Revista Gávea - 6ª Edição

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GÁVEA Revista de História da Arte e Arquitetura

GLORIA FKRREIRA

Abordagem Crítica da Escultura de Amílcar de Castro MARIAE RC A S T R O M A G A L H Ã E S M A R Q U E S A U D

Goeldi e a Cena U rbana M oderna VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA

Lasar Segall: A Doçura do Conhecimento Solidário RICARDO BASBAUM

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Pintura dos Anos 8 0 : Algumas Observações MARIA ANGÉLICA DA SILVA

De Wright a Pollock

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LUIZ ESPERLLAGAS GIMENEZ

Gaudi — Sistemas Conceituais Marginais YVE-ALAIN BOIS

Historização ou Intenção: O Retorno de um Velho Debate HANS-GEORG GADAMER

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A Imagem Emudecida CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE E ARQUITETURA NO BRASIL DA PUC RJ

Breves Relatórios


GÁVEA Editor Responsável: Carlos Zilio Editor Adjunto: Margareth da Silva Pereira Editor Assistente: Vanda Mangia Klabin Conselho Editorial: Carlos Zilio Eduardo Jardim de Moraes Jorge Czajkowski Katia Muricy Margarida de Souza Neves Margareth da Silva Pereira Maria Cristina Burlamaqui Reynaldo Roelsjúnior Ricardo Benzaquem de Araújo Ronaldo Brito Vanda Mangia Klabin Correspondência: Editor Responsável, revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 CEP 22453, Rio de Janeiro, Brasil

Produção: Revisão tipográfica: Claudia Maria Brum Arruda Programação visual: Printz Design íotocomposição: Estúdio VM — Composições Gráficas Arte final: Cláudia Mendes Fotolitos e impressão: Imprinta


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6 Revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Departamento de História Coordenação de Cursos de Extensão Dezembro 1988

2 GLÓRIA FERREIRA Abordagem Crítica da Escultura de Amílcar de Castro 12 MARIA EDUARDA CASTRO MAGALHÃES MARQUES Goeldi e a Cena Urbana Moderna 24 VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA Lasar Segall: A Doçura do Conhecimento Solidário 38 RICARDO BASBAUM Pintura dos Anos 80: Algumas Observações 58 MARIA ANGÉLICA DA SILVA De Wright a Pollock 72 LUIZ ESPERLLAGAS GIMENEZ Gaudi — Sistemas Conceituais Marginais 106 YVE-ALAIN BOIS Historização ou Intenção: O Retorno de um Velho Debate 123 HANS-GEORG GADAMER A Imagem Emudecida 135 CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE E ARQUITETURA NO BRASIL DA PUC RJ Breves Relatórios


Itmt: Kômulo Fiuldmi

Amílcar de Castro. S/título, 1979. Ferro, diâmetro 3,80 m. Coleção Caixa Econômica de Minas Gerais.


GLÓRIA FERREIRA

O Perfil da Linha — Abordagem Crítica da Escultura de Amílcar de Castro

Ao longo dos últimos trinta anos Amílcar de Castro tem mantido uma coerência de linguagem, perseguindo a partir do plano o surgimento da terceira di­ mensão. O corte e a dobra em placas de ferro têm sido suas ferramentas no esforço de domar a superfície em busca do momento no qual o espaço se integra, criando o não previsto, como ele diz. Seu trabalho tem o espaço como essência mesma da linguagem escultórica, dialogando com as rupturas e contribuições da arte construtiva. Como toda uma geração do pós-guerra, Amílcar sofre o impacto do no­ vo meio de arte, espccialmente da Bienal de São Paulo, que em 51 conta com a presen­ ça marcante de Max Bill — influência decisiva na arte brasileira dos anos 50. E por in­ termédio deste ex-aluno da Bauhaus que Amílcar entrará em contato com a arte cons­ trutiva, através da arte concreta. Apesar de abraçar a nova linguagem abstrata e geomé­ trica e de participar das exposições de arte concreta, Amílcar jamais abdicará do poder expressivo da arte. Ele foi um dos participantes do Neoconcretismo, movimento que vai con­ tra a exacerbação racionalista dos concretos c que tem como proposição tornar expressi­ vo este vocabulário. Os artistas concretos (cspecialmente Max Bill) legam como contribuição para a linguagem tridimensional, seus interesses nas novas relações espácio-temporais, como as superfícies sem fim (formas derivadas da Fita de moebius) que se situam num limite entre o volume e sua ausência, o contínuo e o descontínuo, o finito e o infinito, e as múltiplas direções do espaço, aliado a uma extrema simplicidade. Seus primeiros trabalhos com chapas de ferro, ainda utilizando a solda, eram a expressão de uma poderosa estruturação que comandava os ritmos e permitia que corte e torção provocassem um dinamismo espacial. A descoberta da dobra possibilitou-lhe a pesquisa de uma linguagem que fosse ao mesmo tempo uma pesqui­ sa da própria escultura. Corte c dobra, desse diálogo se nutre a poética de Amílcar, e cria sua situação perccptiva, cm mínimos termos, direto. O corte guarda reminiscência do lápis duro sulcando o papel, a dobra o gesto dramático, mas não trágico, que permite a con­ tenção do que está na eminência de explosão, como diz Ferreira Gullar. O que não é “Zero nem chega a Um”, situação de suspensão do tempo. Essa sua busca da origem da escultura no seu primeiro momento nos remete à supremacia da sensibilidade, afir­ mada por Malevich, ao seu quadrado branco sobre fundo branco, ao deserto onde a única coisa reconhecível é a afirmação da criação do espaço intuitivo, da expressão. Cujo


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embate não se dá apenas em relação à representação, às aparências exteriores da nature­ za, como também à arte formalizada, segundo o modelo objetivo de mensagem estéti­ ca. A fidelidade à tradição construtiva em Amílcar vem acompanhada de uma releitura desta tradição, realizada pelo movimento neoconcrcto, c tendo como mé­ todo a interrogação sobre o fundam ento da arte. Amílcar é categórico ao afirmar que suas referências e influências se de­ ram e se dão pela ordem visual, sem jamais ter-se proposto a seguir uma teoria de arte. base, inclusive, da sua discordância com a formalização da arte pelos concretistas. Por isso tudo, não é de admirar que continue no mesmo campo de interrogações, estando a sua escultura próxima do fundam ento da escultura, no seu momento originário, ins­ tante pré-humano, nascente. Pela orientação do corte e dobra a que subm ete a placa de ferro, Amílcar consegue imprimir ritmos imprevistos que dão dinam ismo e espacialização ao seu tra­ balho, a partir de um vocabulário reduzido e de uma simplicidade exemplar. E a ordem organizando o caos, na mais pura liberdade. São torções, levantamentos de partes da placa, tensão e distenção da superfície, “...esse movimento que jamais se atualiza, ja­ mais se perde e, detido, converge para o interior da própria forma, para o interior de si mesma e nos leva consigo para a intim idade da obra’’1, diz Ferreira Gullar. A dimensão planar presente em seu trabalho, evidentemente, guarda re­ lação com o cubismo e a radicalização que lhe é im prim ida por Mondrian. Seu interesse primeiro pelo elemento planar vem da relação com o desenho aprendido com Guignard, do desejo de ver o que havia além do papel, porque a linha, feita com o lápis duro, levava a esse embate com a superfície. As grandes superfícies presentes em sua escultura vêm de Maillol, influência maior quando fazia esculturas sob a orientação de Weissmann na Escola do Parque. E criar a terceira dim ensão a partir do plano era uma maneira de destruir o volume. Q uanto à dobra, ela cria uma tensão que é o diálogo entre os planos, e é esse diálogo que dá a força estruturadora à escultura, a qual, então, oferece-se como totalidade, desprovida de base ou qualquer alusão figurativa, com vá­ rios pontos de apoio. Seu trabalho se apóia no desenho, como maneira de pensar plasticamente e descobrir as possibilidades do plano. “Como é que a gente idealiza uma for­ ma? Pelo seu perfil, que é o próprio desenho. Por isso é que eu desenho antes da escul­ tura , diz o artista. Embora seus desenhos com trincha e nanquim tenham qualidades próprias. Já seu desenho para escultura é feito a lápis, a linha conduzindo à pesquisa das relações espaciais. A passagem para a abstração, ainda em Belo Horizonte, se dá em traba­ lhos feitos com barbante e gesso. Amílcar criava desenhos espaciais com os barbantes e tabuleiros de gesso. Depois realiza trabalhos com arames dobrados, também espa­ ciais. A primeira escultura com clara influência de Max Bill data de 52 e participou da II Bienal: inauguraram-se então o corte e a dobra em seu trabalho, presentes até hoje, sempre em processo de depuração, deixando de lado os “esbanjamentos”.


Amílcar de Castro, s/título, 1952. Aço inoxidável jateado, altura 80 cm. Coleção do artista.

Alheio à voracidade do meio de arte, Amílcar arrisca tudo no seu traba­ lho, recomeçando sempre a partir da mesma questão: o fundamento da arte, a origem da escultura. O momento em que o espaço se integra e cria o não previsto. “A dobra faz o espaço físico, de fora, participar da escultura, na medida em que valoriza a escul­ tura como um todo, no seu aspecto sensível. E o momento exato em que o ser físico se faz escultura. Quando a matéria se une ao espaço é força, mistério. O espaço e a su­ perfície, como um todo, fazem a escultura, é nesse sentido que a dobra é uma desco­ berta” (depoimento). A interrogação sobre o momento em que a matéria se une ao espaço, sobre o mistério contido na origem da escultura, faz-nos lembrar Miguelângelo, para quem se tratava de retirar, de despertar a forma que estava na matéria — no bloco de mármore — onde a figura não está livre, mas sujeita a uma lei, em parte religiosa, em parte sujeita ao ideal de perfeição.


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Supremacia do corte Nas esculturas recentes de Amílcar, apenas o corte separa c é linha de junção. O ferro não é domado, é enfrentado, um outro cálculo se opera e o desenho, que lhe dá origem, já não guarda a presença do gesto: torna-se uma decisão, quase uma planta frontal de construção. A minimalidade de seu vocabulário é acentuada, nenhuma sobra, total despojamento até mesmo daquilo que poderia conter, nas esculturas de corte e dobra, como resquícios das ondulações e volutas barrocas. O vazio indica a operação de desbaste realizada nas espessas chapas de ferro. Cheio e vazio não se dão simplesmente como oposição, mas como interação, pois se o cheio é a presença da matéria, o vazio está pleno de energia. A estrutura da organi­ zação espacial se dá pelos deslocamentos, ângulos acentuados, o espaço ativado em to­ das as direções. A expressão poética, com uma certa exaltação lírica, é conduzida, uma vez mais, pela linha que indica o corte. Sc, no desenho com lápis duro, mesmo a passa­ gem da borracha não apaga o sulco, aqui, ganha a força de um desenho espacial feito a “prego” (como diz Amílcar referindo-se ao ensino de Guignard). Só que é o pantógrafo eletrônico, que realiza a metáfora do prego. Nessas peças, Amílcar chega ao limite da potcncialização do plano, um limite da dimensão planar inaugurado com a Guitarre de Picasso, numa linguagem co­ movente, mais musical que seus trabalhos anteriores. Abrir uma fenda na chapa ou blo­ co de ferro, para Amílcar, é chegar ao limite, “às conseqüências mais extremas” de enfrentamento do problema do espaço na linguagem escultórica. Foram em madeiras suas primeiras pesquisas, mas demonstraram-se de­ masiado leves, o que leva Amílcar outra vez ao ferro, à pesquisa com chapas de espessu­ ras maiores, de duas a três polegadas, que oferecem o suporte necessário para cada peça. Suporte anteriormente dado pela dobra. O peso afirma uma presença, um enfrentamento com o sujeito. Idealiza-se uma forma pelo seu perfil, diz Amílcar. Nestas esculturas, o pantógrafo eletrônico segue o perfil da linha delimitando a superfície, dando origem a blocos inteiros ou dezenas de partes destes blocos, que, em contato com a luz solar, adquirem colorações azuis, amarelas, entre outras, muito apreciadas por Amílcar. A con­ cisão desses trabalhos, com sua unidade formal absoluta, reforça um paralelo com o escultor mais admirado por Amílcar, Brancusi. O escultor romeno leva o monolito da escultura clássica ao seu limite de depuração, criando suas formas arquétipas, esgotando a tradição do “esculpir”. E Bran­ cusi não parte da pintura para renovar a forma plástica, mas da própria escultura. Amíl­ car parte da estrutura planar, linha e superfície, chegando com seu grafismo espacial a um esgotamento de dimensão planar da escultura moderna pela depuração e radicalidade com que a estrutura. Amílcar de Castro, s/título, 1983, ferro. Coleção Rubens Breitman.



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Em Brancusi, as últimas versões do Pássaro no espaço, inspirado na Maistra, representa, de certa maneira, o termo último da sua evolução e a realização da sua meta: libera a escultura de ser um “episódio” no espaço, até então restrita a uma gestualidade espacial (Argan). Os pássaros são desprovidos de peso, de espessura e quase de presença concreta. Por sua vez, em Amílcar, o processo de fendas no bloco de ferro praticamente esgota a tradição da escultura construída a partir do plano, transforma o plano na própria escultura, guardando uma inteireza e unidade formal. Estes trabalhos podem , virtualmente, adquirir diversas configurações es­ paciais, dependendo da posição adquirida. Já nos trabalhos onde o corte operou a sepa­ ração dos elementos da escultura, não mais uma fenda, gerou uma nova questão: a in­ terferência necessária de um agente externo na escolha da relação entre as partes. Não caberia o conceito de espectador, pois não se oferecem à manipulação, mas a uma deci­ são do sujeito, da configuração que o trabalho adquire. Guardam uma relação com os “ bichos” de Lygia Clark, apesar de opera­ rem outras questões e da negação de Amílcar a qualquer desejo de relação com o espec­ tador como manipulador da obra, ou de anulação da relação entre sujeito e objeto. (De igual maneira, podemos dizer que os “ bichos” guardam uma relação evidente com os trabalhos de Amílcar de 57/58, que através de cortes e soldas — torções — adquirem inumeráveis posições espaciais.) Nos trabalhos realizados nos Estados Unidos, Amílcar tomou por base um “chaveiro” cm que placas de aço inoxidável são articuladas por um aro (todos os elementos são figuras geométricas) c resultam de uma vontade de “enfrentar o espaço cósmico, tridimensional”. Aqui tam bém se faz necessária a interferência do agente ex­ terno, e, curiosamente, Amílcar, que tanto nega a participação do espectador como al­ go que não “renova o acontecimento”, precisou estar fora do seu meio para experimen­ tar uma obra aberta. Isto nos leva a questionar as diferentes abordagens das questões espácio-temporais das tendências construtivas no Brasil. Os concretistas operam uma noção de tempo como movimento mecâni­ co, numa clara ruptura com a tradicional concepção do tem po como resíduo do pensa­ mento metafísico, em que a arte ocorrería numa virtualidade espácio-temporal. Os neoconcretistas proporão a idéia de tem po como duração e virtualidade, “um espaço-tempo orgânico, não objetivo, que se dá na percepção fenomenológica” 2. E a poesia neoconcreta tem como substância o próprio tempo da vivência poética. Mas um tempo co­ mo duração, um momento de suspensão, que leva à participação do outro. O especta­ dor é transformado em participador da obra de arte, é só através da ação deste que ela se realiza. Amílcar trabalha com a noção de tempo como virtualidade, mais próxi­ ma ao tempo interior imóvel, predeterminado, em que estão dadas as condições es­ senciais de existência da arte. O tem po como a descoberta de um convívio geral da obra com o espectador. O tempo é o espaço pelo avesso”, diz Amílcar. Ou, em sua forma


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poética, “O tempo não tem quantidade/qualidade/é sempre eternidade/... Só existe um tempo/o único/o principal/o que está passando agora/e chora/e não pára/mas tosse na posse/e sangra”. Seus trabalhos, assim como a escultura de Brancusi, se entregam sem re­ serva, na sua instantaneidade. Daí o desejo de uma totalidade estruturada, de um siste­ ma de relações articuladas na sua própria ordem intrínseca, subjetiva. Constitui uma leitura mais dramática na busca da essência, de uma unidade poética, na qual pensa­ mento e forma sejam inseparáveis. Assim, a meu ver, Amílcar pode ser considerado o mais “clássico” dos neoconcrctistas, entendendo-se esta “classicidade” pelo conceito hegeliano de unifica­ ção completa do conteúdo ideal com a forma sensível, de equilíbrio, concisão e harmo­ nia.

Intervalo de Zero a Um — momento limite Quando Amílcar utiliza a noção de intervalo, contido entre Zero e Um, como num momento limite em que se dá o nascimento da terceira dimensão e o espaço se integra, ele nos coloca a necessidade de investigar os conceitos de limite, entre os quais as relações com o pensamento matemático e as concepções de tempo e espaço daí decorrentes. Sem sombra de dúvida, seu trabalho não se relaciona com o pensamento matemático, embora possamos detectar, em algumas obras, raciocínios cm que o pen­ samento matemático esteve presente, ainda que de forma não determinante, como, por exemplo, nos seus trabalhos novaiorquinos (tratamento das superfícies geométricas e suas relações; peças de barras de alumínio de 57, a escultura de latão de 53, esculturas de ferro do final de 50 c outros). “O que busco é a contenção do movimento, que não vá a Zero nem che­ gue a Um. Este é um momento de alta tensão. Momento do milagre talvez, força deli­ berada no primeiro momento. Força fabulosa.” Amílcar tem reafirmado em várias oportunidades que seu trabalho é uma busca da essência da própria escultura, a redução ao fundamento, a substância mesmo do ser tridimensional, por isso a importância deste limite, situado no intervalo de Um a Zero. Como limite podemos apoiar-nos nas formulações aristotélicas, em que o limite é o último termo de uma coisa. Ou a substância ou essência substancial de uma coisa, porque isso é o limite do conhecimento e por isso também da própria coisa. Ou, ainda, numa suposição para efeito de análise, de que este intervalo de Zero a Um possa ser pensado em termos da matemática moderna, que se refere a uma situação limite, particular de relação espaço/tempo na qual o espaço é determinado pelo tem­ po.


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Caráter ontológico da pesquisa Dizer que Amílcar se liga aos fundadores da modernidade, sendo um artista moderno, seria, sem sombra de dúvida, um mero sofisma. No entanto, a meu ver, o que define o caráter da pesquisa de Amílcar de Castro 6 sua ligação aos fundado­ res da modernidade, Cézanne, Matisse, Mondrian, Brancusi, Malevitch, e, indo mais longe, Miguelângelo. Este, o legado de Guignard, que os conhecia com muita sabedo­ ria; e ao insistir no desenho, no em bate da linha na superfície branca como lugar de pensamento do artista plástico, é a Matisse que se reporta. A estruturação da natureza plástica é apreendida na genialidade de Cé­ zanne. A dimensão da cor, relacionai... “O que conta mais na cor são as relações”, diz Matisse. Esse desejo de chegar ao cerne, ao “deserto” estrito do sensível. Todos esses artistas marcam uma profunda cisão com o século passado, com a cor local, com a pro­ fundidade perspectiva, com o monolito, com a figuração, inaugurando a modernidade. Sem dúvida, a contribuição desses artistas se faz presente em toda a geração de Amíl­ car, e sua particularidade, a meu ver, é desligar-se das questões dos que lhes estão mais próximos, numa volta às origens mesmas da escultura moderna, numa total recusa em absorver o “cinismo inteligente” da arte contemporânea (Ronaldo Brito). Manteve-se, inclusive, o mais “protegido” possível do meio de arte. Só aos 60 anos Amílcar de Cas­ tro teve a sua primeira exposição individual no Brasil. Amílcar dedica sua vida a uma pesquisa, chegar a um momento de sín­ tese, tendo como elementos deste desafio, linha, plano e superfície. Não se coloca como tarefa a ruptura, mas a afirmação. Nisso, uma vez mais, ele se aproxima de Miguclângelo, que tampouco teve como tarefa uma cisão, mas a excelência. O renascimento já apor­ tara um novo conhecimento, ainda não como modelo, e vivia um momento de plenitu­ de. A surpresa no trabalho de Amílcar de Castro é o seu vigor, sua potência como visualidade, como conhecimento que a arte aporta ao m undo e dele se nutre. Do neoconcretismo vem a busca do fundamento, do contato com a fenomenologia e o resgate da dignidade ontológica do sensível, a percepção como questão central e a possibilidade de revisão, para compreender com inteligibilidade cada mo­ mento plástico e filosófico que encerrava este acervo. Em seus textos-poemas-filosofias, entrega-nos um caminho para a desco­ berta da sua ordem visual. Como conhecimento e em comunhão com o universal, com o mundo, parte do cosmo, onde não têm lugar as dicotomias do pensamento ocidental que Merleau-Ponty nos ensinou, a abolir o “malgrado e a conviver com o “graças a”. E, como os grandes mestres orientais, Amílcar nos comove com os rios, as montanhas, o mar, o horizonte. Quando nos diz que a escultura conhece o movimento das ondas do mar, mas desconhece a calmaria da praia, leva-nos ao TAO TE KING de LAO-TSE, e espe­ cialmente a um dos seus aforismas, escritos há 2.600 anos na China, Os Paradoxos da


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Verdade: “Quem possui verdadeira plenitude/ É inesgotável,/ Por mais que se esgote”. A recorrência a Lao-Tse não é tão gratuita, quando, no texto “A Linha”, Amílcar nos comove com o velho mestre de arco e flecha, zcn budista japonês, que só acertava no alvo quando sentia o arco se transformar em eixo entre o céu e a terra. Na sua busca de essência, de limite onde o fato escultórico se constitui, seu trabalho adquire uma inequívoca dassicidade, de unidade poética, de estruturação do todo. Sua escultura recente o leva a um esgotamento do plano, quando apenas a fenda numa placa de ferro lhe dá uma dimensão escultórica plena. Neste esforço de concisão se coloca um paralelo a Brancusi, quando transforma o monolito em uma enti­ dade quase etérea. A escultura, como pesquisa da própria escultura, confere ao trabalho de Amílcar um sentido ontológico, do ser escultórico enquanto ser, na busca de uma natu­ reza comum, inerente a todos e cada uma das formas tridimensionais. Sua opção pela dimensão plana liga-o à questão primeira da modernidade, sem a ela restringir-se. Suas esculturas exigem um olhar, uma percepção de toda a escultura. Por ser única, engloba e digere todas as referências, mas a nenhuma se atém. “Ao incendiar de vigor as chapas e blocos de ferro com que trabalha, atin­ ge. ao mesmo tempo, resultado plástico, poético e filosófico. O que Amílcar procura é a verdade que pulsa no coração do mundo”3. 1. Gullar, Ferreira. “Arte Ncoconcreta, uma contribuição brasileira”. Revista Crítica dc Arte, n° 1, RJ, 1962 — reeditado in Projeto Construtivo Brasileiro, op. 2. Brito, Ronaldo. Neoconcretismo, Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Bra­ sileiro. 'lemas e Debates, 4. Ed. FUNARTE/Instituto Nacional de Artes Plásti­ cas, RJ, 1985, p. 69. 3. Pcllegrino, Hclio. “Todas as coisas voam”, in jornal do Brasil, 06.05.87. Agradecimentos a Marisa Callage

MARIA DA GLÓRIA ARAÚJO FERREIRA é graduada em Sociologia pela Uni­ versidade dc Paris I, Sorbonne; formada pelo Curso de Especialização em Histó­ ria da Arte e Arquitetura no Brasil, PUC/RJ.



MARIA EDUARDA CASTRO MAGALHÃES MARQUES

Goeldi e a Cena Urbana Moderna: Solidão e Melancolia

Ao querer analisar a obra de Oswaldo Goeldi, uma evidência se impõe: a recorrência das imagens da cidade. Nos seus desenhos e nas suas gravuras estão plas­ madas a vertigem e a comoção do artista pelo universo urbano. Há em Goeldi uma com­ pulsão incontida de fixar a imagem da urbis, de traduzir em linguagem plástica toda a poesia das esquinas, ruas e becos da cidade. Conhecer Goeldi é compreender a di­ mensão do seu olhar da cidade, já que seu universo estético e poético encontra-se intrinsecamente relacionado à experiência da vida urbana. A cidade emerge na obra goeldiana como cerne de sua poética, como matéria espiritual de sua lírica. A cidade do Rio de Janeiro foi para Goeldi fonte de inspiração e de poesia. O Rio teve em Goeldi o seu artista maior. No seu papel a cidade desponta since­ ra e verdadeira, livre do vezo narcisista de louvor aos seus decantados aspectos pitores­ cos. Goeldi gravou um Rio arcaico e moderno, repleto de luzes e de sombras. Sua arte conseguiu dissolver o estigma do “exotismo folclórico” carioca que Mário de Andrade opunha ao cosmopolitismo moderno paulista. No silêncio e no anonimato, Goeldi sou­ be colher nas paisagens remotas do Rio de Janeiro os elementos do esfacelamento, da solidão e da incomunicabilidade do homem moderno. Sem, contudo, resvalar no agenciamento dos signos da cidade moderna, Goeldi chega à evidência e à irredutibilidade da arte planar. A visão da cidade que a obra de Goeldi enseja, comunica da sensibilida­ de das vanguardas modernas no início do século, notadamente dos seus pares da mo­ dernidade germânica. Símbolo de expressão dos tempos modernos, a cidade exerceu uma fun­ ção de importância capital na formação da estética moderna. A experiência de viver nu­ ma grande cidade exigiu uma nova linguagem, uma nova rítmica, uma nova poética. A modernização progressiva dos grandes centros urbanos inspirou e provocou a moder­ nização dos valores estéticos. Desde o século XIX, quando se intensificou o “grande espetáculo das ruas”, o cosmopolitismo vem engendrando mudanças no gosto estético. O fenômeno da multidão condicionou uma nova forma de olhar, desnaturalizou o olho. O ideal clássico que se baseava na compreensão e no domínio da natureza não resistiu ao novo e conturbado ambiente das cidades da era industrial. Na modernidade, a natu­ reza contínua e infinita cede lugar ao cotidiano finito e histórico. Walter Benjamin vincula a formação da estética moderna à experiência de choque que provoca uma quebra na lírica da tradição. O choque que caracteriza a experiência moderna se dá em meio à multidão. O estado de choque instaura uma nova “durée” oriunda de uma memória involuntária. Aquele determinado instante, aquele


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fragmento da experiência do “e u ” do artista constitui a vivência do sujeito moderno. Este já não tem mais uma experiência compartilhada (Erfahrung), tem apenas a vivên­ cia do que é coletivo (Erlebuis). A nova lírica que as vanguardas do início do século instauraram incorpora a experiência de choque para a produção artística. A vanguarda expressionista reagiu à barbárie moderna questionando o isolamento do indivíduo privado no mundo. O Expressionismo evoca um mundo es­ sencialmente trágico, onde só a Arte pode assumir função redentora. A estética expres­ sionista procura converter em beleza as imagens das ruínas do m undo moderno, irreversivelmente empobrecido pela perda da tradição. Como os românticos, os expressionistas estavam voltados para a crise essencial do homem, para a possibilidade de sobrevi­ vência do “eu” substancial no contexto do mundo moderno. A estética expressionista nutria-se do em bate do “eu ” do artista com a realidade, a sua experiência no m undo era a fonte de criação. Para o artista expressionis­ ta a construção do real independia de qualquer experiência prévia acumulada. Quando a cidade surge no papel ou na tela expressionista ela não é o resultado de uma apreen­ são sensitiva do real, nem a reprodução naturalista do mundo. Ela configura uma reali­ dade transcendente, imaginativa, reflexo das tensões do “e u ” do artista diante da frag­ mentação do mundo moderno. De posse da terminologia benjaminiana, pode-se dizer que a estética expressionista carrega um forte sentimento nostálgico face à perda da ex­ periência da tradição. O nosso Goeldi parece partilhar deste clima de estranhamento próprio do “pathos" expressionista. A paisagem citadina goeldiana exala o limite da fragmentação, da melancolia e da incomunicabilidade do homem moderno. A identificação im ediata de Goeldi com o “ pathos” expressionista no que tange à visão da cidade é, contudo, problemática. A espiritualidade visionária do Expressionismo encontra-se em Goeldi reduzida à concretude dos objetos submetidos ao jogo fantasmagórico das linhas c das explosões de luz. Há no nosso artista um certo panteísmo, uma nítida convicção de que o m undo físico é real. As coisas mais elemen­ tares e prosaicas tais como um poste, uma lata de lixo ou um cão vagabundo assumem de súbito uma presença assustadoramente irredutível. A tendência projetiva do “eu” expressionista reduz-se diante de sua disponibilidade às coisas do mundo. O clima de irrealidade que as suas imagens da cidade destilam, se distinguem das imagens espec­ trais carregadas de sonho e de imaginação dos primeiros expressionistas. A abstração, a deformação e a estilização dos artistas alemães não congregam as características for­ mais da Arte de Goeldi, cujo figurativismo atinge extrema redução. Há em Goeldi uma radicalidade plástica poucas vezes alcançada por outros artistas expressionistas. Se Kirchncr era seduzido pela poesia fantástica da cidade, pela estranhe­ za dos tipos, pela dança das silhuetas e pela m onum entalidade da arquitetura da cida­ de moderna, Goeldi posto à sombra — foi o poeta da solidão e do silêncio. O sôfre­ go caminhar da gente pelas ruas, o mundanismo dos bares, dos cafés e do circo — vi­ sões que tanto fascínio suscitaram em Kirchner, estas não fazem parte do imaginário citadino goeldiano. A sua poética não se nutre do choque da multidão das ruas da grande


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metrópole. Na verdade, a cidade de Goeldi não apresentava uma feição moderna. No seu papel despontam imagens de um mundo urbano perdido, carregado de “exílio e memória”, como no dizer de Drummond. Não bastando o exílio voluntário dos centros europeus, Goeldi buscava os longíquos recantos da cidade. Por ocasião de seu regresso definitivo, o Rio de Janeiro já era uma capital de hábitos cosmopolitas. Goeldi, porém, não se deixou encantar pe­ las imagens do “progresso” da “ belle époque” carioca, nem buscou fixar-se em São Paulo, onde já se ensaiara algumas manifestações modernistas. Ele preferiu o Rio subur­ bano, o Rio das imagens esquecidas e abandonadas. Em entrevista concedida a Ferreira Gullar, declarou: “...Em 1919 vim para o Brasil com a minha família. A paisagem brasi­ leira me pareceu estranha, era como se nunca houvesse estado aqui. Procurei então me assimilar às formas que com a minha ausência tinham mudado de fisionomia e de ex­ pressão. Desenhei muito para me assenhoriar das formas ambientes, do novo visual que ia ser matéria de minha expressão. O que me interessavam eram os aspectos estranhos do Rio suburbano, do lazer, com postes de luz enterrados até a metade na areia, urubu na rua, móveis na calçada, enfim, coisas que deixariam besta qualquer europeu recém-che­ gado. Depois descobri os pescadores c toda madrugada ia para o mercado ver o desem­ barque do peixe e desenhava sem parar” 1. Desde então, sua arte testemunhou a sedução incontida do artista pelo subúrbio carioca, pela singeleza dos bairros pobres, pelos velhos casarões imperiais car­ comidos pelo tempo e pelo abandono, o avesso das aparências brancas e burguesas, o avesso de Botafogo, de Copacabana e das Laranjeiras. Nas imagens deste mundo rejei­ tado e olvidado, Goeldi concentrou sua força expressiva fixando o noturno, o periférico e o anônimo. A iconografia da cidade goeldiana condensa velhas memórias da cidade de outrora: os becos tortuosos, os lampiões, os sobrados e as palmeiras imperiais. São as reminiscências da cidade tradicional que interessam ao artista. A comoção pelas áreas oblíquas da cidade consagrava a sua vertigem pe­ lo sombrio e pelo marginal. O olhar desertor assumia a forma mais radical da consciên­ cia moderna, na medida em que não buscava extrair dessas visões nenhuma lição ou ensinamento. O traço seco c austero do artista instaurou um mundo ascético e estóico, onde as coisas surgem irredutíveis na disciplina do plano cezanniano. A evidência c a concretudc das imagens suburbanas da cidade não ensejam, contudo, uma visão fide­ digna da realidade comprometida com a narrativa dos episódios da vida cotidiana. Nes­ te sentido, pode-se afirmar que Goeldi não “representa” o subúrbio carioca, na con­ cepção do termo do nosso linguajar corriqueiro, relacionado à idéia de substituição in­ direta. “no lugar de”, “em nome de”. Suas gravuras e seus desenhos fixam pedaços, fragmentos do real que estimulam uma memória, uma recordação. As imagens subur­ banas surgem no papel de Goeldi como expressão do simbólico garantindo a unidade e a insubstituibilidade da obra. A cidade não é para Goeldi um ser empírico. O ambiente urbano que o artista grava perde o nexo com a realidade face à paradoxal afirmação do silêncio, da



Goeldi, ‘Céu Nublado”. Desenho em nanquim e carvão.


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distância e da solidão. Ainda que sua visão da urbis transborde para o papel como algo bastante palpável, ela em nada faz transparecer a realidade aparente. Nela não habitam tipos ou personagens. A sensibilidade austera do artista não se deixou enfeitiçar pelo aspecto alegórico da gente dos trópicos. As figuras hum anas, quando presentes, estão sempre a ocultar suas faces, desprovidas de identidade social. Os seres não apresentam uma qualidade discursiva, eles surgem como um elem ento a mais na paisagem. O sen­ timento profundo do artista apodera-se do real indiscriminadamente, dotando os obje­ tos de uma sensibilidade quase hum ana; as janelas do sobrado parecem nos espreitar, o cão e o gato vagabundos expiram humanidade. Ausência e solidão são os principais protagonistas da cena goeldiana. No desenho “Céu nublado”, o am biente urbano — um reles bar de cal­ çada — perde sua m undanidade face à peremptória ausência de seres, transformando a imagem em algo distante e irreal, fora do tempo e da história. O vazio humano se alterna com a forte presença dos objetos: a mesa, a garrafa, o copo, o guarda-chuva e a cadeira. Solidão e silêncio transpiram desta cena com um , porém insólita. 0 sentido de irrealidade não é apenas determ inado pelo absurdo da situação, mas, principalmen­ te, pelo tratamento concedido ao espaço plástico. A forma como o artista enquadra a cena, superpõe os planos sem perm itir o sentido de distância da perspectiva ilusionista, os horizontes baixos, os espaços barrados e as desproporções dos objetos traduzem o caráter marcadamente moderno do m undo de Goeldi. Nosso artista consegue trazer para a gravura e para o desenho os princí­ pios bidimensionais da estética moderna. Em suas mãos a xilogravura não deixa trans­ parecer os veios da madeira. Nela observa-se o predom ínio das massas formando planos construtivos, como em Munch e em Gauguin. O espaço plástico deixa de ser determi­ nado pela preponderância das linhas, conforme dita a tradição da arte gráfica. Em arti­ go publicado por ocasião de sua morte, Ibcrê Camargo escreveu: “No aspecto formal a sua xilografia corresponde integralm ente ao m undo que expressou. Grandes superfí­ cies planas, raramente coloridas, onde a linha nervosa incisiva e esquemática, quase bár­ bara, cria figuras que pertencem ao seu m undo próprio” 2. A força expressiva de Goeldi está na conquista planar que se aproxima mais do pensamento plástico de Cézanne e de Van Gogh do que dos seus pares expressionistas. Em 1958, por ocasião da exposição de seus trabalhos na galeria GEA, Ferreira Gullar escrevia no Jornal do Brasil: ‘Sem nenhum truque, sem nenhuma concessão, a arte de Goeldi evoluiu sem pressa e sem pausa para um a forma tanto mais rica, quan­ to mais simples, tanto mais sugestiva quanto menos explícita, transformando as figuras num simplificado jogo de sinais, transferindo seu conteúdo alusivo para a realidade gráfica do plano. Goeldi, em seus trabalhos mais recentes, por assim dizer, superou a retórica expressiomsta, sobrepondo a dinâmica visual à intenção subjetiva” *. Rcalmente, o registro e a retórica estão eclipsados na obra de Goeldi. Em vez da tematização explícita do suporte literário há o “agradar desinteressado” que não se volta de modo prático para o que é representado” ou para o que aparece na figura.


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mas para a excelência do comportamento estético. O real sucumbe à força do plano que instaura uma ordem plástica rigorosa e inquietante, onde cada traço, cada incisão têm função estruturante. A realidade plástica se sobrepõe ao conteúdo temático discursivo da cena. A evidência moderna a que Goeldi chega prescinde do suporte literário. As­ sim, as imagens da cidade que vemos surgir com freqüência nos seus desenhos não con­ formam um tema, um assunto. Como ensina Gadamer. “a obra de Arte em sua insubstituíbilidade não é um mero suporte de sentido — de modo que o sentido pudesse também ser acionado a outros suportes. O sentido de uma obra de Arte repousa muito mais no fato de estar-aí”4. A arte de Goeldi contém uma verdade, uma “solidez” que independe do seu conteúdo alusivo. Aquilo que vem à representação prescinde de conotações. Neste aspecto, a obra goeldiana se distingue do Expressionismo da “Nova objetividade” que marcou a arte berlinense dos anos 20 pelo seu apego à temática social e política. Menos imbuída do élan inicial pelo irracional, o visionário, o onírico, a “Neue Sachlichkeit” propõe um retorno ao banal, ao convencional. Houve a necessidade de mostrar a reali­ dade, as entranhas da sociedade alemã de então, dilacerada por uma crise sem prece­ dentes. A premência dos conflitos sociais estimulou a retomada do estilo figurativo de onde emergiu um certo “Realismo urbano”. As características principais desta arte fo­ ram o imobilismo, a calma hierática e a representação minuciosa dos detalhes, nos limi­ tes da caricatura. A exemplo de Kaethe Kollwitz e de Hans Baluschek, que aderiram ao Realismo inspirados na miséria das famílias proletárias, outros artistas também o segui­ ram. Foi, contudo, na figura de George Grosz que o dito “Realismo urbano” teve a sua expressão mais acabada. Acrescentando ao Realismo pictórico as novas tendências dadaístas, a arte de Grosz emite uma pulsação singular. Berlim foi para ele objeto de amor, angústias e rancores. Nas suas telas e nos seus desenhos estão estampadas as con­ tradições do luxo insolente da burguesia e a pobreza sórdida do submundo berlinense. Para esses artistas imersos no caos social, a cidade emergiu como o gran­ de “tema”, a grande “questão”. Goeldi parece ter caminhado na contramão desta ten­ dência. Ele não esteve exatamente atento ao desenrolar diário da vida suburbana cario­ ca. O retrato desta realidade encontra-se melhor estampado nas páginas dos romances de Lima Barreto, que conta de maneira minuciosa e comovente a história e o sofrimento da gente humilde carioca. A visão trágica que Goeldi tinha do mundo cercava-se, po­ rém, da paisagem pobre e da gente humilde da cidade: os pescadores, os bêbados e as prostitutas anônimas do mangue. Goeldi soube extrair de sua madeira toda melan­ colia, todo abandono da vida suburbana carioca sem resvalar no papel o populista. Ele gravou o fragmento da paisagem urbana, na medida do seu “eu” isolado e disperso. Suas imagens da periferia carioca não guardam nada em comum com as imagens denunciatórias dos bairros proletários dos artistas berlinenses. Mas talvez nelas estejam contidos, mais do que em quaisquer outras imagens da cidade, a verdadeira essência do social.


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Goeldi “corrigia” o mundo à sua maneira, à maneira do esteta, que nunca declinou ao apelo de fazer uma arte de conteúdo explicitamente de crítica social. Seu pensamento a respeito da arte se resume nessas suas palavras: “ Na nossa maneira de pensar é falsa e errônea a idéia entre nós difundida que a Arte Moderna significa Arte Social. Arte, seja qual for o nome que lhe dêem, é pura e simplesmente Arte, e nada tem a ver com os assuntos que não lhe dizem respeito” '’ . A recusa de Goeldi de fazer uma arte social destacava-se tanto da tradi­ ção do último Expressionismo berlinense, quanto da tendência predominante na se­ gunda fase do Modernismo brasileiro, que padeceu de um surto realista unindo o na­ cionalismo à crítica social. Sob a influencia do Expressionismo berlinense, a iconografia baseada em temas sócio-políticos invadiu as telas dos nossos artistas. A exposição de Kaethe Kollwitz no CAM (Clube de Arte Moderna), seguida de um debate sobre as “tendências sociais da arte”, mobilizou grande parte da intelectualidade carioca. A exem­ plo de Portinari, cuja obra teve como temática constante o trabalho e a pobreza, Di Cavalcanti deixou-se entusiasmar pelo Expressionismo, particularmente o de Grosz. Sempre fiel a si mesmo e à sua arte, Goeldi manteve-se distante desta tendência. Suas imagens da cidade não se relacionam à idéia de trabalho no sentido moderno da técnica. Em meio ao óleo e à vagabundagem predominante insurgem ape­ nas formas artesanais de subsistência, ainda não contaminadas pela racionalização capi­ talista. Não há em Goeldi nenhum a mensagem moralizante de louvor ao trabalho ou de redenção da pobreza. Seu m undo é o dos párias que ainda carregam alguma densi­ dade humana. A série de gravuras dos pescadores consagra sua inclinação pelas ativida­ des baseadas na “experiência”, não destruída pela barbárie moderna. A aparência bu­ cólica dessas imagens não conforma um mundo arcaico, pré-industrial. Elas traduzem o avesso, o revés do mundo moderno onde sobrevivem a essência humana e a natureza no vigor de uma “ventania”, de um “céu nublado” ou de uma “chuva sem parar”. Goeldi revela o lado obscuro da capital, o Rio autêntico, o Rio suburba­ no, o Rio brasileiro. No entanto, não há nessas imagens nenhum vestígio de ufanismo nacionalista. Goeldi não buscou “ representar” o que é tipicamente nacional da nossa paisagem. A preocupação que tivera Tarsila de associar as marcas da brasilidade não se encontra em Goeldi. Se são tão cariocas as suas paisagens urbanas, não o são com o intuito de uma arte calcada na temática nacionalista. No entanto, a vida dos becos e das esquinas solitárias da terra carioca conformaram o cenário perfeito ao seu desejo de gravar a angústia, a melancolia e o estranhamento do homem no seu próprio m un­ do. Apesar de evitar cautelosamente os arroubos ufanistas do Modernismo, Goeldi enfeitiçou-se pelos encantos da natureza da cidade tropical. A paisagem carioca suscitou no artista as mais profundas emoções. Em 1930, distante da euforia revolucio­ nária, nosso artista buscou “ refúgio" no areai da Praia de Ipanema. Nesta ocasião, o bairro tinha ares suburbanos. Não o “slum do subúrbio carioca, mas o subúrbio das pequenas chácaras, da colônia dos pescadores, das casas avarandadas com oitão e árvores em abundância. Assim ele descreveu o local da nova moradia a Kubin:


Goeldi, “Temporal”, xilogravura.


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“ Eu moro aqui ao lado do mar, na baía mais aiastada do Rio, Praia Ipanema-Leblon. Das poucas casas que de vez em q u ando aparecem neste deserto de areia pode-se ver quase que só telhados. Ventos fortíssimos chegando do mar varrem estes desertos enormes e vazios, uivando e em purrando com força enormes nuvens de areia. Lanternas dependuradas no alto dos postes são jogadas, pra lá e pra cá. rangendo, e os fios da rede elétrica, tensos até arrebentar, fazem um ruído ameaçador — o tilintar dos vidros quebrados aum enta assustadoramente esta barulhaça diabólica. As gaivotas com toda a força de suas asas tão fortes contra estes ventos ferozes de tempestade — apesar do forte bater das asas não conseguem avançar nem um centímetro. Pegas pelo vento, numa evolução lateral, são atiradas como flexas para cima do mar revolto — as pontas das asas quase tocando as espumas das ondas. Um lugar assim, caro Sr. Kubin, certam entc iria lhe agradar. 0 maré tão lindo na luz do sol, tão cristalino que a gente sente o coração mais puro...” Nesta mansarda o nosso Goeldi se resguardou do mundo, das luzes cin­ tilantes da capital. Alheio à voracidade arrasadora dos planos urbanos que tragavam velhos prédios, velhas igrejas, para em seu lugar erguer o horizonte longitudinal da ci­ dade, Goeldi manteve-se no exílio do seu universo suburbano. O Rio de Janeiro vai adquirindo uma feição m oderna, a partir do plano piloto de Le Corbusier. Copacaba­ na, a recém-inaugurada avenida Presidente Vargas, o Cassino da Urca, estes símbolos da nova era getulista não abalaram a sua sensibilidade austera. Goeldi parece espreitar essas transformações a distância. Ele não participa da construção da autoconsciência co­ letiva da cidade que se afirma então como o paraíso dos encantos tropicais. A ‘‘Cidade maravilhosa”, alegre, multicolorida e musical não habita a cena citadina goeldiana. Goeldi cria para si uma nova imagem, um a consciência subjetiva da cidade, que já não mais sincretiza a comunidade ou a autoconsciência forjada por esta. Goeldi, no alto do seu exílio voluntário, esquivou-se da tutela do Estado. Ainda que residente na capital, onde se concentravam as instituições culturais, nosso artista guardou sua independência e criticou o crescente envolvimento dos modernistas com a política de cooptação varguista. Suas visões da cidade, deliberadamente margi­ nais, consagram o seu desejo de manter-se — aristocraticamente — equidistante da me­ diocridade deste m undo vil. Colocando-se à margem , nas sombras dos becos tortuosos, nas esquinas soturnas, Geoldi assume uma atitude desertora desprovida de qualquer heroísmo, de qualquer ím peto triunfalista. Diante do absurdo da vida resta apenas o eu do artista a deshndar o real com desilusão e desencantamento.

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a a rtrreira Liullar, "Jornal do Brasil", Suplemento Domí 7' n: ° swaMo Goeldi; Coordenação Carlos Zilio. Rio de Janci ro, PUC/RJ/Solar G ranjean de Montigny. s /d . p 1 1 1 .

Capí ,. R.

2. Camargo, Iberê. Oswaldo Goeldi. Porto Alegre. Corr./o do Povo. 19/2/61


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3. Gullar, Ferreira. “ Mestre Goeldi se renova na GEA’’. In: jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31/08/1958. Arquivo SPHAN. 4. Gadamer, Hans-Georg. A Atualidade do Belo. Rio de Janeiro, Tempo Brasi­ leiro, 1985, p. 53. 5. Goeldi. Oswaldo. “A Arte Moderna”. Rio de Janeiro, Suplemento Literário de A Manhã, vol. VII, 9/7/1984. Arquivo SPHAN. 6. Carta de Goeldi a Kubin de 16 de agosto de 1930. Arquivo PUC/RJ.

Bibliografia por Ordem Alfabética Argan, Giulio Cario. “El Arte como Expression”. In: El Arte Moderno, tomo I, Valencia, Fernan­ do Torres editor, 1975. Benjamin, Walter. A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. Berlin 1910-1933 Architeture Peinture, Sculpture, Cinéma, Théâtre. Redator-chefe Eberliard Roters. Fribourg, Office du Livre e Paris, edition Vilo, 1982.

Expressionism a Gerrnan Intuition 1903-1920. New York, The Solomon R. Guggenheim Founda­ tion, 1980. Gadamer, Hans Georg. A Atualidade do Belo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985. Hegel, G.W.F. LArt Romantique. Paris, Aubier-Montaigne, 1976. Machado, Anibal. Goeldi. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1955.

Oswaldo Goeldi. Coord. Carlos Zilio, Rio de Janeiro, Solar Granjean de Montigny, PUC/RJ, s/d. Palmier, Jean Michel. LExpressionisme comme Revolte. Paris, Payot, 1983. ____. LExpressionisme et les Arts. Portrait d'une generation. Paris, Payot, 1979. ____ LExpressionisme et les Arts. Peinture, Théâtre, Cinéma. Paris, Payot, 1980. Reis Junior, José Maria dos. Goeldi. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1966.

Viénne 1880-1938 LApocalypse Joyeuse. Direção Jean Clair. Paris, Edition du Centre Pompidou, 1986.

Zilio, Carlos. A Querela do Brasil. Rio de Janeiro, Edição FUNARTE, 1982.

MARIA EDUARDA CASTRO MAGALHÃES MARQUES é graduada em Histó­ ria pela PUC/RJ; formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, e profes­ sora de História da Arte.



VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA

Lasar Segall: A Doçura do Conhecimento Solidário

“sobre a dor bíblica intemporal e a dor contemporânea que podemos pegar de tão doendo até pressentir a doçura do conhecimento solidário ” Carlos Drummond de Andrade. “ Notícia de Segall”. Rio, 26.2.67.

Lasar Segall é um pintor expressionista. Nessa afirmação, em princípio bastante óbvia, reside uma enorme complexidade. A ponto de, após alguns instante de reflexão, ter-se instaurado a dúvida. Vinculada aos princípios estéticos do Expressionismo, sua obra partilha do “ pathos” expressionista, fundado sobre uma relação nova en­ tre o artista e a realidade, o sujeito e o objeto. E, nesse sentido, é verdade que o discurso artístico segalleano apresenta-se como uma das mais sinceras manifestações do Expressionismo no Brasil. Contudo, esse artista judeu da Lituânia, que vai iniciar sua carreira na Alemanha do começo do século, permanece distante do engajamento e torpeza de Kirchner, da grandiloquência de Nolde, do simbolismo de Marc, ou mesmo da abstra­ ção de Kandinsky. Seria, no entanto, fácil e perigoso concluir de imediato pelo seu afas­ tamento com relação ao movimento que o iniciou no fazer artístico. Estaríamos nos detendo apenas em um aspecto da questão. A aproximação de Segall ao Expressionismo, bastante recorrente e tradi­ cional em nossa historiografia, deve ter como condição de possibilidade uma definição mais ampla do Expressionismo, que o tome em sua oposição fundamental ao Impressionismo. Esta definição ampla, elaborada por Giulio Cario Argan, encontra-se igual­ mente nas concepções de Paul Klee. Para ele, enquanto no Impressionismo a gênese da obra reside no instante receptor da impressão da natureza, o Expressionismo invoca como ponto decisivo de origem o momento ulterior, onde a impressão recebida é tra­ duzida e recombinada com outras impressões anteriores. Essa definição é retomada por Argan, que pensa a impressão como um movimento do exterior para o interior (o obje­ to se grava na consciência), e a expressão como movimento inverso, onde é o sujeito que se manifesta no objeto. Assim concebido, o Expressionismo deixa de qualificar ape­ nas a arte germânica das décadas de 10/20, mas todo um movimento europeu que quer superar o ecletismo e o cosmopolitismo moderno, na tentativa de fundar um internacionalismo baseado não mais na crença do progresso universal, mas na superação dialé­ tica das contradições históricas. Os fauves, o grupo “Die Brücke”, bem como a fase ini­ cial da Bauhaus, unificam-se pela sua origem comum anti-impressionista, e por sua con­ cepção da arte como expressão. A obra de Segall e a do arquiteto Gregory Warchavchik no Brasil aproximam-se, também, por essa via.


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Tomada nesse sentido “ lato” de Expressionismo, a arte de Segall ganha uma nova dimensão. Ao rejeitar uma identidade restritiva de sua obra com o movimen­ to específico da modernidade germânica, nega-se, no mesmo golpe, uma visão muito disseminada no Brasil que costuma associar mecanicamente o Expressionismo à arte en­ gajada e, conseqüentemente, qualificar Segall como um pintor social. A riqueza e a cultura da superfície pictórica segalleana submetem-se ao esquema simplista, fácil e ro­ tineiro de determinação de conteúdos políticos em suas obras. Tendo como horizonte sua posição de marginalidade social, eterno emi­ grante russo em terras alemães ou brasileiras, Segall incorpora a dialética expressionista espiritualidade/ação política, fundindo-a à sua origem judaica. Para ele, a abertura pa­ ra a atualidade social e política está estruturalmente vinculada à memória milenar do povo judeu. O olhar iconoclasta deste “pintor de almas” 1, que registra melancolicamente as perdas da modernidade, aproxima-o do m undo marginalizado e humilhado naquilo que este oferece de universalmente comunicável, visando a construção de uma nova relação com o passado, de um novo sentido, que atenda as urgentes demandas do presente. À função de força revolucionária permanente da arte expressionista, Se­ gall une a rebeldia crítica judaica. Segundo Celso Lafer, como consequência da inserção dos judeus no mundo secularizado dos séculos XIX e XX reside uma “dupla consciên­ cia crítica: em relação ao próprio judaísmo, submetido ao crivo da razão, e em relação à sociedade civil e ao Estado, onde nem sempre foram totalm ente aceitos”. Lasar Segall partilha com Chagall e Soutine, Kafka e Bcnjamin, uma relação dialética entre o particularismo de sua cultura e a universalidade de sua mensagem. Para nosso artista, sua condição de “marginalidade”, ou de judeu enquanto pária, usando o conceito de Hannah Arendt, fecundou numa visão trágica do mundo, síntese da perda universal da tra­ dição. Possuindo como ponto de partida a arte moderna, por um lado, e a me­ mória milenar judaica, por outro, esse compromisso ético com as questões sociais em Segall assume um valor de transcendência. Seus óleos ou gravuras de intenções sociais não perdem a dimensão moderna de uma arte voltada para si mesma, não degeneram em panfletos ou propaganda política. Reafirmam, sim, a essência do “pathos” expres­ sionista, a subjetivação das imagens que apreende, o ideal de comunicação e expressivi­ dade. Nesse sentido, diferencia-se fundamentalmente dos modernistas brasi­ leiros e da pintura social que estes empreendiam e glorificavam; ao conceder aos trau­ mas sócio-políticos da época valor de transcendência, alcança uma dimensão social bem mais profunda. Lasar Segall, chegado ao Brasil em 1923, resguarda-se em sua margina­ lidade, mantendo-se distante da ambiencia cultural nacional. Sua obra permanece mar­ ginal, vinculada aos princípios estéticos expressionistas e aos temas mais globais do h u ­ manismo moderno. Enquanto os modernistas, em seu afã messiânico e salvacionista, acabam, muitas vezes, por reforçar o programa de “cultura política” estado-novista2,


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nosso artista judeu consegue, através de uma visão nostálgica, essencialmente trágica, integrar a arte brasileira no quadro da modernidade e extrair das particularidades cul­ turais nacionais uma obra, uma contribuição formal original e coerente. Em suas gravuras da série “Mangue” (1928-30), por exemplo, o artista destila das incisões vigorosas das xilogravuras, dos contrastes de preto e branco, das li­ nhas horizontais das venezianas, da transparência das cortinas, o impenetrável mundo do Mangue, celebrando a humanidade, resgatada em seu deslocamento. Reprocessa-se a luta entre a experiência humana e o choque violento da modernidade. Eleva-se a questão social nacional ao foro de problema cultural moderno, inserindo-a na reflexão mais am­ pla sobre a morte da cultura e a crise do sujeito. Ao negar a vagueza analítica dos mo­ dernistas brasileiros, a obra de Segall adquire significação universal. A transferência de Segall para terras brasileiras e a apropriação de ele­ mentos nacionais em suas telas reafirmam sua opção pela marginalidade, condição mesmo de sua participação no mundo. A busca do "paraíso interior” em Lasar Segall envolve o reconhecimento da situação em que se encontra o homem moderno, “dilacerado por uma subjetividade que não se reconhece mais na cultura e por uma cultura que já não mais o integra ao social” 3. A superação deste conflito para ele implica a rejeição da história que o havia abandonado e a fundação de sua poética a partir de uma autocríti­ ca. A recriação da realidade pela sua subjetivação, a potencialização de sua dimensão espiritual, caracteriza e identifica a obra de Segall. A questão técnica, as pes­ quisas plásticas, têm importante papel na obra desse artista, que preservou o hábito de preparar suas telas, de desenhar com lápis ou carvão antes de colocar as tintas, de confeccionar suas próprias tintas misturando os pigmentos com óleo de linhaça e terebintina. Contudo, esse ideal de “atingir a perfeição dos antigos” antes de funcionar como um “fantasma” acadêmico serve como meio de se alcançar a função essencial de sua arte: a construção, pelo fazer artístico, de um mundo de “eternidade” e sentido no século cruel da racionalidade técnica. Esta a singularidade do Expressionismo que Segall ajuda a concretizar e introduzir na modernidade brasileira: a associação entre forma e conteúdo, que conduz a arte à sua missão construtiva, criadora. O modo como o desenho ainda determina as áreas de cor, a introdução de referências a feições e cenários, a existência volatizada de uma cor local, marcam o vínculo do artista com a narrativa, com a tradução literária. Essa intenção descritiva em Segall, contudo, antes de significar um arcaísmo, traduz a nostálgica tentativa de resga­ tar a cultura, devolvendo ao “ego” a possibilidade de criação do mundo. Instrumento moderno, portanto, a narrativa afirma-se como elemento de construção. Na circunspecção segalleana do fazer artístico plasma-se a relação, a um tempo conflituosa e complementar, entre subjetividade e objetividade. O compromisso segalleano com o objeto (sua obra sempre recusou a abstração) pode parecer a restrição crítica da própria subjetividade estética. Contudo, porém, em seu processo de criação artística, o objeto é retirado de seu contexto original e reintroduzido, pela modificação


Acervo Museu Lasar Segall.

Lasar Segall, “Duas Figuras”, 1917, litografia.

radical realizada na fragmentação e decomposição, em uma nova unidade. A domina­ ção subjetiva perpetua-se pela construção da totalidade pictural. Nesse sentido, compreende-se a busca segalleana da ordem. Ordem esta que não se determina pela composição harmônica, mas pela estrutura fundada no controle rigoroso e na depura­ ção dos elementos pictóricos. A recriação da totalidade como um motivo expressivo traduz a relação entre construção e expressão. Com umente as correntes artísticas construtivas são com­ preendidas como a antítese das tendências expressivas. Essa oposição tradicional con­ duz a análises bastante imprecisas sobre a obra de Segall. Muitas vezes, o rigor da com­ posição segalleana é tratado como distanciamento do artista com relação ao movimento expressionista. Em outras ocasiões, sua busca de ordem vê-se associada a uma necessidade interior de sua alma, respondendo a critérios extra-artísticos. Contudo, nessas argumen­ tações, perde-se de vista a relação dialética entre construção e expressão, da forma como esta se forja no Expressionismo, onde uma se realiza na outra. A crise da objetividade para os expressionistas não significou a restauração do m om ento expressivo como fanta-


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sia liberada. No arranjo construtivo perpetua-se algo de objetivo. A obra de Segall não deve ser compreendida como oscilação ou mesmo equilíbrio entre dois princípios de uma eterna polaridade (construção e expressão). O elemento construtivo de sua arte realiza-se no domínio subjetivo sobre a realidade, ao mesmo tempo em que a expressi­ vidade concretiza-se pela criação da ordem pictórica. A resolução desta contradição sin­ tetiza a crise cultural intimamente experimentada pelo nosso artista: o fim da represen­ tação, que coloca a questão dos limites de possibilidade da própria narrativa. A arte de Segall não pretende ser apenas o comentário, mas o testemunho desta crise cultural. Walter Benjamin já havia anotado a tendência moderna de eliminar a narrativa. A figura do narrador tende a desaparecer no mundo moderno, onde se en­ contra alienada a faculdade humana que lhe é intrínseca, a de trocar experiência. A desintegração da identidade da experiência, da qual a guerra constitui grande impulso, coloca para a cultura a impossibilidade da narrativa. Theodor W. Adorno, ao analisar o romance moderno, aponta justamente para o paradoxo que o caracteriza: não se pode mais narrar, mas o romance exige a narração. Na resolução deste impasse, destaca a obra de Proust, onde o narrador funda um “espaço interior”, ao qual traz o mundo. Esta é a técnica do “monologuc intérieur” que protege o narrador pela refutação da ordem espácio-temporal objetiva. A reflexão rompe a pura imanência da forma no romance moderno, tomando partido contra a “mentira da representação”. Thomas Mann, por exemplo, revoga de sua função formadora a exigência de criação de algo real, à qual, porém, seu discurso não pode escapafi. Esse mesmo paradoxo podemos detectar nas obras de Lasar Segall. Na realidade, esse artista representa o curto-circuito da narrativa. Na recusa segalleana da empiria sublima-se o princípio do testemunho. O impulso da arte de Segall passa a ser a transcendência estética, na qual se capta a essência da estranheza do mundo. O apego ao objeto, à exterioridade, em Segall, amplia o caráter ilusório da narrativa ao apresentar a irrealidade como algo verdadeiro. Na apresentação do não-empírico como empírico reside um sentimento negativo da realidade, que desde cedo marcou a mo­ dernidade. Ao tomar consciência da impossibilidade da narração, Segall erige-se em pro­ blema, fazendo do ponto de partida subjetivo um momento do processo de produção. Conscientiza-se da impossibilidade, bem como da necessidade da narrativa em sua ma­ nifestação artística. Vejamos como essa questão processa-se em sua obra. Tomemos, para is­ to, a gravura “ Marinheiro e Chaminé”, da série “Emigrantes” (xilogravura, 1929). Nes­ ta xilo, dominada pela presença marcante da chaminé, nosso olhar é capturado e guia­ do para a pequena e fragmentada figura do marinheiro na parte inferior do papel. Ten­ do como centro geométrico o círculo da chaminé do navio, a figura humana adquire centralidade por seu destaque evidente na construção do quadro. A integração do marinheiro à chaminé, reafirmada pelas linhas que não se tocam criando uma continuidade quase orgânica entre um e outra, ao invés de mino­ rar a presença humana, faz com que esta se amplie, domine a cena, fornecendo o moti-


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vo central das questões colocadas pela gravura. A chaminé assume um sentido transcen­ dente: é vertical, conduz para o alto, onde o céu abre-se por uma faixa branca que rom ­ pe os limites do papel. O marinheiro eleva-se, com destino ao infinito. Esse ritmo ascendente, dado pela verticalidade da chaminé e ressaltado pelas linhas oblíquas que confluem para esta, contrasta com a horizontalidade das li­ nhas sinuosas da fumaça que perpassam a gravura. Estas destacam ainda mais a figura central da chaminé/marinheiro, seja na sua ascendência, seja na sua materialidade. Os traços que formam a chaminé e o homem são definidos, incisões precisas na madeira. As figuras não se diluem, não ganham a fluidez presente na alusão à fumaça; são recor­ tadas, formando uma imagem plana e esquemática. Fragilidade e contração no olhar doloroso do marinheiro, que não se deixa levar pela claridade e inconsistência do tem ­ po, permanecendo a-historicamente fixado na sua condição de emigrado. Na simplicidade das linhas, na concisão dos pretos e brancos, reside a busca segalleana do todo. Distante e participativo, o artista apresenta, na construção rigorosa pelos fragmentos, na utilização de todo o papel da gravura, seu anseio inces­ sante pela totalidade. Cada parte da gravura vincula-se a essa expressão de síntese. Equi­ líbrio rítmico entre curvas e retas, entre fluidez c materialidade, entre finitude humana e infinito. Na arte segalleana, a experiência subjetiva produz imagens que não pos­ suem uma vinculação de dependência com a realidade, mas com seu próprio conteúdo. A figura do marinheiro reconhece-se na revelação de sua identificação com o navio, e em sua marca indelével de emigrado. Os objetos em Segall portam a função simbólica de trazer à representação a profundidade de suas relações essenciais. Ao formular o con­ ceito de simbólico, Hans-Georg Gadamer anota a realidade insubstituível da obra de arte, “acréscimo de ser”, que contém em si tudo aquilo a que se remete, sendo, mais que uma mera abertura de sentido, a criação de sentido. Segall não reage violentamente contra a realidade, nem a imita. Seu pro­ testo se afirma na criação de sua imagem, na experiência de sua forma artística. A fun­ ção simbólica de sua obra apresenta-se em sua plenitude, sendo não apenas a remissão ao significado, mas o seu “tornar visível”. Nesse sentido, sua obra pode ser compreendi­ da em seu duplo caráter, seguindo a reflexão heideggeriana sobre a arte, de “desvelar” e “proteger”. Segall não é um esteta. Sua arte tem algo que está em devir, que se cons­ titui. O “vir a ser” de suas obras é a formulação do mundo, no qual se fundem espiri­ tualidade e forma objetiva. Ao buscar em seus fragmentos a revelação da totalidade, a obra de Segall reafirma o caráter ideal da imagem. Mas, como afirma Gadamer, a imagem na arte mo­ derna não se confunde com o “uno intuitio”. O olhar moderno não é apenas assimilativo; envolve um trabalho de elaboração ativa, transformando a arte em tarefa reflexiva \ Lasar Segall assume esse conteúdo imagético novo, que o instiga à configuração produ­ tiva. Pelo destacar-se do mundo empírico, afirma um outro mundo, com essência pró-


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pria. E, nessa afirmação, manifesta-se o sentimento negativo da realidade, associando a reflectibilidade da obra à rejeição do reconhecimento ingênuo do mundo. A partir daí podemos refletir sobre a dimensão social de nosso artista. O primado do espírito na arte de Segall envolve o sentimento de negatividade do m un­ do, integrando à sua linguagem formal a irrupção do estigmatizado ou do oculto. Sua abertura para as questões sociais reforça-se na concentração sobre o interdito à cultura tradicional. Aí repousa a dimensão profunda de sua afirmação: ‘Adoro a simplicidade dos humildes e humilhados. Procuro nas almas o que elas não gostam de falar por boca própria, a verdade profunda de suas aspirações e do seu sofrimento íntimo. Mendigos esfarrapados, a vida pobre dos pobres”6. O interesse pelas figuras sofridas e humilha­ das, a depuração de sua paleta, a composição por planos, testemunham a dilaceração da condição humana, tragédia moderna. Em sua tela “Interior com família enferma” (1920, óleo) resgata na composição metódica através de sucessivos planos, integrados por expressivas manchas de cinza e marrom, onde apóiam-se figuras quase imateriais, um significado social, perpassado pela universalidade das imagens do sofrimento hu­ mano. O caráter de crítica social em Segall aparece umbilicalmente ligado à manifesta­ ção espiritual. A separação das esferas social e espiritual da pintura segalleana origina tanto o repúdio reacionário à deformação e à “fealdade” de suas imagens, quanto as cobranças por um maior engajamento. O ambiente modernista no Brasil preferia o rea­ lismo de Portinari à verdade da crise cultural de Segall. Mas este permanece fiel à pro­ fundidade deste conflito essencial, do qual pretende ser testemunho. A recusa à cultura de massa une, cm Segall, a espiritualidade e o empenhamento de sua arte. Na poética segalleana manifesta-se o estranhamento do mundo, consti­ tuído em questionamento incessante. A perda da tradição articula o tom de infelicida­ de da modernidade. Quando o modernismo codifica-se teoricamente com Baudelaire, reflete-se a negatividade da situação social. Segundo Adorno, “a dor cósmica (Weltschmerz) desloca-se para o inimigo, o mundo”. O novo associa-se à morte. Em sua tentati­ va de resgatar a cultura e a arte na expressão do espírito, Segall enfatiza as perdas, as ruínas. E, desta forma, torna-se eloqüente, na mesma medida em que afirma seu mu­ tismo. Como Thomas Mann, compreende a impossibilidade de um mundo pleno de sentido, enquanto se coloca a tarefa árdua de construí-lo artisticamente. Visa, assim, criar um mundo de eternidade e beleza que se funda na rejeição da realidade social moderna e no privilégio do que nesta encontra-se petrificado e recalcado. A idéia de “ beleza” cm Segall compartilha da ambiguidade expressionista onde, conforme Giulio Cario Argan, a deformação “não é caricatura da realidade; é a beleza que, ao passar da dimensão do ideal à do real, inverte seu próprio significado e se converte em fealda­ de”7. Logo, ao feio associa-se a beleza degradada, a queda da humanidade. Aí floresce a nostalgia de Segall e o poder particular de sua obra em cons­ tituir um “Império de Beleza” (usando as palavras de Schiller) a partir das representa­


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ções da destruição e da morte. Pela irrupção do oculto, do fragmento, da ruína da cul­ tura tradicional, condensa-se a esperança de constituição de um m undo prenhe de sen­ tido, de humanidade. Retornamos, assim, à questão da totalidade, agora relacionada com a pos­ sibilidade do “eu” substancial no m undo moderno. A representação simbólica, ao fundarse sobre o objeto, penetra-o de espírito. De acordo com Hegel: “A matéria sobre a qual a arte se exerce é o sensível espiritualizado ou o espiritual sensibilizado”8. Pela idealidade do sensível a arte segalleana é a contradição da realidade empírica, que se orienta para a negação da organização do m undo moderno. Contudo, a negação para Segall constitui-se em ponto de partida, e não em objetivo. Sua intenção é a criação, que torna eterno o breve instante de beleza. Desta forma, sua arte não partilha da tristeza lângui­ da dos românticos. Conserva uma espécie de inquietude moral e estética de exteriorizar e oferecer à reflexão e contemplação aquilo que o m undo moderno pisoteava em sua trágica marcha: o homem. A partir desse em penho ético, Segall descarta a abstração. O ser humano deve ser o cerne de sua obra, na medida em que é o “sujeito principal da cena do m un­ do”, conforme confessou pessoal mente a P. M. Bardi. E nisso suas telas são exemplares. Desde o começo de sua formação artística é o homem, e suas interrclações, o centro de sua obra. Mesmo quando seu estilo ainda vagava meio indefinido, sendo qualificado por Erhard Frommhold como um “ impressionismo selvagem”, a preocupação com a es­ sência humana já era visível. Em sua tela “Café ao ar livre” (1911, óleo), o “plein air” que interessaria aos impressionistas não constitui o elemento pictórico central. Segall transfere toda a movimentação externa para as figuras humanas, através da composição baseada nas manchas de cores claras. Toda a geometrização característica de suas telas e gravuras de seu perío­ do europeu (anterior a 1923) submete-se, igualmente, à busca segalleana de resgatar o humanismo. Segall contorna seus círculos, triângulos e rombóides, a partir dos quais define corpos e fisionomias humanas. As figuras, colocadas no mesmo plano, unem-se pela cor em uma totalidade orgânica, sem destruir o grafismo das formas individuais. No auge desse processo de construção geométrica estão as cinco litografias do álbum Die Sanfte, onde as figuras derivam de uma simplificação quase caligráfica, que as apre­ senta como silhuetas geométricas. A partir de suas gravuras do álbum Recordações de Vilna (1917), as con­ cisas anotações geométricas são substituídas pelo preenchimento da totalidade da fo­ lha, enfatizando as deformações das figuras humanas e a assimetria. Nessas obras, a de­ formação extrapola os limites da simplificação geométrica; rompe-se a escala normal das proporções. As figuras humanas reafirmam a visão simbólica de sua cidade natal, Vilna, que para Segall significava sua própria “verdade interior”. Cabeças e olhos gi­ gantes religam cada figura ao passado, nostalgia de um tempo em que o homem ainda era valorizado em sua essência espiritual, onde o “eu” ainda era substancial.


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Lasar Segall, ‘‘Floresta de Galhos Entrelaçados”, 1956. Óleo s/tela, 130 x 97 cm.

Acervo Museu Lasar Segali

Na década de 20 as pinturas e gravuras de Segall começam a mudar de estilo. Aparecem características ambientais e traços pessoais que ampliam a referência literária, a interpretação narrativa. As linhas tensas, a geometrização arbitrária, as cores luminosas cedem lugar à composição construída por vários planos, às linhas arredonda­ das e aos tons matizados de ocre e cinza. Intensifica-se a depuração dos elementos pic­ tóricos como forma de se alcançar a totalidade. O desencanto com o mundo transforma em questionamento sua representação. De seu rigor plástico, de seu trabalho paciente de fabricação da totalidade pictórica, destila-se a diluição da alma, a degradação da hu­ manidade no mundo moderno. Ergue-se como questionamento a dimensão da repre­ sentação e a possibilidade da narrativa.


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É, sem dúvida, em seus últimos trabalhos, que se dá a resolução desta problemática. Em sua série de florestas, Segall consegue romper com a narrativa que. até então, permanecia em sua relação conflituosa necessidade/impossibilidade. Essas obras, à primeira vista, podem parecer a contradição de todo seu trabalho anterior. Aquele “pintor de almas” abandona sua preocupação com o hom em e, refugiado em Campos do Jordão, decide dedicar-se à natureza. Aquele pintor antifascista deixa de lado suas vinculações sociais e prefere pintar vacas e árvores ao invés dos grupos marginalizados e humildes. Permanece a dúvida: seria um retrocesso? Seria um avanço no sentido da arte abstrata? Maurício Segall lança a tese de um retorno ao cubismo figurativo, uma das raízes da arte segalleana, contradizendo a tendência de associar-se os quadros de sua última fase (1948-56) à adesão ao Abstracionismo. Certam ente não podemos falar cm arte abstrata; o próprio artista recusa o abstracionismo, valorizando a figuração. Por ou­ tro lado, a idéia de um retorno não é descartável, já que a primeira tela, "Floresta”, é de 1910. E, de toda forma, a evolução artística de Segall processa-se circularmente, obedecendo ao ritmo de sua experiência mnemônica. Para Vera d ’Horta, a árte de Segall atinge seu ápice nessas telas realizadas em Campos do Jordão, na m edida em que “o racional perde para o instintivo, para a sentimentalidade mais primitiva da alma russa”0. Podemos concordar com essa afir­ mação tão somente na ênfase dada à expressividade, e na compreensão desses trabalhos como coroamento da obra segalleana. A natureza, perene e tranqüilo palco das aventu­ ras humanas, adota o ritmo desta alma eslava. Em “G ado ao luar” (1950, aquarela), como em “Gado em pirâmide” (1946, óleo), os bois reduzem-se a retas e curvas e a manchas de cores, harmonizando-se às montanhas e árvores. São anotações gráficas ágeis e sumárias, impondo à natureza o sereno domínio de seu lirismo. Nessas análises, entretanto, permanecem ainda obscurecidas a profundi­ dade e a riqueza dos últimos trabalhos de Segall. Partindo de um motivo romântico — a natureza — suas telas finais questionam o caráter ilusório da narrativa, a mentira da representação, ao mesmo tempo cm que, reprocessando o conflito original terra/m un­ do, instalam a realidade de sua pintura. Podemos pensar, desta forma, numa aproxima­ ção com a fase tardia de Thomas Mann, que ao reconhecer a irrealidade da ilusão “de­ volve à obra de arte — nos seus termos — aquele sentido da mais alta brincadeira que ela possuía antes de haver representado, na ingenuidade da não-ingenuidade, e de ma­ neira excessivamente íntegra, a aparência como algo verdadeiro” 10. Suas florestas cons­ tituem, assim, o auge de sua obra, compreendido aqui como a mais sincera e coerente resolução da dialética segalleana entre construção e expressão, entre sujeito e objeto. Nessas telas realiza-se plenamente o sentido mais amplo de “aparição” da obra de arte que consiste, segundo Adorno, na afirmação de "um outro”, incidindo sobre a irreali­ dade da realidade. A reflexão rompe a própria forma que a constituiu; transcende-se o momentâneo, a obra perpetua-se como “ instante”. Lasar Segall, “Floresta Ensolarada”, 1955. Óleo s/tela. 116 x 81 cm.


Aicrvu Museu lasar Segall


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E no instante de Segall descreve-se o ritm o de suas paisagens. Perante a imobilidade dos cinzentos e marrons, suas florestas entram em movimento. Unindo imobilismo e dinamismo, Segall, em sua experiência rítmica, transforma a transitoriedade em permanência: alcança a totalidade. “Floresta Crepuscular’’ (1906, óleo), nesse sentido, pode ser considerada como síntese de toda a sua evolução artística. Nesta tela, os troncos das árvores dissolvem-se em severo e paciente trabalho de composição por linhas e cores. Não há mais a referên­ cia aos galhos, ou ao chão em que se apoiam. São fragmentos resgatados em seu ritmo vertical, notas breves e rápidas, que, contudo, guardam a profundidade das relações en­ tre ocres, verdes e azuis cinzentos. Segall transcende a realidade, rompe com a imanência da forma instaurando definitivamente o eu da sua pintura. A verticalidade da “ Floresta Crepuscular” recupera as imagens severa­ mente construídas de seu período europeu, ao mesmo tem po em que desenvolve uma tendência já sentida em seus trabalhos anteriores, como “ Favela 1" (1954/36, óleo), on­ de as linhas verticais impõem a direção dos planos rítmicos de cores. Na conjunção de rigidez e movimento, despacha pela simplicidade de suas verticais a ilusão da narrativa, na mesma medida em que reconhece sua impotência face à realidade. A depuração dos tons, a certeza do traço que corta de cima a baixo a tela, o movimento dos planos sub­ metidos à rigorosa verticalização, a dissolução do objeto no ritmo das linhas e cores tes­ temunham o momento em que o artista liquida a si mesmo, desliga-se da realidade superpoderosa, capitula da missão redentora da arte. E, paradoxalmentc, no reconheci­ mento da incapacidade de transformação pela transfiguração imagética, encontra-se com o m undo pleno de sentido. Sua arte abre-se à possibilidade libertária da felicidade da contemplação. Mas a contemplação, aí, difere radicalmente daquela envolvida na deco­ ração abstrata realizada por Segall em 1924 no Pavilhão de Arte Moderna da casa de Olivia Guedes Penteado. Sobre este trabalho Segall ressalta a complementariedadc en­ tre a pintura e a arquitetura, o que faz da arte decorativa uma abstração, formas distri­ buídas arquitetonicamente. Em suas Florestas Segall remete-se à natureza de Campos de Jordão e à sua significação. Logo, envolve uma comunicação conceituai. E nessa exi­ gência de compreensão reafirma-se a identidade hermenêutica de sua obra: a totalida­ de construída oferece-se à contemplação como algo verdadeiro. Pressupõe, desta forma, o jogo reflexivo. Na rigorosa composição de linhas verticais e cores sombrias da “ Floresta Crepuscular potencializa-se a infinitude do movimento cósmico. Sua forma é assim associada à circularidade do infinito, que religa fim e começo, sendo não apenas cons­ trução do sentido do mundo, mas sua abertura à comunicação. Na criação de sentido, Segall recusa a abstração. Sua floresta tem profundidade, resgatada no reflexo de luz nos troncos. Mas a preocupação figurativa funciona como questionamento da própria figuração. E, nesse sentido, ê abstrato, embora não rompa com o objeto. A natureza


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de Segall, penetrada de espírito, não é a aparência da realidade, mas uma realidade superior. No reconhecimento da impotência narrativa, no desligamento com a ilusão da realidade, Segall erige em sentido sua visão trágica do mundo; instala o universo marcado pela eternidade. E, por breves instantes, a humanidade ressurge em plenitude sensória, fixada pela serenidade do “conhecimento solidário” de Segall. 1. Expressão usada por Abílio Miller na crítica que fez da primeira exposição de Segall no Brasil (1913), em Campinas. In "Um pintor de almas: a propósito de Lasar Segall”. Comércio de Campinas, 19132. Cujo cerne consistia em unificar as esferas política e social, enfatizando a ne­ cessidade de desenvolver uma consciência política sólida como condição prioritá­ ria para a afirmação da arte. 3. Muricy, Kátia. “Tradição e barbárie em Walter Benjamin”. In Revista GÁVEA, n? 3. Rio de Janeiro, PUC/RJ, 1986. 4. Adorno, Theodor W. "Posição do narrador no romance contemporâneo”: In Os Pensadores; Walter Benjamin, Max Horkheiner, Theodor Adorno, Jürgen Habermas. 2? ed. São Paulo, Abril Cultural, 1983. pp. 269 e 273. 5. Gadamer, Hans-Georg. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985. pp. 18/20. 6. Segall, Lasar. “Uma exposição de Segall no Rio”. Rio de Janeiro, O Jornal, 2 0 /0 8 /19Í8. 7. Argan, Giulio Cario. El arte moderno: 1770-1970. v. 1. Valencia, Fernando Torres Editor, 1975 (5? reimpressão, 1983). p. 291. 8. Hegel, Georg E.F. “Estética: a idéia e o ideal”. In Os Pensadores. 3a ed. São Paulo, Abril Cultural, 1985, p. 117. 9. Beccari, Vera d ’Horta. Lasar Segall e o modernismo paulista. São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 122. 10. Adorno, T. W. op. cit. p. 272.

VERA BEATRIZ SIQUEIRA é graduada em História pela PUC/RJ; formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, e trabalha na área de pesquisa da Funda­ ção Nacional Pró-Mcmória.



RICARDO BASBAUM

Pintura dos Anos 80 : Algumas Observações Críticas

No plano internacional, Achille Bonito Oliva destaca-se como um dos principais nomes críticos ligados à nova pintura, sendo responsável pela criação e divul­ gação da tendência italiana Transvanguarda. Sua importância reside na construção de um conjunto de afirmações teóricas que auxiliaram na legitimação da pintura transvanguardista internacionalmente. Outras tendências internacionais da nova pintura (NeoExpressionismo, Figuração Livre, Nova Imagem) não se apresentam organizadas sob um corpo teórico coeso e estruturado tal como foi trabalhado por Oliva no nível da produ­ ção italiana. Desta forma, devido ao amplo e veloz destaque internacional atingido pe­ las idéias do crítico italiano, muitos dos conceitos por ele gerados, particularmente a partir da produção transvanguardista, costumam ser generalizados e aplicados à nova pro­ dução emergente como um todo. Assim, vamos selecionar aqui, para uma rápida análi­ se, alguns aspectos do pensamento de Oliva que nos parecem mais adequados a uma aplicação global ao contexto da nova pintura — pois não interessa determo-nos em par­ ticularidades da produção italiana: estaremos buscando, dentro do corpo teórico da Trans­ vanguarda, conceitos úteis à análise do panorama generalizado da nova prática pictórica surgida nos últimos anos, intcrnacionalmente — sem excluir a produção brasileira. Es­ tes conceitos, porém, longe de serem utilizados de maneira direta a partir dos textos em que se encontram, serão comentados, desenvolvidos e criticados a partir de uma outra série de conceitos, extraídos de movimentos artísticos de outras épocas, notadamente das tendências que trabalharam os limites da ação artística nos anos 60. Em se­ guida, passando diretamente para o contexto local, verificaremos a gênese das primei­ ras leituras críticas sobre a nova pintura brasileira. Num circuito bem menos sofisticado que o circuito internacional da arte, a legitimação crítica acerca da produção brasileira mostra-se bem menos precisa e contundente, esquivando-se do confronto direto com as obras para centrar-se em aspectos comportamentais de uma geração cuja presença no circuito consagra-se com a exposição “Como Vai Você, Geração 80?”. * * *

A.B. Oliva caracteriza o novo momento artístico como “mais amarrado às emoções intensas do indivíduo” 1, privilegiando assim as “vibrações descontínuas da sensibilidade”; propõe ainda que a presença da subjetividade, nesses artistas, deve ser entendida como “harmonia da arte com motivos individuais”. Como resultado dessas preocupações, “a sensibilidade dos anos 80 (...) tende a trazer o trabalho criativo para Susan Rothenberg, “Rose”, 1980. Acrílico s/tela, 78 x 43 cm.


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a pintura, afastada de qualquer homologação internacional, favorecendo a pesquisa in­ dividual sobre a grupai'. A emergencia desse movimento se dá dentro dc um contexto de "crise cultural do modelo ideológico, que desorienta artistas e intelectuais o que determina que a pesquisa anterior da arte, apoiada na estrita observância das regras experimentais das vanguardas , seja substituída por uma arte fixada fora dessas coor­ denadas”. Bonito Oliva sugere então que este novo artista segue "uma atitude nômade que vê todas as linguagens do passado como reversíveis”, já que opera em desacordo com a "idéia evolucionista de um Darwinismo lingüístico, cujos antecedentes fixos são encontrados na vanguarda histórica”. Pode-se concluir que o direcionamento da sensibilidade da época para a pesquisa individual é o principal elemento destas primeiras observações de Oliva. Vêse, portanto, que a sensibilidade do novo artista desloca-se do eixo dc um programa de ação coletivo para voltar-se ao presente imediato, recorrendo à sua própria inferiori­ dade como fonte dc impulsos para a ação. E a forma utilizada pelo artista dos anos 80 para trabalhar esta interioridade difere de outras atitudes já experimentadas no campo artístico: não se restringe, por exemplo, à exploração da prática da arte fora dos rigores da pura racionalidade (Dada), nem cultiva um projeto de trabalho mental dentro da teoria do inconsciente na arte (Surrealismo); da mesma maneira, não se limita à relação corporal artista-obra proposta por Pollock, com seu autom atism o gestual-motor. Sem deixar de absorver cada uma dessas faces históricas, o impulso criativo interior do novo artista é principalmente vivêncial, derivado diretamente da prática artística dos anos 60 — responsável pelo exercício de integração da paisagem interna do indivíduo com a paisagem física exterior em uma matriz ambiental vivencial-corporal, sem a interme­ diação do objeto formalizado. Diferenciando-se do artista experimental dos anos 60, entretanto, o ar­ tista da década de 80 restringe deliberadamente seu espaço de atuação para o espaço simbólico da tela, rematerializando o objeto e adm itindo a manipulação de linguagens formais, o que demonstra uma alteração na matriz ambiental instauradora da sensibili­ dade vivencial-corpórea da arte experimental: se antes esta matriz era construída pela integração (superposição) da paisagem interna do indivíduo com a paisagem física exte­ rior (materiais reais, espaço real), agora ela será gerada a partir da superposição da pai­ sagem interna do artista com a paisagem da superfície pictórica, configurando um terri­ tório da imagem. Tais imagens originam-se a partir de duas fontes principais: imagens preservadas pela tradição (história da arte, arte popular, bancos de dados) e imagens que compõem o meio urbano contemporâneo (indústria, mass mediai). Verifica-se, des­ ta forma, que as imagens da nova pintura raramente percorrem uma dimensão hiper-subjetiva, sendo preponderantemente culturais, manifestando preferência em dialogar com imagens preexistentes no ambiente: tanto imagens do am biente imaginário (imagens da tradição) como imagens do ambiente físico (urbano-industrial). Evidencia-se, por­ tanto, um caráter de diálogo ambiental na nova pintura, em um primeiro nível ressalta­ do pela maciça presença do suporte, pelo padrão decorativo ou mesmo pela utilização


Adesivo de divulgação da exposição “Como vai você, geração 80?”.

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de uma figuração narrativa — e, em um plano mais aprofundado, como resultado da equação vivencial corpo-imagem-superfície. A sensibilidade do pintor dos anos 80 aproxima-se, então, da ampliação de campo que a prática experimental dos anos 60 provocou no domínio da arte, situando-se distante da sensibilidade do típico pintor construtor de formas da vanguarda moderna, estando mais afinada com uma sensibili­ dade expandida, plurissensorial. O conceito de ambientalidade com o qual estamos lidando consiste na estruturação de uma matriz ambiental composta por três parâmetros: corpo-materiais-espaço. Tal conceito é obtido a partir das primeiras produções artísticas que passam a tra­ balhar sua materialidade dentro de dimensões reais de espaço e tempo, liberando a pulsão própria da obra para trocas com o meio circundante. Essa importante passagem modifi­ ca o modo de ação do objeto artístico de uma postura passiva — afeita à contemplação — para um posicionamento ativo, de interferência ambiental.


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No Brasil, o não-objeto neoconcreto inaugura um a nova atuação do ob­ jeto de arte no espaço e no tempo, com a obra procurando tanto imantar o espaço o espaço Neoconcreto tem o caráter de campo2, pretendendo emprestar transcendên­ cia ao espaço real, modificando-o — como operar em um a dimensão temporal dentro de um campo ativo de trocas, “ativando o relacionamento do sujeito com o trabalho’ e “deixando em suspenso o ‘tem po’ da produção de modo a perm itir a intervenção do espectador quase no sentido de completar os trabalhos, recriá-los cada vez de maneira diversa, viver os instantes de sua produção” ^. Dentro do desenvolvimento da arte ame­ ricana, Giulio Cario Argan4 comenta que a conquista do espaço real pela obra processase primeiramente a partir da pintura (através da corrente hard edge, que atua no senti­ do de “qualificar o espaço exterior como ambiente visual’’) e, depois, da escultura (as estruturas primárias, “corpos de cor (...) fruíveis como am bientes (...) que qualificam de campo a porção que é objetivamente influenciada pela estrutura ”). Posteriormente, ocorrem “intervenções em grande escala tendentes a restruturar e requalifícar a paisa­ gem, urbana ou não”: land-art, earth-works. A conquista do real físico aprofunda-se, ainda, pela incorporação no processo de trabalho, nos anos 60, de “materiais reais” 5, isto é, materiais habitualmente considerados não artísticos. A Pop Art e o Nouveau Rcalisme também contribuíram para aproximar as fronteiras do território da arte e do terri­ tório real cotidiano, com seu aproveitamento de objetos industrializados e imagens de massa. Kaprow, por sua vez, desenvolve a utilização de materiais reais dentro do espaço real, incorporando ainda a presença do corpo(do artista c do espectador), que desprendese, autonomiza-se, transformado agora em um material a se movimentar por esse terri­ tório — a possibilidade do Happening. Também o artista proveniente do Neoconcretismo desenvolve proposições participativas utilizando o corpo do artista, o espectador, objetos, visando despertar nos participantes experiências vivenciais. Obtivemos então, através dos parâmetros corpo-materiais-espaço, uma ma­ triz ambiental de atuação do objeto artístico, que permite à obra a inserção plena no meio circundante, sem estruturar-se a partir de virtualidades que a isolem de trocas com o ambiente. Um quarto elemento, porém, é indispensável, como conectivo que impul­ siona esta matriz determinando a especificidade operativa de cada produção: a dimen­ são temporal. E necessário, portanto, fazermos algumas observações acerca do modo co­ mo a produção da década de 80 trabalha a temporalidade. A partir do texto de A.B. Oliva sobre a Transvanguarda, é possível extrair três possibilidades acerca da maneira com que a nova produção manipula a dimensão temporal, seu posicionamento fora do campo da projetualidade a colocaria numa pers­ pectiva temporal oposta àquela das vanguardas: estas, de Baudelaire em diante, “neces­ sitam encontrar a condição de pertencer ao seu tempo, insatisfeitas com a contemporaneidade (...) projetando sua atenção para o futuro”*5; além disso, uma “práxis nunca repetitiva desse artista ( o trabalho responde sempre à dem anda de uma ocasião que


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não se repete, já que as relações cambiantes do artista com seus materiais são irrepetíveis ) implicaria uma estreita relação do tempo da vida do artista com o tempo de sua produção; e, ainda, encontramos uma dimensão temporal deficitária, como resulta­ do do “ trabalho inatualizado” que “não pode nunca representar o artista no presente”, conforme escreveu Oliva. Pode-se relacionar a segunda dimensão temporal descrita acima com a tendência de superposição entre arte e vida, encontrada em produções dos anos 60. Nes­ tas, a sincronia do tempo interno e do tempo externo cria uma “área de grande liberda­ de para o artista” 8, pois o controle da integração do sujeito (corpo) com os materiais, num determinado local, produzindo o ‘momento da obra’, está inteiramente sob do­ mínio do artista — que calcula as temporalidades no sentido de fazer surgir o instante artístico num ponto precisamente definido do ambiente (sob as coordenadas corpo-material-tempo-espaço). No entanto, tratam-se de estratégias diferentes, já que se nos anos 60 esta superposição de temporalidade configurava-se como projeto — reelaborando o conceito de arte e jogando esses tempos em um terceiro impulso temporal — agora o “ tempo da vida do artista” reduz-se quase a um ritmo biológico/fisiológico, no senti­ do de que a dimensão virtual de futuro é comprimida no rigor dos ritmos cotidianos. Lançando estes dados temporais na equação vivencial corpo-imagem-superfície anteriormente obtida, iremos detectar um reforço no caráter ambiental da nova pintura: as imagens, trazidas à luz a partir de uma vivência corporal biológica/fisiológica, passam a interferir no espaço com esse mesmo padrão rítmico básico, isto é, biofisiológico, procurando atingir o espectador em seus sintomas de carência e desejo vitais — num mecanismo de sedução perceptiva derivado das formas de ação publicitárias, processo operativo similar àquele da visualidade da paisagem urbana-industrial. Daí se destaca também um tempo de repetição que, tornando a imagem habitual, faz com que possamos reconhecê-la sem nem mesmo olhá-la: exatamente por isso a imagem “aca­ ba por assumir um senso vagamente mítico”9, observa G.C. Argan. O artista apropriase de uma visualidade gerada pela sociedade industrializada (e que basicamente de­ sempenha papéis de sustentação dessa sociedade) para comentá-la a partir do saber pic­ tórico, numa operação menos quantitativa (serialidade da Pop Art, apropriações dos Novos Realistas) e mais qualitativa (trabalhar a espessura material das imagens). Para A.B. Oliva, este comentário das imagens mass media através do sa­ ber pictórico proporciona o principal valor da Transvanguarda, o “valor do ecletismo”, que consistiria em “juntar diferentes níveis culturais que têm estado afastados há déca­ das: a alta-cultura, objeto da tradição das vanguardas do início do século e das neo-van­ guardas, e a baixa-cultura, que é produto da imageria da civilização de massa” 10. O deslocamento da velocidade das imagens mass media para a “lentidão viscosa do tempo de produção da pintura” capacitaria o artista a “restaurar para a imagem a profundida­ de semântica que parece ter sido cancelada pela civilização de massa”. Na combinação desses níveis culturais, a “imagem é posta em funcionamento pela neutralização de seu significado profundo”.


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Interessa-nos essa “ neutralidade’ da imagem como mecanismo de com­ pactação perceptiva, que, eliminando camadas de primeiros e segundos significados que poderiam desviar a percepção para possíveis leituras subjetivas parciais, dirige a obra imediatamente, como uma totalidade, para o olhar do espectador. Esse primeiro olhar, extremamente rápido e instantâneo, tem por efeito provocar um a reação de retorno — um segundo olhar que então procura orientar-se pela superfície pictórica, esquadrinhando-a. A neutralização da imagem é, na verdade, um processo de potencialização perceptiva da imagem, que tem por efeito a compactação da obra em uma totalidade que mergulha olhar adentro do espectador, caracterizando-se como um me­ canismo provocativo, agressivo ou sedutor da visão. Nessa operação, o saber pictórico expressa-se principalmente enquanto estrutura que irá ordenar o trabalho hipertrofia­ do da imagem na superfície do suporte. O conceito de ecletismo, proposto por Oliva, perde então sua utilidade, pois na verdade interessa a essa produção ultrapassar o pres­ suposto de uma imagem dualizada e ambígua para atingir um a eficiência perceptiva compacta. Não se trata de reunir sistemas diversos — pois isto obrigaria que a obra os mantivesse separados entre si, cada qual ocupando território próprio dentro de um con­ junto, que resultaria fragmentado — mas sim de recolher elementos de diversas origens, na confecção de um produto no qual todos participem dissolvidos no ordenamento de uma nova superfície. Bonito Oliva fala-nos, ainda, da nova pintura como “organismo inde­ pendente”, construído “a partir de uma visão que encontra dentro de si mesma o pra­ zer de sua própria presença e as razões para sua própria persistência”. Propõe que o projeto pictórico da nova produção seria um “projeto doce, no sentido de que não se refere ao que se extende para além de seu próprio campo de ação”. Estas declarações revelam uma autoconsciência da nova pintura em relação aos seus limites enquanto ob­ jeto de arte — o que nos permite associar o produto contem porâneo com aquele siste­ ma de idéias que procurou definir a natureza da proposição artística, a arte conceituai11. E preciso fazer, entretanto, uma im portante distinção: enquanto a arte conceituai realiza proposições acerca da natureza da arte, vista em seu campo ampliado, a nova pintura é capaz de questionar apenas a natureza da imagem — já que, dentro do panorama da arte moderna e contemporânea, não é mais possível recuperar, como nas Belas-Artes, as diferentes modalidades artísticas como gêneros (posicionadas segun­ do uma hierarquia de valores), mas sim enxergá-las como meios (recursos empregados para alcançar um objetivo; expediente, método) à disposição das necessidades expressi­ vas do artista. Kosuth, simplificadamente, propõe arte como um “termo geral” e pin­ tura como um termo específico”. Seguindo este raciocínio, a nova pintura não poderia ser considerada como uma proposição acerca da definição de arte, mas acerca da defini­ ção de pintura lembrando que a nova pintura não parte de qualquer definição apriorística do que deva ser pintura, ainda que leve em consideração, como a pintura moder­ na cubista e pós-cubista, a condição irredutível da bidimensionalidade do suporte co­ mo especificidade estrutural da superfície pictórica.


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Baseando-nos então na lógica interna do sistema traçado por Kosuth, é possível montar, em relação à nova pintura, um quadro similar, tentando demonstrar a presença de um raciocínio conceituai em sua natureza operativa da imagem. Para que este trabalho alcance a plenitude expressiva da imagem, deverá estruturar-se como uma proposição acerca da natureza da imagem. Isto é, mover-se em um campo conceituai: a operação da imagem própria da nova pintura, de “ neutralizar” imagens ambientais a partir de um saber pictórico do plano, aumentando sua dimensão perceptiva, seria uma operação conceituai. A condição conceituai dessa operação poderia ser mensurada pelos conceitos “quantificadores” propostos por Kosuth: condição de arte e habilidade em funcionar enquanto arte. E aqui somos obrigados ainda a restringir-nos à área especí­ fica da pintura: condição de pintura e habilidade de funcionar como pintura. Conti­ nuando, a condição de pintura estaria satisfeita se a obra se apresentasse como um co­ mentário da própria pintura — e na nova pintura este comentário se realizaria a partir do saber pictórico do plano que irá acolher a imagem ambiental, ou seja, o saber desen­ volvido pela pintura moderna, no sentido de criar estruturas visuais, abstratas, respon­ sáveis pela organização interna do campo pictórico. Não alterando fundamentalmente esta ordem pictórica interna ao quadro, a nova pintura irá utilizá-la como molde para decupar as imagens ambientais de que se apropria, com intenção de reduzi-las à sua estrutura elementar. Esta redução da imagem às suas linhas de forças estruturadoras é que, finalmente, realizará a ampliação de impacto perceptivo característica da nova pin­ tura. Já a habilidade da nova produção pictórica de funcionar enquanto pintura parece satisfazer-se a partir do momento em que aceita posicionar-se como jogo de imagens que não almejam comentar o saber de outras disciplinas que não o saber pictórico, voltando-se para seu próprio território de ação, ou seja, o comentário da imagem atra­ vés da imagem, procedimento que fica claro a partir do momento em que a imagem ambiental é capturada pelo plano pictórico e afastada de sua função original, dissecada pelo instrumental próprio da disciplina da pintura. A ampliação do campo da arte, provocada pelas tendências experimen­ tais dos anos 60, é vista, assim, como matriz geradora do novo fato pictórico que emer­ ge na década de 80. A estruturação em termos metafóricos da superfície (cujo rompi­ mento pode ser exemplificado pelo movimento neoconcreto e pelas tendências hard edge e priwary síruetures), bem como uma temporalidade não corporal — contempla­ tiva — impunham ao espectador um olhar interno à obra, isto é, uma exigência de se posicionar “dentro” da superfície pictórica para a fruição desta superfície, sob regência de seus parâmetros estruturais: era preciso “tornar-se uma forma”, entre as formas da tela, o necessário deslocamento que, partindo do real, atingisse a construção pictórica. A esse olhar era lançada a questão, que o obrigava a fragmentar-se: mundo ou obra? Sendo que o primeiro poderia ser reconstruído pela segunda. Já no momento contem­ porâneo, sob a condição de campo ampliado, o deslocamento em direção a uma virtualidade não é mais exigido pela obra, que compartilha com o sujeito uma mesma ambientalidade, provocando a geração de um olhar que percorre a pintura de um ponto


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de vista exterior ao plano, ou seja, que considera a superfície pictórica como elemento pertencente ao meio circundante. Agora, ao olhar não é mais exigida sua fragmentação, pois move-se num campo de am biente e pintura: ela é que é obrigada a esforçar-se vi­ sualmente, na captura do olhar fugidio do espectador. Inserção da pintura cm um cir­ cuito ambiental, a partir de uma temporalidade corporal. Se a nível da crítica internacional encontramos um corpo teórico siste­ matizado legitimando (institucional e mercadologicamente) a nova pintura, no contex­ to brasileiro o acompanhamento da crítica de arte em relação à nova geração de artistas processa-se de forma diversa: a nova pintura brasileira legitima-se no circuito local des­ provida de um discurso crítico que a objetive como produto pictórico portador deuma conceituação específica. Desta forma, ainda hoje é difícil não falar de Geração 80 como apenas um rótulo, já que inexiste uma reflexão diretam ente direcionada a essa produção. Ao voltarmos a atenção para a emergência da nova pintura no Brasil, par­ ticularmente no Rio de Janeiro, é possível destacar um percurso de exposições coletivas (de 1982 a 1984) que marcam a reintrodução da discussão da pintura no circuito de arte brasileiro, e o surgimento de uma produção local relacionada diretamente ao novo contexto da arte internacional. Este percurso inicia-se com “Entre a Mancha e a Figura” (MAM, setembro de 1982, RJ), “À Flor da Pele” (Centro Empresarial Rio, maio de 1983, RJ) e “ 3x4 Grandes Formatos” (Centro Empresarial Rio, setem bro de 1983, RJ) e termi­ na com “Brasil Pintura” (Palácio das Artes, novembro de 1983, BH), “Como Vai Você, Geração 80?” (Parque Lage, julho de 1984, RJ), “Geração 80” (Galeria MP2 Arte, ju­ lho de 1984, RJ) e “Arte no Espaço” (Galeria Espaço, Planetário da Cidade do Rio de Janeiro, outubro de 1984)12. Optam os por privilegiar exposições coletivas, em detrimento de individuais, por cumprirem um papel cultural mais amplo, ao projetarem possíveis tendências. Tal seleção, portanto, deve-se ao fato de que estas exposições possibilitam a monitoração da gênese de alguns conceitos acerca da nova produção, já que possuem textos de apresentação a cargo dos mesmos nomes da crítica: Frederico Morais, Roberto Pontual e Marcus de Lontra Costa13. Assim, nos parece correto determinar, particular­ mente no ambiente cultural carioca, estes três nomes como os críticos que acompanha­ ram mais de perto e desempenharam o papel mais destacado na emergência da pintura jovem brasileira dos anos 80 — já que é em torno desses três nomes que circulam textos e curadorias de algumas exposições coletivas que destacam-se naquele momento. Não podemos ainda nos esquecer do nome de Jorge G uinle Filho, autor de textos críticos a respeito da nova pintura brasileira e internacional, publicados na revista M.ódulo e nos catálogos de exposições coletivas como “Geração 80” e “Como Vai Você, Geração 80? . Por ser ele próprio um pintor, suas observações críticas diferem daquelas dos três nomes acima citados, já que se guiam principalmente por um a relação direta com as obras apresentadas, e menos por uma preocupação de articular um contexto institucio­ nal.


Jorge Guinle, “A tela”, 1983. Óleo s/tela. 195 x 195 cm.

A gênese do discurso crítico com o qual foi lançada a nova pintura brasi­ leira passa, então, necessariamente pelas idéias articuladas por estes nomes — que po­ dem ser acessadas consultando-se os textos e artigos por eles produzidos nesse período. E é do texto escrito por Frederico Morais para o catálogo de “Como Vai Você, Geração 80?” 14 que destacamos três grupos de frases que sintetizam, de alguma maneira, a lei­ tura crítica mais divulgada acerca da nova produção pictórica e da sensibilidade do novo artista brasileiro dos anos 80: 1) “Pintura é emoção, ela tem de nascer dentro das pessoas, no estômago, no coração, só na cabeça não dá. (...) a pintura é fruto de uma experiência, não nasce como teo­ ria.”


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2) “O jovem artista dos anos 80 não se sente absolutamente comprometido com temas, estilos, suportes ou tendências. Joga para o alto qualquer coerência. (...) investe no presente, no prazer, nos materiais precários.’ 3) “A nova pintura (...) é uma reação à arte hermética, purista e excessivamente intelec­ tual predominante nos anos 70. (...) rigor e objetividade na arte da década passada era, na verdade, um excessivo hermetismo (...) um álibi que escondia a empáfia dos artistas conceituais tratando de matérias (...) que não eram de sua competência.’’ Tal leitura crítica será, em sua essência, reafirmada em cada um dos tex­ tos das principais exposições coletivas que procuram discutir a emergência da pintura no Brasil dos anos 80. Direcionando nossa análise a outros textos do mesmo crítico, é possível monitorar o percurso dessas formulações na construção do pensamento de F. Morais acerca da nova pintura. E o que constatamos é que os mesmos conceitos com os quais Morais situa a Geração 80 dentro do contexto da nova pintura já estavam expli­ citados em 1982, no texto para o catálogo da mostra “Entre a Mancha e a Figura”: aí se encontram formuladas as idéias de uma “rcdescoberta da pintura, do prazer de pin­ tar”, de uma oposição às “tendências conceituais vigentes nos últimos anos” e de que “os artistas atuais (...) viajam através da história da arte, dos países, dos estilos, sem qualquer compromisso, sem qualquer preocupação com genealogias, sem praticar o que Bonito Oliva chamava de darwinismo lingüístico, ou seja, contra uma idéia evolucionista em arte”. Basicamente estas mesmas generalizações podem , ainda, ser localizadas cm

Sandro Chia, “G enoa”, 1980. Óleo s/tela. 226 x 396 cm.


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outros dois textos do mesmo autor, publicados na apresentação das coletivas “3x4 Grandes Formatos (setembro de 1983) e “ Brasil Pintura” (novembro de 1983): nesses textos também estão presentes a visão da pintura dos anos 80 como “algo visceral (...) expe­ riência sensorial em primeiro lugar” (“ 3x4 Grandes Formatos” ), como “fonte de pra­ zer, meu orgasmo” (“ Brasil Pintura” ), como “reação à tautologia conceitualista” (“3x4 Grandes Formatos” ), como “prática arqueológica sem sofrimento, um mergulho no pró­ prio passado das formas da pintura” (“ 3x4 Grandes Formatos” ) ou “prática arqueológi­ ca que leva o artista a buscar na história da arte o que antes buscava na natureza” (“Brasil Pintura” ), como reação contra “todo e qualquer darwinismo lingüístico” (“Brasil Pin­ tura”) ou “sem praticar isso que Bonito Oliva (...) denomina de idéia evolucionista de arte" (“ 3x4 Grandes Formatos”). A arte virou novamente um vale-tudo” (“ 3x4 Gran­ des Formatos” ), “a Pintura voltou a ser um vale-tudo” (“Brasil Pintura”). Baseando-nos na análise do percurso das exposições coletivas, explicitada anteriormente15, é possível concluir que F. Morais constrói suas idéias acerca da nova pintura brasileira antes que estas obras ingressem de fato no circuito, isto é, na ausência efetiva da nova produção — que se manifestaria somente a partir de “Brasil Pintura” —-, sem preocupar-se em definir quais artistas (dentre os participantes das mostras apre­ sentadas) estariam trabalhando a partir do novo contexto internacional e quais parti­ ríam de outras conceituações para suas obras. Assim, os conceitos críticos comumente vinculados à produção brasileira da nova pintura fragilizam-se bastante, pois percebese que não foram gerados em contato direto com essa produção, mas a partir de um conceito de pintura mais amplo, tão genérico quanto indeterminado. A utilização de um mesmo grupo de conceitos para realizar leituras críticas de obras sujeitas a pressu­ postos teóricos tão diversos só é realizável se este grupo de conceitos sofrer um processo de generalização e descontextualização que o desloque de seu contexto específico: e aqui a manobra foi transformar conceitos característicos de produção específicas (como a teo­ ria da Transvanguarda de A.B. Oliva, por exemplo, ou a rejeição da arte conceituai por artistas que voltam à prática da pintura nos anos 80 após a haverem abandonado) em conceitos que serviríam para construir uma categoria (chamada simplesmente de p in tu ­ ra) genérica o suficiente para abarcar todas as tendências atuantes no momento. Esta anulação das diferenças teóricas entre as produções conduz a uma visão distorcida do fenômeno da “volta à pintura” como um acontecimento do qual participam, em resso­ nância, diversas gerações de artistas — quando, na realidade, a obra pictórica de um artista que trabalha no campo da nova pintura exige uma conceituação diversa daquela outra produzida a partir de questões de um período anterior, que impunham outro raciocínio e outro contexto para o surgimento da obra. A atuação de F. Morais revela que a principal intenção desta sua leitura crítica é localizar a mostra “Como Vai Você, Geração 80?” (considerada o evento que batizou e legitimou a nova produção brasilei­ ra) como etapa de um processo mais amplo, o processo da pintura brasileira (dotada, talvez, de uma dinâmica própria, embora não seja explicitada pelo crítico), ignorando que esta exposição consagrou a penetração do movimento da nova pintura internacio­ nal no Brasil16.


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A atuação crítica de Roberto Pontual tam bém é marcada por uma análi­ se da pintura dos anos 80 que se esquiva do confronto direto com a nova produção, preferindo localizá-la no contexto local a partir de sua adequação a um modelo, chama­ do por ele de “polaridade essencial do espírito criador brasileiro’’17. Grande parte da movimentação em torno do slogan “Geração 80”, como divulgador de um novo com­ portamento e uma nova produção artística, deve-se ao livro Explode Geração!, lançado por Pontual na exposição “Como Vai Você, Geração 80?”. Nesta obra, o crítico demons­ tra sua linha de análise da nova produção, sugerindo como dado fundamental, carac­ terística mais consistente da Geração 80: seu poder de acoplar modelos , esclarecendo que se a Geração 80 “descobre na Europa e/ou EUA fontes irresistíveis de interesse (...) o mais importante a lhe dar rigor é, no entanto, a capacidade maiuscula que observo nela de assentar-se fundam entalm ente sobre modelos endógenos. De aceitar beber de preferência a água nossa”. Pontual propõe, então, dois modelos, já que, para ele, o es­ pírito criador brasileiro” constitui-se como “polaridade” : “de um lado, ardente, o mo­ delo antropofágico; do outro, ponderado, o modelo construtivo”. Haveria ainda a “proeminência de um terceiro modelo: (...) modelo do construtivismo simbólico de Joaquim Torres Garcia”. Pontual sustenta ser o “modelo antropofágico tão velho quanto o pri­ meiro contato do europeu com o índio”, enquanto que vai lançar o modelo construtivo “tão longe quanto a sua aparição entre os nossos índios”. Já em relação a Torres Garcia, afirma que “o mestre uruguaio (...) exemplifica esplendidam ente uma das maneiras mais favoráveis a nós todos, na América Latina, de obter o acordo perfeito de forma pura com a forma simbólica (...) — paixão e construção conciliadas”. Nesse instante, é importante observar que os mesmos modelos de análi­ se foram propostos por R. Pontual em 1983 em texto que publica no catálogo da coleti­ va “ 3x4 Grandes Formatos” 18, que difere da exposição “Como Vai Você, Geração 80?” por apresentar, em sua maioria, artistas que estruturam suas obras em momentos pictó­ ricos distintos daquele em que irá se constituir a nova pintura — o que configura esses modelos como categorias não geradas exclusivamente a partir do contexto da nova pro­ dução, ou melhor, categorias que querem situar-se em um contexto mais amplo, além das especificidades conceituais dos vários tipos de pintura. A validade destas categorias é, sem dúvida, bastante discutível. Mas é im portante demonstrar aqui que a análise de uma produção pictórica (sujeita a mudanças estruturais através dos tempos) a partir de um modelo (atemporal) só pode ter como resultado um trabalho do aperfeiçoamen­ to desse modelo, e não um desvendamento das características próprias da produção em questão. Este método, portanto, interessa somente ao modelo e sua autoperpetuação, configurando-se, na verdade, em uma ação crítica que ignora a presença das obras e suas especificidades. Assim, tam bém fragiliza-se a linha de análise proposta por R. Pon­ tual, porque através dela não é possível obter qualquer dado acerca da estruturação in­ terna da nova pintura brasileira. Isto se deve ao fato de que, para Pontual, parece ser mais importante caracterizar esta produção como legitim amente brasileira, do que


Enzo Cucchi,

“Stigmata”, 1980. Óleo s/tela, 208 x 135 cm.

desvendá-la em suas especificidades. Mas como pode ser possível discutir as característi­ cas culturais particulares de uma produção, se esta não é corretamente analisada em sua estruturação interna própria? É interessante destacar que a ausência de uma leitura crítica em contato direto com as novas obras não prejudica a repercussão do fenômeno da Geração 80. De fato, as idéias que acabam consagrando-se como representativas do trabalho desses artistas desempenham um papel altamente eficiente como slogans, frases de efeito, cha­ marizes sugestivos, a um só tempo sedutores e transgressores, fluindo através dos meios de comunicação de massa: prazer, rebeldia, alegria, espírito libertário, ocupação de no­ vos espaços, o efêmero, arte não cerebral, etc. Bastante ilustrativo é o título de artigo da revista Manchete, em 18/06/84: "Transvanguarda: o Pop e o Punk explodem nas telas” 19. Torna-se necessário reconhecer que esta adjetivação apresenta alto grau de efi­ ciência, ao destacar de imediato a nova produção da produção anterior — e ‘‘Geração 80” é um slogan eficiente — mas, na falta de outra dimensão crítica mais consistente, transforma-se em frágeis conceitos, sujeitos ao consumo desgastante da mídia.


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Dentre os três nomes cjue anteriormente destacamos como articuladores da nova pintura brasileira, Marcus de Lontra Costa é quem constantemente procura afir­ mar o caráter coletivo da arte que se faz no momento, enfatizando a importância de se garantir os espaços conquistados pela nova produção. Ainda que as idéias com as quais Lontra lança-se a campo em defesa dessa produção sejam basicamente as mesmas a que nos referimos há pouco como capazes de desempenhar papel eficiente de propaganda, sua atuação legitima uma série de eventos que se seguem ao sucesso de “Como Vai Vo­ cê, Geração 80?” (da qual é um dos curadores, ao lado de Paulo Roberto Leal e Sandra Mager). Dentre esses eventos, é possível selecionar alguns textos, de modo a acompa­ nhar seu pensamento. No impresso de apresentação dos artistas convidados para pintu­ ra da fachada da loja Fiorucci, em Ipanema, agosto de 1984, escreve: “Arte na cabeça, nos olhos e no coração, geração oitenta mil braços, oitenta mil planos e desejos (...) o momento presente (...) pede expansão, crescimento. É hora de se romper os limites (...). A arte se faz também nos muros, nas ruas, nas festas (...) conquistam novos cenários de ação (...) nova geração de artistas reafirma, com suas obras, sua importância e seu valor”. Em setembro do mesmo ano, apresentando a coletiva “Arte no Espaço”, reafir­ ma que “a arte, decididamente, ocupa todos os lugares, abraça todos os espaços. Ela rejeita os limites impostos por um sistema não adequado (...) a arte hoje espraia-se pe­ los muros da cidade, pelos painéis antes dedicados unicam ente às mensagens publicitá­ rias, pelos centros produtores de moda (...). O espaço da arte é o espaço da vida (...). Dele participam todos, sem grilos de sexo, credo e geração (...). O que realmente im­ porta agora, nesses tempos de alianças, é manter-se atento. Atento e forte”. Ainda em 1984, em texto que escreve para o catálogo de uma coletiva em Salvador, reunindo artis­ tas do Rio e da Bahia20, Lontra mais uma vez exprime sua crença na presença e no pa­ pel da arte, afirmando que “a arte continua viva, e hoje cada vez mais presente”, crença reafirmada no catálogo do 7? Salão Nacional de Artes Plásticas (dezembro de 1984), onde assinala que “o efêmero e o prazer são as armas que (...) artistas dos anos 80 se utilizam para alimentar a esperança de um m undo m elhor (...) Arte em todos os espa­ ços”. A partir do ano seguinte, M. de Lontra assinará ainda textos individuais para di­ versos artistas, onde se nota, entretanto, o abandono da postura de uma defesa coletiva e política da nova produção exibida nos primeiros textos, substituída agora por uma atitude mais crítica e retraída frente aos novos acontecimentos. Quando não incluímos o nome de Jorge Guinle Filho entre os principais articuladores da emergência da pintura no Brasil dos anos 80, foi por necessidade de preservar a especificidade de sua atuação. Na realidade, ele se configura como o único teórico da nova pintura brasileira a surgir nos anos 80. F. Morais, R. Pontual e M. de Lontra são os articuladores da emergência da pintura, isto é, como críticos, promotores e administradores culturais procuram orientar suas táticas de ação no sentido de forçar o redirecionamento das máquinas institucionais para o objetivo de legitimação da pin­ tura, vista por eles como uma forma “genérica” de ação, já que não demonstram preocupações de diferenciar conceitualmente esta ou aquela produção, resultando o fato de


Beatriz Milhazes, “Abram o Reino!”, 1988. Técnica mista s/tela. 179 x 188 cm.

que para esse grupo a nova pintura não é expressa teoricamente em termos de suas pro­ priedades de pintura, mas, sim, enquanto resultado de um novo comportamento, uma nova atitude frente à vida e à arte, por parte de uma nova geração de artistas. Já o com­ promisso de Jorge Guinle é para com a realização prática e teórica de sua obra, pois trabalha os dois níveis indissociadamente. Sua produção crítica procura sempre articular-se em relação direta com as obras ou artistas analisados, evitando desviar-se por interesses que vinculariam a análise do fato artístico a outras determinações e demonstrando as­ sim preocupações com aspectos teóricos e estruturais da nova pintura.


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O esquema de análise que procura utilizar no exame teórico das produ­ ções é o mesmo que utiliza na definição conceituai de sua própria prática pictórica. De­ finindo a iconografia de seus trabalhos como uma “ iconografia da história da arte”2i, J. Guinle realizará a construção de suas telas a partir da apropriação heterogênea de “estilos já dados e digeridos”, lançados na superfície pictórica de modo a provocar “ten­ são e diálogo entre as diversas partes conflitantes da tela”, em uma operação onde “ca­ da apropriação de um estilo, de um pensamento inicial, é desviada do propósito inicial da escola escolhida justamente pela inclusão de um a outra escola que seria sua nega­ ção”. A expectativa é de que esta “heterogeneidade que negaria a unicidade de pensa­ mento que cria o sublime homogêneo” provoque o surgim ento do sublime “justamen­ te (...) nesta crítica do sublime”. Leda Catunda, “ Cérebro em Stand”, 1988. Tinta acrílica s/tecido, acrílico e luz. 200 x 170 cm.


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Referindo-se à nova pintura (nacional e internacional), propõe que a es­ pessura contemporânea do trabalho pictórico seja determinada em função da oscilação provocada pela “escolha entre o deleite estético momentâneo e a força resultante do autoquestionamento da obra que a leva a um abismo, um vazio”, gerando um “reveza­ mento sutil” que “renova e constitui a aura do trabalho”. Assim, esta sensibilidade con­ temporânea seria responsável por um “vazio planejado”, marcado pela “súbita dissolu­ ção da premissa inicial” da obra. Imagens “pescadas no dia-a-dia do mass-media" se­ riam trabalhadas na superfície da tela, gerando um conflito entre a “pele experimenta­ da” (o saber pictórico) e a banalidade das imagens públicas do mass-media. Dessa for­ ma, a nova pintura se caracterizaria por representar “dois tempos culturais”, sendo o “conflito desenho-pintura um dos traços marcantes da pintura da década de 80”: o pri­ meiro movimento “guarda o antigo saber, o saber do ofício do pintor”, sendo “atirado e simultaneamente posto em xeque, comentado de uma maneira vigorosa e combatido pelo segundo tempo”. Esta fórmula operativa aparentemente pressupõe a presença da imagem como elemento a ser contraposto ao fundo pictórico. Nesse sentido, J. Guinle postulou a presença na sua obra de uma “pré-imagem, tão abstrata, que só a essência dela permeia a tela”, ao contrário da “maioria dos energéticos”, que trabalham com figurações mais definidas. E possível detectar, nessa formulação conceituai dej. Guinle, a influên­ cia das idéias de A.B. Oliva, como seu conceito de operatividade da imagem da Transvanguarda “pela neutralização de seu significado profundo” ou ainda o conceito de ecletismo como “superposição de diferentes níveis culturais”. Em sua obra pictórica, entretanto, Guinle ultrapassa o pensamento de Oliva ao realizar uma aproximação — inédita entre seus companheiros energéticos internacionais — entre imagens e concei­ tos. Assim, realiza a operação de autoquestionamento da obra” que leva ao “vazio-planejado” da “dissolução de sua premissa inicial” não através da superposição de uma imagem sobre o campo pictórico (como quer o ecletismo de Bonito Oliva), mas pela superposição de diferentes estilos (imagens abstratas obtidas através de “conceitos-clichê” desses estilos, ou “pré-imagens”, como definiu o próprio Guinle). Desse modo, ao afastar-se do ecletismo proposto por Oliva, a conceituação pictórica de Guinle trans­ forma a superposição de “dois níveis culturais” da Transvanguarda em superposição de diferentes tempos culturais, estruturando-se a partir de temporalidades. Cremos, portanto, que o fenômeno da “volta à pintura”, em nível inter­ nacional (sem excluir o contexto brasileiro), deve ser considerado como uma etapa sig­ nificativa, por recolocar, com toda a força, a discussão da imagem e da pintura. Hoje, entretanto, a pintura dos anos 80 deve ser libertada, como objeto de análise, de suas primeiras leituras críticas, já que estas tiveram, como primeiro e principal propósito, a tarefa de legitimá-la e lançá-la no circuito, ressentindo-se agora de um grau maior de precisão e análise. O impacto de sua presença ainda não encontrou um reflexo ade­ quado no campo teórico, sendo urgente trabalhar no sentido de aproximar imagem e palavra, pintura e conceito.


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1. As citações de A.B. Oliva reproduzidas neste texto foram coletadas em Transa-

vantgarde International, Milão, Giancarlo Politi Editore, 1982. 2. Ronaldo Brito, Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Bra­ sileiro, Rio de Janeiro, Funarte/INAP, 1985. 3. Ronaldo Brito, op. cit. 4. Giulio Cario Argan, El Arte Moderno/1770-1970, 6? edição, Valencia, Fer­ nando Torres Editor, 1984. 5. “Materiais verdadeiros” é o termo utilizado por Harold Rosenberg em "Desestetização”, in A Nova Arte, Gregory Battock org. São Paulo, Perspectiva, 1975. 6. Giulio Cario Argan, “Art and the Crisis o f Models”, in Transavantgarde Inter­

national. 7. Achille Bonito Oliva, op. cit. 8. Achille Bonito Oliva, op. cit. 9. Giulio Cario Argan, op. cit. 10. Achille Bonito Oliva, op. cit. 11. Joseph Kosuth, “Arte Depois da Filosofia”, in Malasartes, Rio de Janeiro, n? 1, p. 10, 1975. 12. Estas exposições coletivas podem ser agrupadas em dois blocos distintos: “Entre a Mancha e a Figura” e “ 3x4 Grandes Formatos” reúnem principalmente artistas cujos trabalhos e obras originam-se a partir de contextos anteriores ao contexto internacional da nova pintura, compondo-se tanto de artistas que sempre pinta­ ram (Iberê Camargo, por exemplo), como de nomes que "retornam à pintura”, após a haverem abandonado (como Rubens Gerchman e Carlos Vergara). Já “Brasil Pintura”, “Como Vai Vocc, Geração 80?”, “Geração 80” e “Arte no Espaço” mar­ cam a entrada em cena de novos artistas, cuja produção inicia-se dentro do con­ texto da nova pintura, trabalhando em diálogo com o novo cenário internacio­ nal. A exposição “À Flor da Pele” pode ser colocada no primeiro bloco, pela di­ versidade de produções apresentadas, embora inclua um nome da nova geração (Leonilson). 13. F. Morais escreve para “Entre a Mancha e a Figura”, “3x4 Grandes Forma­ tos , Brasil Pintura” e “Como Vai Você, Geração 80?”. R. Pontual comparece com texto em ‘3x4 Grandes Formatos” e lança o livro “Explode Geração!” du­ rante a exposição do Parque Lage. M. de Lontra escreve para “À Flor da Pele” e Arte no Espaço , e é um dos curadores de “Como Vai Você, Geração 80?”. E preciso esclarecer que outras exposições coletivas importantes no período (“Pin­ tura como Meio , MEC-USP, agosto de 1983; “ Pintura! Pintura!”, Fundação Ca­ sa de Rui Barbosa, outubro de 1983; “Stand 320”, Thomas Cohn Arte Contem­ porânea, junho de 1984; “Casa 7”, Centro Cultural São Paulo, 1984) não foram aqui relacionadas por não colocarem em circulação qualquer texto crítico de apre­ sentação ou então portarem textos assinados por outros nomes da crítica, que não atuaram tão direta e especificamente no processo de legitimação da nova pin­ tura brasileira.


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14. Frederico Morais, “Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica Onde Está Você?”, in Revista Módulo, Catálogo Oficial da mostra ‘‘Como Vai Você, Geração 80?", jul. 1984. 15. Ver nota 12. 16. Publicado em O Globo (20/07/84), este comentário demonstra de que ma­ neira F. Morais situa esta mostra no contexto da arte brasileira daquele momen­ to: "coroando uma série de exposições pioneiras que procuraram revelar e iniciar a análise dos novos comportamentos da arte brasileira, ‘Como Vai Você, Geração 80?’ repõe o Rio no seu curso natural, a vanguarda”. 17. Roberto Pontual Explode Geração!, Rio de Janeiro, Avenir Editora, 1984. 18. Roberto Pontual, "Crise da Crise? A resposta também pode ser nossa”, in catálogo da mostra "3x4 Grandes Formatos”, Centro Empresarial Rio, set. 1983. 19. Citado por F. Morais em seu texto para o catálogo de “Como Vai Você, Gera­ ção 80?”. 20. Marcus de Lontra Costa, “Rio/Bahia: nas águas da arte”. Salvador, Galeria O Cavalete, dez. 1984. 21. As citações aqui transcritas de Jorge Guinle Filho provêm dos seguintes tex­ tos de sua autoria: “O Conceito da Imagem na Nova Pintura do Século XX”, Módulo n? 67; "Expressionismo vs. Neo-Expressionismo”, Módulo n? 74; “Leonilson. A implosão da imagem”, Módulo n? 75; “Os dois tempos de Iberê Ca­ margo”, Módulo n? 82; XVII? Bienal Internacional de São Paulo, Catálogo Ge­ ral; "Papai era Surfista Profissional, Mamãe Fazia Mapa Astral Legal, ‘Geração 80’ ou Como Matei uma Aula de Arte num Shopping Center” in catálogo oficial de "Como Vai Você, Geração 80?”; “ 2 tendências possíveis na jovem arte brasi­ leira e tradição modernista frente ao inconsciente dos anos 80” in catálogo de “Geração 80”, MP2 Arte, jul. 1984.

RICARDO BASBAUM é graduado em Ciências Biológicas pela UFRJ; formado pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Ponti­ fícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, e artista plástico.



MARIA A N G É L IC A D A SILVA

De Wright a Pollock: O Deserto, a Cascata e a Cena Moderna Americana

América. Baudrillard fala em América Sideral. Pela vastidão do territó­ rio, pela liberdade, pela solidão. No início, nas paisagens desérticas, homem e natureza intercambiavam energias. Eram indistintos. A relação entre o sujeito e o mundo não privilegiava nenhuma das partes. Matéria e gesto se confudiam. A natureza não era ma­ nipulada, pois o homem não investia sobre ela como dono. O tempo, em estrutura anu­ lar, sem princípio ou fim, passava e voltava, como as estações e os ciclos naturais, sem­ pre cativo do presente. Conduzia-o a regularidade do movimento cósmico. Não havia do que se ocupar no futuro ou passado. A imutabilidade do mito é surpreendida pela chegada súbita do civiliza­ do que, sofregamente, passa a desmanchar o paciente tecido milenar, libertando o ges­ to da fidelidade à matéria. A figura do pioneiro instaura o divórcio entre sujeito e obje­ to, doma o tempo e cria legados e posses. Comparada à Europa, a América cumpre destino peculiar — dos infindáveis desertos para as megalópoles, da matéria mágica das culturas primitivas para o frenesi do consumo, não percorre a lenta via crucis sofrida pela cultura européia. A passagem rápida da cena primitiva para o estágio da moderni­ dade leva Baudrillard a entender a América como a “única sociedade primitiva atual’’. Uma sociedade sem passado e portanto apta a realizar a utopia, ou seja, levar a cabo a tarefa moderna, articulada pelos europeus mas jamais concretizada por eles. O moderno, segundo ato da cultura americana, realiza a eficácia da pro­ dução e do consumo. Abandona o mundo do mito já que é capaz de realizar as satisfa­ ções dos homens. Deixa a herança ancestral fora de seus muros, nos vastos areais ocres que sempre abrigou a constância do mundo indígena. Mas, apesar do brilho das cida­ des, do conforto dos apartamentos, do desempenho da tecnologia, da prodigalidade da economia, alguém atina para o surdo ressoar da ausência da História nas entranhas da utopia. Talvez o confronto do paraíso perdido com o mundo reluzente onde se encena o cotidiano moderno revele o grau de relevância deste vazio. Afiançado da vera­ cidade desta trilha, este texto se propõe a investigar personagens que justamente toma­ ram para si a tarefa de seguir este caminho. O arquiteto Frank Lloyd Wright e o artista Jackson Pollock participam da construção do edifício moderno americano vivenciando os conflitos e a ousadia deste empreendimento. Wright e Pollock revelam atitudes a princípio antitéticas frente à concep­ ção da nova cultura. A postura de Wright é confiante. Crê no homem solitário vencen­ do os rigores do deserto, nutrido pela força milenar indígena. Pollock vive a concretiza­


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ção do mundo erguido ,pelos pioneiros mas desconfia de sua superfície asséptica. Estas atitudes fazem o laço do processo — a obra do arquiteto, iluminada pela crença de de­ mocrata, prepara a cena do artista. Neste sentido, referindo-se a Pollock, Argan comen­ ta: “Mas note-se que não se chega à sua lúcida e desesperada consciência da realidade sem a lição de Wright. Talvez o torm ento e a alternativa mortal de amor e desespero de Pollock dependam em parte do fato de haver sido, sem sabê-lo, convida­ do do senhor Kaufmann, à casa da cascata de W right”. 1 A proposta de uma incursão à cultura americana será amparada pela no­ ção de América repassada por dois ilustres europeus, que deixaram registradas as suas impressões de viagem ao Novo Mundo. Em que pese um a defasagem entre as partidas de meio século, as narrativas de Corbusier e Baudrillard guardam similaridades na me­ dida em que ambas abordam a relação entre Europa e América sob o prisma da cons­ trução da modernidade. Corbusier compara o m om ento americano do entreguerras à experiência vivida pela Europa no tempo da construção das catedrais, época em que o pensamento não tinha fronteiras ou nacionalidade. Baudrillard corteja entusiastica­ m ente a realização dos sonhos europeus no solo da América, ao abordar o período do pós-guerra aos anos contemporâneos. Ambos exercitam esta noção de pensamento sem pátria para entender um contexto que se pretende universal. Cabe averiguar a resposta estética deste contexto.

Le Corbusier. Visão de Manhattan, 1936.


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Frank Lloyd Wright. Vista da Casa da Cascata.

Voltemos ao início do Século XX. A América para Wright é um imenso espaço disponível para o exercício da criação. O arquiteto sente-se à vontade retomando o papel dos pioneiros. Crê que o nômade é o protótipo do democrata e que a contribui­ ção da América à Europa dar-se-á justamente através da democracia. Enquanto arquite­ to e urbanista, cabe-lhe a missão de construir uma feição original para o país balizada por estes princípios. Wright propõe a democracia orgânica. O termo orgânico sintetiza uma analogia geral e poética que aproxima os fatos sociais da lógica da biologia. A vitalida­ de das conquistas científicas iluminaria as teorias do crescimento da sociedade. Â arqui­ tetura interessa as relações organismo/função e o princípio da vitalidade, a serem iden­ tificados na estrutura orgânica das plantas e vísceras e no crescimento matemático dos cristais. A arquitetura guiada pelo pensamento orgânico deve-se desenvolver de dentro para fora, em harmonia com as necessidades do homem e em plena integração com o meio. Daí o desfazer da caixa através do jogo livre das paredes. O espaço interno é favorecido e, ao romper ao exterior, se apropria da paisagem, numa relação de inter­ câmbio pleno. Adotando este procedimento, Wright inverte o processo tradicional de idealização arquitetônica e recoloca o espaço como o protagonista da arquitetura, no dizer de Bruno Zevi.


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A idéia de crescimento lembra o vigor de brotos verdes e a quebra do ramo seco. Indagado sobre como interferir em um centro histórico como o de Londres, Wright o compara a um a velha enferma que mesmo sob os olhares consternados dos parentes terá que um dia ser enterrada, mas jamais embalsamada. Para Wright o passa­ do é descartável. Propõe um a arquitetura que não beba em fontes européias surgindo ape­ nas da tradução livre da relação da obra com o entorno. Os espaços exteriores são o ce­ nário americano, onde lança edificações compatíveis com sua geografia — planas e ho­ rizontais. Edificações verticais, quando acontecem, devem zelar por enormes áreas livres ao seu redor, garantindo uma condição ambiental favorável. Também na Europa os movimentos de vanguarda do início do século ques­ tionam a herança do passado. A intenção de ruptura com a história está presente em diversos movimentos que pretendem uma sintonia mais deslizantes com o presente. Na arquitetura nega-se o ecletismo e a produção do Século XIX. O anti-historicismo de Wright avaliza esta postura mas ampara longínquas heranças basicamente não euro­ péias. Dispensa os resíduos do colonialismo e recupera os valores do m undo ancestral americano e do oriente. Não lhe interessa a história mas o a-temporal. Acredita que também deva ser este o princípio norteador da sociedade americana. Despida da tradi­ ção, poderá caminhar com passos ágeis em busca de respostas à altura do tempo futuro. Estas atitudes fornecem uma das pistas que relacionam Wright e Pollock: ambos manipulam as fontes do mito com o olhar do presente. A atuação de Wright no final do Século XIX e início do Século XX é original. O contexto de época é adverso a este tipo de prática. As vanguardas, guiadas pela razão, acirram justamente as dife­ renças entre homem e natureza. Já no pós-guerra, o parâm etro da razão passa a ser pro­ fundamente questionado. As idéias de Freud e Jung, a articulação do movimento sur­ realista e do existencialismo são sintomas de época. Pollock participa deste momento de crise do projeto iluminista potencializando-o brilhantem ente em suas telas. O arquiteto cumpre o retorno à prim eira fase americana inicialmente co­ lhendo fragmentos da visualidade e incorporando-as aos seus projetos. Com o amadu­ recimento de suas obras, aproxima-se de Pollock, que pretende resgatar do mito não a exterioridade mas uma nova postura frente à natureza artística, perseguindo a indis­ tinção entre gesto e matéria. Este, como Wright, está ao encalço da universalidade, do não histórico. Fazendo incursões ao imponderável, ao mágico, recupera algo próximo às impressões de viagens no tem po da juventude, ao oeste americano. Imersões diferen­ ciadas nas profundidades do mito colocam W right e Pollock em patamares diferentes. Wright passa para os compêndios de arquitetura como alguém que foi capaz de tecer as mais sutis combinações entre arquitetura e natureza, dissolvendo a obra nos recursos da paisagem. Pollock, no entanto, atinge a extrema integração entre natureza e cultura. Sera conhecido pela afirmativa — em depoim ento e obras — de que ele, Pollock, seria a própria natureza.


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Jackson Pollock como guarda florestal no Arizona, verão de 1927.

Wright nega todos os apelos da academia, incapazes de orientar a sua prática. Dedica-se sinceramente à causa americana. Coloca a produção de arquitetura como instrumento para a ação. A democracia passa também pelo terreno da ética e a arte deverá ser capaz de alocá-la no rumo certo, desviando-a de desequilíbrios momen­ tâneos. Sua adesão aos materiais apropriados, o respeito pelas técnicas locais, não pres­ supõem a negação dos benefícios trazidos pela ciência. Ao contrário, entende os proce­ dimentos tecnológicos como evolução transcente das leis da natureza. Reconhece, nos dirigentes industriais, os modernos substitutos dos reis. Pretende “corrigir” a função da máquina colocando-a a serviço do indivíduo e da democracia. A tensão entre tecnologia e natureza está também presente em Pollock, na ruptura com o uso tradicional dos materiais, nas inovações frente às atitudes consoli­ dadas para a confecção da “ boa pintura”. A falta de uma “última camada” em seus quadros guarda sintonia com algo de selvagem e de apressado peculiar à América mo­ derna e à rudeza do m undo índio. O arquiteto expressa a mesma inquietude do pintor,


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ao lançar, no coração da m etrópole, a forma curva e envolvente do museu Guggenheim dialogando polemicamente com a densa massa vertical urbana. A aceitação clamorosa de Wright na Europa por volta de 1910 pode ser explicada pela forma peculiar de manejo do espaço e das paredes enquanto septos, além do otimismo contagiante por um a nova sociedade. Os europeus admiram seu trabalho, com exceção dos efeitos decorativos de fonte tradicional. Para Reyner Banham, Wright apresenta aos europeus um a nova alternativa, interm ediária entre os planos audazes dos futuristas e os frios projetos racionalistas. Seu otimismo traz energia a movimentos de cunho idealista como o De Stijl e surpreende a inteligência conflituosa européia com a limpidez do raciocínio americano. Não fica revelada, porém, a ligação complexa de Wright com a natureza, o que descartaria qualquer idéia de aproximação com os euro­ peus, envolvidos apaixonadamente com o projeto tecnicista. A arquitetura orgânica sugere em W right as evidências da teoria da Ein­ fülung, concepção que vê a arte como responsável pela conexão do mundo exterior e interior através da forma. Propõe a participação do sujeito na criação e vê a natureza como tendo algo de semelhantre ao nosso sentir. A Einfülung entende a arte do ponto de vista psicológico, componente sempre presente na noção de funcionalidade em Wright. No mesmo sentido, Pollock atualiza a Einfülung como impulso criativo do gesto, colo­ cando a arte como tarefa não só psicológica como tam bém física. Incorpora, de uma maneira diferenciada aos futuristas, o movimento à obra de arte. A ênfase expressiva do gesto, no momento de construção da tela e no próprio resultado, reflete uma estética atualizada. Como foi visto, Wright antecipa certos questionamentos e posturas pelos quais passará o projeto de modernidade no m om ento do pós-guerra. Mas também será ultrapassada pelo veículo da história. Consolidado como grande arquiteto, um sobre­ voo sobre sua longa carreira pode revelar grande êxito no que se refere à qualidade e ao número de obras. A casa da cascata é uma obra singular no acervo arquitetônico de todos os tempos. Pode ver a América consolidada como prática de certo modelo de democracia, mas seus planos com relação à cidade, as propostas de co-habitabilidade entre campo e zonas urbanas, falharam. Os grandes espaços de alta densidade se insta­ lam. A amplidão está no deserto e na cidade. Pollock confirma a presença do cenário da infância em suas obras, mas identificava Nova Iorque, explosiva, intensa, co­ mo interlocutora de sua obra. Em Pollock não cabe mais o orgulho do pioneiro frente ao espaço a conquistar. Contudo, como Wright, sabe que deve abrir caminhos para que a resposta moderna americana possa acontecer lim pidam ente. Para isto é preciso despo­ jar se das heranças acadêmicas, arriscando percursos próprios, dando vazão às dissonân­ cias de seu próprio ser. Manipulando as angústias de indivíduo, adestra os elementos da própria crise de época. Com Pollock a cultura americana dá o salto que a torna autô­ noma e, assim, universal.


De W right a Pollock

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Já em 1936, em viagem à América, Corbusier colhia impressões que diag­ nosticam a necessidade de a América romper com a Europa para se fazer realmente cen­ tro do mundo. No campo da arte e além dele, o Expressionismo Abstrato, principal­ mente na figura de Pollock, cumpre este desígnio. Baudrillard chega a constatações na década de oitenta que nos anos quarenta já eram esboçadas: a América é a pátria do moderno. “Mais do que uma aproximação, é o confronto entre a América e a Euro­ pa que faz aparecer uma distorção, um corte intransponível. Não é somente uma defasagem, é um abismo de m odernidade que nos separa. Nasce-se moderno, não se torna moderno. E nós jamais nos tornamos. O que salta aos olhos em Paris é o Século XIX. Vindos de Los Angeles, aterrissamos no Século XIX. Cada país contém uma espécie de predestinação histórica que lhe marca os traços de um modo quase definitivo. Para nós, franceses, é o modelo burguês de 1889 e a interminável decadência desse modelo que desenha o perfil de nossa paisagem. (...) lackson Pollock no trabalho de atelier.


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A niéncí c a versão original dá m odernidade, nos somos 3 versão du­ blada ou com legendas.” 2 Críticos como Greenberg acentuam n3 obra de Pollock o legado de Cézsnne e do Cubismo. O próprio Pollock reconhece o caminho progressivo d3 3rte mo­ dem s, do Impressionismo 3 0 dripping, pairando sob convenções de nacionalidade. Po­ rém Greenberg deixa intocada 3 influêncÍ3 surrealista em Pollock. Para Hubert Damisch, por exemplo, o Surrealismo cumpriu o im portante pspel de permitir 3 0 artista escapar da obsessão pelas figuras de Guernica. Contudo, diferentem ente dos surrealistas, o mer­ gulho de Pollock no inconsciente não é guiado pela imaginação, como era de se esperar, mas pela percepção. Afasta-se de um caráter literário que tornava a obra surrealista pas­ sível de uma aceitação mais fácil, se comparada aos movimentos construtivistas. Como diz Argan, o escândalo é menos perigoso que a revolução. A tentativa de Pollock é de unir, como pretendia Wright, as pontas do Oriente e do Ocidente. Atendendo à ancestralidade americana, está ao encalço de refa­ zer a ligação entre matéria e gesto, cor e risco, fundo e forma. E movido por crenças teosóficas mas fala compreensivelmente a um m undo que descartou os deuses e o hu­ manismo. No retorno ao mito, faz parceria aos negros das bandas de jazz, que recupe­ ram a África tribal. Ouçamos Corbusier: “Em Harlem como na Broadway, a orquestra negra é impecável, sem fal­ ta nem omissão, regular, em ascenso rítmico e marcha incessante: a trombeta, dilacera­ da, estridente, uivando sobre os rufos da marcha. A equivalência a uma formosa turbi­ na que funciona rodeada pelas conversas de seres viventes que estão em torno. O hot jazz. O jazz, como os arranha-céus, é um acontecimento e não uma obra con­ cebida. São as forças presentes. O jazz está mais adiantado que a arquitetura. Se a ar­ quitetura tivesse chegado ao mesmo ponto do jazz, seria um espetáculo inaudito. (...) O ouvido recebe alimentos frescos. A sensibilidade está liberada: vê-se acumulada de revelações comovedoras. Fundações de catedrais sonoras que já se erguem.” 3 Máquina. Acontecimento. Também Argan lança mão do jazz para, atra­ vés dele, solidarizar entre si os negros, os índios e o hom em moderno. O jazz é resposta à angústia e à solidão, ao silêncio confusamente ensurdecedor das cidades. Como em Pollock, o jazz parte do improviso para chegar ao acontecimento. A tela, como a pauta musical, se constrói de passeios, de movimentos e contra-movimentos. Greenberg compara o trabalho de Pollock ao de Mondrian na perfeição em compor a estrutura da tela. Enquanto Modrian atinge o equilíbrio planar através da severa disciplina, Pollock arma a tela como um jogo complexo de ausências e presen­ ças. Lembra a malha inextrincável dos cristais e dos organismos estrutrurados dos vege­ tais que Wright perseguia, e que em suas obras arquitetônicas revelam-se nos cheios e vazios, nos movimentos de planos formando saliências e reentrâncias. Humbert Damisch, referindo-se às telas de Pollock, fala em “ficção do espaço . A obsessão pelos limites alinha o índio, o pioneiro, o arquiteto e o artista. Vis­


Dc W right a Pollock

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lumbram horizontes sem fronteiras, onde não há ponto de referência para nosso conso­ lo. Nos quadros do pintor, caminhamos sem o apoio de um ponto central ou de uma figura que assegure a referência à escala humana, como ocorria nas grandes telas do passado. Pollock mantém um nível homogêneo de intensidade de emoção em toda a superfície da tela. O plano não está subjugado a dimensões fixas iniciais. É o próprio trabalho pictórico que se constrói livremente enquanto espaço. No mesmo sentido, Wright recorta cuidadosamente a obra arquitetônica da paisagem, deixando de lado premissas estipuladas a priori pelo proceder acadêmico ou racionalista. De 1951 a 1953 o trabalho de Pollock retoma procedimentos anteriores à fase do dripping. Volta a figura e o pincel. Estaria negando a aventura do ato solto e acolhendo novamente o humanismo de Picasso e dos mexicanos que havia superado? Textos de vários críticos apontam diferentes explicações. Greenberg, na década de ses­ senta, aceita a volta da figura não apenas nas telas de Pollock, mas nos trabalhos de diversos artistas expressionistas abstratos. Sustenta que a revelação da modernidade no quadro se dá pela manutenção da estrutura planar. Fala de uma “figuração não repre­ sentativa”, que comporta a utilização da figura principalmente enquanto forma plásti­ ca, descritiva. Recorre à teoria de Wõlfflin que opõe as tendências clássica e barroca co­ mo dois pólos alternados para a arte, para justificar o fim da linearidade absoluta nas telas da escola americana. Outros críticos apontam, na mudança ocorrida em Pollock, a insatisfação do próprio artista com seu trabalho, em busca incessante de estar sempre superando a si mesmo. Hubert Damisch coloca explicitamente Pollock tomando para si o empreen­ dimento de unir o que se encontra perenemente distanciado: o clássico e o barroco, o pictórico e o linear. Localiza em suas telas o embate entre o repouso da figura e a ação extenuante de dripping, até que ocorra o desaparecimento súbito e profundamen­ te significativo do próprio artista. O curto período de vida de Pollock é suficiente para que, ao contrário de muitos artistas, presencie em vida a consagração da sua obra. Pretendia ser um bom artista, como deixa registrado em carta a seu pai, escrita em fevereiro de 1932. Contudo, para ele, a arte era tarefa maior do que se esperava comumente do trabalho de um pin­ tor: “Mais umas boas sessenta dezenas de anos e eu serei um bom artista — ser artista é a vida ela mesma — é viver a vida, eu vos digo. E quando eu digo artista, eu não tomo a palavra no seu senso estreito; eu penso no homem que constrói as coisas, que imagina, que cultiva a terra, quer nas planícies do Oeste ou no minério de ferro da Pensilvânia.”4 Em 1942, elogiados pela crítica, os trabalhos de Pollock passam a ser va­ lorizados crescentemente. A imprensa transfere para o público a idéia da semelhança de Pollock ao protótipo do jovem indivíduo americano audaz, poderoso, destrutivo. Apon­ ta em suas telas o brilho do novo. Compara o dripping ao mundo fragmentado em sig­ nos coloridos da paisagem pós-Hiroshima. Elogia o tamanho gigantesco das telas como


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algo familiar a uma nação afeiçoada a superlativos. Desta forma consegue divulgar a obra do artista desperdiçando seu real significado em favor de uma digestibilidadc fá­ cil. Contudo, Pollock pretendia uma arte a serviço da transformação. Tomara para si a tarefa de unir o mito ao cotidiano moderno. Não projetava atender aos meca­ nismos da necessidade e da satisfação que colocam todos os produtos do trabalho hu­ mano como mercadorias organizadas em infindáveis prateleiras. Talvez pudesse sim, atra­ vés de sua arte, atiçar as fagulhas do desejo... A passagem repentina da tribo para a m etrópole tornou muito aguerrida a fase industrial americana. A precocidade do processo deixou-o mais condescendente com relação ao canibalismo do consumo. No tem po da juventude de Wright, ainda se acreditava que as bandeiras de uma nova sociedade trariam cativas atrás de si multidões de americanos entusiasmados. Mas, na época de Pollock, o artista sabe-se só em um m undo de pessoas sorridentes. Daí o veio expressionista para dar razão à intensidade transbordante de energia e sentimento. A ingerência física no processo de criação faz-se imprescindível, em um trabalho que resulta de um a relação profundam ente orgânica com a obra. A ação suicida, sem planejamento, contra um m undo minuciosamente or­ ganizado ao seu redor. O kitsch generaliza-se e não é mais possível localizá-lo apenas junto às camadas populares, como o fazia Greenberg. O kitsch assedia todas as camadas sociais, homogeneizando gostos e comportamentos. M etaboliza o sacro em profano e vence a grande arte pois tem como capturá-lo enquanto valor de troca. Depois do Expressionismo Abstrato, à Arte Pop cabe apenas sorrir cinicamente ao inimigo e parodiar a merca­ doria. Não se trata de duvidar do potencial transformador da arte, mas de entendê-lo em negativo frente ao estágio de constituição das relações sociais burguesas contemporâneas. A arte de Pollock é prova da capacidade de resistência da arte, que passa a nutrir-se das adversidades e incertezas que amaçam a sua sobrevivência. Abor­ dando este tema, Baudrillard deduz que a atitude americana no campo da arte predis­ põe-se a gerar uma produção artística normalmente “enfadonha e deslocada”, em com­ paração com a Europa. Nestes termos, o autor deixa de perceber a aptidão da cultura de reagir por si mesma frente ao estabelecido e trai o olhar europeu, bem disfarçado na forma magnânima de aceitar a face banal da América. Passado. Presente. Jogo dos tempos. O que se pode afiançar é que a ex­ periência moderna tem que estar no horizonte de quem pretende colocar-se no mundo contemporâneo, além dos seus invólucros. Há que se resgatar experiências pioneiras: Pollock e mais novo que o m undo em que vivemos, as casas de Wright do início do século não foram superadas no contexto mais am plo da produção arquitetônica. Retoas obras de alguns personagens não é apenas descobrir o pitoresco do novo, mas , ... , s^st^ c*a um projeto. Algumas porções do passado nos deixam clara a vulnera­ bilidade dos pilares em que nos apoiamos hoje.


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Devolver o conteúdo a certas obras, vestir os trajes revolucionários em certos personagens que foram banalizados pelo consumo, pode ser tarefa inadiável. Como tam­ bém preencher os mitos esvaziados de substâncias, para deixá-los falar e auxiliar-nos agora. Talvez um dia, dentro de um conceito reformulado de “civilização maquinista”, possamo-nos juntar a Corbusier na saudação à nova terra, em 1934: “A hora presente é criadora, criativa, de uma intensidade inaudita. Uma grande época começou. Uma época nova. Manifestada logo em inumeráveis obras individuais e coletivas, unidas à quase totalidade da produção contemporânea, surgindo das oficinas, das manufatu­ ras, das fábricas, dos cérebros dos engenheiros e dos artistas — objetos, estatutos, proje­ tos, pensamentos — a civilização maquinista explode. Novos tempos! Ocorreu exatamente o mesmo, uma vez, há sete séculos, quando nascia um mundo novo, quando eram brancas as catedrais!” 5 Habermas afirma que não temos, hoje, motivos suficientes para crer na utopia, que se mostrou ineficaz tanto nas condições de produção como na socialização dos bens. Ainda resta, porém, a chance de trocar a pretensão moderna de dominar o mundo pela tarefa de pretender desvendá-lo. A arquitetura de Wright e as telas de Pol­ lock fornecem uma pista.

Partes traduzidas “Pero notese que no se llega a su lúcida y desesperad conciencia de la realidad sin la lección de Wright. Quizás el tormento y la alternativa mortal de amor e desesperación de Pollock dependen en parte dei hecho de haber sido, sin saberlo, envitado dei senor Kaufmann, en la casa de la cascada de Wright.” 1 “Em Harlem como en Broadway, la orquestra negra es impecable sin falta ni omisión, regular, en anscenso rítmico y marcha incesante: la trompeta desgarradora, estridente, sullante sobre redobles da marcha. La equivalência de uma hermosa turbina que funciona, rodeada por las conversaciones de seres viventes que están en torno. El hot jazz. El jazz, como el rascacielos, es un acontecimiento y no una obra concebida. Son las fuerzas presentes. El jazz está más adelantado que la arquitectura. Si la arquitectura hubiera llegado ao mismo punto que el jazz, seria un espectáculo inaudito. El oído recibe alimentos frescos. La sensibilidad está liberada: se ve colmada de revelacones conmovedoras. Fundaciones de catedrales sonoras que ya se yerguen. 3 "Encorc une bonne soixante-dizaine dannées et je serai un bon artiste — être artiste, c’est la vie elle-même — c’est vivre la vie, je veux dire. Et quand je dis artiste, je ne prends pas le mot dans son sens étroit; je pense à 1’homme qui construit des choses, que crée, qui façonne la terre, que ce soit les plaines de 1’Ouest ou le minerai de fer de Pennsylvanie.


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“La hora presente es creadora, Creative, de una intensidad inaudita. Una gran época ha comenzado. Una época nueva. Manifestada ya en innumerables obras individuales y colectivas, unida a la casi totalidade de la producción contemporânea, surgiendo de los tallercs, de las manufacturas, dc las fábricas, de los cerebros de los ingenieros y los artistas— objetos, estatutos, proyectos, pensamientos — la civilización m aquinista estalla. Nuevos tiempos! Ocurrió exactamente lo mismo, una vez, hace siete siglos, cuando nacía un mun­ do nuevo, cuando eran blancas las catedrales!” ^

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MARIA ANGÉLICA DA SILVA é arquiteta formada pela Universidade de Minas Gerais. Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universida­ de Federal dc Alagoas e aluna do Mestrado em História Social da Cultura, PUC-Rio.



LUIZ ESPERLLAGAS GIM ENEZ

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Este texto foi apresentado no curso do Terceiro Ciclo da Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona em 1981, para o catedrático Juan Bassegoda i Nonel. (a respeito dos filmes de Charles Chaplin) ...era un arte muy compuesto, que ensartaba oblicuamente vários gustos, vários lenguajes. Artistas así provocan una dicha total, porque dan la imajen de una cultura a la vez diferencial y colectiva: plural. Esta imajen funciona entonces co­ mo un tercer término, el término subversivo de la oposición en la que estamos encerrados: cultura de massa o cultura superior.” Roland Barthes

Introdução Este texto tem como principal intenção, mais do que aprofundar alguns conhecimentos pontuais referentes ao trabalho do arquiteto ou detalhes de uma obra tão complexa e rebelde a um enquadramento, tentar relacionar o fenômeno gaudiniano com alguns pontos da historiografia arquitetônica referente ao século XIX e em par­ ticular com especificidades culturais de sua região, já que vai defender que vários condicionantes, teorias e debates da problemática trajetória da arquitetura daquele século em contato com a realidade catalã, que os transforma, adequa-os e lhes dá significado próprio, podem ajudar a com preender melhor este trabalho, filiando-o a determinados esquemas de pensamento que podem explicar algumas de suas questões e exorcizar seu caráter solitário e excêntrico. O esforço crítico e teórico desencadeado na Europa pela definição e ex­ plicitação de bases conceituais que superassem a tradição da Beaux-Arts e o cansaço das diversas gerações de arquitetos que apenas dispunham de distintas e combinadas mani­ festações historicistas como única alternativa possível para a profissão são motivados pe­ la idéia e desejo de uma nova sociedade, pela formulação de estratégias e desenho para uma nova cidade, pela incorporação de novas formas de produção, pelas novas técnicas e materiais e pelas novas dem andas urbanas: estímulos de uma nova arquitetura ou das "novas” formas que atestassem o ‘‘espírito da época , aquele que mais tarde seria o principal ‘Teit motiv” dado à opinião pública para a fuga do humanismo. igreja da Sagrada Família. Barcelona, 1882.


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É evidente que os anseios e a realidade da Catalunha filtram questões precisas entre todas as tendências observáveis num espectro mais amplo e por intermé­ dio de seu forte e estável perfil cultural. Vai desempenhar um papel importante na sele­ ção de materiais para a produção de seus espaços urbanos e mesmo, apesar da dificulda­ de maior de verificação, na escolha do léxico experim entado por seus arquitetos para dar vitalidade formal ao projeto de afirmação de um povo que se tem como nação. Tratando-se de um trabalho tão singular e excepcional, mesmo levando-se em consideração algumas semelhanças e afinidades com obras coetâneas, deve ter reco­ nhecidos os traços peculiares da personalidade de um autor, que a partir de decisões extremistas e corajosas, acaba, no decorrer de sua obra, afastando-se, com suas idéias de arquitetura e de mundo agudamente particulares, da própria produção doméstica e dos fundamentos que já naquele tempo promovem o que se entende por arquitetura moderna. Não são a notabilidade do autor e o isolamento da obra que impedem estabelecer uma relação entre esta arquitetura e o panoram a geral dos acontecimentos relativos à cultura arquitetônica na Catalunha e mesmo no ocidente. Se os resultados finais são raros e decorrentes de uma postura saudosista ou revisionista que entrava em colisão com o mundo moderno, obstruindo-o, e que tratava de sustentar-se obstinada­ mente combinando uma visão romântica com os avanços técnicos e as informações dis­ poníveis numa sociedade francamente desenvolvida mesmo dentro dos padrões euro­ peus, não se pode esquecer que esta postura articula, não sem contradições, pensamen­ tos conflitantes que se apresentam imbricados num m om ento de indecisões e mudan­ ça, enfrentando-se e contaminando-se, até que o mais apropriado às novas exigências mundiais conquiste uma inevitável hegemonia. A obra de Gaudi é, por um lado, a m aneira e o esforço de um homem, e por outro, uma das possíveis respostas a uma cultura ecumênica, plural, abrangente e aglutinadora. Deve admitir-se que Gaudi recebeu sua formação e produziu arquite­ tura num dos momentos em que se decidia, não por acaso, aquilo que todos acredita­ vam e propunham ser o grande salto da arquitetura moderna: o abandono da história como silo de experiências formais e a conseqüente consolidação de uma causa ou de um estilo “ex novo”. A proximidade cronológica que G audi tem com os “ pioneiros” escolhi­ dos pela historiografia oficial” do movimento m oderno para organizar a defesa, ao mesmo tempo solidária e tática, do novíssimo estilo e a presença incômoda de uma obra que não passa desapercebida, sejam positivas ou negativas as impressões despertadas, foram responsáveis pelos distintos paliativos que tentam neutralizar, de alguma manei­ ra, este arquiteto frente à ortodoxia moderna para não danificar o carisma e a difícil coerência do movimento. A desmistificação do império funcional, proporcionada pelos textos historiográfícos iniciados a partir dos anos cinqüenta, e os novos instrumentos críticos con­ solidados pela soma destes trabalhos, devem perm itir um a melhor aproximação do fe-


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nômeno gaudiniano com respeito à sua articulação com as várias teorias existentes no século XIX que digam respeito à arquitetura. A pulverização do movimento m oderno em várias tendências vanguardistas empenhadas em verificar diversas e exclusivas alternativas teóricas e operativas pa­ ra a arquitetura contemporânea apresenta, de um lado, a impossibilidade de recuperar a supremacia de um modelo que controle, a partir de uma determinada questão privi­ legiada e consequente estruturação disciplinar, toda a produção de uma época, e por outro lado, ensina que existem vários olhares com os quais se pode abordar o projeto. Todos eles capazes, mesmo com seus redutivismos necessários, de criar um corpo teórico coerente e uma correspondente operatividade projetual: sua finalidade última. A crise do movimento moderno abre então novas possibilidades, reabili­ tando a história como referência teórica e crítica, necessária para a verificação e compa­ ração das distintas idéias e definições da arquitetura, uma tarefa que havia sido aban­ donada pelas falsas certezas de um a nova consciência e que colocou em plano de infe­ rioridade e condenou todas aquelas produções, que mesmo tendo atendido seus pres­ supostos, servindo coerentemente aos desejos, aspirações e possibilidades materiais de uma realidade, caíram em desgraça por não servir de base ao conjunto ideal e infalível que se quis construir. Gaudi deixa de ser o bizarro da arquitetura e sua obra pode ser avaliada sem influências ou restrições dogmáticas, as mesmas que obrigaram a maioria dos tex­ tos a manifestar-se com discursos desnecessariamente enaltecedores ou virulentamente agressivos, um maniqueismo onde as paixões contaram mais que a objetividade, quan­ do paradoxalmente estaria sendo superada a parcialidade. É conveniente também alertar que a atual crise e o decorrente pluralis­ mo por que passa a arquitetura se traduz em permissividade estilística ou em uma espé­ cie de nova “temporada de caça historicista”, interessadas em soluções rápidas e esquisi­ tas que apresentem clichês e repertórios com boa chance de aceitação. O interesse em passar a limpo os vários e marginais experimentalismos e laboratórios do passado, mais ou menos esquecidos, deve ter, na origem, uma motivação conceituai e não operativa. Gaudi, dentro do atual contexto, tem sua obra revisada e torna-se um dos arquitetos mais publicados no mundo. É objeto de um olhar interessado em encon­ trar novas motivações que substituam procedimentos esgotados e estimulem o desenho, uma atitude que lamentavelmente resume-se em encontrar formas ou motivos susceptí­ veis de uma mímese ou citação historicista instantânea. Não é esta postura a que encon­ tra os elementos definidores de novos procedimentos disciplinares. Gaudi é importan­ te, como tantos outros, na m edida que ensina um diverso universo conceituai, uma dis­ tinta forma de pensar a arquitetura, outro arranjo entre os conceitos e definições que, mudando e reagindo de diferentes formas, engendram noções diferentes de arquitetu­ ra. O gaudinismo extrapola o autor e difunde-se como pensamento coletivo e paralelo tornando-se importante como contraponto de outra atitude também seletora, que deve ser confrontada e comparada para estabelecer variações e limites, aumentando o instru-


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mental crítico e teórico que permita, por aproximações, a dedução de novas hipóteses disciplinares e a maior proximidade possível entre texto e obra. O gaudinismo foi o resultado da inter-relação intrincada e acidental de uma série de variáveis presentes e necessárias para o estabelecimento de um procedi­ mento arquitetônico e apenas pode ser repetido parcialm ente nos aspectos que digam respeito à cópia de seu repertório formal, à recuperação do artesanato e das técnicas pré-industriais, ao projeto independentista de sua sociedade, à redução tipológica das demandas modernas, ao objeto arquitetônico (m onum ento) como razão primeira do ofício e à revalorização da entidade “natureza” como modelo. Ioda uma série de super­ posições combinadas às quais deve somar-se a problem ática e eclética experiência arqui­ tetônica que vivia a Europa naquele momento. Adjetivar Gaudi com os termos racionalista, expressionista, barroco, neogótico, naturalista, organicista, romântico, místico, historicista, eclético ou surrealista põe em evidência a complexidade de seu universo e sua variedade e segmenta uma tra­ jetória em contínua mutação, prejudicando sua inteligibilidade. Sua obra reflete as in­ certezas de um período e sua evolução, em certa m edida linear, é um fenômeno que deve ser compreendido como um todo, valendo-se de recursos historiográficos parciais, mais interessados nas intenções e operações subjacentes à obra do arquiteto que em interpretações puro-visualistas ou construtivistas que, isoladadas ou descontextualizadas, pulverizam ou deformam a verdadeira importância que a produção gaudiana possa ter.

A arquitetura de Gaudi e a cidade O plano de Idelfonso Cerdá para a ampliação de Barcelona nos fala de igualitarismo, a frieza cartesiana de suas quadras é a tônica que as “ramblas”, a avenida Diagonal e poucas praças não podem contestar. A previsão de "inter-vias” ou de espa­ ços abertos que vão m udando de orientação reforçam a intenção de usufruto vicinal, talvez o único aspecto onde o desenho se refere à qualidade de vida dos cidadãos. 0 demais sobre a planície obedece a um árido pragmatismo, distante dos clássicos que falavam de pontos focais, perspectivas, parques, desenhos com gosto, alternância entre ordem e desordem, acidentes e variedades: da cidade naturalista teorizada por Laugier no século XVIII. Cerdá não tinha formação de arquiteto, era “engenheiros de cami­ nhos” e a cidade havia deixado de ser uma espaço natural. Os “ensanches” de Barcelo­ na atendem uma nova determinação e uma nova dinâmica urbana: eficiência, densida­ de, gabaritos, alinhamentos, tipologias estabelecidas, tráfego e ordem infinita em po­ tência. Rompem as muralhas militares e abrem caminhos para uma cidade estagnada pelas derrotas impostas. O plano Cerdá está em consonância com a nova idéia da cidade indusseu desenho é prova da introdução de novas variáveis e considerações para o terri-


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tóno urbano, isomorfismo, homogeneidade e homomorfose como resultado persegui­ do. O plano não se inspira na cidade antiga, esta lhe serve de centro quase que casualmente para a invasão dos campos até a base das montanhas. Uma idéia radi­ cal e distinta da proposta moderadora do arquiteto Rovira i Trias que pensa o centro histórico como ponto focal de irradiação do crescimento urbano. Este plano urbano de 1859 anuncia o início de uma nova etapa de afir­ mação da sociedade catalã, transformando-se em pano de fundo do manifesto “En bus­ ca de una arquitectura nacional” de Lluís Domènech i Montaner, publicado pela revis­ ta Renaixença e tido como o marco inicial do “ Modernisme”. No esforço para dar forma aos desígnios catalanistas, Cerdá e Gaudi re­ presentam os extremos irreconciliáveis de duas respostas possíveis. O primeiro exempli­ fica um desenho ao serviço da Metrópole e quer ser eficiente com sua circulação e infraestrutura, flexível para novos usos, ainda imponderáveis, e des-hierarquizado horizon­ talmente para se intitular socializante ao mesmo tem po que as tipologias habitacionais solucionavam os estratos sociais com escadas privativas e andares principais, mascarando a divisão social, e se defendia a rentabilidade ao considerar os jardins e a baixa densida­ de prevista nas quadras como simples benevolência do projetista. A insolação, a higiene, a matemática e a justiça como categorias funda­ mentais do mito da ordenação e controle urbanos são comprometidas no confronto com a dinâmica do mercado. A cidade, dentro do projeto de emancipação social e cultural, também aspirava, pela mão da burguesia, equipar-se para abrir caminho à nova ordem interna­ cional. Gaudi, por sua vez, concentra sua proposta na recuperação de tradições nacio­ nais, na retomada dos grandes feitos de seu povo, e por isso tudo na sua mão se transfor­ ma em monumento que rende tributos ao passado, afirmando-o como modelo e exem­ plo a considerar, aperfeiçoar e reproduzir. Dentro do projeto de afirmação nacional, estas duas tendências justificamse e não se excluem, mas não deixam de desencadear atritos insolúveis, com os quais parece correto verificar a trajetória de Gaudi e o rápido anacronismo enfrentado pelo gaudinismo após poucos anos de existência. Parece correto afirmar que a cidade não é fonte de inspiração em Gaudi, que vai concentrar sua prática profissional no tema do edifício, negando-se a dialogar com o espaço urbano naquilo que ultrapasse os limites do terreno sob sua responsabili­ dade. Esta suspensão do contexto num momento tão crucial da história da Catalunha foi pelo menos uma das causas que permitiram seu ingresso em dimensões subjetivas necessárias para a invenção tão fantasiosa dos seus últimos trabalhos. É significativo também que Gaudi não tenha sido responsável por ne­ nhuma obra que represente as demandas da Metrópole. Com exceção feita à Sagrada Família e ao Parque Güel, Gaudi não se interessa e nem é comissionado para obras de serviços urbanos. Os mercados, teatros, hospitais, armazéns, estações, presídios, es-


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colas, matadouros, ou os edifícios necessários para a vida nas grandes cidades. Temas que não parecem fasciná-lo como se supõe que seria normal nos arquitetos de sua épo­ ca. O tempo necessário para a transição dos processos artesanais para os sis­ temas industriais, assim como o tempo necessário para adequar o desenho às novas exi­ gências da organização produtiva são, no caso da Catalunha, dilatados, já que a moder­ nização é conflitante, em alguns aspectos, com o projeto da Renaixença comprome­ tida, entre outras coisas, com o romantismo medieval. É neste momento e é explorando historicismos e gratos exemplos nacionalistas que se opera a obra de Gaudi, valorizando aspectos domésticos, o corporativismo artesanal, as tecnologias consagradas e tradicio­ nais e todos os conjuntos simbólicos. Variáveis retrógradas se consideradas as expectati­ vas do mundo moderno. Se nas demais artes a contradição entre o passado e o futuro pode ser justificada pela recuperação filológica da tradição medieval catalã, isto não é verdadeiro para a arquitetura, no momento que sua com ponente técnica introduz um conflito quando pressiona esta prática num sentido inverso ao do romantismo. “...usar una forma para todo es propio dei ingeniero que por esta razón hace las cosas sin carácter.” “El arquitecto es el constructor humano, construye para el hombre (...) El inginero construye para las bestias o para las máquinas...” (Las conversaciones de Gaudi con Juan Bergós). Com estas duas máximas se pode im aginar como o arquiteto distinguia e valorizava as qualidades com que se afere uma cidade. O “carácter”, conceito acadê­ mico, é evocado para garantir a superioridade e magnificência, e o “construtor para os animais ou as máquinas” apenas despertará atenção e será reconhecido posteriormente, quando seus silos servem de ilustração para que Muthesius conceitue a categoria “for­ ma” na Deutscher Werkebund Jahrbuchs e para que Le Corbusier em “Vers une nouvelle architecture” exemplifique a engenharia. A abstração, a simplicidade, a pureza de contorno, a ausência de detalhe e ornamento não fazem parte do universo gaudiniano, são as intervenções que qualificam o objeto, é o trabalho do homem e seu virtuosis­ mo que conferem interesse à coisa. De qualquer maneira, Gaudi já havia captado no m undo racional e pragmático dos engenheiros, especificamente no projeto Cerdá, um procedimento novo e anônimo que depreza e que se nega a compartilhar, preferindo combatê-lo, não com uma proposta vazia, mas com um estranho pacto panteísta, onde a história dos feitos arquitetônicos perdia sua importância e onde a cidade já havia se rendido aos inimigos. Os universais de Fibelo já eram os contornos nítidos dos objetos a partir de Ledoux e Cczanne. Um tipo de seleção formal que conquista preferências no dese­ nho racionalista. É a abstração neo-platônica, onde a essência é mais que o aparente, aquela que se impõe à cidade como conceito. Gaudi é a antítese desta tendência, sua crítica e suas seleções m antêm conexão com a figura e com a expressão e estão abertas a novos materiais que possam inspirar uma arquitetura, desde que ela se mantenha uma epistemologia tradicional.


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Huís Domenech i Montaner (1850-1923) mantém com sua obra do Hos­ pital de Santa Creu i Sant Pau (1902-1910) um dos melhores diálogos com a pré-existência urbana. A esquina chanfrada (chaflãn) das quadras que reforçam a importância do cru­ zamento sobre as ruas e o eixo a 45 graus da avenida Gaudi são determinantes na im­ plantação do projeto e, ao mesmo tempo que desafiam a vocação ortogonal do traçado, oferecem-se como solução intelectualizada: tensa. Tipologicamente é confiado às plan­ tas recomendadas por Durand para as diferentes funções urbanas. No entanto, seu coetâneo, no extremo oposto da avenida Gaudi com outra obra de grande escala, vai gerar conflitos com o traçado urbano.

Projeto de praça cm estrela para a Sagrada Família.


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A Sagrada Família foi iniciada por F. de P. dei Villar Lozano e comissio­ nada posteriormente a Gaudi em 1883. O primeiro projeto respeita as demissões da quadra e soluciona o átrio, como seria de se esperar, dentro da mesma. De suas inten­ ções iniciais restou apenas a ábside por se encontrar construída. Gaudi simplesmente abandona o tímido projeto de inspiração neo-gótica e reformula todo o edifício em ba­ ses e dimensões memoráveis. A quadra acaba tornando-se insuficiente para tanta de­ monstração de fé e devoção: o átrio e as escadarias principais, empurrados pela nave, com seu crescimento descomunal, encontram lugar na quadra adjacente por intermé­ dio de uma passarela sobre a rua Mallorca e conseqüentes desapropriações expiatórias.


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Aquilo que em princípio pretendia ser uma réplica da igreja de Loreto, transformou-se em 170 metros de cimbório dedicado a Jesus Cristo e demais fusos claramente incom­ patíveis com as dimensões e modestas distâncias para observação do templo. Aqui a im­ portância do edifício supera as determinações da cidade e de seu desenho e pede sacrifí­ cios aos vizinhos. A partir de um processo estritam ente geométrico e estranho à malha existente, solucionam-se as perspectivas desejadas. Ponta seca do compasso no cruzeiro e raio 170 m /tang 30° e definição dos pontos ótim os de contemplação nas ruas laterais. Partindo-se destes pontos escolhe-se um para cada fachada, como concessão a uma pri­ meira estrela de oito pontas. Traça-se então um a reta que vai tangenciar o ponto mais distante da silhueta e então se propõe a demolição dos obstáculos interceptados pela figura. Como em um quadro, Gaudi escolhe a m oldura para sua obra principal e a qua­ dra é o marco continente a transgredir para que o exclusivo e a excessão possam se des­ tacar. Levando-se em consideração que Cerdá havia previsto de fato todas as articulações de textura urbana para a im plantação de monumentos e obras excepcio­ nais, evidencia-se a falta de fé que Gaudi tinha com respeito à malha urbana. O m onumentalismo das torres, não pode ser negado, corresponde à di­ mensão da Metrópole e poderia ser visto como exaltação à nova cidade, mas recorde-se, dentro do mesmo conjunto de obras do autor, a Capela da Colônia Güel (1898-1915) em Santa Coloma de Cervelló, que, com aproxim adam ente quarenta metros de altura interrompidos pela guerra e pela morte do Conde de Güell, levariam a mensagem de Deus a uma pequena vila operária. A desproporção deste exemplo e sua relação com a Sagrada Família remetem à Catedral Gótica ou à vontade de não medir esforços pela grandeza da igreja, considerada por Gaudi como um a das pedras fundamentais da so­ ciedade e desejada como o empíreo m onum ento, cuja exaltação vai ao céu e não à cida­ de burguesa. A casa Milá (1905-1910), com sua predominância horizontal e continui­ dade compositiva, nega o tem a da esquina, tão grato aos arquivos que tiveram a opor­ tunidade de projetar nestes lotes privilegiados e mais importantes. O reforço do vértice da esquina estabelece um diálogo com o traçado urbano. A casa Fuster (1908) de Domènech na mesma avenida e a casa “de les punxes” (1905) de Puig i Cadafalch são exemplos onde se manifesta um procedimento projetual muito difundido que leva em consideração a posição do edifício e o significado daquele lote oblíquo. Um tema me­ nosprezado por Gaudi, que prefere o tratam ento uniform e da fachada. O projeto apro­ vado pela prefeitura mostra uma torre acoplada que marca a esquina. Porém, tanto aquela fachada como as plantas estavam cumprindo apenas um requisito legal que será poste­ riormente subvertido por novas idéias ou preferências. A área construída ultrapassou a estipulada e a virgem da torre agora sútil procura mais um ponto estratégico para a catequese e a proteção e menos marcar a hierarquia. Projeta-se independentemente das sugestões urbanas.


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Casa Pcrc Mila. 1906-10. Fachada segundo execução do prédio.

Também a casa Batlló (1905-1907) tem no seu telhado ondulante e na torre que compõe a fachada uma estratégia contrária aos edifícios típicos de “medianera”; tanto o gabarito que unifica o corredor urbano e fornece um alinhamento superior e horizontal como a volumetria tratam outra vez de formular a excessão dentro da pai­ sagem. Mais comportada e discreta, á casa Calvet (1898-1904), composta a partir de elementos tradicionais, tam bém vai enfrentar problemas ao desobedecer às normas de edificações da cidade. Seu frontão ultrapassa a altura fixada pelo código e Gaudi vai ignorar o veto e construir de acordo com seu projeto. O código e suas restrições são irrelevantes para o autor, que coloca sua vontade e seu conhecimento acima das regras municipais. “El objeto es aum entar y hacer cômodas las comunicaciones de los diver­ sos parajes de Parque utilizando unicamente los mismos materiales dei terreno. Si éste hubiése sido de tierra se hubiése hecho una serie de desmontes y terraplenos, pero al hallarse en la necesidad de tener que arrancar roca, se creyó preferíble arrancar solamente la piedra necesaria para hacer unos cuantos viaduetos en vez de arrancar la cantidad ingente precisa para hacer ‘petroplenos’ (aterros com pedra).” “Conviene (sin violentar nada) dejar las cosas en franca asimetría: edifí­ cios escalonados, cuerpos desiguales, etc. La simetria es propia dei llano y querer im­ plantaria un la montana es quitar adaptación y caratér y obtener frialdad expressiva con mucho costo.” (Las conversaciones de Gaudi con Juan Bergós).


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O parque Güell é a oportunidade que Gaudi tem para apresentar seu ideal de cidade, e as diferenças de desenho não podem ser unicamente atribuídas, co­ mo ele quer, à planície e à montanha. O que se tornou parque posteriormente nasce como um condomínio residencial e privado (1900-1914) que proporcionaria novas alter­ nativas de moradia para a burguesia a partir das teorias da “cidade-jardim” adaptadas, no caso, como subúrbio da cidade, noção negada pelo plano Cerdá. Não é coincidência que Don Eusébio Güell, mecenas do arquiteto, proponha um tipo de urbanização co­ mo esta, ao lado de uma vila operária na propriedade de suas indústrias. Estas expe­ riências são resultado da atenção prestada àquilo que vinha sendo proposto na Inglater­ ra, referência obrigatória para todos que pensavam industrializar-se e modernizar-se. Porém se o paternalismo da Colônia teve seu êxito corroborado pela de­ pendência do emprego, o mesmo não aconteceu com o Parque, já que pressupunha que a burguesia catalã não estaria satisfeita com a qualidade de vida e com o conforto oferecido na planície e procuraria uma forma de vida alternativa. O resultado do em­ preendimento resumiu-se à venda de dois terrenos em sessenta disponíveis. Apesar do fracasso comercial decorrente de uma avaliação equivocada, a experiência evidencia o estilo de vida romântico e naturalista da cidade gaudiana. A m ontanha de pedra é a feliz coincidência que permite misturar as pre­ ferências lingüísticas do material, a pedra, com o m ito naturalista onde a cidade se faz das entranhas, e procurar ferir, no mínimo indispensável, a paisagem natural. No traçado do sistema viário não se percebe nenhum desejo de impor esquemas racionais ou matemáticos, símbolos da intervenção e abstração humanas, ou a apropriação do homem com seu espaço artificial. O domínio é simultaneamente vir­ tuoso e mimético e se apresenta como uma série de viadutos revestidos com “os mate­ riais do terreno’’ num jogo paradoxal e tenso, entre a afirmação da inteligência humana e a reprodução cerebral da natureza. Não é difícil imaginar, para uma topografia mo­ derada como a da m ontanha Pelada, outras alternativas simplificadas de circulação que atendessem o programa e fossem igualmente obedientes às curvas de nível. O respeito ao “Livro da Natureza’’ é alegórico e tem que adm itir a presença do trabalho humano, nunca vulgar na mão de Gaudi. Encontrar a solução insuspeita e inventiva é condição fundamental, por isso a terraplenagem ou os caminhos óbvios e passivos não confeririam o status deseja­ do. Os viadutos, emblema futurista das cidades, são neste caso isômeros dos desenha­ dos por Sant Elia em suas cidades visionárias. Sua propriedade não reside em mostrar um mundo complexo e subm etido ao controle do plano: veloz, tecnocrático e programável. No loteamento, negação daquele mundo, os viadutos são testemunhos da rela­ ção harmônica com a natureza, justificando-se em si mesmos, como monumentos e não na sua efetiva necessidade. A natureza deixa de ser de dom ínio divino e nela o homem é chamado a participar — reproduzindo-a. Gaudi quer ser também ideólogo da sociedade e dentro de seus princí­ pios consegue ser persuasivo e coerente mesmo enfrentando a cidade industrial. Sua


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arquitetura não se inspira nem se nutre da nova realidade e a exasperação do objeto arquitetônico é um grito contra a negligência do objeto na cidade, é uma exposição quase que colérica de recursos projetuais abusivos e retóricos, é uma reação que não busca equilíbrio ou diálogo com o meio que já tom ou em suas mãos todo o poder de difusão e comunicação. G audi luta desesperadamente contra a dissolução do edifício enquanto objeto autônomo e diferenciado, sem tolerar uma relação contínua e depen­ dente entre o edifício e a estrutura urbana. A tipologia na forma desenvolvida por Durand é instrumentalizada para resolver novas demandas programáticas da sociedade burguesa. Por um lado, é a manei-

Plano geral do Parque Güell 1 . Colina onde se ergue o Calvário, destinada originalmente à capela. 2. Antiga residência dos Güell, hoje Grupo Escolar Municipal. 3. Sala de colunas pseudo-dóricas, destinada a mercado da colônia no projeto. 4. Grande praça, parte em terreno firme c o resto sobre a sala mencionada. 5. Chalé de Gaudi. 6. Chalé do Dr. Trías.


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ra de atualizar a tradição arquitetônica às necessidades emergentes, e por outro lado é a sublimação dos aspectos estilísticos do edifício. O mercado do Born (1874-18/6) c 0 de Santo Antonio (1876-1882) de Rovira e Cornet, o presídio modelo de Domènech 1 Estapá, o hospital de Domènech i Montaner, são evidências da penetração das teorias de Durand em Barcelona. Elementos mecanicamente intercambiáveis, soluções apnorísticas, repertórios consolidados que respondem eficientem ente às atividades diferen­ ciadas da cidade respeitando seu carácter estrutural e procurando um novo ponto de equilíbrio, hierarquia e homogeneidade para um programa complexo resolvido com ele­ mentos seriados e malhas. Este recurso que reforça a unidade e sacrifica as sensações é contrário ao universo gaudiniano. Em Bellesguard a planta parte de uma matriz clás­ sica do tipo ABA X ABA, mas esta questão seria secundária ou irrelevante para o arqui­ teto que enfatiza, como nos demais projetos, os aspectos formais e estilísticos e as pro­ postas técnico-construtivas com que, é certo, se quer diferenciar o objeto. Também a casa Vincens, o Capricho de Comillas, a praça do Parque Güell e a própria capela da Colônia não negam o método simétrico ou tipos constituídos em suas plantas, que se­ rão ofuscados e velados pelos aspectos fundam entais que Gaudi quer expor. Se os diversos historicismos perdiam suas valências simbólicas e ideológi­ cas para relações circunstanciais ou arbitrárias e conseqüentem ente apenas decoravam tipologias arquitetônicas, em Gaudi sobrevive a idéia de que o estilo, o que se tem que inventar, tem a capacidade de representar idéias políticas, filosóficas, religiosas e nacio­ nais, não é uma questão acessória. Para contrapor-se à indiferença e à ausência de valor onde nada merece­ ría ser distinguido e onde predomina a opacidade, recorre-se a formas e cores que se distinguem por perturbar a ordem. O sublime e a novidade garantem uma empatia distante da noção clássica do “ belo” e então o grotesco une-se à originalidade e à excen­ tricidade. O objeto de Gaudi presta-se a todas as metáforas e sua tensão reside em sua característica anti-urbana. Uma Arquitetura de hipérboles geométricas e de estilo.

Gaudi e o Modernisme A historiografia oficial, nos m om entos que dedicou algumas páginas ou citações a Gaudi, entendeu-o como fenômeno autônom o, como figura independente de um período histórico regional importante. Se a obra entendida dentro de sua reali­ dade já é inquietante, o seu isolamento do movimento cultural a torna ainda mais exó­ tica. Este entendimento teve longa duração e só introduziu maior confusão na interpre­ tação da obra do arquiteto. É certo que o Modernisme” não foi coeso enquanto resul­ tado de suas expressões artísticas e que o mesmo espírito emancipador e restaurador que se cristaliza em poderosas convulsões artísticas, nasce e se apóia nos estímulos na­ cionalistas e modermzantes, qualidades opostas em m uitos aspectos.


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Não se pode reduzir o Modernisme” à problemática arquitetônica de seus correspondentes sincrônicos europeus, já que aqui o problema transcende o dis­ curso disciplinar interno para ir mais além do âm bito profissional. Toda a sociedade foi convocada para levar adiante sua afirmação e a arquitetura aproveita suas questões intrínsecas para fazer parte de um a frente reformista de extensão política, econômica e social, dando forma e expressão ao movimento. Trata-se então de uma resposta mais complexa que coordena uma saída ordenada de duas dependências seculares. Uma con­ tradição curiosa, pois a mesma cidade burguesa que coloca em crise a arquitetura será o motivo de segurança e otim ism o que anima novas experiências e novas reflexões. O conjunto heterogêneo de edifícios executados com euforia parece anun­ ciar o fracasso da missão: um ecletismo exarcebado, um a descontinuidade de respostas e conceitos, um experimentalismo sem fronteiras e um a polifonia lingüística aparecem como resultado sem consenso. As dúvidas ontológicas se fazem sentir mas são secundárias frente ao oti­ mismo, ao voluntarismo e à energia que tomam conta de todos para alcançar uma cul­ tura, senão estritamente m oderna, pelo menos diferenciada pelos fragmentos da teoria arquitetônica e da história da Catalunha, que promovem um conjunto de edifícios sem taxonomia formal unitária. A motivação vem de fora e a ‘‘arquitetura nacional”, mais que o resultado de um léxico e de uma sintaxe estáveis, atribuições disciplinares, foi a vontade de participar do projeto político e social amplo onde seriam atendidas as rei­ vindicações de todos os setores e pensamentos sociais: a abrangência do projeto cultural ofusca a necessidade de um a unidade. Os materiais que inspiram e justificam a arquitetura multiplicam-se co­ mo não seria normal em períodos normais. As combinações vão do populismo ao elitismo, do vernacular ao erudito, do artesanato medieval à produção industrial, do roman­ tismo românico gótico e naturalista ao racionalismo contemporâneo, permitindo gran­ de variação de resultados. Não se trata de um ecletismo consolador ou resignado mas de uma missão alegre, criativa e orgulhosa de sua variedade. A classificação do “ Modernisme” é, portanto, muito mais dependente das intenções e motivações gerais da cultura e da forte vontade inovadora do que de uma idéia precisa e definitiva de arquitetura. Conhecer as particularidades e aprofundar-se nas especificidades de cada arquiteto é sem dúvida necessário, porém as condições superestruturais que incentivam toda a produção são um estímulo que dá liberdade a to­ das as interpretações. Gaudi, dentro do projeto de emancipação cultural e dentro das m udan­ ças que se processam na C atalunha, encontra uma adequada perspectiva interpretatrva e, sem fazer culto à personalidade, representa um dos seus principais protagonistas. Nos projetos de formação acadêmica observam-se influências clássicas de dupla axialidade e a utilização de léxico que varia ao sabor da tolerância historicista. Na Faculdade o nacionalismo já se faz presente nas preferências românticas do seu dire­ tor Elias Rogent. Na sua formatura já circulava o manifesto de Domènech inflamando


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todos os profissionais com a necessidade de m udança que represente os desígnios nacionais. A casa Vincens, o Palácio e a Chácara Güell, o Colégio das Teresianas, a casa Calvet; em Barcelona; “El capricho” em Comillas; a Casa dos Botines em León e o Palácio de Astorga, apesar de suas profundas diferenças promovidas pelo entusias­ mo experimentalista do “ Modernisme”, representam a primeira fase de Gaudi onde se testam, não sem deixar marcas e dentro do espírito compartilhado, as várias possibili­ dades e combinações das linguagens mais próximas, da mão-de-obra qualificada, da policromia, das tecnologias construtivas tradicionais atualizadas dos materiais e de seu desempenho. Nesta fase a obra tem a mesma motivação de tantas outras inseridas na tarefa nacionalista. Será o conjunto de obras posteriores: Bellesguard, Parque Güell, casa Batlló, casa Milá, Colônia Güell e os últimos desenhos da Sagrada Família, aquele que mar­ ca um afastamento e o estatuto próprio para a obra que a simples rotulação modernista corre o risco de simplificar. Não se quer, em nenhum momento, afirmar que Gaudi abandona a ta­ refa de propor uma “arquitetura nacional”, ao contrário, processa-se um sistema com­ pleto e complexo onde forma e estrutura são independentes e onde os tipos e sua ade­ quação programática, assim como a produção dos edifícios, pressupõem relações nos­ tálgicas e anacrônicas quanto às tendências que já se implantavam. Apesar do hermetismo e das explicações transcendentais, alcança a devida correspondência com seu univer­ so conceituai e com os fundamentos que articula para sua proposta disciplinar: signifi­ cado e tecnologia. Façanha que outros arquitetos não alcançaram, façanha suficiente­ mente convincente para reunir um grande núm ero de adeptos, seguidores e admirado­ res. Se o primeiro conjunto de obras que termina com a casa Calvet (1898-1904) não marca qualquer distância com o trabalho de seus colegas ecletistas e “modernis­ tas , no segundo conjunto iniciado com o projeto da Missão Franciscana em Tanger (1892-1893) torna-se independente, combinando as exigências fundamentais e internas do “modernisme”. O Modernisme não se identifica com a noção de vanguarda, exceto na sua ambígua referência ao moderno. Não é crítico, ou reflexivo, não nega, não reduz nem exige essências, não faz formulações teóricas, é historicista e não evidencia ruptu­ ras, não é unitário e não procura fundamentos disciplinares. Nisto tudo coincidem as primeiras obras de Gaudi, enquanto que sua segunda fase, mesmo negando aspectos importantes de modernidade e progresso, será crítica, marginal, radical e redutiva, antihistórica, ccntrípeta e analítica. Propõe um novo”, que tem combinados a religião, a Idade Media, o artesanato, o desenvolvimento e a natureza em uma mesma ideologia. Se Domcnech i Montaner, por um lado, falhou quando insistiu, de ma­ neira elitista, cm combinar evocações figurativas que não encontraram significados pres com novas técnicas e exigências sociais, quando quase abstrai todos os ornamentos,


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Palácio Episcopal de Astorga, restauração, 1887-94. Fachada principal c seção.

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molduras e elementos normandos do edifício do Café-Restaurame da Exposição e quando se detém nas suas plantas para aproximar-se daquilo que seria uma postura correta frente à nova arquitetura, onde o racionalismo e a pura forma substituem o significado asso­ ciado ao estilo, Gaudi, por outro lado, lançou-se num caminho duvidoso onde a base disciplinar gozava de certa consistência interna com o sacrifício e distanciamento do sé­ culo XX. Se a cidade e a tecnologia modernas eram os motivos dos sonhos e dos pesadelos dos arquitetos, Domenech e seu grupo ainda viviam comprometidos e vicia­ dos com a idéia de que a qualidade e respeitabilidade do edifício estavam intimamente ligados a um intelectualismo e a intervenções decorativas garantidos pela disponibilida­ de de artesões competentes. Em Gaudi, opera-se outra equação: sua cidade é pré-industrial. A histó­ ria dos estilos perde autoridade e a tecnologia utilizada não se baseia na modernização das técnicas de ponta. Ao contrário, a partir de lições factíveis aprendidas com a obser­ vação da tradição construtiva, Gaudi concentra esforços em recuperar e manter as abó­ badas “ tabicadas” ou com “dobelas” e m ultiplicar suas aplicações e recursos, desvelan­ do e assumindo um conjunto infinito de formas curvas intercambiáveis. As formas curvadas resultantes desta técnica, elevadas às categorias para­ bólica, hiperbólica e helicoidal, que são “toda a N atureza” e as referências religiosas, fecham o círculo e providenciam o significado. Tudo isto dentro de uma concepção de m undo francamente melancólica e desconectada da crescente complexidade e da mu­ dança que se apresentavam e que transformaram seu simbolismo num discurso imper­ meável e anedótico. Suas figuras têm significados: as três retas geradoras de curvas transformam-se na Santíssima Trindade, a hiperbolóide é a luz, a parabolóide é a refle­ xão dos raios e o helicóide é o movimento. O utra trilogia para um tratado místico com aspirações universalistas. A Natureza vai tornando-se cada vez mais presente ao mesmo tempo que se sublima na artificialidade e no abstracionismo dos “ heréticos” ou “sublime beleza da linha reta não encontrada na natureza” segundo Mondrian. “O grande Livro da Na­ tureza” conta as verdadeiras e duradouras lições que o homem deve aprender e copiar. Os fios das meias se transformam em molas helicoidais que amortecem os passos dos pés e a madeira forma desenhos hiperbólicos num a m ente que, pode-se imaginar, aca­ baria pelo menos atorm entada. Neste m om ento sua arquitetura suprim e o m undo tangível e materializa os delírios oníricos que são o Parque e a Cripta Güell onde as três curvas “superiores’ penetram todos os detalhes. Entrar nestas obras, com desenhos e conversas, é como ex­ perimentar emoções de A lice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, ou o paradoxo entre incompreensão, fascinação, absurdo e impossível. Ali as fones sensações adquirem forma de sonho ou pesadelo, ilusão ou tormento. Dois recursos: o da empatia fantástica que leva a um outro lugar c dimensão e o de sua poderosa dimensão técnica-construtiva.


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A improvável fusão destes discursos aparece quando as superfícies regradas fazem a ponte entre tecnologia e os significados associados. Um encontro evitado pelos textos que op­ tam por um olhar racional e mecânico ou pelo do surrealismo e do inconsciente. O projeto de emancipação da Catalunha, conduzido pela burguesia as­ cendente, ainda que incentive a arte com sua mecenagem interessada, está muito mais preocupado com o progresso material e qualquer arte, em princípio, serve indistintamente, desde que não se transforme em empecilho do desenvolvimento. Se as evocações nativistas atuam como slogan agregador de todos os es­ tratos sociais, não se pode esquecer que os problemas de eficiência política e econômica são preponderantes para a classe dirigente. O progresso entendido como conquista de melhores condições materiais, culturais e institucionais é segregador no número de be­ neficiários, e então surgem as contradições internas que exploram várias idéias de de­ senvolvimento e participação. Gaudi parece desconfiar, desde o princípio, do progresso, e não é por acaso que pode ser encontrado no Círculo de Sant Lluc inspirado ideologicamente por Torras i Bages ou pela ala progressista da igreja, para quem o passado pré-industrial revertería a má condição proletária urbana, efeito de um progresso escolhido que cobra­ va tributos muito caros e talvez desnecessários. Se Domènech i Montaner e Puig i Cadafalch dividem sua atividade pro­ fissional com a ocupação de cargos públicos e demonstram concordar com o projeto que a burguesia está levando a cabo, Gaudi não vai nunca desempenhar o papel de funcionário, mantendo-se concentrado na sua produção de arquitetura e fiel a um estoicismo tão peculiar como irreprimível. A postura crítica de Gaudi é decisiva: a inspiração de um sistema arqui­ tetônico a partir da técnica e da produção industrial moderna desestabilizaria a especi­ ficidade disciplinar e a ética do ofício que vai do projeto à construção, e a infinita e retórica eclética das combinações gramaticais sobre tipologias que, a tempo, nada acres­ centavam ao lluminismo, não serviríam de base sobre a qual se poderia construir uma arquitetura nova e nacional.

Os edifícios: produção, tecnologia e divisão do trabalho

O Hotel da Exposição de 1888 com cinco andares e 160 metros de facha­ da será construído em 63 dias de trabalho ininterrupto e representa um marco da work simplification”. Três turnos de operários trabalharam 24 horas ajudados pela ilumina­ ção elétrica do canteiro. A capacidade organizativa de Domènech i Montaner é respon­ sável pela façanha. Adaptações técnicas, coordenação de fases, modulação, tipificação e normalização de elementos revezam-se na corrida contra o relógio e anunciam o can­ teiro modelo”. O projeto assume ali seu papel moderno como destilação, antecipação


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e previsão do objeto acabado em todos os seus aspectos e decisões, é a autoridade indis­ cutível da obra. Elimina os gestos considerados desnecessários ou supérfluos, as incerte­ zas, a paralisia improdutiva, dim inui operações, otim iza recursos e controla todo o su­ primento para alcançar um a velocidade construtiva sem procedentes. Não é ficção asso­ ciar o exemplo com a m anufatura coletiva observada e a diminuição dc gestos improdu­ tivos tratavam de aum entar a competitividade e a produção. Num primeiro momento o desenho é instrumento de controle e de definição das partes do objeto e num segun­ do momento obedece às imposições produtivas tratando de articular as partes, seus tempos e a eficiência produtiva. O projeto deixa de ter centro, hierarquia e variedade para tornarse pura seriação de elementos standardizados, fabricados e montados segundo um pen­ samento taylorista. A indefinição, a liberdade e a participação do artesão com sua virtu­ de e experiência não têm lugar neste canteiro. Willian Morris (1834-1896) e Ruskin (1819-1900) em uma sociedade bru­ talmente transformada pelos efeitos da revolução industrial já lamentavam a sorte e a decadência do artesanato, e reclamavam a restauração corporativista ou gremial, a revi­ são das finalidades industriais e a reforma daquela razão que fazia da obtenção dos fins a adequação dos meios. As intenções eram tão boas quanto anacrônicas e além disso paternalis­ tas e parciais. No caso de Morris, seu socialismo elitista, ou sentimental segundo Engels, está de acordo com a organização piramidal das decisões onde o arquiteto ou inte­ lectual ocupa o vértice superior, produzindo um desenho organizativo e moralmente benéfico, distribuindo atribuições e responsabilidades aos ofícios “menores” e comple­ mentares que assim não seriam dissolvidos em um a massa de trabalhadores idiotizados. Processam-se duas mudanças: organização do canteiro e semelhança en­ tre projeto de arquitetura e desenho industrial, cuja sincronia é complementar por es­ tarem vinculados ao mesmo interesse produtivo. A exemplo dos utopistas ingênuos, Gaudi não sente nenhuma atração por estas inovações no âm bito da profissão, que são vistas como deturpadoras e insidiosas, objetos de um a crítica tão espontânea quanto radical que o afasta daquela realidade e que lhe perm ite retirar-se para explorar universos for­ mais e construtivos arbitrados por outros fetiches inspiradores. No final do século XVIII e começo do século XIX o desenho geométrico desenvolve-se e aparece no discurso daqueles que antevêem novos tempos, Monge pu­ blica sua Geometrie Descriptive em 1799- A partir daqui os processos diédricos, projeti­ vos e prospectivos pensam os objetos arquitetônicos. A esteorotomia definida no can­ teiro e talhada para arcos e abóbadas que se constroem empiricamente, passa a ter sua definição geométrica e seu controle dimensinal já com Guarino Guarini, como mostra seu tratado Architettura Civile”, de 1686. O objeto é conhecido pelo método de repre­ sentação, é dissecado a priori e pré-visto assepticamente pelas épuras e rebatimentos ortogonais dos quadrantes. As entranhas que antes ficavam à deriva e se resolviam e improvisavam pelo saber do talhador dão lugar a um a simulação que quer garantir


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a maior eficiência e economia e testar os limites da abstração e da razão. Os “ateliers” impõem-se aos canteiros, que passam a cumprir as determinações antecipadas e selecio­ nadas. O método descritivo ascende, com o seu uso, de instrumento a media­ dor. O modo de pensar penetra a coisa pensada e os planos ortogonais transformam-se em planos arquitetônicos. Os espaços arquitetônicos passam a ser conformados pela pró­ pria forma de representação. O instrumento determ ina os limites e propicia os resul­ tados. A geometria entranha o objeto garantindo que os volumes têm solução no plano e estimulando relações quase inexplicáveis de uma “ nova estética” onde os elementos mais díspares e distanciados guardam suspeitas relações de alinhamento, para garantir uma não menos duvidosa noção de harmonia ou composição, onde também, como nos velhos tempos, nada pode m udar sem comprometer o todo. O que anteriorm ente era um caderno de apontamentos, dúvidas, deta­ lhes, talhas ou sugestões globais de alguns temas de reflexão possíveis para “ bom arte­ são” passa a ser o desenho “ técnico” e heterônomo da construção, com todos os desdo­ bramentos despóticos e megalomaníacos. Gaudi parecia detestar as abstrações geométricas impostas pelas aulas na Faculdade. A crença atávica e o fato de ser filho de serralheiro o faziam pensar na capa­ cidade de imaginar todas as formas e articulações possíveis e lhe davam confiança para projetar livre dos métodos analíticos e desenho. Foi por isso que o Conde de Güell teve que contratar outro arquiteto para obter desenhos de seu palácio na rua Conde dei Asalto para publicação. E certo que durante o século XIX, segundo Deforge, o desenho era realmente documento de trabalho, restringindo-se à transcrição de obras acabadas ou de investigações espontâ­ neas, mas será também neste século que se consolidam novas metodologias de projeto e de construção do edifício. Domènech acatava estas novidades enquanto Gaudi sim­ plesmente vai ignorá-las. Seu desenho será sugestivo e parcial, as maquetes de gesso serão seu laboratório preferido e as catenárias, curvas próximas à equação da parábola, sem representação matemática, inadequadas portanto para a geometria, são elementos geradores de uma complexidade avessa à representação planar ou perspética. A Sagrada Família, a exemplo de seus correspondentes góticos, apenas se imaginava acabada, resolvia-se e definia-se conforme os problemas ou as etapas se apresentavam, conhecese pelo testemunho dos seguidores, por fragmentos, por croquis e modelos parciais. Sem um desenho integrador é apenas verossímil. O arquiteto dorme na obra e comanda a equipe, tudo se discute ao pé do canteiro, sem previsão, sem custos, sem cronograma e sem quantidades. “Solo croquis dispersos, explicaciones diversas, estúdios fragmentários de estructura (...) escasos ingredientes...” vai queixar-se Oriol Bohigas quando critica a con­ tinuidade das obras segundo as conjeturas de seu autor. A esteorotomia pétrea discutese com palavras e cinzel, a serralheria na forja com a bigorna e a marteladas, as cerâmi­ cas e os vitrais têm sua aceitação de cor e textura combinando pigmentos ao lado do

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forno. Não há necessidade de intromissões com desenhos que apenas desestabilizariam uma ordem e um ideal de trabalho já estabelecidos. Não há divisão social do trabalho, mantém-se a tradição produtiva, portanto não há necessidade de um desenho que seja simultaneamente segregador e coordenador. O prim eiro desenho da Sagrada Família será realizado para a exposição da obra de Gaudi em Paris, por Juan Rubió, em 1915, a partir daquilo que ele pôde deduzir das idéias atomizadas e mutantes do seu mestre. “Nuestro famoso arquitecto profesa el princípio de que no se puedenm realizar planos, y que es mejor confíarse en la inspiración de cada noche.” (Eugênio D ’Ors)

Sagrada Família, 1883-1926. Prim eiros estudos de seção.



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Esta resistência é interessada, é a possibilidade de mudar e acrescentar indefinidamente e de experimentar outras dimensões geradoras e mediadoras de for­ mas ou de um universo curvilínio concordante com as técnicas construtivas empregadas e com o binômio religião-natureza que garante os significados. “Cuando en un edifício se hacen varias plantas, quiere decir estructuras de vigas, cuando hay bóvedas y soportes en varias direcciones se debe hacer una sola planta en lo que todo se vaya superponiendo.” (Las conversaciones de Gaudi comjuan Bergós) A Capela da Colônia Güell ilustra bem a inoperância do desenho como representação ou como instrum ento de pensam ento do objeto gaudiniano. A catenaria simula o comportamento mecânico sugerindo o contorno e serve posteriormente de mo­ delo de referência para trabalhadores que não conseguem esclarecer suas dúvidas com cortes ou elevações.


Capela da ColĂ´nia GĂźell, 1908/14 (projeto de 1900). Perspectiva e plantas.


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Todo o respeito pelos trabalhadores e a crença numa missão e numa ca­ pacidade superiores são determ inantes para as qualidades perseguidas por esta arquite­ tura. Diz Gaudi: “ El arquitecto ha de saber aprovecharse de lo que ‘saben hacer’ e ‘pueden hacer' los operários (...) integrar, sumar todos los esfuerzos...”, mas com uma condi­ ção: “ El que govierna es siem pre uno solo (...) El arquitecto es un gobernante en el má alto sentido de la palabra (...) se llama constructor de pueblos”. ju stific a e assum e com orgulho sua tarefa transcendental e deixa a seus comandados suficiente liberdade para que seus movimentos e ações participem de uma obra coletiva: p opular pelas mãos que trabalham e erudita, pois, mesmo não esconden­ do sob o revestim ento polido e impessoal as incertezas e azares contingentes e anôni­ mos, dem onstra originalidade e invenção, privilégios do artista ou do notável. Ruskin e Viollet-le-Duc G audi considerava-se um homem de ofício e de ação, portanto deixa pou­ cos textos e quase tu d o q u e se sabe sobre seu juízo e suas reflexões chegam por intermé­ dio de testem unhos ou transcrições de conversas anotados por seus interlocutores. Trata-se da reprodução de frases de impacto, de máximas ou aforismos com os quais Gaudi defi­ nia suas idéias ou im pressões de arquitetura. Apesar deste reparo e levando-se em con­ sideração sua produção arquitetônica, é possível estabelecer algumas aproximações en­ tre o pensam ento gaudiniano e o de alguns teóricos conhecidos de sua época. G au d i insinua que a arquitetura tem sua interação através de uma di­ mensão sem ântica e outra dim ensão técnica e está preocupado em explorar estes distin­ tos dom ínios q u e paralelam ente compõem um sistema arquitetônico. Ruskin poderia dar pistas para a com preensão da dimensão semântica e moral, enquanto que Violletle-Duc poderia ajudar na conceituação dos aspectos técnicos de sua obra. Teóricos sepa­ rados por um abism o conceituai e alinhavados pelo pensamento gaudiniano. Ruskin e a Natureza Ruskin, antes de Gaudi, percebe e aponta os aspectos imorais de uma sociedade industrial; contraditória, predadora e sórdida, como ele pensava a sociedade vitoriana, que se distancia dos ideais moralistas e religiosos e se fixa no materialismo e na mecanização. Problemas que, numa escala menor, porém não essencialmente dife­ rente, vão repetir-se com o crescimento da produção e do enriquecimento da burguesia catalã. A N atureza como entidade que une Deus aos homens é sublimada pelo espaço e pelo m odo de vida urbanos. A cultura da ilusão ajuda a superar rápida e radi­ calm ente, para todas as camadas sociais, a perda de qualidade de alguns aspectos de convivência e de existência: um sacrifício insignificante e temporário se comparado com as promessas insistentes de um a futura partilha de abundância e de comodidades cole­ tivas.


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A Natureza vista como um processo de criação divina será a reivindica­ ção daqueles que não estavam de acordo com o novo panorama social que se vislumbra­ va. A união da Natureza e da religião são um dado comum tanto em Ruskin como em Gaudi. Ao lado do naturalismo implícito na obra de Gaudi, ou da Natureza co­ mo mimese, há também a apreensão da Natureza a partir da ciência natural, da capaci­ dade humana de compreender seus fenômenos através de leis universais e absolutas, a partir de sua descrição por modelos matemáticos ou abstrações. As equações do movi­ mento que explicam o comportamento dos objetos no espaço, a redução da matéria a seus elementos primários, ao átomo como unidade menor da matéria são resultados da análise e síntese que Gaudi também utilizará para classificar as formas da natureza nas três curvas superiores. Seleção que descarta as estruturas cristalinas e geométricas dos minerais: os polígonos regulares. Afora esta postura mais “científica”, mais próxi­ ma a Viollet-le-Duc, Gaudi vai, como Ruskin, desafiar a Natureza e colocá-la entre o Criador e o homem. “La creación contínua y el Creador se vale de sus criaturas: los que buscan las leyes de la Naturaleza para conformar en ellas nuevas obras colaboran con el Crea­ dor.” “EI gran libro, siempre abierto y que conviene esforzarse em leer, es el de la Naturaleza. (...) Hay dos revelaciones: doctrinaria de la Moral y de la Religión, y otra guiadora e través de los hechos que es la dei gran libro de la Naturaleza.” (Conversaciones de Gaudi com Juan Bergós) Às imposições da nova realidade contrapõem-se uma relação confinadora da Natureza que unida a Deus recuperem um comportamento moralizado e uma harmonia comprometida pelo mundo predador, cada vez mais, determinado pela ciên­ cia e pela razão teológica. Os dois extremos estabelecem suas próprias verdades. O aforismo “ornamento adicionado ao edifício” como rótulo mais vul­ gar atribuído a Ruskin começa estabelecendo uma relação entre as preferências identifi­ cáveis de um "observador crítico” de arquitetura e os trabalhos do “construtor de arqui­ tetura”. Porém as “Seven Lamps” estabelecem mais relações com o arquiteto catalão. Ambos partem da Natureza como repertório de formas e inspiração para o trabalho do artista. Os dois estão de acordo que a percepção é mais importante que o conhecimento e que a razão não é fundamental no processo criativo, que é dependen­ te da sensibilidade, da ternura e do sentimento. Ruskin desconsidera a simples constru­ ção como arquitetura por cumprir questões estritamente técnicas ou funcionais. Gaudi, incapaz de subestimar os problemas construtivos, eleva-os a estruturais naturais , ve­ getais ou animais, revestindo-as de um novo e positivo significado. Primeiro Gaudi emprega a Natureza como fonte para ornamentação, mas conforme a presença desta entidade vai aderindo à noção estrutural e construtiva, de uma forma que Ruskin jamais poderia haver concebido, sua presença como elemento agregado e decorativo vai se sublimando.


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Ruskin legitima a ornamentação sobre o edifício, como a prática da arte sem justificativa utilitária ou funcional. Serão os elementos desnecessários , gratui­ tos” ou ‘‘deliberadamente queridos” com os quais trabalha o arquiteto e aos quais este não consegue resistir. ‘‘...es el arte que dispone y adorna los edifícios levantados por el hombre para qualquier uso, a fin de que su contemplacion pueda contribuir a su salud mental, vigor y deleite.” (Ruskin em ‘‘Seven Lamps ) A ornamentação para Ruskin é fundam ental, porém tem seus momen­ tos e adequação. Deve estar presente nos momentos de descanso e tranqüilidade do cidadão, nunca nas fábricas, estações ou mercados, como se as demandas da cidade mo­ derna não pudessem ser salvas pelo pensamento acadêmico. Ruskin, como Gaudi, está de acordo que o Templo é o edifício mais im portante da cidade e portanto é onde a ornamentação será abundante. A Sagrada Família cumpre com todo decorativismo e temas religiosos, os ideais ruskinianos, onde “a igreja deve ser a mais bela” e onde o número de intervenções e variedades traduzem-se em magnitude e nobreza. Conforme Gaudi vai penetrando no universo natural e abandonando o historicismo estilístico de suas primeiras obras, seus resultados vão perdendo as caracte­ rísticas aditivas e começam a assumir uma imagem orgânica e naturalista. Os problemas de visualização do objeto arquitetônico ou das imagens e esculturas também são tratados por Ruskin, que assinala os aspectos de ‘‘situação” e distância como dados fundamentais a considerar. Sabe-se que Gaudi está preocupado com a proporção das imagens do presépio da fachada do Nascimento e que faz as corre­ ções necessárias deformando linhas e volumes para um a perfeita visualização por parte do observador considerado a um ângulo ideal de 30° com respeito ao objeto. A mesma preocupação determina o desenho da praça “em estrela” para que se perceba o objeto arquitetônico como um todo a uma distância ideal. Na Lâmpada da Honra e da Verdade, Ruskin ameaça com três tópicos inadmissíveis aos arquitetos: a sugestão de uma forma de estrutura ou suporte falseada, a imitação de materiais, texturas e acabamentos nobres a partir de processos vulgares e a execução de molduras, talhas ou detalhes a partir de sistemas mecânicos de reprodu­ ção ou série. São três lições de bom comportamento que podem ser observadas em Gaudi, onde a estrutura é a resposta fiel ao método resolutivo e à própria forma, onde os mate­ riais apresentam-se como são e como determina sua tradição tecnológica e onde a mão do trabalhador se encarrega da execução de toda as peças. Ruskin não recrimina a sobreposição de ornamentos que velam a estru­ tura e conseqüentemente dim inuem sua importância e Gaudi vai reduzir este atrito entre Ruskin e Viollet-le-Duc argumentando que o arquiteto tem a liberdade de optar entre duas posturas que seriam: aquela onde a estrutura qualifica a arquitetura e transforma-se em sua questão mais importante e a outra onde as formas decorativas ou ornamentais potenciam a obra camuflando a estrutura que não empresta significado a que mera “construção”.


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Os materiais para ambos serão simples e, preferivelmente, convencionais: tijolo e pedra, que imitam a forma natural e fazem o “homem progredir na invenção da beleza”. E finalmente o conceito e a aplicação da cor que têm sua explicação am­ bígua em Ruskin poderiam ajudar a entender a descontinuidade no uso da cor por par­ te de Gaudi. Ruskin prefere, em princípio, as cores “ naturais” das pedras e tijolos, mas sem esconder seu afeto pelas cores vivas e pela policromia em moda em sua época, faz uma observação conciliadora: ...en todo caso una norma segura es simplificar el color cuando la forma es rica y lo contrário enriqueciéndolo cuando aquello es pobre.” A fachada da casa Battló serve como exemplo. Quando as formas corres­ pondentes ao andar principal são potentes e pétreas, a cor será neutra. Onde a fachada tem um comportamento tranqüilo ou “pobre”, a côr é convocada para potencializar o resultado e chamar a atenção. A Natureza como entidade geradora de significados nas últimas obras de Gaudi ajuda a entender a substituição de figuras simbólicas e mitológicas que deco­ ram suas obras iniciais. O morcego do Palácio Güell e a anfísbena da entrada da Cháca­ ra Güell são animais carregados de significados míticos e místicos. O primeiro é, segun­ do a tradição chinesa, em blem a da felicidade e da longevidade, o segundo é o guardião do “grande arcano” ou o dragão do Jardim das Espériedes que guarda as maçãs de ouro procuradas por Hércules. Ambos os símbolos evocam o desejo de proteção e vida ao mecenas do arquiteto. Os caracóis e serpentes, emblemas de sabedoria e eternidade, da Sagrada Família, outorgam seus significados e adequam-se às formas superiores à helicóide, es­ tabelecendo as coincidências que reforçam uma maneira de pensar. As tartarugas na base das colunas da fachada do Nascimento merecem a reprodução de alguns segmen­ tos do Dicionário de Símbolos: "Tortuga: Integra diversos sentidos simbólicos. En el Oriente tiene un significado cósmico (...) “ la tortuga primordialmente tiene Ia concha redonda por enci­ ma para representar el cielo y cuadrada por debajo para representar la tierra. (...) En todos los casos, la tortuga es un símbolo de la realidad existencial (...) Por su lentitud pudiera simbolizar la evolución natural contrapuesta a la evolución espiritual. (...) También es emblemática de la longevidad (...) Probablemente la tortuga simboliza en fin la corporeirad.” Também a abelha, que serviría de arremate para o estandarte da Obrera Mataronense”, tem significados que se ajustam com o sindicato dos trabalhadores: para os egípcios conota a idéia de laboriosidade, criação e riqueza que derivam da pro­ dução de mel. Na Bíblia representa a parábola de Sansão. Na Grécia constitui emble­ ma de trabalho e de obediência. No cristianismo da época romântica simboliza diligên­ cia e eloqüência. Trabalhadora, organizada, comunitária, solidária e forte, qualidades associadas que fazem m uito sentido para que se trate de uma coincidência.


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Eugène Viollet-le-Duc Gaudi opera em dois níveis com a Natureza, primeiro interessando-se pelas formas enquanto fenômenos: as cores emergentes, a filotaxia, a morfologia ou o nível mimético mais evidente ou superficial. A este interesse de índole ruskinina somase também o desejo de reduzir as formas a sua essência e geometria, com explicações cosmológicas, que aspiram ao universalismo. Uma noção fundamentalista que vai dei­ xar as insinuações e influências de Viollet-le-Duc para trás. “Uno de los elementos doctrinales más importantes que se encuentran en el origen de la transformación se basaba esencialmente en el retorno a la Naturaleza derivado dei movimiento romântico, pero ostensivamente el foco se desplazará desde imitar la aparência natural, o de actuar en un nivel artesanal, hacia la creencia en la capacidad de la ciência para revelar aquello que era esencial en el modo de operar la naturaleza.” (Alan Colquhoun) “El diccionario de Viollet no es tal diccionario, sino un conjunto de mo­ nografias incompletas reducidas a forma enciclopédica por conveniências editoriales.’ O último Gaudi muda de dicionário e substitui Viollet-le-Duc pela na­ tureza mesma. Ainda que seu comentário negue a importância ao teórico francês, sabese, com certeza, que este foi um dos autores mais im portantes no seu período de forma­ ção na escola de Arquitetura, e que seus escritos eram freqüentes leituras de cabeceira. Catalunha não apresenta uma produção Renascentista ou Barroca signi­ ficativas, já que vive um período de estagnação e dom ínio que reduz sua atividade à simples sobrevivência. Este parêntesis e o início da recuperação econômica e cultural da Catalunha coincidem com o movimento nacionalista francês, país com o qual esta região da Espanha tem antiga afinidade. Ali trata-se de recuperar o gótico como estilo nacional, como grande m om ento da arquitetura seja no aspecto formal, estrutural ou histórico com os quais o país teria mais afinidade e possibilidade de afirmação do que com modelos clássicos tidos como estrangeiros. O neo-gótico, desta forma, cumprirá seu papel como “...exacerbada significión anticlásica, por la cual el gótico significa pintoresquismo, asimetría, evasión sentimental y naturalista, crítica de la ciudad industrial, mística antiurbana, libertad.” (Rafael Moneo y Ignasi de Solá-Morales) O neo-gótico da Casa “de los Botines” e do Palácio Episcopal de Astorga não tem sua base no Gótico catalão. Sua verticalidade, seu esquema pictórico, sua com­ posição e ainda seus elementos formais podem ser detectados nos desenhos do “Dictinnaire Raisonnée de LArchitecture Française Xlème-XVIème siècle”, identificando-se desta forma com um gótico setentrional. Quando Gaudi desmistifica os escritos de Viollet-le-Duc ele o faz não porque os tipos tradicionais e elementares deixaram de interessá-lo, mas porque passa a dcdicar-sc a novas experiências sobre conhecidos sistemas construtivos e estruturais


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que vem investigando e que transcendem toda a tradição arquitetônica catalogada em forma de conhecimento universal no "Dictionnaire”. A última arquitetura de Gaudi deixa de ser uma seleção de elementos intercambiáveis ou incorporáveis, de partes ou tipologias, para tentar ser um sistema totalizador. Se em algumas das obras de Gaudi os desenhos de Viollet-le-Duc po­ dem ser considerados fontes de inspiração e partida e onde podem aparecer fragmentos citados, interessa verificar em que medida o pensam ento de ambos tem coincidências e como a trajetória de G audi depende da interpretação dada aos conceitos do teórico francês. Viollet-le-Duc inaugura uma fase teórica no campo da arquitetura, tra­ tando de explicá-la desde fora da tradição, da história e de sua autoridade implícita e inercial. Acredita que os verdadeiros problemas e fundamentos da arquitetura são cons­ tantes e que o estudo da arquitetura do passado não desemboca na consolidação de um historicismo justificado por qualquer interesse ou associação contemporânea mas possibilita um modo de aprender e identificar aquelas questões perenes e essenciais que serviríam então de apoio à produção presente. Questões que para ele são fundamental­ mente problemas de ordem técnico-construtiva. Os “ princípios verdadeiros” são, pois, as referências aplicáveis a qualquer arquitetura baseada em princípios nacionais e res­ ponsáveis pelo “estilo” ou configuração de um edifício, já que para ele “a forma não tem razão de ser” e esta “ razão é privilégio da estrutura e da técnica construtiva”. A estrutura é o aspecto principal em Viollet-le-Duc. Entender a mecâni­ ca estrutural, os fenômenos e problemas de estabilidade e sua relação com os elementos de cobertura é a preocupação básica explicada detalhadam ente com textos e diagramas no “Dictionnaire”. O menosprezo pelas estruturas clássicas super-dimensionadas, que vai cha­ mar de “estruturas de estabilidade” dimensionadas pelos cânones dos tratados, opõe-se aos elogios da estrutura gótica, definida como “estruturas de elasticidade onde os es­ forços contrários se anulam , onde material e dimensões trabalham nos limites, onde todos elementos parasitários foram depurados só restando lugar para o necessário . Ponto de origem de todo o pensamento gaudiniano posterior. É a partir da crítica avaliação e conhecimento da estrutura gótica que Gau­ di vai evoluir até outras soluções estruturais que aprimoram a leitura feita por Violletle-Duc daquele sistema quando reduzido a uma leitura estritamente mecânica, que aban­ dona a importância e a sua autoridade formal estabilizada pela história. Nas várias pro­ postas da secção transversal da Sagrada Família pode ser observada esta evolução. A ca­ tedral dos pobres” ou o “ templo expiatório” é uma espécie de colagem que permite rastrear todos os vestígios e mudanças de intenção do autor. Sua planta tipo e sua volumetria obedecem atentam ente à “catedral ideal” do Dictionnaire e a fachada do Nas­ cimento, apesar de sua espessura grotesca e carregada, não consegue esconder a propor­ ção gótica que a compõe.


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Gaudi, no seu processo reflexivo, acaba abandonando a tradição gótica que o próprio Viollet-le-Duc não pretendia continuar e procura superá-la ao introdu­ zir novidades que melhorem o desempenho dos princípios fundamentais alheios à noção de estilo consagrado. Os diagramas das resultantes horizontais e verticais de carga fora dos ei­ xos das colunas constam nos desenhos de Viollet-le-Duc e na primeira proposta de secção transversal da Sagrada Família. Mais tarde, a partir dos ensaios efetuados na Capela da Colônia Güell, procede-se a uma nova secção que representa a resposta final de um ciclo evolutivo motivado pelas reflexões de Viollet-le-Duc. Se os arcos botantes e os con­ trafortes eram necessidades e portanto se justificavam no pensamento do teórico fran­ cês, estes mesmos elementos eram rebaixados à condição de “muletas” pelo arquiteto catalão. Esta diferença, no entanto, não os afasta, já que se pode afirmar que a vontade subjacente de operar estruturas c conhecê-las profundam ente como elementos geradores de formas arquitetônicas é semelhante em ambos os personagens. A mudança de prio­ ridades pode ser, inclusive, responsável pela ausência de citações estilísticas no último Gaudi, uma vez que o problema de estilo é decorrente do conceito construtivo que vai ajudar na superação dos processos miméticos e historicistas dos quais os arquitetos da virada do século tinham intenção de escapar para obter um a arquitetura correspodente à sua época. Viollet-le-Duc acredita na indústria, na cidade e nas novas tecnologias e materiais disponíveis, imaginando que imporiam mudanças formais. Se o “Dictionnaire” é útil a Gaudi, o mesmo não se pode dizer dos “Entretiens sur 1’architecture”, onde fica patente uma confiança no progresso e nas mudanças que se apresentam no mundo moderno, idéia que Gaudi não compartilha.

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Cader"OS * U“

' Ensaio ^ « 3. Edicora C iv iliz o

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LUIZ ESPERLLAGAS G1MENEZ é arquiteto, pós-graduado na Escola Técnica Su­ perior de Arquitetura de Barcelona e professor de História da Arquitetura na Fa­ culdade de Arquitetura e Urbanismo da Puccamp.



VVE-ALA1N BOIS Tradução: Carlos Zilio

Historização ou Intenção: O Retorno de um Velho Debate*

Existe hoje em dia no interior da política cultural americana pelo me­ nos duas posições afirmadas sobre o pós-modcrnismo: a primeira ligada ao neoconservadorismo em política, a segunda derivada da teoria pós-estruturalista. O pós-modernismo neoconservador c o mais conhecido entre as duas: definindo-se sobretudo em termos de estilo, ele depende do modernismo que reduz ao pior dos formalismos e que procura contradizer por um retorno à narração, ao ornam ento e à figuração. Esta posi­ ção é freqüentemente reacionária, não apenas do ponto de vista estilístico, pois o que é proclamado é também o retorno da História (a tradição humanista) e do Sujeito (o artista ou o arquiteto enquanto autor). O pós-modernismo pós-estruturalista, ao con­ trário (...), é profundamente anti-humanista. Mais que um retorno é representação, pro­ cura formular uma crítica desta como sendo constitutiva de, e não transparente à, reali­ dade.” 1 As duas posições pós-modernas atualizadas por Hal Foster têm em co­ mum a asserção segundo a qual o modernismo viveu um terror historicista, numa pri­ são de uma concepção tcleológica da História enquanto progresso da razão, definindo cada obra por sua relação com as obras precedentes e as que a seguiam. Mas estas duas posições diferem quanto às consequências a retirar desta asserção. Deixemos de lado a posição dita “ pós-estruturalista” (certamente aquela da qual eu me sinto mais próxi­ mo, se bem que sua pretensão de estar liberta do paradigm a modernista — do moder­ nismo concebido no seu sentido mais amplo como experiência da reflexividade não seja verdadeiramente convincente) e observemos a posição neoconservadora . Contra o "darwinismo” do moderno não existe outra escolha, dizem os adeptos desta posição, senão adotar “a ideologia cínica do traidor — segundo as palavras de Achille Bonito

*N T O título original é Historisation ou Intention: Le Retour d un Vieux Dcbat, preferimos traduzir por historização e não histohcização por fidelidade ao autor.

Richard Serra, Corner Prop N? 7 (For N a th a lie )”, 1983Duas placas de aço. 140 x 140 x 5 cm e 170 x 170 x 3 cm .


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Oliva, autor de numerosos estudos elogiosos sobre arte neoconservadora que ele bati­ zou de “transvanguarda internacional’ 2. Nada tem importância para um traidor se­ não o lucro que pode tirar de uma situação. Contra a ingenuidade da utopia política dos movimentos históricos de vanguarda, contra o otimism o escatológico que estava no centro de sua concepção de História, Oliva e seus pares elaboraram sua tese sobre um fundo de ficção apocalíptica que não é,stritu-semu, senão a contrapartida da argumen­ tação teleológica que pretendem erradicar: o mundo vai morrer, então nós estamos li­ berados da História. Em outras palavras: après moi, le déluge. Estando liberados da História, podemos recorrer a ela como um divertimento, tratá-la como um espaço de pura irresponsabilidade: tudo bem, daqui por diante, o mesmo significado, o mesmo valor. Da lixeira da História, diz esta tese, podemos tom ar qualquer citação, qualquer estilo, segundo nosso belo prazer, segundo a liberdade de nossa intenção (retomarei adiante esta revalorização da intenção). Denunciando o historicismo teleológico do mo­ dernismo, os defensores do pós-modernismo neoconservador transformam a sucessão tem­ poral da História em simultaneidade: adotam o ponto de vista historicista por excelên­ cia, o de Léopold Ranke (Alies gleich unmittelbar zu G o tt), o de um deus pós-histórico que coloca tudo no mesmo saco e que não teria nunca de tomar partido. E não é um acaso se a aparição deste pós-modernismo coincide com a de uma tendência revisionista em História da Arte, segundo a qual a Arte Moderna nunca existiu, para a qual Bouguereau e Manet viveram no mesmo tempo histórico c a obra tardia de Chirico não constitui uma negação da sua obra de juventude. Q uando digo coincide, é de fato, no sentido literal: o advogado do pós-modernismo neoconservador e o historiador de arte revisionista são geralmente uma única e mesma pessoa, como iremos ver. Robert Klein assinala em 1962: “Os mestres de hoje trabalham, pode-se observar, por séries e ‘períodos’ (...) Cada mestre importante ‘acrescenta’ sua nota, precisa sua ‘contribuição’ — para quê? Isto só pode ser o movimento da arte em seu conjunto em direção a sua clarificaÇão progressiva, que é aqui, para retomar o título de Marcei Duchamp, la mariée mise a nu par ses célibataires même; é o movimento que dá seu sentido e eventualmente seu valor relativo a toda invenção ou descoberta, aos gestos novos de cada artista ou es­ cola” 3. Cinco anos mais tarde, Robert Klein aborda de novo a questão num bri­ lhante texto intitulado ‘‘O eclipse da obra de arte” : Tomamos quase inconscientemente o hábito de historizar todo novo ob­ jeto e de sempre abraçar a evolução com um golpe de vista compreensivo, julgando-a segundo sua riqueza, seu poder de síntese, sua qualidade de invenção, a importância dos problemas atacados, a justeza e a audácia das soluções. Estão aí, indubitavelmente, em tal contexto, critérios estéticos; e considerações puram ente históricas de data e de prioridade tornam-se de uma só vez artisticamente pertinentes (como se sob o efeito dos interesses t da ótica dos colecionadores a raridade, a autenticidade de uma assina­ tura ou a atribuição a um grande nome aumentassem efetivamente a beleza da obra)”4.


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I. de se notar que Klein fala da atribuição no passado — o que é no mí­ nimo estranho, visto o frenesi com que a ela se entregam ainda hoje as hordas de histo­ riadores de arte de todas as procedências. A obra de Klein, que bem antecipa pontos do estruturalismo, julgava, sem dúvida, que o famoso slogan de Wõlfflin em favor de uma História da arte sem nome tinha alguma chance de tornar-se realidade. Era su­ bestimar o empreendimento da ideologia humanista sobre a disciplina que era sua, o que não mc admira (ver acima a citação de Foster). Mas, o que me interessa aqui, parti­ cularmente, c a comparação operada por Klein entre o ato de atribuir e o de datar (te­ nho apenas necessidade de relembrar as sempiternas polêmicas a respeito da “primei­ ra" obra de arte abstrata ou sobre a invenção do fotograma). A datação como critério parece a Klein tão historicamente determinada, quer dizer, perecível, quanto a atribui­ ção: o deslizamento da obra de arte para sua posição histórica, no processo da significa­ ção, está tão ameaçado historicamente quanto o deslizamento que vai da obra a seu produtor. Como é este o modo de historização visado hoje em dia pelo pós-moder­ nismo, seja “pós-estruturalista" ou neoconservador, é importante examinar a questão em detalhes, historizar, por assim dizer. Existe uma tendência muito clara, ao menos nos Estados Unidos, de con­ siderar a obra de Clement Greenbcrg como o único ponto de origem deste modo de historização no campo da crítica de arte. Trata-se, segundo ele, de um erro que deixa à sombra vários pontos importantes. A teoria de Greenberg é hoje bem conhecida: o modernismo c um processo de autocrítica ou de autopurificação pelo qual cada arte se engaja cm se desembaraçar de “ todo efeito que possa, de maneira concebível, ser tomado do modo de expressão de uma outra a r t e o n d e cada arte evolui gradualmen­ te e de maneira assintomática em direção à pura parúsia de sua própria essência, cada obra estando medida em varas* por sua contribuição a esta revelação infinita de um zero inatingível. Seria errado acreditar, entretanto, que isto se trata de uma tese pessoal de Greenberg. Um crítico como Jcan Paulhan dizia exatamente a mesma coisa no fim dos anos 40 quando escrevia: “ Não vale a pena ter a mesma coisa duas vezes. Lhote torna Bazainc inútil, Bazaine torna Manessier complctamente inútil (\ mesmo se al­ gum dos artistas mencionados não tivesse encontrado lugar no panteão grecnberguiano. Mondrian dizia, tam bém , a mesma coisa quando ia repetindo, ao menos no começo de sua carreira de pintor abstrato, que todo período artístico era Aufhebung do prece­ dente (para retomar o conceito hegeliano do qual Mondrian utilizou a tradução em holandês: opheffing). Para ele, o neo-plasticismo era a conseqüência lógica — e a su­ pressão — de toda a arte que havia precedido, a última malha da cadeia histórica. E é ainda a mesma idéia que encontramos em Malevich, que teve grande cuidado ao ex­ plicar o desenvolvimento lógico de sua arte a partir do Cubismo e do Futurismo ao Suprematismo”, segundo o título de seu primeiro ensaio importante. Poderiamos alon­ gar a lista à vontade: todos os teóricos da primeira onda da abstração em pintura aderi­ ram a esta mesma visão historicista. Darei ainda um exemplo, o do pintor polonês


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Wladysslaw Strzeminski, para mim um dos mais notáveis pensadores do Construtivismo. A baixa de qualidade na arte da segunda geração dos artistas russos de vanguarda se explica, segundo ele, pelo fato de que estes pintores e escultores não viram senão o resultado na arte de seus predecessores, sem se preocuparem com o processo histórico muito complexo que havia conduzido um Picasso ou Malcvich a realizar suas obras-

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primas: “Mas é a qualidade que é decisiva e não a quantidade. Artistas ora cele­ bres (Rodchenko, Stepanova, etc.) não têm idéia dos esforços que foram necessários para chegar às soluções do Cubismo e do Suprematismo. Inconscientes dos valores que limi­ tam as realizações da nova arte, eles fazem ‘nova’ arte, sem desenvolver, sem avançar questões, mas compilando em suas obras fragmentos das de seus predecessores"'. Para Strzeminski, em outros termos, um artista deveria incorporar em sua evolução pessoal toda a evolução da arte do passado recente para poder produzir uma obra de qualidade — e foi o que certamente fizeram Malevich, Mondrian e mui­ tos outros. O nascimento do novo só é possível por um a recapitulação do passado. Esta declaração, embora possa parecer muito dogmática, é característica do credo modernis­ ta. Permitindo-me, aqui, uma pequena digressão, queria insistir no caráter profético deste texto escrito por Strzeminski em 1922, de tanto que ele parece concernir a atual situação antimodernista. O texto contém mesmo um a crítica do Expressionismo que me parece perfeitamente aplicável às tendências nco-expressionistas yuppie-punk de hoje: “O Expressionismo pode se definir como uma corrente que tende a ex­ primir sentimentos de caráter literário (sobretudo sentim entos de confusão suscitados pelo mundo mecanizado), com a ajuda de procedimentos próprios a todos os movi­ mentos artísticos passados (Cubismo e Futurismo inclusive). E, se quisermos, uma espé­ cie de arte aplicada (utilização da aquisição formal de outro)”8. Para historizar um a elaboração teórica, o melhor meio empírico que te­ nho à disposição é recuar no tem po até o ponto antes do qual esta elaboração seria im­ pensável. Este ponto, no campo da crítica de arte, se chama Baudelaire. Sua obra crítica combina o historicismo teleológico e o essencialismo que venho de descrever como es­ senciais ao modernismo: ele foi o primeiro a com preender que eram as duas faces de uma mesma moeda. “Retire Delacroix”, escreveu ele em sua crítica do Salão de 1846, e a grande cadeia da História fica rompida e cai por terra ”9, e sabe-se que uma das tarefas mais contraditórias que ele se determinou era absolver a pintura de Delacroix da acusação de que era literária (quer dizer, da intrusão em seu interior de um meio de expressão heterogêneo)10. O importante é determinar o papel desempenhado por esta conjunção da teleologia e do essencialismo na obra crítica de Baudelaire e não existe para isto me­ lhor guia que a leitura que oferece Walter Benjamin. A grandeza de Baudelaire, segun­ do Benjamin, é ter reconhecido que a natureza fetichista da forma-mercadoria, analisa­ da por Marx na mesma época, constituía a ameaça essencial do capitalismo com relação

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à arte. ter reconhecido que o processo capitalista de transformação geral de todas as coi­ sas em mercadorias engendrava em aterrador e eterno retorno do mesmo — toda mer­ cadoria sendo indiferentem ente trocável. Para Benjamin, "este aviltamento que sofrem as coisas pelo fato de poderem ser taxadas como mercadorias é contrabalançado em Bau­ delaire pelo valor inestimável da novidade. A novidade representa este absoluto que não é mais acessível a qualquer interpretação (como o é a alegoria), nem a qualquer comparação (como o é a mercadoria). Ela se torna o último baluarte da arte” 11. 1’eria que ser feita uma enquete sobre o que une a ideologia modernista do novo à necessidade da arte de escapar ao m undo da mercadoria, ou seja, de se colo­ car radicalmente diferente deste mundo graças à especificidade de seus meios de ex­ pressão. Tal enquete conduziría inevitavelmente a Ducham p e a sua crítica da economia política da instituição artística em seu conjunto e em seguida às diversas posições ocu­ padas pelos artistas deste século em relação ao mercado de arte12. Gostaria somente de mencionar aqui, embora sua abordagem seja divergente da minha, a observação de Lawrence Alloway de que um crítico “apaixonado” como Baudelaire tinha necessidade de um critério teleológico na nova situação de “abundância pós-clássica” que caracteriza­ ria a produção artística de sua época13. Tudo se passa como se o dogmatismo da posi­ ção modernista, agravado em seguida pelo arremesso inicial operado por Baudelaire, houvesse sido a resposta defensiva dos artistas e dos teóricos face à ameaça de uma abun­ dância e de uma diversidade sempre crescente. Sabe-se que a teoria “dura” do modernismo conheceu no correr deste século dois momentos maiores de cristalização. O primeiro, saído do Cubismo, atingiu seu ponto culminante no início dos anos 20 nos textos dos primeiros pintores abstratos não expressionistas. Estamos exatamente diante do que é denominado hoje em dia de ‘‘retorno à ordem” caracterizado por uma academização da prática artística em escala mundial (a fase Ingres de Picasso, a fase Nice de Matisse, a transformação do Futurismo em Pintura Metafísica, a Neue Sachlichkeit, o Realismo Socialista, etc.). O retorno à ordem teve diferentes faces que possuem em comum o retorno aos meios tradicionais de representação, a renúncia à experimentação que havia marcado a arte de vanguarda durante a década precedente. Como tal, é o antecedente direto das práticas do pós-modernismo ncoconservador assim como Benjamin Buchloh o demonstrou em seu notável artigo intitulado Rostos de autoridades, cifras de regressão 11. O segundo momento de cristalização da teoria modernista se segue imediatamente ao fim da Segunda Guerra Mundial: ele é constituído pelos escritos da crítica formalista americana, quer dizer, a de Clement Greenberg e daqueles que ele influenciou. Estes dois conjuntos teóricos convergem para numerosos pontos. Perma­ necem fiéis ao historicismo e ao essencialismo da tradição baudeleriana. Quando Michael Fried, um dos críticos mais importantes dos anos 60, interpretou as pinturas ne­ gras de Frank usou a mesma linguagem que Mondrian e Malevich quando concebiam suas telas como a única e verdadeira conseqüência da arte do passado. Quando Fried leu estas pinturas negras como resultado de um a lógica dedutiva a regra da divisão


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interna do quadro sendo fornecida pelas proporções do chassis ele diz exatamente a mesma coisa que Strzeminski trinta anos antes. O objetivo de Strzeminski e de Stella era o de aniquilar a parcela de subjetividade inerente a toda composição, de descobrir um meio objetivo de transferir o pigmento do tubo ou do pote para a tela um meio que fosse historicamente determinado e logicamente motivado. Stella, e \erdade, não usou o termo “universal”, palavra chave para os artistas abstratos dos anos 20 — e está aí um indício importante daquilo que separa fundam entalm ente os dois momentos de cristalização. Esta diferença foi amplamcnte subestimada nas numerosas histórias do mo­ dernismo. Contrariamente a seus sucessores do pós-guerra, Malevich, Mondrian e seus pares acreditavam ainda no progresso racional da ciência c das técnicas e, através deste progresso, na perfeição da justiça social. Sc Mondrian ou Malevich talaram do grau zero”, das características “essenciais” da arte pictórica, etc., foi sempre para dizer que, uma vez determinado este grau zero, a arte da pintura não tena mais nenhuma razão de ser. Todos insistiram neste ponto: a arte visa seu fim enquanto atividade separada — e o mito do “último quadro” ou da “dissolução da arte na vida” é uma constante na teoria das vanguardas dos anos 20. Donde a importância tomada por uma espécie de escatologia irracional nos textos dos artistas deste primeiro momento da teoria mo­ dernista. Uma escatologia transformada, na melhor das hipóteses, em puro misticismo pelos artistas dos pós-guerra, senão completamente abandonada, até que aparecesse de novo nos meados dos anos 60 com movimentos tais como o Minimalismo ou a Process Art (cujos artistas foram os primeiros a elaborar seu programa estético tomando dirctamente o “greenbcrguianismo” por alvo). Desta utopia artística, fundada sobre a espe­ rança na futura transparência das relações hum anas de uma sociedade sem classes, o segundo momento teórico do modernismo só reteve a concepção linear da História. Foi ao mesmo tempo uma divinização e uma dessemantização da História que encontra­ mos no centro do formalismo de Greenberg: em seu sistema a “autonomia relativa” da arte como foi teorizada pelos melhores escritores marxistas tornou-se autonomia ab­ soluta. A teoria de Baudelaire intensihcou-se e enrijeceu-se; a História compreendida como uma cadeia de acontecimentos culturais foi integrada como fator interno forne­ cendo critérios rigorosos para o julgamento estética das obras de arte. Tal é a situação descrita por Robert Klein. Mas, como assinalaram diversos comentaristas de Greenberg, este retor­ no a uma teleologia formal baseada na ilusão de um a autonomia absoluta da obra de arte é historicamente determinado: o fracasso das vanguardas dos anos 20 em realizar seu programa utópico, o pacto germano-soviético, a destruição do mito do progresso científico como agente do bem estar social com a Segunda Guerra, a guerra fria, etc. hido isto conduziu de uma certa maneira a este novo entrincheiramento da arte. O fim dos grandes discursos de legitimação”, a morte das ideologias que Jean-François Lyotard faz da condição essencial do pós-modernismo foi também o fundamento da teoria de Greenberg1'’. Donde a impostura que representa a atual posição neoconser-


Frantis Pitabra. sem título, v. 1950. óleo s/tcla 100 x 73 cm.


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vadora: quando os defensores do pós-modernismo neoconservador dizem que o revisionismo é a conseqüência lógica das transformações fundamentais que o mundo sofreu no último quarto de século, é preciso compreender que foi o papel político reivindica­ do pelos intelectuais que mudou. Quando se referem com entusiasmo à sociedade “pós-industrial” é para encobrir seu consentimento passivo aos mais brutais desenvolvi­ mentos do capitalismo atual. Para Greenberg, o papel da nova arte era o de salvar a cultura da sua degenerescência em kitsch (Tom Crow mostrou como Greenberg estava próximo de Ador­ no neste particular16). Greenberg considerava o modernismo uma reação sadia contra a produção e o consumo de massa. O que surpreende não é tanto o clitismo deste baudelirianismo renovado, mas o fato de que a vanguarda seja dotada de um papel de con­ servação. Guardar em vida a tradição, tal é a tarefa, como se houvesse a menor chance para a tradição de sair vitoriosa por meio desta revitalização do velho paradigma de sua luta contra a transformação da cultura em lata de lixo. Como se, em outros termos, esta transformação em lixeira não fosse a conseqüencia da lei racional do capitalismo, a lei da mercadoria, o eterno retorno do mesmo, da indiferenciação entrópica de todas as coisas. Foi por Greenberg ter fechado os olhos a estas questões sobre as quais Baudelaire, Duchamp e outros artistas dos anos 20 se debruçaram, cada qual à sua maneira, com suas próprias ferramentas conceituais, ingênuas ou elaboradas, que sua teoria che­ gou ao que se deve apropriadamente chamar um impasse humanista. Ele escreveu, em 1962: “Não vejo nada de essencial na nova pintura abstrata que se possa carac­ terizar como derivação do Cubismo ou do Impressionismo (se nós incluirmos o Fauvismo neste último), como tam bém não vejo nada de essencial no Cubismo ou no Impressionismo cujo desenvolvimento não remonte ao Renascimento” 17. Se se compara esta concepção linear da História da Arte com aquela dos anos 20, a mudança da ênfase é impressionante: os artistas das vanguardas históricas desejavam substituir a antiga ordem e não fornecer-lhe uma nova juventude. Os adeptos do neoconservadorismo oferecem a caricatura desta espécie de entesouramento humanista. Logo que fui confrontado pela primeira vez com a pin­ tura na “ nova” onda atual, o estilo yuppie-punk, m inha reação imediata foi tipicamen­ te modernista em seu historicismo: as telas de Salomé nada mais são que uma amálga­ ma do toque e da cor de Die Brücke com o gigantismo de Barnett Newman e uma pincelada de iconografia à moda do fim do século (neste caso, os temas homossexuais); Garouste faz pastiche de 1 intoreto e de Greco; a arte de Chia é um minestrone asso­ ciando o dinamismo de Boccioni ao neo-classicismo reacionário do Chirico tardio; Enzo Cucchi utiliza os camponeses primitivos dos começos de Malevich e a nova escala do Expressionismo Abstrato; Christopher Lebrun reúne a arte de juventude de Phillip Guston à de Odilon Redon, etc. Em outros termos, nada de novo, simples saladas combinadas, retiradas da História inteira da pintura, concebida como um reservatório de estilos reificados.


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Lu m antenho esta interpretação como válida, mas antes acreditei que es­ ta tendência artística, agora em seus primórdios, era uma simples manifestação do que Robert Klein definiu como double bind *, na qual a arte moderna se tornou prisio­ neira. Sua análise é parte do caráter necessariamente prescritivo ou acadêmico de toda crítica de arte, sendo esta, por natureza, obrigada a postular um modelo ideal para po­ der funcionar. Face a este modelo prescritivo se forma a intenção do artista, ao mesmo tempo o fundamento e a negação de suas obras, de sua livre existência no m undo18. Klein foi surpreendido pelo extremo nominalismo de Duchamp e pela necessidade cres­ cente de legendas explicativas na arte de vanguarda de sua época. O hipotético não-academismo destas práticas foi para ele a substituição do valor inerente à obra de arte pela intenção que havia presidido sua realização (e cita a série de gestos iconoclastas que caracterizam o que Peter Bürger chamou “a neo-vanguarda” dos anos 50 e 60)19. Mas ele estava bem consciente de que este critério de intencionalidade (da arte, pois esta é minha intenção) encerrava a arte em um círculo tautológico: em última instância, o consumo se tornava o critério da arte. Dizendo de outra maneira, ainda que o critério de intencionalidade pareça encontrar-se do lado da produção, uma inversão que se ope­ ra dá ao consumo um papel maior no processo da significação e de avaliação (donde, por exemplo, nossa leitura diferente das pinturas monocromáticas produzidas no correr deste século: nós levamos em conta as diferentes intenções de Rodchenko e de Yves Klein dentre numerosos outros, para avaliar suas pinturas monocromáticas, respectivas). Eis que se torna claro o em preendim ento da concepção teleológica da História e da prescri­ ção essencialista sobre a posição modernista: o grau zero do modernismo foi seu fio de Arianc na selva das intenções. Pode-se resumir o credo modernista dizendo que foi um empreendimento de motivação. A arte estando liberada de suas obrigações miméticas (função dali cm diante preenchida pela fotografia) e não tendo mais que servir direta­ mente a uma causa (à Igreja ou ao Príncipe), tinha que encontrar um modo de motivar seu arbitrário, um vetor para guiar o julgamento neste reino de profusão. O mito do grau zero foi este meio. Este imperativo histórico, transpessoal e teleológico era o único viés para evitar a crítica impressionista ou o sentimento, conjurar toda estética fazendo recurso ao pathos da expressividade e retornando necessariamente ao que Roman Jakobson qualificou de “ bate-papo” 20. O historicismo e o essencialismo foram as armas do modernismo contra “a impostura da intencionalidade’ 21 (como se o fato de fixar conscientemente sua obra no eixo de uma seqüência histórica dirigida teleologicamente cm direção à revelação de uma essência irredutível não fosse em si mesmo um ato intencional). Quando fui confrontado pela primeira vez com a onda pictórica do pós-modernismo neoconservador, esta me pareceu um simples retorno a este pathos expressionista vilipendiado por Jakobson — o que é freqüente, e seus defensores são, aliás, orgulhosos dela. De um lado, por exemplo, Hilton Kramer termina seu elogio com es­ tas palavras: N.T. Em inglês no original.


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“John Ruskin nos lembra que o que nós mais gostamos em todo estilo pictórico é o que ele chama os signos da paixão e do pensamento. O neo-exprcssiomsmo é tão abundantemente abastecido destes signos da paixão que seu apelo é irre­ sistível” 22. (Nós nos perguntamos por onde passam os “signos do pensamento .) Por outro aspecto, logo que a onda tomava impulso, Richard Hennesy opos a subjetividade da pintura à pretensa objetividade da fotografia: “O papel da intenção e sua poesia de liberdade humana não aparecem freqüentemente nas discussões sobre a arte; todavia, quanto mais a arte é capaz de reve­ lar suas intenções, mais tem chances de contar entre as belas artes e não nas artes aplica­ das” 23. (Nós nos perguntamos qual poderia ser o estatuto relativo de Ulisses e da publicidade em uma tal hierarquia.) Mas a proliferação dos pastiches e das citações históricas nesta artc yuppiep u n k me fez compreender que o paradigma formulado por Klein não era mais operatório, que a “double bind” não opunha o academismo prescritivo à intenção — não tan­ to porque esta categoria da livre intenção seja um outro mito, a posição imaginária do sujeito da consciência burguesa, mas porque este novo acento colocado sobre a intencionalidade não era senão a última máscara de uma reificação total. Tornava-se claro que minha própria condenação desta arte como “ não nova” era absurda, pois ela era precisamente o que queria parecer: o modelo de suas “ intenções” era o de um cliente num supermercado de culturas passadas pré-digeridas pelas mídias e a sua significação admitia valor de assim ter sido. Citemos: “Em uma boa parte da arte de hoje, sentimos que o pesado fardo de toda a civilização que sobrecarregava nossos ombros neste fim de século XX, como ha­ via pesado sobre a geração do Expressionismo abstrato, foi aliviado pelo distanciamen­ to, pela criação de uma Torre de Babel de citações a partir de um universo ilimitado de linguagens visuais e de símbolos ao mesmo tempo passados e contemporâneos, oci­ dentais e exóticos, sérios e cômicos”24. Escritas para o catálogo de uma exposição sobre a obra tardia de Picabia, pelo historiador de arte que mais se empenhou em reabilitar a arte pompier do século XIX, estas palavras mostram como o pós-modernismo é uma glorificação do capitalis­ mo avançado. Pois o que está em jogo, nesta caricatura do sonho humanista (a disponi­ bilidade atemporal de todas as culturas passadas e estrangeiras), não é tanto a homoge­ neização da alta e da baixa cultura que Greenberg e Adorno receavam, é sobretudo a desvitalização ‘antiquária” da História, de agora em diante, transformada em sim­ ples mercadoria. Prossegue Rosemblum: No diapasão de uma geração da televisão, Picabia troca de canal com a precipitação de um caleidoscópio — modelagem acadêmica e desenho linear imitado do Renascimento ou da arte greco-romana; paráfrases de monstros de Picasso que por


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sua vez parafrasiavam a arte romana espanhola; variantes excêntricas da geometria “hardedgc que dominou a utopia purista dos anos 20; traduções conscientemente fáceis das abstrações pictóricas brutas, irregulares e densas da Escola de Paris dos anos 40, abstra­ ções que em Nova Iorque no mínim o nos ensinaram a detestar. A abertura enciclopédi­ ca de Picabia à quase totalidade do campo da História da Arte, citada de maneira de­ senvolta e muitas vezes de maneira conflituada num a mesma obra, reúne de forma sur­ preendente a jovem arte de hoje”. Alcançamos, parece, o estado entrópico descrito por Flaubert em Bouvard e Pécuchet: ‘‘Igualdade de tudo, do bem e do mal, do belo e do feio, do insignifi­ cante c do característico. Só existe, de verdadeiro, os fenômenos” 2’. E eu não resisto a citar um outro de nossos advogados do neoconservadorismo, o historiador da arte Gert Schiff, especialista nos últimos anos de Picasso, ao se maravilhar diante de uma espécie de painel para avisos que “é parte integrante do atelier ao ar livre de Julien Schnabel”: “Encontram-se nele, presos com alfinetes ou colados e expostos, por toda parte, recortes de revistas alemãs datados de antes da Primeira Guerra; reproduções de detalhes das pinturas negras de Goya; cartas de baralho mexicanas; imagens ilustrando diferentes tipos raciais provenientes de uma velha publicação etnográfica; anúncios do começo do século; um desenho em linha proveniente de um opúsculo do século XIX sobre a mitologia; um nu de revista pornô; imagens de devoção; uma descrição do tefilim; velhos cartões postais e Deus sabe, ainda, que grão para seu moinho onívoro”26. Pensa-se primeiro nas colagens de Schwitters, mas, enquanto o descrédi­ to dadaísta constituía o diagnóstico da transmutação simbólica operada pela instituição artística para que a arte fosse consumida como arte, enquanto o ‘‘romance de estupi­ dez” de Flaubert era um ataque contra o nivelamento de todas as coisas pela cultura mercantil, a arte de Schnabel é aqui compreendida como uma síntese afirmativa de nosso universo visual e cultural. No decorrer deste artigo, Schiff invoca obras tão dife­ rentes como as de Signac, Klimt, Ensor, Klinger, Beckmann, Rembrandt, Giotto e as produções tardias de Picasso, Picabia e Chirico; artes tão diferentes como as de Pompéia, da América pré-colombiana ou do Rococó do século XVIII, escritores tão distan­ ciados uns dos outros quanto Goethe, Antonin Artaud ou Sommerset Maugham. Mas a lista, evidentemente, não está fechada e o moinho onívoro de Schnabel, com seu céle­ bre toque de Midas, é capaz de reciclar o que quer que seja e disfarçar a heterogeneidade em homogeneidade. A invocação recorrente do Picasso, do Picabia e do Chirico tardios mc conduz de novo a Rosenblum, que ajunta a este triunvirato senil o Chagall do final, “um quarto C ancestral que reencontra as fileiras de Clemente, Cucchi e Chia , três dos mais populares dentre os pintores do pós-modernismo neoconservador. Seu raciocí­ nio é de se observar de perto, pois parte de uma reivindicação tipicamente modernista, a de uma mudança constante de nossa apreciação do passado:


Julian Schnabcl, “Rebirth III, The Red Box”, 1986. óleo e guache, 376 x 340 cm.


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Quando nossa visão é alterada desta maneira, isto quer geralmente di­ zer, de fato, que os artistas mais jovens estão trabalhando, obrigando-nos por suas novas imagens e atitudes, a reconstruir índices genealógicos diferentes a partir da variedade infinita da arte do passado”. Nada de mais verdadeiro. Mas a pergunta é: de que passado se trata? E esta questão é im portante em vista da recuperação repugnante das famosas Teses so­ bre a filosofia da História por nossos adeptos do pós-modernismo neoconservador (não por Rosenblum, por exemplo, mas por Bonito Oliva). Contra a concepção historicista do tempo como homogêneo e vazio, contra a acedia do antiquário, sua indolência, Benjamin definiu a tarefa do historiador materialista como um empreendimento de salva­ ção: um tal historiador cessa de contar a sucessão dos acontecimentos como um rosá­ rio. Apreende a constelação na qual sua época encontrou com uma época anterior perfeitamente determ inada” 27. Ou ainda: “Ele percebe a chance de arrombar do curso homogêneo da História uma época determinada” 28. Nada a ver com a repercussão antiquária do passado, com a acumulação dos seus vestígios, que não é senão a perda de memória: o conceito messiâ­ nico de salvação colocado por Benjamin implica a salvação do presente, não o encobri­ mento do passado às suas custas. “Não é só à hum anidade libertada que pertence ple­ namente seu passado. Quer dizer que para ela mesma, a cada um de seus momentos, seu passado tornou-se citável” 29. Até o dia do Julgamento, tudo não é citável: não ter consciência disto é ser prisioneiro do historicismo de Ranke, um historicismo que se perfila sempre ao lado dos vencedores. Mesmo que não se partilhe a concepção da His­ tória de Benjamin, tem-se razã de ficar particularmente desgostoso pela desfiguração obscena que é feita pelos partidários do pós-modernismo neoconservador. Em sua apro­ priação do passado como um todo enquanto citável, eles retornam à acedia, onde a trans­ formação de todas as coisas cm mercadoria foi a justificação econômica. Não é por acaso que fazem de Picabia um de seus heróis: este dandy desejava atingir uma ‘indiferença imóvel”, outro nome da “ ideologia do traidor preconizada por Bonito Oliva. Não so­ mente isto o conduziu a rejeitar o Dadaísmo e a se tornar um dos sectários mais ativos do "retorno à ordem”, como sua empatia pelos vencedores desembocou em declarações anti-semitas e à glória do governo de Vichy durante a Segunda Guerra Mundial30. Não se trata de denunciar o fascismo diante das compulsões antiquárias da arte pós-modernista neoconservadora, mas a fascinação exercida pelo phatos reacionário de Wagner, mais que por sua música, sobre um pintor como Salomé e sobre os outros membros do ramo alemão deste movimento, está aí para nos relembrar que a barbárie é sempre possível. Tudo citar ou só citar os heróis autoritários da reação é, em última instância, a mesma coisa. Donde a urgente necessidade de uma história crítica da citação em arte. Para evitar o amálgama, que tem lugar hoje em dia, de discurso dominante no campo da crítica de arte, uma distinção deve ser elaborada entre a arte de citar do Renascimen­ to, a de Manet e a de Schnabel: esta História seria um capítulo da História política.


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Certo, o credo formalista de uma autonom ia absoluta não é mais aceitá­ vel. As forças de reação prosperam, a banquisa ganha terreno, apagando toda memória, gelando todo senso de responsabilidade social. N um a tal situação, a lição dos primeiros artistas modernistas é mais preciosa que nunca (e foi ouvida nos anos 60, como hoje em dia, pelos artistas que Foster denomina como pós-modernistas pós-estruturalistas ). Mesmo se seu recurso à abstração enquanto metáfora cpistcmológica dt uma sociedade futura sem classes é obsoleto, sua concepção do artista como revelador permanece, parecendo-me a única sustentável. Este papel crítico não é, necessariamente, diretamente político: desde que a arte não é mais tomada como um espetáculo narcisista, por um jogo de adivinhação gratificante (diga-me quem eu cito e te direi quanto vales), o "ron­ rom” da ideologia dominante está colocado em crise. Esta crítica, este colocar em crise foi a tarefa da vanguarda deste século, mesmo quando as obras não pareciam mais abor­ dar diretamente a questão (ver Minimalismo, p.e.). Mais que nunca, o critério de julga­ mento é um critério de moralidade política, no sentido amplo que acabo de sugerir. É, no mínimo, o critério sobre o qual baseio m inha apreciação da arte deste século, de Mondrian e de Malevich a Ryman e Serra — sim, Ryman e Serra — e é este critério que me permite rejeitar em bloco todo o em preendim ento dos Schnabel, Cucchi e Chia como glorificação do statu quo político de hoje.

1. Hal Foster, “ Post-Modern Polcmics”, Recordings — Art, Spectacle, Cultural Politics, Fort Towsend, Bay Press, 1985, p. 121. 2. Cf. Achille Bonito Oliva, "A proposito di trans-avanguardia", Alfabeta, n? 35, abril 1982. Este texto constitui uma resposta à “ Intervenção italiana” dejeanFrançois Lyotard, publicada cm italiano no núm ero de janeiro do mesmo jornal (n? 32) c em francês em Critique (abril de 1982, n? 419). O texto de Bonito Oliva foi traduzido para o francês em Babylone, n? 1, 1983, ed. Christian Bourgois, pp. 55-66. 3. Robert Klein,

Notes sur la fin de 1’image” (1962), retomado em La forme

et 1'intelligible, Paris, Gallimard, 1970. pp. 379-380. 4. Robert Klein, tada, p. 409.

Léclipse de 1oeuvre d ’art” (1967), retomado na coleção já ci­

5. Clcment Greenberg, Modernist Painting”, retomado cm Gregory Battock, The New Art, New York, Dutton, 1966, p. 102. 6. Jean 1aulhan, nota enviada a André Lhote durante uma reunião do Conselho dos Museus, citada no catálogo da exposição Jean Paulhan através de seus Pinto­ res, Paris, Grand Palais, ed. des Musées nationaux, 1974, p. 59. 7. Wladyslaw Strzcminski, Notes sur 1art russe (1922), traduzido do polonês em W. Strzeminski c K. Kodro, Lespace uniste, Lausanne, ed. LAge d ’homme, 1977, pp. 50-51. Strzcm inski é in ju sto em relação a R odchenko, d o q u a l ele deveria se p a ra r a obra pictórica, q u e cai in te ira m e n te sob o facão d e su a crítica, e a o b ra escu ltó rk a,


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já muito inventiva em 1922 (sem falar, claro, de sua obra fotográfica ulterior). Ver minha análise de Lespace unique em Critique, janeiro-fevereiro 1984, n?s. 440-441, pp. "0-94, sob o título dc “ Strzcminski et Kobro: en quête de la motivation". 8. Idem, p. 42. 0. Charles B audelaire, Salon d e 1946". re to m a d o em Curtosités esthétiques, textos reu n id o s p o r H. L cm aitre, Paris, G a rn ie r, 1962, p. 130.

10. Leo Steinberg faz dc Baudelaire um precursor de Greenberg em seu ensaio intitulado Other C.nteria. Ele cita. zombando, a passagem do ensaio do poeta sobre Delacroix: Uma figura bem desenhada vos penetra de um prazer comple­ tamente estranho ao sujeito. Voluptuosa ou terrível, esta figura só deve seu char­ me ao arabesco que ela recorta no espaço. Os membros de um mártir que se es­ quarteja, o corpo de uma ninfa desfalecida, se são sabiamente desenhados, com­ portam um gênero de prazer nos elementos do qual o sujeito não conta nada; se para vós isto se dá de outro modo, serei forçado a acreditar que vós sois um carrasco ou um libertino” (Leo Steinberg, Other Criteria, Chicago University Press, 1972, p. 64). 11. Waltcr Bcnjamin, “ Paris capitalc du XIXCsiècle”, 2? versão (1939), Das Pas-

sagenwerk — Gesammeltc Schriften, vol. V, 1. p. 71. 12. Para uma tentativa desta espécie, ver meu artigo “Painting: The Task of Mourning”, Endgame, catálogo dc exposição, Boston, ICA, MIT Press, 1986, pp. 29-49. 13. Cf. Lawrence Alloway, “ The Uses and Limits of Art Criticism”. Tropics in

American Art since 1945, New York, Norton, 1973, pp. 252-254. 14. Bcnjamin Buchloh, “ Figures of Authority, Ciphers of Regression”, October, n? 16 (primavera 1981), pp. 39-68. Traduzido em francês por Claude G intz, em B. Buchloh, Formalisme e histortcistne Autorilarisme et regression. Paris, ed. Territoires, 1982. 15. Cf. Jean-François Lyotard, La conditon post-moderne. Paris, ed. de Minuit, 1979. 16. Tom Crow, “ Modernism and Mass Culture in the Visual Arts”, Modemisrn andModemity, ensaios reunidos por Buchloh, Guilbaut e Solkin, Halifax, lh e Press of Nova Scotia College of Art and Design, 1983 (tradução francesa em Les Cahiers du MNAM. n? 19-20, junho 1987, pp. 20-50). Para a posição de Green­ berg, cf. sobretudo “Avant-Garde and Kitsch”, retomado em Art and Culture, Boston, Beacon Press, 1961 (tradução francesa em Cahiers du MNAM, n? 19-20, junho 1987, pp. 158-160). 17. Clcmcnt Greenberg, “ How Art Writing Earns its Bad Name”, Encounter, dezembro 1962, vol. XIX, n!’ 6, p. 70. 18 Robert Klein, “ Notes sur la fin de 1’image”, op. cit., p. 378: “ Nós estamos aqui; de um lado, o “ modelo ideal”, postulado pela dicotomia acadêmica, im­ possível mas solidária, em última análise, de toda crítica de arte e de toda obra; e de outro lado. a arte como intenção ou como ato (do artista ou do publico ou dos dois juntos), ao mesmo tempo o fundam ento e a negação de seus produtos .


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19. Cf. Peter Bürger,

Theory ofthe Avant-Garde.

M in n eap o lis, Univcrsity o f M in­

n esota Press, 1984. 20. R om an Jakobson, “ D u réalism e a rtistiq u e , Théorie de la littérature, textos form alistas russos, reu n id o s e tra d u z id o s p or T zvetan Todorov, Paris, Scuil, 1965. 21. Cf. W illiam K. W im sa tt Jr. e M onroe Beardsley, “ T h e In tio n n a l Fallacy” (1949), q u e constitui um d o s textos-m anifestos d o “ N e w C ritic ism ” am ericano (re to m a d o em W .K. W im sa tt Jr., The Verbal Icon. L ex in g to n , K entucky University Press, 1954). 22. H ilto n K ram er, “ Signs o n Passion”, Zeitgeist. N ew York, Braziller, 1983. p. 18. D esde que deixou seu p o sto d e crítico d e arte no New York Times, no com e­ ço dos anos 80, K ram er é re d ato r-ch e fe de u m a das revistas políticas e cultu rais das m ais reacionárias da A m érica, The New Crtlenon, q u e ecoa o p e n sa m e n to da nova direita reaganiana. 23- C ita d o por D ouglas C rim p , “ T h e end o f P a in tin g ”, vera 1982, p. 76.

October,

n " 16, p rim a ­

24. Robert Rosenblum, “ Francis Picabia: The Later W orks”, N ew York, Mary Boone Gallery, 1983, n.p. 25. G ustave Flaubert, Bouvardet Pécuchet? Paris, G a llim a rd , Folio, p. 443. Esta frase não figura p ro p ria m e n te no rom ance, m as em u m d o s ro teiro s q u e F laubert havia escrito para o fim d e seu livro. Sobre esta passagem c so b re a e n tro p ia flaub e rtian a , cf. Eugênio D o n a to , “ T h e M u se u m s F u rn a c e ”, re co lh id o em Textual Strategies, antologia re u n id a p o r Jo s u é H arari, C o rn e ll U niversity Press, 1979, p. 214, sq. 26. G ert Schiff, “Ju lia n S ch n ab el a n d the M y th o g ra p h y o f F e e lin g ”, N ew York, Pace Gallery, 1984, n.p. 27. W alter B enjam in, ‘T hèses su r la p h ilo so p h ie d e 1’H is to ire ”, em Paris, D enoél, col. L cttres N ouvelles, 1971, p. 288.

Poésie et ré-

volution,

28. Id em , p. 287. 29. Idem , p. 278. 30. Cf. m eu artigo "P icabia, d e D a d a à P é tain ”,

Macula,

n ? 1, 1976, pp. 122-123.

Y V E -À L M N BOIS nasceu e m 1952. D e fen d e u e m 1977 tese d e D o u to ra d o de Cycle sob a orientação d e R oland B arthes na École P r a tiq u e des H a u te s É tudes^Foi um dos fu n d a d o re s d a revista Macula. É, a tu a lm e n te , professor associa­ do da J o h n H opktns U niversity d e B altim ore. Publicou e m Macula, Critique Oc­ tober, Art in America. P re p a ra u m a H istória d a A x o n o m e tria e u m a m o n o g rafia sobre os anos neo-plásticos d e M ondrian.


HANS-GEORG GADAMER Tradução: Paulo V enancio F ilh o

A Imagem Emudecida

Se há uma coisa certa na arte contemporânea, é o fato de que a relação entre natureza e arte se tornou problemática. A arte não preenche mais nossas ingênuas expectativas pictóricas, e não podemos mais dizer qual é o conteúdo de um quadro. Todos reconhecem o constrangim ento do artista que finalmente se refugia nos números — o mais abstrato dos signos — quando dele se espera o fornecimento de um título verbal para seu trabalho. A antiga relação entre natureza e arte, a da mímesis, não mais se sustenta. Relembramos como Platão formulou a tarefa da filosofia: “abarcar num só golpe de vista todas as idéias esparsas de um lado e de outro e reuni-las em uma só idéia geral'’ ou retirar o eidos universal das aparências múltiplas das coisas. Nesse sentido, gostaria de propor um tal eidos ou perspectiva através da qual poderemos des­ crever e interpretar a arte contemporânea. Quero falar sobre a linguagem emudecida da imagem pictórica. Q uando dizemos que alguém emudeceu não significa que este alguém não tem nada dizer. Ao contrário, este em udecimento é na realidade um tipo de fala. Em alemão a palavra Stum m (m udo) é conecta com a palavra Stammeln (o ato de balbuciar ou gaguejar). Certamente a angústia do gago não reside no fato de ele não ter nada a dizer. Ao contrário, ele quer dizer muito rapidamente e é incapaz de encontrar as palavras para expressar a urgência do que quer dizer. Da mesma manei­ ra, quando dizemos que alguém se calou ou se tornou emudecido (verstummt), não queremos simplesmente dizer que esse alguém cessou de falar. Quando as palavras nos fogem, o que queremos dizer se coloca tão próximo de nós como algo para o qual preci­ samos procurar novas palavras. Se considerarmos a rica, colorida e resplandescente eloqüência com que as pinturas dos períodos clássicos representadas em nossos museus tão clara e fluentemente nos falam, e a compararmos com a arte criativa do nosso tempo, teremos a impressão de emudecimento. Devemos perguntar como podemos explicar es­ te emudecimento que tão intensamente se dirige a nós com sua peculiar eloqüência calada. No que diz respeito à pintura européia, esse emudecimento começou com a natureza-morta e a paisagem, que originariamente pouco se distinguiam uma da ou­ tra. Anteriormente havia inúmeros temas sagrados ou régios considerados como dignos de representação pictórica, assim como figuras e estórias familiares a todos. O fato de que a palavra grega para quadro (zoon) originariamente significava um ser vivo, mostra o quão pouco dignas de representação pictórica eram consideradas as simples coisas e a natureza sem a presença do homem. No entanto, quando visitamos um museu de


arte tradicional, são precisamente as naturezas-mortas que nos impressionam como particularmentc modernas. Ao encontrarmos tais temas num a pintura, eles não requerem o mesmo grau de interpretação das representações de deuses, homens e suas atividades. Não se trata de que esses temas não foram tam bém formas inteligíveis de autopresentação que eram imediatamente inteligíveis enquanto tais. Porem, se um artista contem­ porâneo tentar usar estas formas de expressão, seu trabalho nos chocará como excessiva­ mente declamatório. E não há nada que nossa época aprecie menos do que a declamação. Mas o quê queremos dizer com declamação? A palavra alemã para esse pronuncia­ mento demonstrativo é Aufsagen, e aqui ela é instrutiva. Este “dizer” demonstrativo não é realmente uma forma de dizer, já que, longe de procurar a palavra exata para o que quer ser dito, parte da palavra corrente e familiar, de palavras há m uito seleciona­ das por alguém ou por nós mesmos quando querem os dizer algo através delas. Se o artista criativo de hoje simplesmente empregasse temas pictóricos clássicos teríamos esse


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dizer, uma mera repetição de um a linguagem previamente forjada. Mas a natureza-morta. típica do período da nascente sociedade burguesa holandesa, é outro assunto. Aqui é como se o mundo sensível à nossa volta encontrasse expressão numa linguagem que não precisa de palavras. Naturalmente, a natureza-morta só pode ser encarada como um gênero particular legítimo quando consegue suplantar a pintura narrativa. Sempre que encon­ tramos motivos familiares da natureza-morta no contexto da arte puramente decorati­ va. não se trata do caso da genuína natureza-morta, isto é, da imagem emudecida. Co­ mo regra, então, a natureza-morta, é um quadro que pode ser colocado em lugares di­ ferentes conforme a vontade — embora seja bem mais do que isso. Aonde quer que esteja colocado, o quadro nos convida a nos reunirmos diante dele como se tivesse mui­ to a nos dizer. E, de fato, ele nos diz. Não é uma seleção arbitrária do m undo físico à nossa volta. Ao contrário, existe uma iconografia na natureza-morta. Em contraste com todos os outros tipos de temas pictóricos, o próprio arranjo pertence à essência da natu­ reza-morta. Não pretendo sugerir que em todos os casos o pintor representa a realidade tal como ele a encontra. Isto não é mais verdade para a paisagem ou o retrato do que para a pintura religiosa ou histórica: a composição é sempre contribuição do artista. Mas a natureza-morta propicia uma liberdade única no arranjo de sua matéria temática precisamente porque os “objetos” da composição, nesse caso, são coisas que podemos arranjar: frutas, flores, objetos cotidianos, às vezes até mesmo produtos da caça — tu­ do, enfim, que escolhemos para mostrar. A liberdade composicional começa, assim, com a própria matéria-temática c, nessa medida, a natureza-morta antecipa a liberdade com­ posicional da arte moderna onde não encontramos nenhum traço da mímesis e na qual o emudecimento total reina supremo. O emudecido silêncio da pintura contemporânea está muito distante do tempo em que a natureza-morta se tornou um tema digno da arte. As naturezas-mor­ tas holandesas que ainda nos impressionam não testemunham simplesmente a desco­ berta da beleza física das coisas ao nosso redor. Elas implicam toda uma circunstância que legitima certos objetos como dignos de representação pictórica. Há muito tempo se sabe, c se demonstrou através de exemplos específicos3, que muitos símbolos da vai­ dade são encontrados nas naturezas-mortas holandesas. O camundongo, a mariposa, a mosca, a vela acesa, são símbolos da evanescência das coisas terrenas. Pode bem ser que as pessoas daquela época, com toda sua seriedade puritana, sempre entendessem a linguagem desses símbolos quando precisavam e admiravam o esplendor de tais coisas terrenas. Assim, para que possamos entender essas pinturas corretamente, elas podem até mesmo conter uma caveira ou qualquer inscrição edificante cm verso expressando a insignificância das coisas terrenas. Na Alte Pinakothek de Munique existe uma pintu ra de Hecm que traz a seguinte inscrição: “Não se olha mais para a mais bela flor 4. Mais im portante, entretanto, e o que primeiramente constitui o quadro como uma linguagem emudecida, é o fato de que mesmo sem esses símbolos e sem qualquer conhecimento explícito deles, o tema mesmo da representação em toda sua


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sensual riqueza expressa a sua própria transitoriedade. Em minha opinião, é a autopresentação significante residindo na própria aparência das coisas como tais que pertence à verdadeira iconografia da natureza-morta, aquém ou além dos elementos capazes deexplicitar a interpretação simbólica. Recorrentemente encontramos nessa iconografia o motivo do limão semidescascado, a casca pendendo para o lado. Sem dúvida inúmeras coisas justificam esse motivo pictórico comum: a relativa raridade da fruta, a dialética entre a casca não comestível e o interior aromático da fruta (análogo ao efeito das nozes abertas), o gosto ácido e amargo que atrai e repele ao mesmo tempo. São esses motivos constantemente repetidos que capturam a m ortalidade, evanescência e transitoriedade de dentro da pintura. É ainda uma questão aberta se o gênero da natureza-morta é de origem italiana ao invés de holandesa. Se este é o caso, podemos perceber imediatamente a relação com os mosaicos e a pintura decorativa da antiguidade, cujos vestígios ainda podiam ser vistos nas paredes arruinadas das construções antigas. Para nós, as recentes exeavações de Pompéia são a mais bem conhecida fonte de evidências. Existem duas características específicas que servem para enfatizar essa relação iconográfica. Em pri­ meiro lugar, as pinturas decorativas da antiguidade conhecidas por nós que se asseme­ lham ao gênero da natureza-morta tendem na direção do efeito trompe 1’oeil. Elas são pintadas na parede dando a ilusão de vistas de pequenas janelas. Nada semelhante po­ de ser encontrado na natureza-morta, já que a própria artificialidade do arranjo exclui tais efeitos ilusionistas. Em segundo lugar, sempre que nos deparamos com essas pintu­ ras antigas, além das frutas, flores, animais como cobras, caranguejos e pássaros — pre­ cisamente as coisas que devem ter exercido grande influência sobre os primeiros pinto­ res modernos — existe também nesses arranjos algo puram ente decorativo, festivo, qua­ se heráldico. Mas, por exemplo, a lagartixa no canto do arranjo de flores pintado por Jacobo da Udine e muitas das mariposas, moscas, lagartixas e camundongos encontra­ dos nas naturezas-mortas holandesas têm uma função diferente: a fugaz, trêmula, veloz qualidade dessas coisas emprestam à natureza-morta em torno da qual elas dançam al­ go de sua própria capturada e fugitiva vitalidade. Podemos acrescentar que a fruta caracteristicamente representada na na­ tureza-morta italiana é a romã e não o limão. Seu significado simbólico sugere um jogo similar de riqueza convidativa e repulsão. É verdade que no período subseqüente o fun­ do religioso da natureza-morta gradualmente retrocede e dá lugar à rica, decorativa e tentadora representação de arranjos atraentes de frutas. Mas, finalmente, no término de uma longa e não-usual persistente via tipológica (a casca do limão permaneceu obri­ gatória até o fim do século XIX), a natureza-morta adquiriu vida nova nos revolucioná­ rios desenvolvimentos que estabeleceram a pintura moderna, ainda que de uma manei­ ra enigmática. Pensemos apenas nas naturezas-mortas de Cézanne onde não encontra­ mos mais objetos tangíveis arranjados num espaço que podemos penetrar. Ao contrá­ rio, é como se as coisas estivessem embutidas na própria superfície da tela que fornece seu espaço.


Paul Cézannc. Natureza morta, 1890.

Coisa, a unidade de uma coisa individual, ou a unidade de um arranjo, não mais proporcionam um tema digno de representação pictórica. Os girassóis de Van Gogh estão integrados na articulação da superfície da pintura tal como em qualquer retrato moderno, e o significado objetivo das coisas representadas dificilmente acres­ centa algo ao quadro. Certam ente é significativo que, assim como o limão semidescascado da natureza-morta holandesa, possamos reconhecer na natureza-morta moderna um “tema” pictórico favorito — na ausência de um nome melhor para algo que não é mais o tema, mas mesmo assim está presente. Penso na imagem do violão que, nas mãos de Picasso, Braque, Juan Gris e outros, se tornou uma espécie de vítima privile­ giada das dcslocações da forma que chamamos Cubismo. Não desejo identificar as vá­ rias teorias que os próprios pintores propuseram ou foram persuadidos a aceitar de mo­ do a justificar seus novos procedimentos. Não é provável que a preferência por este ob­ jeto específico, com sua forma característica e contorno ressoante, esteja ligada ao fato de ele ser, afinal, um instrum ento musical? Como objeto não criado para contempla­ ção, o próprio instrumento, inundado por ondas de som que surgem de si para tecer guirlandas de notas dançantes na superfície da pintura, parece invocar como o verda­ deiro ideal da nova pintura a “ música absoluta”, aquela arte que por séculos ousou aban­ donar todo conteúdo linguístico e renunciar toda referência extramusical. Pode ser que outros fatores como o rápido ritmo da vida m oderna, por exemplo, também tenham


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sugerido a desintegração da forma regular das coisas. Uma das primeiras pinturas de Malevich, “Dama na cidade grande”, representa as mudanças em nosso mundo-vida que causaram o desaparecimento das coisas sólidas e permanentes do mundo antigo. De qualquer maneira, foi um evento verdadeiramente importante quando, no começo do século, a unidade de nossas expectativas pictóricas começou a dissolver-se e a fragmentar-se na incrível variedade das formas possíveis. Só a relação de forma e cor, sem referência a objetos específicos, permanece como um tipo de música visual dirigido a nós na emudecida linguagem da arte moderna. Nessa situação devemos perguntar o que é que constitui a unidade composicional dos quadros modernos. Certamente não é a unidade de um tema pictórico significante, nem a muda unidade das coisas corpórcas que encontramos aqui. Ambas parecem ter perdido seu poder. O quê então constitui a unidade desses quadros? Não é simplesmente a unidade do objeto que está faltando nos quadros modernos, como se aquilo que anteriormente fazia de um quadro uma imagem mimética, fosse ela mi­ to, narrativa ou simplesmente objetos reconhecíveis — a unidade do que é representa­ do — tenha desaparecido. Não é também a unidade de um único ponto de vista tal como este era entendido na época da perspectiva linear, quando a pintura fornecia a visão de um espaço fechado. Mesmo depois do colapso que afetou a longa tradição iconográfica estabelecida, um colapso que afetou toda a pintura desde a ruptura com a

Morandi. Natureza morta, 1960.


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tradição no século XIX, o foco significante da perspectiva linear continuou a sustentar a seleção arbitrária da realidade apresentada aos nossos olhos. A moldura pertence es­ pecificamente a esse tipo de pintura enquanto ela sustenta e encerra, convidando-nos assim a entrar na profundidade do que ela encerrou. Uma das características mais notá­ veis da existência histórica é que o novo só gradualm ente e com grandes esforços rompe através das formas ossificadas do velho. Mesmo o poder interior da superfície das pintu­ ras de Cézanne não conseguiu eliminar com pletam ente a obsoleta moldura dourada do Barroco. Agora está claro que o quadro contem porâneo não é sustentado pela mol­ dura, se é que ele ainda a tem. Ao contrário, o quadro sustenta a moldura. Qual é a unidade e a força que o perm ite fazer isso? Esta unidade tam bém não é a unidade da expressão. É verdade que a expressão fornece um novo princípio de unidade que dominou a criação artística na era moderna uma vez que a imitação e a repetição de temas pictóricos pré-dados se tornou um caso de retórica vazia. A unidade de expressão interior — a expressão do artista em lugar daquilo que representa — e o poder expressivo do seu pincel, esta a mais sen­ sual de todas as formas de linguagem visual, poderia parecer como a forma mais apro­ priada de auto-representação para uma época de interiorização, porque dessa maneira nossa resposta ao enigma da vida encontra realização imediata como uma imagem. Ho­ je, no ambiente da cultura tecnológica de nossa época industrial, essa unidade da expe­ riência subjetiva e da auto-expressão espontânea não mais fornece um princípio iluminador da unidade das artes criativas. Trata-se do fato de que o próprio conceito de quadro que foi característi­ co do museu tradicional tornou-se por demais restritivo. O artista criativo eliminou a moldura, e a articulação da superfície constitutiva do quadro aponta ela própria para outros contextos. Costuma-se dizer como crítica de um quadro que ele é muito decora­ tivo, mas isto está perdendo seu significado pejorativo. Da mesma maneira como anti­ gamente os projetos dos monumentos, igrejas, praças, salões e interiores domésticos de­ finiam as necessidades pictóricas que os artistas deviam preencher, também hoje esta­ mos novamente reconhecendo tais necessidades pictóricas. Uma visão da arte contem­ porânea desse ponto de vista confirma que a arte sob encomenda foi restabelecida em toda sua antiga dignidade. Não se trata somente de um fenômeno econômico. Em pri­ meiro lugar, arte sob encomenda não significa que o artista deve curvar-se relutante­ mente aos caprichos de quem encomendou seu trabalho (mesmo se, infelizmente, esse costuma ser o caso). A real natureza e a verdadeira dignidade de tal arte reside no fato de que ela preenche um a tarefa que é definida previamente, e não é um mero capricho individual. Assim, não há duvida de que a arquitetura moderna goza de uma posição proeminente entre as artes de hoje porque ela coloca tarefas dessa ordem e atrai as ou­ tras artes plásticas e visuais para si através da organização do espaço e da proporção. A arte contemporânea não pode mais rejeitar essa reivindicação de que o trabalho não deve referir-se só a si mesmo quando nos convida a habitá-lo, mas deve, simultânea mente, referir-se ao contexto-vida ao qual pertence e ao qual ajuda a dar forma.


Illl

W alter G ro p iu s (acim a).

Panamerican World Airways Building. New York, 1963.

Mies Van Der Rohe. Seagram Building. New York, 1938.


m m nm m Rithard Serra. St. Johns Rotary Arc, 1980. Aço Corten.

Então, perguntamos de novo: o quê constitui, hoje, a unidade do qua­ dro? O que pode o quadro nos dizer do contexto de nossas vidas? Estamos cercados por todos os lados pelas significativas transformações em nosso mundo-vida. O poder do número c visível em todo lugar e se manifesta acima de tudo na forma de séries, combinações, adição e sequência. Estas formas caracterizam a estrutura celular e seg­ mentada dos grandes edifícios modernos, assim como a precisão dos métodos moder­ nos de trabalho e o funcionamento regulado do transporte à administração. E a intercambiabilidade das partes que tipifica a soma e as séries. O fato de uma parte indivi­ dual poder ser trocada e substituída é um aspecto essencial do tipo de vida que leva­ mos. "Louvemos agora as partes mecânicas”.6 Vivemos num mundo de planejamento, design, montagem, acabamento técnico, entrega e venda; um mundo atravessado por técnicas de publicidade que tornam obsoleto o produto acabado tão logo ele se trans­ forma num artigo de consumo e que o suplantam por algo novo. O quê pode a unicidade da imagem significar num mundo onde tudo é substituível?


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Ou talvez se dê que a unidade do quadro adquire uma nova importância precisamente neste mundo? Não estamos mais cercados por coisas constantes e familia­ res com uma unidade delas próprias. Face à crescente ausência de rosto que parecí apro­ priada aos seres humanos em nosso mundo industrial, a forma e a cor do quadro fundemse numa unidade em tensão que parece ser organizada de dentro. Mas através de qual virtude pode ele fazer isso? O quê dá ao quadro sua estabilidade? O elemento experimental que entrou no processo de criação artística sem dúvida é algo qualitativamente diferente da experimentação sem fim que uma vez fez do pintor comum um mestre. A construção racional que domina nossas vidas tenta tam­ bém criar um lugar para si no interior do trabalho construtivo do artista. Isto porque sua atividade criativa tem algo do experimento: ela se assemelha às séries de experimen­ tos através dos quais adquirimos novos dados por meio de uma questão artificialmente colocada, e procuramos uma resposta. Esse elemento combinativo e serial penetra então na produção artística contemporânea — e não simplesmente nos títulos dos trabalhos. Embora aqui algo que pode ser planejado, construído e indefinidamente repetido, su­ bitamente, adquire o sagrado status de uma conquista única. O artista criativo pode, com freqüência, estar incerto sobre qual dos seus experimentos realmente conta . Ele pode mesmo, às vezes, perguntar-se quando o trabalho está terminado. Existe sempre algo de arbitrário em colocar um término no processo de criação, particularmente se ele é final. Muito embora pareça existir um critério pelo qual o trabalho acabado é me­ dido: torna-se impossível continuar trabalhando quando a estrutura em questão come­ ça a perder em vez de ganhar densidade. A criação se eleva independente, livre por si própria, sem consideração com a vontade ou a auto-interpretação de seu criador'. Finalmente, a antiga relação entre natureza e arte que, através da idéia da mímesis, dominou a criação artística durante séculos preenche a si mesma com um novo significado. Certamente a arte não contempla mais a natureza para produzi-la sob uma nova forma. A natureza não fornece mais o modelo exemplar para a arte seguir. E, embora siga seu próprio caminho, a obra de arte se assemelha à natureza: existe algo regular e unificador no quadro autocontido que cresce de dentro para fora. Podemos pensar aqui no cristal. A regularidade pura de sua estrutura geométrica é inteiramente natural e, mesmo cercada por um abundante caos informe, nós a encontramos como algo raro, inflexível, brilhante. Neste sentido, o quadro moderno tem algo da natureza em si — não possui interioridade para expressar. Ele não requer nenhuma empatia co­ mo estado psicológico do artista. Assim como o cristal, ele tem sua própria necessidade atemporal: dobra de si, linhas erodidas, magia que paralisa o tempo. Abstrato? Concre­ to? Objetivo? Não-objetivo? E uma promessa de ordem. O artista moderno se encontra em dificuldades quando tenta responder um fenômeno secundário. Aqui devemos se­ guir Paul Klee, que está em posição de saber, quando rejeita todas as “teorias em si” e enfatiza os próprios trabalhos: “aqueles já produzidos e não aqueles que ainda vi­ rão O artista moderno é menos um criador que um descobridor do ainda não visto, o inventor do previamente não imaginado que emerge só através dele. Embora a medi-


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da à qual deva responder, surpreendentemente, pareça ser a mesma a que o artista sem­ pre respondeu. Aristóteles diz — e quando encontramos uma verdade que não pôde ser encontrada já em Aristóteles? — que um trabalho bem realizado é aquele onde nada é demais e nada é pouco, nada em excesso e nada em falta9. Uma medida sim­ ples mas difícil.

1. Federo 263d. 2. Em seu livro Zeit-bilder (Frankfurt am Main: Athcnàum. 1960), Amold Gehlen apontou a muda qualidade da arte moderna. Cf. “ Begriffne Malerei?”, minha crítica desse interessante livro está republicada em Kleine Schriften 11 (Tübingcn. J.C.B. Mohr, 1967) pp. 218-226. 3. Como foi recentemente mostrado outra vez por Ewald M. Vetter, Die Maus auf dem Gebetbuch, Ruperto-Carola (Mitteilungen de Vereins der Freunde der Studenten der Universitát Heildelberg), 36, 1964, pp. 99-108. 4. Traduzido do holandês. Jan Davidz. de Heem, “ Bunch of Flowers in a Glass Vasc with Crucifix and Skull”, Alte Pinakothek, Munique. 3. Cf. o instrutivo ensaio de Charles Sterling, La nature morte de TAntiquité

a nus jours (Paris: P. Tisné, 1939). 6. Rainer Maria Rilke, Sonnets to Orpheus, traduzido por J.B. Leishman (London: Hogarth Press, 1967), Part 1, No. XVIII, p. 69. 7. Em meu ensaio sobre os poemas inacabados de Goethe em Kleine Schriften, Vol. II (pp. 103-133), investiguci essa questão com referência a um exemplo espe­ cífico. 8. The Diaries ofPaul Klee (1898-1918) (Berkeley: University of Califórnia Press, 1964), número de referência 961, p. 318. 9. Ética a Nicômaco, 1106b.

HANS-GEORG GADAMER. filósofo alemão, nasceu em 1900. Foi aluno de Heidcggcr e Paul Nartop. Seus mais importantes estudos se concentraram no campo hermenêutico, onde se destaca “Verdade e Método (1960). Este texto foi extraí­ do do livro “A Relevância do Belo e Outros Ensaios” (1966).


Breves Relatórios de Pesquisas do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil. PUC-RJ.


O Rio dc Janeiro no Processo Cultural do Brasil Setecentista: Arquitetura, Artes Plásticas e Urbanismo”

O objeto de pesquisa que nos propusemos foi o de interpretar as motivações de­ terminantes para a produção dos monumentos arquitetônicos, das obras de arte c do projeto ur­ bano do Rio de Janeiro no século XVIII c, ainda, avaliar a maneira pela qual estas influenciaram na formação da visualidade brasileira. Nosso objetivo é, portanto, analisar em um momento de­ terminado de nossa história, que proposições dc espaço a arte e a arquitetura abriram, qual o seu significado e o seu percurso social. O esforço de detectar as características específicas da visualidade do Rio de Janei­ ro neste momento, nos levou a analisar minuciosamente, após exaustivo levantamento de campo, as diversas áreas que são objeto de nossa pesquisa: a arquitetura civil, militar e religiosa, o desen­ volvimento urbano, a pintura civil e religiosa, a imaginária, a talha, a azulejaria e a história so­ cial. Isto posto, esta pesquisa vem preencher importantes lacunas no atual estágio da produção historiográfica relativa à arte e à arquitetura no Rio de Janeiro no século XVIII: o Rio dc Janeiro, comparado a outras regiões do Brasil colonial, é, sem dúvida, uma das menos estuda­ das e conhecidas. Dentre as diversas questões que envolveram este trabalho, deve-se ressaltar em que medida o estabelecimento de relações com a cultura européia dos séculos XVII e XVIII — Itália, França, Espanha e, principalmente, Portugal — modelou a cidade do Rio de Janeiro nos setecentos e a sua respectiva produção artística. Para tal, é relevante o fato do Rio ter-se tornado, no decorrer deste século, o centro hegemônico das relações metrópole-colônia e sede do aparato político-administrativo do Estado absolutista português. Outro aspecto importante prende-se a originalidade de produção visual do Rio colonial visto que a estreita ligação com o poder influiu de forma decisiva e peculiar na formação da cidade e no desenvolvimento de sua arte. A lógica do empreendimento português não visava apenas o controle coercitivo das atividades econômicas da colônia, mas, principalmente, buscava a reprodução dc seus valores simbólicos, morais e estilísticos para garantir a dominação. Devido à sua proximidade com o poder, o Rio foi o espaço privilegiado de absor­ ção e de difusão dos valores trazidos de Portugal. A forma de absorção dos padrões estéticos deuse na capital de maneira diversa das demais regiões da colônia, onde pode-se identificar algumas características autóctones na representação artística. Aqui, ao contrário, percebe-se um maior ri­ gor no que se refere à introdução dc novos elementos na reprodução dos modelos vindos da Euro­ pa. A arte do Rio setcccntista apresenta uma certa “erudição” no sentido de buscar a mais perfei­ ta fidelidade ao modelo. Embora esta tenha sido um a prática recorrente nas artes plásticas deste tempo, nota-se que em outros centros foi possível a identificação de verdadeiras escolas com ca­ racterísticas regionais. Talvez, paradoxalmente, o que distinga a arte do Rio de Janeiro deste pe­ ríodo seja justamente a ausência de um estilo marcadamente regional. Estas são, em linhas gerais, algumas das questões que envolvem o universo teóri­ co com o qual a pesquisa busca situar referências capazes de produzir um maior conhecimento sobre o Rio de Janeiro e sua projeção no Brasil setecentista.


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Estado atual Visando a formalização teórica sobre o objeto proposto, i.e., os vários aspectos que informam a visualidade do Rio de Janeiro setecentista, foram produzidos diversos textos que abrangem as várias áreas em que o projeto foi subdividido: A rquitetura Civil, Militar e Religiosa, Urbanismo, Mestre Valentim, Talha, Escultura Religiosa, Pintura Civil c Religiosa. Azulejaria e História Social. Para a realização destes textos foi necessário um amplo trabalho de pesquisa de campo baseado no levantamento de obras c m onum entos, o que se consubstanciou nas aproxi­ madamente 450 (quatrocentos e cinquenta) fichas que atualm ente fazem parte do arquivo da pesquisa. O trabalho meticuloso de elaboração destas fichas revela, em última instância, um es­ treito contato com o material de análise e se reveste de maior importância, não só para a pesquisa em si, mas para a documentação da História da Arte brasileira e da cidade do Rio de Janeiro. O estudo posterior deste material levantado, seguindo uma metodologia própria da História da Arte e da Arquitetura, possibilitou não apenas uma apreensão do significado de cada obra em si mas, igualmente, da articulação existente entre toda a produção de arte e arqui­ tetura do Rio de Janeiro Setecentista, bem como da sua relação com a vida social da cidade e do país no período. Leandro Joaquim, “A Pesca da Baleia”, óleo s/ tela. Coleção MNBA


0 Rio de Janeiro Setecentisra

Além das 450 fichas com o levantamento minucioso de monumentos arquitetô­ nicos e urbanos, pinturas, esculturas, etc., formam o arquivo do Centro de Referência da pesquisa aproximadamente 100 fichas com o levantamento dos artistas e engenheiros que trabalham no Rio dejaneiro no período estudado; levantamento bibliográfico com aproximadamente 380/400 títulos fichados: obras de caráter geral sobre o barroco e específico sobre história da cidade; rela­ tos de viajantes; e textos teóricos sobre história da arte; levantamento arquivístico executado nas diversas Ordens Religiosas, no arquivo da Secretaria do Patrimônio Artístico e Histórico Nacio­ nal, Arquivo Nacional, entre outros; aproximadamente 500 slides de obras e monumentos; e le­ vantamento iconográfico, incluindo mapas, plantas, vistas, gravuras, da cidade (em fase inicial de organização). O Centro de Referência possui ainda cerca de 400 volumes entre livros, periódi­ cos e catálogos especializados adquiridos através de recursos da F1NEP e doações. Todo este mate­ rial está sendo catalogado/fichado, a fim de permitir seu controle e facilitar a consulta.

Mestre Valentim, “São João Evangelista" (detalhe). Escultura em madeira.


“A Virgem dá o Escapulário a São Simão”. Capela do Noviciado, Igreja da Ordem 3? de N. S. do Carmo. Segunda m etade do século 18, autoria não identificada.


0 Rio de Janeiro Sctccentista

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Congressos e Seminários O Projeto foi apresentado nos seguintes eventos: — Colóquio Internacional Scculo Dezoito e Brasil, promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos do Século XVIII. Brasília, de 04 a 07 de junho de 1984. — Encontro de Pesquisadores do Rio de Janeiro, "Esta Cidade tem Memória”, promovido pelo Museu Histórico da Cidade/FUNARJ. Rio de Janeiro, de 25 a 27 de julho de 1984. — Seminário "As Artes do Scculo XVIII no Rio dejaneiro — Arquitetura, Artes Plásticas e Urbanismo”, promovido pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Arquivo Geral da Cidade. Rio de Janeiro, fevereiro de 1985. — II Encontro do Barroco Mineiro, promovido pelo Centro de Pesquisa do Bar­ roco Mineiro e Revista Barroco. Tiradentes, outubro, 1985. — III Congresso Brasileiro de História da Arte, promovido pelo Comitê Brasilei­ ro de História da Arte. São Paulo, 1987.

Fontes de Financiamento O projeto contou com o apoio da CAPES e do CNPq (bolsas de estudo); FU­ NARJ (cessão de duas funcionárias alunas do Curso); SPHAN/Pró-Memória (material de consu­ mo, fotografias, desenhos). A UNESCO, também, destinou recursos importantes para o desen­ volvimento da pesquisa. No entanto, o aporte financeiro mais significativo deve-se à FINEP, que contribuiu decisivamente para a viabilização da mesma e da formação de um núcleo e de um banco de dados sobre o Rio de Janeiro do século XVIII.

Equipe Coordenador Geral: Prof. Carlos Zilio / Assessora de Coordenação: Elizabeth Carbone Baez / Consultores: Prof. Jorge Paul Czakjowski (Arquitetura e Urbanismo), Prof? Margareth A. C. da Silva Pereira (Arquitetura e Urbanismo), Prof? Myriam A. R. de Oliveira (Arte Colonial), Prof. Ronaldo Brito Fernandes (História da Arte), Prof? limar Rohloff de Mattos (Histó­ ria). Pesquisadores: Arquitetura c Urbanismo: Ana Paula Lemos Souza, Cláudia De Paoli, Luiz Antonio Lopes de Souza, Marta Quciroga Amoroso Anastácio, Roberto Luis Torres Conduru e Sheila Baptista / Talha: Heloisa Magalhãs Ducan / Mestre Valentim: Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho / Pintura: Elizabeth Carbone Baez e Maria Helena de Carvalhal Junqueira / Escultura Religiosa: Sucly de Godoy Weisz c Vera Regina Lemos Forman / Azulejaria: Ana Maria Mesquita I História Social: Maria Eduarda Castro de M. Marques e Vera Beatriz Cordeiro Siqueira.

Colaboradores: Dora Alcântara, Isabel Rocha, Luis Fernando Franco, Marcos de Azevedo Faria, Maria Albertina Portela M. de Carvalho e Pedro Alcântara.



JORGE CZAJKOW SKI

Breve Notícia sobre Pesquisa O Nativismo Carioca: Uma Arquitetura entre a Tradição e a Modernidade.

A pesquisa em questão vem sendo desenvolvida desde 1985 valendo-se de suces­ sivos grupos de alunos do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, do Departamento de História da PUC-RJ. Partindo da suposição da possibilidade de se praticar diferentes recortes na produção da arquitetura brasileira compreendida entre as décadas de 1930 e 1960 e hoje classificada indiferenciadamentc sob o título de Arquitetura Moderna, busca-se delimitar uma tendência tipicamente carioca que se caracteriza por uma tentativa de síntese en­ tre a imagem de objetividade construtiva e funcional do Racionalismo Internacional e a expressão formal de uma identidade arquitetônica brasileira. A primeira fase da pesquisa dedica-se a identificação, levantamento e análise das obras nativistas c à procura de documentação bibliográfica e iconográfica sobre elas. A principal dificuldade enfrentada diz respeito ao desconhecimento quase total da produção nativista, con­ sequência tanto da já aludida diluição da tendência dentro de uma classificação genérica quanto do pequeno número de obras nativistas que chegaram a ser publicadas. Também o hábito de valorizar os autores acima das obras faz com que pratica­ mente não existam estudos que aproximem entre si as obras de diferentes arquitetos, operação fundamental para a consecução do recorte que se deseja praticar. Acresce-se a isso o fato de que nenhum dos arquitetos cuja obra está sendo estudada foi exclusivamente nativista. Alguns, como Luís Nunes, os irmãos Roberto e Aldary Toledo, Francisco Bologna e mesmo Oscar Niemeyer, fizeram apenas dois ou três projetos nativistas, geralmente propostos para sítios fora das grandes cidades. Já outros, entre eles Lucio Costa, Carlos Leão, Alcides da Rocha Miranda e Jorge Ferreira, buscaram articular o Nativismo Carioca de forma mais abrangente, evitando reduzi-lo a uma es­ pécie de “maneira rústica” da Arquitetura Moderna. A elaboração de um estudo morfológico sobre a tendência nativista permitirá avaliar a natureza da contribuição individual de cada arqui­ teto e mapear a trajetória do movimento nas suas oscilações de proximidade com a Tradição ou a Modernidade. As razões do Nativismo, sua relevância c resposta a um determinado quadro his­ tórico, social e cultural, o perfil da clientela para a qual foi construído, o embasamento teórico que compartilha com as outras artes, bem como a comparação com outras tendências nativistas oriundas da influência corbusiana (na Grécia e no Japão, por exemplo), virão complementar o conhecimento das obras propriamente ditas. Em se considerando a natureza do trabalho proposto, compreende-se que o pe­ ríodo de sua execução será obrigatoriamente longo. Por outro lado, sua subdivisão em etapas, relacionadas ao levantamento das obras de cada arquiteto, tem como conseqüência a possibilida1c de se trazer a público resultados parciais, como, por exemplo, a exposição sobre a obra arquite'omea de Carlos Leão. Permite, também, que a pesquisa avance conforme os recursos consegui-


Kito: Muricl (iuuthcroí h»to Pedro Oswiildo Cru/

Alcides da Rocha Miranda. Residência do Arquiteto. RJ. 1940.

Exposição Carlos Leão

Arquitetura

FUNAR1E/RJ. Galeria Rodrigo M. F. de A ndrade.out/nov 1985.


143 0 Nativismo Carioca

Orientador da Pesquisa — Jorge Czajkowski.

da Costa. Pesquisa de apoio -

Maria Cristina Burlamaqui. Lidia Vage, Rcinaldo Roels Jr„ Beatriz Rocha

Lagoa. Marta Amoroso Anastácio, Maria Albertina dc Carvalho e Marcos de Faria

zeve o.

Arquitetos pesquisados — Levantamento com pleto da obra: Carlos Leão, Alcides da Rocha Mi­ randa. Aldary Toledo e Francisco Bologna / Levantamento parcial da obra: Lucio Costa, Jorge

ferreira e Pires & Santos. Pesquisas complementares — Rodolfo Siqueira, SPHAN e Nativismo Carioca. Exposição Carlos Leão — Arquitetura — Exposição realizada na Galeria Rodrigo Mello Franco dc Andrade, da FUNARTE/RJ, de 24 de outubro a 22 de novembro de 1985. Apoio FUNARTE/INAP, CNPq / Exposição remontada com alterações na Faculdade de Arquitetura e Urbanis­ mo da UFRJ, de 10 de outubro a 4 de novembro de 1988. Apoio NPD/FAU/UFRJ / Equipe Curadoria da exposição — Jorge Czajkowski / Pesquisa de arquitetura — Marta Maria de Mello Silva e Milton Mendonça Teixeira / Pesquisa inicial — Marcos de Faria Azevedo / Pesquisa de apoio — Rcinaldo Roels Jr. / Assessoria — Maria Cristina Burlamaqui / Desenhos Técnicos — Luiz felipe de Oliveira e Roberto Luís Torres Conduru / Conservação dos desenhos originais — Maria Helena Rõhe Salomon / Fotografia — Pedro Oswaldo Cruz / Coordenação da remontagem — Roberto Luís Torres Conduru. Livro Carlos Leão — Arquitetura — Apresentação — Lucio Costa / Equipe — vide acima / (aguar­ dando publicação) Coleção de desenhos — Aldary Toledo — doação do arquiteto do acervo completo de seus dese­ nhos de arquitetura referentes a 90 projetos de sua autoria / Carlos Leão — 120 desenhos dc arquitetura, doações diversas / Firmino Saldanha — doação da família do arquiteto dc desenhos dc arquitetura referentes a 21 projetos. Arquivo de fotografias aproximadamene 900 negativos (P&B e Cor) e 300 ampliações doadas ou produzidas cspecialmente com apoio do CNPq. Desenhos padronizados — 45 plantas redesenhadas nas mesmas normas de apresentação. Reprodução de iconografia e bibliografia referente às pesquisas — aproximadamente 450 cópias xerox de documentação diversa.

Z a r ú T lnStltUt° hStadual do Cultural (IF membro do Conselho de Tombamento do Estado do Rio de Janeiro.



O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Ponti­ fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação latu sensu, foi formado há seis anos. O curso de inscreve cm uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um pro­ cesso de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquite­ tura brasileira apreendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão am­ pla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados jun­ tamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar. Coordenador Acadêmico: Margareth da Silva Pereira Professores Ana Maria Monteiro de Carvalho Antonia Abranches Antonio Edmilson M. Rodrigues Berenice Cavalcante Carlos Zilio Eduardo Jardim de Moraes Fernando Cocchiarale Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Henrique Antum Katia Muricy Margareth da Silva Pereira Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira Paulo Sérgio Duarte Ricardo Benzaquem de Araújo Ronaldo Brito Washington Dias Lessa

APOIO

IT ultiplic Carneiro Monteiro Engenharia S.A.

FUNARTE (programa MCT/CNPq/FIN EP e pelo Instituto Nacional de Arres Plásrirasi IN S TITU TO NACIONAL DE ARTES GRÁFICAS - FUNARTE

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