Revista Gávea - 3ª Edição

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GÁVEA Revista de História da Arte e Arquitetura

LUIZ FERNAN DO FRANCO

Warchavchik e a arquitetura M ARIA LUISA LUZ TAVORA

O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro EN TREVISTA

Lúcio Costa sobre Aleijadinho RODRIGO N A VES

O olhar difuso KA TIA M URICY

Tradição e barbárie em Walter Benjamim HAROLD ROSENBERG

Willem de Kooning CLEMENT GREENBERG

Depois do expressionismo abstrato E U G E N IO D ’ORS

O Paraíso Perdido

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GÁVEA Editor Responsável: Carlos Zilio Conselho Editorial: Jorge Czajkovski (professor de Arquitetura no Brasil) Margarida de Souza Neves (diretora do Departamento de História) Reynaldo Roels Júnior Ricardo Benzaquem de Araújo (professor no Departamento de História) Ronaldo Brito (professor de Arte Moderna) Vanda Mangia Klabin Correspondência: Editor responsável, revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 Cep 22453, Rio de Janeiro, Brasil

Produção: Revisão tipográfica: Cláudia Maria Brum Arruda Reproduções fotográficas: Pedro Oswaldo Cruz Programação visual: Newton Montenegro de Lima Fotocomposição: Estúdio VM - Composições Gráficas Arte final: Luiz C. R. Henriques Produção gráfica: Gustavo Meyer Fotolitos e impressão: Companhia Brasileira de Artes Gráficas Apoio: Instituto Nacional de Artes Plásticas, Funarte Bittencourt, S.A.


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3 Revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Departamento de História Coordenação de Cursos de Extensão Junho de 1986

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Luis Fernando Franco Warchavchik e a Arquitetura

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Maria Luisa Luz Távora O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro

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Entrevista Lucio Costa sobre Aleijadinho

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Rodrigo Naves O olhar difuso — Notas sobre a visualidade brasileira

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Katia Muricy

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Haroldo Rosenberg Willem de Kooning

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Clement Greeberg Depois do expressionismo abstrato

Tradição e barbárie em Walter Benjamim

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Eugênio D ’Ors O Paraíso Perdido



LUIS FERNANDO FRANCO

Warchavchik e a Arquitetura

A posição da mônada absoluta na arte é uma coisa e outra: resistência à má socialização em curso, mas, ao mesmo tempo, predisposição a uma so­ cialização ainda pior. Quanto às convicções políticas dos autores, elas estão na relação mais casual e inesperada com o conteúdo de suas obras. T . W. Adomo — Filosofia da Música Moderna.

Em seu sentido enfático, a obra de arte não reflete imediatamente o ambien­ te em que surge. Dele extrai o material que seleciona, incorpora e ordena segundo uma realidade liberada de sua contingência. Não é, pois, de estranhar a perplexidade da crítiqa conservadora contemporânea da irrupção da Casa Modernista: “Ora, isto quer dizer que é permitida a construção em qualquer dos estilos arquitetônicos, mas, logicamente, quando ela não obedece a nenhum estilo deve ser proibida. Logo, a casa (...) não tendo arte não pode ter estilo” . Mas não basta ao provincianismo acadêmico o recurso ao poder de po­ lícia das posturas municipais: “ Será inevitável a desvalorização desses terrenos” (1). Singularmente, é a atualidade dos dois temas levantados pela crítica de en­ tão que torna oportuna a reflexão sobre a arquitetura de Warchavchik. A relação entre obra e estilo e a incidência da arquitetura moderna na realidade social em que se inscreve são, ambas, problemas cujas soluções mereceríam, pela diversidade das experiências pos­ teriores, maior atenção. Primeiramente, cabe transcrevê-los tais como surgem nas obras examinadas. A indignação acadêmica quanto à posição da obra relativa a um estilo seria fundada. Entende-se a dificuldade de associar a casa da Rua Itápolis à noção de estilo trans­ mitida pela história da arte. Em períodos estilísticos passados, a adoção preliminar e voluntária das normas implícitas num sistema informava, na concreção singular da obra, a busca de virtualidades inexploradas do próprio sistema. Contrariando a hipótese do talen­ to, o belo em arquitetura não nasce da eclosão expontânea de sensibilidade estocada, mas, do mesmo modo que o riso, da percepção de uma articulação inusitada de um sistema construído “ ad hoc” . Casa Modernista Rua Itápolis, São Paulo, 1930


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Na tradição clássica, em particular, sistema teórico de representação e sin­ gularidade empírica da obra tiveram na visão prospética e nas ordens — repertório formal limitado a priori — os instrumentos que informavam em modo unívoco a construção do objeto arquitetônico. Mero respeito às normas ou vigorosa expansão do sistema, o valor singular não pode ser atribuído à obra nem pela popularidade alcançada, nem pelo voluntarismo artístico do autor. O único critério idôneo é de ordem histórica. Apesar de não garantir a objetividade de seus juízos — ou talvez até por sabê-los precários — , é o uso his­ tórico que atribui valor. É o tratamento mediante o qual a obra manifesta a capacidade mais ou menos persistente de suscitar perguntas e, eventualmente, obter respostas: des­ dobramentos que podem estar, como sugeriu Benjamin, separados por milênios da virtualidade que lhes deu origem. Simetricamente, obras cujas formas se incorporam com facilidade ao gosto corrente demonstram-se estéreis a médio prazo. Refletindo imediatamente o ambiente em que surgem, esgotam-se tão logo é superada a contingência que as gerou. Por volta de 1930, não é outro o horizonte paulistano da produção arquitetônica, nem o da crítica que lhe era familiar. Ao contrário, a casa da Rua Itápolis inscreve-se internacionalmente e em pé de igualdade no período heróico do movimento moderno. Nela a expressão nasce da abs­ tenção de qualquer esforço expressivo. Como a música para o personagem de M. Yourcenar, a expressão é o trop-plein do silêncio. Na casa da Rua Santa Cruz, a representação unitária é ainda sensível na simetria frontal que lembra a hesitação de A. Loos na casa Steiner. De modo análogo à decomposição operada pelo cubismo com as formas naturais, na casa Modernista o sistema unitário se dissolve e tornam-se múltiplas as possibilidades de representação do objeto. As faces do volume sucedem-se eludindo qualquer antecipação da lei de configuração das seguintes que viria a tolher o impulso à representação do obser­ vador. Como na tradição clássica, essa lei existe como princípio gerador que norteia as relações entre as partes e o todo, mas, contrariamente àquela, não é mais um princípio que se pretende universal porque natural, inerente ao mecanismo da visão: com Panofsky, soubemos que também a perspectiva é um sistema simbólico. Trata-se agora de um sis­ tema assumido como tal, um modelo teórico ao qual submeter a realidade, sem mais a vocação de metáfora das leis de natureza. Estas já estão incorporadas na força produtiva social, não são mais metáforas, mas domínio efetivo da natureza (2). A nova arquitetura toma por base a própria organização funcional, tanto da execução material do projeto — vertente produtiva — , quanto a da vida a ser conduzida em seu interior — atendimento e aderência rigorosa ao valor de uso. Vale contudo, para a nova arquitetura, como para as que a precederam com dignidade de obra de arte, o mesmo princípio de obediência ao sistema e transgressão necessária à exploração de outras virtualidades. A organização formal do invólucro da casa da Rua Itápolis não reflete imediatamente nem a organização doméstica vigente, nem Casa do arquiteto Rua Santa Cruz, São Paulo, 1927, 1928 Foto: Arquivo Warchavchik, Biblioteca da Fau, USP


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hábitos construtivos arraigados. M áquina de habitar: a formulação de Le Corbusier é in­ feliz no contexto de seu discurso por não deixar claro um projeto crítico de comando da máquina, e não, como quer a crítica reacionária, pela perda de uma dimensão natural. Natural é a barbárie de um intercâmbio com a organização produtiva ditado pelo princípio de adaptação, como se produtos e normas sociais de apropriação fossem dados de natureza. Toda máquina interposta às exigências naturais garante o cumprimento de funções até en­ tão “ biológicas” , agora como expressão de uma liberdade e não como submissão supina a um hipotético estado de humanidade original. A hesitação assinalada na fachada da Rua Santa Cruz reflete o conflito latente na transição entre dois sistemas de representação. O princípio de simetria frontal não impede uma organização planimétrica do térreo bastante livre, embora implique a adoção em fachada de uma abertura de canto cuja esquadria interposta á varanda, con­ trariamente àquela simétrica da sala de jantar, assume o caráter forçado de um trompe1'oeil. A hesitação se resolve decididamente pela lei formal e torna hirta a planta do piso superior. Sobreposta ao térreo, ela deve gerar a simetria central do volume externo às expensas da coerência funcional. O arbítrio de uma lei externa à concreção da obra expõe as aberturas a uma insolação genérica, particularmente artificiosa nos dormitórios frontais onde revelam-se inclusive inúteis à leitura da simetria. A té então dolorosa, a transição de sistema de referência opera na casa da Rua Itápolis um passo decisivo no rebatimento conceituai do procedimento acadêmico e abandona aquilo que, na inércia eclética, se degradava no esforço vão de preservar. Na produção corrente, o velho sistema já migrara havia muito para a superfície de seus ob­ jetos, contraponto ou mero disfarce do sistema produtivo que doravante ordena a confi­ guração íntima do edifício. Ao gesto oco do “ artista” eclético que espera, da aposição repetida de signos caducos, a afirmação original de uma identidade ameaçada, Warchavchik contrapõe o gesto viril com que cobra, das possibilidades da força produtiva do sis­ tema, a promessa negada continuamente pela interposição de valores formais extempo­ râneos. O que ainda merece viver no conceito de arte não pode dobrar-se à corvée de ataviar em modo diverso um mesmo valor de uso só para cobrir exigências de identidade do artista, nem, tampouco, para justificar a reprodução do valor de troca. A modéstia relativa do programa da Rua Itápolis facilita o papel de ruptura da obra. A parcimônia com que os espaços se articulam, sensível no excessivo esquematismo da planta do andar su­ perior, garante o aspecto rude do volume e explica a leviandade, não necessariamente nefasta, com que o termo “ cubismo” passa a ser usado. Na casa da Rua Bahia, o mesmo procedimento não se inibe diante de um programa quase suntuoso. Origem e destino sociais da arquitetura não se confirmam mediante um decreto de espírito (3). Não autorizam a adesão mecânica ás figuras sociais de seus destinatários definidas sociológica ou antropologicamente. Restringir-se eticamen­ te à concepção de casas proletárias, tanto quanto abandonar-se docemente aos caprichos da demanda das classes dominantes, caracterizaria uma opção pela estrutura social vigente. As duas atitudes não definem os pólos extremos de um desejável meio-termo. São os


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corolários da preguiça do conceito arquitetônico — no caso, de morar — e do abandono à tendência objetiva da história. A casa burguesa da Rua Bahia é a ocasião empírica para desenvolver as articulações possíveis do conceito. Independentemente do programa es­ tabelecido pelo cliente ou da legenda com que o projetista atribui funções aos cômodos, é a própria organização dos espaços que depura a noção burguesa de morar de reminiscências regressivas: uma aparência qualitativa dos próprios privilégios — forma alegórica da hierarquia social — e uma aparente obrigatoriedade de vínculos naturais. São ambos parasitas ideológicos cuja identificação coube historicamente ao modernismo. Esmiuçado, o conceito alude à possibilidade de um acesso generalizado à casa como um valor de novos usos, cujos disfarces culturais limitavam de antemão, arquitetonicamente, as modalidades tanto de fruição, quanto de distribuição. O convívio familiar, ainda atado na Rua Itápolis por liames naturais que ditam uma organização da planta parcialmente “ doméstica” , torna-se, na Rua Bahia, a expressão de uma liberdade. O invólucro quantitativo do programa o permite. Uma vez reduzidas as funções de reprodução vital a trabalho genérico, toma-se tecnicamente pos­ sível reduzir a parte necessária à sua mínima expressão. Em sentido amplo, a passagem é de ordem econômica. Do ponto de vista espacial, a contração da área funcional necessária redunda numa expansão do superávit de material arquitetônico, cuja configuração passa a depender de suas características imanentes e pode abster-se de qualquer sobrecarga de sig­ nificação funcional (4). Conjugadas, as duas operações têm como reflexo figurativo o caráter bifronte do edifício. O conceito enfático de funcionalismo transborda do conceito restritivo de que é acusado. O terreno, uma fatia da encosta entre a Rua Bahia e a paralela a juzante, induz uma organização vertical do edifício. No nível da Rua Bahia, estão o acesso, salas, cozinha e as escadas. Estas comunicam com dois pisos superiores e com o inferior, des­ tinado a serviços, cujo nível dá início à sucessão de patamares ajardinados até à rua oposta, cerca de 11 metros abaixo. A concentração dos espaços técnicos não exige outras aberturas para a Rua Bahia além da porta de ingresso e da fenda que rasga o volume frontal ao longo da circulação vertical. À feição quase industrial dessa fachada contrapõe-se a livre or­ ganização dos espaços voltados para o jardim. Do mesmo modo que, em planta, a repar­ tição de cada andar sugere usos múltiplos e relativamente autônomos, as longas aberturas horizontais, terraços ou varandas, não aludem a qualquer função dos espaços que co­ municam com o exterior: simplesmente afirmam qualidades arquitetônicas passíveis de uso específico e não contraditório com qualquer função. Essas as promessas retrospectivamente decifradas. O problema da intencionalidade do artista levaria a discussões inúteis sobre a noção envelhecida de kunstwollen. A perenidade da obra depende menos do que nela se deposita como vontade do ar­ tista, do que — diriamos com Valéry — “dos desenvolvimentos que ela recebe de ou­ trem ” . A incidência da obra em seu contexto mede-se independentemente da intenção do autor de modificá-lo, mas, por outro lado, do contexto dependem os desenvolvimentos posteriores. Boa parte da obra de Warchavchik, e a arquitetura brasileira desde então,


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Residência Luiz da Silva Prado Rua Bahia, São Paulo, 1930


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frustraram as promessas de 1930. São raras as exceções: Palácio da Cultura, o leprosário de I. Nunes, o Pedregulho de A . Reidy, o conjunto de Paquetá de F. Bolonha e quem sabe que outras mais. A carga revolucionária das três casas foi suficiente para operar rupturas significativas no plano dos hábitos sociais e visivos. Tudo leva a crer, porém, que a re­ novação daquelas promessas e o surgimento de outras dependiam de desdobramentos con­ ceituais que envolvessem a cidade. A obra de Warchavchik inclui exemplares de qualidade que refletem aquela exigência. Mas a ilusão de operar como produtor autônomo leva-o, como a outros pio­ neiros, a atribuir à arquitetura uma autonomia expressiva que ela não tem. As opções profissionais que decorrem revelam-se contraditórias com uma investida na dimensão ur­ bana. O edifício premiado da alameda Barão de Limeira, uma vez circunscrito ao âmbito da encomenda, é resolvido com inegável elegância. Nele, no entanto, a prévia e arbitrária delimitação do problema, imposta pela indústria da habitação, inibe a articulação de es­ calas sem a qual mutila-se não só o desenvolvimento da temática urbana, como também o próprio campo da pesquisa formal. O deslocamento do virtuosismo para a solução de problemas de superfície do objeto parece ser acolhido pelo profissional, sobretudo nas gerações seguintes, como conquista de um grau superior de liberdade formal. Mas o preço da operação é a redução das novas formas a um repertório avulso e dependente, não da lógica interna do objeto, mas do gosto. De fato, autoriza à modernidade a restauração do ecletismo. O que foi até agora uma analogia abusiva entre a organização do trabalho industrial e a ordenação dos espaços de convívio — trabalho necessário/espaço funcional, sobretrabalho/espaço excedente — torna-se identidade. índice historicamente deter­ minado do domínio humano sobre suas predeterminações naturais, o espaço excedente, liberado da necessidade funcional, tende, miseravelmente, a assumir a veste de meio de produção e de mercadoria. Ao identificar com argúcia a vocação destruidora de valor da nova arquitetura, a crítica acadêmica mal escondia o vínculo entre seus parâmetros de qualidade formal e valor imobiliário. O ponto de vista da crítica atual pareceria o antípoda ao fazer o reproche pelo surgimento de “ regras, princípios, incompreensões inesperadas” (5). Mas, para a crítica acadêmica de trinta, já não se tratava mais de defender a inte­ gridade dos sistemas estilísticos passados; destes, a produção eclética não era mais capaz de produzir senão paródias. Objeto de censura era a insubordinação modernista aos estilos enquanto códigos corporativos, insubordinação possível mediante a assunção, não do sis­ tema do gosto corrente, imediatamente, mas de seu fundamento econômico e cultural. Contradizendo a própria consciência, o ecletismo já expressava, objetivamente, uma liber­ dade formal desvinculada da noção enfática de estilo. A crítica atual confirma a regressão eclética, sua afinidade com questões de mercado e a obediência a códigos que garantam seu controle. Ela lamenta que aquele mundo de formas novas se transformou numa ar­ quitetura monótona e repetitiva, fácil de elaborar e construir — a arquitetura racionalista , e, ainda, que as possibilidades do concreto armado foram então esquecidas e a ar­ quitetura se fez neutra e inexpressiva, um simples denominador comum” ; e reivindica,


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enfim, como uma feira de amostras, a liberdade de expor “os requintes da técnica, o protendido, as cascas, os grandes espaços livres e balanços extraordinários” (5). Obediência a qualquer sistema estilístico ou rejeição de todo sistema, são anseios que contêm uma mesma parte de verdade. Para o ecletismo do começo do século, o direito à livre apropriação do material passado, e, para o eclético moderno, a dissolução de qualquer sistema de invariantes, são aspirações de liberdade que sempre estiveram presen­ tes na arte. Toda obra notável aludiu ao esgotamento do próprio sistema e à abolição de todo sistema. Mas esqueciam, os primeiros, que “ só à humanidade redimida cabe in­ teiramente seu passado” (6); os segundos ignoram que o material arquitetônico, como o musical, é “ espírito sedimentado, alguma coisa de socialmente pré-formado” (7). É na relação deliberadamente assumida entre forma singular e disciplina inerente ao material que a arte se revela como aparência, momento de sinceridade sem o qual regride a fetiche. Escamoteado o sistema, a pretensão à autarquia da forma se resolve numa aparência “natural” . Com a pretensão à liberdade formal absoluta, o que emerge sob aparência natural é a forma coesa do sistema de produção erigido à dignidade de segunda natureza. Essa natureza é o ambiente que a produção arquitetônica passa a refletir imediatamente. Não é outra a origem da vocação celebrativa do ecletismo, de ontem como de hoje. Para que aquela liberdade se demonstrasse efetiva, seria preciso que, em qualquer momento sucessivo, fosse impossível detectar invariantes na produção de um período. A unidade estilística constatada a posteriori demonstra que a arte tomou-se, ao contrário e simplesmente, um fenômeno “ natural” , que perdeu a parte legítima de sua autonomia e está subordinada a leis que lhe são exteriores. É nesse sentido que a produção posterior renega o destino vislumbrado em 1930 e se insere no processo de valorização fornecendo as formas sedutoras — “ a curva, a curva generosa” — e os significados adjetos sem os quais a mercadoria não se realiza como valor de troca. O aumento extraordinário da “ força produtiva” dos espaços funcionais, que deveria redundar numa extrema liberdade de uso do habitat urbano, se perverte em instrumento para submeter a totalidade dos espaços à mesma disciplina férrea a que é sub­ metido o sobretrabalho industrial. A máquina de habitar é agora a fábrica da cidade. A ausência de indicações de outro comando na configuração da máquina autoriza o capital a preencher todas as outras esferas do convívio social. A coletivização dos usos torna-se pretexto' para a privatização do comando. A caricatura da vida familiar ressurge nas plan­ tas das imobiliárias para esconder, sob aparência natural, uma convivência forçada pela contingência econômica. A cultura vira indústria e a infâmia do termo lazer carrega con­ sigo a melancolia do domingo que obriga a pensar com alívio a segunda-feira na fábrica da cidade. O grau de adaptação a esse quadro mede tanto o sucesso do arquiteto, quan­ to o ócio do conceito arquitetônico. E, no entanto, mais do que nunca, a arquitetura teria um modo específico de fazer política. Este, se não exclui uma militância partidária ou sin­ dical, não se deixa, contudo, substituir pelo proselitismo. O conceito arquitetônico ra­ dical, sem o qual faltam critérios para avaliar politicamente os compromissos profissionais


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de vez em vez possíveis, não tolera a transferência do próprio movimento para longe dos objetos de seu trabalho: de nenhum deles. Sem o seu material concreto, o conceito se degrada em ideologia, pouco importa qual delas. Sem explorá-lo na imanência do material, o que é transferido para a militância é um protocolo de intenções, são slogans inócuos e absolutamente semelhantes à torcida (8). Oportunismo e boa-fé se assemelham pela gros­ seria do truque psicológico. Se a abolição das classes ameaça interesses imediatos do artista áulico, nada melhor que confiá-la à tendência objetiva da história: a torcida é o álibi que libera a subjetividade para consolidar o presente classista. O medo dogmático da verdade que o material possa esconder obriga a cons­ truir a militância mediante a fraude das ferramentas conceituais, seja para enfiar dialética nas folhas de acanto dos capitéis coríntios, seja para extirpá-la dos pilotis. A quitanda ideológica de Lysenko é tão funesta para o destino de uma sociedade liberada, quanto a pretensa neutralidade da obra de arte. Aposição retórica de significados ideológicos es­ tranhos ao material e afirmação de sua autarquia como produto soberano da “atividade criadora do espírito” , são os termos acadêmicos do falso dilema — adesão ou revolução — com que a parcela aculturada de nossa oligarquia paralizou a crítica radical. É urgente reativá-la mediante um cotejo entre as promessas de 1930 e o que realmente se cumpriu. Este não deve levar a uma visão unitária da história de nòssa ar­ quitetura. Não seria sadio nem estatisticamente plausível que a massa de profissionais com destino salarial partilhasse a mesma mística da profissão que o grupo que controla o mer­ cado. Fundado no notório saber, o privilégio dos segundos os obriga a empurrar o mesmo horizonte de trabalho — o conceito acadêmico de arte — para cuja dissolução trabalham os assalariados, objetivamente, nas lutas sindicais, ou subjetivamente, porque, fraudados da propriedade artística , descobrem espaços inéditos para a exploração rigorosa do con­ ceito arquitetônico. Estes poderão, enfim, partir de material especificamente arquitetônico para tentar o resgate do que sobra de nossas cidades atravancadas pelas “obras de arte” que nos legam os artistas oficiais. Se o resultado que obtiverem será artístico ou não, decidirá o livre juízo das gerações futuras, livres finalmente dos critérios de gabinete. Mas serão, certamente, mais coerentes com a natureza do material arquitetônico e mais con­ sequentes com sua vocação social.


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Notas 1. Christiano das Neves, “A máquina de habitar do Pacaembu” , in Geraldo Ferraz, Warchavchik, 1925-1930, Sào Paulo, 1965, página 90. 2. “E na imaginação e pela imaginação que a mitologia supera, domina e molda as forças da natu­ reza: ela desaparece tão logo essas forças são domadas na realidade.” Karl Marx, “Introdução geral, etc.” , in Fundamentos da critica da economia política. Tradução francesa, edição Anthropos, 1968, página 41. 3. “ ...o materialismo não é uma posição contraposta assumida mediante uma decisão, mas sim a es­ sência da crítica ao idealismo e à realidade pela qual opta o idealismo deformando-a. ” T. W. Adorno, Dialética negativa. Tradução italiana, página 176. 4. “Não se trata mais agora de reduzir o tempo de trabalho necessário tendo em vista o desenvol­ vimento do sobretrabalho, mas de reduzir em geral o trabalho necessário da sociedade ao mínimo. Ora, essa redução pressupõe que os indivíduos recebem uma formação artística científica, etc., graças ao tempo liberado e aos meios criados em benefício de todos.” Marx, Grundrisse, op. cit., volume II, página 222. 5. Oscar Niemeyer, “ Arquitetura” , Folha de São Paulo, 3.6.84. Note-se a estranha semelhança com o pensamento restaurador de um heideggeriano: “ ... a dimensão artística da arquitetura parece ter sido esquecida. A monotonia ambiental é um aspecto dessa situação; os nossos sítios tornam-se sempre mais iguais...” C. Norberg-Schultz, “Verso un’architettura autentica”, in La presenza dei passato, Veneza, 1980. 6. Walter Benjamim, “Teses de filosofia da história” , in Schriften, tradução italiana, edição Angelus Novus, página 76. 7. Adorno, Filosofia da música moderna. Tradução italiana, página 41. 8. “ Pesaroso, lembro como são pobres e desinformados nossos irmãos brasileiros, impacience ao lembrar as palavras amargas de Guevara: povo desarmado não existe. ” Niemeyer, op. cit.

Luis Fernando Franco Arquiteto. Trabalha na Fundação Pró-Memória.


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M A RIA LUISA LUZ T A V O R A

O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro

I. Um novo espaço como imagem do progresso Na primeira década do século empreendeu-se no governo Rodrigues Alves (1902-1906) a remodelação da cidade do Rio de Janeiro, promessa feita pelo então gover­ nante e que deveria ser realizada num prazo curto de pouco mais de três anos. Era o sonho e a necessidade de transformar a cidade colonial “ imunda e retrógrada” (1) em uma metrópole moderna. Para tanto, o governo federal nomeara uma comissão de engenheiros nacionais que, sob a chefia do eminente engenheiro Paulo de Frontin, seria responsável pelos trabalhos de estudo, demolição, nivelamento, iluminação, canalização, arborização, calçamento e até mesmo a entrega de terrenos demarcados e prontos para edificar. Não foi sem problemas que foram feitas mais de 600 demolições de prédios para que se rasgasse uma grande avenida, a Avenida Central. É preciso destacar a dimensão do fato, pois tratava-se de uma longa avenida, maior que a então famosa Avenida des Champs Elysées de Paris, a qual possuía 1.900 metros de extensão. Abandonando traçados tortuosos e ruas estreitas, a Avenida Central teria uma extensão de 2.000 metros contando com as praças situadas em seus extremos. Possuiría 33 metros de largura, sendo 22 de leito e 5,5 para cada passeio lateral. Pode-se imaginar o que representou, por suas dimensões, a nova avenida, pois estabelecia um con­ traste com as ruas antigas, que possuíam 7 metros de largura na sua totalidade. Portanto, não é com surpresa que muitas crônicas da época enaltecem sobremaneira uma obra deste vulto. “ Há poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso, iniciavam os trabalhos de construção da Avenida Central, pondo abaixo as primeiras casas condenadas. Bem andou o governo dando um caráter solene e festivo à inauguração desses trabalhos. Nem se compreendia que não fosse um dia de regozijo o dia em que começávamos a ca­ minhar para a reabilitação” (2). Diz ainda Olavo Bilac que no desmoronar dos edifícios havia um “ longo gemido” (3) representando a lamentação do passado, do atraso e do opróbio. Mas salienta que este gemido era abafado pelo “ hino claro das picaretas” (4). Segundo ele, que certamente estava de acordo com as decisões oficiais, dando-lhes o mais caloroso apoio, todos testemunhavam e celebravam entre outras vitórias a do bom gosto e da arte! Ainda sobre as obras da Avenida Central, João de Barro escreve: “ O mês de março... viu o início das grandes obras que hão de transformar a colonial cidade do Rio de Janeiro numa bela, arejada e arquitetônica metrópole moderna... ao passo que manifes­


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tamos evidente progresso intelectual, ao passo que as nossas instituições científicas ou téc­ nicas demonstram um certamente elevado grau de cultura, a nossa cidade mantinha o seu desagradável aspecto colonial, casas sem arquitetura...” (5). Observa-se que, para muitos, era uma questão de orgulho tornar o Rio de Janeiro uma cidade com aspecto moderno, civilizado, onde abafar e renegar nossa tradição seria uma demonstração de progresso. Explica-se a urgência da transformação do aspecto da cidade, na medida em que ela era o Brasil que os estrangeiros, vindos em transatlântico, conheciam. Era preciso não cair no descrédito deste estrangeiro de quem tanto precisávamos. Modernizar a cidade era uma questão indeclinável e inadiável do nosso problema econômico e para tanto dever-se-ia gastar não importava que montante, pois o resultado seria altamente compensador. Esta era a posição de muitos, aliados ao poder de então, que assim tentavam justificar as grandes despesas com as obras de remodelação da cidade, que oneravam os cofres públicos. Esta remodelação do Rio de Janeiro, incluindo as instalações do porto e a Avenida Central, surgira de um plano urbanístico de envergadura lançado pelo prefeito Francisco Pereira Passos, nos moldes das grandes obras de Hausmman que transformaram o aspecto da capital francesa a partir da segunda metade do séc. X I X . Neste clima de euforia pelo progresso, sob a orientação da mesma comissão que encaminhava os trabalhos na Avenida Central, foi lançado um “ Concurso de Fa­ chadas” . Não era novidade a instituição de um concurso desta natureza. Segundo Paulo Santos, esta solução já fora empregada por Perder e Fontaine na época de Napoleão, para a Rua de Rivoli em Paris, como, também, para a Praça Vendôme. Aqui no Brasil, Grandjean de Montigny já tentara reviver a situação em fins de 1820, no Campo de Santana, hoje Praça da República. Partia-se dos desenhos das fachadas para, em seguida, desenvolver as respectivas plantas. Em 29 de janeiro de 1904, abriu-se a concorrência para “ a apresentação de fachadas que pudessem servir de guia ou modelo ás que deviam ser feitas pelos proprie­ tários e compradores daquela nova via pública” (6). O concurso, muito liberal, aberto a arquitetos nacionais e estrangeiros, es­ tabelecia como condição para a aceitação dos projetos das casas que estas possuíssem 10, 15, 20 e 25 metros de largura de fachada, e, no mínimo, três pavimentos. O edital do con­ curso foi modificado posteriormente quanto ao prazo de entrega dos trabalhos — pror­ rogado de 29/2 para 15/3 daquele ano — e também passava a admitir fachadas com até 30 e 35 metros de largura. Assim, na data limite estipulada foram entregues 138 projetos, as­ sinados por 107 pseudônimos. Sob a presidência de Lauro Müller, engenheiro e ministro da Viação, com a assistência de Paulo de Frontin, engenheiro-chefe dos trabalhos da Avenida Central, assim ficou composto o júri do concurso: Dr. Pereira Passos, presidente municipal, engenheiro; Saldanha da Gama, diretor da Escola Politécnica; Jorge Lossio, engenheiro, representando o Instituto Politécnico;


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Aarão Reis, engenheiro, representando o Clube de Engenharia; Feijó Júnior, médico, diretor da Faculdade de Medicina; Oswaldo Cruz, médico, diretor de Saúde Pública; Dr. Ismail da Rocha, médico, representando a Academia de Medicina, e, finalmente, Rodolfo Bemadelli, escultor, diretor da Escola Nacional de Belas-Artes. Com relação à composição do júri, não foram poucas as críticas à presença de médicos num concurso “ puramente artístico” (7). Merece destaque este trecho de um artigo de revista: “Se a instituição do concurso visou despertar nos artistas a atividade pela emulação, promovendo, assim, o gosto do público, então era preciso que a Justiça não fosse sacrificada pela precipitação, era preciso que os juizes fossem verdadeiramente autoridades... O júri a que foram subme­ tidos 138 projetos era de uma composição híbrida. Que entendem de arquitetura o erudito diretor da Faculdade de Medicina, o ilustre diretor geral de Saúde Pública e o abalizado presidente da Academia de Medicina e o diretor de um laboratório bacteriológico? Que tinham a dizer esses ilustres profissionais de especialidade tão diversa sobre uma questão de fachadas em que não pode haver desagravo dos princípios de higiene? Ao júri sobravam estes elementos e faltavam outros que podiam ter sido invocados por sua ponderação e competência no caso” (8). Para alguns, teria sido imperdoável a não inclusão no júri de representantes do Conselho Superior de Belas-Artes e da Sociedade Propagadora das Belas-Artes. Este criticado júri reuniu-se em diferentes sessões, eliminando primeira­ mente projetos que não tinham respeitado as dimensões estabelecidas e, posteriormente, aqueles que consideraram deficientes, resultando, para uma análise mais apurada, 79 projetos. Deste último julgamento foram concedidas 18 menções honrosas e selecionados seis projetos para os três primeiros lugares que receberam prêmios em dinheiro. Foi este o resultado final do Concurso: 19 prêmio, projeto n? 97, do en­ genheiro Dr. Rebecchi (Figura 1); 2? prêmio, projeto n? 102, recebido pelo engenheiro arquiteto Adolfo Morales de los Rios, professor da Escola Nacional de Belas-Artes (Figura 2). Os terceiros prêmios foram recebidos por: M .E. Hehl, professor da Escola Politécnica de S. Paulo com os projetos n? 41 e n? 18 (Figuras 4 e 7); Sr. Driendl, projetos n? 49 e n? 56 (Figuras 5 e 8); Sr. René Barba, arquiteto, projeto n? 44 (Figura 6) e Sr. Oberg, ar­ quiteto, projeto n? 78 (Figura 3) (9).

II. As influências da arquitetura eclética no concurso O denominador comum para os projetos foi o ecletismo. O projeto ven­ cedor, de autoria do Dr. Rebecchi (Figura 1), é um bom exemplo de formas variadas de es­ tilos distintos. Trata-se de um prédio de cinco pavimentos, separados uns dos outros marcadamente por balaustradas trabalhadas ou faixas repletas de decoração que acentuam uma


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dominância da horizontal. A composição da fachada permite perceber um corpo central induzido pelo perfeito alinhamento de colunas desde o pavimento inferior até o último coroado por uma cúpula baixa e dois corpos laterais encimados, também, por pequenas cúpulas. Estes três corpos são ligados entre si por alas formadas por três vãos por andar. Alternam-se nos diferentes pavimentos janelas com frontões retilíneos e de arco de meia volta. Nos três primeiros pavimentos e no quinto, há a presença de colunas que ladeiam as janelas e de pilastras, às vezes duplas, que limitam os corpos principais. No primeiro pavimento, no corpo central, estão três vãos em arco pleno com tratamento estereotômico rematados com chaves. Nas alas laterais também estão presentes vãos com tratamento semelhante. Estes vãos térreos são marcados por colunas dóricas. No segundo pavimento, as colunas apresentam-se com o terço inferior ornamentado. No terceiro pavimento, localizam-se nas alas pilastras aparentemente caneladas. Ainda neste e no quinto pa­ vimento dispõem-se balaustradas. O quarto pavimento, nas alas, é composto de janelas de sacada e a elas sobrepostos mezaninos. Neste andar encontra-se a cornija mais importante da composição que possibilita perceber-se o quinto pavimento como uma composição de remate. Neste último andar a grande cúpula central em escama é dotada de um óculo em seu eixo central e encimada por uma grade decorativa (crête ). Ainda no quinto pavimento destaca-se o tratamento estereotômico, típico do Renascimento florentino. A fachada apresenta um predomínio dos vazios sobre os cheios com uma sobrecarga de ornatos que terminam por recobrir quase totalmente os elementos de alvenaria. Estão presentes a

2. Adolfo Morales de los Rios, segundo prêmio Página 14: 1. Rafael Rebecchi, primeiro prêmio Páginas seguintes: 3. John Õberg, terceiro prêmio 4. M. E. Hehl, terceiro prêmio 5. Thomaz Driendl, menção honrosa


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simetria, a ordem, o equilíbrio a partir de um eixo central, porém, nos diferentes andares os elementos recebem tratamentos distintos. Há predominância de elementos da Renas­ cença italiana e francesa, os quais imprimem ao projeto um caráter solene, majestoso. O segundo lugar (Figura 2) é de autoria de Morales de los Rios, que entre muitos projetos concebeu, posteriormente, o da Escola Nacional de Belas-Artes. Trata-se de uma fachada com grandes espaços abertos por largas janelas modernas no segundo e terceiro pavimentos, formando três grandes vãos em forma retangular que contrastam com os vãos vizinhos de tratamento à Renascença sobrecarregados de ornatos inclusive em seus coroamentos. Este prédio, como o anterior, apresenta a marcação horizontal com elementos de moldura e ornatos. A fachada divide-se em cinco elementos no sentido ver­ tical e em quatro pavimentos horizontalmente. O quarto pavimento pode ser considerado um remate do prédio. Nele destaca-se uma complexa cúpula aparentemente de ferro. Ain­ da de ferro são as grades dos parapeitos deste e do terceiro pavimento. No primeiro pa­ vimento há três vãos em arcada circular e entre estes também arcadas menores de entrada, todos em arco pleno. E dado destaque ao tratamento estereotômico nos diferentes pavi­ mentos. Reorganizam-se nesta fachada elementos da Renascença francesa e italiana. Outro projèto* o do Sr. Oberg, terceiro prêmio (Figura 3), apresenta tra­ tamento do revestimento da parede em dois tons (influência francesa). Há um corpo cen­ tral rematado na cobertura por pequenos torreões aparentemente circulares e dois corpos laterais. Quanto às aberturas, o primeiro pavimento apresenta-as de forma retangular


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ladeadas por outras duas de remate circular. No segundo pavimento há janelas duplas e no terceiro janelas simples com remates semicirculares encimadas por óculos. No corpo cen­ tral, colunas sustentam um grande arco que traz imponência á fachada. O projeto do Sr. Hehl (Figura 4) compõe-se de uma fachada plana com três pavimentos. No primeiro pavimento, um vão central em arco abatido é ladeado por dois vãos em arco pleno. É dado destaque ao tratamento estereotômico do andar térreo. O segundo e terceiro pavimentos recebem tratamento de varanda ou loggia italiana. O se­ gundo andar caracteriza-se por uma verga reta onde pares de colunas a sustentam, e o ter­ ceiro, por vãos semicirculares. Destaca-se na fachada o tratamento contemporâneo de aparelhos de iluminação, no segundo andar em forma de candelabro e no terceiro suspen­ sos e ricamente trabalhados. As duplas colunas dóricas e jônicas apresentam decoração no terço inferior. O remate do prédio é formado por uma grande cornija à italiana e platibanda. Um dos projetos do Sr. Driendl (Figura 5) apresenta quatro fachadas com três pavimentos absolutamente diferentes em seu repertório estilístico. Da direita para a esquerda, numa primeira fachada estão presentes elementos dos góticos inglês e francês. Há predominância de elementos verticais no prédio, que é rematado por ameias. Aparen­ temente um prédio de esquina, para esta volta-se um corpo especial em balanço. Opondose a este corpo encontra-se um pequeno corpo caracterizado por um único elemento por andar com tratamento em ogiva nos primeiro e terceiro pavimentos e vão retangular no segundo. O corpo central é formado por dois vãos de dominância vertical rematados por profusa decoração. Na segunda fachada, a divisão dos pavimentos é marcadamente horizontal,

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quebrada pelo frontão retilíneo no segundo andar, onde se encontram janelas com sacadas. No terceiro andar as janelas são conjugadas duas a duas e encimadas por um mezanino. Na terceira fachada também há a dominância da horizontal. O primeiro e o segundo pavimentos são caracterizados por três vãos retangulares. O segundo andar apresenta balaustradas, sacada e peitoril e é rematado por palmetas. O terceiro pavimento apresenta seus vãos separados por colunetas dóricas. Colunas dóricas são ainda encon­ tradas no primeiro pavimento. Remata o prédio pouco decorado uma platibanda simples. A quarta fachada deste projeto é excêntrica, pois é formada por duas partes. Na maior, no primeiro pavimento, três vãos retangulares são separados por colunas de or­ dem dórica. No segundo andar, a parte central forma um conjunto com dois arcos plenos, sacada e frontão aberto ricamente ornado, ladeados por duas janelas também encimadas por frontões partidos. O terceiro andar caracteriza-se por um vão central e dois laterais. Rematando o prédio observa-se uma cornija cortada na parte central por elemento ar-

6. René Barba, terceiro prêmio Páginas seguintes: 7. M. E. Hehl, menção honrosa 8. Thomaz Driendl, menção honrosa


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quitetônico profusamente decorado de influências do barroco ibérico. Na segunda parte da fachada, ou corpo de esquina, observa-se um vão em arco abatido no térreo, um conjunto de sacada com tratamento de colunas e frontão aberto no segundo andar, e, no terceiro, um elemento em balanço avarandado com duas faces. E ste corpo recebe acabamento de uma cornija encimada por rico tratamento arquitetônico de ordem barroca. Neste conjunto, seu autor pretendeu m ostrar influências dos estilos inglês, italiano, grego e espanhol, dando a todos eles um tratam ento muito livre. O projeto do Sr. René Barba (Figura 6) é tipicamente francês. Quatro pavimentos compõem a fachada, que a partir do terceiro pavimento recebe tratamento estereotômico imitando pedra e alvenaria característica da Renascença francesa. O segundo pavimento briga com o estilo francês ao apresentar um vão tripartido por um arco na linha Tudor. À esquerda, um elemento em balanço abrange do segundo ao quarto andar re­

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matado por um telhado piramidal. Lucamas e telhados em ardósia com omatos de ferro dão ao prédio aspecto de construção francesa. Outro projeto do Sr. Hehl (Figura 7) é imponente e apresenta aspecto solene. Compõe-se de dois corpos laterais em saliência sobre um plano de fachada em três elementos, um central e dois laterais. Nestes corpos laterais observam-se no segundo an­ dar vãos rematados em arcos plenos encimados por óculos e volutas, e no terceiro andar vãos tríplices rematados por frontões partidos e decorados. Encimam os corpos laterais composições que no conjunto têm aspecto orientalizante. N o andar térreo destaca-se a en­ trada principal, que forma um conjunto interessante, aberta em arco pleno encimado por um frontão triangular ladeado de pilastras sobre pedestais. Os segundo e terceiro pavimen-


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tos lembram, a partir de alguns elementos, a arquitetura veneziana. A cimalha do prédio é rematada por uma complexa grade de ferro. Há, ainda, outro projeto do Sr. Driendl (Figura 8): um edifício de três pavimentos com tratamento de vergas retas nos primeiro e segundo andares e em arco pleno no terceiro. Há um corpo central ladeado de dois corpos laterais que recebem como acabamento pináculos de decoração barroca. O corpo lateral de esquina apresenta uma sacada em balanço. Nele os vãos são encimados por profusa ornamentação que estabelece uma ligação entre os pavimentos. O corpo lateral da esquerda, menos decorado, apresenta vãos retangulares encimados por frontões triangulares. Este conjunto, como os outros analisados, não apresenta um estilo perfeitamente definido. No conjunto, as fachadas rearticulam o repertório clássico com influências marcadamente francesas, retomam o Renascimento italiano, fazem incursões nos góticos inglês e francês, buscando salientar o aspecto decorativo. Há inspiração, quase sempre, em construções bem-sucedidas das grandes cidades européias. Na verdade, de lá vinham os manuais de arquitetura, ilustrados com variados detalhes das mais diferentes construções. Espécie de álbuns, estes ascendiam à categoria de verdadeiras bíblias, dando todo o tipo de orientação. Ficava claro qual modelo se teria para seguir nas futuras construções. O júri oficializava o apoio a construções que, como as selecionadas, não perdessem de vista o as­ pecto das belas construções européias. Elas representavam o aspecto civilizado que se bus­ cava imprimir em nossa arquitetura. O colonial era o grande ausente. Houve muitas críticas ao concurso que, no dizer de Olavo Bilac, fora o “ acontecimento capital da vida carioca” no mês de março. Por outro lado, num artigo as-


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sinado apenas pelas iniciais de seu autor, A .T .F ., lê-se: “ N o fim de contas, pareceu-nos apenas uma ‘fachada de concurso’ ” . Vale a pena destacar suas palavras, justificando sua posição: “ Primeiramente, nunca se viu um concurso que não tivesse um fim prático, uma utilidade real; nunca se reuniram em concurso os professores de uma língua, de uma ciência ou de uma arte só para verificar qual deles sabia mais, mas sempre com o fim de escolher um deles para lecionar a respectiva matéria ou exercer um cargo que demande perícia nessa especialidade. O concurso de fachada foi inteiramente platônico. Quem fez a melhor (?) fachada teve um prêmio e acabou-se” (10). O autor segue dizendo quão platônico fora o concurso, pois gastara-se dinheiro e energias, e critica a seleção que, em alguns casos, para ele fora injusta. Tanto A .T .F . como Olavo Bilac, apologista do concurso, destacam a im­ portância do certame na medida em que este servira para se tomar conhecimento da exis­ tência de um grande número de arquitetos nacionais e estrangeiros com os quais o país poderia contar para seu progresso moral e material. Olavo Bilac comenta o espanto de que foram tomados todos aqueles que compareceram ao salão da Escola Nacional de B elas-A rtes, onde foram expostos os projetos premiados, pois não se podia pressentir, pelo tipo de construção que era apresen­ tado até então, a existência entre nós de arquitetos com tanto talento, imaginação e preparo. Para ele, o Rio de Janeiro não possuía o perfil de uma metrópole civilizada, e ex­ plica: “ O meu medo, o meu grande medo, quando vi que se ia rasgar a Avenida, foi que a nova e imensa área desapropriada fosse entregue ao mau gosto e á incompetência dos mestres-de-obras. O receio não era infundado. Todos estão vendo que, em geral, as casas mais novas do Rio de Janeiro são ainda mais feias do que as antigas” (11).

III. O mestre-de-obras e o novo fazer arquitetônico A questão que se colocava com a abertura do concurso era, na verdade, o apoio e destaque a ser dado à figura do arquiteto, homem cuja formação incluía conhe­ cimentos estéticos e arquitetônicos e que para dar prova de sua erudição circulava pelos mais diferentes e antagônicos estilos. Em contrapartida, a desvalorização massacrante da figura do mestre-de-obras estampada em comentários com o: “ Era e ainda o é, por certo, verdadeiramente lamentável esse estado de coisas, pleno domínio dos mestres-de-obras, essa execrável instituição nacional” (12). “ Após a morte de Montigny, a arte arquite­ tônica ficou entregue à incapacidade dos mestres-de-obras, que se esmeraram em conceber e criar verdadeiras monstruosidades” (13). A construção civil estava vivendo seu primeiro surto no pais, deflagrado a partir da Abolição, da Proclamação da República e da própria industrialização, como conqüências da desagregação da sociedade agrária patriarcal e ascensão da burguesia urbana.


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Era esta burguesia unida à estrutura do poder dominante que buscava para si ares de progresso, renegando e desvalorizando tudo o que estivesse preso à sua tradição, a co­ meçar pela arquitetura encomendada. “ Quanto ao caráter das novas edificações, o período se distingue pela com­ petição cada vez mais aguda entre o antigo mestre-de-obras, de origem lusitana, que faz um esforço para adaptar-se aos novos tempos, e os arquitetos estrangeiros ou nacionais, embebidos de rudimentos da cultura francesa, britânica ou italiana” (14). Esta luta não era nova. Já houvera um período, na época da chegada de D. João VI, em que no Brasil começara-se o culto arquitetônico na figura do grande arquite­ to Grandjean de Montigny. Para alguns como Olavo Bilac, após sua morte o mau gosto pas­ sara a imperar nas construções entregues aos mestres-de-obras, considerados sumidades pela classe rica ignorante. Eles eram acusados de absurdos tais como: a edificação indis­ criminada dos chalets, construção típica do campo e que no Rio estava presente no centro da cidade; o uso de compoteiras na ornamentação das platibandas; o abuso da pedra de cantaria, que não permitia o luxo de ornatos obtido em construções de tijolo; enfim, a ten­ tativa de baratear a construção fazendo adaptações superficiais do que estava em voga. As­ sim, diz Olavo Bilac que “ quando um burguês queria construir um prédio, o seu primeiro cuidado era procurar um mestre-de-obras pé-de-boi, nada amigo de novidades, aferrado às tradições e desprovido de diploma” (15). Ainda com relação ao problema levantado sobre o mestre-de-obras, Morales de los Rios, arquiteto espanhol brilhante do início do século e participante do certame em questão, faz um pequeno histórico da categoria mestres-de-obras. O seu objetivo é também mostrar a importância do Concurso de Fachadas, pois revelara a primeira falange de arquitetos que existia entre nós. Diz ele que, com a Missão Francesa, a arte dos mestres caíra nas mãos dos boçais. Aos poucos se dera a decadência deste grupo, comprovada pelos livros paroquiais que testemunhavam pagamentos irrisórios feitos aos mestres para fin­ girem de arquiteto, além de ainda serem tratados como escravos alugados por seus se­ nhores. Fora então desse grupo de homens que saíra a classe posteriormente chamada de mestres-de-obras e que durante algum tempo alcunhava-se ou era alcunhada de “ Chico Burro ou Chico Barbado” , daí não se poder esperar nenhum primor na sua arquitetura. Moralez de los Rios, apesar de desprezar os mestres-de-obras, não descarta sua importân­ cia na arquitetura domiciliar (16). Desde a influência neoclássica começara-se a abandonar a tradição cons­ trutiva colonial e seus verdadeiros agentes, os velhos mestres-de-obras. E claro que não se chamaria à ação estes homens no momento em que o importante era rasgar avenidas, cujos prédios precisavam ser construídos com materiais novos e pouco familiares a eles, onde elegância e suntuosidade não poderíam sofrer deslizes domésticos e serem sacrifi­ cadas pela ignorância.


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IV. A valorização do arquiteto e a formação acadêmica

O arquiteto é quem estava preparado para a “ bela construção” . O concurso contribuía para o renascimento do gosto arquitetônico que este profissional revelava em seus projetos. Um observador contemporâneo afirma, após dedicar algumas linhas elo­ giosas ao Concurso de Fachadas, que naquele ano, 1904, aumentara a matrícula na Seção de Arquitetura da Escola de Belas-Artes, destacando que até engenheiros formados pela Escola Politécnica buscaram, também, a formação especializada em arquitetura. Essa afirmação levou em consideração o total de alunos matriculados na­ quela instituição, cujo regulamento, de 1901, estabelecia assim os cursos que a escola oferecia: além do curso de arquitetura, um curso geral, dois preparatórios, um de pintura, um de escultura, gravuras de medalhas e pedras preciosas, incluindo outros cursos prá­ ticos. O candidato ao curso de arquitetura passava por três anos de curso geral, mais dois anos de curso preparatório, após o que ingressava no curso preparatório que compreendia a matéria “ Composição e desenho de arquitetura” , incluindo trabalhos práticos correspondentes (17). Num levantamento feito junto aos livros de matrícula da Escola de BelasArtes, no período compreendido entre 1901 /1910, verifica-se que houve um aumento do número de matriculados naquela instituição. No entanto, o mesmo não aconteceu com relação ao curso de arquitetura, cujo número de matriculados oscila entre dois e três a par­ tir de 1904 contra uma ou nenhuma matrícula nos três anos anteriores. Não terá sido um efeito imediato do Concurso no que diz respeito a um aumento significativo do quadro de alunos de arquitetura. O fator determinante mais provável de um maior interesse pela profissão de arquiteto foi a própria obra de remodelação da cidade, a construção das gran­ des avenidas, que tornaram promissor o mercado de trabalho para aqueles profissionais. Que profissional formava a Escola de Belas-A rtes? Ao analisar os currí­ culos dos cursos pelos quais passava o futuro arquiteto, observa-se a presença de disci­ plinas voltadas para o desenho ou seu estudo histórico. Nos anos de curso preparatório preponderaram disciplinas de caráter teórico-técnico tais como topografia, estereotomia, resistência de materiais, cálculo, mecânica, entre outras. Para compreender melhor o pensamento que norteava o curso da Escola de Belas-Artes, são importantes as palavras do arquiteto Morales de los Rios, emérito profes­ sor da instituição. Em 1897, na sua tese apresentada para o lugar de lente de estereotomia, embora não tratando especificamente de arquitetura, lança alguns conceitos admitidos e professados pela arquitetura acadêmica: “ A idéia de beleza é como uma luz interna do espírito que, iluminando-o, lhe relembra um estado de perfeição passada...” (pode-se observar como sua concepção de beleza está permeada de um ideal platônico). ‘ ‘Bastava copiar... E para criar mais tarde um estilo próprio, é preciso saber bem copiar e copiar o que é belo... O desenho é a base


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elementar em que o artista há de apoiar as suas criações” (18). A partir de suas palavras entende-se como tantos arquitetos teriam mobilizado força e talento para, num Concurso de Fachadas, apresentarem projetos que sabiam, de antemão, não seriam construídos mas tão-somente apreciados como obras de virtuosismo de desenho, cujas incursões nos mais diferentes estilos confirmavam a demonstração inequívoca de erudição. Segundo o arquiteto, era função da Arquitetura “ relembrar os grandes es­ petáculos da Natureza, as suas linhas majestosas, elevando-se nesta função ao sublime” . A Arquitetura é simbólica e divina pela proteção que presta aos grandes ideais da hu­ manidade. Fala-nos da conseqílência do Romantismo de 1830 que, com a retomada do estilo gótico, desencadeou os mais diferentes “ néos” que tomaram conta da arquitetura. O arquiteto, a partir de então, deveria ser profundo conhecedor dos mais diferentes estilos, aos quais recorrería a qualquer momento para projetar seus trabalhos. Esse estudo dos es­ tilos, tendo como base o das ordens clássicas, era ensinado nas aulas de desenho e com­ posição das escolas profissionais, recebendo, também, influências das artes fotográficas e de um contato mais acentuado com o mundo europeu pela intensificação de viagens (19). “ A arquitetura da época atual é essencialmente enciclopédica nas suas manifestações de transição e se acha em vias de atingir seu modelo típico e definitivo pela combinação predominante do ferro e do aço com outros materiais de construção e espe­ cialmente com os vidros, os cristais e os produtos cerâmicos foscos ou esmaltados” (20). Com as palavras de Morales de los Rios, observa-se a interpretação dada ao arquiteto con­ fundido com o desenhista de prancheta a buscar modelos nos manuais de arquitetura. Nas três primeiras décadas do século, aqui no Brasil, a atuação do arquiteto limitava-se ao trabalho de prancheta — ele dava provas de apuro no desenho e conhecimento histórico dos mais diferentes e antagônicos estilos. “ Bom projetista era aquele que soubesse imitar os estilos em voga” (21). Lúcio Costa, já comprometido com o funcionalismo que aqui chegara, diz que na Escola de Belas-Artes os alunos de arquitetura recebiam uma bagagem “ técnico-decorativa” que não lhes permitia uma ação mais efetiva na vida real, pois não recebiam as explicações indispensáveis do porquê dos elementos e sobre as razões profun­ das que condicionaram a existência dos diferentes estilos (22). Contra esta situação, ele foi líder de movimentos que geraram uma crise interna na E N B A , quando diretor nos anos 30. Ainda Morales de los Rios explica a arquitetura eclética aproximando-a a uma arquitetura de transição. Na verdade, tentava-se reestruturar a linguágem arqui­ tetônica, pressionada por todo o processo de industrialização do material de construção que o Brasil acolhia de braços abertos por motivos políticos e econômicos. A questão de uma paisagem urbana civilizada era prioritária naquele início do século. No Concurso de Fachadas os arquitetos, buscando modelos do Velho Mundo, cumpriram o grande papel de refletirem os interesses da classe dominante, da burguesia que buscava igualar-se em pres­ tigio à sociedade civilizada européia, erguendo prédios que testemunhassem seu ideal.


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V. Um concurso em busca de uma fachada O Rio de Janeiro do início do século era o centro cultural, político e eco­ nômico do país. Acumulavam-se na cidade os mais diferentes recursos, conseqüência do privilégio de ser o núcleo da maior rede ferroviária, de abrigar a maior parte das grandes casas bancárias polarizando as finanças sociais, de ser o décimo-quinto porto do mundo em volume de comércio. Tomara-se o Rio o maior centro populacional do país na medida em que atraía aventureiros nacionais e estrangeiros em busca de melhores condições de vida e maior lucro. A ordem republicana trouxera mudanças políticas, econômicas e sociais desenvolvidas num tal ritmo que transformaram rapidamente a vida da sociedade carioca. Os cargos de maior importância e influência iam sendo assumidos por grupos que bus­ cavam a distinção social. Em substituição à classe aristocrata do Império, a burguesia sur­ giu como o novo grupo, perseguindo com obsessão o progresso. ktO resultado mais con­ creto desse processo de aburguesamento intensivo da paisagem carioca foi a criação de um espaço central na cidade, completamente remodelado, embelezado, ajardinado e euro­ peizado...” (23). Tentou-se sepultar a cidade colonial e com ela as formas de cultura e religiosidades populares (serenatas, boêmia, nosso carnaval e o cordão de foliões, fantasia de índio, jogo do bicho etc.). Para tanto, o Estado assumiu uma atuação destacada, ma­ nipulando a opinião pública, impondo modelos cada vez mais divorciados do seio da so­ ciedade brasileira. Assim aconteceu na arquitetura. O episódio do Concurso de Fachadas reflete, de forma exemplar, toda esta situação. A burguesia ascendente necessitava erguer monumentos à sagração de seu triunfo e de seus ideais. Suas construções precisavam os­ tentar a categoria social de seu possuidor. Nada mais natural que o próprio governo pa­ trocinar um concurso onde seriam apresentados modelos e formas a serem incorporados pela sociedade em crescimento. Nesta ação governamental determinava-se um mecanismo de discriminação e prestígio. Construir ou não as fachadas apresentadas tornava-se ir­ relevante diante da distinção social de todo aquele repertório arquitetônico. Não havia a valorização dos estilos em si. Na Europa, o movimento de arquitetura que culminara no Ecletismo representara, entre outros aspectos, a valorização de um passado que nós não tínhamos experimentado. Lá os estilos ressurgiram estimulados por estudos e conheci­ mento dos edifícios do passado, a partir de publicações as mais variadas de histórias universais de arquitetura. Lá, a tradição fora valorizada. Aqui, conforme os resultados do concurso e posterior mente na construção da Avenida Central, o nosso passado arquitetônico era plenamente esquecido. O concurso revitalizou a figura do arquiteto e colocou na ordem do dia a Escola de Belas-Artes e todos os seus valores, em detrimento do antigo e tradicional construtor, o mestre-de-obras. Os projetos apresentados dispensariam a atuação deste agente pouco familiarizado com estilos europeus e despreparado para a utilização de materiais que estes estilos exigiam. Toda a arquitetura apresentada assumiu a função simbólica, a preocupação de ostentar uma aparência alinhada ao aspecto das metrópoles do Velho Mundo.


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Considerando que dos 24 arquitetos premiados 12 contribuíram com projetos para a construção dos prédios da Avenida Central, o concurso estava em con­ sonância com a mentalidade vigente (24). O júri, no processo de seleção, foi movido pela vontade de uma prestação social. Ele era comprometido com toda esta busca de transformação de nossa imagem fren­ te ao mundo civilizado. Buscou a atualização de modelos cujas matrizes européias deslum­ bravam o burguês, o comerciante rico que, afinal de contas, construiría nas grandes avenidas. Os resultados do concurso e sua própria realização responderam pronta­ mente aos anseios da sociedade, voltada para a urbanização e sedenta de modelos de pres­ tígio. Só fachadas, sim. Até nisto o concurso foi reflexo de nossa condição real de país periférico com problemas sérios para resolver, buscando na ilusão da aparência o status de país civilizado. Saiu fortalecida essa imagem civilizada da classe dominante, na medida em que ela própria articulou um “ Concurso de Fachadas’ ’ considerado por um cronista da época “ fachada de concurso” , legitimando o seu gosto e seu desejo de identificação com a culta sociedade européia.

Notas 1. Olavo Bilac, Revista Kosmos número 4, abril 1904. 2. Bilac, “Crônica” , Revista Kosmos número 3, março 1904. 3^ Bilac, op. cit. 4. Bilac, op. cit. 5. “Crônica”, Revista Renascença, ano 1, número 2, abril 1904. 6. “Concurso de Fachadas para a Avenida Central” , Renascença, abril 1904. 7. Ibidem. 8. “Fachada de Concurso” , Revista Commentario, série II, número 1, maio 1904. 9. Com relação aos resultados, são diferentes as informações dadas pelas revistas Renascença (abril 1904) e Kosmos (abril 1904), que não inclui o Sr. Driendl e dá o número 14 e não 41 a um dos projetos do Sr. Hehl.


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10. “ Fachada de Concurso” , Commentario, série II, número 1, maio 1904. Observação, os projetos não se destinavam a construção, mas a Revista Renascença de abril 1904, na legenda do desenho que apresenta o projeto número 56, do Sr. Driendl, informa que o prédio estava sendo construído na Rua do Ouvidor. 11. Kosmos, número 4, abril 1904. 12. João de Barro, “Crônica” , Renascença, ano 1, número 2, abril 1904. 13. Bilac, Kosmos, número 4, abril 1904. 14. Maurício Vinhas de Queiroz, “ Arquitetura e Desenvolvimento” , Revista Módulo, número 37, agosto 1964. 15. Kosmos, abril 1904. 16. Morales de los Rios, “ A Arquitetura dos Primeiros 100 anos da Nossa Independência” , Jornal A Noite, Rio de Janeiro, 9/9/1922. 17. Ver regulamento da Enba, 1901, capítulo, artigos 2, 5 e 9. 18. Tese apresentada no concurso para lugar de lente de Estereotomia da Enba — Adolfo Morales de los Rios, Rio de Janeiro, 1897. 19. Op. cit. 20. Op. cit. 21. Rino Levi. Oração aos formandos da Faculdade do Rio Grande do Sul, 1958. Depoimentos, primeira edição, Grêmio da Faculdade de Urbanismo. 22. Lúcio Costa, “Documentação Necessária” , Revista do Sphan, número 1,1937. \

23. Nicolau Sevcenko, A Literatura como Missão, Editora Brasiliense, São Paulo, 1983, página 33. 24. Ver lista de arquitetos, Anexo 1. Bibliografia Livros Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1944. Jean Baudrillard, Para uma Critica da Economia Política do Signo, Edições 70, Coleção Arte e Comunicação, Porto, 1981. Germain Bazin, Les Languages des Styles, Éditions Aimery Somogy, Paris, 1976. Leonardo Benevolo, História da Arquitetura Moderna, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976. Yves Bruand, A Arquitetura Contemporânea no Brasil, Editora Perspectiva, São Paulo, 1981. Ferreira Rosa, Rio de Janeiro em 1922-24, Coleção Memória do Rio, 3, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1924. Marc Ferrez, O Álbum da Avenida Central, Editora Ex Libris/João Fortes Engenharia, São Paulo, 1983. Adolfo Morales de los Rios Filho, Figura, Vida e Obra de Adolfo Morales de los Rios, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1959. Paulo F. Santos, Quatro Séculos de Arquitetura, Iab, Rio de Janeiro, 1981. Nicolau Sevcenko, A Literatura como Missão, Editora Brasiliense, São Paulo, 1983.


O concurso de fachadas de 1904 no Rio de Janeiro

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Artigos de periódicos A.T.F., “ Fachada de Concurso” , Commentario, série II, número 1, Rio de Janeiro, maio 1904. João de Barro, “Crônica” , Renascença, ano 1, número 2, abril 1904. Barro, “Crônica” , Renascença, ano 1, número 3, maio 1904. Olavo Bilac, “Crônica” , Kosm os, número 3, março 1904. Bilac, “Crônica”, Kosmos, número 4, abril 1904. Lúcio Costa, “ Documentação Necessária”, Revista do Sphan, número 1, Rio de Janeiro, 1937. Adolfo Morales de los Rios, “ A Arquitetura nos Primeiros 100 Anos de Nossa Independência” , Jornal A Noite, Rio de Janeiro, 9/9/1922. Maurício Vinhas de Queiroz, “ Arquitetura e Desenvolvimento” , Módulo, número 37, agosto 1964. Autor não identificado, “Concurso de Fachadas para a Avenida Central”, Renascença, ano 1, número 2, abril 1904. Tese Adolfo Morales de los Rios, Tese apresentada no concurso para lugar de lente de Estereotomia da Es­ cola Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro, 1897. Documentos Regulamento da Escola Nacional de Belas-Artes, aprovado em 13/4/1901. Livro de matrículas da Escola Nacional de Belas-Artes, período de 1900 a 1910. Anexo 3 Relação dos arquitetos participantes do Concurso de Fachadas Rossi Batista René Barba Ludovico Berna Thomaz Driendl Arthur Fadini Gatell y Solá M.E. Hehl Antonio Jannuzzi e irmão Morales de los Rios John Oberg Rafael Rebecchi Antonio Vanini

Projeto 27, menção honrosa Projeto 44, terceiro prêmio Projeto 45, menção honrosa Projeto 62, menção honrosa Projetos 49 e 56, menção honrosa Projeto 21, menção honrosa Projetos 18 e 21, terceiro prêmio e menção honrosa Projetos 70 e 67, menção honrosa Projetos 102 e 105, segundo prêmio e menção honrosa Projetos 78 e 80, terceiro prêmio e menção honrosa Projeto 97, primeiro prêmio Projeto 32, menção honrosa

Os ferros e as reproduções são da revista Renascença, abril 1904.

Maria Luisa Luz Tavora Formada em Belas-Artes, aluna do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, da Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.


Profeta Joel Congonhas, Minas Gerais Foto: M. Gautherot/Prรณ-Memรณria


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Lucio Costa sobre Aleijadinho

Jorge Czajkowski — Dr. Lucio, como o senhor situaria a obra do Aleija­ dinho em relação ao gosto artístico vigente na época? Lucio Costa — O Aleijadinho era, por temperamento, um sujeito apai­ xonado. Impulsivo e apaixonado. Quando se lê sua biografia, sente-se essa paixão, e acon­ teceu de ele nascer numa época em que o estilo era muito refinado, a fase final do barroco — chamado rococó — , um estilo elegante, delicado, gracioso. A obra do Aleijadinho é o casamento dessas duas coisas. A contradição entre o estilo da época, que era o que ele manuseava, e seu temperamento mais “ possuído” , mais “ miguelangelesco” , marca toda a sua obra. Aleijadinho foi um caso excepcional. Bazin tem razão quando diz que o conjunto da obra dele foi a última manifestação válida de arte religiosa no mundo. Séculos e séculos de evolução, desde o começo do cristianismo e essa coisa extraordinária que aconteceu no interior do Brasil, em Minas, cercada de montanhas, naquele isolamento. Acho a conclusão de Bazin acertadíssima. Ronaldo Brito — Não deixa de ser curioso que ele tivesse uma vinculação religiosa tão profunda, tão sincera... talvez tenha sido justamente essa situação de iso­ lamento do Brasil que tenha permitido a um eu já desenvolvido, já moderno, liberto do princípio de autoridade, conservar uma vinculação religiosa tão forte. LC — Até os 40 anos o Aleijadinho foi uma pessoa normal. Só depois, quando ele estava trabalhando no belíssimo lavatório da sacristia de São Francisco de Ouro Preto, é que começaram os sintomas da moléstia dele. Esse lavatório foi oferecido pelos sacristãos de 1777, 78 e 79, como dádiva à irmandade. Daí em diante ele foi ficando cada vez mais místico, mais apaixonado em sua obra, que era toda voltada para a religião. E compreensível, naquele drama com que se viu confrontado. A descrição de sua figura, feita pela nora Joana e reproduzida por Bretas, eu acho fundamental. Nunca vi uma des­ crição, um retrato , tão perfeitos. O Rodrigo José Ferreira Bretas fez, no século passado, a biografia do Aleijadinho, baseado especialmente nas declarações de Joana, que o acom­ panhou naquela agonia final toda. RB — Essa biografia de Bretas é muito romanceada? LC — Não, não tem nada de romanceada. Bretas é impecável. Ele trans­ creve o artigo que serve de base para toda a história da arquitetura religiosa mineira, de Joaquim José da Silva, o chamado Vereador Segundo da Câmara de Mariana, que tinha por obrigação, de tantos em tantos anos, fazer um relatório do “estado das artes” na província. Esta descrição do Vereador fala dos trabalhos numa linguagem meio pomposa,


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meio barroca, daquela época, de uma precisão que parece pernóstica, mas não é. Você analisando, é tudo muito correto, e põe o Aleijadinho no seu devido lugar, mostra que ele de fato foi, já na época, um artista considerado excepcional. Mas voltando á descrição do Aleijadinho feita pela nora Joana e transcrita por Bretas: “ Antonio Francisco era pardo escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada e gênio agastado. A estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumosa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto, a testa larga, o nariz regular e algum tanto pontia­ gudo, os beiços grossos, as orelhas grandes e o pescoço curto. (...) Até a idade de 40 anos, em que tem um filho natural, ao qual deu o mesmo nome do pai, passou a vida no exer­ cício de sua arte, cuidando em ter boa mesa, e no gozo de perfeita saúde; e.tanto que era visto muitas vezes tomando parte nas danças vulgares” . Um retrato não é? Parece que você está vendo a figura na sua frente. RB — Muitos sugerem que o Aleijadinho seria ainda um artista medieval. LC — Ele tem uma carga medieval, principalmente pela paixão religiosa que foi adquirindo com o tempo. RB — É a questão do belo não ser mimético, renascentista, de represen­ tação, mas ser um influxo da alma. Mas o barroco é desdobrado no sujeito, é o sujeito que se problematiza, é uma problematização da representação, enquanto o medieval é uma adesão imediata à construção do mundo, ao sistema do mundo, sem essa mediação da representação do sujeito. Talvez a complexidade da obra do Aleijádinho resulte justamen­ te do fato de um sujeito como ele, um eu lírico moderno, carregar ao mesmo tempo um lastro medieval muito forte. Eu não sou especialista, mas para nós, modernos, dá para per­ ceber isso na obra dele. LC — Especialmente naqueles baixos-relevos, naqueles púlpitos.

•RB — Talvez o caso que se aproximasse mais fosse o de El Greco. Dele também dizem que não chegou a entender o sistema renascentista. Como veio de Bizâncio, ainda estaria ligado à questão planar, não teria entendido a perspectiva. Existe muito essa discussão em relação a ele. Carlos Zilio — No caso do Aleijadinho, eu pergunto ao senhor se o próprio sistema de produção da arquitetura no Brasil e em Portugal não seria ainda ambíguo, se o estatuto do artista não estaria ainda ligado à formação medieval.

LC — Isso é muito interessante de ponderar porque era a tradição. O ar­ quiteto ou era oriundo do ofício de carpinteiro ou do ofício de pedreiro. Nas obras de paua-pique ou taipa, quem dava o risco era o arquiteto formado na tradição do ofício de car­ pinteiro, nas obras de alvenaria era o arquiteto formado na tradição do ofício de pedreiro ou de canteiro. Isto prevaleceu durante toda a Idade M édia, até o Renascimento. Os ar­ quitetos eram homens criados no chantier, no canteiro de obras. Não eram anônimos, mas vinham dessa formação. O Renascimento é que começou com o arquiteto-artista. Entrou em moda fazer pesquisa, descobrir ruínas e se encantar com elas. Todos passaram a se in­ teressar pelos elementos arquitetônicos, fazer levantamentos de colunas, entablamentos, aquela coisa toda. Aí surgiu o arquiteto de atelier , o arquiteto formado no meio de artistas


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plásticos, sem contato direto, sem ser oriundo da obra. Com o negócio do ouro houve um enriquecimento em Minas, e afluíram então mestres-construtores e artistas que vinham para cá porque havia muito mercado, muita construção, quando na Metrópole já quase não havia. De modo que em Minas houve um reaportuguesamento, o que explica que o nosso Aleijadinho, no confronto com os outros mestres todos, locais, tenha sido exata mente isso: um arquiteto que teve uma formação como os outros artistas do Renascimento. O que acontece, e é muito engraçado, é que ele, com essa formação de artista, concebia formas, criava problemas, que iam di­ ficultar a tecnologia corrente, do construtor, inovações que atrapalhavam e engendravam uma série de dificuldades para o construtor. CZ — O Aleijadinho seria, então, o único artista brasileiro de expressão universal, ligado a uma tradição renascentista? Não propriamente o primeiro artista moderno no Brasil, mas o último artista renascentista universal? LC — Exato. O que não se pode deixar de considerar é que a arte dita co­ lonial era uma arte portuguesa. O Brasil era Portugal, os portugueses aqui estavam em casa. Isso é importante. Tudo era Portugal. Diferente, mas como as províncias portu­ guesas são diferentes entre si. Norte e Sul de Portugal são completamente diferentes. RB — Tenho uma pergunta assim... fantasiosa. Será que o Aleijadinho poderia ter feito o que fez lá em Portugal? Ou só poderia fazer aqui? LC — Acho que lá não daria pé... A própria biografia do homem... CZ — Nós, de vez em quando, conversamos a propósito do problema da visualidade brasileira e de sua relação com a tradição lusitana. Existem alguns fatos óbvios — Camões, por exemplo — que dão à linguagem escrita uma dimensão que a visualidade não tem, na cultura portuguesa. O senhor acha que a relação dos portugueses com a plas­ ticidade de um modo geral é uma coisa fraca, difusa, ou que ela tem uma expressão e essa expressão é coroada pela obra do Aleijadinho? LC — A visualidade plástica portuguesa não foi fraca. Pelo contrário, foi muito forte. Sente-se isso muito bem, inclusive — ou principalmente — na arquitetura popular. Acho que o Aleijadinho foi um aboutissement da evolução da arte arquitetônica, das artes vinculadas à arquitetura no Brasil. Considerando as igrejas dele, foi uma espécie de volta ao partido das igrejas iniciais brasileiras, daquelas primeiras igrejas lá do Nordeste, que eram muito singelas e consistiam nisso: uma porta de entrada única, duas janelas no coro e um óculo, aquele frontão reto, aqueles cunhais, um esquema muito singelo. Eram igrejas claras porque não tinham corredores e as janelas eram vazadas:- claras, brancas, alegres. Com o correr do tempo, esse partido foi evoluindo. Nas fachadas as portas co­ meçaram a se multiplicar: três, cinco, até sete portas, e janelas também, muitas janelas. Surgiram os corredores laterais, escurecendo a nave. Isso se vê tanto na Bahia como no Rio de Janeiro. Em Minas voltou-se a esse partido primário. JC — O senhor não acha que isso seria devido às condições locais, ao fato de M inas... LC — Estar começando...


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JC — Na verdade, no primeiro momento, era uma província muito pobre. LC — Isso também. Era uma provincia nova e voltou àquela singeleza. En­ tão as igrejas do resto do país foram engordadndo plasticamente, perdendo a consistência original, a simplicidade, aquela coisa bonita e simples. Em Minas retornaram ao partido antigo. As primeiras igrejas de pau-a-pique são todas desse tipo: torres revestidas de te­ lhas, mais singelas, uma porta, duas ou no máximo três janelas e o óculo na empena. Esse foi o partido que o Aleijadinho retomou, mas desenvolveu de uma maneira que criou uma série de embaraços aos construtores da época. Uma igreja que serve de exemplo, porque existem os dados, é a de São Francisco de São João dei Rei, que é uma espécie de segunda versão da igreja de São Francisco de Ouro Preto, esta sim a obra-prima dele, sua obra máxima, construída em 1766. Em 1774 os franciscanos de São João dei Rei resolveram fazer uma igreja também e pediram um projeto ao Aleijadinho. Ele apresentou um risco

Igreja de São Francisco de Assis São João dei Rei, M inas Gerais Risco original aprovado a 8 de julho de 1774 Foto: Vosylius Páginas seguintes: Fachada e lateral da mesma igreja Fotos: O. Braga/Pró-M emória


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que felizmente sobreviveu em parte. Esta expressão — risco — era sistematicamente usada na época e correspondia á expressão inglesa design. Nesse risco ou projeto ele propõe uma série de coisas que o construtor, aquele que ficou encarregado das obras — que era um mestre carpinteiro que fazia também acabamentos em escultura, cantaria, essa coisa toda — começou, primeiro, a achar que a coisa era complicada, e, segundo, a querer fazer inovações por conta própria, a querer mostrar que também podia inovar, e sempre desastradamente. E engraçado esse confronto entre a concepção e o que resultou. Verifica-se, por exemplo, uma coisa que é típica. As igrejas metropolitanas, portuguesas, têm, como é natural, a nave mais alta que a capela-mor. O telhado da nave, de duas águas, fica então entalado entre duas empenas: uma no arco cruzeiro e a outra na fachada. Quando você olha dos fundos, vê um frontão, entre a capela-mor e a nave, e outro, na fachada. Mas o Aleijadinho — a tendência dele era a graça, ele foi o Oscar da


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época — queria fazer a coisa com mais graça, mais elegância. Queria sempre adoçar certos planos e então, nos fundos da igreja, na capela-mor, ele adotava sistematicamente uma terceira água, a tacaniça, como nós chamamos. O telhado de quatro águas tem duas águas triangulares e dois trapézios — duas águas maiores e dois triângulos. É o que o francês chama de croupe, garupa do cavalo. Então o Aleijadinho, em todas as suas igrejas, in­ clusive na de São Francisco de São João dei Rei, adota a tacaniça. Quer dizer: na parede correspondente ao arco-cruzeiro, em vez de ter uma empena, ele tem um telhado trian­ gular, uma água. Com isso o português Cerqueira não se conformou e eliminou do pro­ jeto, botou a empena com os coruchéus. E assim várias coisas, muitos desacertos ao longo de 20 anos. Mexeu nas torres também. No Carmo de São João, por exemplo, ele quis chanfrar as torres e botou as sineiras nas quinas. Ficou assim, uma coisa esquisita, que o Aleijadinho jamais teria feito.

Igreja de São Francisco de Assis São João dei Rei, Minas Gerais Foto: O. Braga/Pró-Memória


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Esse desencontro do arquiteto formado em atelier —o arquiteto-artista propriamente — com o arquiteto formado no canteiro de obras, nessa tradição medieval, como estávamos falando, ficou muito bem marcado nas obras do Aleijadinho. Ele se per­ mitia soluções inoyadoras e os construtores da época sempre reagiram e procuraram evitar.

JC — O processo dele parece sempre ter sido o de modificar um determi­ nado modelo à sua maneira... LC — Assim a fachada em planos, como a de São Francisco de Ouro Preto: sentiu a necessidade de trazer o corpo principal à frente, criando então, em planta, dois chanfros, com aquelas colunas marcando bem os pés direitos — avançou o frontispício propriamente dito. Daí a ênfase com aquele entablamento partido, a presença daquela massa forte, sempre para criar movimento. É o que também acontece no chafariz do Padre

Igreja de São Francisco de Assis Ouro Preto, Minas Gerais Foto: P. Lobo/Pró-Memória


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Faria, que foi a primeira coisa que documentadamente (por mim) ele fez. O chafariz nor­ mal era aquele paramento com dois cunhais de pedra, coroados por dois coruchéus ou pirâmides, tudo num plano só. O que fez ele, logo de saída, menino ainda, quando deu o risco para o pai: achando aquilo muito sem graça, em vez de colocar os coruchéus nas prumadas das pilastras, criou dois consolos laterais, recuados do plano da fachada, e botou os coruchéus em cima desses consolos. Dinamizou a composição estática inicial, e isso foi exatamente o que aconteceu na fachada de São Francisco. Eu fiz até um croqui para ex­ plicar esse confronto fundamental. JC — E o problema do espaço na obra do Aleijadinho? No volume e no plano, nas fachadas, até mesmo no movimento do telhado, a articulação é barroca, dinâ­ mica. Mas e o espaço? Têm-se afirmado que no Brasil não existe espaço barroco, no es­ trito senso.

Chafariz do Alto da Cruz do Padre Faria Ouro Preto, Minas Gerais Foto: Pró-Memória

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LC — Inicialmente era um barroco muito contido, sem essa coisa de movimento, do espaço que vai acontecendo... Porque a característica do barroco no espaço é o espaço que vai acontecendo, que vai se abrindo;.. RB — Não faltava exatamente no Brasil um espaço renascentista, também estrito senso, para que pudesse ocorrer um espaço barroco? JC — A tradição portuguesa é a dos espaços estáticos... RB — Mas conscientemente, articuladamente? LC — Correto. O barroco “ consciente” veio depois, com Borromini, mas já é, na época, o aboutissement e não aquele barroco pesado, o barroco inicial. Os alemães, no Sul da Alemanha, é que interpretaram isso muito bem, em Wies, Ottobeuren. E é aquilo que Le Corbusier fez, sem querer — como o Bourgeois Gentilhomme — na capela de Ronchamp, que é barroca sem querer, porque todo francês tem horror a barroco,


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atribui sentido pejorativo à expressão. Mas no caso de Ronchamp ele fez exatamente isso. O que caracteriza o espaço renascentista é que você o compreende imediatamente. A Capela dei Pazzi, por exemplo, que é uma beleza, você entra e é uma geometria, um negócio claro, limpo, você aprende tudo, aquela clareza. No caso de Ronchamp, não. Aquilo vai acontecendo, os espaços vão surgindo, você entra e vai sendo levado. Há aquela expressão do próprio Corbusier — ele tinha o dom da palavra exata — espace indicible , es­ paço indizível. É uma obra-prima, o barroco está todo ali, nesse espaço indizível. RB — Mas isto é uma polêmica? Saber se há um espaço barroco no Brasil? LC — No Brasil foi sempre contido, sempre. O Aleijadinho, pòr exejnplo, parede “ mole” , ele não fez. Ele fez aquela frontaria movimentada de São Francisco, mas a nave é reta. Agora o Cerqueira, que estava fazendo a de São João dei Rei, quis introduzir essa novidade e abaulou as paredes laterais, abarrocou além da conta. JC — Sem a consistência do Rosário de Ouro Preto, que tem todo aquele movimento...

LC — Essa referência ao Rosário, justamente, eu acho importante. Sempre vi duas correntes distintas. Uma, de arquitetura mais erudita, mais vinculada ao barroco, aobarrodo italiano, que pegou tanto na Alemanha e na Europa Central. Você tinha, aqui no Rio, São Pedro dos Clérigos, em Minas também, São Pedro, em Mariana, Rosário em

Igreja de São Pedro dos Clérigos Rio de Janeiro Foto: Malta/Pró-Memória Página anterior: Igreja do Rosário dos Pretos Ouro Preto, Minas Gerais Foto: P. Lobo


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Ouro Preto, elas formam uma linha que não tem nada a ver com a evolução que deu como

aboutissement São Francisco de Assis de Ouro Preto. A igrejinha da Glória está mais nes­ sa segunda linha, que é mais lusitana, tem raízes; ela é abaulada e tudo, mas tem uma for­ ça bem portuguesa, é uma obra-prima. É essa outra linha que num desenvolvimento nor­ mal do barroco teria tido como conseqüência, na mão de um arquiteto de gênio como foi o Aleijadinho, aquilo que ele fez, independente da primeira corrente, mais acadêmica. Isso eu acho muito claro. Inclusive até estava armando uma teoria — a gen­ te fica apaixonado, começa a querer explicar —, tudo estava se encaixando tão bem e eu tinha como um dos exemplos-base a igrejinha de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, aquela igrejinha muito bonita e riquíssima no interior, com a fachada chanfrada e uma torre sin­ gela. Então você tem: Glória do Outeiro, N. Sra. do Ó, de 1701, portanto anterior, que pegou moda em Minas — há várias capelas assim, torre central e fachada chanfrada — e tudo isso se enquadrava bem no raciocínio que eu tinha montado. Mas, de repente, verifiquei o meu equívoco, em conversa com o Sylvio de Vasconcellos, que tinha feito obras na Capela do Ó, e quando fui lá constatei, de fato, que a fachada inicial era aquela reta, de capela normal mineira. Então, no interior, você vê que a capela acabava ali e só quando prolongaram o coro foi que fizeram o chanfrado. Quer dizer: foi uma coisa a posteriori. Foi esse gosto que o Aleijadinho lançou que estavam procurando adaptar inclusive às coisas singelas.


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Fiquei tão desanimado que larguei a papelada. Mas, no fundo, apesar desse incidente “ lamentável” , voltando agora a pensar nisto, a frio, depois de mais de 20 anos, acho que ainda é verdade. Quer dizer, o Aleijadinho — São Francisco de Ouro Preto — teria ocorrido sem nada de Borromini. Foi tudo uma evolução natural de um partido sin­ gelo que foi criado desde os primórdios do Renascimento, evoluiu no Maneirismo até o Barroco e acabou no Rococó, nas mãos de um artista genial que teve uma formação pri­ vilegiada. O pai era um arquiteto-carpinteiro, depois mestre-de-obras em geral. O tio tam­ bém era arquiteto-carpinteiro, que fez aquela coisa linda, o teto da Igreja do Pilar. Era gente muito qualificada. E tinha o João Gomes Batista, que foi professor do Aleijadinho e introduziu nele o tal gosto francês — “ desenho irregular de gosto francês” — expressão que Bretas transcreve lá do tal Vereador que assim descreve os novos entalhes. Ele está se referindo ao Luiz X V , ao Rococó, ao Rocaille. Batista era um desenhista emérito. Era

Capela de Nossa Senhora do Ó Sabará, Minas Gerais Foto: R. Morgado/Pró- Memória Página anterior: Capela de Nossa Senhora da Glória Rio de Janeiro Foto: M. Gautherot/Pró-Memória


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ligado à corte, fazia medalhas, cunhava real. Tendo cometido qualquer irregularidade, foi então mandado para o Brasil e ficou lá em Minas. Ele foi o verdadeiro mestre do Aleijadinho no sentido artístico, não só de desenho, mas nesse gosto novo que estava ocorrendo. Tudo isso foi muito importante. O Aleijadinho foi muito bem servido de todos os jeitos e com seu talento excepcional, ele aconteceu. RB — Eu estava lendo dois artigos em Sobre Arquitetura , um sobre Aleijadinho e outro onde o senhor compara o Aleijadinho e o Niemeyer. No primeiro ar­ tigo o senhcjr diz que o Aleijadinho seria marginal a essa tradição do partido singelo. LC — Exatamente. É um perigo essa coisa de fazer crítica, o sujeito tem que estar informado porque senão só diz besteira, é um risco. Isso foi em 1929. Eu voltei da Europa em 1927 e depois fui a Minas. Passei um mês no Caraça e depois estive muito tem ­ po em Ouro Preto. Já sendo formado em arquitetura, não me lembro de ter visto nessa época aquela beleza que é o retábulo de São Francisco, um hino de glória, uma coisa fan­ tástica em matéria de talha. Até hoje fico pasmo diante disso. Naquela época arquitetura colonial, para mim, era da fase anterior ao Rococó, esse negócio de Rococó eu achava uma frescura. Arquitetura, dita colonial, que me apaixonava era até 1700 e poucos. São Bento, por exemplo, eu achava uma beleza. Toda essa arquitetura mais severa, mais renascentista e maneirista, ligada ao Barroco da fase inicial, essa eu achava séria, a outra muito rebus­ cada. E o resultado foi que estive em Ouro Preto, olhei aquelas coisas todas e nada. Como é que pode? Como então fui me meter a fazer crítica, a dizer o que é certo e errado? E preciso estar informado. É como o caso do semi-analfabeto, se você não sabe o beabá, en­ tão não adianta querer escrever uma página. RB — Depois, no outro artigo, o senhor introduz o Aleijadinho na tra­ dição, e aí é muito interessante, quando o senhor fez a analogia da obra dele com a de Os­ car Niemeyer. LC — É a inovação... RB — É o mesmo raciocínio, antes ele não entrava porque rejeitava aquele partido singelo, depois passa a ser um exemplo porque faz uma operação análoga à do Os­ car Niemeyer.

LC — Ele se instalou no partido singelo e floriu, desabrochou. O Oscar, no caso dessa arquitetura moderna que era muito puritana, também introduziu a graça, o charme, essa intenção não só de elegância, mas de graça. Porque a elegância já havia, o Mies van der Rõhe já tinha entrado com a elegância. RB — Seria essa a — palavra horrível — brasil idade? O senhor acredita que essa seja uma constante nossa? LC São circunstâncias, em épocas diferentes, que tiveram os dados um tanto aproximados. Calhou de ter aquela pessoa. O segredo de todas essas coisas é a pessoa que está lá no momento... CZ O senhor não acha que a revelação que foi a arte colonial para a sua geração tendeu a privilegiar uma visualidade baseada no Barroco e no Rococó como subs­ trato de uma visualidade brasileira?


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LC A descoberta do colonial naquela época foi uma coisa completamente errada, foi um movimento inteiramente falso. CZ — O senhor fala do neo-colonial? LC — Sim. O neo-colonial foi um equívoco e a verdadeira descoberta da arte colonial se deu depois, com a criação do Patrimônio Histórico. Quer dizer, o Patrimônio Histórico criado naquela época — 1936 — foi que abriu as perspectivas do que havia de significativo de fato na arte, nessa nossa tradição colonial toda. Existe, perfeitamente, muita coisa assimilável para a nossa arquitetura contemporânea. Mas esse movimento, o neo-colonial, era uma salada que misturava arquitetura religiosa com arquitetura civil. Só comecei a aprender a admirar Aleijadinho, essa fase de nossa arquite­ tura, depois do Patrimônio, quando comecei a levar isto a sério, a estudar. Antes, naquele artigo de 1929, eu tinha falado de uma forma leviana, coisa de rapaz. Por isso acho um perigo certas coisas de gente moça que não tem conhecimento e fala com aquela suficiên­ cia, como se entendesse de tudo. Todo estudantezinho tem uma atitude assim, de modo que até você perceber o que é que ele sabe para poder ajudá-lo ou para conversar com ele, precisa antes vencer essa atitude, que é assim como que uma característica da juventude em geral. O fato é que são coisas tão passadas... Mas comecei a estudar a sério e a perceber o que tinha de significativo na arquitetura tradicional nossa, portuguesa, seja na época da Colônia, seja na do Império, que seria um alimento ótimo para o arquiteto de hoje se ele soubesse tirar partido dela e não pretendesse macaquear apenas por modismo, de forma inteiramente inadequada. CZ — Mas essa retomada através do Patrimônio, aí já havia o movimento moderno implantado na arquitetura também. LC — Essa é que foi a grande qualidade do Rodrigo Mello Franco de A n­ drade: ter botado no estudo das coisas antigas os mesmos elementos interessados nas coisas do presente. No caso, era a minha presença, a do Reis, de todos. Era um grupo in­ teressado já nessa arquitetura contemporânea, nova, e ao mesmo tempo interessado no passado. É impossível separar. Cada coisa na sua época e no seu lugar, mas sem esse an­ tagonismo entre passado e presente. RB — Notei que o senhor dizia que entre essa tradição â qual pertence Aleijadinho e o momento em que o artigo estava sendo escrito havia o período opaco de nossa arquitetura, e aí o senhor inclui o “ modernoso” que já estava se implantando. No século X IX não há uma inteligência específica da arquitetura brasileira? LC — Foi aquela ruptura trazida pela Missão Francesa. Grandjean de Montigny introduziu o neo-classicismo numa época em que justamente esse barroquismo todo estava nas últimas, já não tinha mais fôlego. Foi uma violência porque a pureza do desenho de concepção acadêmica do Grandjean de Montigny é tão contraditória com os remanes­ centes da tradição barroca. A Igreja do Carmo de São João dei Rei estava construída até o entablamento, já tinha aquela portada do Aleijadinho, e eles estavam sem saber como ar­ rematar o frontão e as torres. Então escreveram ao arquiteto português anterior a Montig­ ny (Domingos?), pedindo opinião sobre como fazer, e para isso mandaram o risco da obra


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já feita. Esse risco, de fato, é muito bisonho, mas de uma graça excepcional e está no Museu de Ouro Preto. É um risco mostrando a fachada, aliás muito bonita porque usaram aguadas num tom rosado para a cantaria e azulado para a pedra-sabão, tudo com muita candura, mas muito fiel, e está tudo lá, a porta, o óculo, a fita, desenhado como se fosse por um menino de colégio, numa interpretação bisonha. Isso talvez tenha contribuído, mas o fato é que em seu parecer o arquiteto erudito, o português neo-clássico não teve dúvida e disse: só há uma solução, derrubar tudo e fazer de novo. E era a portada do Aleijadinho! Isso ocorreu com a introdução do neo-classicismo, mas depois houve uma espécie de casamento entre essas duas tradições e começaram a surgir casas dentro do es­ pírito bem neo-clássico, com platibandas; em meados do século começaram a importar azulejos e cerâmica do Porto, estatuetas, pinhas. Então as casas neo-clássicas começaram a ser revestidas com panos de parede de azulejos. O risco era todo neo-clássico. Mas havia o pano de azulejos, as estatuetas e aquelas coisas todas, de modo que com isso o neo-clássico se adoçou. Paralelamente, os beirais, que eram de telhas de barro, passaram a ser feitos em telhas de louça azul e branca do Porto. Quando estive no Porto, procurei casas com esses telhões e só vi quatro ou cinco, era tudo para exportação, vinha tudo para cá. Aqui, quan­ do eu era moço, havia uma quantidade desses beirais... Então conviveram as duas solu­ ções, porque há, do mesmo período, com a mesma data, casas com telhado à vista com beirais de louça e casas com telhados escondidos por platibandas. Uma tem louça azul no beirai, a outra tem azulejo na fachada, os cunhais se arredondam também, de modo que se criou uma simbiose muito interessante, ficou muito simpático. Até que foi morrendo. Com a República veio a outra ruptura, a do ecletismo. H oje, num erro de interpretação, chamam qualquer porcaria de eclético. Não é nada disso, arquitetura eclética é uma coisa muito séria. A arquitetura eclética é simplesmente arquitetura acadêmica, arquitetura de estilo histórico aproveitado, conforme o programa em causa, para outra época. Se o programa era igreja, o arquiteto fazia estilo gótico ou barroco. Se era uma coisa festiva, recorria ao Luiz X V , ao Luiz X V I e assim por diante. Casa de campo, estilo inglês. Isso é que é eclético e não essas coisas que chamam de eclético mas são um eclético bastardo. Não interessa querer valorizar o bastardo só porque é engraçado. A Avenida Rio Branco foi o exemplo da arquitetura eclética, com todas aquelas construções do Heitor de Mello e de outros arquitetos. O Museu, o Teatro, a Biblioteca, o Derby, a arquitetura acadêmica é que dava então a feição do Rio de Janeiro. Hoje pouca coisa sobrou. Depois houve o neo-colonial e aquela arquitetura marajoara, que o Me­ mória fazia. Não só ele, mas também o Edgar Vianna, que se formou em Filadélfia e in­ troduziu aqui o estilo “ M issões” — Mission Style — , que ele realizava com muito apuro. Depois, também o Vianna embarcou no marajoara, uma coisa tão falsa!

RB — De qualquer forma, faltou à pintura brasileira a possibilidade de uma releitura do passado, tão útil quanto esta que serviu para a nossa arquitetura moderna. De fato, havia a tradição de uma arquitetura colonial que, bem ou mal, era uma referência. Mas a pintura moderna tinha que se fazer diretamente contra a Academia, e não possuía


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nenhum modelo. Na questão específica da escultura seria preciso investigar em que medida o Aleijadinho poderia sofrer uma leitura modemizante. O Sérgio Camargo acha que sim, mas na verdade é uma constatação a posteriori de uma afinidade, que no caso da arquitetura a cultura brasileira teria tido mais condições de absorver.

LC — Na escultura acadêmica e na pintura também havia muita coisa bonita, dentro daquele sistema todo. RB — Talvez não tenha havido a leitura correta na hora... LC — O próprio Bernardelli — outro dia o irmão do Carlos Leão me mos­ trou uma cabeça feita pelo Bernardelli, que a deu à Dona Tita, mãe dele. Uma obra-prima! Uma cabeça pequena de bronze, uma escultura cem por cento escultura, espantosa, bem construída, densa. E o Cristo com a Adúltera , aquela coisa impressionante? Tudo isso vocês menosprezam demais. Uma mania de menosprezar que eu acho uma coisa incrível! RB — Não somos nós não, é histórico! CZ — A culpa é da sua geração! LC — Pois é, o negócio de desarrumar e não deixar nada em troca é a pior coisa que há!

JC — Dr. Lúcio, o senhor costuma repetir que desarrumou a Escola e não deixou nada em troca, e estamos exatamente discutindo o problema da pintura e da escul­ tura no Brasil, que não se valeram de uma releitura do passado, como aconteceu com a nossa arquitetura, o que a tornou tão singular no panorama da arquitetura moderna mun­ dial. Isso foi uma contribuição fundamental sua, que eu reputo como a base efetiva de nos­ sa arquitetura moderna. Para mim é a pedra de toque de tudo o que aconteceu depois. Me parece que o senhor, a partir da teoria corbusiana, do espaço de manobra que ela permite, fez a releitura da arquitetura mineira a partir de sua lógica intrínseca, de sua construção, da relação funcional de seus elementos. Foi por aí, pela idéia, que o senhor se apropriou dessa arquitetura antiga, e não pela forma, pelo desenho, como tinha sido o caso do neocolonial.

LC — Daí a consistência... JC — Então, longe de não deixar nada em troca, o senhor exatamente retomou a tradição daquele partido singelo ao qual se referia antes. O senhor reviveu o processo que deu o Aleijadinho. Em sua obra o senhor retoma isso, mostra o caminho. LC — Exatamente, isto é fato... Há uma definição de arte muito boa, não sei se você conhece, que me marcou muito. É daquele Clive Bell, casado com a irmã da Virgínia Woolf, ou com a própria, ele tinha uma citação que achei muito verdadeira e dizia: “Art is significant form " . Arte é forma com significação, com carga. Só isso. Por­ que tem formas que não são nada e tem formas que têm carga. O que caracteriza a obra de arte é essa significação, essa carga que é só você descobrir que ela explode. Está contida, você sente que tem um troço ali que é como a energia atômica, se você bolir, pode ex­ plodir. Esse livro do Clive Bell quem me deu foi uma das filhas da senhora Blank, que era amiga do Manuel Bandeira. Eu o estava lendo quando fui preso na Revolução de 30, por­ que não tinha me apresentado na mobilização geral decretada pelo Washington Luís.


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Como eu, teoricamente, tinha ficado doente em Roma, do pulmão — depois verificou-se que não era nada — então aleguei esse negócio para não me apresentar. Nessa época eu já estava casado — aliás, essa viagem demorada a Minas e ao Caraça, depois que voltei de Roma, foi ainda nessa balda de ter estado com algum problema e eu queria me casar com Leleta — então estava casado e morando em Correas, na casa do meu sogro. Levei muita tralha, até móveis, e me instalei lá em Correas, numa parte da casa. Um belo dia, estava almoçando com Leleta, com muito requinte, flores, rosas, o ambiente inteiramente preparado, quando apareceu — em Correas! — uma junta de três médicos para constatar se eu estava de fato com problemas pulmonares. Eles até ficaram sem jeito diante do am­ biente e por interromper o almoço, mas eu interrompí e fui para o quarto. Lá me pediram para tirara camisa e começaram com aquele trinta e três, trinta e três, batendo e auscultando, depois foram embora. Aí apareceu um sargento para me acompanhar até o Rio, ao Quartel General, tudo ligado a essa história. Aqui o médico que estava de serviço era o ir­ mão de uma moça muito conhecida — Olga Praguer Coelho — que tocava violão e morava em Laranjeiras, e ele até foi muito gentil, carimbou o que precisava. Então veio o Pre­ sidente Vargas e me botou na Escola de Belas-Artes como diretor.

JC — Foi o prêmio por não ter se alistado! LC — Nunca vi como dão uma importância danada ás coisas mais insig­ nificantes, aqui na administração. Imagine mandar três médicos a Correas, uma junta! Que falta eu ia fazer? Como se a minha ausência fosse facilitar a tomada do Palácio Guanabara...!


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CZ — Dr. Lúcio, e Congonhas? O que o senhor nos diz daquele espaço? LC — Daquele conjunto todo. Porque mesmo um critico importante como o Robert Smith, que estudou tão bem a arquitetura portuguesa, falando do adro de Con­ gonhas, trata das estátuas como ornamentos. Ele imaginou aquilo como se já houvesse o adro e o Aleijadinho fosse chamado para botar aquelas figuras para valorizá-lo. Não per­ cebeu que o adro todo é uma composição. O José Reis escreveu um artigo, numa Revista do Patrimônio antiga, mostrando isso, que o adro é um conjunto. A planta do adro é uma composição estupenda, linda. O entrosamento daquelas escadas, aquelas curvas, é per­ feito, é um todo, e as figuras são um elemento desse todo. De fato, vendo a documentação anterior, havia um arrimo provisório definindo o adro. Aquilo tudo foi acrescentado, e é obra do Aleijadinho: o escadório, as figuras, aquele diálogo, aquela solidão lá em cima. E uma coisa fantástica. E pensar que um sujeito estropiado, que tinha que ser carregado, fez aquilo tudo com os auxiliares dele, tirando da pedra, isso eu acho fantástico, talhando a pedra, não é como escultura de molde.

Igreja de Bom Jesus do Matosinho. Congonhas, Minas Gerais Foto: P. Lobo/Pró-Memória


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CZ — O senhor considera Congonhas e São Francisco como as obras máximas dele?

IC — A obra máxima dele é exatamente a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto. A de São João dei Rei é uma repetição fard ée. parece que é uma senhora que quer se embonecar, feita 20 anos depois, nas circunstâncias todas que já comentamos. A obra-prima é São Francisco, a capela, o interior, o exterior, a igreja toda. Internamente ela não foi de todo acabada, as balaustradas ainda são as provisórias, os altares laterais foram feitos após a morte dele, de uma forma muito sumária. É uma igreja que não teve os acabamentos finais. O coro que não existe está em Sabará, o de São Francisco é provisório. O que é engraçado é que ela tem uns arcos, na fachada lateral, uma loggia , e essa loggia foi uma coisa aposta, não é projeto dele. Era o seguinte: um simples terraço cobrindo o cor­ redor lateral. Existe não o risco, mas especificações minuciosas para a execução do guardacorpo do terraço em pedra-sabão. Ele descreve os pilaretes, os coruchéus, numa minúcia extraordinária. Pois bem, ainda em vida dele, em 1808, acho que por infiltrações do ter­ raço para o corredor de baixo, resolveram cobrir o terraço, e você olhando agora aquela

loggia, vê a cobertura mordendo a pilastra interna e o capitel, aquilo que era o arremate,

Igreja de São Francisco de Assis Ouro Preto, Minas Gerais Foto: E. Hess/Pró-Memória


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separando o corpo da sacristia e do consistório, do corpo da igreja, com um terraço, uma galeria lateral descoberta.

CZ — O senhor dizia que o Aleijadinho foi um expoente máximo dessa... LC — Dessa evolução da arquitetura portuguesa no Brasil. CZ — E da própria arquitetura portuguesa, talvez? LC — O ponto máximo da arquitetura portuguesa da época aconteceu através da obra do Aleijadinho. Eles não têm nada lá, desse período, que se compare em qualidade.

CZ — E como o senhor situa o trabalho do Aleijadinho? Como culminância de todo o processo civilizatório do século XV III brasileiro, em Salvador, Minas, Rio, Olinda? Como o senhor o veria nesse conjunto em termos plásticos? LC — Como exatamente o que estava faltando. Eu, na minha época, quando moço, só olhava Bahia, Pernambuco e Minas na fase anterior. E isso que estava faltando, esse aboutissement, foi uma coisa que felizmente ocorreu através do Aleijadinho, senão ficaria sem conclusão, sem remate. E esse fim, voltando àquele partido original, aí fecha, é a retomada daquela singeleza, das igrejas claras, igrejas alegres, dedicadas a Nossa Se­ nhora, àquela idéia de louvor. Todo mundo diz: o povo vivendo miseravelmente e as igrejas gastando fortunas, tanto ouro, aquelas talhas, aquela coisa toda, sem compreender o verdadeiro sentido daquilo — a idéia de louvor. O sujeito quando vai louvar quer fazer o máximo, dar o máximo, o mais rico, o melhor, o mais apurado, para aquela idéia, que é uma coisa tão pura, tão elevada, e que tem afinal, socialmente, uma função extraordinária porque é a casa do povo. Cada igreja dessas no interior de Minas, Pernambuco, Bahia, era a casa do povo e qualquer pessoa que está na ma entra e fica lá como se estivesse em casa, se instala ali, fica conversando, aquilo lhe pertence. Eu até me lembro, quando estava no Caraça, desci a serra de burro para ir até Catas Altas, que é bem embaixo do Caraça, cheguei lá e lá estava aquela matriz, linda, e não tinha ninguém, só uma velhinha sentada, naquela conversa dela, naquele diálogo dela com Nossa Senhora e o Senhor. Ela mora num casebre e dispõe daquele Versailles para o seu uso pessoal, aquilo é dela\ Enquanto os americanos, na colonização pragmática, estavam empenhados em enriquecer, faziam igrejas bem singelas para não perder tempo e fabricar dinheiro, nos aqui fazíamos aquilo e ficou esse acervo fabuloso. Eu, que não sou religioso, acho isso lindo, uma beleza, com­ preendo bem essa dádiva de louvor. RB — E o papel da Catedral de Niemeyer? A Catedral de Brasília, por um lado, teria essa questão do Aleijadinho, da obra de arte, mas por outro... LC — Embora ninguém vá lá para louvar, o gesto estrutural é de louvor. CZ — Na introdução à biografia de Bretas, o senhor fala de uma possível vinda do Aleijadinho ao R io... LC — Esse é um ponto que acho importantíssimo. Quando ele apresentou o risco para São Francisco de São João dei Rei, já tinha a igreja dele de São Francisco de Ouro Preto — que começou em 1766 — praticamente de pé. Já tinha as janelas do coro, a portada de entrada, tudo pronto. Ai em 1774 ele vai a São João levar esse risco da igreja de


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São Francisco. Ora, nesse risco, a portada é uma portada que não tem ainda o coroamento que ficou clássico nas portadas dele, aquele medalhão oval com a coroa em cima e os querubins nos montantes laterais. A ordem carmelita — de N. Sra. do Carmo tem como símbolo a coroa real com dois anjos. Uma coroa com dois anjos tem volume, um volume sacado, que conta e arremata, como na Igreja do Carmo em Sabará, que foi a primeira portada que ele fez. A porta é singela mas tem esse coroamento bonito, forte. No Carmo de Ouro Preto também. Agora, quando se trata da Ordem dos Franciscanos, fica um problema porque o símbolo são dois braços e duas pernas cruzadas e a coroa de es­ pinhos. O risco que ele apresenta em São João dei Rei, que é belíssimo, uma preciosidade de delicadeza, de desenho, é meio frágil quando se considera as portadas dele posteriores. Então, o que aconteceu: ele levou esse risco e quando estava em São João aproveita e vem ao Rio de Janeiro porque estava com a idéia de conhecer a portada em pedra de lioz que tinha vindo de Lisboa para a Igreja do Carmo da Rua 1? de M arço. Vocês não têm lem­ brança talvez, todo mundo vai à missa de fulano que morreu mas ninguém presta atenção na portada. Essa portada é espetacular. Volta e meia, passando lá, fico parado olhando: ela é imensa, em pedra calcária. Na época dele a igreja nem tinha torre, só aquela fachada e aquela portada avultando na paisagem carioca. Foi um sucesso, o resto todo era relati­ vamente modesto, de outra escala. Isso avultava, era uma coisa famosa e ele como homem do ofício — estava fazendo portadas continuamente — teve então essa idéia de vir ao Rio. Portada, Igreja do Carmo Ouro Preto, Minas Gerais Foto: O. Braga/Pró-Memória


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Sabe-se que esteve no Rio, o que é perfeitamente lógico, então tudo se enquadra, tudo se encaixa. Ele chegou, olhou aquela portada e disse: “ Vou fazer o seguinte: tenho as armas de São Francisco, agora eu acrescento o medalhão oval de Nossa Senhora e então ponho a coroa dela em cima e arremato a minha composição” . O risco de São João é de 1774, julho, e em outubro ele volta a Ouro Preto. Levou quatro meses. Se tivesse voltado de São João dei Rei para Ouro Preto, já estaria lá, e ele levou quatro meses. Foi o período em que esteve aqui. Ele chega a Ouro Preto e toma imediatamente a seguinte providência: a porta dele. de São Francisco, já existia, mas era muito mais modesta. De tão apaixonado com a idéia nova, consegue que os irmãos todos o apóiem e manda, primeiro, afastar as janelas do coro que já estavam prontas, mas muito próximas, para dar campo ao desenvolvimento da portada nova. Depois manda quebrar a ombreira da porta. No risco de São João ele fez esse pormenor: chega a um certo ponto, dá uma quebra, toma impulso para compor o res-

Portada, São Francisco de Assis São João dei Rei, Minas Gerais Pormenor do risco aprovado em 8 de julho de 1774 Foto: Vosylius


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to em vez de deixar a ombreira reta, como no Carmo, em Sabará, nas portadas primitivas. Ele quis aplicar isso na portada que estava lá, essa contração. Em vez de ser reta ela faz uma contração, como um cavalo quando vai pular um obstáculo — contraiu e saltou, sal­ tou e explodiu. Então ele conseguiu, na obra já feita — disso há documentos escritos —, desmanchar as ombreiras e as janelas do coro para dar espaço para essa coisa que na volta dessa viagem de quatro meses ele resolveu fazer e fez. Acrescentou a Nossa Senhora sobre as armas de São Francisco e botou os dois querubins, um carregando a cruz, e a trian­ gulação ficou perfeita: um triângulo equilátero com os vértices sacados, fortes, de sombras densas, já que a coroa real dá sombra boa também. Isso foi o que ele reproduziu nas outras portadas. É fantástico. Você, vendo aquele retrato dele — descrito pela nora —, é aquele artista inflamado, que consegue tudo. Quando quer, não há cristão que àgüente! RB — Nem todos, El Greco queria repintar a Capela Sistina. LC — Que animal, com tal pretensão...! M as isso é histórico? Deve ser conversa... Logo ele, o genial El Greco! RB — Não, não. Houve uma proposta. É uma loucura!

LC — Porque inventam cada coisa... Numa exposição que fizeram recen­ temente, puseram que eu tinha proposto colocar a Universidade na Lagoa Rodrigo de Freitas, como se eu tivesse feito o projeto. Isso foi uma sugestão muito engraçada, baseada


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em que havia, na época, um propósito do Almeida Gama, que foi o que aterrou a enseada da Urca, para fazer um loteamento, aterrando aquela parte rasa da Lagoa, perto do Corte de Cantagalo. E foi na mesma época em que se estava fazendo o projeto da Cidade Univer­ sitária e eu me lembro que sugeri: “ Em vez do loteamento vamos botar a Universidade na Lagoa, sobre estacas, com passarelas ligando um prédio ao outro, e com pequenas ilhas de estar\ Uma coisa bonita, mas foi tudo conversa. E agora, nessa exposição de projetos não executados, citaram como se tivesse chegado a haver o projeto. Tolice. JC — Dr. Lucio, e o Valentim aqui no Rio?

LC — O Valentim foi um grande artista também. Na Igreja do Carmo, tem a pequena porta lateral, igualmente em pedra de lioz, que é muito mais graciosa que a outra. E possível que seja do M estre Valentim, mas os documentos, se não me engano, não comprovam nada. Lembra um pouco a doçura do Mestre Valentim.

Detalhe do frontispício. Igreja de São Francisco de Assis Ouro Preto, Minas Gerais Foto: P. Lcbo/Pró-Memória Página 59: Portada, São Francisco de Assis Ouro Preto, Minas Gerais Foto: Pró-Memória


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JC — Como o senhor compara os dois? LC — Um não tem o gênio do outro. Valentim é também um grande artis­ ta, mas não tem a força do Aleijadinho. O nosso Antonio Francisco é uma tigura excep­ cional, fabulosa, e tudo isso, por mais que se queira esquecer, com aquele estado de mi­ séria física dele. É fantástico. JC — Talvez Mestre Valentim fosse mais “ moderno". LC — Mais moderno e mais português. Parece que ele esteve em Portugal e manteve aquele costume típico lá em Portugal de combinar pedra do lioz com granito. Como ele botou na Cruz dos Militares: o capitel e a base em pedra de lioz, o fuste em granito. Fez o mesmo no portão do Passeio Público. F’m Portugal ocorre muito misturar lioz com granito nesse período de D. Maria. Enfim, tanta coisa! O passado a gente despreza. Olha-se o passado como se fosse um troço qualquer, mas quanto trabalho! Em São Pedro de Roma é isso que me es­ panta: eles queriam integrar a igreja com a praça, então o Bem ini, com aquela facilidade, dá aquele risco, aquela praça oval— como o Oscar, que dá o risco com facilidade então façam assim: os chafarizes, o obelisco, aquelas colunas e resulta nesse salão a céu aberto. Mas esse risco implicava fazer 324 colunas com um diâmetro, cada uma, de mais de um metro, dispostas em grupo de oito: quatro e mais quatro. Agora você imagina que o risco que ele deu com aquela facilidade implicava esse trabalho: tirar da pedreira de não sei onde aquela pedra enorme e transportá-la; não só fazer os tambores, mas ainda levar em conta o galbo, pois há um ligeiro galbo, subir aquelas 324 colunas, botar o entablamento em cima, depois uma balaustrada, e, não satisfeitos ainda, em cada prumada da coluna que dá para a praça, botar uma estátua de 5 ou 6 metros com um gesto grandiloquente para marcar essa prumada! Isso, imagine, para o papa! Que homens esses papas e esses artistas! Eram sobrenaturais. Fazendo coisas que eles provavelmente não chegariam a ver porque ia demorar tanto... Mas o sujeito tinha a visão e resolvia — numa penada — ‘‘faça-se” , e pronto, está lá. E nós todos nos beneficiamos disso, na televisão, com esse papa que fala tão bem e acolhe aquela multidão ali. Nós, graças á tecnologia, também participamos, es­ tamos lá. E naquela igreja, naquela cúpula, naquela praça, naquele conjunto todo, há uma perfeita integração da arquitetura com a idéia de Papado. Você não pode dissociar uma coisa da outra — é uma coisa só. Isso é que acho de uma força....Laços de verdade, a in­ tegração perfeita. Quando as pessoas ficam brincando de arte é tão pueril, tão bobo, diante dessa coisa fantástica, de força, de capacidade, de poder. É preciso muito respeito. A conclusão que eu tiro é que deveríam ser obrigatórios os cursos de His­ tória da Arte nas Escolas, levados a sério, e o estudo da arquitetura, principalmente. Mas que o professor saiba transmitir certas coisas... Tem aquele caso da minha filha na Acrópole, lá no Partenon. Ela, de re­ pente, estava lá, no Partenon, subiu aqueles três degraus arquitetônicos e se encostou na coluna. E percebeu que a canelura era como um encosto de cadeira, dava certo nas costas dela. E aí ela sentiu a coluna, aquilo subiu, ela sentiu a arquitetura e sentiu o Partenon todo, tudo adquiriu consistência. E então ela me disse: "M a s papai, eu estava habituada a


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desenhar essas caneluras nuns riscos, eram uns simples riscos. Agora é que estou vendo” . De modo que o professor tem que transmitir essa coisa fundamental. Es­ colher alguns exemplos, se concentrar naqueles exemplos de vários períodos e martelar até aquilo encaixar na cabeça da rapaziada que vai para a Escola com um ar displicente de quem já sabe tudo, e não sabe nada. Só assim eles vão começar a perceber e a se apaixonar, a levar a sério essa coisa que é a arquitetura. Enfim.

Entrevista concedida à Revista Gávea em 15 de janeiro de 1986.



RODRIGO N AVES

O olhar difuso

Notas sobre a visualidade brasileira

Não é novidade a pouca predisposição lusitana para as coisas visuais. Vários críticos a indicaram e ressaltaram a desproporção entre a produção literária e plástica de Portugal. Já em 1563, Francisco de Holanda — o primeiro tratadista português, uma es­ pécie de Leon Battista Alberti ibérico — , no livro Da Pintura Antiga , lamentava “ ...que nós outros, os Portugueses, inda que alguns naçamos de gentis engenhos e spiritos, como nascem muitos, todavia temos por desprezo e galantaria fazer pouca conta das artes; e quasi nos enjuriamos de saber muito d’ellas, onde sempre as deixamos imperfeitas e sem acabar” . De par com a desconsideração ética do trabalho, a longa permanência em Portugal das artes plásticas como artes mecânicas — consideradas atividades artesanais, com o mesmo estatuto da marcenaria, carpintaria etc. — , sem vínculo com as artes li­ berais, que monopolizavam as operações do espírito, reforçou uma atitude desdenhosa já com certa tradição. É só com o maneirismo, em fins do século X V I, que os artistas por­ tugueses deixam aos poucos de ser considerados artesãos para conquistar a condição de in­ telectuais. Quase um século de atraso em relação à Itália... A defasagem no entanto nunca foi superada e de pouco adiantaria esta explicação: a Espanha teve um processo artístico muito semelhante e todavia, a partir do século X V I, produziu quase sem interrupções uma linhagem de artistas das mais importantes para a história da arte. Até hoje é difícil explicar com alguma objetividade estas e outras diferenças entre Portugal e Espanha. A constatação do desinteresse ou mesmo incapacidade lusitana em relação às artes plásticas raramente foi acompanhada de um estudo mais detalhado das origens e particularidades deste fenômeno. E não sem razão. Afinal, é quase como analisar um objeto inexistente. Houvesse realmente uma história da arte portuguesa — mesmo frágil e de pouca importância — , tudo se tornaria mais simples. Seria ao menos possível entender os problemas que entravam um seu maior alcance estético. A tentativa de uma espécie de “ sociologia da (falta de) visualidade” por­ tuguesa, por seu lado, talvez se mostrasse mais exeqüível. E igualmente inútil. Porque

tudo leva a crer que existe uma visualidade difusa na cultura portuguesa a emperrar, paradoxalmente, o desenvolvimento de uma cultura propriamente visual. De certo modo, é necessário praticamente inventariar, na dispersão das manifestações culturais, uma quase lógica que unifique este olhar vago e envergonhado. E preciso analisar um ema­ ranhado de fenômenos — metáforas, mitos, organização do espaço, a pouca arte existente etc. — , na tentativa de identificar esta visualidade que rechaça a sua concretização plena, para possibilitar, por seu turno, um pensamento pouco afeito às abstrações conceituais,


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excessivamente apegado a um materialismo lírico pedestre e sempre ás voltas com imagens que tentam remediar dificuldades teóricas. Nô Brasil, a situação não é muito diferente. A o contrário, parece que her­ damos boa parte da resistência portuguesa às artes plásticas. Neste artigo — na verdade esboço de um projeto de contornos ainda pouco claros — procuro delinear rapidamente al­ gumas características desta visualidade difusa. M as resolvi, aqui, para facilitar, inverter o procedimento, ou seja, partir diretamente de um trabalho artístico — a pintura de Guignarcj — com as conclusões obtidas na análise de sua obra, reter alguns elementos que ajudem a caracterizar melhor o que seria, grosso modo, a visualidade brasileira. Não desconheço os riscos que acompanham um projeto tão metido a abraços como este. E, embora não tenha a mínima intenção de produzir mais uma escatologia nacional, sem dúvida será preciso conviver com essa generalidade, que funcio­ nará, mais ou menos à maneira kantiana, como uma idéia reguladora. Porque o modo de funcionamento do objeto a perseguir obriga a esse desenvolvimento, sem no entanto ceder a ele. Me explico: há um excesso de visualidade dispersa verdadeiramente infiltrada no cotidiano e na tradição do país, ao mesmo tempo em que o Brasil, até hoje, se mostrou in­ capaz de criar um solo plástico minimamente sólido. Basta pensar no caráter visivo de fenômenos tão díspares e arraigados como o messianismo ou o populismo político, a fun­ dação de Brasília ( “ no coração do Planalto C entral” ) ou o cristianismo tão tátil do pais para constatarmos isso. A generalidade parece ser, entre n ós . a própria essência do fe­

nômeno visual. E como não se produz com generalidades... A tentativa de delinear com um pouco mais de precisão este fenômeno é a maneira que me parece mais viável para revertê-lo. M as qualquer transformação neste processo, não tenhamos ilusões, só será possível por meio da própria produção artística. Guignard é um dos maiores, se não o maior, entre os pintores brasileiros modernos. Somente a obra de Eduardo Sued, ainda longe de uma definição tranqüila e sempre surpreendente, é capaz de fazer-lhe sombra. N ão sei mesmo se o trabalho de Pancetti, Segall, Volpi, M ilton Dacosta e Iberê Camargo ombreia com o dele. Anita Malfatti e Tarsila talvez tenham telas que, individualmente, não encontrem rivais entre as de Guig­ nard, mas não produziram, a rigor, uma obra. Em cada uma delas é possível separar, quando muito, dez grandes pinturas, que, por mais que queiramos, apontam antes as carências dos respectivos projetos do que etapas de sua realização. Já Guignard, além de uma poética e uma singularidade que permeiam toda a obra — e que, se excessivamente privilegiadas, como acontece com freqüência, acabam fazendo dele um caso excêntrico, à margem da história da arte moderna e, portanto, mais ou menos avesso a suas demandas , conseguiu como poucos criar uma unidade original entre espaço, superfície, tema e textura. E no entanto um dos nossos maiores artistas modernos é quase um pri­ m itivo... A dissolução do espaço tradicional, em vez de conduzi-lo à superfície do suporte por meio da substantivação da cor, faz com que sua obra fique a meio caminho, habitando literalmente um campo pictórico em ruínas. Numa carta a M ário Manés de 1952 — trans-


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crita no livro A Modernidade em Guignard — o pintor diz que “ na paisagem tudo que es­ tá mais perto será mais escuro e a profundidade mais cla ra ". Ora, essa inversão consciente da clássica perspectiva aérea (que torna mais escuro o que está mais ao fundo), tantas vezes praticada por Guignard, traz a clara intenção de evitar a ilusão de profundidade. Mas ao mesmo tempo produz um efeito muito peculiar. Embora em boa parte planas, suas pai­ sagens formam um espaço que não se entrega imediatamente e que, ao contrário, volta-se sobre si mesmo, criando uma impressão de amplidão. Por mais repletos que estejam de ob­ jetos, estes quadros de Guignard não conseguem esconder uma sensação de vazio, numa quase figuração da noção abstrata (e não-perspectiva) de espaço, tão oposta à provocada pelas superfícies compactas da maioria da produção moderna. Com o cubismo, cessara a relação estanque entre um espaço concebido como mera virtualidade e objetos compactos, ilhados em sua incomunicabilidade. Conver­ tido num continuum , o campo pictórico submetia-se a uma reversibilidade entre espaço e objeto, uma impregnação recíproca que dava àquele resistência e, a este, maleabilidade. Os recursos clássicos da representação tridimensional — sombreado, perspectiva, mo­ delado etc. — tornavam-se desnecessários, e superfície pictórica e superfície real (suporte) quase coincidem. O modo como Guignard resolverá esse dilema — praticamente à margem da solução cubista — é que conferirá em larga escala a originalidade e a estranheza de seu trabalho. Em lugar de proporcionar-lhes comunicação, Guignard estabelece uma disso­ lução dos objetos através da desproporcionalidade de sua situação no espaço. Não há aí nem a anteposição de um espaço que organiza os quadros — como na perspectiva linear — nem tampouco a vigência da noção aristotélica de lugar, mas sim a concepção de espaço como poder dissolvente que, por sua monumentalidade, corrói a estrutura dos objetos. Mas é impossível fazer simultaneamente uma pintura plana e fiel à dua­ lidade espaço-objeto. A partir do cubismo, encontraram-se várias soluções para esta ques­ tão. Todas porém estreitamente ligadas à materialidade imediata dos meios envolvidos pela pintura. Para Matisse, por exemplo, a resposta está na construção com a cor; para Morandi, na expressividade contida das diferentes direções do pincel e no sutilíssimo con­ traste de tons; para Pollock, no verdadeiro estilhaçamento da superfície pictórica. Diante deste mesmo impasse, Guignard depara com um espaço descontínuo e sem unidade pos­ sível, e também não se satisfaz com a fragmentação, que seria uma saída. Sua resposta, genial mas de compromisso, será criar um espaço-envoltório que suspenda a solidez dos objetos pelo seu apequenamento. Em lugar de somente delinear o mundo das coisas, o es­ paço de Guignard se infiltra nelas por tomá-las insignificantes. E quase as desmaterializa. Daí também a impressão de precariedade que domina todo o seu mundo. É que a união dessa atmosfera nebulosa á fatura aguada dos trabalhos — e que, como se vê, não tem nada de casual — cria um processamento contínuo em que o tempo nunca conclui sua obra. A aparência de inacabamento tão típica das pinturas de Guignard decorre da luta para não recair no ilusionismo. A unidade de seus trabalhos, tão dificilmente conquis­ tada por um espaço todo-poderoso, estaria comprometida, paradoxalmente, se as super-


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fícies de cor alcançassem uma presença forte, pois não havería como integrá-las sem lan­ çar mão de um esquema a priori. Não podendo trazer à tona a materialidade envolvida na elaboração das obras, o pintor, para não iludir, tem de optar por deixar à mostra o processo de criação dos quadros. Tudo é transparente nos trabalhos: a construção da cor, a tela (ou madeira), os pincéis, a gestualidade tímida. Mas este fazer contido, na medida em que não se esgota no ato de realização — porque tem de manter um recato enquanto presença —, acaba revelando também uma recusa do artista de abandonar a obra a seus limites: ela con­ tinua presa à subjetividade do artista, em uma relação com o mundo que resiste em alienar-se na tela. A carga afetiva dos quadros é o resultado imediato do apego ás reminiscências do devir da obra. E da natureza. Para Edward Hopper — um outro artista que corre mais ou menos por fora da tradição moderna, e para quem o tema tem grande importância — , por exemplo, a solidão advém de um isolamento pictoricamente atual; decorre da falta de solidariedade das áreas de cor, dos verdadeiros campos de luz que imobilizam em seu interior pessoas absor­ tas e sem interioridade, apenas amargas. Em Guignard o mesmo sentimento é fruto de um eu lírico que se apequena diante da imensidão do universo que escorre entre os dedos, precário e de uma intimidade fugaz, somente atuante na lembrança. Na sua obra, ao con­ trário da de Hopper, a solidão é memória da solidão. E por mais planos que sejam os quadros, sempre fica, e talvez até predomine, uma concavidade a habitá-los: mais que profundidade, uma interioridade. Contraditoriamente, quanto maiores os formatos mais esse efeito é de se ob­ servar na arte de Guignard. Clement Greenberg, comentando o desenvolvimento do trabalho de Arshile Gorky — observação de resto extensiva a toda Escola de Nova York — , mostra como o aumento das dimensões das telas servia para contornar as limitações im­ postas por estas balizas imemoriais, as margens do quadro, na medida em que elas ficavam fora do campo de visão do artista, possibilitando que se chegasse ao quadro como um resultado, ao invés de tomá-lo como algo dado de antemão. A superfície pictórica deixava de ser o campo de projeção da tridimensionalidade e o lugar tramado por verticais e ho­ rizontais, e adquiria uma corporeidade favorável ao antiilusionismo. A bem dizer, é só com a retomada da bidimensionalidade que se pode falar apropriadamente em dimensão das pinturas, porque elas deixam de ser janelas maiores ou menores — com sua força voltada para “ dentro” — para se tornarem extensões. Para Guignard, contrariamente, quanto maiores mais íntimas e singelas se tornam suas pin­ turas. E isto sem se socorrer, como já vimos, de um espaço clássico. Acontece que seu sis­ tema de claros e vazios e a necessidade de anular os objetos, à medida que crescem, fazem aumentar o abandono dominante nos trabalhos. Como um claustrófobo que insiste em en­ frentar seu terror na própria arena, Guignard amplia os espaços para melhor temê-los. Mas vacila na realização. Ele não parte do quadro nem chega a ele. Guignard o pressente e quer evitar sua materialização. Faz da vastidão um abrigo contra a anulação perante a natureza. Para o pintor de Nova Friburgo a concretização na superfície é verdadei-


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ramente um trauma. Em outro artigo (Folhetim , 23.9.1984), já procurei mostrar como Guignard, pela superposição de velaturas, ao mesmo tempo que sugere uma origem, im­ pede o seu reconhecimento. É esse processo crescente de ocultamento que instiga o olhar a buscar o “ fundo" da tela. A o fim, a superfície é um obstáculo para a visão. A imagem que se apresenta ao cabo do processo é quase uma reprodução esmaecida da que a gerou. O que é original não se mostra — lateja ao fundo, sem se entregar ao olhar. O ideal de pintura que se depreende de sua obra é, em última análise, o gesto de superpor transparências e, por meio delas, sugerir uma densidade ambígua: uma profundidade rasa e indecisa. Por conta deste procedimento, Guignard obtém um efeito final muito in­ teressante: suas obras — sobretudo as paisagens — são extremamente homogêneas, sem focos de interesse privilegiados ou qualquer hierarquização pictórica do tema. As pe­ quenas estradas que serpenteiam pelos morros, árvores e casinhas espalhados nos montes servem como a intromissão de um ritmo que impede a monotonia. Funcionam como arabescos, ajudando a trazer o quadro mais para a tona e pontilhando-o de marcações in­ significantes. Em outros casos — como no grupo A Família do Fuzileiro Naval — , ao con­ trário, o emprego de motivos decorativos ajuda a enfraquecer o centro do trabalho, des­ fazendo formas e dispersando a atenção. De todo modo, no entanto, fica muito difícil aproximar o uso de arabescos e motivos decorativos de Guignard e o de Matisse. Para Matisse, o decorativo é estruturante; em Guignard é rítmico. O que para o autor do Ateliê Vermelho é só pintura — os trabalhos com papel cortado demonstram isto à exaustão: a aparência é uma membrana de cor — , para Guignard é, até certo ponto, uma alegoria da brejeirice nacional. Tudo me leva a crer que é uma certa concepção de natureza que dá susten­ tação à visualidade difusa e generalizante a que me referi anteriormente e que também confere peculiaridade a uma porção generosa da produção propriamente visual brasileira. Mas esta noção, contrariamente, por exemplo, à que predomina em boa parte da cultura americana — penso em Walt Whitman, Melville, Hemingway, Pollock, Walter de Maria etc. — , não remete a uma natureza em expansão, pura liberação de energia. A que vigora por estas paragens é mais substancializada e rarefeita e uma frase de Mário de Andrade a condensa à perfeição: “ No fundo da mata-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gen­ te. Era preto retinto e filho do medo da noite” . Há aí todos os elementos dessa natureza mais ou menos hipostasiada, rala e íntima ( “ no fundo da mata-virgem ’), e avessa a individuações ( “ preto retinto/filho da noite” ). Ao mesmo tempo que é insondável em sua interioridade, tem contudo uma face doméstica, brejeira, em seu intimismo: Há nada mais encantador, do que trazer o campo para dentro da cidade e até da casa; do que en­ trelaçar com as magnificências do luxo as galas inimitáveis da natureza? (Senhora , de José de Alencar). Paradoxalmente, este conceito, tão visual em sua representação — basta imaginar uma prosaica varanda sombreada para poder vislumbrá-lo diriculta a criação de uma visualidade real, na medida em que diz respeito a uma natureza que não se ma­ nifesta e que resiste à diferenciação.



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Creio que pela análise sumária de Guignard muitos destes aspectos se des­ tacaram. Em sua obra, a recusa da presença, o espaço envolvente e a dissolução da ma­ terialidade dos objetos, uma certa intimidade faceira com o mundo e a homogeneidade das superfícies — traços com que a noção de natureza que mencionei coincidem grandemente — criam uma obra artística respeitável quase que apesar deles mesmos. Como já disse, isto é o esboço de um projeto cujas teses precisam ser testadas e enriquecidas por meio de uma análise adequada de porção significativa da cultura luso-brasileira, sem se limitar ex­ clusivamente às manifestações predominantemente visuais. Restaria ainda descobrir a gênese social deste conceito de natureza; a trama de relações que propiciaria um imaginário tão paradoxal, a frustrar o rigor teórico por meio da diluição de conceitos em metáforas e impossibilitando uma produção plástica vigorosa pelo caráter genérico — diria mesmo abstrato — de um olhar que não se concen­ tra. Um caminho para a explicação deste traço cultural do país talvez se encon­ tre na pobreza de mediações da sociedade brasileira. Os legados portugueses da deprecia­ ção do trabalho e da relativa falta de hierarquização social, a escravidão, o patriarcalismo agrário, o atraso industrial, cultural e educacional, a tutela política das elites e a desor­ ganização das grandes massas contribuíram em larga escala para aquilo que Sérgio Buarque de Holanda, no seu Raízes do Brasil, chamou de “ horror ás distâncias que parece cons­ tituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro” ; um compor­ tamento que não suporta os trâmites e abstrações sociais, desconhecendo “ qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo” . E nessa coexistência amorfa tampouco o indivíduo chega a constituir-se como tal, pois, “ no ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existên­ cia” . A argumentação de que havería excesso de bonomia neste homem cordial “ inven­ tado” por Sérgio Buarque — embora a expressão seja de Ribeiro Couto — , escamoteando conflitos e divisões de classe, demonstra tão-somente uma profunda incompreensão do seu raciocínio, tão esclarecedor da estrutura frouxa que costura a sociedade brasileira. Mesmo porque a violência é meramente a forma conflagrada deste mesmo procedimento social. É

Guignard

Os Noivos Óleo sobre tela, 58x48cm. 1937 Fundação Raymundo O. de Castro Maya Primeira página: Guignard

Paisagem de Minas Gerais Óleo sobre tela, 150xl00cm, 1941


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o que lembra Maria Sylvia Carvalho Franco, no livro H om ens Livres na Ordem Escra­ vocrata , ao demonstrar que tanto o rico fazendeiro quanto o mísero caipira viveram num mundo eminentemente feito de pessoas e não de abstrações, concebendo as situações ten­ sas em que se envolviam como lutas mortais e radicalizando o conflito até a supressão do adversário” . Esta imediaticidade das relações sociais, ao impedir que os indivíduos re

presentem e anteponham (na verdade o sentido alemão para representação, ou seja, vorstellen , pôr antes), minimamente que seja, sua situação e dinâmica no interior da socie­ dade, realmente toma quase impossível uma atitude intelectual mais aguda, pois irá im­ plicar uma mentalidade rasteira que chafurda num presente sem rupturas. Assim, a so­ ciedade tende a figurar-se — mais do que representar-se — como pura interioridade, sem conseguir pensar seus movimentos de exteriorização e devir. E o olhar envergonha-se das próprias distâncias que cobre.

Rodrigo Naves Formado em Comunicação, ex-editor do Folhetim, Folha de Sdo Paulo, autor de um livro sobre El Greco, Editora Brasiliense.


K A TIA M URICY

Tradição e barbárie em Walter Benjamim

Thomas M ann, em Doutor Fausto , este grande romance que é também uma suma das discussões estéticas da modernidade, narra a repercussão da conferência de Kretzschmar, o organista da catedral de Kaisersaschern, nos adolescentes Adrian e Serenus. Ainda embriagados pelo periclitante discurso do gago professor, refletem acerca de uma anedotada narrada, sobre os embates de Beethoven, ao compor a sua Missa, com as banalidades do cotidiano. Pressionado pelo prazo da encomenda, o mestre se entregara ao trabalho com tal afinco que acabou por ocasionar um caos doméstico. Apavoradas com o frenesi do artista, as criadas abandonam a casa daquele patrão surdo que, ao compor, can­ tava e uivava batendo os pés e só pedia o jantar, aos berros, no meio da noite, quando os pratos estavam queimados e todos já haviam sucumbido ao sono. A figura, descrita por Kretzschmar, de Beethoven reclamando do abandono dos que o deixavam sem comida — as roupas em desalinho, o rosto conturbado como se tivesse saído de “uma luta de vida e morte com todos os espíritos avessos ao contraponto” — fascinara os dois rapazes. Sem ainda conhecerem a M issa, aproximavam-se de uma “ desconhecida grandeza” : o artista torturado, na sublime grandeza da criação, pela prosaica necessidade de aplacar a sua fome em um bom jantar, afinal frustrado. Instigado por esta imagem, Adrian disserta, no pátio do liceu, sobre a secularização da Arte e de como este evento, que determinou a sua autonomia, a lançara em uma outra gravidade: a sacralização do artista e de seu sofrimento criador, pateticamente ironizada pela anedota, na aparição desse Beethoven insone e faminto. As “ palavras prematuras” do jovem Leverkühn ecoam em um mesmo espaço de possibilidades para as quais se abre a crítica da cultura de Walter Benjamim. Adrian prevê um outro destino para a Arte, uma função menos solene, “ mais modesta e mais feliz” , um pôr-se a serviço, não mais da Igreja, não mais do pathos solitário do artista, mas de quê? — Adrian desconhece e divaga: talvez a idéia de Cultura seja um fenômeno datado, transitório, algo que irá se dissipar. Serenus, seu sensato companheiro, objeta que fora da Cultura só resta a barbárie. O herói, diante da observação, avança um argumento que amadurecerá ao longo do livro e que construirá a base de sua radical experiência artística e existencial. Para o jovem, a oposição barbárie e cultura está nos limites do pensamento es­ tabelecido pela própria cultura. Iluminâncias ressonantes nas Teses de Benjamim: “ Nun­ ca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” . Mas a esta barbárie, sombra e ruína da cultura, o personagem de Mann sobrepõe uma outra, que dissiparia a oposição desses termos. As épocas realmente cultas dispensaram a teorização dessa dicotomia, foram antes bárbaras — a saudável barbárie das culturas elevadas. Em outras palavras, avançando as premissas do personagem, uma teoria da cul-


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tura só se faz necessária nos períodos de sua crise, de seu declínio. Na nossa civilização da técnica e do conforto, tanto mais se fala de cultura quanto ela está ausente de nossa ex­ periência. A conclusão dessas reflexões está na afirmação de Adrian, perfeitamente benjaminiana, de que o “ nosso nível é o da Civilização, certam ente um estado bem louvável, mas, indubitavelmente, deveriamos nos tornar muito mais bárbaros, para outra vez podermos ser cultos” . Mais do que um encontro de Thomas M ann com Benjamim no tema da barbárie positiva, Doutor Fausto é a vida evocativa que permitirá uma leitura de Benja­ mim entrelinhada pelas pistas da crítica à cultura de Nietzsche. A presença de Nietzsche nesse romance estende-se de forma persistente, em termos menos diretos que a explícita alusão a sua doença e ao famoso incidente do bordel de Colônia, transpostos para a bio­ grafia de Adrian Leverkühn. Se, no horizonte da civilização moderna, a barbárie se define pela oposição ao que aí se propõe como Cultura, uma nova barbárie não estaria longe do que Nietzsche vislumbra, com esperança, como a morte do homem, o retomo à saúde, a cura do niilismo, última e fatal inoculação de uma civilização erigida pela morbidez as­ cética. Esta esperança, diversamente formulada, está presente em Benjamim. Pensamos que a coincidência ocorra pela confluência de alguns temas em Nietzsche e em Benjamim. Guardadas as diferenças e a contextualização específica de cada autor, é possível, em es­ pecial no que concerne à concepção de História, estabelecer-se algumas convergências. Sem explicitá-las, nossa leitura apenas as indica e, quase sempre, as toma como inspiração. É em Experiência e Pobreza , um pequeno artigo de 1933, que Benjamim saúda a ruptura com o passado cultural como única saída para a contemporaneidade e anuncia, com euforia iconoclasta, o advento de uma nova barbárie. Ruptura que não é cor­ te em matéria viva, mas despojamento de um fardo morto: desvinculado da tradição, en­ tendida como experiência comunicável entre os homens, o patrimônio cultural não passa de uma pantomina do mesmo, condenada à repetição mítica, a celebração da história dos vencedores. Um “carnaval do grande estilo” , como escreveu Nietzsche, referindo-se ao artificialismo da efeminada cultura européia, uma sucessão de mascaradas estilísticas, sempre pronta a recorrer à História como a um guarda-roupa de trapos. Benjamim constata como a segunda década de nosso século assistiu, estupefata e impotente, à queima geral da tradição. Sua liquidação derradeira — a guerra mundial — deixou como herança uma extrema miséria de experiências comunicáveis. Os homens que haviam ido “ à escola num bonde puxado por cavalos” viveram nos campos de batalha o aniquilamento de experiências acumuladas ao longo das gerações. Na paisagem destruída da guerra de 1914 não sucumbe apenas o “frágil e minúsculo corpo humano” , exposto a uma tecnologia inesperada: morre também a já declinante capacidade comunicativa da ex­ periência. Estes homens que voltam “ mais silenciosos” das trincheiras, incapazes de narrar a horrível experiência, são os homens da modernidade. Destituídos da sabedoria — o lado épico da verdade que lhes foi arrancada pela ruptura abrupta com um passado de experiências transmissíveis de boca em boca” , resta-lhes a assunção de sua pobreza. O entediado do fim do século, o hypocrite lecteur a que se dirigiu o poeta,



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flanando a sua impotência pela profusão de signos culturais subitamente esvaziados das grandes cidades industriais, ainda procurava “ olhares familiares” nessa “ floresta de sím­ bolos” . Mas, se em Baudelaire, pé na modernidade, é possível sonhar com o país onde tudoé “ ordre, beauté, luxe, calme et volupté” , o homem moderno não pode mais voltarse nostalgicamente para “ ces époques nues, dont Phoebus se plaisait à dorer les statues” . Sua saída é, antes, quebrar as estátuas da nostalgia. Cada vez mais pobre de experiência e de tradição, que lhe foram roubadas pelo desenvolvimento tecnológico acelerado do capitalismo, o homem moderno está dilacerado por uma subjetividade que não se reco­

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nhece mais na cultura e por uma cultura que já não mais o integra ao social. Há meio século deste artigo, Nietzsche aponta este divórcio: “ O homem moderno carrega consigo a massa enorme e indigesta de pedras para construir o saber, borborigmos de pedras que murmuram, traindo o estranho contraste entre o seu ser íntimo ao qual não corresponde nada do exterior, e seu ser exterior ao qual não corresponde nada do interior, contradição que os povos antigos não conheceram” . Resta-lhe romper com o passado que o ameaça com o peso estéril do que Benjamim chama aqui de a sua “ angustiante riqueza de idéias” . À pungência do tédio moderno do verso de Baudelaire — “ j ’ai plus de souvenir que si j ’avais mille ans” — se impõe a urgência de Brecht, na palavra de ordem da Cartilha para os Citadinos-. “ Apaguem os rastros” . Livrar-se do “ homem tradicional, solene, nobre, adornado com as oferen­ das do passado” , para tomar nos braços o “contemporâneo nu, deitado como um recémnascido nas fraldas sujas de nossa época” , é a tarefa da atualidade. Essa pobreza assumida é a barbárie saudada por Benjamim; ela poderá fazer frente à tartufaria de estilos na qual, lastima Nietzsche no final do século, mergulhara a cultura européia. O que chama de “ conceito novo e positivo de barbárie” supõe, por um lado, como impulso de ruptura com o passado cultural, “ uma desilusão radical com o século” ; por outro, uma “ total fidelidade a esse século” , que compromete definitivamen­ te o homem moderno com a sua precária atualidade. Estar despossuído dò passado será en­ tão não só o encontro do presente em sua pobreza mas, principalmente, em sua urgência, como o que há para ser inventado, construído. Destituído da tradição, a miséria será a honestidade e a esperança do homem moderno. Seus arautos: a “ cultura de vidro” — a matéria inimiga do mistério, desprovida de aura, sem marcas do tempo — dos romances de Paul Scheebart. Nestes livros, os personagens, que habitam casas de vidro e convivem com aviões e foguetes, falam uma linguagem desumanizada, como os nomes que, na ob­ servação de Benjamim, os russos deram aos seus filhos depois da Revolução: Outubro, Aviachim, aludindo à companhia aérea, ou Pjatiletka, ao Plano Quinqüenal. Constatação da morte do homem solene da tradição no aço da Bauhaus, nos projetos de Loos e de Le

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Corbusier, na arte de engenheiro de Klee: ausência do cultivo burguês da interioridade, barbárie. Para que se possa construir um santuário, é preciso que um santuário seja des­ truído , escrevera Nietzsche, sonhando com o fim da cultura histórica e com o advento de uma outra cultura, pós-histórica, redenção da exterioridade oprimida pelos ideais me­ tafísicos da nossa civilização da interioridade.


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O elogio à ruptura com a tradição, explícita no artigo de Benjamim, a postulação de uma barbárie como saída para a atualidade empobrecida pela perda do valor comunicativo de suas experiências é um tema no mínimo melindroso. Para esclarecê-lo, é preciso que se leve em conta todas as nuances que ganha em uma obra propositalmente nuançada em suas definições, como é a de Benjamim. A ênfase no caráter novo, positivo, da barbárie evocada no artigo serve de advertência contra a sua compreensão dentro dos quadros da cultura tradicional, da qual seria o termo antitético: o conceito é novo , a bar­ bárie é positiva. Não esclarece, no entanto, todas as suas implicações e só implicitamente aponta para o seu lucro maior: a de arma na luta contra a possibilidade de uma barbárie negativa, inscrita na continuidade da cultura burguesa. Possibilidade que Benjamim viveu, em toda a sua tragicidade, na ascenção do fascismo. Poucos anos mais tarde, con­ cluindo A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica , Benjamim circuns­ creve o que seria esta barbárie negativa, inscrita no desenvolvimento da cultura burguesa, ao se referir à guerra como convergência de uma estatização da política. O fascismo per­ mite às massas proletárias o acesso à expressão de sua natureza: nos desfiles, comícios, es­ petáculos esportivos, “ todos captados pelos aparelhos de filmagem e gravação, a massa vê o seu próprio rosto” . Barra-lhes, no entanto, a expressão de seus direitos, a transformação das relações de produção. É aí que o esteticismo conduz à barbárie — à dissolução da cul­ tura em um grande espetáculo, a guerra, única saída que implica uma mobilização de todos os recursos técnicos disponíveis, sem a alteração das relações de produção. Nas Teses sobre a Filosofia da H istória , o termo barbárie é correlato ao de cultura — o seu negativo permanente e necessário — ambos circunscritos pelos limites da cultura do ponto de vista dos vencedores. Mais do que isto, a barbárie é a verdade da cul­ tura que o marxista, escovando a História a contrapelo, revelará. A riqueza da proposta de 1933, de se pensar um conceito positivo de barbárie, só se esclarece pela compreensão de História desenvolvida nas T eses , que permite lançar uma luz nova sobre as relações da atualidade com o passado e com a tradição. Para situar melhor as relações do conceito de barbárie com o de tradição e, vinculando-se á compreensão benjaminiana de História, esclarecer a positividade da noção iconoclasta, convém, contudo, estendermos mais a análise do tema, fundamental, do declínio da experiência nas sociedades modernas. A guerra é o exemplo extremo da quebra da continuidade da experiência. No entanto, este não é um acontecimento abrupto. E, justamente, um declínio, um longo processo que se estende do surgimento da burguesia ao florescimento das sociedades in­ dustrializadas modernas. A ruptura com a tradição, a assunção da pobreza da atualidade, é antes, um dar-se conta, certamente melancólico em Benjamim, da lenta perda da expe­ riência comunicável. A arte de narrar, cujo ocaso é um efeito deste processo, tivera seus representantes no camponês sedentário — o que transmite a sabedoria de outros tempos — e no navegador — o que traz a sabedoria de outras terras. Figuras desvanecidas no horizonte da modernidade, sua ausência relembra-nos que “ uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida, entre as coisas seguras, nos fora retirada. Ou seja: a


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de trocar experiências” . Esta perda da experiência comunicável acarreta o divórcio entre os interes­ ses interiores do homem e os da sua vida coletiva. Sua realidade histórica é a figura do bur­ guês citadino, dotado de uma privacidade, de uma cultivada e solitária interioridade. Sua expressão literária, o romance, cujo aparecimento, no início da era moderna, marca o início do fim da narrativa. Desvinculado da tradição oral, o romance depende essencial mente do livro. O romancista está exilado da experiência coletiva em uma singularidade irredutível cuja expressão é o romance. O lugar de nascimento do romance, escreve Ben­ jamim, é “o indivíduo na sua solidão” , e ele se endereça para a solidão do leitor, que so­ litariamente o lerá. No romance, o tempo, tomado em seus matizes psicológicos, é cons­ titutivo. Este tempo é fragmentado, tempo industrial, descontínuo. Rompe com a me­ mória — “ a capacidade épica por excelência” — vinculada a um tempo artesanal ou or­ gânico, aquele em que, trabalhando em seus teares, os homens podiam, junto ao fogo, ouvir e contar histórias nas quais reconheciam a sua experiência. O fim da experiência é o surgimento da vivência, a experiência desvinculada da vida coletiva, da tradição. Uma leitura muito particular de Para além do Princípio do Prazer permitiu a Benjamim a elaboração destas duas noções capitais na sua teoria da cul­ tura: a de experiência {Erfahrung ) , relacionada à memória, ao inconsciente, e a de vivên­ cia (Erlebnis ), ligada à vivência privada, individual, à percepção e à experiência do choque. Da afirmação de Freud — “ a consciência nasce onde acaba o traço mnêmico” — Ben­ jamim constrói a sua interpretação: as impressões mnêmicas serão tanto mais fortes quan­ to menos conscientes. O funcionamento do aparelho psíquico serve-se do sistema percepção-consciência como de um protetor contra as excitações externas. Este dispositivo de defesa funcionaria como um bloqueio para o excesso de excitações: aquela que o ultrapas­ sasse transformar-se-ia em choque traumático. A ssim , quanto maior a possibilidade de choque, mais alerta estará a consciência, o que significa também que armazenará menos traços mnêmicos. Embora um tanto reducionista, esta leitura de Freud produzirá ricas e definitivas formulações na análise da cultura de Benjam im . Para ele, a experiência, que consiste “ não tanto em acontecimentos isolados, fixados exatamente na lembrança, quan­ to em dados acumulados, não raro inconscientes, que confluem na memória” , está ligada aos traços mnêmicos. Sua atrofia no mundo moderno decorre de um estado de alerta da percepção às constantes possibilidades de choque aí existentes. Exemplos da realidade do choque: a vida cotidiana nas grandes cidades, o transeunte esgueirando-se nas ruas re­ pletas de massas anônimas, esbarrando, levando trancos, agudamente aterito à sinalização, aos movimentos de outros homens que não podem ser individualizados pelo seu olhar. Também o operário, submetendo seus movimentos musculares ao automatismo da máquina, numa eloqüente submissão do tempo orgânico ao tempo industrial. Esta percep­ ção do choque, incorporada ao inventário da lembrança consciente, tranforma-se em vivência e é, escreve Benjamim, ‘ ‘esterilizada para a experiência poética” . O que há de fascinante em Baudelaire é ter conseguido construir sua lírica numa experiência em que a


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recepção do choque é a regra. Como também, radicalmente, o cinema, que faz da percep­ ção intermitente o seu princípio formal. Este declínio da experiência equivale ao processo de perda da aura, entendida jus­ tamente como o conteúdo de experiência da obra de arte. Quando Benjamim saúda uma nova barbárie ou a quebra aurática da obra de arte, não é, portanto, com vistas a uma dis­ solução da cultura. É, antes, a constatação de que, já tendo ocorrido essas rupturas, im­ põe-se fazer explodir uma tradição que só existe enquanto um “ fardo de tesouros” , atrelado às costas da humanidade.que, imobilizada pelo seu peso, não pode utilizá-los ou, como escreve Benjamim, “ apanhá-los com as mãos” . A tarefa da crítica, do historiador, será a de permitir, por um lado, que os homens livrem-se do fardo — tarefa iconoclasta do bárbaro — e, por outro, fazer com que se possa construir uma nova relação com este passado — tarefa salvadora que permitirá a apro­ priação dos bens culturais pela atualidade. É nesta dupla função que se pode discernir as relações entre barbárie e tradição, à luz da concepção benjaminiana de História, desenvol­ vida em suas Teses. Nas T eses , o belo e complexo trabalho de 1940, Benjamim estabelece os princípios do que fundamenta a sua História da Cultura. Nelas, uma urgência: como construir um conceito de História que corresponda à verdade de que, na tradição dos oprimidos, o estado de exceção é a regra geral; um inimigo nomeado: o conformismo da social-democracia; um alvo filosoficamente mais amplo: a crítica ao historicismo, presente em Benjamim desde A Origem do Drama Barroco A lemão. Essencialmente anti-historicista, a concepção de História das Teses afastase de qualquer linearidade evolutiva. Dela estão ausentes as idéias de uma ordem, de um telos , de qualquer processo dialético que, apaziguando seu caráter de luta, de confronto permanente, faz da História a canonização do ponto de vista dos vencedores. Na perspec­ tiva dos vencidos, só há caos, catástrofes, rupturas. O historiador deve fazer explodir a continuidade homogênea de um tempo vazio, a linearidade do processo, e trabalhar com os fragmentos, com as ruínas do passado, cristalizados pelo olhar da atualidade, pela premência do perigo. Contra a quietude desmobilizante do historicismo, anestesiado pelo mito da marcha inexorável do progresso, Benjamim propõe um estado de exceção permanente. A História é superfície de luta e não o “ jardim da ciência para passeios dos ociosos” da epígrafe, não por acaso de Nietzsche, aposta à 12? Tese. Ora, esta concepção vai ao en­ contro da compreensão genealógica de História — a Wirkliche Historie — de Nietzsche, ao menos em alguns pontos fundamentais. Primeiramente, no que concerne à questão da origem. Descontínua, anti-linear, a História em Benjamim não estabelece uma origem enquanto fundamento originário, essência, identidade ou forma imóvel a partir da qual se desenrolaria o processo. Como na genealogia, ela não unifica, não totaliza, não fundamen­ ta uma “ História Universal” de procedimento aditivo. A epígrafe à tese 14, de Karl Kraus — “ A origem é o alvo” — revela uma estratégia e não uma destinação teleológica. Objeto de construção, a História é a perspectiva da atualidade, fixada por uma urgência guerreira. Como em Nietzsche, não há fidelidade aos fatos, o faitalisme de que fala a Genealogia da


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Moral. Objeto de construção, a História, na perspectiva da atualidade, será certamente valorativa. Assim, se a diversidade do tempo não é recolhida, em Benjamim, na síntese de um processo progressivo em direção a uma destinação que recuperaria a origem, se não há finalismo em sua marcha, há apropriações estratégicas de descontinuidades. a imobilização messiânica” é o corte do linear. Sua proposta de apropriar-se do passado aproximase do uso paródico ou burlesco da Wirkliche H istorie : não há uma recuperação de iden­ tidades, mas construções de sentidos que entrecruzam-se com as urgências do presente. Como a história genealógica, a História em Benjam im , na quebra do tempo homogêneo, faz emergir a diferença. O historicista, em empa tia com o vencedor, faz da História um “ cortejo triunfal” e dos bens culturais os despojos dessa vitória. A figura de Klee, o Angelus N ovus , é a expressão da tarefa do historiador para Benjam im . Olhos no passado, vê ruínas onde o historicista veria acontecimentos, vê catástrofes onde o historicista conta vitórias. Não pode recolher os destroços porque é impelido para o futuro, isto a que o •historicista chama progresso. Seu olhar é iconoclasta, mas nesta história bárbara, que quebra a dia­ lética do progresso, está a única possibilidade de um resgate do passado e da tradição que escape à apologia dos vencedorés. A sobrevivência da atualidade depende deste resgate do que Habermas chama de “ conteúdos semânticos” soterrados pela história dos vencedores. O passado dirige um apelo ao presente, recorre a essa “ frágil força messiânica que cada geração possui” , solicita esse “ encontro secreto” com o presente. Mas o presente não é uma transição que ligaria o passado ao futuro. É tempo imobilizado, momento “agora” (jetztzeit) em que o historiador constrói a História, um pouco como Proust na sua Recherche. Na perspectiva de uma atualidade “ em estado de exceção” , o historiador arranca o seu objeto do continuum do tempo, para construí-lo a serviço da atualidade, para roubar a tradição das mãos do conformismo. A História é uma tarefa salvadora, messiânica em relação ao passado e não ao futuro: o que há para ser libertado é justamente o passado. O proletariado não tem a função teleológica de libertar as classes futuras, mas de salvar o passado, imobilizando o tempo da história burguesa como os revolucionários de 1789 que atiravam nos relógios públicos de Paris para “ arrêter le jour” , como cantam versos da época. A ousada afir­ mação de Benjamim de que a revolução é um salto para o passado não poderia fazer eco com o ruído inquietante da teoria de Nietzche sobre o Eterno Retorno? Entendendo este retorno como um devir-ativo, o tempo retomado em uma construção pela humanidade redimida, única que poderá, segundo as Teses, “ apropriar-se totalmente do seu passado” . Mas este messianismo de Benjamim não é aquele tradicional, teológico, que se poderia reconhecer na fé do historicista no progresso. É antes um messianismo que nega o processo histórico e que pode ser compreendido melhor se relacionado à mística judaica. No apêndice às Teses, ele escreveu: “ Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o fu­ turo. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos . A destruição do finalismo da História, progressista ou historicista, é a con-


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dição para a construção de uma outra maneira de se pensar a Cultura, onde presente e pas­ sado se aliam, onde a barbárie resgata a tradição. Este é o sentido mais amplo do conceito novo, positivo, saudável de barbárie, reivindicado no artigo de 1933.

O retrato de Walter Benjamim é de Cássio Loredano Bibliografia Walter Benjamim, “ Erfahrung und Armut” , Gesammelte Schrifteti, Frankfurt, Suhrkamp, volume II, 1,1933. Traduções: Jesus Aguirre, “ Experiência y Pobreza” , Discursos Interrumpidos, volume I, Taurus Ediciones, Madrid, 1982; Sérgio Paulo Rouanet, Experiência e Pobreza, Obras Escolhidas, volume I, Brasiliense, 1985. Benjamim, “Ueber den Begriff der Geschichte” , op. cit., volume I, 2, 1940. Traduções: Aguirre, “Tesis de Filosofia de la Historia” , op. cit., Rouanet, Sobre o Conceito da História, op. cit. Benjamim, “Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit” , op. cit., volume I, 2, 1936. Traduções: Aguirre, “ La Obra de Arte en la Epoca de su Reproductibilidad Técnica” , op. cit.; Rouanet, “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” . Benjamim, “Ueber einige Motive ber Baudelaire” , op. cit., volume I, 2, 1939. Tradução: Aguirre, “Sobre Algunos Temas en Baudelaire” , op. cit. Benjamim, “Der Erzaehler” , op. cit., volume II, 1936. Tradução: Rouanet, “O Narrador.’ Con­ siderações sobre a obra de Nikolai Leskov” , op. cit. Friedrich Nietzsche, La Gènéalogie de la Morale, Idées/Gallimard, 1887. Nietzsche, Par delà Bien et Mal, Idées/Gallimard, 1886. Nietzsche, “Humain trop Humain” , Oeuvres Complètes, volume III, Gallimard. Nietzsche, “Considerations Inactuelles” , op. cit., volume II. Thomas Mann, Doutor Fausto. Tradução: Herbert Caro, Nova Fronteira, 1984.



HAROLD ROSEN BERG Tradução: Elizabeth Carbone Baez

Willem de Kooning

Willem de Kooning é o principal pintor da era ideológica da arte americana, período que teve início nos anos 30, quando pintura e escultura se defrontavam com sucessivas doutrinas, políticas e/ou estéticas. A supremacia de de Kooning se deve à for­ ma sagaz com que conseguiu manipular a si próprio e a seus talentos frente às idéias predominantes. Apesar de suas telas estarem sempre impregnadas de conteúdo intelec­ tual, nunca ilustram um conceito. Possuem a força, a surpresa, a amplitude emocional e, ocasional mente, a arbitrariedade de um temperamento. Em um ambiente marcado por in­ cessantes apropriações interligadas, a fatura de de Kooning é única. Enquanto a arte vem sofrendo uma retração constante da imaginação sob a pressão de fórmulas preconcebidas, as criações de de Kooning ganharam firmamento em inventividade formal e em rever­ beração simbólica. Em oposição àquilo que pode ser chamado de uma tendência para o minguante da arte contemporânea — esforço de produzir obras-primas com o mínimo es­ sencial, como, por exemplo, cor e formas — uma tela de de Kooning é tão devassada quan­ to a Union Square (1). Suas composições devoram vistas quotidianas, pensamentos bi­ zarros, estados de espírito, velhas e novas teorias, pinturas e esculturas dç passado. Ele possui a fome pela diversidade dos humanistas do Renascimento e a “ vulgaridade” de Rabelais e Cervantes. Suas abstrações e figuras femininas são tão acumulativas quanto montagens com papel de jornal, farrapos e lixo (alguns de Kooning incorporaram tiras de tablóides, recortes de anúncios de revistas, partes de quadros inutilizados). Materiais prontos são, no entanto, meios canhestros para lançar os dardos luminosos dos insights de de Kooning. O constante intercâmbio de imagem e símbolo, impressão direta e genera­ lização analítica, só pode ser apreendido através da ação do pincel. Uma criação como Excavation ou Woman , não podia ser o resultado de mera combinação de elementos de­ slocados, como na colagem ou na arte Pop. A transformação tinha que ser total, isto é, tinha que se realizar simultaneamente na psique do artista e na tela. A recusa obstinada de de Kooning em se submeter a qualquer disciplina ex­ terna, ou adotar uma identidade artificial, é a subestrutura filosófica de sua arte. Em 1949 ele escreveu: “ A única certeza, hoje, é a necessidade de ser consciente de si mesmo. A idéia de ordem só pode vir de cima. Para mim, ordem tem que ser organizada e isto é uma limitação” . Durante 35 anos ele continuou a encontrar meios para manter sua arte em contato com o fluxo do seu “ eu” e com as mudanças no seu meio intelectual e físico. Cada fase de seu trabalho é dominada por símbolos de metamorfoses e instabilidade — a mulher e o mar são os mais constantes. Pará ele, a figura feminina e a superfície do mar são ao mesmo tempo realidades concretas e metáforas para as “ manifestações” da natureza e do


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eu que há muito tempo ele discerniu como sendo o leitrnotiv da arte Ocidental, desde o Renascimento. No trabalho maduro de de Kooning, paisagens e figura humana se tornam, como na frase de Shakespeare, “ dissolvidas e indistintas, assim como água na água". Ao rejeitar qualquer definição de si mesmo ou de seu ambiente, ele concebe a pintura como um ato através do qual o “ eu ” contacta as coisas com sutileza cada vez maior. “ Torno-me mais livre” , observou de Kooning alguns anos atrás, indicando o que poderia ser coasi derada a finalidade da arte em nossa era. “ Sinto que estou conseguindo mais para mim, no sentido de ter todas as minhas forças. Creio que você pode fazer maravilhas com as suas forças, se aceitá-las... Estou mais convicto sobre o pintar. De Kooning acredita que o artista deve iniciar-se na arte tal como ele a en­ contra; ao criar ele é livre, mas cria dentro de um determinado contexto. No século X X , este contexto são os movimentos de vanguarda. Com relação a eles, a opinião de de Konning evoluiu lentamente em direção a uma conclusão decisiva. Dos anos 30 até meados dos 40, absorveu Cubismo, Realismo Social, Neoplasticismo, Surrealismo. Mas, ao absor­ vê-los, ele se perturbou. Por exemplo, em face das pinturas sociais conscientes do patético (e potencialmente heróico) Little M an , popular durante a Depressão, ele produziu as es­ tranhas figuras masculinas de olhar fixo de Two M en Standing , e as figuras solitárias, sorumbáticas, vagamente “ proletárias” , aristocráticas e hermafroditas de Man , Glazier e

SeatedFigure (Classic Malé) — imagens que são quase auto-retratos executados como ex­ periências recônditas em perspectiva. No mesmo período, ele participou da tendência neoplasticista da pintura americana abstrata com Abstract Still Life e Pink ÍMndscape, na qual o espaço pictórico é dividido simetricamente e as formas geométricas são balanceadas — só que, no neoplasticismo de de Kooning, a faixa divisória de Abstract Still Life não chega à parte inferior da tela e o equilíbrio de Pink ÍMndscape se desestabiliza com suas formas de botas, enquanto seus retângulos e círculos não são nem retangulares nem cir­ culares. Em resumo, ao absorver práticas modernas, de Kooning recusou-se a aderir às suas normas ou ás idéias nas quais se baseavam. No final dos anos 40, estava preparado para denunciar as ideologias dos movimentos artísticos do século X X , exceto na medida em que elas serviam como estímulo criativo para artistas individuais. “Na arte” , dizia ele, “uma idéia é tão boa quanto outra” . Logo depois, num discurso memorável que fez no The Museum of Modern A rt, em 1951, prestou contas à estética modernista e ao Futuris­ mo, ao Neoplasticismo e ao Construtivismo. “ Aprendi muito com todos eles” , disse, “e eles também me confundiram bastante. (...) A única maneira como ainda encaro essas idéias é em termos dos artistas que vieram delas ou que as inventaram. Ainda penso que Boccioni foi um grande artista e um homem impetuoso. Gosto de Lissitzky, Rodchenko, Tatlin e Gabo” , e assim por diante. De Kooning sabia que as teorias da vanguarda são as nascentes dos estilos modernos e que, ao atacá-las, estava minando as bases de quaisquer formas compartilhadas • na arte. Seu ataque foi completo. ‘O estilo é uma fraude” , assegurava esse veterano que estudou oito anos na Rotterdam Academy of Fine Arts and Techniques. “ Foi péssima a


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idéia de Van Doesburg e Mondrian de tentar forçar um estilo. A força reacionária do poder é que mantém o estilo e as coisas funcionando.” De fato, confirmando o que todo observador atento já sabe há um século, de Kooning declarou que “ não há um estilo de pintura atualmente . A tentativa de gerar artificialmente um estilo através da análise for­ mal e derivações da arte do passado — como, por exemplo, através da transformação de Cézanne em Cubismo distorce a verdadeira situação da arte atual. “ Desejar fazer um estilo , de Kooning acusou, “ é fazer a apologia da própria ansiedade” . Chegou a hora de acabar com o jogo fútil da procura de equivalentes contemporâneos para formas culturais que há muito se desintegraram. Por sua vez, de Kooning iria chegar ao seu conceito de “sem estilo” depois de uma experiência sofrida. A rejeição ao estilo é uma forma de afirmar a existência de um vazio entre o artista e a sociedade contemporânea — não possuem formas em comum, nem mesmo com as formas da vanguarda de ontem. (A alienação social foi reafirmada sistematicamente pelos artistas da “ anti-form a" dos anos 60.) Em seu discurso de 1951, de Kooning de­ clarou, aparentemente com demasiado otimismo, que artistas de nosso tempo “ não querem se amoldar; querem apenas estar inspirados” , uma proposta semelhante a uma luz vermelha assinalando a distância entre os artistas americanos do pós-guerra e seus predecessores voltados para o público. Para o artista que deseja apenas estar inspirado, todos os valores dependem do seu estado de ser: o interesse por qualquer coisa externa é autotraição, incluindo a produção de objetos feitos com a intenção de satisfazer o gosto do público, ou a divulgação de uma idéia tendo em vista modificar este gosto, tal como a “ preparação para uma concepção universal de beleza” , de Mondrian, através de uma arte de linhas retas e “ ângulo reto imutável” . De Kooning verificou que o artista atual não sente um impulso profundo de se enquadrar nas normas da sociedade, sejam estéticas ou morais. Entretanto, de Kooning não era nem um místico nem um anarquista. A inspi­ ração que procurava não podia ser uma dádiva da passividade, como em Rothko, por exemplo, ou do caos, como no automatismo surrealista ou na arte feita sob a influência de drogas. Do seu ponto de vista, a inspiração só poderia chegar ao pintor através do ato de pintar. Enquanto o pintor almejava um estado mais elevado no ato de pintar, a pin­ tura propriamente dita, liberta da tradição, receberia suas formas através da dignificação da atividade do pintor. “ Pintar” , de Kooning escreveu, qualquer tipo de pintura... é hoje em dia um meio de vida, ou, melhor dizendo, um estilo de vida. É ai que reside a fo r­ ma (grifo do autor). Transitório e imperfeito como um episódio do dia-a-dia, o ato de pin­ tar consegue sua forma fora dos padrões de estilo. Transcende os modelos da história da arte e incorpora à pintura quaisquer imagens que sejam atraídas para a sua órbita. Pintura “ sem estilo” não é nem dependente de formas do passado nem a elas indiferente. E transformante. Começando com qualquer coisa — uma mancha de cor feita ao acaso, letras do alfabeto (como, por exemplo, em Orestes ), o esboço de um nu o artista vive na tela aberta às possibilidades de uma nova coerência. À medida em que sua ação se desen-


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rolã, seu gesto original se dissolve num acúmulo de acontecimentos que tomam forma através dos movimentos do pincel. Uma única pintura pode ser prolongada durante meses ou mesmo anos (Excavütion , Woman, í) ou a ação pode espoucar como um clarão, de superfície para superfície, como algumas pinturas e desenhos de de Kooning dos anos 60. (Mais adiante tratarei das pinturas “ longas” e “ breves de de Kooning e de algumas de suas técnicas para fazer ressaltar uma imagem numa sucessão de metamorfoses.) A pin­ tura, na abordagem de de Kooning, cessou de existir como um continuum histórico-objetivo que se prolonga em direção ao futuro. Cada pintor deve fazer a pintura renascer de dentro de sua própria vida e dos resíduos móveis das memórias da arte embutidas na sua sensibilidade (e na do espectador). O artista se projeta da história da arte e, em última análise, compõe o perfil de seu passado e mesmo de sua própria cultura. Ao negar que o artista deva seguir a lógica do desenvolvimento histórico — como, por exemplo, de Cézanne ao Cubismo, do Cubismo a Mondrian — de Kooning pos­ sibilitou um olhar novo e livre para a arte do passado. Ele não podia voltar atrás no tempo e explorar os caminhos secundários da arte, onde quer que parecessem relevantes. A atitude de de Kooning sugeria que a história da arte estava repleta de planícies abertas que foram transpostas pelas carroças (2) da vanguarda, territórios ainda adequados ao cultivo. As­ sim, já em Glazier e Seated Figure , ambos executados por volta de 1940, de Kooning aplica o artifício cubista da anatomia deslocada em figuras modeladas em profundidade. O Cubismo não é colocado na frente mas recua até Ingres, e de Kooning deixa uma pista para sua mistura de tempo ao colocar quadrados coloridos no fundo de suas retratações do patético. Nesses primeiros momentos de acumulação evidente de diferentes períodos da história da arte, de Kooning desafia as chamadas “ leis de desenvolvimentos históricos” ao colocar contra elas a vontade de um artista com a consciência da história. Nas pinturas de figuras masculinas e em outros trabalhos, como Seated Woman, Woman Sitting e Pink Lady, de Kooning coloca a escolha formal oferecida ao pintor contemporâneo: aceitar o conceito de profundidade espacial da pintura tradicional, ou trabalhar dentro das super­ fícies em camadas, da pintura depois de Cézanne — e se recusa a encolher. Para de Kooning o tradicional perdeu o poder de comando, e o novo, que não é mais novo, tornouse lugar-comum. Tanto a perspectiva como a bidimensionalidade são artifícios à disposição do pintor; considerá-los como ideal de pintura é um despropósito. O artista de hoje recebe a arte existente no contexto de suas próprias pos­ sibilidades. Como potencialidades, as obras de toda as épocas possuem o mesmo status: as pinturas do antigo Egito ou da Europa medieval, ou de um expressionista num sótão de Manhattan, ocupam posições semelhantes em relação à arte do futuro. No que diz respeito a idéias herdadas, aquelas da vanguarda de ontem não são mais compelidoras em relação à pintura de hoje do que a filosofia de Michelangelo ou a religião de Rembrandt. Mondrian é um pintor importante. Mas, indagava de Kooning, o que tem o pensamento neo-plástico de tão extraordinário, principalmente depois que foi estabelecido? Em uma mesa-redonda no Artists Club 10 anos atrás, ele disse: “ Estamos todos embasando nossos trabalhos em pinturas em cujas idéias não mais acreditamos” . Ao retornar aos trabalhos propriamente


Willem de Kooning Excavation Óleo sobre tela, 203x254cm, 1950 Coleção The Art Institute, Chicago Página 78: Woman V Óleo sobre tela, 155xll4cm, 1952-53 Coleção National Gallery, Canberra, Austrália Página 94: Merrit Parkway Óleo sobre tela, 229x206cm, 1959 Coleção Ira Haupt, Nova Jersey


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ditos, deixando de lado as idéias que os originaram e sua

necessidade

histórica, o artista

pode desvendar o que eles têm de criativo e, por isso mesmo, de novo. Retirar a pintura dos valores sociais, estéticos ou filosóficos de um deter­ minado tempo ou lugar é basicamente redefinir a profissão. Não mais procurando satis­ fazer as necessidades de um público, incluindo seu desejo por aquilo que Nietzsche chamava “ consolação metafísica” , a pintura tem como única finalidade estimular mais criação: O Juízo Final tem valor não pelos sentimentos que provocou em pessoas agora mortas mas pelos atos criativos que pode provocar nos vivos. Trabalhos de outros tempos estão carregados de potencialidades para o futuro, unem o passado com o presente e re­ pelem a noção de que o novo deve ser procurado em fenômenos que pertencem exclusi­ vamente a este século — por exemplo, filmes, velocidade, eletrônica, arte abstrata. A arte se realiza através de uma cadeia de inspirações que não tem começo nem fim e a ins­ piração é seu elemento básico. Brancusi disse: “ Não é difícil fazer as coisas; difícil é co locarmo-nos em condições apropriadas para fazê-las” . A obra de arte é um memento desse intervalo de potência. A arte existe hoje porque os artistas continuam a criá-la, e o artista existe porque a arte faz com que a criação seja possível para eles (esta é a razão pela qual algumas pessoas que se intitulam artistas, porém ficam distantes de qualquer arte, caem no ridí­ culo). Tanto a arte como o artista carecem de identidade e se definem somente através do encontro um com o outro. Dependem um do outro e se mantêm somente através dessa in­ teração. Este esforço de equilibrista é o modelo do esforço das pessoas para darem forma às suas experiências em uma condição de desordem social e cultural contínua. Uma das críticas de de Kooning às escolas modernistas é que “ naquela famosa virada do século, al­ gumas pessoas pensavam que podiam pegar o touro a unha e inventar uma estética por an­ tecipação” . Dadas as dificuldades de se extrair a forma do “ modo de vida” do pintor, era de se esperar que esse touro fosse domado inúmeras vezes por todo o século. A cada vez, porém, a potencialidade liberadora da arte era sacrificada. Quando, seguindo o pensamen­ to de de Kooning, a arte descobre sua forma na realidade da vida do artista (incluindo “ a vulgaridade e seu lado carnal” , que de Kooning enfatizou como sendo uma herança do Renascimento, ela não impõe valores àqueles que a praticam como ocorre em outras profissões. A arte se torna um meio para evitar um meio. De Kooning se descarta da imagem tradicional do artista a fim de começar com ele mesmo, como ele é, e descarta-se de todas as definições de arte a fim de começar com a arte que poss sair dele. Arte e artista, por suas indeterminações mútuas, apóiam a predisposição de cada um à multiplicidade de experiências. Ambos resistem à estilização e absorção de uma ordem induzida. O “Sem estilo é uma proclamação de independência do pintor que pressupõe uma filosofia liberacionista do eu. Criar arte a partir da trivialidade, dos lugares-comuns e do caos que a vida moderna não pode excluir, é uma força contra a dissolução. Para de Kooning, a pintura é uma vocação total, na medida em que pintar faz dele o que ele é. Ele sabe que atos de criação não irradiam luz ininterrupta e que os problemas do homem moderno não serão


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resolvidos pela arte. E também está consciente que a transição entre o alto e o baixo na­ quilo que chamou “ o drama da vulgaridade'’ é próprio da condição humana. Sem a mínima afetação, ele gosta de música sentimentalóide e cinema, histórias em quadrinhos, programas e comerciais de televisão. Aceitando sem restrições as experiências resultantes da instabilidade psíquica do homem contemporâneo, e com a total compreensão de suas implicações na criação de artes herdadas do passado, de Kooning tomou-se o pintor mais importante do pós-guerra. Através da sua síntese de análise crítica e auto-afirmação apaixonada, a pintura vê restituída sua antiga relação com o homem tal como ele é, com sua “ própria estatura” . Tensões que variam da pressão quase insuportável de Woman, I aos arrojos de D oor to the River ou Two Figures in a Landscape (1967) elevam sua arte à grandeza da pintura de outros tempos. A arte como uma concentração de energia única, capaz de ser remanifestada a partir de criações que vão das pinturas das cavernas até os dias de hoje, se apodera do artista e engrandece sua atuação: pintor e pintura se fundem na tela durante o ato de pintar. No trabalho de de Kooning, desde os anos 30 até hoje, muitas vezes aparece um tremor inexplicável e uma luminosidade intensa, como de uma presença metafísica — que perpassa por Excavation e Pastorale (1963). Esta presença, origem do que de Kooning chamou de “ a parte do ‘nada’ de uma pintura” , isto é, “ beleza, forma, equilíbrio” , se dissolve, e ambos, artista e arte, naufragam em confusão. Durante anos era comum de Kooning se referir ao artista de hoje como “ desesperado” . Em meados dos anos 40, de Kooning joga com ambigüidades do novo e do velho, profundidade e achatamento, à medida em que sua inteligência relativista tenta combinações de técnicas, atitudes e sentimentos sugeridos por diferentes escolas e pe­ ríodos. Pink Angels (1945) culmina uma seqüência de desenhos e pinturas de aparições, partes do corpo separadas, formas abstratas, caligrafia feita ao acaso; evocando Duchamp e comparando-se aos organismos laminados de Matta e Gorky, esta pintura situa-se na in­ terseção entre Cubismo e Dada. Com seus tons pálidos de rosa e amarelo, oscilações li­ neares superpostas, formas ambíguas flutuantes e vigorosas que não chegam à abstração, é um trabalho de transição do maior significado. Focaliza uma invenção de de Kooning que ainda sobrevive à sua obra: formas sugestivas porém indefinidas traçadas pelo desenho ins­ pirado de impressões da figura humana, mas e interiores, lembranças de antigos mestres e movimentos espontâneos da mão. Os contornos extremamente lúcidos de Pink Angels resumem as excursões experimentais de de Kooning de um modo para o outro, num al­ fabeto único de formas. Nesta fase de Kooning revela já uma fatura inconfundível. Em 1946, ano prodigioso para a pintura americana de um modo geral, uma busca única de de Kooning entre as abordagens de seus predecessores levou-o a descobrir uma nova relação entre a abstração pós-cubista e os últimos trabalhos de Cézanne através dos quais a pintura podia ser reciclada com traços carregados de emoção, comparáveis aos símbolos autotransformadores da poesia de Mallarmé. Visualidade simbolista e metáfora verbal estão na raiz da psicanálise que ergue, na pintura americana do pós-guerra, uma ponte entre desenho automático surrealista e signos abstratos, como nos “ totens” de Pollock. A tenacidade de Cézanne e Mallarmé em estabelecer uma entidade formalmente


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coerente a partir de um complexo de associações se encaixava perfeitamente na paixão de de Kooning por uma arte totalmente aberta a quaisquer experiências recriadas. Ao buscar a forma através da ativação da psique, de Kooning concretizou uma nova etapa em seu trabalho; desligado de fontes identificáveis, descobriu de repente um caminho aberto entre a sensibilidade do artista e a pintura do passado. No contexto do Simbolismo, os contornos residuais dos membros, dos seios, de alfinetes de fralda e caixas de fósforos das pinturas denominadas Untitled, de 1941 a 1945, evoluem para uma linguagem de metáforas visuais (comparáveis à toalha pregueada que, com Cézanne, poderia passar por uma montanha), da qual o hieróglifo de um sentimento único pode ser criado. Com de Kooning, em con­ traste com Cézanne, meio século de arte abstrata tornou possível liberar a metáfora de ob jetos específicos, propiciando-a estimular campos mais extensos de ressonância emocional. Formas que emergem espontaneamente da ação do pincel podem esclarecer áreas da psique nas quais os sentimentos ainda não tenham se cristalizado numa imagem identificada. Porém — e isto é crucial para distinguir a composição elaborada de de Kooning do automatismo derivado do Surrealismo no expressionismo abstrato americano — em de Kooning a evocação do desconhecido se realiza sob o controle da sensibilidade total do ar­ tista, como em Mallarmé ou Joyce, resultando não na fragmentação que no máximo apela para o gosto, como, por exemplo, em M otherw ell , mas num “ statement” com vários planos de significado. Formalmente, a configuração metafórica abstrata, que é ao mesmo tempo um signo, como um número ou letra do alfabeto, e uma representação de uma coisa, como o esboço de um torso, pode contornar o conflito entre a ilusão de uma terceira dimensão e a superficialidade da pintura: uma forma oval com um ponto dentro é simultaneamente a imagem de um olho que parece possuir volume e um desenho sem profundidade, üght in August, feito em branco sobre preto, por volta de 1946-47, é a primeira obra-prima das abstrações simbolistas de de Kooning que se originaram da ação na tela, e parece-me es­ clarecedor o fato de seu título derivar de Faulkner, um herdeiro dos simbolistas. As formas orgânicas, dissociadas de suas fontes na natureza, encerram car­ gas emotivas em potencial; assim também os triângulos, quadrados ou séries de linhas paralelas: cinco faixas irregulares podem parecer mãos e despertar lembranças, um quadrado significar ordem ou o sentimento de estar cercado e uma linha curva representar uma postura erótica. Nas pinturas de de Kooning do período de Light in August , a forma de uma cabeça se torna um “ O ” (ou vice-versa), um quadrado se torna uma janela ou a moldura de uma cômoda, o contorno de um tórax um círculo numa configuração abstrata ou um aspecto de uma paisagem. O extenso vocabulário de temas de de Kooning e seu uso múltiplo tem sido bastante significativo. A ambigüidade das formas como artifício da pin­ tura não é novidade; foi redescoberto pelos surrealistas em Leonardo, e Fernando Léger, com quem de Kooning trabalhou num mural feito sob encomenda nos anos 30, proferiu uma conferência sobre seu filme Ballet M écanique , na qual discorreu sobre um planeta representado pelo close de uma unha. A metáfora visual não é significativa em si mesma (como pensavam alguns


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pintores da segunda geração da Action Painting), mas através do uso do artista. De Kooning, fiel aos valores pictóricos, empregou seu repertório de signos para organizar sua imaginação em termos visuais significativos. Os surrealistas se contentaram em tratar seus sonhos criativos como se fossem objetos naturais: os pianos com muletas de Dali e os bricabraques com penas de Emst não se diferenciavam de pianos ou pássaros comuns e podiam ser incorporados às estruturas pictóricas convencionais. Por outro lado, sempre consciente de que ‘‘a idéia do espaço é dada a um artista para mudá-la se puder” , de Kooning libera a forma que é tanto um signo abstrato como o símbolo de uma experiência concreta da imobilização de objetos colocados na profundidade do espaço a fim de que fun­ cionem em uma espécie nova de composição psicodinâmica. Produzidas por um gesto, como na escrita, diferenciando-se, porém, da caligrafia na preservação do senso de solidez característico da arte Ocidental, cada uma de suas formas é utilizada como um elemento distinto de sugestão, numa interação complexa, ao mesmo tempo formal e subjetiva. En­ quanto as figurações dos surrealistas e de Gorky permanecem imóveis como represen­ tações colocadas contra um fundo convencional, as de de Kooning, formando-se a partir de manobras inspiradas do pincel, induzem a mente a passar de uma para a outra com o efeito contínuo de captar e perder o significado — esta realidade que o artista chamou de “ relan­ ces passageiros” . Ao se desequilibrar, a consciência vê-se compelida a reafirmar sua unidade na ação de readquirir o equilíbrio. O mesmo acontece com o artista e o espec­ tador: ao induzir tais afirmações intelectuais, de Kooning atrai o espectador para o ato da criação. Sem abolir os elementos de desordem, cada uma das pinturas de de Kooning al­ cança coerência de energias. A abstração metafórica permite ao pintor agir livremente na tela ao des­ cobrir, de forma análoga à escrita automática, novas articulações de sentidos nos signos que vão surgindo. É uma característica da atitude de de Kooning com relação a sistemas intelectuais que a livre associação tenha entrado na sua pintura através da ação de pintar propriamente dita e não através de uma ideologia ou terapia do inconsciente como as que inspiraram Gorky e Pollock. Logo, como notamos acima, as composições espontâneas de de Kooning nunca permitem que a última palavra seja dada pelo automatismo ou por rabiscos. Suas formas, apesar de poderem começar com um rabisco ou marca, são acio­ nadas por intuições conscientes nas quais as idéias sobre pintura têm grande participação. As telas de de Kooning são produzidas sem premeditação, sob a pressão, contudo, de uma fidelidade inflexível a um sentimento de precisão — e por isto algumas foram trabalhadas durante anos.

Excavation , terminada em 1950, depois de meses de um exaustivo fazer e desfazer, revela uma densidade de referência muito mais comum na poesia do que na pin­ tura moderna. Medindo aproximadamente 2,15 x 2,45 m (tamanho modesto para os padrões atuais mas perfeitamente de acordo com o conceito de estética espacial de de Kooning, que o limita ao alcance do artista), o trabalho não tem, internamente, limite de escala. Suas formas, criações que se acumulam sobre criações (nenhum artista vivo pode se igualar a de Kooning na capacidade de fazer jorrar formas interessantes), nem se con-


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finam à superfície do quadro nem desaparecem por detrás dele, mas continuam a fazer uma sondagem contínua, ou “ excavação” , do mesmo modo que os planos se interpenetram. Pensamos nos versos de Yeats

Those images that yet Fresh images beget, That dolphin-tom, that gong-torm ented sea; exceto que o amarelo monocromático de Excavation , iluminado por brilhantes clarões vermelho e azul, parece.um mar de pedras ásperas. Esta tela gloriosa, uma obra-prima de transformação, na qual a pintura como meio “ estático’ zomba da necessidade de ma­ teriais que se movimentam de fato, era um fim e um início para de Kooning. Excavation é uma pintura clássica, majestosa e distante, como a fórmula produzida ao se testar explosivos. Se, como de Kooning gostava de dizer, o artista funciona “ penetrando na tela” e saindo dela outra vez, esta obra-prima não apenas o viu sair mas também fechar a porta atrás de si (a pintura foi literalmente terminada com a imagem de uma porta no centro inferior). Reagindo contra a serenidade comum a Excavation e a Cézanneeossimbolistas, de Kooning resolveu,em seguida, aliar-se à tradição de Van Gogh e Soutine. Não havia saída possível depois de Woman, /, que sucedeu a Excavation ; o artista continua a habitar a pintura como tema emocional. Era como se ele, passando por Cézanne em direção a Van Gogh, também tivesse sido levado para trás, do simbolismo de Mallarmé para sua origem primitiva no laboratório do “ noivo infernal” de Rimbaud. Em Woman, /, de Kooning levou a ação da pintura à beira da magia, da mágica moderna que se esforça para criar seres reais através da ativação dos meios de comunicação. Rimbaud acreditava que podia evocar novas flores, novas estrelas, nova carne, com sua feitiçaria de vogais e consoantes. Partindo de uma mágica análoga, de Kooning desejava a manifes­ tação espontânea de uma deusa através de descargas de energia na pintura. As pinturas em preto e branco exibidas na sua primeira mostra individual, em 1948, e Excavation , exposta na Bienal de Veneza em 1950 e ganhadora do primeiro prêmio do Chicago Art Institute, em 1951, fizeram de de Kooning o líder da arte abstrata americana. Precisamente neste ponto ele estava pronto para se desligar da abstração e for­ mular sua convicção de que a glória da arte ocidental estava na sua condição física — “ foi devido à carne que a pintura a óleo foi inventada” , declarou em 1950. Agora, em vez dos signos da figura feminina, sua preocupação volta-se para a própria imagem da mulher. “ Formas” , explicou mais tarde, “ devem ter a emoção de uma experiência concreta” . No mesmo ano (1950) que começou a trabalhar em Woman, /, de Kooning anunciou a posição de que a pintura é inseparável do tema. Argumentou que o fato de o tema ter se tomado um impasse na arte moderna resultava de uma aberração histórica: a oposição entre forma e tema era, em sua opinião, concebida pela classe média que havia perdido contato com o significado do gesto humano. Na pintura Renascentista, explicou, na realidade não havia tema . O que agora denominamos tema era então a própria pin­ tura. O tema veio mais tarde... quando os burgueses tomaram conta da arte e também tomaram conta do homem no que diz respeito a este assunto” . Particularmente repug-


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nantes, para de Kooning, são as teorias modernistas que reduzem a pintura a “essenciais” (não é de estranhar que nos anos 60 a critica lhe tenha sido venenosamente hostil). De Kooning detectou, no esforço de puristas para liberar a pintura daquilo que teoricamente ela pode dispensar, uma semente de tirania — para ele, Mondrian era “ aquele grande ar­ tista impiedoso... sem excessos” . Apesar de de Kooning evitar a política, reconhecia no impulso de expurgar a pintura da questão real da existência do artista, uma tendência à disciplina totalitária que modela a vida para se ajustar a fins dogmáticos. “ A questão, como eles a viam , escreveu com relação aos neoplasticistas e aos construtivistas, ances­ trais dos minimalistas e coloristas dos anos 60, “ não era tanto o que você podia pintar mas antes o que você não podia pintar. Você não podia pintar uma casa, uma árvore ou uma montanha '. E concluía, ironicamente, que “ o tema surgiu como algo que você não deveria ter” . (Grifos de de Kooning) De Kooning sustentou que a abstração está presente em todas as formas de pintura, mas não existe isoladamente de outros aspectos do trabalho. Abstração é aquela “sensação indefinida, a parte estética” . Para chegar à abstração, disse de Kooning, o pin­ tor, no passado, “ precisava de muitas coisas: um cavalo, uma flor, uma camponesa” . No entanto, o artista não-objetivo concebe abstração — “ a parte ‘nada’ de uma pintura” — como alguma coisa que existe em si e para si mesmo, conseguindo talvez sua perfeição no círculo, no quadrado ou no cubo. Assim a abstração torna-se uma realidade ideal em cujas bases uma estética pode ser formulada antes das próprias pinturas. O resultado é a subor­ dinação da criação à teoria. Seguindo esta linha de pensamento, de Kooning denunciou tanto a matemática como a “ teosofia” na arte, e se comprometeu com a natureza e o con­ creto. Sustentou que a fascinação peculiar à arte Ocidental, desde seus primeiros animais e ídolos até Picasso e Giacom etti, está precisamente no respeito pelo corpóreo “ como ele é” , devido ao fato de um ser humano ter atributos tais como um rosto, um corpo. “ Quan­ do penso em pintar hoje” , de Kooning declarou, “ sempre me surpreendo pensando naquela parte que tem relação com o Renascimento. Parece-me que é a parte vulgar e car­ nal que faz isso particularmente Ocidental” . E associou a abstração ao Oriente, com a “circunstância de não estar aqui ” . “ É ausente” , declarou, acrescentando: “ Por isso é tão bom” . O significado desta polêmica vigorosa passou desapercebido, de uma ma­ neira geral, aos contemporâneos de de Kooning que depois foram envolvidos pelo entu­ siasmo da “ nova pintura abstrata americana” . Eles continuavam a classificar de Kooning como “ artista abstrato” e as discussões em torno de seu trabalho tendiam a ignorar o seu conteúdo, favorecendo o ensino da história da arte no que se refere à influência do cubismo e aos problemas da “ abstração sem lar” (plagiada do termo pintura sem lar , de Berenson). Entretanto, na determinação de concretizar suas metáforas através da reaproximação das formas á carne, embarcou numa nova relação com seu símbolo original, a Mulher, com o objetivo de pesquisar novas possibilidades de experiências esclarecedoras através da pintura. A seriedade da mudança é indicada pelo fato de Wonzan, I ter levado quase dois anos para “ acabar” (nunca foi terminada) e de que muitos anos se passaram antes que os


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admiradores das abstrações em preto e branco de de Kooning pudessem aceitar sua Mulher. “ Se eu tivesse caráter, pintaria abstrações” , queixava-se paradoxalmente de Kooning, pensando no código do artesão de fazer obras que agradem a seu público. De 1940 até o presente, a M ulher tem se manifestado nas pinturas e de­ senhos de de Kooning simultaneamente como foco de desejo, frustração, conflito interno, prazer, desdém, humor e ironia, e colocando problemas de concepção e de execução se­ melhantes aos de um engenheiro. Em Seated W oman, Woman Sitting, Queen o/Hearts. Pink Lady, Woman — todas executadas entre 1940 e 1944 — uma mulher sentada com as pernas cruzadas ou cortadas abaixo dos joelhos aparece numa variedade de formas, al­ gumas próximas da caricatura. O esboço a lápis de Reclining Nude transforma a figura numa boneca núbil, e o quadro Woman (1944), em verde e amarelo, dá a ela uma máscara cômica. O fragmento de corpo Untitled (1945), a pastel e lápis, é uma peça sobressalente que reaparece em Still L ife , do mesmo ano; trata-se de um dos primeiros exemplos da maneira como de Kooning converte uma forma natural em uma abstração. Nestas pri­ meiras Mulheres, o cubismo é invocado constantemente, porém posto de lado pelo esforço do artista em encontrar algo que se encaixe de forma precisa em seus sentimentos com relação ao tema. Em Pink Lady , a figura se desfaz em movimentos; em Woman Sit/iny, braço, ombro, pescoço e uma cabeça desproporcional são amalgamados num único mo­ vimento, antecipando as figuras posteriores de de Kooning que vão surgir da ação.

Woman (1949) é uma magnifica dança de formas criadas durante o ato de pintar: o fato dessas formas constituírem uma figura feminina e não uma composição abstrata, como A ttic, executada no mesmo ano e cuja forma complexa que arremata a massa central é uma cabeça alongada e retorcida em êxtase, confere á pintura uma dimensão de realidade emocional, assim como o golpe do centro inferior para a esquerda é um pontapé bemhumorado da perna direita da mulher. Deslocamentos anatômicos, comparáveis àqueles feitos por de Kooning em M en (1938-40), transpõem a anomalia da estrutura estética fun­ dida com a experiência direta. A Mulher, constantemente presente e constantemente em mutação, às vezes fragmentada, complementa o “ E u ” instável do artista. “ Eu poderia manter isto sempre , disse de Kooning sobre a pintura da Mulher, “ porque isto poderia se transformar sempre; ela poderia ( ...) não estar lá ou voltar novamente, ela poderia ser de qualquer tamanho. Porque esse tema poderia se responsabilizar por quase tudo o que pudesse ocorrer” . Com a dissolução das formas e contornos da figura feminina em Pink Angels e Still Life (1945), formas que continham uma sugestão erótica são transformadas em signo emocional da linguagem, susceptível de uma organização livre e rítmica. Nas Action Paintings do final dos anos 40 - Light in August, Black Fridays, Orestes - em que as primeiras hesitações estilísticas e tratamentos complexos precipitam-se na direção de uma nova afirmação, firme e auto-consistente, a M ulher transforma-se em paisagens rurais estranhamente humanóides contendo passagens de calor e frio vibrantes. Sinais evidentes são o busto gracioso no centro superior direito de Light in August , o esboço de um tórax que contorna um ombro no canto inferior esquerdo de Mailbox , o seio na parte


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central inferior esquerda de hlxcavation . Na mesma época, de Kooning executou a Mulher (1949) heróico-cômica acima referida, Two Women on a W harf (1949), além de outros trabalhos significativamente rotulados de “ abstrações” como Boudoir\ Warehouse Manikins\ Woman, Wind and W indow , nos quais o torso feminino é inconfundível — Thomas Hess descobriu até a imagem esmaecida de um nu em Attic. Um aspecto básico da arte de de Kooning é a rejeição de clichês radicais. Para o artista de vanguarda a mulher é um tema “ proibido” . Em notável entrevista para o critico inglês Davis Sylvester, de Kooning revela como se materializavam suas pinturas da Mulher por detrás do muro intelectual que ergueu contra idéias aceitas. A figura feminina tem sido “ pintada através dos tempos” , reconheceu ele, e é um absurdo um artista, nos dias de hoje, pintá-la novamente. Mas igualmente absurdo é recusar-se a pintá-la — nem que seja apenas porque, a essa altura, as ordens e proibições do vanguardismo tenham se anulado mutuamente. O que importava para de Kooning era que a Mulher, como tema, estava Id como um interesse tradicional da arte e “ era isto que eu queria apreender” . Em resumo, a disponibilidade do tema coincidia com a disponibilidade da personalidade do ar­ tista — porém, sempre em transformação. Pensar a M ulher era o mesmo que enfrentar “encontros relâmpagos” . Mas seu próprio evanescimento era uma garantia de que ela nunca seria exaurida como tema, e que a tentativa de apreender sua realidade através do ato de pintar poderia se prolongar indefinidamente ( “ Eu poderia manter isto o tempo todo, uma vez que poderia ser mudado sempre” ). O desempenho era o objetivo para alcançar e manter ativo o processo de criação e descoberta ( “ Eles querem apçnas ser inspirados” ). A Mulher como tema da ação do pintor não tem limites. Quando a mente trabalha, faz uso de tudo aquilo que esteja a seu alcance, intemamente e no mundo exterior. Durante uma curta fase, Woman, I era uma menina com vestido amarelo que de Kooning reparou na Fourteenth Street. A pintura também passou a conter mães sentadas em bancos do East SidePark; uma madona estudada de uma reprodução; E. — ou M. — amando. Todas essas mulheres, e muitas outras, apareceram no decorrer da pintura e desapareceram na má­ quina de consolidação do processo de de Kooning. As feições que sobreviviam, disse de Kooning a Sylvester, se tornavam o “ sorriso... de ídolos da Mesopotâmia, espantados com a força da natureza” . Para de Kooning, problemas técnicos (como desenhar os joelhos da Mu­ lher, como conseguir que a tinta não seque depressa) não existem isoladamente, eles sur­ gem dentro do amálgama cambiante da experiência do pintor. Não existe uma meta formal que a pintura deva alcançar ( “ Nunca estive interessado em saber como fazer uma boa pin­ tura” ), assim como não existe um fato básico do qual ela possa ser equivalente. Um acon­ tecimento possibilita outro, em qualquer nível de ocorrência. Ao projetar seu atelier, de Kooning realiza um conjunto de planos que satisfazem a seus desejos naquele determinado momento. Porém, tão logo termina os planos, começa a fazer um novo conjunto. A primeira concepção levantou novos problemas, novas possibilidades. Qualquer solução é apenas um ponto a ser percorrido no caminho para outra abordagem. O próximo gesto levará talvez o artista para mais perto do seu verdadeiro eu, isto é, de alguma coisa no seu


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interior que ele ignorava existir. “ Mais próxim o” , entretanto, é apenas uma figura de retórica, pois, se o trabalho ficou mais ou menos próximo de um suposto eu do artista, foi vivenciado e é portanto a própria substância de sua existência. “ No fim” , disse de Kooning a Sylvester sobre suas pinturas de M ulher, “ fracassei. Mas não fiquei aborre­ cido... senti que foi, de fato, uma realização” . Fracasso ou sucesso, ele poderia reivin dicar com Jacques, de A j Y ou U ke It: “ Ganhei experiência” . Pintar a Mulher foi um “ ato” na arena da história da arte, uma demonstração de habilidade e imaginação frente a uma galeria imaginária de grandes mestres. “ Eu não trabalhei nesse quadro” , disse de Kooning, “com a idéia de realmente fazê-lo. Com ansiedade... talvez medo, ou êxtase... para parecer um ator: para verificar quanto tempo pode-se ficar no palco frente a uma platéia imaginária” . O que o salvava da presunção era não esperar que Michelangelo ou Rubens ficassem até o final do espetáculo. A profunda familiaridade de de Kooning com os gênios da pintura Ociden tal é o segredo da ambição muitas vezes a ele atribuída. Em suas telas, a pintura do século X X recupera a concentração metafísica no ser, na aparência c na ação dos momentos mais elevados da arte. A fidelidade ao que chamou de “ problemas de vida e morte” coloca as pinturas de de Kooning em posição antagônica aos maiores esforços de conscientização da criatividade Ocidental. Ele evitou essa comparação recorrendo à própria pretensão da van­ guarda no sentido de que as comparações têm sido viciadas através da descoberta de novos caminhos para a arte. E resumiu para Sylvester: “ Não sou amante do novo — é uma coisa pessoal” , A M ulher, símbolo de mutabilidade inesgotável, fundiu-se com outros temas que ele “ podia manter sempre porque elas podiam mudar sempre” . Seu concei­ to de ‘não-ambiente” com o qual resolveu, nos anos 50, o problema de localização para suas mulheres gigantes, iguala as variações de M ulher à perpétua troca de pessoas, coisas, eventos e impressões nas ruas de Manhattan. Nas séries que começam com Woman, /, de Kooning vai desde as indicações de interiores ou paredes em segundo plano, encontradas nos primeiros estudos de figuras masculinas até W oman (1949), à rejeição tanto do tra­ dicional espaço ilusório como da composição moderna em planos. Estas convenções, tanto a nova como a velha, perderam a razão de ser em meados do século X X . Na realidade, a mulher não é percebida nem como uma imagem estática com uma mesa atrás de si e um cachorro a seus pés, nem como uma figura num padrão de formas coloridas. Ela e seu am­ biente são percebidos simultaneamente como um complexo de sensações evanescentes, paixões e humores passageiros e esta mistura de elementos só poderá renascer durante o ato de pintar. O tratamento formal das séries de de Kooning no inicio dos anos 50 consis­ tiu, portanto, na destruição da fronteira entre figura e fundo através da representação na tela da interação de atos equivalentes a um fluxo de encontros visuais. Na época em que

Woman, IV foi terminada, os contornos internos e externos foram todos fragmentados pelos golpes e contragolpes dos gestos do pintor, como uma figura identificada através do emaranhado de um tráfego veloz. Restos de “ olhos” e “ braços” identificam o tema como o congelamento de forças físicas e psíquicas (a mulher-ambiente) numa manifestação irônica. Fazendo um exame rigoroso, Woman, IV se reconstitui como uma cariátide


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monumental, de braços cruzados e olhar fixo e clássico. Ela é uma deusa do Lugar Ne­ nhum erguida do mar de acontecimentos desconexos. O desenho a carvão, M onumental Woman (1953), esboça uma idéia com­ plementar que de Kooning iria desenvolver plenamente nas pinturas dos anos 60, a idéia de a mulher ser ela mesma um “ lugar" através da absorção das formas da paisagem. Monumental Woman é Washington, D .C .: o nariz é o Washington Monument e, sob a curva do busto direito, o movimento circular das colunas deriva provavelmente do Jefferson Memorial. Woman in Bicycle resolve o problema do meio ambiente de maneira di­ ferente. Ao se perguntar “ o que e onde" colocar junto dela, o artista encerrou suas ru­ minações com o uso divertido do artificio de justapor um cavalo ou uma árvore ao tema humano. A bicicleta é o oval localizado no canto inferior esquerdo, que repete no mesmo plano pictórico os ovais dos seios da mulher. As formas das paisagens urbanas abarrotadas de pessoas, de meados dos anos 50 — Gotham News, Saturday Night, Police Gazette — , estão relacionadas, como indicam seus titulos, às notícias e ao calendário, ao fluxo dos acontecimentos no tempo, e não a objetos situados no espaço. São formas em transposição: ângulos partidos, círculos, quadrados abertos, seios desconectados e virilhas colidem com o Lugar Nenhum de de Kooning e explodem em estrias e partículas de tinta. Melhor dizendo, as formas cons­ tituem um ambiente onde nem indivíduo nem objeto podem reivindicar uma identidade. A composição comprimida, sólida, com extremidades desiguais, superfícies ásperas e co­ res indetermináveis e indescritíveis de Gotham N ews e Easter Monday, foi extraída da pressão que o pintor sofreu durante o período difícil que passou nos sótãos de Fourth Avenue e East Tenth Street, das portas deterioradas dos prédios, do lixo amontoado nas passagens entre os edifícios, das lanchonetes da Bowery, dos bêbados nas sacadas. Quan­ do, em 1957, começa a pintar em Springs, Long Island, suas composições se liberam, num suspiro de alivio, em panoramas líricos como que ajustados aos passeios no campo. O novo símbolo da metamorfose é a auto-estrada. Pare Rosemberg, Suburb in Havana (lembran­ ças de uma visita), D oor to the River , são paisagens não localizadas, originadas do novo ambiente que cerca o artista. Na obra de de Kooning existem pinturas grandes e pinturas pequenas, não em termos de tamanho mas em termos do tempo que levou para pintá-las. Seus principais trabalhos tendiam a se alongar: Excavation , “ terminado na primavera de 1950; Woman, I, iniciada quase que logo após, na qual de Kooning trabalhou durante quase dois anos. Es­ sas ações prolongadas, assim como o grande número de outras executadas rapidamente em carvão, em 1957, se deram num ponto crítico do desenvolvimento de de Kooning e produziram drásticas alterações em seu trabalho. É extraordinário como a tenacidade de de Kooning iguala-se à perícia do gesto executado rapidamente, quase que instantaneamente. Em muitas das abstrações com paisagem e figura de alguns anos atrás, ele conseguiu, através da velocidade, uma claridade luminosa e uma vivacidade não alcançadas em suas composições mais densas. Uma das principais qualidades de de Kooning (se comparado, por exemplo, a Pollock ou Kline) é a variedade do ritmo que ele conseguiu introduzir na



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sua ação, sem destruir a continuidade. Nenhuma arte de nosso tempo está mais comprometida com a vida orgânica de seu criador que a de de Kooning. Cada fase do trabalho contém a substância de sua con­ dição psicológica, da sua atividade intelectual e do seu ambiente físico. As pinturas de Mulher como paisagem só poderíam vir de alguém que é, pelo menos em parte, um paisagista. As composições de de Kooning nos últimos 12 anos são uma mistura de mar, céu, folhagens, praias e banhistas, absorvida durante passeios de bicicletas nas estradas de Springs, ou a observação atenta do litoral no inverno e quando as praias estão cheias. Boa parte da consciência de de Kooning consiste num puro reflexo sensorial aos fenômenos, comum aos animais. A água é o elemento mais utilizado nos trabalhos recentes: água corrente, água esguichando, pingando e refletindo a luz. Ele encontrou uma nova metáfora na superfície do mar para “ colocar” coisas e o próprio eu ( “ Aqui estou, Antony;/no entan­ to, não consigo conter esta forma visível” ). A figura reclinada em Woman in a Rowboat (1965) mergulha num sonho ensolarado sob as ondas de tinta que formam seu torso e seu entorno — uma obra-prima da utilização do objeto como acontecimento. O mar, como os outros símbolos de metamorfose, tem para de Kooning um significado autobiográfico, fazendo a ligação entre sua cidade natal e da infância na Holan­ da e New York, para onde veio como clandestino, em 1926, aos 22 anos de idade. A travessia do Atlântico é o Grande Acontecimento ao qual sempre retorna, em anedotas e recordações íntimas — “ não ligo a mínima para o Pacífico” , declarou recentemente de modo agressivo. Untitled, a mais antiga pintura exposta na retrospectiva de 1968-69, foi executada em 1934, oito anos após sua chegada aos Estados Unidos; ela consiste em for­ mas que sugerem vigas e convés de navio, tendo ao fundo o mar e o céu e, no primeiro plano à direita, uma cabeça coberta com uma máscara olhando para a terra. A arquitetura de navios, as juntas perfeitas e as superfícies polidas dos trabalhos náuticos em madeira, os àlojamentos impecáveis dos marinheiros escandinavos são, para de Kooning, símbolos de uma ordem e de um bem-estar intrínsecos. Trinta anos depois, quando trocou Manhattan pela ponta leste de Long Island, projetou um atelier com vigas e escoras, escadas em es­ piral e mirantes. E, ao pintar quadros com títulos como Ciam D iggers, W oman, Sag Har bor, Woman A cabonic, W om an in a R ow boat, ele combina a fábula marinha ao seu outro tema fabuloso: a Mulher. As Mulheres dos anos 60 não são mais aqueles ícones sólidos do “ não-am­ biente” ; são as jovens atraentes de hoje na praia. M as essas moças delgadas e fisicamente difusas cumprem uma função experimental na auto-investigação de de Kooning: são produtos de seus últimos artifícios para enganar a mente obstinada e a mão treinada que estão prontas para se defender do mesmo processo que as enganou. Ele treinou o desenho da figura com ambas as mãos, com a mão esquerda, com dois ou mais lápis simultanea­ mente. de olhos fechados, enquanto assistia televisão. Em 1971, esculpiu com barro de forma semelhante. Para extrair figurações imprevistas de suas telas, de Kooning cria suas imagens uma a partir da outra ( “ Eu poderia pegar qualquer coisa que pudesse ser acidental


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num quadro anterior” ); por exemplo, colando folha de jornal numa pintura com tinta fresca ele produz, ao retirá-la, duas composições descontroladas que podem permanecer desta forma ou ser trabalhadas. Comparadas às telas anteriores, as pinturas dos anos 60 ganham novamente ritm o, luminosidade e vibraçao na superfície, através de sua linha trêmula e do cromatismo dos vermelhos, rosas, verdes e brancos. Assim como no passado, de Kooning continua jogando com a possibilidade da destruição de cada trabalho em an­ damento, na medida em que o deixa aberto a associações que brotam no decorrer da criação. Algumas das pinturas, como, por exemplo, Untitled (1967), estão entre as criações mais líricas do século, mas de Kooning não excluiu delas imagens que surgem de torrentes de rancor, desgosto e vingança. Como sempre, suas pinturas tomaram forma à beira da dissolução. Para existir precisavam de uma persistência heróica diante de incer­ tezas, assim como um grau razoável de boa sorte ou da proteção do desconhecido. Consis­ tente com o princípio de renovação constante, a qualidade estética fundamental de de Kooning é o frescor, o frescor das coisas como elas aparecem num sonho — sua admiração pelos papéis recortados dos últimos anos de M atisse e suas experiências com mistura de tintas e secantes estão relacionadas com a procura do frescor. Comparadas com suas Mulheres de Long Island, a maioria das pinturas e esculturas da geração mais jovem originadas da estética racionalista dos anos 60 já parecem velhas ao nascerem. De Kooning nunca tentou dar um sentido político ao seu trabalho. A ação da arte se dá na tela, não na comunidade. Ele era o único entre os pintores da Action Painting a introduzir na sua pintura elementos da cultura popular, tais como notícias e recortes de anúncios, porém esses materiais não continham implicações sobre a sociedade nas quais originavam-se. Contudo, sob a pressão ideológica característica dos últimos 40 anos, fi­ delidade inflexível à espontaneidade e independência são em si mesmas um posicionamen­ to quase político — posicionamento condenado por Lenin, proscrito nos países totalitários, repugnante para burocratas, conformistas, homens de empresa e programadores. Uni­ dades improvisadas como as de de Kooning são as únicas alternativas para as filosofias modernas de salvação social que, usando como atrativo a possibilidade de maior riqueza material para o indivíduo, na prática sempre o coloca de lado. A arte de de Kooning atesta a recusa de ser recrutado ou posto de lado. A expansão dos recursos da pintura como meio de permitir a interação da sensibilidade com o acaso, o impulso, com o que é dado e o des­ conhecido, pressupõe que o indivíduo, tal com o é, continuará a se opor a todos os siste­ mas. Se a ideologia é o fantasma que assombra a pintura do pós-guerra, de Kooning assom­ bra o fantasma. Ele é o incômodo do ‘ ‘Eu So u ” individual numa era de credos e estilos coletivos.

Text° publicado como introdução a Willem de Kooning, de Harold Rosenberg (New York: Abrams, n 73 ’ ^ P ° stenormente incluído em A n & Other Serious Matters (The University of Chicago Press, 1985), que reúne vários ensaios de Rosenberg sobre arte


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Notas 1. Metáfora usada pelo autor para comparar a obra ‘descompromissada’ com quaisquer elementos, temas ou teorias de Kooning, a uma das praças mais populares e movimentadas de Nova York que, além de ser terminal de metrô, se ramifica em várias ruas de comércio intenso e extremamente popular. (N.T.) 2. No original, covered wagons, as grandes carroças ou prairie schooners que transportavam os des­ bravadores do Oeste norte-americano. (N.T.)

Por muitos anos Harold Rosenberg foi crítico para a revista The New Yorker e professor no Committee on Social Thought do Departamento de Arte da Universidade de Chicago. Sua abordagem imaginativa da estética e da situação cultural dos artistas contemporâneos influenc iou não apenas o campo da crítica, como também a prática da arte e o processo de seleção que proclamou a importância de figuras de proa do pós-guerra, tais como Bamett Newman, Arshile Gorky, Jackson Pollock, Franz Kline, Mark Rothkoe Willem de Kooning.


1. Burgoyne Diller

First Theme Óleo sobre tela, 86x86cm, 1939-40 Coleção Diller


CLEMENT GREEN BERG Tradução: Angela Loureiro, Antonio Guimarães

Depois do expressionismo abstrato

Há pouco mais de vinte anos, todos os pintores jovens e ambiciosos que eu conhecia em Nova York consideravam a arte abstrata a única saída possível, o único caminho para dizer algo de pessoal e, portanto, de novo; enfim, algo que valesse a pena dizer. No terreno da arte figurativa, sua ambição se via confrontada com muitas posições já ocupadas. Não era tanto a figuração per se que os incomodava; era antes a ilusão, ou melhor, a ilusão da tridimensionalidade. Sem dúvida continuava existindo uma figuração esquemática na arte de Matisse, Picasso, Léger, Braque, Klee e Miró (como hoje na de Dubuffet), mas o trabalho de todos eles era percebido como virtual mente abstrato. Foi destes artistas, e também de Mondrian, que os jovens pintores a que me refiro tiraram os ensinamentos mais importantes em matéria de abstração. Nessa época, a arte abstrata digna desse nome parecia inseparável dos cânones do cubismo sintético, mantendo-se fiel aos contornos nitidamente marcados, às formas fechadas e mais ou menos regulares e às cores planas. Talvez não fosse preciso seguir esses cânones literalmente, mas parecia necessário respeitar a orientação geral que deles resultava. No final dos anos 30, essa orientação começou a significar limitação. A despeito da crescente importância do trabalho de Klee (cuja influência teve um efeito liberador pelo menos sobre Tobey, Ralph Rosenborg e mesmo Loren Mclver) e se bem que em Nova York se começasse a admirar as primeiras pinturas abstratas de Kandinsky, a maior parte dos jovens artistas a que me refiro continuava a acreditar que, para adquirir um estilo realmente abstrato, era preciso recorrer a formas ajustadas e nítidas, delimitadas e achatadas. Qualquer outra solução parecia uma escapatória ou, no mínimo, excessi­ vamente idiossincrática, invalidando-se assim sua adoção como caminho a seguir. Esse era mais ou menos o estado, palavra que emprego propositalmente, em que se encontrava a arte abstrata em Nova York até o início dos anos 40. Nessa época; fazia-se boa pintura abstrata em Nova York: não apenas Stuart Davis, mas igualmente Bolotowsky, Cavallon, Diller (Figura 1), Ferren, Glamer, Balcomb e Gertrud Green, George L.K . Morris e alguns outros, todos adeptos de um cubismo “ fechado” . Algumas das obras de Gorki desse período parecem hoje mais independentes do que pareciam então, e de Kooning realizou nessa fase aqueles que considero seus melhores trabalhos, embora não os tenha exposto na época. E, contudo, a sensação de que o cubismo fechado tinha se tornado limitador transparecia na idéia de que era preciso ultrapassar Stuart Davis, e não apenas igualá-lo. Isso era bastante injusto, mas, passado algum tempo, posso entender por que era necessário. Por melhor que ele fosse — e continue sendo — Davis permanecia um artista provinciano,.e havia no ar o sentimento, embora ainda vago, de que era preciso


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dominar o provincianismo. A o mesmo tempo, parecia mais difícil do que nunca para um pintor escapar ao provincianismo, à tutela de Paris. A ascendência sufocante do cubismo sintético, no início dos anos 40, ajuda a compreender por que os quadros de influência surrealista de Baziotes funcionaram, em 1942, como uma corrente de ar fresco. Baziotes saiu-se muito bem ao sugerir um espaço ilusionista, ao contrário do Matta desta mesma época. A o fazer esta opção, não me parece que Baziotes tenha apenas escolhido a saída mais fácil. O verdadeiro rompimento se produziu, contudo, com as primeiras expo­ sições individuais de Pollock e de Hofmann em Nova York, respectivamente, em outubro de 1943 e em março de 1944. Nestas exposições, vi quadros abstratos que eram “ pictó­ ricos’ ’ (malerisch ), causando-me, pela primeira vez, a impressão de uma abertura total. Comparados à arte de Pollock e Hofmann, os quadros abstratos de Kandinsky, pintados entre 1910 e 1918, pareciam quase preciosos, e os de Klee, dignos de um miniaturista meticuloso: nenhum dos dois havia sido tão solto, aberto ou extravagante no emprego brutal da tinta. Só se encontra precedente para este trabalho na pintura figurativa, e é sig-

2. Jackson Pollock

The Sea- Wolf Óleo e guache sobre tela, 107xl70cm, 1943 Coleção Museu de Arte Moderna. Nova York


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nificativo que nem Pollock (Figura 2), nem Hofmann fossem completamente abstratos nessas primeiras exposições. A partir daí, foi um degelo geral. Em 1943 e 1944, Gorky também se tornou mais pictórico , sob a influência das paisagens e das primeiras pinturas abstratas de Kandinsky. Muitos discípulos e ex-discípulos de Hofmann começaram a pintar quadros abstratos, influenciados por Bonnard ou por Rouault. Em 1946, de Kooning abandonou o cubismo “ fechado” , se não propriamente o cubismo sintético, passando a sofrer a influên­ cia de Soutine. Em 1947 e 1948, a passagem mais deliberada para o expressionismo abs­ trato de artistas como Tworkov, Guston, Brooks e mesmo Tomlin traduziu-se na adoção de um tratamento mais solto e “ pictórico” . Painterly não foi o termo empregado, mas, a meu ver, era exatamente isto que Robert Coates queria dizer quando denominou a nova arte abstrata aberta de Nova York de “expressionismo abstrato” . Embora fosse uma reação contra o rigor do cubismo sintético, inicialmente esta nova arte empregava o mesmo vocabulário. Um tratamento mais solto da matéria pictural e um sentido ainda essencial­ mente cubista de composição e desenho era o que havia de comum nos trabalhos de artis­ tas tão diferentes como Gorky e Pollock em meados da década de 1940. Se o termo “ex­ pressionismo abstrato” designa alguma coisa, na verdade significa a afirmação do pic­ tórico: um tratamento solto, rápido, ou a aparência disso; massas que fazem manchas e se confundem, em lugar de formas que permanecem separadas, distintas; ritmos largos e bem aparentes; tons que se acentuam ou se degradam; cores de saturação ou de densidade desiguais; marcas visíveis de pincel, espátula, dedo ou trapo; em suma, uma constelação de características físicas análogas ás definidas por Wõlfflin quando este construiu sua noção de M alerische a partir da arte barroca (1). Como facilmente podemos perceber hoje em dia, a evicção do “ linear” e do quase-geométrico enquanto estilo dominante na arte abstrata nova-iorquina (e parisiense) depois de 1943 oferece mais um exemplo daquela al­ ternância cíclica entre o não-pictórico, ou linear, e o “ pictórico” , que marcou a evolução da arte ocidental desde o século X V I. A abstração pictórica tendeu a ser menos plana, ou menos rigorosa em sua planeza, do que a abstração “ fechada” ou linear que a precedeu, desta diferenciando-se sobretudo por comportar muito mais veleidades de ilusão. Quero dizer com ilusão algo de distinto da representação ou da ilustração: a ilusão de um espaço tridimensional pode-se produzir com ou sem a formação de entidades tridimensionais. Os quadros de Kandinsky pintados entre 1910 e 1918, tão semelhantes a paisagens, já nos haviam revelado esse efeito; o expressionismo abstrato revelou-o de novo, e de maneira persistente. Isso não deveria ter causado surpresa. O “ pictórico” ingressou na arte ocidental há quase qua­ trocentos anos, e desde então sempre foi sobretudo um meio de aumentar a ilusão de um espaço tridimensional. Ao longo do tempo e da evolução da pintura, saturações desiguais de tinta e de cor, contornos quebrados ou esmaecidos puderam evocar um sentido físico de espaço em profundidade quase tão imediata e automaticamente quanto um efeito de som­ bra, e mais facilmente do que jamais o fizeram as linhas de perspectiva. O espaço tridi­


mensional na pintura abstrata e quase-abstrata das décadas de 1920 e 1930 tinha sido, no essencial, uma questão de “ diagrama” e de associação. No “ pictórico” dos anos 40 e 50, reaproximou-se novamente da ilusão em trompe l'oeil, da ilusão atmosférica. Não que se tenha tornado mais profundo; tornou-se mais tangível, mais uma questão de percepção imediata do que resultado de uma “ leitura” .

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Em junho de 1948, a Partisan Review publicou um artigo de George L.K. Morris no qual ele me recriminava por preferir a pintura denominada por ele de behindthe-frame (pintura por-trás-da-moldura). Em minha resposta, eu disse que M orris havia sucumbido a um certo tipo de dogmatismo segundo o qual, em um dado periodo, uma for­ ma de arte deve ser superior a todas as outras. Seu dogmatismo, porém, em nada diminuía a acuidade dessa designação — pintura-por-trás-da-moldura — em todas as suas impli­ cações, que só mais tarde vim a admitir. Os trabalhos de Hofmann (Figura 3), Gorky e Pollock (Figura 4) situavam-se mais por-trás-da-moldura que os de‘Mondrian ou do Picasso posterior a 1913. É certo que isso, por si só, nada diz a respeito de seu valor estético


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relativo, e Morris estava errado ao fazer tal inferência. Mas tinha absoluta razão ao sugerir que a abstração pictórica ia para trás em termos de evolução de estilo (2), mesmo se “ ir para trás" no sentido literal fosse então praticamente a única maneira de ir para frente em termos de qualidade: melhor dizendo, a única maneira de manter uma alta qualidade, em

bora ndo necessariamente de melhorá-la. Mais tarde, no decorrer dos anos 50, uma boa parte da pintura expressionista abstrata passou de fato a pedir uma ilusão de espaço tridimensional mais coerente. E, na medida em que fazia isto, pedia a figuração, uma vez que tal coerência só se pode obter, de um modo ou de outro, pela representação tangível de objetos tridimensionais. Era, por­ tanto, inteiramente lógico que, quando a abstração pictórica de Nova York acabou por se cristalizar em uma maneira estabelecida, ela o tenha feito com uma série de obras expres­ samente figurativas, as Women (Figura 5) de Willem de Kooning, de 1952-1955. De­ nominei esta maneira próxima à abstração, característica de de Kooning e dos inúmeros artista que ele influenciou, de “ figuração não-representativa” (homeless representation ),

4. Jackson Pollock

Enchanted Forest Ôleo sobre tela, 213x116cm, 1947 Coleção Peggy Guggenheim, Veneza



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expressão pela qual entendo uma utilização do pictórico de maneira plástica e descritiva que se aplica a finalidades abstratas, sem contudo deixar de sugerir finalidades figurativas. A figuração não-representativa não é, nela mesma, nem boa nem má, e é possível que alguns dos melhores resultados do expressionismo abstrato tenham sido ob­ tidos no início, quando flertava com a figuração. A mediocridade só viceja com constância em uma maneira quando esta se esclerosa em maneirismo. E isso aconteceu com a fi­ guração não-representativa em meados da década de 50, na arte de Guston e de Kooning, e, depois de 1953, na de Kline e de muitos de seus imitadores. É com base nesses resul­ tados concretos, e não devido a um parti pris , que se pode encontrar o que censurar na figuração não-representativa: na verdade, o que só envolvia contradições de ordem lógica passou a comportar contradições de ordem artística. Algo Semelhante aconteceu com as duas principais tendências da versão européia do abstracionismo pictórico (que surgiu igualmente durante a guerra). Também na Europa, a abstração pictórica tende para o tridimensional. Há uma tendência, como a de nossa figuração não-representativa, para uma tridimensionalidade da ilusão, assim como há uma tridimensionalidade literal e bem real, resultante da acumulação de matéria pictórica, e que poderia muito bem ser chamada de “ baixo-relevo furtivo” . Esta última está mais próxima da figuração do que a outra, mesmo em se tratando de uma figuração em grande medida esquemática, uma vez que teve início com Dubuffet e Fautrier e chegou ao seu desenvolvimento pleno — embora não tenha atingido seu ponto máximo — com o trabalho dos últimos anos de de Staêl. (Por figuração “ esquemática” entendo uma fi­ guração que depende principalmente de um tratamento linear ou de uma colocação, sem que aquilo que é representado seja necessariamente resultado de uma modelatura ou de efeitos atmosféricos, isto é, sem ilusão.) É bastante curioso constatar que a outra tendência da abstração pictórica européia, a que está mais próxima da nossa figuração não-represen­ tativa, começou com as obras abstratas de Hartung, Mathieu e Wols, todos os três, acima de tudo, lineares. (Não. pretendo ser capaz de explicar a lógica pictórica acionada neste caso, mas creio que se poderia encontrar um início de explicação no fato de que o baixorelevo furtivo” , ao empregar o linear articulando-o com o uso de uma espessa matéria pic­ tórica em relevos e reentrâncias com vistas à figuração, pode valer-se da coerência que lhe é conferida automaticamente por uma tridimensionalidade literal, física, real , para obter a unidade do quadro. De outro lado, existe uma modalidade de coerência mais estritamente pictórica que é automaticamente produzida pela ilusão de um espaço em profundidade — pelo menos por enquanto. Digo “ por enquanto” porque, após mais de quatrocentos anos de arte ilusionista, os recursos de ilusão tendem a possuir unidade interna e coerência.) Também na Europa a abstração pictórica degenerou em maneirismos, tanto da figuração não-representativa como do “ baixo-relevo furtivo” . Lá também uma grande 5. Willem de Kooning

Woman II Óleo sobre tela, 150xl09cm Coleção Museu de Arte Moderna, Nova York


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quantidade de má pintura abstrata só é realçada, na órbita dos maneirismos, por uma arte menor de circunstância. Enfim, a Europa tem seus Tapies e seus Sugai para fazer face aos nossos Johns e Diebenkorn. Talvez seja injusta esta apreciação de Diebenkom, cujo caso é tão exemplar que vale a pena examiná-lo um pouco mais detidamente. A trajetória de Diebenkorn foi aquela que — pode-se dizer — deveria ter sido a do expressionismo abstrato. No inicio, ele foi o único pintor abstrato, que eu saiba, a fazer alguma coisa de realmente independente com o toque de de Kooning (o fato de que ele tenha chegado a isso inspirando-se um pouco na composição de Rothko não muda nada). Mais recentemente, Diebenkom deixou que esse toque o trouxesse de volta, com a influência de Matisse, para uma arte figurativa; é possível que esta coerência lógica ex­ plique em parte por que ele se tornou um pintor figurativo tão bom quanto o pintor abs­ trato que era. O fato de que o toque de de Kooning permaneça tão evidente quanto antes na arte de Diebenkorn em nada prejudica os méritos de sua nova maneira. Densi­ dades desiguais de pintura, obtidas por ações como manchar, escovar, esfregar, criaram, no trabalho de de Kooning, gradações de luz e sombra semelhantes aos efeitos de sombra tradicionais. Apesar destas gradações não terem levado a uma volta à modelatura em profundidade, devido à brutalidade de sua justaposição, a profundidade é cada vez mais sugerida nas obras mais recentes de de Kooning. Deixando aparecer claramente o que este apenas sugerira, Diebenkorn (assim como um outro californiano, Elmer Bischoff) encon­ trou uma estrutura em que o toque de de Kooning pode se realizar com mais autenticidade e, portanto, com menos pretensão, do que na própria arte de de Kooning até o momento. Existem outros pintores, principalmente em Nova York, que começaram a aplicar a maneira de de Kooning a serviço de uma arte claramente figurativa, mas até agora os resultados têm sido ou menos sólidos ou menos significativos. Não podemos in­ cluir Jasper Johns (3) entre eles, apesar da influência de de Kooning poder ser detectada em seu trabalho, e de sua arte ser figurativa. Trata-se de um outro caso exemplar: Johns leva a influência de de Kooning até uma espécie de ponto crítico, mantendo-a brilhan­ temente em suspenso entre a abstração e a figuração. William Rubin observou há alguns anos, em Art International , que os motivos das pinturas e dos baixos-relevos de Johns, sempre bidimensionais no começo, são tomados de um repertório de signos e imagens fabricados pelo homen, não muito diferente daquele em que Picasso e Braque foram buscar os elementos feitos au p och oir e as colagens de seu cubismo de 1911-1913. Diferentemente dos cubistas, Johns se interessa pela ironia literária que resulta da representação de con­ figurações planas e artificiais suscetíveis de serem realmente reproduzidas; mas a impor­ tância essencial de sua arte, que se deve distinguir de sua importância jornalística, situa-se sobretudo no domínio formal ou plástico. Assim com o a evocação de um espaço profundo nas fotografias de emblemas ou de fachadas e nas pinturas de letreiros de Harnett e Peto acentua a planeza intrínseca dos objetos mostrados, o “ pictórico” por finalizar de um quadro de Johns acentua a planeza indiscutível de suas imagens, seus números, suas letras, seus alvos, suas bandeiras e mapas, sendo ao mesmo tempo realçado por ela. Através desta

dialética” , a passagem do expressionismo abstrato para a


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figuração, representativa ou não, é afirmada e explicitada. Pode-se dizer que a planeza inicial da superfície do quadro, tendo por baixo alguns traços realizados com pochoir, basta para representar tudo que realmente representa um quadro de Johns. Pode-se também dizer que as pinceladas, com seu jogo de luzes e sombras à maneira de de Kooning, são completamente supérfluas sob este ponto de vista. Tudo aquilo que habitualmente é usado pela figuração e pela ilusão está apenas a serviço de si mesmo, isto é, da abstração; e tudo aquilo que habitualmente diz respeito à abstração ou à decoração — planeza, contornos despojados, composição all-over ou simétrica — é colocado a serviço da figuração. Quanto mais esta contradição é explicitada, mais o quadro tende a tornar-se eficaz. Se a imagem for muito ocultada, o caráter supérfluo das camadas de tinta corre o risco de se tornar menos manifesto; inversamente, se a imagem é muito evidenciada, todo o quadro corre o risco de se reduzir a uma simples imagem — uma imagem que, no caso das esculturas de Johns, mesmo se suas superfícies em bronze permanecem sem pintura, nada são além do que realmente são, isto é, moldagens de objetos fabricados que, no contexto de uma arte

6. Jackson Pollock

Number 28 Óleo sobre tela, 173x267cm, 1950 Coleção Albert H. Newman, Chicago


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tridimensional, não poderíam ser mais do que simplesmente reprodutiveis. O efeito de uma pintura de Johns freqüentemente é enfraquecido quando ele utiliza cores brilhantes, o que não acontece quando se trata de cores neutras com o o negro e o cinza. Como estas são cores de efeitos de sombra puv exccllcncB , são as que se tornam mais manifesta e \iolentamente inúteis quando aplicadas sobre imagens planas. Não quero dizer com isto que a eficácia das pinturas de Johns baseia-se em um simples procedimento. Há muito mais que isto; caso contrário, sua arte não produziría em mim o efeito que causa. M as se é possível explicar grande parte de sua arte, como acabo de rapidamente fazer aqui, isto talvez também indique seus limites. Johns entoa o canto do cisne da “ figuração não-representativa e, como a maior parte dos cantos de cis­ ne, este não leva muito longe. Johns não é o único entre os expressionistas abstratos, antigos e recentes, em que se encontram ecos do cubismo analítico e de sua transição para o cubismo sintético (e Johns continua sendo um expressionista abstrato, mesmo se abre caminho para a Pop Art). Na verdade, poder-se-ia descrever toda a evolução do expressionismo abstrato como a Evolução de um gênero de cubismo sintético abstrato em um tipo de cubismo analítico abstrato. Em 1911, o cubismo analítico original chegara à “ figuração não-representati­ va” : uma maneira de pintar os objetos em segmentos planos mantidos paralelos ao plano do quadro que acabava por fazer os próprios objetos desaparecerem, deixando apenas a ilusão do tipo de espaço erri que sua existência era possível e, ao mesmo tempo, uma ilusão reduzida das superfícies — os segmentos planos — que antes os vestiam. Nos Pollock allover (Figura 6) e nos de Kooning dos sete ou oito últimos anos, segmentos planos análogos se desenrolam de forma análoga (menores em Pollock, maiores em de Kooning), com a diferença básica, em relação ao cubismo analítico, de que a articulação ou a junção dos segmentos não depende mais, como continuava acontecendo em Braque ou Picasso, de um modelo existente na natureza. Entretanto, como já assinalei, os amplos planos facetados de de Kooning parecem se aproximar às cegas deste modelo e, vez por outra, acabam por encontrá-lo. O espaço indeterminado criado pelos entremeios e salpicos de Pollock nem sem­ pre funciona como um espaço “ abstrato pode também funcionar como uma ilusão. En­ quanto o cubismo analítico chegava às margens da abstração integral perseguindo ao mes­ mo tempo a arte e a natureza, o expressionismo abstrato voltava ás fronteiras da natureza perseguindo, aparentemente, apenas a arte. M uitos dos quadros em branco e preto de Pollock anunciaram este retorno [higura 7 ); a série Wotnen de de Kooning, que assinalou a passagem efetiva do artista do cubismo sintético para o cubismo analítico, fez mais do que anunciá-lo. Enquanto isso, um outro tipo de retorno se processava, fora dos limites do expressionismo abstrato tal como este foi definido até agora. O expressionismo abstrato não era, e não é, apenas uma abstração pictórica. Como todas as tendências importantes na arte, ele ultrapassa qualquer definição verbal ou fenomenológica, dando margem a uma grande variedade de desvios e de contradições” . O cubismo analítico, além de ser um caso de “ figuração não-representativa” , realizou uma síntese do “ pictórico” e do “ não-


7. Jackson Pollock

licho (Number 23) Esmalte sobre tela, 233x218cm, 1951 Coleção Museu de Arte Moderna, Nova York pictórico” . O cubismo sintético e Mondrian a desfizeram em favor do “ não-pictórico” , e o expressionismo abstrato, como acabamos de ver, reagiu violentamente no sentido opos­ to. Mas, pouco antes de 1950, algo que se assemelhava a uma nova síntese do “ pictórico” edo “ não-pictórico” despontou na arte abstrata nova-iorquina, retomando uma tendência que contrariava a evolução original do cubismo. Na realidade, a maior parte dos pintores nova-iorquinos que primeiro foram denominados de expressionistas abstratos não foi ‘ ‘pictórica de uma maneira coerente e profunda. Isto pode ser dito mesmo em relação a Hofmann: o que ele fez de melhor nos úl­ timos anos — e provavelmente em toda a sua carreira tende para uma síntese pessoal onde o “ pictórico” se une ao linear ao mesmo tempo em que o fauvismo se une ao cubis­ mo. Só depois de 1953 Kline aderiu ao “ pictórico” , em detrimento da qualidade de seu trabalho, como, aliás, fica provado, a contrario , pelo fato de sua arte ter melhorado


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8. Franz Kline New York Óleo sobre tela, 201xl28cm. 1953 Nova York

todas as vezes que ele retornou, como fez inúmeras vezes nos dois ou três últimos anos de sua vida, à sua maneira anterior de utilizar contornos nítidos (Figura 8) Motherwell foi “ pictórico” esporadicamente, e muitas de suas obras-primas do final dos anos 40 o eram completamente, mas grande parte de seus melhores quadros tende para o “ não-pictórico' (Figura 9) Gottlieb também hesitou entre o “ pictórico” e o “ não-pictórico” , tendo realizado obras soberbas de uma e de outra maneira. Entretanto, parece-me que suas hesitações acabam por torná-lo infiel ao seu principal dote, o uso da cor. Gottlieb bem poderia ter se inspirado nos três pintores nova-iorquinos que se situam um pouco à parte no expressionismo abstrato. Refiro-me a Newman, Rothko e Still, que renunciaram ao pictórico ou, ao menos, àquele associado ao expressionismo abstrato, em prol de uma visão orientada pela primazia da cor. Como muitas tendências “ pictóricas” fizeram antes dele, o expressionismo abstrato empenhou-se em reduzir o papel da cor. Densidades desiguais de matéria pic­ tórica tomam-se, como eu já disse, diferenças equivalentes de luz e de sombra que privam a cor tanto de sua pureza quanto de sua plenitude. E apesar da busca da abertura ser tida


9. Robert Motherwell

Flegy to the Spanish Republic Óleo sobre tela, 203x254cm, 1953-54 Nova York

como um fim essencial do “ pictórico” , a aplicação apressada e desordenada da tinta acabou por cumular a superfície do quadro de um tumulto compacto que não é, como podemos ver em trabalhos de de Kooning e de seus êmulos, senão uma outra versão do elemento compacto academicamente cubista. Still, Newman e Rothko afastam-se do pic­ tórico do expressionismo abstrato como para salvar seu objeto: a cor e a abertura. Na ver­ dade, poder-se-ia dizer que, mais do que uma síntese entre o “pictórico” e o “ não-pic­ tórico” , a obra desses artistas transcende a oposição entre um e outro. Trata-se de uma transcendência e não de uma reconciliação, que é característica do cubismo analítico, como agora o é de Hofmann. Estes três pintores inspiram-se tanto no impressionismo quanto no cubismo; e o fato de o impressionismo ter sido um caso exemplar de tratamento “pictórico” parece ter facilitado a um artista como Newman apreender toda a questão do “pictórico” contra o “ não-pictórico” , tal como ela se colocava para a arte abstrata. Clyfford Still {Figura 10), um dos grandes inovadores da arte modernista, é o pioneiro deste grupo no que concerne à ênfase conferida à cor. Tomando posição contra a importância tradicionalmente conferida aos contrastes de luz e sombra, Still mostrou que


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8. Franz Kline New York Óleo sobre tela, 201xl28cm. 1953 Nova York

todas as vezes que ele retornou, como fez inúmeras vezes nos dois ou três últimos anos de sua vida, à sua maneira anterior de utilizar contornos nítidos (Figura 8) Motherwell foi “ pictórico” esporadicamente, e muitas de suas obras-primas do final dos anos 40 o eram completamente, mas grande parte de seus melhores quadros tende para o “ não-pictórico' (Figura 9) Gottlieb também hesitou entre o “ pictórico” e o “ não-pictórico” , tendo realizado obras soberbas de uma e de outra maneira. Entretanto, parece-me que suas hesitações acabam por torná-lo infiel ao seu principal dote, o uso da cor. Gottlieb bem poderia ter se inspirado nos três pintores nova-iorquinos que se situam um pouco à parte no expressionismo abstrato. Refiro-me a Newman, Rothko e Still, que renunciaram ao pictórico ou, ao menos, àquele associado ao expressionismo abstrato, em prol de uma visão orientada pela primazia da cor. Como muitas tendências “ pictóricas” fizeram antes dele, o expressionismo abstrato empenhou-se em reduzir o papel da cor. Densidades desiguais de matéria pic­ tórica tomam-se, como eu já disse, diferenças equivalentes de luz e de sombra que privam a cor tanto de sua pureza quanto de sua plenitude. E apesar da busca da abertura ser tida


9. Robert Motherwell

Flegy to the Spanish Republic Óleo sobre tela, 203x254cm, 1953-54 Nova York

como um fim essencial do “ pictórico” , a aplicação apressada e desordenada da tinta acabou por cumular a superfície do quadro de um tumulto compacto que não é, como podemos ver em trabalhos de de Kooning e de seus êmulos, senão uma outra versão do elemento compacto academicamente cubista. Still, Newman e Rothko afastam-se do pic­ tórico do expressionismo abstrato como para salvar seu objeto: a cor e a abertura. Na ver­ dade, poder-se-ia dizer que, mais do que uma síntese entre o “pictórico” e o “ não-pic­ tórico” , a obra desses artistas transcende a oposição entre um e outro. Trata-se de uma transcendência e não de uma reconciliação, que é característica do cubismo analítico, como agora o é de Hofmann. Estes três pintores inspiram-se tanto no impressionismo quanto no cubismo; e o fato de o impressionismo ter sido um caso exemplar de tratamento “pictórico” parece ter facilitado a um artista como Newman apreender toda a questão do “pictórico” contra o “ não-pictórico” , tal como ela se colocava para a arte abstrata. Clyfford Still {Figura 10), um dos grandes inovadores da arte modernista, é o pioneiro deste grupo no que concerne à ênfase conferida à cor. Tomando posição contra a importância tradicionalmente conferida aos contrastes de luz e sombra, Still mostrou que


10. Clyfford Still

Painting Óleo sobre tela, 236xl90cm, 1951 Coleção Institute of Art, Detroit

a cor é capaz de agir por contrastes de tonalidades puras, mais ou menos independente­ mente das diferenças de valor. O impressionismo, em suas últimas manifestações, oferecia um precedente e, como no Monet do último período, a supressão dos contrastes de luz e sombra propor­ cionava um novo tipo de abertura (4), uma nova expansividade. Dali em diante o quadro não se dividia mais em formas, mas em zonas, áreas e campos de cor. Era o essencial. Mas coube a Newman e a Rothko a tarefa de levar o navio ao porto. Se as maiores obras de Still, principalmente aquelas mais largas que altas, não chegam a atingir a ampla abertura que prometem, não é somente porque ele escolhe uma superfície muito grande para o que tem a dizer — é também porque suas menores áreas de cor não chegam a funcionar como áreas e permanecem sendo simples manchas cujos contornos complicados, góticos, rústicos, travam e detêm o fluxo do espaço-cor. Com Newman e Rothko, temperamentos artísticos que poderiam parecer muito mais “ pictóricos” que Still, administram-se inúmeros antídotos sob a forma do


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retilíneo. Subsiste, no entanto, uma ambigüidade: Rothko (Figura 11) dilui todos os li­ mites de separação; Newman (Figura 12) incorpora um limite fio u , como que para servir de sustentação para suas margens traçadas a régua. Assim como Still, um e outro ex­ plicitam sua opção, talvez para melhor manifestarem sua recusa dos maneirismos que, a essa altura, já se haviam tornado indissociáveis do manejo rápido do pincel ou da espátula. Os limites às vezes indecisos de Newman e os limites atormentados mas nítidos criados pela espátula de Still são testemunhos de que estes dois artistas têm consciência dos efeitos especiosos da espontaneidade (irreflexão talvez fosse o termo conveniente) e, ao mesmo tempo, de que eles os recusam. Still continua a investir nas texturas. As irregularidades tácteis de suas superfícies com sua oposição de fosco e de brilhante, de camada de matéria pictórica e de impressão, contribuem para a força de sua arte. Mas, evitando o táctil e o detalhe no desenho, Newman e Rothko conseguem obter uma abertura mais positiva e efeitos de cor mais surpreendentes. O retilíneo é “ aberto” por definição: ele atrai o menos possível a atenção sobre o desenho e a composição, prejudica o menos possível o desdo-

11. Mark Rothko Red, Brown and Black Óleo sobre tela, 271x298cm, 1958 Coleção Museu de Arte Moderna, Nova York


12. Barnett Newman Vir Heroicus Sublimis Óleo sobre tela, 85xl82cm, 1950-51 Coleção Museu de Arte Moderna, Nova York

bramento do espaço-cor. Do mesmo modo, uma camada fina de matéria pictórica interfere o menos possível no desdobramento do espaço-cor pelo simples fato de excluir qualquer referência táctil. (Neste sentido, Rothko e Newman parecem retomar o caminho de M il­ ton Avery, que por sua vez retomara o de Matisse.) A o mesmo tempo que a cor se liberta de suas funções localizadoras e denotadoras, adquire maior autonomia. Não tendo mais por função particularizar ou preencher uma área ou um plano, ela fala dela mesma e trabalha no sentido da dissolução da nitidez das formas e das distâncias. Para que isto aconteça — e Still foi o primeiro a mostrá-lo — é preciso que sejam usadas tonalidades quentes ou tonalidades frias impregnadas de calor. É preciso também que seja uma cor uniforme, utilizando-se apenas, quando isto acontece, sutis variações de valor; além disso, é preciso que se espalhe por uma superfície que pareça de uma grandeza absoluta e não relativa. A dimensão garante a pureza assim como a intensidade da tonalidade, necessárias para sugerir um espaço indeterminado: maior quantidade de azul é simplesmente mais azul do que uma menor quantidade de azul. É também por este motivo que o quadro deve ser executado com um número limitado de cores. Neste aspecto, foi novamente Still quem mostrou o caminho; a visão de uma pintura bi ou tricolor (segundo os termos de E.C. Goossen) foi primeiramente sua (seja qual for a dívida que ele possa ter em relação ao Miró dos anos 1925-1930). E certo, no entanto, que o sucesso ou o fracasso de Newman e Rothko dependem mais manifestamente da cor que no caso de Still. A cor certa em seu lugar certo pode mais facilmente resgatar — ao menos aparentemente — erros de proporção ou de configuração em sua arte. Do mesmo modo, nos grandes quadros de Nenúfares de Monet, a relação específica de cores parece tudo governar. Mas o inverso é igualmente verdadeiro:


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uma proporção correta entre a extensão respectiva das formas pode predominar sobre as cores ou as relações de cores as mais ingratas. (Nunca é demais reafirmar que arte é ques­ tão de relatividade e de ajustamento.) Existe no efeito obtido pela arte destes três pintores algo mais que um efeito de intensidade cromática. Trata-se quase literalmente de um efeito de abertura que abran­ ge e absorve a cor no próprio momento em que ela o cria. A abertura — e não somente em pintura parece ser a qualidade que estimula mais o olho de nossos contemporâneos. Deixo ao leitor o cuidado de descobrir as razões disto. Mas arriscaria dizer que a nova abertura da pintura de Newman, Rothko e Still indica a única saída possível para a arte pictórica num futuro próximo. Esta via também é indicada por seu repúdio ao virtuosismo na execução ou na feitura. Em outro texto referi-me ao processo de autocrítica que, a meu ver, subjaz à lógica da arte modernista ( “ Modernist Painting” , in Arts Yearbook 4, 1961). Esta auto­ crítica inteiramente empírica e que não se volta para a teoria tem como objetivo deter­ minar a essência irredutível da arte e de cada arte tomada separadamente. Fortalecendo es­ te processo, começou a ficar claro que era possível abandonar um número crescente de convenções da pintura que não são essenciais. Ficou estabelecido, ao que tudo indica, que a irredutibilidade da arte da pintura consiste apenas em duas normas ou duas convenções que lhe são pertinentes: a planeza e a delimitação da planeza (5). Em outras palavras, a simples observação destas duas normas é suficiente para criar um objeto que pode ser per­ cebido como um quadro: sendo assim, uma tela esticada ou pendurada já existe enquanto quadro, sem que necessariamente seja um quadro bem resolvido. (Paradoxalmente, esta redução não tem como resultado reduzir, mas ampliar as possibilidades da pintura. Muito mais coisas prestam-se a uma percepção pictórica ou têm relação significativa com a arte da pintura: passam a ser englobados muitos tipos de detalhes ou de incidentes visuais pequenos e grandes que antes eram esteticamente considerados como desprovidos de sen­ tido.) A meu ver, Newman, Rothko e Still dirigiram a autocrítica da pintura modqrnista em uma nova direção, afastando-a de sua direção inicial. Agora a questão que se coloca através de sua arte não é mais saber de que a arte, ou a arte da pintura, se cons­ titui, mas de que a boa arte em si é constituída. E a resposta dada parece ser: nem a ha­ bilidade, nem o m étier, nada que se relacione com a execução ou a performance , mas unicamente a concepção (6). A cultura ou o gosto podem ser condições necessárias à con­ cepção, mas só esta é decisiva. Pode ser chamada de invenção, inspiração ou mesmo de in­ tuição, termo adotado por Croce (7), que colocava como anterior ao plano teórico aquilo que a prática acaba de descobrir e de validar por si mesma. Por outro lado, é verdade que a habilidade era um instrumento de inspiração e contribuía também para a concepção, mas isto aconteceu em uma época em que a melhor pintura artística era, sob todos os aspectos, a mais naturalista. Atualmente, nem a habilidade nem a destreza são capazes de gerar qualidade, porque estão muito difundidas e muito acessíveis e, portanto, muito este­ reotipadas.


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GÁVEA

Só a inspiração e a concepção pertencem ao domínio do individual; hoje, todo o resto pode ser adquirido por qualquer pessoa. A inspiração, ou a concepção, per­ manece sendo o único fator na criação de uma obra que não pode ser copiado ou imitado. Artistas como Mondrian e Newman demonstraram isto (e este é seu único ponto em comum). Os quadros de Newman parecem fáceis de serem copiados e talvez o sejam. Mas não são nada fáceis de conceber ou imaginar, e sua qualidade reside quase que totalmente na concepção. Isto deveria ser evidente, mas os esforços vãos dos seus imitadores provam que não o é tanto assim. O espectador que diz que seu filho poderia pintar um Newman talvez tenha razão, mas haveria necessidade absoluta que Newman estivesse lá para dizer exatamente à criança o que fazer. As escolhas exatas de meio, de cor, de dimensões, de forma e de proporção — incluindo as dimensões e a forma do suporte são os fatores que determinam o sucesso do resultado, e estas escolhas dependem apenas da inspiração (como foi o caso de Mondrian, apesar das bobagens afirmando o contrário). Como Rothko e Still, Newman é um artista dotado no sentido tradicional da palavra. Mas ele utiliza sua ha­ bilidade, na verdade, para eliminar as provas desta mesma habilidade. E esta eliminação contribui para assegurar o triunfo de sua arte, ao lado da qual a maior parte das pinturas contemporâneas acaba por parecer fabricada. Por este motivo, Newman, em especial, é objeto da admiração de alguns dos melhores jovens artistas norte-americanos. Sua recusa da virtuosidade (de um grafismo bem-sucedido à maneira de de Kooning, por exemplo) encoraja nesses jovens artistas o seu próprio desejo de renunciar a ela, fortalece-os para que cometam suas próprias ou­ sadias. Encoraja ainda mais pintores como Louis e Noland (Figura 13), que não foram diretamente influenciados por Newman (e nem por Rothko e Still). Talvez Louis e Noland procurem uma visão da cor e da abertura próxima da desses três artistas, mas esta procura é ainda mais resoluta pelo fato de não ser derivada da busca empreendida por Newman. Em primeiro lugar, Louis e Noland não fazem quadros bi ou tricolores; além disso, tanto um quanto outro sofreram mais a influência de Pollock nos fins e nos meios do que de qualquer outro pintor. Isto não depõe contra Newman, Rothko ou Still, e estou assinalando este ponto apenas para acabar com idéias falsas espalhdas por jornalistas e conservadores de museu. O fato de que a influência destes três artistas tenha sido esmagadora — afinal, Sam Francis foi o único jovem artista que, até agora, se realizou de todos os que sofreram esta influência — atesta a força real de sua arte. Em relação ao pós-expressionismo abstrato, o cerne do problema tem pouco a ver com a questão das influências. Em última instância, os artistas se separam onde pára o gosto seguro. Sempre foi assim, e está sendo com os desdobramentos do expressionismo abstrato. Os que seguem Newman, Rothko ou Still, individual ou coletivamente, ad­ quiriram tanta segurança em matéria de gosto quanto se tivessem seguido de Kooning, Gorky ou Kline (tenho a impressão de que alguns pintores escolheram seguir os primeiros ao invés dos segundos principalmente por frustração e não tanto por insatisfação ou im ­ paciência em relação às vefsões do expressionismo abstrato praticadas na Tenth Street). Os outros artistas norte-americanos que se dedicam a um “ neo-dadaísmo” ,


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à colagem-construção ou a comentários irônicos sobre a banalidade de nosso ambiente in­ dustrial também não escapam à jurisdição do gosto convencional — eles, aliás, menos que todos (Johns é a única exceção). Apesar de todos os objetos novos que representam ou in­ corporam em suas obras, nenhum destes artistas arriscou-se, em matéria de cor ou de composição, mais que os cubistas ou os expressionistas (podemos ver o que acontece se al­ guém realmente se arrisca com a cor quando a pintura “ pura” de Olistki choca os próprios pintores nova-iorquinos). Nenhum deles ainda se arriscou, ao colocar baleias empalhadas em uma superfície plana ou ao encher privadas de diamantes, a dispor estas coisas fora das linhas direcionais da malha cubista all-over. O resultado disto é uma aparência cubista convencional que dificilmente dá margem a discussão em um ensaio intitulado Após o Expressionismo Abstrato. Isto também podería ser dito em relação aos pintores cuja contribuição restringe-se ao fato de pintarem galinhas depenadas ao invés de faisões mor­ tos, pacotes de café e fatias de tortas ao invés de flores em um vaso. Não que eu não con­ sidere a execução acadêmica clara e sem disfarces de seus quadros refrescante e mesmo surpreendente, depois das ênfases do expressionismo abstrato; mas o efeito é momentâ­ neo, porque a novidade, que é preciso distinguir da originalidade, não tem a força de durar.

13. Kenneth Noland

That Acrílico sobre tela, 209x209cm, 1958-59 Coleção David Nirvish, Toronto


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Notas:

1

H. Wõlfflin — Renaissance undBarock, 1888 (Edição francesa, Renaissance et Haroque, Le Livre

de Poche, Paris, 1967). 2. Mais adiante, Greenberg explica extensamente por que, segundo ele. a abstração pictórica era uma maneira de voltar atrás. Greenberg considera que o cubismo sintético ck sfizi ra a sintc se entre o “linear” e o “pictórico” realizada pelo cubismo analítico em favor do linear e que, por sua vez. o ex pressionismo abstrato (ou a abstração pictórica) reagira contra a linearidade do cubismo sintético através de um retorno ao pictórico (de Kooning). Daí o trocadilho: mesmo se o fato de ir para trás (o efeito de profundidade behind-the-frame do estilo pictórico ou a regressão no sentido histórico) “ fosse a única maneira de ir para frente” . (Nota do tradutor francês) 3. Ver estudo de Leo Steinberg J a s p e r Johns: les Sept Premières A nnées de son Art 3a. William Harnett e John F. Peto foram pintores norte-americanos do século passado, especialis­ tas em trompe-1'oeil. (Nota do tradutor francês) 4. Em Príncipes Fondamentaux de PHistoire de l'Art (1915), Wülfflin procurou definir sistema­ ticamente a oposição entre clássico e barroco, oposição que Bernard Teyssèdre resume da seguinte forma em sua Présentation de Renaissance et Haroque: “a) o clássico è linear eplástico, o barroco é pictórico-, a figura, aprisionada em seus contornos de uma vez por todas, dissolve-se em imagem mé>vel (...); b) a visão clássica projeta o espetáculo na superfície (...). A visão barroca penetra no espaço em profundidade (...); c) a composição clássica é fechada: cada elemento, necessário em seu lugar, re­ laciona-se a cada um dos outros e ao conjunto de acordo com proporções definidas. A composição barroca é aberta-, cada elemento parece esboçado, ligado aos outros por laços muito frouxos; a forma espalha-se a um só tempo em todas as direções (•••); d) o clássico procede por análise: o conjunto artic.ula-.se em uma pluralidade de par tes, cada uma das quais é válida por si mesma. O barroco parte da síntese-, só impor­ ta o efeito global, que deve causar impacto ao primeiro olhar; e) o clássico exige clareza absoluta; o barroco preserva uma relativa obscuridade: torções arrebatadas, movimentos impetuosos, encurtamentos destruidores das proporções, dissolução dos contornos e dos fundos na penumbra e no indefinivel (...)” . Pensando nestas definições de Wõlfflin, Greenberg fala de uma nova espécie de abertura, uma aber­ tura que não c* mais obtida, como no pictórico, pela interpenetração ou pela dissolução das formas umas nas outras, mas por uma divisão em “campos de cor” . (Nota do tradutor francês) 5. Sobre a concepção de Greenberg do modernismo, ver a critica que lhe é feita por Leo Steinberg em Other ( riteria e por Rosalind Krauss em Points de vue sur le Modemisme. (Nota do tradutor fran­ cês) 6. Esta noção opõe-se, ao mesmo tempo em que a condena, à gestualidade do expressionismo abs­ trato de um de Kooning. Em seguida, será aplicada ao trabalho da maior parte dos artistas “mini­ malistas” . (Nota do tradutor francês) 7. Benedetto Croce (1886-1952) escreveu 1'Esthétique com m e Science de 1’Expression (1902), onde acentua a unidade intuitiva da forma e do conteúdo da obra de arte. (Nota do tradutor francês) Texto publicado no livro Regards sur 1 Art Américain des Années Soixante, Éditions Territoires, 9 9, tradução de Claude Gintz. Original publicado na revista Art International, outubro 1962.


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Clement Greenberg marcou profundamente a vida artística norte-americana do pósguerra. A orientação marxista de seu pensamento, que lhe tomou possível reconhecer, na arte abs­ trata, uma espécie de revolução contra o provincianismo estético da América do Norte, bem como as aulas de Hans Hofmann, que ensinava pintura em Nova York desde 1934, prepararam-no para tor­ nar-se o porta-voz de uma nova vanguarda. Certo de que a imigração dos artistas europeus durante a guerra faria de Nova York a nova capital internacional da arte. Greenberg contribuiu significati­ vamente para tornar conhecidos e reconhecidos, a partir de meados dos anos 40, jovens artistas como ArshileGorky, Willem de Kooning, Robert Motherwell, o escultor David Smith e, principalmente, Jackson Pollock. Ao longo dos anos 50, quando a “primeira geração” de expressionistas abstratos estava em vias de adquirir reputação internacional, começou a ser solicitado para organizar expo­ sições e escrever apresentações. Artistas mais jovens, ou ainda desconhecidos, como Morris Louis e Kenneth Noland, sempre procuravam conhecer suas opiniões. O tom didático de sua prosa, suas referências constantes à história da arte moderna e sua abordagem formalista intelectualmente aces­ sível fizeram de Greenberg uma espécie de oráculo do mundo das artes plásticas nova-iorquino. Neste ensaio, escrito em 1962, ele considera o expressionismo abstrato — deno­ minado por Harold Rosenberg de Action Painting e por Greenberg de abstração pictórica — apenas um novo episódio da alternância cíclica entre o linear e o pictórico, conceitos estes inicialmente propostos pelo historiador da arte Heinrich Wõlfflin. Segundo Greenberg, a abstração pictórica chegou a um impasse que se manifesta pela “figuração não representativa ’. Afastando-se da abs­ tração pictórica, alguns pintores da geração dos expressionistas abstratos, como Clyfford Still, Mark Rothko e Bamett Newman, encontraram uma saída transcendendo a oposição linear/pictórico e realizando uma “nova forma de abertura” que dá primazia à cor. As teorias em que Greenberg se baseia serão contestadas. Mas neste artigo ele descreve com muita perspicácia o espirito e o proce­ dimento daqueles pintores dos anos 50 que influenciariam toda uma geração de artistas na década de 60: unidade da obra, abandono do virtuosismo, primado da concepção que antecede a execução.



EUGENIO D ’ORS Tradução: Jorge Czajkowski

O Paraíso Perdido

Um jardim em Coimbra Trago sempre comigo a lembrança daquela hora meridiana de um dia de maio, no Jardim Botânico de Coimbra. Hora modorrenta e perturbadora, de odores ve­ getais, de arrulhos voluptuosos. As palmeiras esbeltas, ávidas de sol, se lançavam ao céu, dominando do alto de seu palácio de luz a mata esquecida cá embaixo. Esquecida como a mulher que se fita nua no espelho esquece, no brilho inteligente do olhar, o sombreado caminho da luxúria. Sim, as palmeiras dominavam as tílias, mas o som marcial da corneta de um quartel vizinho não chegava a abafar o cálido queixume modulado dos pombos. Marulho de pombos, toque de corneta ouvido em um horto... não há im­ pressão sonora, não há emoção mais caracteristicamente barroca. Nessa hora primaveril e meridiana em Coimbra, na indolência e no re­ colhimento, aconteceu-me descobrir uma verdade fecunda: a de que o barroco é secre­ tamente animado pela nostalgia do paraíso perdido. Alfa e ômega Paraíso, começo e fim da História, alfa e ômega no espírito da humanidade. Por causa da árvore da ciência — quer dizer, pelo exercício da curiosidade e da razão — o paraíso foi perdido um dia. Pelo calvário do progresso — ou seja, também pelo exercício da curiosidade e da razão — avançamos sobre o caminho que a ele retorna. Toda a história humana pode ser concebida como o itinerário penoso entre a inocência que ignora e a inocência que sabe. Mas, enquanto nos encaminhamos para o novo paraíso, para a Jerusalém Celeste, passamos por pequenos paraísos intermediários, onde o começo é evocado e o fim previsto, onde o Éden reaparece ao homem através da reminiscência ou da profecia. Toda arte que recorda ou profetiza é sempre mais ou menos barroca. E vamos perceber um dia que a literatura universal assinalou o acesso à floresta barroca erigindo duas altas pilastras que levam os nomes do poeta Milton e do Evangelista São João: O Paraíso Perdido e Apocalipse. (Ainda há pouco estava absorto contemplando o abanar dengosamente feminino de uma folha no topo de uma palmeira quando me pareceu — ilusão? — que a palmeira se espreguiçava, que esticava de repente o tronco numa espécie de espasmo. Eu a interrogo em meu espanto, mas ela me responde — obstinada e sorridente — que não, que não...)


GÁVEA

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O barroco como recompensa Paul Valéry, poeta que se situa na fronteira oposta ao barroco, intelectual puro, que elimina a questão do começo e do fim, de alfa e ômega

artista mais que poeta

— escreveu um poema admirável, Palme (Palm eira). Eu gostaria de o ir ler uma manha nesse mesmo jardim, ou talvez no jardim de Lisboa, onde as palmeiras, ainda mais nu* merosas, se enfileiram em uma avenida prodigiosa, a um passo do gradil que termina e fecha uma mela estreita de casas com muros decrépitos...

Patience, patience Patience dans l'azur! Chaque atom e de silence Est la chance d'un fruit m ür!...

Paciência, paciência Paciência no azul Cada átomo de silêncio É o acaso de um fruto maduro...

Pois bem, Valéry, sempre lúcido, conta que escreveu este poema espon­ taneamente, como que para descansar, em recompensa pelas longas horas de continuada aplicação exigidas por seu longo poema La Jeu n e Parque (A Jovem Parca). Descanso dominical após seis dias de labuta... Compreendí então como o século X V III, meu querido século XVIII dos grandes empreendimentos filantrópicos e utilitários, da ciência e da razão, foi também aquele em que se criaram os jardins botânicos. Em outras palavras: como o século racionalista por excelência pôde também ser o século barroco por definição. Compreendi que, a exemplo do poeta, esse século, quando cansado de com­ por sua Jeune Parque , permitia-se a distração de uma Palme como prenda. Os iardins botânicos representam o domingo de um século exaurido por seis dias de trabalho: ma­ nufaturas, arsenais, fortalezas, pontes, academias, salinas... Pombal, por exemplo, tendo traçado os planos de todo um bairro para a Lisboa destruída pelo terremoto, ou tendo aprovado a regulamentação para a Fábrica de Pólvora, ia plantar um cinamomo ou uma palmeira. E na manhã radiosa sentava-se simplesmente ao pé de uma de suas árvores já crescidas, tal como ia ouvir uma ópera italiana na noite cheia de intrigas. Ele se sentia como eu, diarista do tabalho intelectual, me sinto neste instan­ te: dominicalmente tomado pelo barroco.

Le Paradis Perdu. (Du Baroçue, Editora Gallimard, Paris, 1968.)


Bergl Pintura em trompe-ioeil Palรกcio de Schoenbrunn


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Eminente pensador catalão, fundador do movimento “Noucentista , ocupou, desde muito cedo, postos de importância na direção da Instrução Pública da Mancotnunitat da Catalunia. Em 1919, mudou-se para Madri e passou a escrever em castelhano. Durante a guerra civil optou pelos nacionalistas, ao contrário da maioria dos intelectuais espanhóis. Depois da guerra dedicou-se ã recuperação dos quadros do Museu cio Prado, que estavam depositados em Genebra, e criou a Academia Breve de Critica de Arte e os Salões dos Onze, reconhecidamente os únicos redutos de atividade artistica inteligente e criativa na Espanha do pós-guerra. Publicou vários livros, entre eles, Lo Barroco, Tres Horas nel Museo dei Prado, Cupola e Monarquia, Im Bien Plantada e um glos­ sário em 30 volumes.


O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pon­ tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nivel de pós-graduação latu-sensu, foi formado há cinco anos. O curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileiras apreendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e a pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar. Coordenador Acadêmico: Carlos Zilio Professores: Berenice Cavalcante Eduardo Jardim de Moraes Fernando Cocchiarale Jorge Czajkowski Katia Muricy Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira Ricardo Benzaquem de Araújo Ronaldo Brito Washington Dias Lessa


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