histórica. Q u e tem a é m elhor que as ruínas para reve­ lar a percepção vivida do tem po que inaugura cada pensam ento histórico? Sabemos de sobejo, devido aos diversos estudos existentes, do espetacular desenvolvim ento da idolatria das ruínas iniciada na segunda m etad e do século XVIII. Mas tam b ém sabe­ mos que esta produção possuía um a origem m ais antiga e que a tradição remontava, pelo menos, até a Renascença. Portanto, tem os q u e ten tar definir o q u e é q u e confere


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C. L. Clérisseau Sala-ruína construída no convento junto à Igreja de Trinitá dei Monti, Roma

às ruínas do historicismo sua qualidade especial e as distingue dos exemplos que as precederam. Para começar, vamos imaginar que o crescimento quantitativo representa por si uma marca, sancionada pela constituição de um gênero genuíno, autônomo e pictórico. O verbete “Ruína” da Encyclopédie confirma este certificado de batismo: chama-se de ruína o próprio quadro que a representa. Porém o fascínio exercido pelo novo gênero é apenas o indício de uma mutação estética de um nível diferente (11). Como Roland Mortier tão bem demonstra no seu notável estudo Lapoêtique des rumes en France (1974), o motivo ruína adquiriu uma nova função na época do iluminismo (12). Durante muito tempo as ruínas foram apenas um sinal referen­ cial, sem valor autônomo. Carregadas de simbolismo religioso (castigo, queda do mundo pagão) ou simbolismo moral (memento mori, vanitas vanitatum, sic transit gloria mundi), com um memorial para os humanistas e um documento da grandeza de Roma (Roma quanta fu it ipsa ruína docet), as ruínas nada mais eram do que um pretexto para uma meditação sobre a história e a queda dos impérios. Assim, sua beleza era apenas a beleza do m onum ento representado, uma lembrança incompleta. No século XVIII, inicia-se uma significativa mudança: a ruína passa a ser mais bela do que o monumento intacto. Esta noção, repetidamente expressada desde Diderot até Rodin, mostra claramente que a ruína conquistou uma existência visual autônoma e passou a possuir uma beleza própria, que pode ser registrada nas novas categorias do pitoresco e do sublime. É verdade que o antigo significado alegóri­ co ligado ao tema persistiu, mas recebendo uma nova dimensão. A meditação histórica


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se impregnou de nostalgia, de melancolia, com uma certa nota masoquista. Os huma­ nistas que tentaram modernizar a antigüidade gradualmente substituíram um sonho que se comprazia e exaltava a distância que os separava deste mundo irremediavel­ mente perdido. Na França, Diderot foi o primeiro teórico da “poesia das ruínas”, catali­ sando a sensibilidade do pré-romantismo. Tomando emprestado mais uma vez da In­ glaterra, onde o gosto pelo silêncio e pela solidão, o amor pela natureza, a tendência à irregularidade e ao não-finito primeiro se cristalizaram, Diderot desenvolveu esta no­ va estética numa direção pessoal e a alimentou através de uma reflexão sobre a falta de permanência, presente em todo o seu trabalho. “Ah, as belas e sublimes ruínas!”, exclamou ele diante dos quadros de Hubert Robert no Salon de 1767. “As idéias que as ruínas despertam em mim são inúmeras. Somente o mundo permanece. Somente o tempp permanece. Que época é esta, nosso mundo! Estou andando entre duas eter­ nidades. Para onde dirijo o olhar, os objetos que me cercam anunciam um fim e me resignam para o fim que me aguarda.” Podemos ver como o tempo antigo do memen­ to mori está renovado sob a forma de espanto. Sendo retrospectiva, a meditação se tor­ na prospectiva. “Voltamos os olhos sobre os remanescentes de um arco triunfal... e nos voltamos para nós mesmos. Antecipamos a devastação do tempo e nossa imaginação espalha por todo o mundo os edifícios onde moramos... somos os sobreviventes de to­ da uma nação que não mais existe; eis aqui a primeira linha sobre a poesia das minas.” Esta experiência quase pascaliana (as duas eternidades nos lembram os dois infinitos) geraria muitos ecos, principalmente em Bernardin de Saint-Pierre, que escreveu: “Gos­ tamos das ruínas porque elas nos atiram no infinito” e “Estamos interessados nelas na medida da sua (delas) antigüidade” (13). Um especialista em ruínas à l'antique, Hubert Robert se destacou fa­ zendo incursões mais remotas no campo arqueológico, como se vê em seu quadro que está no Smith College. A distância geográfica e histórica elicitada pela pintura é dupli­ cada pelo afastamento do ponto de vista e sugestão de distância espacial, assumindo um valor metafórico semelhante ao do viajante diante das ruínas — como sugere Di­ derot. Em sua monografia sobre as ruínas de Hubert Robert, Hubert Burda esclarece como o distanciamento do ponto de vista é uma constante que forma o teatral de sua arquitetura (14). Porém, distância física é também sinal de gosto pelo exotismo crono­ lógico bastante comum na época. Vimos como o museu e o jardim preenchiam funções análogas. Obser­ vemos que um jardim também pode ser museu, segundo a representação de Hubert Robert em Monuments Français. Temos que acrescentar que a pintura de Robert in­ cluía jardins e museus por ser ele o autor do projeto da falsa ruína de Betz (circa 1780), e por ter sido nomeado curador do Museu do Louvre em 1778. Foi nesta capacidade que ele realizou o projeto que estudaremos a seguir. Eis aí um pintor cujo gosto pelas ruínas o fez submeter aos seus capri-


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chos os monumentos de diferentes estilos e épocas: ruínas romanas, góticas, ou às ve­ zes objetos mais recentes como a Porta Saint-Denis ou a Sorbonne. Temos aqui a per­ feita ilustração da declaração de Diderot que diz: “ Devemos arruinar um palácio a fim de torná-lo um objeto interessante ” (15). Robert nunca se privou deste interesse, desenhando avidamente as demolições da época (a Bastilha, em 1789, Saint-Jean en Greve, em 1800) ou incêndios como os do Hôtel-Dieu (1772) ou da Ópera (1781). No Llncendie de Rome, a aura de catástrofe acrescentou o prestígio da antigüidade na criação desta ruína in statu nascendi, uma manifestação do estilo sublime. O pitoresco é tocado num diapasão onde o poder sugestivo da distância temporal não é de menor importância como dem onstram o “arruinam ento” da Villa Rotonda, de Palladio e do Tempietto, de Bramante. Inicia-se aqui um novo capítulo sobre a “ruína antecipada”. As ruínas artificiais que se m ultiplicam pelos jardins da época são “an­ tecipadas” porque a qualidade de se tornarem velhas já lhes foi dada desde o princí­ pio. Temos dois exemplos relativamente atrasados (1820-1830), vindos de Lausanne. Segundo uma tradição não corroborada, são os produtos de um concurso de antigüi­ dade. O efeito do luar não torna a leitura mais fácil, favorecendo, ao contrário, o sen­ tido de antecipação; Chateaubriand ou Madame de Staél tinham plena consciência dis­ to quando visitaram as ruínas romanas sob a luz do luar (16). Embora a falsa ruína aparecesse como um típico fenômeno da época há exemplos mais antigos, como a pon­ te em ruínâs do Palazzo Barberini, de Bernini (1629-1632), precedida pelas bizarras invenções de Bomarzo: ou até mesmo por Pesaro, se acreditarmos na Viia de Girolama Genga, de Vasari. Porém, da falsa à futura ruína existe uma distância e Hubert Robert é praticamente o primeiro a transpô-la. É verdade que um quadro anônimo do Museu de Rheims, datado do século XVII, representa a Igreja de Saint Niçaise em ruínas, embora a igreja tenha sido, na realidade, demolida m uito mais tarde, em 1799- Po­ rém, estas exceções confirmam o fato de que o fenômeno parece se desenvolver repentinam ente a partir do final do século XVIII — um fato que torna a ruína antecipada ainda mais significativa. Sei de três estudiosos que examinaram o tema da ruína antecipada: An­ dré Corboz (17), G ünter Metken (18) e Werner Oeschlin (19). Concordo inteiramente com as conclusões a que eles chegaram. Vou apenas tentar colocar este fenômeno nu­ ma perspectiva mais ampla e dentro de um contexto ligeiramente diferente — o da antecipação literária e seu relacionamento com o desenvolvimento da arqueologia — a fim de enfatizar sua significação histórica, que acredito resida no fato de ser uma nova forma de se perceber o tem po histórico. No Salon de 1796, Hubert Robert exibiu dois quadros que acabaram por se tornar famosos. O prim eiro foi um projeto para a Grande Galeria do Louvre. Esta visão descrevia uma futura etapa da galeria (que só seria terminada após o final a Segunda Guerra Mundial), mas sua inspiração, como demonstra Corboz, faz parte de uma série de capriccios sobre o tema da galeria abobadada da antigüidade, geral-


H u b e r t R o b e rt R u ín a s n o p a r q u e d e B etz, 1802

mente em escombros, o que pode talvez ter dado origem à idéia da iluminação zenital. Essa tradução do passado para o futuro é ainda mais evidente na segunda visão intitulada Rutne daprés le tableau précédent ou Vue imaginaire de la grande galerte en ruines m qual a utopia arqueológica corresponde literalmente ao que chamamos em francês le fu tu r anteneur; ou seja, o futuro do presente composto ou o que terá sido”. “Esta fantasia, que seria repetida dois ou três anos mais tarde em outro quadro do Louvre, e à qual se seguiram outros projetos de decoração para a galeria, pode ser


H ubert Robert Vista da Grande Galeria do Louvre como Ruína, óleo, 1796

considerada como um a simples brincadeira dentro do gênero dos “caprichos Con­ tudo, não deixa de ser um a maneira de se valorizar a concepção do artista. Quando jovem, as invenções arquitetônicas de Robert eram à l'antique e ao mesmo tempo asse­ guravam a precariedade de um presente feito para se tornar o passado no futuro. Pela primeira vez na história, o distanciamento histórico é “contemporâneo” à invenção; como disse Burda, “a ruína é uma expressão de uma nova consciência histórica” (20). Esta nova dimensão histórica se manifestou de uma maneira ligeriamente diferente no trabalho de Casper David Friedrich, de cuja autoria conhecemos duas ruí­ nas antecipadas: um a visão da catedral de Meissen (cerca de 1835; perdido) e outra da Jakobikirche de Greifswald, que ele compara com o estado do monumento na épo­ ca. Urna versão em aquarela da mesma vista apresenta algumas diferenças: no primei­ ro plano, uma cripta demolida (a câmara mortuária de uma família) parece ter uma intenção simbólica. Esta e tom um ente a intenção de Friedrich que, num comentário sobre a ruína de Meissen, desenvolveu explicitamente a idéia de um renascimento da igreja, por sobre os seus escombros. Contudo, mesmo quando otimista, a antecipação dc decrepitude é um a forma de tornar relativo o presente. O terceiro ‘clássico” da série de ruínas antecipadas é o Banco da Ingla­ terra. de Soane. que Gandy representou por volta de 1830. Oeschlin demonstra a ri­ queza e a am bigüidade do projeto, que era, ao mesmo tempo, uma análise sintética


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do plano labiríntico do edifício perceptível e compreensível apenas com a retirada da cobertura e um “capricho” gerado pela tradição da ruína pitoresca, presente na repre­ sentação da rotunda arruinada, de 1832. Apesar dos diferentes enfoques, estas três ex­ periências apresentam a mesma estrutura temporal, caracterizada por uma tradução da perspectiva arqueológica em relação ao futuro. Podemos inserir nestas séries de representações do futuro no passado o frontispício do álbum de Meryon sobre Paris. O título está esculpido numa placa vaga­ mente funerária, cuja avançada idade é reforçada por impressões fossilizadas, um ele­ mento popular copiado de Cuvier. Na verdade, este recurso parece ser um desenvolvi­ mento dos frontispícios de Piranesi, com a diferença de que, para os italianos, a forma das letras fornece indícios em relação á data dos monumentos representados, o que de forma alguma é o caso em relação a Meryon. Também nos perguntamos sè o retrato de Meryon por Bracquemond, que inicia esta série de gravuras dedicadas a Paris, não foi inspirado pelo retrato de Piranesi por Felici Polanzani, que também inicia o Opera varie de 1730. Nos dois casos, o efeito de distância é obtido por uma projeção no futu­ ro de uma perspectiva arqueológica. Se o retrato de Piranesi aparece como herdeiro de uma tradição clássica, na qual o indivíduo é enobrecido por uma apresentação do próprio busto à 1'antique (que pode ser encontrado até nas páginas de rosto da Iconography de Van Dyck ou nas Inventiones Heemskerckiane), o caráter ligeiramente sar­ cástico do retrato de Meryon, reforçado pelo texto (“o sombrio Meryon com o rosto grotesco” ), é mais possivelmente a antecipação do auto-retrato de Ensor (1888), intitu­ lado Em 1960, com o qual este renova de uma forma irônica a tradição do memento mori. Esta perspectiva arqueológica dá uma cor nostálgica à Pais de Meryon e, às vezes, faz com que ele reconstitua elementos perdidos como a Pont-au-Change, cujas casas em processo de demolição foram pintadas por Hubert Robert. A lembrança de Meryon é também uma expressão da ameaça à velha cidade, representada pelas trans­ formações de Haussmann. que Meryon interpretava como afrontas pessoais. Os esboços piranesianos, geralmente empregados por Meryon como no caso do LArch du Pont Notre-Dame (outra vítima do barão urbanista), podem ser en­ contrados na literatura contemporânea. Por exemplo, temos um texto de Gautier escri­ to como prefácio para Paris demoli de Edouard Fournier (1834), no qual o mito ro­ mântico de Piranesi é reativado. "É um curioso espetáculo, estas casas abertas, com seus tetos suspensos sobre um abismo... as escadas levando para o nada... seus fragmenos bizarros c suas violentas ruínas, que levariam alguém a dizer que... estas eram as inabitáveis aquiteturas que Piranesi esboçou em suas gravuras com um febril estilete.” A mesma perspectiva arqueológica estava presente em uma ilustração da edição Hetzel, de 1833, do poema de Hugo: A LArc de Triomphe, datado de 29 de março de 1837. em que imaginava a futura ruína de um monumento inaugurado apenas um ano antes. A última gravura de Gustave Doré e Blanchard Jerrold. Londres.


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uma peregrinação (1872), representava um futuro peregrino da Nova Zelândia, medi­ tando sobre as ruínas de Londres. A distância é novamente empregada num eixo tem­ poral e espacial. Por seu aspecto vingativo e sua implícita crítica social, a gravura de Doré está ligada a outra tradição, a da ruína como alegoria política, desenvolvida, entre outros, por Diderot e Sebastien Mercier. A queda dos impérios se tornou a ocasião para uma lição de militantism o ou resignação histórica. O esboço de um teto do Louvre por J. B. Mauzaisse, intitulado Le tem ps m ontrant les ruines (1820), onde se pode ver um busto destruído de Napoleão ao lado dos de Homero e Laacoòn, aparece como uma meditação vagamente nostálgica sobre as conseqüências de Waterloo. Igualmente ambíguas são as ruínas da coluna Vendôme e das Tulherias, dois símbolos óbvios, vis­ tos por dois favoritos do Segundo Império: Isidore Pils e Meissonier, em 1871. A tradi­ ção da ruína de guerra rem onta pelo menos ao século XVIII, como pode ser observado na vista de Belotto das ruínas de Kreuzkirche, em Dresden, destruída cinco anos antes pelos canhões prussianos. Porém, os bombardeios da Guerra Franco-Prussiana e as de­ vastações da Comuna deram força ao gênero, bem como caricaturas como Paysage parisien de Daumier, datada de maio de 1871, e a veduta catastrófica substituída atual­ mente pela fotografia sensacionalista, estigmatizada através de desenho publicado no lllustrated hondon News, de 1871. O destino destes monumentos destruídos, renomados por seu valor pi­ toresco (que resultariam na publicação de alguns suntuosos álbuns) e sua função didá­ tica (como símbolos políticos adotados pela Terceira República) permaneceu instável durante bastante tempo. E neste contexto que Huysmans escreveu um magnífico pan­ fleto que não desmereceria os surrealistas e que nos traz de volta ao tema da ruína antecipada: “Le Musée des arts décoratifs e larchitecture cuite” (publicada em Certains, em 1899). Entrando na polêmica em torno da evacuação das ruínas do Conseil d Etat e sua substituição por um museu, Huysmans tece um libelo contra a moda do pastiche agravada por esse projeto e, em seu lugar, sugere a conservação das ruínas: Ateiem fogo ao desagregado desta cansativa montoeira de pedras... em vez de uma terrível caserna ter-se-ia um palácio romano demolido, uma fantasia de Babel, um es­ boço de Piranesi, com suas arcadas inacabadas, seus arcos perdidos, suas galerias se dirigindo para o espaço... arquitetura inteiram ente de sonho, um pesadelo feito de colunas abruptas, esculpidas com um machado na congestão de um delírio louco.” Es­ ta piranésica descrição das ruínas termina dizendo: “ Para embelezar esta horrível Pa­ ris dever-se-ia espalhar aqui e aii algumas ruínas, incendiar a Bolsa, a Madeleine, o Ministério da Guerra, a igreja de Saint-Xavier, a Opéra e o Odéon...” (É de se notar a semelhança entre este catálogo de horrores e aquele sugerido por Victor Hugo quase sessenta anos antes.) Passaremos a nos conscientizar de que o fogo é o artista essencial da nossa época e que, tão podre enquanto crua, a arquitetura do século se torna tre­ menda, quase soberba, quando cozida” (21).


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Embora seja provavelmente a mais bela descrição literária de uma ruína antecipada, este texto não é de forma alguma o único, pois está atrelado a uma tradi­ ção que vem desde o século XVIII. Certamente até agora não foi dada bastante aten­ ção à estreita ligação entre o desenvolvimento da futurologia e da arqueologia. Se de­ senhássemos no mesmo diagrama as curvas exponenciais do aumento de publicações sobre escavações e das publicações de literatura, creio que notaríamos entre elas um paralelismo marcante, a pequena defasagem de tempo sugerindo o intervalo entre causa e efeito. No seu maravilhoso e raramente citado trabalho Lapoésie de Paris dans la littérature française de Rousseau à Baudelaire (22), Pierre Cittron tenta enumerar as evocações das futuras ruínas de Paris. Os números mostram bem a ligação entre este tema e o período romântico: ele cita noventa textos entre 1830-1849. O fenômeno co­ meçou muito antes, com Sebastian Mercier: pode-se encontrar diversas descrições so­ bre as ruínas de Paris ou de Versalhes no seu Tableau de Paris (1781) (23) ou no seu Lan 2440 (1775) (24). Textos valiosos nesta compilação são de autoria de Balzac, Vigny, Lamartine, Gautier, Flaubert e Hugo. A análise se estende a outras cidades além de Paris, lembrando que, em 1804, Chateaubriand imaginou a igreja de São Pedro, e Ro­ ma, em ruínas, e que Madame de Staél fez o mesmo em 1807. A ruína antecipada está presente em todas as artes e em diferentes cida­ des. Lembremo-nos, por exemplo, que o Dernier homme de Grainville (25), publica­ do primeiramente em 1805 e imitado muitos anos mais tarde, especialmente por Mary Shelley, se inicia com uma visão das ruínas de Palmyra que o autor nunca conheceu. O mesmo fato se aplica ao modelo literário de Grainville, o Conde de Volney, autor de Les ruines ou méditations sur les révolutions des empires (1791) (26). No frontispício, o conde aparece contemplando as ruínas de Palmyra, assunto de sua famosa invo­ cação luminar. Os biógrafos modernos de Volney confirmam que ele não poderia ter visto Palmyra quando viajou para o Leste, e que só conhecia as ruínas através das gra­ vuras do arqueólogo inglês Robert Wood. (27) O prestígio da publicação de Wood foi tão grande que encontramos alusões às ruínas de Palmyra por todo o século XIX, en­ carnando aos olhos dos ocidentais um exotismo cronológico e geográfico. Na sua análi­ se do mito da futura destruição de Paris, Paul Citron a compara com as grandes cida­ des destruídas do passado. Seu estudo mostra que, além das referências bíblicas (Sodoma e Gomorra) ou clássicas (Roma, Atenas, Cartago, Herculano e Pompéia), podemos acrescentar, em constante progressão, locais mais remotos à medida que foram sendo descobertos por arqueólogos viajantes: Tebas, Mênfis, Tiro, Sídon, Baalbek, Palmyra, Babilônia, Nínive, Persépolis, Susa e outros. A constante recorrência do futuro arqueó­ logo na ficção i.ntecipatória nos dá outra pista: após Mercier temos um topos que nos leva a Charles Garnier que disse haver colocado liras em todas as partes da Opéra para esclarecer a função do prédio aos futuros arqueólogos. Mais uma vez, o imaginário fu­ turista é alimentado pela projeção do passado dentro do futuro.


Onde podem os encontrar um melhor retrato de uma sociedade senão em suas utopias, que revelam ao mesmo tem po seus ideais e seus temores? Como po­ demos deixar de nos reconhecer neste retrato? Parece óbvio que diversos elementos da história que entraram pelo século XX adentro ficaram divididos entre a modernidade e o passado, sujeitos à mesma busca de identidade, à mesma malaise cultural. Prisio­ neiro obcecado do m ito da evolução, o homem tenta ver seu futuro no passado como em um espelho retrovisor. A teoria de Albert Speer sobre a beleza das ruínas ou as cidades mortas de Max Ernst, além de suas diferenças ideológicas, ecoam as fantasias de Hubert Robert assim como Valéry ecoou Volney, no seu famoso texto de 1919, d Crise Espiritual, que diz no início: “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mor­ tais (28). A ficção científica e a literatura antecipatória, a moda do cinema catástrofe, o envio de mensagens aos habitantes de outros planetas são sintomas de uma extensão da distância que apareceu no começo do tem po do romantismo. Encontramos a mes­ ma distância no presente, na etnologia da nossa própria cultura. O renascimento do ecletismo contemporâneo e historicista e a renovação do “ ruinismo” não serão porven­ tura uma prova de que a história ainda é, mesmo hoje, nosso mal du siècle?

Tradução: Anamaria Skinner


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Vista das ruinas dc Palmira, na Síria, segundo Volney

1. Charles Renouvicr, Uchronie (1'utopie dans 1‘histoire) Esquisse historique apocryphe du développemertt de la civilization européene tel qu 'il n 'a pai été, tel q u il aurait pu être (1876). Paris, Alcan, 1901. 2. Charles Morica, La litérature de tout à Theure. Paris, Perrin, 1889. 3. J. Reynolds, Discourses on art (1769-1790), editora R. Wark. Yale University Press, 1975. 4. (Cornelius) A. Kuhn. P. Comelius unddiegeistingen strómungenseiner zeit. Berlim, Reiner, 1921, página 271. 5. R. Le Senne. Traité de caractérologie, Paris, P.U.F., 1952. 6. Restif de la Bretonne. Monsieur Nicolas ou le coeur humain dêvoilé (1794-1797), Paris, Pauvert, 1959, volume II, página 95. 7. P. Charpenticr. Une maladie morale. le mal du siècle. Paris, Didier, 1880. 8. G. Cuvier. Discours sur les révolutions de la surface du globe et sur les changem ents qu elles ontproduits dans le règne animal(1812), Paris, Dufour, 1826. 9. W. Hazlitt. “Why Distant Objects Please” (1821), in Selected Wntings, Harmonds worth. Penguin, 1970, páginas 148-179. 10. D. Diderot, Sulons. ed. J. Seznec eJ. Adhémar. Oxford, Claredon, 1957-1967. 11. Eucyclopédie ou dictionnaire raisonné des Sciences, des arts et des métiers. Nouvclle Édition. Gencve. Pellct. 1778. volume XXIX. página 557.


GÁVEA

12. R. Mortier. Le poétique des rumes en France... Genève, Droz, 1974. 13 Diderot: Salons. 14. H. Burda. Die Ruine in den B ildem H. Roberts. München, Fink. 1967. 15. Diderot, Salons. 16. F.R. Chateaubriand. Lettre à m onsieur de Fontanes sur la campagne romaine (1804), ed. J.M. Gâutier, Gèncve, Droz, 1951. 17. A. Corboz. Peinturc m ilitante et architecture revolutionaire: à propos du thèm e du tu n n el chez H. Robert, Basel, Bikhaüser, 1978. 18. G. Metken. “Les Ruines Antecipées” em A. e P. Poirier. Domus Aurea, fascination des ruines, Paris, Centre G. Pompidou, 1978, páginas 19-24. 19. W. Oeschlin. “Die Bank of England und ihre Darstellung ais Ruine” em Archithèse (1981), número 2, páginas 19-25. 20. Burda. Die Ruine. 21. J.K. Huysmans, “Le musée des arts décoratifs et 1’architecture cuite” (1886), em Certains, Paris, Union Générale dcditions, 1975, páginas 393-399. 22. P. Citron. La Poésie de Paris dans la littérature française de Rousseau à Baudelaire, Paris, Minuit, 1961. 23. L.S. Mercier. Tableau de Parts (1781), editora G. Dcsnoiresterres, Paris, Pagnerre, 1853. 24. L.S. Mercier. Lan deux milee quatre cent quarante, Réve s'il en fü t jamais (1771), Paris, Lepetit, an X. 25. (Grainville) A. Creuzé de Lesser. Le dem ier homme, poème, im itéde Grainville, Paris, Delaunay, 1832. 26. Volney (C.h de Chasseboeuf, comte de). Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires (1971), Paris, Desenne, 1792. 27. R. Wood. The Ruins ofPalmyra, Otherwise Tedmor in the Desert, Londres, 1753. 28. P. Valéry. “The Spiritual Crisis”, em The Athenaeum. A jo u m a l o f English and Foreign Litterature, Science, the Fine Arts, Music and the Drama, n ? 4641, 11 de abril de 1919; “La crise de Lesprit”, em La Nouvelle revue française, nú­ mero 71, 1.VIII.1919.

U m a v ersã o a n te r io r d e s te tr a b a lh o fo i a p r e s e n ta d a n u m c o ló q u io o r g a n iz a d o p ela U n iv e rs id a d e d e P rin c e to n , e m d e z e m b r o d e 1981. G o s ta ria d e a g r a d e c e r P. C h essex, G . G e r m a n n , E. G id d le y , C . H a r t N i b b r i g , J.L . S yelaz e G .P . W in n in g r o n p o r su a s s u g e s tõ e s e in fo rm a ç õ e s , a ss im c o m o a W . H a u p t m a n , R. S te rn e G .P. W i n n i n g t o n p e la in g r a ta ta re fa d e tr a d u z i r o tr a b a lh o p a r a o in g lê s . G r a n d e p a r ­ te d o m a te r ia l a p r e s e n ta d o a q u i se d e v e a o s p r im e ir o s e s tu d o s s o b r e ru ín a s a n t e ­ c ip a d a s d e A n d r é C o rb o z , G ü n t e r M e tk e n e W e rn e r O e s c h lin .


O Curso dc Especialização cm História da Arte e Arquitetura no Brasil da Ponti­ fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível dc pós-graduação/j/# -sensu, foi formado há seis anos. O curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo dc rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileiras apreendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encami­ nhados juntamente com outras áreas dc conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar. Coordenador Acadêmico: Carlos Zilio Professores: Antonio Edmilson M. Rodrigues Berenice Cavalcante Eduardo Jardim dc Moraes Fernando Cocchiaralc Jorge Czajkowski Katia Muricy Myriam Andrade Ribeiro dc Oliveira Ricardo Bcnzaqucm de Araújo Ronaldo Brito Washington Dias Lessa

(No número anterior desta revista faltou mencionar o nome de Maria Cristina Burlamaqui entre os componentes do Conselho Editorial. Também faltou identificar o biografado da última página, Eugênio D’Ors.)


R E V J S T A GAVEA NO 6 -

ERRATA

IV CAPA

“L u i z

Espcrllagas

C inenez*

"Luís

E spallargas

G isncnoz"

-

FOLHA DE ROSTO

-

lcia-so

em “ L u l *

E spcrllagas

Gimenoz"

"Luís

Espallargas

Cim enez"

leia-se

p.

13 -

linha

19

-

cm “ c o m u n i c a "

leia-se

p.

14

-

linha

3

-

em " E R L E B U I S "

leia-se

"ERLEBNIS

p.

15 -

linha

15

-

era “ LAZER"

lcia-se

"cajú"

“comunga"

p.

19 -

linha

16

-

cm “ P A P E L "

leia-se

"apelo"

p.

20 -

1inha

18

-

em “ Ó LEO"

leia-se

"ócio"

p.

73 -

loia-sa

“Lul»

Espallargas

Gimenez" •

3 * CAPA

-

-

era “ A n t o n l a

iA b r a n e h o s "

“A n to n io

A branchca"

acieaconte-sa

a o APOIO a

rU N A R TE/Inatituto fica»

-

1NAG

leia-se

participação

N acional

de

Arte»

da

Grá­



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