Revista Gávea - 7ª Edição

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Revista de História da Arte e Arquitetura

N Ú M ER O ESPECIAL

ROBERTO CONDURU

A Pólvora e o Nanquim MARIA HELENA DE CARVALHAL J U N Q U E I R T ^ ^ ^ ^ J

A Pintura Profana no R io ^ ^ ^ ^ H o Setecentista ELIZABETH CARBONE BAEZ

A Pintura Religiosa e o

Colonial

MARTA QUEIROGA AMOROSO A N A S T ^ ^ ^ ^ B

Arquitetura Civil n q ^ ^ ^ ^ K in e iro Setecentista ANA MARIA F. M ONTEIRO DE

O Passeio Público^^^^W ariz das Marrecas SUELY DE GODOY WEISZ

Um Estudo d a ^ ^ ^ ^ K i a Setecentista Carioca VERA REGINA LEMOS F O R M ^ ^ ^ V

Dois M estre|^^^W arios: Simao e Pedro da Cunha CLAUDIA MORENO DE LUIZ ANTONIO LOPES

Um

Arquitetura Religiosa

ANA MARIA M E S Q U I l ^ ^ ^ ^

A zu lej^ ^ ^ ^ R en tista no Rio de Janeiro HELOÍSA m a g a l í ^ ^ ^ M t c a n

A T ^ ^ ^ K g i o s a da Igreja do Mosteiro de São Bento MARIA E D U A R D ^ ^ H t O MAGALHÃES MARQUES VERA B E A T R U ^ ^ ^ H k o SIQUEIRA

da Construção da Capital


GÁVEA Editor Responsável: Carlos Zilio Editor Adjunto: Margareth da Silva Pereira Editor Assistente: Vanda Mangia Klabin Secretária de Redação: Sonia Santos Silva Laureano Conselho Editorial: Carlos Zilio Eduardo Jardim de Moraes Jorge Czajkowski Katia Muricy Margarida de Souza Neves Margareth da Silva Pereira Maria Cristina Burlamaqui Reynaldo Roels Júnior Ricardo Benzaquem Araújo Ronaldo Brito Vanda Mangia Klabin Correspondência: Editor Responsável, revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 sala 515-F CEP 22453, Rio de Janeiro, Brasil

Produção: Revisão 1 ipográfica: Claudia Maria Brum Arruda Programação Visual: Printz Marketing Editorial Diagramação em desktop publishing: Claudia Lopes Mendes Fotolitos: Editora Mergulhar Impressão: Imprinta


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& semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil RWista ^ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Departamento de História Coordenação de Cursos de Extensão Dezembro 1989

4 R O B ER T O C O N D U R U A Pólvora e o Nanquim 18 MARIA H ELEN A D E CARVALHAL JU N Q U EIR A A Pintura Profana no Rio de Janeiro Setecentista 42 ELIZA BETH C A R B O N E BAEZ A Pintura Religiosa e o Universo Colonial 64 M ARTA Q U EIR O G A A M O R O SO ANASTÁCIO Arquitetura Civil no Rio de Janeiro Setecentista 82 ANA MARIA I. M O N T E IR O DE CARVALHO O Passeio Público e o chafariz das Marrecas de Mestre Valentim 106 SU ELY D E G O D O Y W EISZ Um Estudo da Imaginária Setecentista Carioca 128 VERA REGINA LEM O S FORM AN Dois Mestres Imaginários: Simão da Cunha e Pedro da Cunha 146 CLA U D IA M O R E N O D E PAOLI LU IZ A N T O N IO LO PES D E SOUZA Um Olhar sobre a Arquitetura Religiosa do Rio no Século XVIII 160 ANA MARIA M ESQ U IT A Azulejaria Setecentista no Rio de Janeiro 174 H ELO ÍSA M AGALHÃES D U N C A N A Talha Religiosa da Igreja do Mosteiro de São Bento 188 MARIA EDUARDA C A ST R O MAGALHÃES MARQUES VERA BEATRIZ C O R D E IR O SIQUEIRA A História da Construção da Capital

/A V A


A presentação

Este sétimo número da Revista Gávea reúne textos inteiramente dedicados à produção artística e arquitetural no Rio de Janeiro do século XVIII. Gávea deixa, excepcionalmente, seu formato habitual para trazer a público neste número temático os primeiros resultados de uma exaustiva pesquisa realizada a partir de 1983 por alunos do Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil. Este trabalho, intitulado “O Rio de Janeiro no processo cultural do Brasil setecentista: Arquitetura, Artes Plásticas e Urbanism o”, representou um grande esforço, em muitos aspectos pioneiro, dado o estágio da produção historiográfica relativa à arte e à arquitetura no Rio de Janeiro neste período. Com efeito, não obstante a estreita ligação da cidade com a cultura européia dos séculos XVII e XVIII - Itália, França, Espanha e particularmente Portugal - e não obstante ter-se tornado no decorrer do século XVIII um centro de primeira grandeza, o Rio de Janeiro, comparado a outras regiões do Brasil colonial, permanecia como uma das regiões menos conhecidas e estudadas. Deve-se assinalar aqui a originalidade da produção visual do Rio colonial onde justamente sua função de centro hegemônico das relações metrópole-colônia e sede do aparato político administrativo do Estado absolutista português, modelou sua ar­ quitetura e sua produção artística durante os setecentos. Cabe ainda ressaltar, numa perspectiva histórica de longa duração, que parte do perfil da moderna Rio de Janeiro do século XX se consolida durante este período. Estas considerações justificaram , assim, a realização deste projeto, que contou com o apoio da Capes e do C N P Q (bolsa de estudo), FU N A R J (cessão de duas funcionárias alunas do Curso), SPH A N /Pró-M em ória (material de consumo, fotografias, desenhos). A U N E S C O , também, destinou recursos importantes para o desenvolvimento da pesquisa. N o entanto, o aporte financeiro mais significativo deve-se à FINEP, que contribuiu decisivamente para a sua viabilização e para a formação de um núcleo e de um banco de dados sobre o Rio de Janeiro do século XVIII. ^ pesquisa foi subdividida em áreas de estudo - a arquitetura civil, militar e re igiosa, o desenvolvimento urbano; a pintura religiosa e profana; a imaginária; a azulejaria istória social - procedendo-se a um minucioso levantamento bibliográfico, arq ísuco, iconográfico e cartográfico, além de pesquisas de cam po envolvendo obras de arte e monumentos do período. . . Este trabalho se traduziu em aproximadamente 4 3 0 fichas de monumentos arquitetônicos, pinturas, esculturas, etc., que fazem parte do arquivo do Centro de


Referência da pesquisa, além de aproximadamente 100 fichas com o levantamento dos artistas e engenheiros que trabalharam no Rio de Janeiro no período estudado; levan­ tamento bibliográfico com aproximadamente 380/400 títulos fichados; obras de caráter geral sobre o barroco e específico sobre a história da arte; relatos de viajantes: textos teóricos sobre história da arte; levantamento arquivístico executado nas diversas Ordens Religiosas, no arquivo da Secretaria do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, Arquivo Nacional, entre outros; aproximadamente 500 slides de obras e monumentos; e levantamento iconográfico, incluindo mapas, plantas, vistas, gravuras da cidade (em fase inicial de organização). O Centro de Referência possui ainda cerca de 400 volumes entre livros, periódicos e catálogos especializados adquiridos através de recursos da FINEP e doações. T odo este material está sendo catalogado e fichado, a fim de permitir seu controle e facilitar a consulta. Este conjunto configura assim um acervo de grande importância não só para novas pesquisas mas para a documentação da História da arte brasileira colonial e da cidade do Rio de Janeiro. A partir deste material coletado, os textos ora apresentados demonstram, na sua diversidade, as dificuldades de aproximação no sentido de realizar uma síntese teórica sobre os vários aspectos que informam a visualidade do Rio de Janeiro setecentista. Como primeiros ensaios, eles buscam interpretar as motivações determinantes que permearam o trabalho de artistas, arquitetos e construtores do período, tentando ainda avaliar a maneira pela qual suas obras influenciaram nesta visualidade, qual seu significado e seu percurso social. Equipe Coordenador Geral: Prof. Carlos Zilio / Assessora de Coordenação: Elizabeth Carbone Baez/ Consultores: Prof. Jorge Paul Czajkowski (ArquiteturaeUrbanismo), Prof® Margareth A. C. da Silva Pereira (Arquitetura e Urbanismo), Prof® Myriam A. R. de Oliveira (Arte Colonial), Prof. Ronaldo Brito Fernandes (História da Arte), Prof® limar Rohloff de Mattos (História). Pesquisadores Arquitetura e Urbanismo: Ana Paula Lemos Souza, Cláudia de Paoli, Luiz Antonio Lopes de Souza, Marta Queiroga Amoroso Anastácio, Roberto Luis Torres Conduru e Sheila Baptista / Talha: Heloisa Magalhães Duncan / Mestre Valentim: Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho / Pintura: Elizabeth Carbone Baez e Maria Helena de Carvalhal Junqueira / Escultura Religiosa: Suely de Godoy Weisz e Vera Regina Lemos Forman / Azulejaria: Ana Maria Mesquita / História Social: Maria Eduarda Castro M. Marques e Vera Beatriz Cordeiro Siqueira. Colaboradores Dora Alcântara, Isabel Rocha, Luis Fernando Franco, Marcos de Azevedo Faria, Maria Albertina Portela M. de Carvalho e Pedro Alcântara.



RO BERTO CO NDURU

A Pólvora e o Nanquim

I A ocupação arquitetônico-militar do Rio de Janeiro no século XVIII confirma e cristaliza a forma de defesa que se delineia no século e meio anterior. Ainda que no início as fortificações sejam construídas em momentos diversos e sem a existência de um plano defensivo, percebe-se uma intenção que norteia a ocupação - pensar a defesa da cidade através de um conjunto articulado de edificações, onde o que garante a segurança é menos a potência específica de cada fortificação e mais a ação coordenada entre elas. Apropriando-se da configuração topográfica da região onde se situa a cidade do Rio de Janeiro, fortificam-se e inter-relacionam-se os locais estratégicos de modo a melhor administrar os conflitos e as batalhas. A segurança depende da adaptabilidade do sistema defensivo proposto à região onde se localiza. A natureza não intimida, mas exige uma ação peremptória: fortificar é então “uma espécie de reino da geometria descritiva projetada sobre a região, sobre o conjunto da natureza” .1 Segundo Sun Tzu, “a formação natural da região é o melhor aliado do soldado” .2 No caso do Rio de Janeiro, a topografia da região muito contribui para a eficácia do sistema defensivo implantado. A localização das fortificações sobre os morros permite um melhor controle da movimentação das tropas inimigas nos pântanos e alagadiços que os rodeiam. A Baía de Guanabara possui características favoráveis à defesa: a triangulação possível entre a barra estreita e a ilha em forma de lage ali localizada, os ventos freqüentemente contrários à entrada na baía e as inumeráveis praias e ilhas em seu interior são fatores que dificultam a ação dos que pretendam atacar a cidade. A natureza é então uma questão ambígua, ao mesmo tempo receptiva e hostil - se favorece a segurança e encanta os europeus por sua diferença e exuberância, também os distancia pelos mistérios e perigos que apresenta, além da dificuldade que significa a ocupação física da região. Simultaneamente “paraíso” e “inferno”, a natureza reforça a importância do gesto construtor, da ação dos colonizadores sobre o território. Nos momentos iniciais - na ocupação francesa da Ilha de Villegagnon e nos primeiros 25 anos da ocupação portuguesa, o primitivo acampamento militar no sopé do Morro Cara de Cão e a posterior fortificação do Morro de São Sebastião 3 - percebe-se outra intenção: coincidir núcleo urbano e fortificação. Concepção de segurança ainda in­ fluenciada pela lógica defensiva medieval que se dirige a todos os perigos, naturais ou não, sem distinção.4 Entretanto, a construção simultânea da Fortaleza de Santa Cruz na entrada da Baía de Guanabara, por franceses e portugueses, já revela a idéia de articular os pontos


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vitais à defesa. Com o crescimento paulatino da cidade reforça-se a intenção de “regiãofortificação”, próxima da concepção de “pays-fortifié'' de V au b an / sobre a de “cidadefortificação” . Concepção de segurança já vinculada ao Absolutismo, pois não se dirige aos perigos naturais, estando estritamente relacionada à situação da guerra. Entre o fim do século XVI e o fim do século XVII são construídas edificações militares que protegem, principalmente, o redor do núcleo urbano e a entrada da baía, regiões fundamentais para a defesa do porto: São Thiago - no sopé do Morro do Castelo e auxiliar à Fortaleza de São Sebastião; Santa Cruz - na várzea e visando proteger o Morro do Castelo dos ataques que o flanqueassem por esse lado; Santa Margarida - na Ilha das Cobras, ponto frontal à cidade; São João - fronteira à Fortaleza de Santa Cruz na barra e dificultando o acesso à baía; além de redutos auxiliares em São Bento, Santa Luzia, Glória e Villegagnon. N a virada do século XVIII são erigidas fortificações que complementam o sistema defensivo existente, dificultando o acesso e o percurso no interior da Baía de Guanabara. N as praias externas e laterais à barra são construídas fortificações que auxiliem as ali encontradas: a da Praia Vermelha em relação à São João e a da Praia de Fora em relação à Santa Cruz. São fortificados também pontos estratégicos entre a entrada da baía e o núcleo urbano, como a Ilha de Villegagnon, a Ilha da Boa Viagem e Gragoatá. A invasão francesa de 1711, quando as tropas do corsário Duguay-Trouin saqueiam e arrasam a cidade/’ é um marco que determina uma ação mais incisiva da Coroa Portuguesa no Rio de Janeiro e um novo período para a questão defensiva da cidade. Apontando as deficiências do sistema defensivo existente, esse episódio destrói a crença na inexpugnabilidade da cidade (existente até então e alicerçada na combinação entre o sistema implantado e as condições naturais favoráveis ao mesmo que possibilitou 0 sucesso contra invasões anteriores ) e permanece como referência para todos aqueles que se ocupam da questão defensiva do Rio de Janeiro nos setecentos. N a primeira metade do século XVIII são reforçadas as fortificações existen­ tes e erigidas outras em pontos vitais demonstrados pelo ataque francês: Fortaleza da Lage - na ilha em forma de lage na entrada da baía e com o fim de cerrar a barra com a triangulação entre elas, São João e Santa Cruz; Nossa Senhora da Conceição - no Morro da Conceição, protegendo a prainha onde se deu o desembarque das tropas francesas; São Jose - na Ilha das Cobras, que fora ocupada pelos invasores e de onde coordenaram a investida; além do inicio da construção da muralha ligando os morros da Conceição e do Castelo, mais a fortificação do Cais, para “fechar” a cidade. N a segunda metade do século, com a crescente instabilidade no Centro-Sul da Colônia, são empreendidas ampliações nas fortificações existentes e outras são cons­ truídas a fim de proteger locais importantes que surgem com o crescimento da cidade. Na orla marítima: fortins de Itapoã e do Pontal, na Praia de Sernambetiba; Forte de São Clemente, na Lagoa de Sacopenupã; fortes do Anel e do Vigia, no Leme; e o Forte do Pico, no morro que cobre a Fortaleza de Santa Cruz. N o interior: Fortim Caetano Madeira, no Engenho Novo, e a Bateria do Alto da Boa Vista.


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A Pólvora e o N anquim

O sistema defensivo implantado constitui-se, como diz Vauban acerca da arte de fortificar, “de um conjunto de mecanismos capazes de receber uma forma definida de energia, de a transformar e finalmente de a restituir sob uma forma mais apropriada”.8 Percebendo a situação específica da região - os pontos vitais e os estrategicamente ocupáveis, as potencialidades e as deficiências - trata-se não de evitar o conflito, pois a guerra é condição a priori da situação político-econômica, mas de constituir o lugar adequado para a sua realização a fim de coordená-lo. Pretende-se a racionalização das forças naturais tendo como objetivo o controle dos acidentes e a eliminação dos riscos através do cálculo antecipado das batalhas, pensando a guerra como questão científica a ser previamente administrada. Fortificar é um saber objetivado, uma técnica de organização apta a estruturar e controlar os espaços a serem ocupados e defendidos. A arquitetura militar introduz no ambiente cultural da cidade setecentista um pensamento em consonância com a lógica racional e enciclopédica de seu tempo e antecipatório de questões que só se apresentam no Rio de Janeiro no século XIX, no que tenta eliminar o desastre e a ruína, no anseio que possui de classificação e ordenação da vida, no apelo que faz à Razão e à Ciência. II As dificuldades que o Reino Português enfrenta na conquista, ocupação e colonização de suas possessões ultramarinas, desde o início da Aventura Marítima, determinam um processo de estabelecimento físico no Brasil rarefeito e dificultoso, com poucos momentos de exceção quando se encontra uma ação mais intensa e eficaz. A constituição do sistema defensivo da cidade do Rio de Janeiro, nos setecentos como nos séculos anteriores, está incluída nesse processo: pode-se observar um movimento ininter­ rupto em que as fortificações são lentamente mal construídas, havendo constantemente a necessidade de repará-las. A causa principal para a manutenção dessa situação é a ausência de recursos administrativos, financeiros e técnicos que organizem e desenvolvam a atividade construtiva militar. Poucos e infreqüentes são os momentos em que se observa uma ação mais eficiente, os quais, por não reverterem as condições construtivas existentes, permanecem como exceções que confirmam a regra ao invés de a subverterem. No Rio de Janeiro setecentista encontram-se apenas três momentos que excetuam esse processo: em 1713 na atuação do engenheiro militar francês João Massé, que pensa seu plano defensivo para a cidade a partir das condições construtivas locais; em 1733 na atuação do engenheiro militar português José da Silva Pais, que consegue reverter momentaneamente a situação; e no vice-reinado do Marquês do Lavradio, entre 1769 e 1779, quando esse administrador dedica especial atenção à questão defensiva da cidade. Momentos devidos mais ao poder pleno de atuação de que vêm investidos esses profissio­ nais, do que a transformações ocorridas no ambiente construtivo carioca. Ainda que a situação construtivo-militar no século XVIII seja mais organi­ zada se comparada aos séculos anteriores, ela não é satisfatória. A obtenção de verbas para construção e reparo das fortificações é feita através da Corte em Lisboa ou da arrecadação


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de impostos pela Câmara do Rio de Janeiro, sendo ambas problemáticas: tanto Portugal encontra dificuldades para administrar suas Colonias, como os habitantes locais não conseguem suportar os constantes aumentos de contribuição fiscal. A mão-de-obra utilizada, além do efetivo das tropas, constitui-se de índios cativados e negros empresta­ dos, sendo não especializada e de baixo rendimento. Os materiais de construção indicados,9 apesar de abundantes em estado bruto, são de difícil e má qualidade de produção devido à não existência de domínio técnico capaz de empreendê-la. O s materiais de melhor qualidade trazidos nos lastros dos navios, que vêm anualmente de Lisboa ao Rio de Janeiro, são em quantidade inferior à demanda. A isto tudo acrescente-se uma tradição de construção por empreitadas de alto custo, má qualidade e baixo rendimento, aliada a uma fiscalização não rigorosa por parte da administração pública, que só contribui para a deficiência das edificações militares. 10 Se é verdade que as edificações militares não se pretendem eternas, se é possível supor que “construir” e “destruir” têm valor aproximado para essas máquinas destinadas à guerra, nas quais o cálculo de constituição já incorpora o de destituição, também é lógico pensar que o lento e precário processo de implantação do sistema defensivo é contraditório ao princípio de segurança que o orienta e ao pensamento racionalizante nele contido. N o caso do Rio de Janeiro a segurança advém menos da consciência da potência real e mais da crença na potência virtual do sistema defensivo existente. Mais do que a função prática da arquitetura militar - garantir a segurança - evidencia-se sua função significadora - simular a segurança. O complexo defensivo afirma-se enquanto “sistema de imagens”, reforçando seu caráter teatral de “cenografia para o espetáculo da guerra”.11 A racionalidade que penetra no ambiente cultural carioca devido às necessidades da guerra não se constitui em essência estruturadora da sociedade, mas em aparência ordenadora do caos. III João Massé é o primeiro dos engenheiros-militares que são enviados mais sistematicamente ao Rio de Janeiro após a invasão de 1711. Sua atuação é destacável em diversos aspectos. Ele e o autor do primeiro plano de defesa para a cidade. Até então pode-se falar numa idéia comum que orienta a ação dos administradores e fortificadores quanto à questão defensiva, e até na existência de projetos isolados de edificações militares que surgem a partir de meados do século X V II,1" mas não há antecedentes para um plano como o seu, que pensa a questão de segurança de maneira global: tanto no aspecto militarestratégico como no técnico-constitutivo. Dividindo seu plano em duas partes, uma com desenhos de localização e formas das suas proposições, outra detalhando a execução das mesmas, Massé é não apenas o primeiro a materializar graficamente um plano de defesa para o Rio de Janeiro, como também o primeiro a compreender que o problema da segurança da cidade depende tanto da forma quanto da constituição física do sistema defensivo a ser implantado.


João Massé, "Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, com suas fortificações", 1713.

João Massé. Planta do Rio de Janeiro, 1713.

Massé estabelece como focos de atenção de seu plano a entrada da baía e o núcleo urbano, propondo o desarme das fortificações entre as duas regiões (Gragoatá e Boa Viagem). Com a construção da Fortaleza da Lage, pretende encerrar a barra, o que não considera totalmente possível. Permanecendo a cidade ainda vulnerável, concentra esforços no núcleo urbano: prevê a construção de novas fortalezas (no Morro da Conceição e na Ilha das Cobras) e o reparo das existentes, bem como a articulação dessas realizações com a fortificação do cais e a construção de uma muralha na parte interna da cidade, ligando os morros da Conceição e do Castelo. “Fechado” , o Rio de Janeiro estaria, no dizer de Massé, “livre de qualquer perigo de empresa por mar e por terra”.13


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Em seu plano observa-se uma contradição primária com a situação da guerra e com a dinâmica da vida citadina: permanecem externas aos limites propostos as fontes de abastecimento de água (os Arcos Velhos e a Lagoa do Boqueirão) e diversas edificações (o Convento de Santo Antônio e a Igreja de São Domingos, entre outras), além de não se prever o crescimento da cidade ao pretender-se encerrá-la nos limites existentes na época. Não cuidando da proteção integral da cidade, nem de seu provisionamento nos momentos de conflito, bem como impedindo sua expansão, o plano de M assé apresenta eficácia duvidosa. E surge como um exercício de dominação, cujo indício mais revelador é um desenho onde as edificações militares, principalmente o muro (gesto limítrofe ao desen­ volvimento da cidade), mais algumas edificações religiosas e indicações topográficas, são representadas sobre o branco do papel - a urbe é suprimida por aquele que pretende defendê-la. Para Massé, proteger e dom inar são sinônimos. Massé planeja a implantação de seu projeto em completa conformidade às condições construtivas locais: considera a escassez de verbas, a exorbitância dos custos, a dificuldade de obtenção dos materiais de construção, o tempo costumeiramente prolon­ gado de execução e a freqüente má qualidade do produto final.14 Ele não pretende alterar essas condições, mas basear seu trabalho nas deficiências existentes. Planeja a partir da realidade, mas não enseja transformá-la, devendo a essa opção a não realização total de suas propostas. Quando retorna a Portugal, em 1718, seu projeto não está executado. Apenas iniciou-se a construção do muro e das fortalezas da Conceição e da Lage. Entretanto, percebe-se que suas idéias permanecem como referências, durante o século XVIII, para aqueles que se ocupam da questão defensiva da cidade: tenta-se levar a termo a construção de algumas edificações por ele iniciadas, como na primeira metade dos setecentos, ou adaptar à nova situação física da cidade as intenções contidas em seu plano, notadamente a de enclausuramento do núcleo urbano, como na segunda metade do século. Cristali­ zando e aperfeiçoando a concepção de defesa que se delineou anteriormente, bem como informando intervenções posteriores, o plano de Massé apresenta-se como o momento de inflexão da arquitetura militar do Rio de Janeiro. IV O Brigadeiro José da Silva Pais é enviado ao Rio de Janeiro, em 1735, a fim de cuidar da segurança dessa cidade e das questões fronteiriças ao sul do Brasil. Em sua atuação e em seus depoimentos percebe-se que Silva Pais pensa o problema da segurança do Rio de Janeiro dependendo menos da concepção defensiva adotada e mais do processo de constituição das edificações militares e das condições de subsistência das tropas nas mesmas nos momentos de conturbação. Confirma as pro­ posições de Masse e o pensamento defensivo delineado até então, notadamente a intenção de fechar a cidade, segundo suas palavras: cobrir a cidade e meter debaixo de uma muralha os seus moradores .|S E compreende que o melhor funcionamento do sistema defensivo depende não só da melhor fabricação e manutenção das “ máquinas de guerra” - as fortificações - como também do estado de seus “operadores” - o corpo da tropa.


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Sob sua orientação são reparadas as fortificações mal conservadas e termina­ das as que Massé iniciara (à exceção do muro, curiosamente...)- Sua mais destacada obra, a Fortaleza de São José, a cidadela na Ilha das Cobras, contrói sob risco próprio em 1736. N os reparos que empreende, Silva Pais acrescenta melhorias (armazéns, cisternas de água e alojamentos) que viabilizem a permanência dos militares nas fortificações por longos períodos de tempo. Ao deixar a cidade, em 1739, todo o sistema defensivo encontra-se em perfeitas condições. Para tamanho efeito, em tão pouco tempo, Silva Pais precisa alterar com­ pletamente a tradição construtiva militar local: contrata os serviços em regime de jornada e controla, pessoal mente, o custo e a qualidade dos materiais e das obras, além de observar a pontualidade das mesmas. A atuação de Silva Pais é única em todo o século XVIII, por sua compreensão acurada das deficiências locais e por seus feitos; mas permanece como momento isolado ao reverter apenas temporariamente as condições que problematizam o construir militar. Sua figura é também importante por exemplificar, de forma particular, a contribuição que os engenheiros-militares trazem ao meio cultural do Rio de Janeiro - o desenvolvimento científico que as disputas político-econômicas induzem no ambiente colonial arraigado de religiosidade. Comentando sobre a biblioteca do militar português, Wilson Martins afirma que Silva Pais é mais do que apenas um técnico: com 20% dos livros de natureza profissional e o restante de História, Filosofia, Letras e Medicina, ela é ‘alguma coisa mais do que uma simples biblioteca de trabalho, é o que se pode considerar como a biblioteca de uma pessoa culta na primeira metade do século XVIII em Portugal e no Brasil” .16 Silva Pais personifica a figura do militar recomendada por Yen Tzu quando este afirma que “o comandante ideal reúne cultura e temperamento bélico; que a profissão das armas exige uma combinação de dureza e suavidade”.17

José da Silva Pais. Fortaleza de São José na Ilha das Cobras, 1735.

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Jacques Funck, "Plano da Cidade do Rio de Janeiro com as Fortificações propostas", 1769.

V O Marquês do Lavradio dedica especial atenção aos problemas defensivos do Rio de Janeiro em sua administração, entre 1769 e 1779, ao contrário dos vice-reis seus antecessores,18 percebendo-se seu toque pessoal no trato da questão. Isto é devido tanto à crescente insegurança no Centro-Sul da Colônia na segunda metade do século XVIII, quanto ao grande interesse e conhecimento que o vice-rei tem da ciência militar.19 N o ano de sua posse, encom enda a três oficiais do C orpo de Engenheiros da cidade - o Tenente-General Jacques Funck, o Coronel José C ustódio de Sá e Faria e o Capitão Francisco João Roscio - que façam, cada qual, um plano de fortificação para o Rio de Janeiro, cabendo ao General-em-Chefe da Tropa, João Henrique de Bôhm, o parecer sobre os projetos. É curioso observar que a idéia de promover um “concurso” para projeto de defesa da cidade entre oficiais de diferentes patentes e rivais entre si só reforça a posição do Marquês do Lavradio no controle das medidas a serem adotadas. N os pareceres do vicerei percebe-se que os engenheiros tiveram que adaptar suas concepções às daquele administrador: ...apresentando-me uns planos (...), trabalhos inteiramente diferentes do que eu lhes tinha encarregado; fizeram segundos mais chegados às recomendações que eu lhes tinha feito, porém ainda estes não satisfaziam em tudo minha idéia...”.20 O plano de Jacques Funck é o mais completo dos três, ao apresentar suas propostas em plantas baixas do núcleo urbano e de cada uma das fortificações, revelando um pensamento defensivo que se estende do geral ao particular. O General de Bôhm elogia seu projeto, mas considera-o inviável devido aos custos e ao tem po de execução excessivos que demandaria. O Marques do Lavradio, além dessas razões, alega ser a proposta um sistema novo de fortificação, contra os princípios de todos os homens grandes que tem sobre aquela matéria ,21 revelando menos um a possível incompetência e mais a qualidade e a originalidade do talento de Funck.


José Custódio de Sá Faria, "Plano da Cidade do Rio de Janeiro, Capital do Estado do Brasil", 1769.

O plano de José Custódio de Sá e Faria, segundo o General de Bôhm, não apresenta as medidas adequadas nem o levantamento dos custos; também o vice-rei não o aprova, vendo-lhe muitos defeitos. O plano de Francisco João Roscio é o melhor para o General da Tropa; o Marquês do Lavradio afirma ser “ o mais conforme a defesa, que eu me tenho proposto ser necessário, para mais alguma segurança desta capital” ." O que mais se destaca nos três planos é a confirmação das idéias adotadas no sistema defensivo do Rio de Janeiro até então, principalmente a de articular o conjunto de

João Roscio, "Planta da Cidade do Rio de Janeiro..." , 1769.


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fortificações e a de encerrar a cidade, seja por muro e/ou canal d'água. A contradição entre a intenção de fechar a urbe e o constante crescimento da mesma encontra-se explícita na forma de representação utilizada pelos engenheiros: tanto a omissão das edificações externas ao limite proposto, encontrada no plano de Sá e Faria, como a presença das mesmas, nos planos de Roscio e Funck, só ressaltam a oposição entre o gesto que almeja enclausurar a cidade e a vocação expansiva. Apesar da existência dos três projetos e do plano de Roscio ter sido o escolhido, nenhum é executado, podendo o vice-rei melhor coordenar a implantação de suas idéias. N ão se fortifica a cidade fechando-a - com o reparo das fortificações existentes e a instalação pontual de edificações militares em pontos estratégicos da orla marítima, deixa-se o Rio de Janeiro “aberto” . VI Ao longo dos setecentos percebe-se a dicotom ia entre o encerramento da cidade, proposto por administradores e fortificadores,2’ e a expansão contínua do núcleo urbano, que o contraria. Resquício ainda de uma concepção de segurança renascentista, da cidade com o fortaleza, este anseio de enclausuramento visa tanto a prevenção dos ataques estrangeiros quanto a organização da circulação no núcleo urbano, seja contro­ lando o acesso ao interior, em especial às M inas Gerais, ou impedindo a evasão das tropas e da população nos momentos de conflito, fato freqüente então.24 O Rio de Janeiro seria, segundo essa intenção, uma “Ville m achine ”,2S uma gigantesca fortaleza onde as edificações (redutos, baterias e fortificações) funcionassem como “baluartes” e a membrana envoltória (cais, muro ou canal d'água) servisse com o “ muralha” : a cidade como máquina de guerrear. Entretanto, a cidade frustra constantemente essa intenção, seja pela não implantação das propostas ou pela superação, com seu crescimento ininterrupto, das que se materializam. Com o no dizer de Joachim du Bellay: "... O mondaine inconstance! / Ce qui estferm é estp ar le temps d é tru itj E t ce qui fu it, au temps fa it résistence"}** Ao contrário das concepções de segurança medievais e renascentistas, onde os conflitos se desenvolvem no exterior dos espaços ocupados, respectivamente o castelo e a cidade fortificados, no Rio de Janeiro o núcleo urbano é o local da guerra. Não há mais a istinção entre o espaço habitável e o espaço para guerrear; o sistema defensivo imp antado não apresenta limites que determinem diferenciações funcionais no espaço urbano. O R i° de Janeiro é ainda lugar de guerra; mas não apenas este lugar. A cidade mo a somente a partir de sua função portuário-estratégica, mas através da p p íção e conexão de funções diversas e espaços respectivos. Assim, as edificações eterminam uma percepção do espaço citadino simultânea a outras formas j ^ . S, ° mesmo organizadas por outras relações arquitetônicas. Às direções vetoriais entrern

e^ a^ ° Pe^as fortificações - através de suas articulações recíprocas, do seus ogos, real ou virtualmente - justapõem -se as conexões espaciais


Fortaleza de Santa Cruz.

estabelecidas pelas edificações religiosas em suas atividades de culto e devoção, pela crescente pontificação de obras civis do poder público e pela presença amalgamadora das edificações civis particulares; além das questões suscitadas pela natureza em seu confronto com o espaço construído. As fortificações apresentam uma contradição extremamente particular: enquanto máquinas de guerra - imensas, imóveis e pesadas - têm como fim coordenar o de­ senvolvimento das batalhas facilitando a ação e a movimentação das tropas e embarcações, orientar o fluxo de circulação nos conflitos. Em sua estaticidade destinam-se à dinâmica do movimento da guerra, mesmo o da guerra cotidiana da cidade, “prolongada e paciente que tem toda a aparência da inércia da paz”.2 O sistema defensivo determina sobre o espaço da cidade uma percepção descentralizada: diversos “pontos” (edificações militares) são articulados sobre o “plano” (região) mas nenhum detém a primazia orientadora. Ainda que certas fortalezas tenham uma importância destacável sobre as outras - como a de Santa Cruz na barra, pela localização e potência, e a de São José na Ilha das Cobras, pela posição estratégica fundamental - são as relações entre os campos de abrangência do poder de fogo das fortificações que determinam o espaço da guerra superposto ao da cidade. Espaço cíclico e perspectivado ao se ordenar através de conjuntos,28 que se articulam a partir do exterior da Baía de Guanabara em direção ao núcleo urbano do Rio de Janeiro, sem, contudo, estabelecer um foco organizador para o sistema defensivo, seja algum desses conjuntos ou o núcleo urbano, devido ao caráter intercambiável das articulações contidas na totalidade do sistema.


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V II

A arquitetura militar carioca do século XVIII - em sua racionalidade e cientificismo imanentes; enquanto “sistema de imagens” ; em sua estaticidade dinâmica e em sua espacialidade perspectivada, descentralizada e cíclica - evidencia um pensamento afinado com a Cultura do Barroco e pertinente às transformações do ambiente cultural do Rio de Janeiro setecentista.

Notas bibliográficas 1. Virilio, Paul Vitesse et Politique.Paris, Edition Galiée, 1977, pp. 25-26. 2. Tzu, Sun. A Arte da Guerra.Rio de Janeiro, Record, 1985, p. 75. 3. Ferrez, Gilberto. O Rio de Janeiro e a Defesa de seu Porto, 1555-1800. Rio de Janeiro, Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1972. Todas as informações referentes à cronologia de construção e reparo das fortificações são provenientes desse minucioso estudo de Gilberto Ferrez. 4. Virilio, Paul. op. cit., p. 19. 5. Ibid., p. 26. 6. Lagrange, Louis Chancel de. A Tomada do Rio de Janeiro em 1711 por DuguayTrouin. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1967. 7. As invasões: francesas de 1571, 1580, 1695 e 1710; inglesa de 1593 e holandesa de 1599; In Ferrez, Gilberto, op. cit., pp. 3, 5, 6, 39 e 45. 8. Virilio, Paul. op.cit., p. 20. 9. A pedra e a cal são os materiais mais indicados; a terra e a faxina, também utilizada, são de baixa resistência à artilharia. 10. Ferrez, Gilberto, op.cit., pp. 61, 69, 7 6 e 9 1 . 11. Virilio, Paul. Défense Populaire et Luttes Écologiques. Paris, Edition Galilée, 1978, p.15. 12. Ferrez, Gilberto, op. cit., vol. 2, ilustrações n° 11 a 15. 13. Ibid., p. 215. 14. Ibid., pp. 210-215. 15. Ibid., p. 74. í>6 Mar“ ns’ ^ llson- M ia ria da Inteligência Brasileira. Vol. I (1555-1794). São laulo, hd. Cultrix Ltda., 1977, p. 335.


A Pólvora e o N anquim

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17. In Tzu, Sun. op. cit., p. 70. 18. Os dois primeiros vice-reis, Conde da Cunha e Conde de Azambuja, não demonstram em suas administrações cuidado especial com a questão defensiva da cidade. Os sucessores do Marquês do Lavradio, Luiz de Vasconcellos e o Conde de Resende, não apresentam grandes realizações em suas administrações. In Ferrez, Gilberto, pp. 88 a 90 e 106 a 111. 19. Tavares, Aurélio de Lira. A Engenharia Militar Portuguesa na Construção do Brasil Rio de Janeiro, Estado Maior do Exército, 1965. 20. Ferrez, Gilberto, op. cit., p. 99-101. 21. Ibid. 22.

Ibid

23. Como as propostas de Massé em 1713, de Vahia Monteiro em 1726, de Silva Pais em 1735 e de Roscio, Funck e Sá e Faria em 1769. In Ferrez, Gilberto, op. cit., pp. 55-61,68, 74 e 99-106. 24. Ibid., pp. 215 e Lagrange, Luis Chancel de. op. cit., p. 70. 25. Virilio, Paul. Vitesse et Politique. op. cit., p. 22. 26. Du Bellay.Joachim. “Sonnet”. In Courtillon, JanineeArgaud, Marc. Archipel 3. Paris, Les Éditions Didier, 1987, p. 39. 27. Virilio, Paul. op. cit., p. 20. 28. Dois exemplos: as triangulações possíveis entre as fortificações de Santa Cruz, do Pico e da Praia de Fora; e entre Santa Cruz, Lage e São João.

ROBERTO LUÍS TORRES CONDURU é arquiteto graduado pela FAU/UFRJ em 1986 e atualmente conclui o Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, do Departamento de História da PUC/RJ.


M an oel da C u n h a, “ Retrato de G o m es Freire d e Andrada (C on d e de Bobadella)�.


M A R IA H E L E N A D E C A R V A L H A L J U N Q U E I R A

A Pintura Profana no Rio de Janeiro Setecentista. Considerações.

Introdução

A arte do Rio de Janeiro do século XVIII só começou a ter sua verdadeira historiografia na quarta década do século XIX com Manuel de Araújo Porto Alegre, Barão de Santo Ângelo. Antes há observações tópicas feitas pelos viajantes estrangeiros em fins do século XVIII e princípios do XIX, em curtas notícias da terra visitada na passagem para o Pacífico. Como exemplo poderiamos citar os comentários sobre o Passeio Público, com sua arquitetura e decoração, por John Barrow e Lord Stanton, ou a descrição do Paço por John White. Historiadores, como José de Souza Azevedo Pizarro de Araújo {Memórias Históricas do Rio de Janeiro) ou o Padre Luiz Gonçalves dos Santos, alcunhado Padre Perereca {M emóriaspara Servir à História do Brasil), se detêm na apreciação dos monumen­ tos artísticos. Entretanto, estudos sistemáticos só foram encetados com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) pelo Cônego Januário da Cunha Barbosa e pelo Brigadeiro José da Cunha Matos, a 25 de novembro de 1838. Em sessão de 1841 do Instituto, Araújo Porto Alegre apresentou a Memória sobre a Antiga Escola de Pintura Fluminense, onde analisava o período artístico que abrangia o século XVIII e o início do XIX. A partir dessa Memória, começaram exames mais rigorosos das artes plásticas fluminenses. Não deixa de ser admirável a produção do período, diante do meio cultu­ ralmente acanhado e da política repressiva da metrópole, acentuada no reinado de D. Maria I, que enfrentou várias insurgências políticas. Já a lei de 18 de Março de 1606 estabelecia o isolamento do país, impedindo a colônia de manter contato com qualquer nação do mundo que não fosse Portugal. Alvará de 27 de Novembro de 1687 proibia que os navios saídos do Brasil tocassem em qualquer porto estrangeiro. Alvará de 20 de Março de 1720 proibia letras impressas no Brasil, e a Carta Régia de 30 de Junho de 1766, o ofício de ourives em todo o território brasileiro. Mais tarde, em 1797, Alvará de 16 de Dezembro proibia o despacho de livros e papéis para o Brasil.1 É de se notar que as devassas feitas em conseqüência dos levantes no reinado de D. Maria I revelaram significativo número de obras dos enciclopedistas - as terríveis idéias francesas - nas bibliotecas dos insurgentes.


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O artista quase sempre provinha das camadas populares e não alcançava um “status” social elevado. A arte não era considerada profissão destacada numa escala social. Ser artista, por vezes, talvez fosse o cumprimento de uma vocação pessoal, como no caso do pintor Manuel da Cunha, escravo da família do Cônego Januário da Cunha Barbosa, que nos legou uma obra importante. Trabalhando com afinco em sua arte, e com a ajuda do cidadão abastado José Dias da Cruz, conseguiu comprar a carta de alforria. Cumpre observar que numa sociedade escravocrata as artes com implicações manuais não granjeavam o mesmo prestígio que a literatura, esta sim praticada por elementos de instrução superior. Não havia preocupação com a individualidade, haja vista, entre outros fatos, a falta de assinatura em quase todas as obras. Tratava-se de uma utilitas sem maior relevo nesse quadro social. O pintor era chamado tanto para ornar uma igreja, como para retratar uma autoridade: arte sob encomenda, religiosa ou profana. Raramente um artista pintava por decisão própria, como fez Leandro Joaquim na obra Senhora da Boa Morte, pintada como promessa após o restabelecimento de doença que o prostrara. N ão havia escolas de mestres: a formação era em parte empírica, feita através do contato com mestres locais; ocasionalmente, alguns pintores freqiientaram academias no exterior. O s poucos artistas que estudaram fora, retornando, transmitiam os conheci­ mentos adquiridos (não há nenhum pintor local de técnica européia totalmente absorvida, o que terá resultado em uma forma de “virtude”, como se verá adiante). Manuel da Cunha, que viajou à Europa, estabeleceu em casa um curso para doze aprendizes, que reduziu mais tarde a seis. Manuel Dias de Oliveira estudou em Portugal, na Real Casa Pia, indo depois para Roma, onde teve por mestre o artista italiano Pompeu Battoni. Lá freqüentou a Academia Portuguesa, criada por D. João V. Retornando a Portugal, foi nomeado professor régio de desenho e pintura no Rio de Janeiro, onde lecionou por 26 anos, a partir de 1800. Outros pintores e desenhistas transmitiram o que sabiam, aprendido aqui mesmo, como João de Souza, que ensinou a Manuel da Cunha e Leandro Joaquim. Um “homem pardo chamado Manuel Patola”2 foi o mestre de José Leandro de Carvalho, assim como José de Oliveira Rosa ensinou a João Francisco Muzzi. C om os meios de comuni­ cação escassos e lentos, pode-se imaginar como era difícil para os professores instruir os alunos com modelos quase inexistentes e pouco material. A pintura profana, na qual nos deteremos mais especificamente, foi menos representativa em quantidade do que a religiosa. Pode-se observar no Rio de Janeiro do século XVIII a existência de cenas de costume, paisagens, retratos, assim como a ilustração de mapas botânicos e, bem no final da Escola Fluminense de Pintura, já em princípios do século XIX, o aparecimento da pintura alegórica, misto de pintura laica e pintura religiosa. É também desta época o surgimento da pintura de teto (desaparecida). A pintura religiosa atendia à demanda das Ordens, Ordens Terceiras e Irmandades. A maioria dos templos no Rio de Janeiro foi edificada ou reformada no século XVIII, quando a cidade teve grande crescimento econômico e populacional. Essa expansão criava uma demanda e os artistas iam sendo requisitados tanto para produzir temas religiosos como profanos.


A Pintura Profana no Rio de Jan eiro Setecentista.

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A vida administrativa do Rio feito capital da colônia (1763) gera exigência áulica: os retratos da nobreza e dos altos quadros da administração de que se tratará adiante. Tam bém a pintura profana ligada às obras públicas deixou vestígios significativos. A produção pictórica profana permite-nos uma visão clara e objetiva da realidade circundante, não só descritivamente, como deixando entrever o pensamento dominante. Numericamente inferior, pode-se dizer, no entanto, que sob certo aspecto a pintura laica excedeu à religiosa, em valor, pois esta, na maior parte das vezes, baseou-se em modelos europeus, enquanto a profana procurou um caminho mais livre, recorrendo menos a modelos existentes e buscando feição própria, não só na forma como na temática.

Dados Biográficos

Os pintores cujos traços biográficos daremos a seguir incursionaram de alguma forma pela pintura profana. Há que ressaltar a escassez de dados devida à falta de documentos. Muitas vezes foi a tradição oral que permitiu aos seus primeiros biógrafos transmitir uma visão, embora sucinta, da vida desses artistas.

JO SÉ DE O LIVEIRA ROSA Natural do Rio de Janeiro, são desconhecidas as datas de seu nascimento e morte, assim como não há dados precisos sobre seus estudos. Foi considerado, por Araújo Porto Alegre, chefe da Escola de Pintura Fluminense. Mestre de João Francisco Muzzi e de João de Souza. Obras Fortaleza da Conceição - decorou a casa d’ armas. Paço dos Vice-Reis - grande painel para o teto da sala de audiências, “O Gênio da América” (desaparecido). Igreja dos Carmelitas (depois Capela Imperial) - teto da capela-mor, “A Virgem do Monte Carmelo” (desaparecido). Convento de Santa Teresa - retrato da Madre Jacinta de São José. Mosteiro de São Bento - “Visão de São Bernardo” e “Santa Bárbara”, Capela das Relíquias. - retrato de três beneditinos: frei Antônio do Desterro Malheiro Reimão, frei João da Madre de Deus Seixas da Fonseca Borges e frei Mateus da Encarnação Pina.


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JO Ã O FRA N CISCO M U Z Z I Filho de um italiano radicado no Rio de Janeiro, desconhecem-se as datas de seu nascimento e morte. Discípulo de José de Oliveira Rosa, foi cenógrafo da Casa da Ópera, a ópera dos Vivos, fundada em 1767 pelo Padre Ventura e incendiada em 1769, quando da representação da peça de Antonio José Os Encantos da Medéia. Obras Igreja de N . Sra. do Parto - “Incêndio do Recolhimento e da Igreja de N . Sra. do Parto” . - “Reconstrução do Recolhimento e da Igreja de N. Sra. do Parto” . Desenhos da 2a parte do “Mapa botânico” para uso do limo. e Exmo. Sr. Luiz de Vasconcellos e Souza, vice-rei do Estado do Brasil.

JO Ã O DE SO UZA Desconhecidas as datas de seu nascimento e morte. Pertencente à classe dos coloristas, estudou com José de Oliveira Rosa. Foi mestre de Manuel da Cunha. Obras Convento do Carmo - “Virgem do Carmelo". - vários quadros para ornar o claustro (hoje na Igreja da Lapa do Desterro). Igreja da Candelária - retrato do Brigadeiro José da Silva Paes.

M A N U EL DA C U N H A Nasceu no Rio de Janeiro, em 1737, de pai branco e mãe africana, escrava da família de que descendia o Cônego Januário da Cunha Barbosa. O pai não o perfilhou. Estudou pintura com João de Souza, a quem supera na arte. A família que o criava, vendo sua vocação, manda-o estudar em Lisboa. Alguns autores, como Vivaldo C oaracy3e José Maria dos Reis Junior, 4 acham que Manuel da Cunha foi explorado por ela, do que discorda Joaquim Manuel de Macedo.5 Segundo determinados autores, viajou já liberto. Outros dizem que, ao retornar, desenvolveu atividade intensa, e com a venda de obras e o auxílio generoso do comerciante abastado José Dias da Cruz conseguiu a carta de alforria. O retorno, segundo Argeu Guimarães, teria acontecido em 1757,6 o que é posto em dúvida por Gonzaga Duque.7 Estabeleceu em sua residência aula de pintura para doze alunos, os quais depois reduziu a seis. Morou em casa própria na antiga rua de São Pedro, entre


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Uruguaiana e Ourives (Miguel Couto). Foi, segundo Araújo Porto Alegre,8 bom pai de família. Naquele tempo (1841), ainda existia uma filha de nome Apolinária, herdeira da proteção e amizade do pai para com a casa de José Dias da Cruz. Foi chamado “mestre pintor” , como é citado em recibo que assinou para o Senado, embora o negue a Dra. Hannah Levy.9 Manuel da Cunha faleceu de congestão cerebral a 26 de abril de 1809, sendo sepultado na Igreja do Hospício (Conceição e Boa Morte), conforme assentamento encontrado por Moreira de Azevedo.10 Obras Capela Imperial (atual Igreja do Carmo da Antiga Sé) - painel representando a Descida da Cruz, no teto da Capela do Senhor dos Passos, imitação de quadro de Daniel Volterra (desaparecido). Senado da Câmara - retrato do Conde de Bobadella, Gomes Freire de Andrada. - painel de São Sebastião (sala de espera) (desaparecido). - imagem de São Sebastião, pintada no estandarte ((hoje no Museu Histórico da Cidade). Convento de Santa Teresa - retrato do Conde de Bobadella. Igreja de São Sebastião do Castelo (demolida) - painel de Santo André Avelino (desaparecido). Igreja da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula - Capela do Noviciado ou de Nossa Senhora da Vitória - teto que representa N. Sra. da Vitória e seis painéis laterais com vida e milagres de São Francisco de Paula. Igreja de N. Sra do Bonsucesso da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro - Seis painéis dupla face com cenas da Paixão de Cristo, bandeiras da Procissão dos Fogaréus Santa Casa de Misericórdia - galeria dos Benfeitores. - retrato de Inácio da Silva Medella.

LEA N D RO JO A Q U IM Natural do interior do Rio de Janeiro, são desconhecidas as datas de seu nascimento e morte. Estudou com João de Souza, tendo sido pintor e arquiteto. Contem­ porâneo e companheiro de trabalho de Manuel da Cunha. Obras Igreja de São Sebastião do Castelo - Senhora de Belém.


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- São João. - São Januário. Igreja do Parto - Santa Cecília (desaparecida). - Santo Elói (desaparecida). - São João Evangelista (desaparecida). - Senhora das Mercês (desaparecida). - "Incêndio do Recolhimento e da Igreja de N. Sra. do Parto". - "Reconstrução do Recolhimento e da Igreja de N. Sra. do Parto". - retrato do vice-Rei D. Luiz de Vasconcellos e Souza. Passeio Público - "Arcos da Carioca/Lagoa do Desterro/Lagoa do Boqueirão". - "Pesca da baleia na Baía da Guanabara". - Igreja e Praia da Glória. - "Revista militar no Largo do Paço". - "Procissão marítima ao hospital dos Lázaros". - "Visita de uma esquadra inglesa na baía de Guanabara". Igreja do Hospício - Senhora da Boa Morte. - retrato do Conde de Resende - retrato do Capitão-mor Gregório Francisco de Miranda.

JO S É LEA N DRO D E CA RV A LH O Nasceu em Muriqui, M unicípio de Itaboraí, Estado do Rio de Janeiro (segundo Porto Alegre, em Magé), e faleceu a 9 de novembro de 1834. Estudou desenho com “um homem pardo chamado Manuel Patola”. Pintor histórico e retratista. Obras Igreja de Bom Jesus - painel da Ascenção (teto da capela-mor - desaparecido) Igreja da Ordem 31 do Carmo - quadro alegórico. Convento do Carmo - retratos de D. João VI. Convento de Santo Antônio - retratos de D. João VI. Igreja de São Pedro - retratos de D. João VI.


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Teatro de S. João (depois São Pedro) - (demolido) - pano de boca representando a Baía de Niterói. Capela Real - alegoria da Família Real portuguesa (quadro do altar-mor). - douração. - painel dos 12 apóstolos. Decorou o teto da varanda da aclamação d’El Rei D. João VI. Igreja de S. Francisco de Paula - quatro panos pintados com quatro doutores da Igreja (São Jerônimo, Sto. Agostinho, Sto. Ambrósio e São Gregório M agno). Santa Casa de Misericórdia - (Repartição dos Expostos) (1822). - retrato do Príncipe Regente D. Pedro e de D. Leopoldina.

FREI FR A N C IS C O SO LA N O BEN JA M IM Natural da cidade de Macacu, Estado do Rio de Janeiro, ignora-se a data do nascimento. Faleceu a 20 de dezembro de 1818, no Rio de Janeiro. Autodidata. Franciscano, do Convento de Santo Antônio. Desenhista, foi designado pelo vice-rei D. Luiz de Vasconcellos e Souza para acom panhar a expedição de Frei Mariano da Conceição Veloso através do Brasil. Obras Convento de Santo Antônio (RJ) - São Carlos oferecendo poem a à Virgem da Assunção. - Santa Ismênia. - Senhor da Paciência. Convento de Santo Antônio (SP) - decoração Ilustrou a Flora Fluminense de Frei Mariano da Conceição Veloso.

M A N O EL D IA S D E OLIVEIRA BR A SILIEN SE (O ROM ANO) Nasceu na Vila de Macacu (RJ), a 22 de dezembro de 1763, e faleceu em Campos, a 25 de abril de 1837. No Rio de Janeiro, começa a aprender ourivesaria, mas a pretere pelo desenho. Estudou na real C asa Pia, em Portugal, e em Roma, com Pompeu Battoni. Voltando a Portugal, foi nomeado professor régio de desenho e pintura no Rio de Janeiro (1800), onde trabalhou por 26 anos. Estabeleceu em casa aula de nu.


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Obras Galeria de Manuel José Pereira Maia - quadro representando a Caridade. - alegoria do nascimento de D. Maria. - fato milagroso de Santa Isabel, Rainha de Portugal. Casa da Moeda (Praça da República) - Senhora de Santana. Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro - painel de N . Sra. da Conceição. Museu Histórico Nacional - retrato de D. Carlota Joaquina e de D. João VI. Varanda da coroação de D. João VI - retrato de D . João VI.

FR A N C ISC O P ED R O D O AMARAL Desconhecida a data de seu nascimento. Faleceu a 10 de novembro de 1830. Último discípulo dos artistas do Rio de Janeiro colonial antes da chegada da Missão Francesa, em 1816. Começou a estudar desenho com José Leandro de Carvalho. Freqüentou durante sete anos a Aula Regia de Desenho e de Figura de Manoel Dias de Oliveira.Trabalhou com Manoel da Costa, cenógrafo português do teatro de São João, com o pintor e arquiteto italiano Argenzio, com José Leandro e com Francisco Inácio. Fundou em 1827 a Sociedade de São Lucas, agremiação de pintores. Obras Biblioteca Pública - decoração. Casa da Marquesa de Santos - pintura a fresco. Quinta da Boa Vista - decoração. Paço pintou as armas imperiais na sala das audiências. Pintou coches da casa imperial para o segundo casamento de D . Pedro I. Desenhou a nanquim e sépia o projeto e planta de um monumento em memória do dia 26 de revereiro de 1821. Museu Histórico Nacional - retrato da Marquesa de Santos.


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Retratos Os retratos constituem a produção pictórica profana mais numerosa. Governadores e vice-reis, membros da família real, foram benfeitores de obras pias e autoridades religiosas. Em meio à espoliação da metrópole, encontramos governantes que souberam ultrapassar a mentalidade dominante e trazer benefícios sem conta para a urbe. Gomes Freire de Andrada, Conde de Bobadella, teve reconhecidos os quase trinta anos de governo (de 1733 a janeiro de 1763) com a inauguração de retrato por proposta do Senado da Câmara e por ordem da metrópole, a 13 de agosto de 1760, como homenagem “para estímulo e exemplo dos futuros governadores ”,11 contrariando provisão de 10 de janeiro de 1689 que proibia a colocação de pinturas, estátuas ou memórias semelhantes de governador em lugares públicos. D. Luiz de Vasconcellos e Souza, um dos vice-reis que mais progressos trouxe ao Rio de Janeiro, foi retratado por Leandro Joaquim. É interessante observar que o homem comum, cidadão do povo, não foi retratado. Sua valorização só vi ria mais tarde. Não há retratos de mais de duas pessoas juntas e tampouco de crianças. Segundo Hannah Levy, os retratos brasileiros continuam no século XVIII a tradição do retrato português do século XVII ,12 Diria, mesmo, do retrato europeu, pois são muitas as semelhanças. O retrato de Bobadella (hoje no hall das portarias da Câmara Municipal) possui características da obra de Mengs,13 Carlos III: a mesma vestimenta, mesma pose de pé, cenário com pilastra, mão segurando bastão de comando. Para Hannah Levy a intenção estilística é a mesma do barroco europeu, não comparando a qualidade artística: impres­ sionar o observador, súdito fiel e obediente de sua majestade, pela atitude altiva, olhar imperioso, vestuário pomposo, etc. Os trajes usados dizem respeito ao cargo do retratado ou seu estado. Os membros da família real ou autoridades, de modo geral, portam vestes condizentes com sua dignidade; os primeiros fazem-se reproduzir com garbo e insígnias oficiais - fenômeno típico do absolutismo de aquém e além mar - como D. Maria I, pintada por José Leandro de Carvalho,14que veste traje real com manto de arminho, tem a mão pousada sobre a coroa e o cetro na mão direita; D. José I, de autor não identificado, usa dolman vermelho deixando entrever armadura de metal dourado com cruz no peito, manto vinho, mão esquerda sobre o cetro, mesa com coroa sobre almofada; o Marquês de Pombal, de autor não identificado, usa roupa escura, fita larga com Cruz de Malta, broche encimado com pérolas; Gomes Freire de Andrada porta armadura completa, manto vinho forrado de arminho, faixa vermelha de chefe militar, bastão de comando na mão direita, mão esquerda na cintura sobre o cabo ocre da espada, Cruz de Malta; Madre Jacinta de São José,15 obra de José de Oliveira Rosa, usa vestes de freira, com o hábito e o véu; o Padre Antonio Nunes de Siqueira, atribuído a José de Oliveira Rosa, usa hábito preto, assim como frei João da


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Madre de Deus Seixas da Fonseca Borges, atribuído a Oliveira Rosa, usa hábito escuro. Os tamanhos variam: D. Luiz de Vasconcellos e Souza, atribuído a Leandro Joaquim, mede 0,89m x 0,66m, enquanto D. Maria I, atribuído a José Leandro de Carvalho, mede 1,14m x 0,75m e o Conde de Bobadella de Manuel da Cunha mede 2.20m x l,40m. Poucos são os retratos de corpo inteiro, como o de Bobadella. A maioria é de busto ou em meio corpo e em posição 3/4. O fundo é escuro, como em D. Luiz de Vasconcellos,16 Dom Francisco Xavier de Távora (autor não identificado), o Conde de Resende (atribuído por alguns autores a Leandro Joaquim), para concentrar a atenção do espectador na figura do retratado, ou apresenta elementos diversificados: coluna ou pilastra, como o D. João VI de José Leandro de Carvalho (M H N ), os dois retratos do Conde de Bobadella, de Manuel da Cunha (Câmara Municipal e Convento de Santa Teresa), e D. José I, autor não identificado (M H N ). Em Gomes Freire aparece também a Baía de Guanabara com as três fortalezas; no retrato do Brigadeiro José da Silva Paes, atribuído a João de Souza, aparece um ambiente com degraus, Santa Ceia na parede ao fundo, mesa com crucifixo, arcada à direita dando para fora. Outra questão interessante é da autoria, quase sempre atribuída pela tradição e poucas vezes comprovável devido à falta de documentação. Em algumas obras, embora falte a assinatura, há menção de autor; no retrato de Madre Jacinta (Convento de Santa Teresa) existe a frase embaixo: “ Verdadeiro retrato da virtuosa M adreJacinta de S. José Digníssima Fundadora do Convento das Relligiosas de S. Tereza nesta Cidade do Rio deJaneiro sua Pátria. Feyto por Jozé de Oliveira Roza seu Patrício. Anno de 1 7 6 9 '. Quanto ao retrato do Conde de Bobadella pintado para o Senado da Câmara, os autores quase unanimemente atribuem a autoria a Manuel da Cunha. Estudando a obra in loco, em 1982, chamou-nos a atenção uma assinatura encontrada por ocasião da restauração, terminada pouco antes. Embaixo, à direita, lê-se: “Cunha o fez,... 1790” . Consideramos provável que o autor da obra feita em 1760 fosse outro, pois Manuel da Cunha, na época, tinha somente 23 anos de idade e a obra era considerada por alguns autores, como Gonzaga Duque Estrada e Antonio da Cunha Barbosa, sua melhor produção.1" Tendo sido destruído o original no incêndio do Senado da Câmara em 1790, a obra hoje existente na Câmara Municipal seria um novo exemplar, de sua autoria, e ao qual se referem os autores estudados. A questão da cronologia das obras não é de fácil resolução devido à escassez de dados e documentos. Nas duas obras citadas por último há menção da data: Madre Jacinta, 1769, o Conde de Bobadella, 1790. Em outras há data em texto explicativo mas não indicativa da feitura, como no retrato do Brigadeiro José da Silva Paes, atribuído a João de Souza: “ Reconhecimento e Gratidão da Irmandade do Smo. Sacramento da Matriz da Candelária ao Exmo. Brigadeiro Jozé da Silva Paes, Instituidor da Repartição da Caridade em o anno de 1738”. Mas a maioria das obras não tem indicação de data.


José Leandro de Carvalho, “Retrato de D. Maria 1".

Leandro Joaquim, “Retrato do Vice-Rei D. Luiz de Vasconcellos e Souza”.

Quanto à técnica, há uma preocupação de detalhes (fidelidade ao real) principalmente em José Leandro de Carvalho, nos bordados das vestes e comendas de D. João VI, e em Leandro Joaquim , nos retratos de D. Luiz de Vasconcellos e Souza e do Capitão-mor Gregório Francisco de Miranda, no anel de dedo mínimo da mão esquerda com camafeu em porcelana com o busto de D. Maria I, cercado de diamantes rosa, repre­ sentados por pedaços de madrepérola; no retrato do Capitão-mor nos galões, comendas e tecido transparente do véu. Podemos constatar em Leandro Joaquim uma tendência a captar o perfil psicológico do retratado, como em D. Luiz de Vasconcellos. Segundo Joaquim Manuel de Macedo: ‘Com o vice-rei Luiz de Vasconcellos teve os defeitos do seu tempo e do sistema de governo, mostrando-se muitas vezes arbitrário e déspota, sempre porém levado por boas intenções e por empenho de fazer o bem. Era facilmente acessível e agradável” .18 John White dá seu depoimento de viva voz: “O vice-rei era um homem de meia idade, robusto, muito gordo e vesgo dos dois olhos. Falava pouco, mas com delicadez...” e “o vice-rei me pareceu investido de grande poder”.111 Em correspondência consultada no Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores,20 tivemos oportunidade de entrever traços da personalidade de D. Luiz: firme, decidido, ao mesmo tempo contornando as situações, sendo hábil diplomata. Leandro Joaquim transmite uma expressão suave que abranda a atmosfera de autoridade; ao mesmo tempo deixa entrever senso de observação, perspicácia: o olhar pousa no espectador e o ultrapassa. “ Leandro Joaquim devia-lhe conhecer bem de perto o caráter. Foi um bom amigo seu. ”21 Há ainda uma observação a ser feita com relação aos retratos no Rio de Janeiro setecentista: não há auto-retratos. O artista se detém na realidade


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que o cerca, fora dele, não tendo, porem, capacidade de empreender uma auto-análise ou introspecção. Para Agnes Heller, a existência de auto-biografia, no caso o auto-retrato, exige como uma das condições prévias uma personalidade individual significativa. Com o já tivemos ocasião de registrar, na época, o artista contava pouco na escala social. Eram vidas simples, sem grandes feitos aos olhos da sociedade. Se como ser social era pouco considerado, é difícil exigir-se auto-estima e auto-análise.

Cenas de Costume e Paisagens M uito poucos exemplares de cenas de costume e paisagens foram legados à posteridade no Rio de Janeiro do século XVIII. Com o cenas de costume temos as obras de Jo ão Francisco Muzzi e de Leandro Joaquim sobre o Incêndio e a Reconstrução da Igreja e do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto e como misto de paisagens e cenas de costume, os seis painéis elípticos que ornavam o Pavilhão das Conchas do primitivo Passeio Público, atribuídos a Leandro Joaquim. As obras de Muzzi e os elípticos do Passeio Público foram encontrados em Lisboa - as primeiras adquiridas pelo Sr. Raimundo Ottoni de Castro M aya, em f 942, de Ricardo Espírito Santo, diretor do Banco Espírito Santo, e os segundos de Leandro Joaquim pelo Museu Histórico Nacional, em 1923, da Galeria Jorge Freitas (Rua do Rosário, RJ), provenientes de velho paço, onde guarneciam o alto de portas. Até 1940 acreditava-se serem os exemplares elípticos sobre o Incêndio e a Reconstrução do Parto atribuídos a Leandro Joaquim , obras originais. M as, com a descoberta de Castro Maya e com a inscrição no verso M uzzi inventou e delineou e a assinatura Muzzi no ângulo esquerdo da Reconstrução, constatou-se serem estas as telas originais, e as de Leandro Joaquim, cópias, supõe-se encomendadas por D. Luiz de Vasconcellos e Souza, para permanecerem no Parto, ao saírem os originais do Brasil. As obras de Muzzi encontram-se atualmente no M useu do Açude da Fundação Raimundo Ottoni de Castro Maya e as de Leandro Joaquim no Museu Histórico Nacional (três) e no Museu Nacional de Belas-Artes (três), neste último por permuta e por tempo indeterminado.23 A escassez de tais generos leva-nos a uma série de considerações: em primeiro lugar, foram obras motivadas por acontecimentos insólitos, fora da rotina habitual da cidade, como o incêndio de um estabelecimento notório no meio social, como o Recolhimento do Parto,'1ou a necessidade de se decorar o primeiro jardim público carioca. Pelo que se depreende, foram obras encomendadas, como diz Gilberto Ferrez, referindose aos elípticos do Passeio Publico, verdadeira “propaganda de governo”.25 As obras de Muzzi devem ter sido feitas para testemunhar a urgência com que foi providenciado o reparo do Recolhimento, incendiado, juntamente com a Igreja, na madrugada de 23 para 24 de agosto de 1789. O reparo foi iniciado imediatamente após o incêndio, por Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim, a mando de D. Luiz de Vasconcellos e Souza (que


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aparece nas telas), sob as custas do Erário. A cena de gênero antecipa a documentação fotográfica. Os elípticos do Passeio Público devem ter sido encomendados pelo vice-rei que, por Portaria de 18 de outubro de 1787, convocou Francisco Xavier dos Santos para ornamentar os pavilhões laterais. Até agora não se achou documentação comprobatória da encomenda, mas a iconografia, a data dos monumentos, tudo leva a crer que sejam os painéis a que se referem os viajantes a partir de 1792. Outro ponto a considerar: a arte não era comercializada nos termos atuais, isso é, não era objeto de um mercado “aberto”. Atendia ao consumo específico da clientela oficial ou semi-oficíal, pessoas na alta escala da hierarquia social.26 O artista trabalhava por tarefa, sendo remunerado de acordo, como comprovam os recibos da época. A produção e o consumo organizados segundo as leis da apropriação privada só virão mais tarde, assim como todo o esquema envolvendo exposições, salões, museus. Há a possibilidade de existirem obras ainda em Lisboa ou mesmo no Rio de Janeiro, em mãos de particulares, o que exigiría uma pesquisa apurada. Além dos seis painéis conhecidos do Pavilhão das Conchas, internamente em formato octogonal, “Cena marítima representando a chegada da frota mercante inglesa ao Rio de Janeiro” , “ Revista militar no Largo do Paço”, “Procissão marítima ao Hospital dos Lázaros”, “Pesca da baleia na baía de Guanabara”, “Vista da Igreja e Praia da Glória” e “Arcos da Carioca/Lagoa do Desterro/Lagoa do Boqueirão”, havia um panorama “da entrada da baía, tal como é vista desse mesmo sítio” (Passeio Público) e “o incêndio de uma grande nave holandesa”,2' desaparecidos. No pavilhão trabalhado com penas e plumas de pássaros, havia, segundo John Barrow ,28 oito pinturas descritivas do que eram então consideradas as oito mais importantes produções do Brasil: “ ... 1° Uma vista das minas de ouro e diamante, etc; 2°

João Francisco Muzzi, “Detalhe da Reconstrução da Igreja e do Recolhimento de Nossa Senhora do Pano”.


João Francisco Muzzi, “Incêndio da Igreja e do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto”.

Vista de um canavial e engenho de triturar c a n a 3° A cultura e preparo do a n i l 4° Uma plantação de Cactus Opuntia 5° Diversas maneiras de preparar a mandioca 6 ° Vista de um cafezal T Vista de um arrozal ... e 8 ” Vista de uma plantação de cânhamo ...”, também desaparecidas. Os dez quadros referidos no parágrafo acima não foram localizados até a presente data. Assinale-se que os pavilhões originais foram destruídos em 1817 e “com eles desapareceram os lindos trabalhos de Xavier das Conchas e de Leandro Joaquim ” .29 Como seis deles ja foram localizados, é possível que ainda existam os outros. Com o não havia preocupação em se preservar a memória da cidade, é provável que tenham ido para o exterior. N o estagio atual dos estudos historiográficos, não é possível uma avaliação precisa da pintura referida em crônicas. As paisagens e cenas de costume foram pintadas em miniatura, talvez seguindo uma tradição, talvez por serem de fatura mais simples para quem não dominava a técnica. N o entanto, Leandro Joaquim fez miniaturas extremamente elaboradas, com mínimos detalhes, mormente quando se tratava do elemento hum ano ou do arquitetônico.

Dois Estilos Diferentes

Nos quadros sobre o 1ncêndio e a Reconstrução da Igreja e do Recolhimento do Parto, em torno do mesmo tema, Muzzi e Leandro Joaquim apresentam diferenças bem marcadas em sua maneira de ver e transmitir a realidade, deixando perceber estilos proprios. O s quadros de Muzzi são retangulares (o Incêndio mede 0,97m x l,235m e a Reconstrução 0,975m x l,235m ), têm as construções em grande volume, cenógrafo que


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Leandro Joaquim, “Incêndio da Igreja e do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto”.

era, e os personagens esguios. O s de Leandro Joaquim são elípticos, maiores (Incêndio 1,8 8 m x 2,24m e Reconstrução 1,85m x 2,12m), tomam um ponto de vista mais afastado com algumas modificações: Leandro Joaquim inclui no “ Incêndio” pequena multidão em primeiro plano e exclui quatro nobres à esquerda da “Reconstrução” (1° plano). Sua pintura tem mais movimento, as chamas são mais vivas, a multidão parece se mexer angustiada; as cores são mais carregadas, há maior contraste de luzes e sombras, os personagens são colocados mais próximos uns dosv outros. Muzzi, ao contrário, espalha-os pela tela, diminuindo o efeito dramático. A pintura de Leandro é mais natural, são personagens da rua, enquanto os de Muzzi são elegantes, com gestos mais ordenados, próprios do homem de teatro. No verso dos quadros de Muzzi consta a inscrição: “Fatal e rápido incêndio que reduziu a cinzas em 23 de agosto de 1789 a Igreja, suas imagens e todo o antigo Recolhimento do Parto, salvando-se unicamente ilesa de entre as chamas, a milagrosa imagem da mesma Senhora. Muzzi inventou e delineou” e “ Feliz e pronta reedificação da Igreja do antigo Recolhimento de N . S. do Parto, começada no dia 25 de agosto de 1789 e concluída em 8 de dezembro do mesmo ano. Muzzi inventou e delineou”. O “ Incêndio” de Leandro Joaquim tem na moldura a mesma inscrição do de Muzzi, primeira e última palavras separadas por uma rosa com folhagem, principiando de baixo, sem, logicamente, a última frase. A inscrição da “ Reconstrução” é feita também na moldura, sendo a primeira e última palavras separadas por uma rosa com folhagem, principiando na parte de cima: “ FELIZ E PR O N TA R EED IFIC A Ç Ã O DA IG REJA E T O D O O A N T IG O RE­ C O L H IM E N T O D E N . S. D O PARTO , CO M EÇ A D A N O DIA 25 DE A G O ST O DE 1789, E C O N C L U ÍD A EM 8 D E D EZ EM B R O D O M ESM O A N O ”. As quatro obras são documento de extrema importância histórica e social, pois revelam costumes com o o combate ao fogo, ferramentas, material de construção, indumentária, etc. e a imagem do prédio do Recolhimento do Parto.

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O s Elípticos do Passeio Público

O s seis elípticos restantes (óleo sobre tela) dos oito pintados para ornar o Pavilhão das Conchas do Passeio Público são um conjunto de extrema importância como documento de época, ao descreverem paisagens e fatos marcantes da vida da cidade e aspectos da vida econômica da colônia. Leandro Joaquim, intérprete de uma realidade de poder, com sua sensibili­ dade modificou a visão dessa realidade, transmitindo às gerações posteriores uma obra marcada pela suavidade, como disseram Araújo Porto Alegre31 e Moreira de Azevedo.1' Essas expressões não significam, contudo, nenhuma diminuição, pois sua pintura é viva, marcada pelo movimento, extremamente expressiva. A serviço do poder, chega a uma arte de prazer, abrandando formas, arredondando arestas, captando um significado mais sutil de vida, que transfere para o objeto estético. Já na pintura religiosa nota-se essas característi­ cas no pintor, como na “Virgem da Boa M orte” . O s painéis ora referidos são as primeiras paisagens do Rio de Janeiro colonial. Alguns retratam acontecimentos posteriores à inauguração do Passeio Público, que se deu em 1783, no governo de D. Luiz de Vasconcellos e Souza e de cuja construção foi incumbido Mestre Valentim. Para ornar um pavilhão do Passeio Público, obra do pensamento iluminista e primeiro lugar oficial de lazer do carioca, nada melhor que cenas do Rio de Janeiro segundo Charles Pougens, tradutor de John White ,33 “a m aior e mais bela de todas as cidades do Brasil”. O Rio de Janeiro da época foi submetido a uma série de obras de urbanização e remodelamento, com vistas à transformação em sede digna do vice-reinado, tendo como modelo a Lisboa pombalina, pós terremoto e incêndio de 1755, em que vigorava a procura de um ambiente de liberdade, ar e luz, com ruas traçadas num xadrez funcional. O Passeio Público está entre as principais iniciativas de D. Luiz. Nada retrata melhor essa procura de espaço, de desdobramento, que os painéis de Leandro Joaquim mostrando cenas abertas da cidade, com predominância de céu e mar. 1 rês das cenas são parte do panorama descortinado do terraço onde estavam localizados os pavilhões: “ Pesca da Baleia” , “Vista da Igreja e Praia da Gloria e Cena marítima com a chegada de frota inglesa” . A Cena marítima ( 1,1 lm x l,39m ), identificada por Gilberto Ferrez,34 mostra a chegada de frota inglesa, a 6 de agosto de 1787, sob o comando de Sir Arthur Phillip, que já estivera no Brasil comandando um navio de guerra português e gozava “ uma espécie de popularidade entre os portugueses e um grande crédito na corte de Lisboa ” .35 A Revista militar no Largo do Paço ( 1,1 lm x l,3 9 m ) mostra o Largo em dia de festa, com a tropa formada e autoridades e os monumentos ao redor. A Procissão marítima ao hospital dos Lázaros” , em São Cristovão (1,11 x l,39m), apresenta cena de romaria marítima, seguida de piquenique. A “Pesca da baleia na baía de Guanabara” (1,12m x 1,31 m) mostra cena de pesca da baleia na baía e sua industrialização na Ponta da Fábrica da Armação.


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Vista da Igreja e Praia da Glória’

A “Vista da Igreja e Praia da Glória” (1,13m x 1,415m), primeira documen­ tação iconográfica da igreja da Glória, mostra a igreja, a praia, a enseada com embarcações e cena de pesca de arrastão. Finalmente, a tela “Arcos da Carioca/Lagoa do Desterro/Lagoa do Boquei­ rão” (1,12m x 1,31 m) mostra a Lagoa do Boqueirão, cujo aterro realizado com o desmonte do Morro da Mangueira deu origem ao Passeio Público, e a arquitetura circundante, sobressaindo-se os Arcos da Carioca. Os painéis são pintados a óleo sobre tela, sendo a composição dividida em três faixas: céu, terra e mar. Por ocasião da restauração realizada no Museu Nacional de Belas-Artes em 84/85, estando os elípticos sem moldura, tivemos ocasião de observar a divisão em três faixas bem delimitadas. Há perspectiva em todas as telas. A “Revista militar” tem espírito geometrizante, muito em moda no século XVIII e coincidente com a imagem de uma sociedade hierarquizada em segmentos distintos: nobres, eclesiásticos e militares. Do povo simples, apenas pequena amostra na extrema direita da tela, na rua, nos pescadores que se encontram nas embarcações e em três moleques negros que, juntamente com outras pessoas, encontram-se na separação do muro do prédio do Arco do Teles. Como já dissemos , Leandro Joaquim é excelente miniaturista. N o Paço (“ Revista militar”) aparecem 24 janelas na frente e 12 em andar superior, descritas por Luiz Gonçalves dos Santos .36 Usa cores locais, com suavidade, moderação; emprega verdes e


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Leandro Joaquim, “Visita da Esquadra Inglesa", óleo s/ tela, circa 1780. Museu Nacional de Belas Artes

azuis com o contraste da complementar vermelha, como na “Chegada da frota inglesa e na “Procissão marítima”. Nesta destaca-se a quantidade de superfícies brancas (velas e tendas) que permeiam quase toda a extensão do quadro. As superfícies-são bem delineadas, os contornos firmes; por vezes, como no gramado da “ Procissão marítima”, as cores vãose esfumaçando ou dão efeito de luz e sombra. Há harmonia na distribuição de massas, como na “ Lagoa do Boqueirão”, em que se contrapõem e se complementam superfícies: ao morro ao fundo à direita corres­ ponde a igreja à esquerda e ponta de terra; ao morro à esquerda contrapõe-se trecho de terra e vegetação em primeiro plano à direita. O movimento é expressado pela ondulação das bandeiras, velas, morros em curvas e contra-curvas, posição das embarcações, linhas oblíquas que contrastam com as verticais (“ Procissão marítima”). A presença de bandeiras é simbólica e elemento estético. Na “ Lagoa do Boqueirão” há um retrato da sociedade com a presença do branco, do negro que o serve, das lavadeiras, do menestrel, com trajes típicos, que se diverte em meio à faina geral, dando um sabor do espírito carioca nos idos do século XVIII. Por que teria Leandro Joaquim pintado na forma elíptica? Talvez visando a originalidade ou uma possibilidade de levar a imaginação para além da tela, como acontece


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com as naves da “Visita da Esquadra inglesa”, que parecem estar entrando na superfície do quadro. Leandro Joaquim, ao incursionar pela pintura religiosa, segue a tradição pictórica da Europa ocidental da contra-reforma, devendo ter tido por modelo estampas européias, embora, como já assinalamos, apresente características próprias. Na pintura profana consegue realizar uma obra original, transforma o real observado com sua visão particular de mundo, simplifica a realidade circundante. Com sua criatividade, elabora uma linguagem pessoal: “o esforço criativo se exerce ao mesmo tempo sobre o plano da invenção dos elementos significativos e sobre o da ligação dos episódios”.r Alguns autores o consideram um primitivo, mas não o incluiriamos nessa classificação: é, antes, uma visão própria de mundo. Pode-se notar falha na perspectiva, na distribuição de luz, como assinala Gilberto Ferrez,38 mas percebe-se o cuidado na fatura, assim como na escolha de cores e na descrição atenta. Há pureza e simplicidade de imagens, aliadas a grande senso de observação. Com Leandro Joaquim despontam os primeiros sinais de um modo de ver próprio de uma terra nova, sem lugares-comuns e regras estritas a serem seguidas. É um olhar despido de aprioris; que vislumbra nova realidade, um começo de formação cultural própria, que no século XX daria lugar a um Guignard ou um Volpi. Isto não significa que se afaste de regras, pois emprega perspectiva, cores locais, formas arredondadas nos morros, como era costume na época, tudo visto com o olhar do topógrafo. Mas transcende todo esse suporte técnico ao se embrenhar por uma realidade sua, um lirismo que transforma o lugar-comum, o quotidiano, em uma imagem poética, poder-se-ia dizer uma metaimagem. Aqui o jogo do real, do imaginário e do percebido39 transborda em forma nova. O artista, na realidade da tela, cria outra realidade. Transforma em sua mente os dados percebidos do real e os devolve de maneira criativa. É extremamente difícil comentar com palavras o que formas e cores trans­ mitem. Uma linguagem não é redutível a outra. A imagem pictórica é uma realidade própria, com suas leis e princípios: “A dialética do real e do imaginário não é a mesma na arte e no pensamento sustentado pela linguagem ”.40 Contemplando os painéis, detendo-nos na “Procissão marítima”, vem-nos a idéia de uma realidade mágica, totêmica, ligação com algo do inconsciente coletivo, integração de realidades insondáveis, perdidas no tempo e aqui recuperadas no jogo do real e do irreal: formas simples de uma realidade complexa.

Conclusão

N o nível atual da documentação coligida não é possível uma avaliação precisa e sistemática da pintura profana na época em epígrafe. Acrescente-se que dentre as obras desaparecidas, muitas de expressão considerável, salienta-se um tipo de pintura somente conhecido através de cronistas e historiadores: a pintura de teto.


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N o Paço, a sala de audiências ostentava no teto o "Gênio da América", obra de José de Oliveira Rosa. John White menciona a decoração de sala, também no Paço, onde foram recebidos pelo vice-rei D. Luiz de Vasconcellos e Souza: “ pintara-se no teto frutas do trópico e os mais raros pássaros da região ...” .41 Dos quadros existentes de paisagens e cenas de costume, fica a impressão de traços próprios, perfeitamente distintivos da arte metropolitana. A pintura áulica, embora com muitas características da européia, com Leandro Joaquim já vislumbra um caminho próprio, original.

Notas 1. Edmundo, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. RJ, Ed. Aurora, 1951, 3“ Edição, p. 582. 2 . Azevedo, Manuel Duarte Moreira. O Rio de Janeiro, sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. RJ, Liv. Brasiliana Editora ( 1‘ edição 1861), 1967, p. 97.

3. Coaracy, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio deJaneiro. RJ, Liv. José Olympio, 1965, vol. 3, p. 464. 4. Reis Júnior, José Maria dos. História da Pintura no Brasil. SP, Ed L E I A 1944 p. 60. 5. Macedo, Joaquim Manuel de. Anno Biographico Brasileiro. RJ, Typographia e Litographia do Imperial Instituto Artístico, 1876, p. 523. 6 . Guimarães, Argcu. “História das Artes Plásticas no Brasil” in Revista do IHGBCongresso Internacional de História da América, 1922, p. 434 .

r tr^ aooGOnZaoga DuqUe‘ Arte Brasileira>P'ntura e Escultura. RJ, H. Lombaerts oc c^., íooo, p. 38. 8 Porto Alegre, Manuel de Araújo. “Memória sôbre a antiga Escola de Pintura Fluminense” in Revista do IHGB. Tomo 3, 1841, p. 534 .

, 7 ' Hr r COlonial 1,0 RÍO in Pintura e Escultura I - textos escolhidos da Revista do IPHAN. SP, MEC/FAUUSP, 1978, p. 55 10. Azevedo, Manuel Duarte Moreira, op. cit., p.322.


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11. Araújo, José de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias Históricas do Rio deJaneiro. RJ, MEC/INL - Imprensa Nacional, 1948, p. 154. 12. Levy, Hannah. “Retratos coloniais” in Pintura e Escultura I - textos escolhidos da Revista do IPHAN. SP, MEC/FAUUSP, 1978, p. 55. 13. Iniguez, Diego. História dei Arte. Madrid, Dist. E.I.S.A., 1960, Tomo 2°, p. 531. 14. Os retratos de D. Maria I, D. José I e do Marquês de Pombal fazem parte do acervo do Museu Histórico Nacional. 15. Os retratos de Madre Jacinta de S. José e do Padre Antonio Nunes de Siqueira estão no Convento de Santa Tereza. O do frei João da Madre de Deus Seixas da Fonseca Borges está no Mosteiro de São Bento. 16. Os retratos de D. Luiz de Vasconcellos, D. Francisco Xavier de Távora, Conde de Resende e D. João VI fazem parte do acervo do Museu Histórico Nacional. Os dois retratos do Conde de Bobadella estão na Câmara Municipal e no Convento de Santa Tereza.

17. Permitimo-nos um parêntese: por vezes a descoberta de um dado da vida do artista poderia solucionar o problema da cronologia. Em Manuel da Cunha, por exemplo, a carta de alforria permitira saber se o artista viajou à Europa antes ou depois de alforriado, sua formação e seu estatuto enquanto artista no contexto colonial. Com vistas à elucidação do assunto, tentamos localizar o documento sem sucesso até a presente data. Em várias buscas no Arquivo Nacional, encontramos um livro referente a cartas de alforria - códice I J J 80 - sem data, anotado no “Livro I Portarias” e organizado em ordem alfabética, onde na letra “M”, escrito à mão, encontra-se: “ Mel da Sa e Cunha (que supomos ser Manuel da Cunha), seguido de um número que deveria corresponder a outro documento ou livro do Arquivo Nacional, não localizado. Também tentamos encontrar alguma pista na Letra “J ”, uma vez que o artista foi ajudado pelo negociante José Dias da Cruz, sem que nada tivesse sido encontrado. 18. Macedo, Joaquim Manuel de. op. cit., 3° volume, p. 121. 19. White, John. Voyageà la Nouvelle Galles du Sud, à Botany Bay, au PortJackson en 1787, 1788, 1789. Paris, Pougin Imp., 1795, pp. 39 e 50. 20. cf. Carta de D. Luiz a D. Vicente José de Velasco Molina sobre a questão entre o Vice-Rei de Buenos Aires e Províncias do Rio da Prata e o Governador do Rio Grande em 22 de julho de 1779.


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21. Estrada, Gonzaga Duque. op. cit., p. 40. 22 . “(...) a união do autoconhecimcnto e do conhecimento do mundo, da

introspecção e da experiência da realidade, surge sob inúmeras formas e variantes. Aqui o que primeiro nos vem à mente é o auto-retrato, cf. Heller, Agnes. O homem do Renascimento. Lisboa, Martins Fontes, 1983, p. 198. 23. cf. Comunicado Interno da Fundação Pró-Memória de 30/09/1985. 24. O Recolhimento do Parto, situado entre as ruas da Cadeia (Assembléia), do Ourives (Rodrigo Silva), São José e Largo da Carioca, funcionava como abrigo para “não só receber mulheres convertidas, como as casadas a que estivesse obrigado a acudir ou para as livrar da morte ou para seus maridos as livrarem de que continuem em ofendê-los”, cf. Vieira Fazenda, José. Antiqualhas e Memórias do Rio deJaneiro. RJ, Livraria J. Leite, 1921, p. 449 citando D. Frei Antonio do Desterro. 25. Ferrez, Gilberto. “As primeiras telas paisagísticas da cidade” in Revista do IPHAN, n° 17, 1969, p. 232. 26. Fato interessante a ser observado: a arte era produzida justamente por cidadãos comuns e pouco valorizados na escala social. 27. Luccock John. Notas Sobre o Rio deJaneiro e partes meridionais do Brasil - Belo Horizonte - SP, Ed. Itatiaia/USP, 1975, p. 60. 28. Barrow, John. Voyage to Conchinchina in the years 1792 and 1793, London, Printed for T. Cadell and W. Darres in the Strand., 1806, pp. 881/83. 29. Azevedo, Manuel Duarte Moreira, op. cit., p. 553 30. Segundo Panofsky, Erwin. Idea. Madrid, Ed. Catedra, 1984, p. 85, a palavra estilo aparece pela primeira vez nas artes Figurativas em Bellori copiando Poussin “Da Matéria, do Conceito, da Estrutura e do Estilo... (1672): (...) O estilo é uma maneira pessoal de pintar e desenhar nascida do talento de cada um na aplicação e utilização das idéias: estilo, maneira ou gosto que se obtém da natureza e do gênio”. 31. Porto Alegre, Manuel de Araújo, op. cit., p. 554. 32. Azevedo, Manuel Duarte Moreira, op. cit., p. 3 3 5 . 33. White, John. op. cit., p. 72 nota. 34. Ferrez, Gilberto, op. cit., p. 228. 35. White, John. op. cit., p. 3 7 .


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36. Santos, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à História do Brasil. RJ, Livraria Editora Zelio Valverde, 1943. 37. Francastel, Pierre. La figura y el lugar. Caracas, Monte Avila Ed. 1969, p. 79. 38. Ferrez, Gilberto, op. cit., p. 223. 39. Francastel, Pierre. op. cit., p. 48. 40. idem, ibid, p. 30. 41. White, John. op. cit., p. 46.

MARIA HELENA DE CARVALHAL JUNQUEIRA é graduada em Letras pela PUC/RJ e formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC/RJ.


"Visão de Sta. Maria Magdaiena de Pazzis", óleo s/ tela, 2 a metade/ final do século XVIII.


E L IZ A B E T H C A R B O N E B A E Z

A Pintura Religiosa no Rio de Janeiro Setecentista e o Universo Colonial

Fácil esadclantar lo comenzado arduo el inventar,y después de tanto, cerca de insuperable, aunque no todo lo que se prosigue se adelanta. ” Balthasar Gracian Discurso I - Panegírico al Arte y al Objeto Agudeza y Arte Ingenio

Introdução Neste trabalho sobre pintura religiosa do período colonial do Rio de Janeiro pretende-se levar em conta a importância da relação entre o fato artístico e a sociedade em que esta pintura se desenvolve, bem como das relações da arte com seu passado histórico e sua função dentro do Sistema Colonial. Certas determinantes históricas não podem ser deixadas de lado quando lidamos com arte desenvolvida neste período e produzida numa sociedade com tênues raízes culturais. Segundo Pierre Francastel, “as artes figurativas” preenchem uma função permanente e coercitiva que age mesmo sobre aqueles que mais as ignoram. As Artes servem, pelo menos tanto quanto as Literaturas, como instrumento aos senhores das sociedades para divulgar e impor crenças. A Estética penetra em cada um de nossos pensamentos e ações'. A obra propriamente dita não pode ser esquecida ou considerada um simples acessório da história social e cultural. Entretanto, sendo a arte um dos instrumentos materiais e mentais do homem que vive em sociedade, só será possível compreender a realidade da estética colonial se for levado em consideração o estudo do homem colonial, o conjunto de hábitos intelectuais passados que formaram a sua mentalidade, enfim, suas profundas ligações com o Sistema Colonial. Ao alvorecer do século XVIII, o Brasil já carregava consigo dois séculos de colonização portuguesa e o Rio de Janeiro se preparava para estreitar suas ligações com a Metrópole. A cidade, devido a sua localização, será marcada desde a sua fundação por um “destino mercantil”2. E, como conseqüência das preocupações mercantilistas da Metrópole, além de importante centro comercial o Rio de Janeiro concentrará o poder político, principalmente a partir de 1763, ao se tornar sede do vice-reinado. Centro do poder metropolitano na organização da vida colonial, sofrerá de forma mais incisiva a imposição


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dos padrões estéticos e culturais de Portugal. O controle sobre a criação será mais atuante, o modelo estará mais próximo, tornando a região mais suscetível de se deixar amoldar pelas idéias trazidas da Europa através de Portugal. Essa estrutura concorreu para que a pintura religiosa produzida no Rio de Janeiro tendesse, como um todo, a copiar mais fielmente o padrão europeu. Um estudo comparativo com certas regiões do Brasil colônia evidencia que, de um modo geral, todos os pintores copiavam as mesmas gravuras que ilustravam bíblias e missais, em muitos casos de maneira idêntica, de norte a sul. Entretanto, pode-se detectar nos mestres fluminenses uma tendência mais marcante a se igualar ao gosto do colonizador e a (re)produzir uma obra “erudita”, abafando com isto não a possibilidade de transgressão, impensável na realidade do sistema colonial português, mas de criar, mesmo copiando, uma escola com características específicas, como ocorreu em Minas, Pernambuco e Bahia’ . Nessas regiões foi possível, de alguma forma, que os pintores tratassem os elementos formais dos seus modelos de uma maneira mais pessoal ou peculiar, seja dando um tratamento mais ingênuo à representação do tema e diferenciado dos volumes e das linhas, utilizando as cores de forma inconfundível ou mesmo transformando anjos ou madonas européias em tipos mais próximos a si e a seu meio4. A ausência de características próprias é justamente o que diferencia o Rio de Janeiro - parece uma contradição mas é a sua principal característica e evidencia a submissão intelectual do produtor de arte ao domínio metropolitano. É a estética da cópia que se dará neste primeiro momento de nossa História da Arte, de forma pouco sofisticada devido à desinformação e à precariedade da formação artística, aliadas à simplicidade intelectual, do nosso (re)produtor de imagens.

A Pintura em Portugal - Séculos XV-XY1II

Para uma melhor compreensão da estética colonial carioca, faz-se necessário um breve sumário retrospectivo da pintura portuguesa, da formação da sensibilidade estética da sociedade portuguesa e do estatuto social do pintor em Portugal. A história da arte portuguesa registra um grande m om ento da pintura em Portugal em meados do século XV. N uno Gonçalves, o primeiro a dar à pintura portuguesa um cunho nacional ao abandonar as tradições flamenga e italiana na com­ posição de seus quadros, foi seu expoente máximo. O século XV I produzirá uma pintura de caráter mais internacional, onde ficam bem nítidas as influências flamenga e italiana. E um período de transição, que revela um novo mundo àquele Portugal do século anterior, cujas fronteiras não haviam sido ainda total mente abertas pelas conquistas marítimas. O contato mais íntimo com Bruges e Antuérpia, centros irradiadores da influência flamenga, sera marcante e introduzirá em terras lusas o estilo maneirista, do qual dificilmente


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Portugal se dissociará. Em meados do século começa-se a notar a influência do renasci­ mento italiano, influência esta que se acentuará no final do século. Entretanto, a arte italiana será mais copiada que assimilada, tendência esta que se prolongará pelos séculos XVII e XVIII, onde serão encontradas as origens da pintura colonial5. N o século XVII vai predominar a influência da pintura espanhola, princi­ palmente durante o período que antecedeu a Restauração da Coroa Portuguesa (1640), seguindo uma tendência à austeridade. Já no século seguinte, predominarão as artes francesa e italiana, sendo que, de acordo com historiadores como Reynaldo dos Santos6 e José Augusto França , será uma pintura pouco expressiva, mais decorativa. Alternam-se naqueles séculos períodos de decadência e renovação. En­ tretanto, as mudanças que ocorreram foram apenas de superfície, não tendo a arte produzida em Itália, Espanha ou França atingido mais profundamente os artistas portu­ gueses. As composições religiosas do século XVIII eram de tal forma dominadas por gravuras importadas que abafavam a personalidade do pintor. A produção artística de Vieira Lusitano, importante artista deste período, é assim avaliada por Reynaldo dos Santos: “Sua arte sem grande personalidade revela a influência da pintura italiana da época, mas o vigor de suas águas-fortes o coloca entre os melhores gravadores”. Em outras palavras, melhor gravador do que pintor. Sobre outro artista do século XVIII, André Gonçalves, diz que “...inundou as igrejas, durante a primeira metade do século, com pastiches italianizantes, copiados de gravuras”8. Para José Augusto França, a pintura portuguesa vai refletir a indiferença e o desinteresse pela estética por parte da sociedade portuguesa, inclusive da nova burguesia que surge no período pombalino - uma pintura que tende a copiar as formas em voga sem criar algo novo que pudesse de alguma maneira contribuir para a formação de uma nova visualidade. Para ele a mediocridade da grande maioria dos artistas, acentuada por serem socialmente marginalizados, tornou-os incapazes de estabelecer uma maneira diferente de ver a realidade ou de modificar padrões de gosto '. Essa marginalização e o desinteresse por obras de arte têm suas raízes no século XVI, conseqüência direta de uma sociedade contra-reformista e fechada. Os pintores portugueses resistirão contra a vigência desse status quot lutarão pela elevação de seu estatuto de produtores-criadores10. Na realidade, porém, as transformações resultaram menos profundas do que se poderia esperar e ainda no século XVIII em Portugal o artista plástico - o artesão - não tinha expressão individual nem a pintura acompanhava o desenvolvimento da arquitetura, ou estava de acordo com o espirito de uma nova sociedade. O conceito de pintura na época pombalina, persistindo na tese de José Augusto França, era de arte nobre apenas enquanto prenda ou passatempo da burguesia nobre, ficando limitada aos artesaos quando praticada como oficio. Na sociedade pombalina, apesar de o artista já ter conseguido certa emancipação social, o pintor-artesão permanecia sendo considerado socialmente inferior e mesmo aqueles protegidos pelo poder padeciam uma longa e penosa ascenção.


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O Pintor no Rio de Janeiro Setecentista

Estatuto Social A colônia nos trópicos não escaparia também ao destino de herdar de seus colonizadores, além dos padrões estéticos, o estatuto social de seus artistas. N o contexto do Brasil colonial, os pintores não seriam como tal considerados, a grande maioria permanecendo no anonimato. Nem mesmo Mestre Valentim da Fonseca e Silva, “letrado” em relação aos demais artistas seus contemporâneos, possuidor de uma grande oficina e prestigiado com encomendas de projetos importantes para a cidade, teve seu nome mencionado nos documentos oficiais refentes à contratação dos mestres que projetariam e executariam as obras civis. Somente para suas obras religiosas foram encontrados recibos de pagamentos nas folhas de receita e despesa das diversas Ordens para as quais trabalhou". Nos setecentos carioca, o ofício de pintor era praticado por pessoas de nível social e cultural pouco elevado: escravos como Manuel da Cunha, mulatos como Leandro Joaquim e Raimundo da Costa e Silva, ou vindos do campo, com o o filho de lavrador José Leandro. Exceção feita aos religiosos que também se dedicaram à pintura continuando uma tradição do século XVII, como Frei Ricardo do Pilar (beneditino) e Frei Francisco Solano (franciscano). A elite, cultural e intelectualmente distanciada do povo, tinha seus interesses dirigidos para a política, a literatura, a poesia, a filosofia, e não considerava a pintura uma atividade intelectual, mas, sim, um trabalho manual, restrito aos artesãos. Desse período conhecem-se apenas três pinturas assinadas e datadas de 1769, todas de José de Oliveira Rosa (1690-1769), cuja obra com o um todo é de qualidade variável, mas que, quando analisadas no conjunto de obras do período colonial, com­ provam a habilidade artística que o fez merecer o título de Mestre-Pintor. A maioria das atribuições vem da tradição oral e são relativamente poucas aquelas que possuem documentação comprovando sua autoria, como as pinturas de Frei Ricardo do Pilar no Mosteiro de São Bento", de Caetano da Costa Coelho na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitencia13, ou de Manoel da Cunha na Santa Casa da Misericórdia14. N o decorrer do século XVIII foi possível registrar na capital da colônia a presença de 69 pintores ou mestres pintores" em geral designados indiscriminadamente pelos seus contratantes, sem um critério formal, segundo uma tradição do estatuto vigente em Portugal do século XVI que nivelava os “pintores a óleo” aos artífices da pintura (que faziam douramento das igrejas, encarnação de imagens, etc.). Desses 69, sabe-se que 14 produziram pinturas artísticas (além dos serviços de douramento e encarnação de imagens) e fazem parte da chamada Escola Fluminense de Pintura16. Sabe-se relativamente pouco a respeito da organização profissional desses pintores e das suas relações sociais no Rio de Janeiro no século XVIII. Provavelmente pertenciam a organizações de ofício semelhantes às da Metrópole. Contudo, documentos provando a existência de tais corporações ainda não foram localizados17. Por outro lado, e difícil acreditar que o rígido sistema colonial permitisse o desenvolvimento de um


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Manoel da Cunha, “Beijo de Judas”, 1807. Óleo s/ tela. Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso.

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ambiente cultural e artístico com a participação efetiva dos produtores de arte até pelo menos a segunda metade dos setecentos. Alcançar de fato um espaço na sociedade foi, para esses pintores, uma conquista conseguida lentamente, ao longo do século. No que diz respeito ao ensino da pintura, a referência mais concreta - porém sem que se conheça a origem da informação - é a oficina que o ex-escravo e mestre-pintor Manoel da Cunha (1737-1809) estabeleceu em sua casa provavelmente nas últimas décadas do século. Consta que chegou a reunir 12 alunos, que o aprendizado durava sete anos e que, após este período, o aprendiz passava a perceber 240 réis diários18. Somente no final do século XVIII, início do XIX, o quadro começa a se modificar com a introdução do “conceito’ de artista: Manoel Dias de Oliveira, O Brasiliense ou O Romano, que estudou durante 10 anos na Academia de São Lucas, em Roma, ao retornar ao Brasil por volta de 1800 traz em sua bagagem a consciência do saber artístico, da sua individualidade, do seu status de pintor. N ão apenas assina suas pinturas e desenhos, revelando uma outra postura frente à arte, como também passa a ensinar desenho, antecipando a introdução do ensino acadêmico. Em 20 de novembro de 1800,


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o Príncipe Regente D. João manda instituir a Aula Régia de Desenho e Figura, possivel­ mente nos mesmos moldes daquela criada por D. Maria I em Portugal em 1781, e nomeia Manoel Dias de Oliveira seu titular, cargo que exerceu até 18221 A atuação de Dias de Oliveira não foi um fato isolado no universo artístico do Rio de Janeiro no início do século XIX, anteriormente ao estabelecimento, em 1816, da Missão Artística Francesa: atuavam também na cidade vários artistas entre escultores, pintores, gravadores, cenógrafos e desenhistas, além de engenheiros e arquitetos, não apenas brasileiros mas também portugueses, franceses e italianos20.

Universo Colonial

“Natureza edênica, humanidade demonizada e colônia vista como pur­ gatório foram as formulações mentais com que os homens do Velho Mundo vestiram o Brasil nos seus primeiros três séculos de existência. Nelas, fundiram-se mitos, tradições eu­ ropéias seculares e o universo cultural dos ameríndios e africanos .”21 Esses seriam, em resumo, os principais componentes da história da mentali­ dade do mundo colonial, formado por uma sociedade complexa, com cultura e credos diversos, que teve na religião católica a pedra basilar do sistema que integrava. Neste sistema, Deus e o demônio ocupavam posição de destaque e — aliados à empresa expansionista portuguesa"' — explicavam desde as grandes descobertas até questões de virtude e pecado23. O universo mental do homem colonial era constituído por idéias fantasiosas e primitivas que misturavam o real e um imaginário povoado de monstros e demônios, onde a feitiçaria, o curandeirismo e o exorcismo da igreja não apenas resolviam os problemas da vida cotidiana, mas também ajudavam o colono a ajustar-se a seu meio e a construir sua identidade. O Brasil colonial vai absorver esse universo imaginário, trans­ formá-lo ou adaptá-lo à sua realidade. A vida intelectual da colônia começa a se esboçar na segunda metade do século XVI, baseada no ensino humanístico dos Jesuítas, que por sua vez refletia a outra face do universo mental português, mais ligado às correntes tridentinas que ao pensamento renascentista. Wilson Martins considera o ensino humanístico jesuítico, que rejeitava tudo o que era profano, uma grande contradição interior do ‘renascentismo’ jesuítico, que começava por repudiar a própria razão de ser do movimento de idéias conhecido por esse nome . Para ele, a Contra-Reforma do século XVI é, em certos aspectos, anti-renascennsta e a cultura intelectual dos jesuítas medievalistas representou mais um prolongamento do passado que um esforço de integração com o presente e de assimilação do pensamento moderno. Ao longo do século XV III, apesar da laicização resultante da crise mental causa a pela reforma pombalina e do surgimento do sentimento de emancipação, o


Painéis atribuídos a João de Souza, desaparecidos por ocasião do incêndio que em 1959 destruiu o antigo Seminário da Lapa do Desterro. Segunda metade do século XVIII.

ambiente social e cultural da colônia continuará a ser totalmente dominado pela Igreja, desde "o controle quotidiano, tentacular, intersticial de tudo que se faz na vida profana... até a temática das artes”25. São significativos a ausência de pintura de gênero no período colonial e o fato dos retratos, apesar de numerosos, restringirem-se a membros da família real portuguesa, autoridades civis e eclesiásticas e membros importantes ou grandes benfeitores das diversas irmandades ou ordens terceiras26. A pressão colonialista e a repressão cultural atuaram de maneira decisiva sobre os primeiros protagonistas de nossa Historia da Arte e de certa forma inibiram a reutilização do seu universo imaginário, rico, porém restrito e diferente daquele vivido pelo homem europeu, diretamente afetado pela crise religiosa do século XVI que influiu na sua relação com o Universo na medida em que conquistava maior autonomia com relação à razão divina. Assim sendo, a relação dos mestres pintores setecentistas com sua clientela - a Igreja e o Estado - será, de modo geral, de submissão, dificultando o desenvolvimento de sua sensibilidade artística, de sua individualidade.


(acima) “Cristo na Casa de Simão”. Óleo s/ madeira. Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo. Segunda metade/final do século XVIII, Autoria não identificada.

Modelo: Cornelius Danckertz. Het Niewe Verbondt, Amsterdã. 1648. /.

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Na Europa do século XVI também havia o controle sobre a criação, porém o artista tinha suficiente liberdade artística para criar e conservar em sua obra o que Francastel chama de “vestígio do debate’” ’ . Era comum ainda no século XVII a encomenda de obras de arte com especificações bem definidas (tema, dimensões, iluminação, escala e atitude de personagens), o que, de certa forma, limitava a liberdade do artista. A arte francesa produzida no reinado de Luis XIV, por exemplo, devia obedecer a um deter­ minado padrão de gosto; ao artista, entretanto, era dada a oportunidade de negociar as condições da encomenda, ampliando suas possibilidades de criação. “Toda a arte de Versalhes teve de obedecer a essas leis, e Le Brum muitas vezes forneceu croquis aos artistas, cuja grandeza consistiu em saber interpretá-los.”28 No decorrer do processo colonizador, ao qual aliavam-se Igreja e Estado, foi sentida a necessidade de dar forma aos vocábulos, de “ mostrar” as formas de salvação, os milagres, enfim, torná-los reais. Conseqüentemente, a força da imagem29 será valorizada na medida em que se percebeu nela uma função útil e didática, uma forma prática e eficiente de propaganda missionária que podia atingir até as mentes mais simples. A necessidade de materializar seu discurso evangelizador e doutrinário para alcançar um sentimento de fé, uma dependência espiritual e moral cada vez mais forte, fez com que a Igreja assumisse o principal papel de incentivadora e catalizadora dos meios de expressão artística. Para ilustrar o uso da imagem no século XVIII, transcrevemos abaixo a introdução ao leitor contida no primeiro volume da Histoire Sacrée de la Providence de la Conduite de Dieu Sur les Hommes, publicada em Paris em 1728 e ilustrada com gravuras feitas por Demarne daprés trabalhos de Raphael e outros mestres seus contemporâneos. “Não é necessário se estender muito sobre a utilidade desta coleção. Nem todos podem se aproveitar da leitura da Santa Escritura: não é mesmo conveniente que todos, indistintamente, a leiam. Porém todos, dos mais ignorantes aos mais inteligentes, até mesmo as crianças, podem aprender aqui sem saberem ler ou sem serem capazes de reflexão antes que a maturidade os permita, podem se distrair com as mais severas verdades e se nutrir através dos olhos, ao contrário daqueles que de outra maneira podem rejeitar; um espírito sem estudo ou uma criança não serão capazes de tal porque as amenidades e os encantos da gravura se tornam um divertimento e um prazer. Este é o recurso deste livro para esse tipo de pessoa e para aqueles que são responsáveis por sua instrução e sua educação.”

A Transposição dos Modelos Europeus

A cópia de obras de arte tornou-se prática comum na Europa com a difusão da técnica da gravura. Portugal não fugiu à regra. Durante o século XVI, por exemplo, estampas flamengas e italianas eram comumente utilizadas pelos pintores portugueses. No processo de reprodução havia a-intenção de seguir o modelo o mais fielmente possível,


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inclusive porque a capacidade dos artistas também era medida pelo grau de perfeição da cópia30. Neste sentido, pode-se fazer um paralelo com a pintura religiosa do Rio de Janeiro colonial. Como já foi dito, apesar do uso de modelos durante este período ser prática recorrente nas artes plásticas31, a forma como esses modelos foram absorvidos pressupõe uma tendência a copiá-los com maior rigor. C om isto os nossos mestres procuraram conquistar uma “erudição” que lhes era essencial no convívio mais próximo com aqueles que estabeleciam os padrões estéticos. O processo e a técnica de transposição desses modelos evidencia que os mestres pintores cariocas eram, de um modo geral, mais (re)produtores de formas e menos criadores de Forma - Forma aqui entendida, de acordo com conceituação de Francastel, não como objeto mas como estrutura de um pensamento imaginário a partir do qual os artistas organizam diferentes matérias32. O produto final deste processo, entretanto, apresentará variações, dependendo da habilidade do copista, da sua capacidade de absorver o sistema de reprodução da imagem de forma mais ou menos individualizada, como será visto adiante. Partindo dessas observações, questiona-se a propriedade ou não de se classificar a pintura desse período de “barroca” ou “rococó” , ou de se afirmar que recebeu esta ou aquela “influência”. A classificação estilística da produção pictórica colonial tem sido recurso utilizado para facilitar o grupamento de obras com as mesmas características formais sem considerar que estilo pode ir além e ser “...a com binação de elementos formais e temáticos da imagem através da qual os homens exprimem a forma como vivenciam suas ligações com as condições de sua existência”33. E as palavras “ barroco”, “rococó” ou “clássico estão carregadas de um sentido que identifica um a cultura, uma nova mentali­ dade não assimilada na sua totalidade pelo homem colonial. Por outro lado, influência é o resultado da ação que uma obra ou o estilo de um pintor exerce sobre outro, abrindo seus horizontes para novas configurações da imagem, possibilitando um a criação original. Apesar da maioria das pinturas pesquisadas terem sofrido a interferência de sérias modificações em decorrência de limpezas e restaurações pouco criteriosas, muitas mantiveram características da pintura original que permitem uma análise. Ao longo do século XVIII encontraremos no Rio de Janeiro pinturas com influência principalmente flamenga, italiana e espanhola, seguindo a preferência, às vezes com certo atraso, do gosto português. A Ordem Terceira de N ossa Senhora do Carmo possui um conjunto expressivo de 16 painéis que foram copiados de gravuras flamengas do final do século XVI e italianas do início do século X V II34, transpostas para a tela à maneira da pintura maneirista e barroca italiana33. O Lava-Pés, por exemplo, é tido como um dos raros exemplos (juntamente com o Cristo da Coluna., do Convento de Santa Teresa) da pintura claro-escuro de Caravaggio36. Entretanto, apesar da inegável qualidade da pintura executada pelo mestre anônimo do Carmo, o Lava-Pés é apenas uma cópia bem reso vi a de uma imagem e não o resultado da influência, na verdadeira acepção da palavra, do mestre italiano. Da mesma forma, a M adalena (ou Cristo se despede da Virgem)” , outro


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painel do mesmo conjunto, misto da “influência’ da arte barroca italiana do século XVI e da pintura espanhola do século XVII, que aparece na fisionomia “murilesca” de algumas figuras femininas que compõem a cena. Os painéis da Ordem Terceira, cujo tema principal é a vida de Cristo, ainda não tiveram sua autoria determinada. Hannah Levy levanta a possibilidade de serem provenientes de um atelier espanhol, mas também podem ter sido executados por pintor ou pintores locais com orientação de um mestre europeu. Talvez fosse possível agrupá-los por “características estilísticas” , tomando como exemplo aqueles acima tratados. En­ tretanto, a restauração em alguns casos foi tão desastrosa que poderia nos levar a falsos caminhos. Esse grupo de 16 pinturas também se distingue porque grande parte de seus modelos foi identificada, permitindo uma análise comparativa. Cristo na Casa de Sim ãoé o que poderiamos chamar de uma cópia fiel de gravura na obra HetNiewe Verbondt, editada por Cornelius Danckertz, Amsterdã, 1648. As modificações limitam-se à transformação de um personagem masculino em uma figura de mulher e a diferenças nas fisionomias em geral. Quem, contudo, pode afirmar que uma barba mais curta, um rosto mais jovem ou mesmo um gesto modificado não fossem fruto da “criatividade” ou irresponsabilidade de um restaurador? É importante registrar que, no confronto entre o painel Jesus fa la aos Apóstolos sobre a Ruína de Jerusalém e uma antiga fotografia do mesmo pertencente ao arquivo da SPHAN, pode-se constatar alterações fisionômicas em todas as figuras e na posição de uma delas38. Outra variação é a cópia simplificada dos modelos. Dois exemplos interes­ santes são A Tentação do Deserto e Expulsão dos Vendilhões do Templo, cujos modelos foram tirados da obra Vita D .N . Iesu Christi, de Bartholomaeum Ricciu, S.J., Roma, 1607. Em ambos os casos o pintor se restringiu a copiar somente dois terços do modelo: eliminou edificações ou detalhes arquitetônicos perspectivados e a paisagem, retratando, porém, fielmente, a fisionomia das figuras. Quanto à pintura de perspectiva arquitetônica típica da arte decorativa barroca italiana, foi introduzida no Brasil pelo pintor português Caetano da Costa Coelho, que executou nesta técnica o forro da Igreja de São Francisco da Penitência, entre 17321743 (vide nota n° 17). Esta obra tem as características da pintura de perspectiva de Portugal, que privilegia os elementos arquitetônicos, exuberantes e trabalhados com densidade, não resolvendo, porém, o centro. A tradição da pintura de perspectiva aérea italiana trata a parte central dos forros de suas igrejas de modo a causar o impacto de um espaço que se abre ou se rompe para alcançar o ceu. Apesar dessa técnica - bastante difundida em outras regiões da colônia - ter sido introduzida no Brasil através do Rio de Janeiro, é no mínimo curioso ser esta a única pintura do gênero de que se tem conhecimento nesta cidade no período. O único outro exemplo e tardio e data aproxi­ madamente de 1855: o forro da Sala do Coro do Convento de Santa Teresa, onde estão representados, em uma balaustrada decorada com guirlandas e rocalhas tardias, os Doutores da Igreja.


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Reforçando a tese de que a arte desenvolvida no Rio de Janeiro sofreu, de forma mais incisiva que outras regiões, a imposição dos padrões estéticos europeus, poderse-ia imaginar aqui também uma possível ligação com as novas tendências surgidas em Portugal na segunda metade do século XVIII e que irão se refletir de forma mais decisiva na arte produzida na capital da colônia. Justamente neste período ...nas igrejas recons­ truídas em Lisboa após o terremoto, a decoração de teto tomaria outros rumos, desapare­ cendo progressivamente o gosto das arquiteturas perspectivadas, substituídas por medalhões ou painéis emoldurados, anunciadores do neo-classicismo” w. Coincidentemente, o teto da Igreja de São Francisco da Penitência é anterior a 1755. O s exemplos sucedem-se e a qualidade da cópia dependerá da maior ou menor habilidade técnica do pintor-artesão. Algumas vezes o tema será tratado de forma contida; os detalhes serão trabalhados com o preciosismo de um bom artesão que copia aplicadamente o modelo que lhe foi apresentado, como é o caso de algumas telas do conjunto de pinturas da Igreja de Nossa Senhora do Carm o da Lapa do Desterro, todas indistintamente atribuídas ao mestre-pintor carioca João de Souza. Quando não cabe o preciosismo do detalhe e o essencial é transmitir um estado de êxtase, dar expressividade a sentimentos de dor e enlêvo, a cópia torna-se mais difícil. Em a Transverberação de Santa Teresa, que faz parte desse mesmo conjunto, o pintor, ao tentar reproduzir a obra-prima de Bernini, divulgada através de gravuras40, procura seguir o mais Fielmente possível seu modelo. Entretanto, diferentemente do Mestre anônimo da Ordem Terceira do Carmo, consegue apenas revelar uma ingenuidade latente e ausência de um mínimo de sofisticação técnica, perceptíveis pela mediocridade do resultado final - uma cópia de qualidade duvidosa. A qualidade da cópia também dependerá da capacidade de o pintor absorver sistemas de certa forma distintos de reprodução da imagem. São ilustrativos alguns trabalhos de José de Oliveira Rosa, o Mestre Rosa, que viveu no Rio de Janeiro entre 16901769. Dentre os que sobreviveram até os dias atuais, três foram executados no ano de sua morte. São datados e assinados, fato excepcional da nossa pintura colonial: Visão de São Bernardo e Santa Bárbara, que decoram a Capela Abacial das Relíquias da Igreja do Mosteiro de São Bento, e o Retrato de M adre Jacinto, pertencente ao Convento das Carmelitas Descalças, em Santa Teresa. As duas primeiras, provavelmente executadas a partir de um modelo for­ necido pelos beneditinos, revelam uma pintura rica em movimento ,e cor. Apesar da temática barroca, possuem o espírito do estilo rococó, seja na composição das figuras, na graciosidade e leveza dos movimentos, nas cores claras e radiosas, na expressão suave e mesmo alegre de algumas figuras. São pinturas pioneiras e exceções na época em que foram executadas, pois antecipavam uma tendência que iria predominar no Rio de Janeiro no final do século, quando começaram a despontar outras pinturas mais leves, de “espírito” rococó algumas e clássico outras. Em contrapartida, o Retrato de M adre Jacin ta executado no seu leito de morte e extremamente contido - linhas rígidas, cores escuras - denunciando que essa disparidade pode ser conseqüência da necessidade de fazer o retrato a partir da lembrança



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ou da figura propriamente dita. N ão se fará aqui um estudo mais aprofundado do retrato colonial41; pretende-se apenas mostrar diferenças na obra de um mesmo mestre-pintor, que certamente teve alguma formação artística, mas obteve resultados diametralmente opostos quando não se utilizou plenamente do sistema vigente de reprodução da imagem. Com o contraponto, e para concluir esta questão, faz-se necessária uma referência à obra sacra atribuída ao pintor e cenógrafo Leandro Joaquim , natural do interior do Rio de Janeiro e falecido em 179842, mais conhecido pelos painéis elípticos com vistas do Rio, que lhe foram encomendados para decorar os pavilhões do Passeio Público, concluído em 1783. De sua obra religiosa restaram cinco pinturas: N . Sra. de Belém, São Januário e São João Batista, que pertenceram à antiga Igreja de São Sebastião43, situada originalmente no morro do Castelo; N .Sra. da Conceição e N .Sra. da Conceição e Boa Morte, da antiga Igreja do Hospício, hoje de N.Sra. da Conceição e Boa M orte. D e um modo geral, são reproduções fracas, com figuras estereotipadas, pouco expressivas, algumas com influência italiana e outras inspiradas na representação de madonas espanholas do século XVII, como a sua N .Sra. da Conceição. Entretanto, Leandro Joaquim difere de seus contemporâneos pela forma até certo ponto singular dentro do panorama da pintura colonial no Rio de Janeiro - como interpretou alguns de seus modelos, religiosos ou não, deixando transparecer uma sensibilidade mais individual na apreensão de seu mundo. Em sua obra religiosa, a Nossa Senhora da Conceição se destaca, não pela composição, movimento ou colorido; esses aspectos formais do modelo original Leandro Joaquim soube reproduzir adequadamente. É sobretudo na maneira mais pessoal de representar a madona e os querubins que ele difere dos demais de sua época. Além de dotar as figuras de uma tipologia nativa, interpreta a Virgem de forma pouco europeizada, como em nenhuma outra pintura desse período no Rio. Quanto aos painéis com vistas do Rio, é de se supor que foram produzidos a partir de uma encomenda oficial, que esta encomenda determinou a paisagem e seu respectivo tema e que Leandro Joaquim se utilizou de algum tipo de modelo, provavel­ mente a cartografia da cidade, pois a pintura a plein a ir é altamente improvável naquela época. Mesmo assim, o artista conseguiu ir além, criar e transpor para a tela uma inusitada interpretação da cidade, ressaltando com ingenuidade as atividades cotidianas de seus habitantes. Com Leandro Joaquim percebe-se com maior clareza as indicações de mudança no estatuto do pintor e no significado da arte no Brasil colonial. Esse processo foi descontínuo em relação à Europa e exemplos pontuais seriam as pinturas assinadas de José de Oliveira Rosa ou as atividades de Manoel da Cunha na sua oficina. Os sinais da transformação se reforçam com a volta da Europa de Manoel Dias de Oliveira e se so ídificam no decorrer do século XIX, a partir da interferência da Missão Artística rrancesa. Cabe ressaltar que a pintura não esteve sozinha neste processo e que dele igualmente participaram escultores, mestres imaginários, arquitetos e engenheiros.


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Conclusão Predominou no Rio de Janeiro, ao longo do século XVIII, uma tendência a seguir uma estética formal, sóbria na composição e no colorido, para produzir uma obra erudita que copiasse da melhor forma possível o modelo imposto. A ruptura com o padrão estético do colonizador foi um processo longo e difícil. Não se encerrou no século XVIII e pode mesmo ser cotejado com os processos de emancipação política e da conscientização dos direitos individuais e da coletividade, que se vislumbram em outras regiões neste período. Nas palavras de Américo Jacobina Lacombe, a Conjuração do Rio de Janeiro, ocorrida no final do século, 'de todos os movimentos nativistas conspiratórios precursores da Independência, foi o mais inofensivo do ponto de vista da ameaça à ordem estabelecida”44. Contudo, apesar de todas as limitações que cercaram o trabalho dos mestrespintores do Rio colonial, alguns conseguiram se sobrepor, mesmo que timidamente, à predominância dos traços com uns resultantes do ensino deficiente ou da desinformação. Certas pinturas podem até ser consideradas expressivas, se tentarmos focalizá-las com o olhar ingênuo do habitante comum do Rio de Janeiro do século XVIII, que provavelmente só conhecia as representações religiosas de missais ou bíblias. As defor­ mações fisionômicas, figuras desproporcionais, perspectivas mal resolvidas ou o di­ namismo contido provavelmente não eram bem percebidos, ou não eram dessa maneira sentidos pela grande maioria da população carioca. Apesar da importância da forma como expressão de uma idéia, o que mais importa aqui é o conteúdo que a imagem em si traduz. Os produtores de imagem foram imaginativos e criativos na medida do possível e a imagem que criavam traduzia sua realidade e a realidade de seus contemporâneos. A partir da segunda metade do século XVIII começam a aparecer sinais de mudança do estilo sóbrio, de características barrocas, para uma pintura mais leve, de tendência decorativa, executada às vezes em telas menores, ovais algumas, dando preferência a modelos com maior harmonia e leveza de formas. O abandono da representação ilusionista por si só já é um indício. M as deve-se registrar que o Rio de Janeiro não conheceu na pintura, de forma abrangente, o estilo rococó, apesar de tão bem representado na talha dos seus monumentos religiosos. N o Convento de Santo Antônio concentram-se alguns dos raros exemplos de pintura decorativa no estilo rococó: no teto da sacristia, painéis de forma irregular com cenas de gênero, rocalhas e guirlandas*5; no teto do Parlatório, pinturas policromadas com elementos decorativos, típicos do rococó. É, entretanto, no final do século XVIII, início do XIX, que se registra a presença de alguns dos precursores da pintura neoclassica e acadêmica que irá se desenvolver ao longo dos oitocentos, como Raimundo da Costa e Silva, Jose Leandro de Carvalho, o já mencionado M anuel Dias de Oliveira e Francisco Pedro do Amaral, entre outros46. Pouco restou da obra atribuída a C osta e Silva: quatro madonas e uma Sagrada Fam ília, que resultam numa pintura firme, bem acabada, preocupada com a perfeição dos detalhes decorativos. As figuras são proporcionais, elegantes, com formas


Raimundo Costa e Silva (atribuído), “A SagradaFamília”. Óleo s/ madeira, final do século XVIII / início XIX. Igreja de São José.

harmoniosas e semblante plácido, predominando colorido suave, cores claras e luminosas. Estilisticamente, a pintura de Raimundo da Costa e Silva poderia ser classificada de rococó, porém já deixando transparecer um gosto mais clássico, com o a Sagrada Fam ília, pintura típica do início do século XIX. José Leandro de Carvalho e Manuel Dias de Oliveira conviveram proximamente e deixaram uma produção com nítidas tendências ao estilo clássico. José Leandro fez estudos de desenho no Rio e pintou, além de vários retratos de D . João VI, cenários para o Teatro de São João e quadros religiosos (inclusive um painel alegórico para o altar da Capela Real que foi obrigado a destruir após a abdicação de D . Pedro I, em 1931, porque tinha como personagens as figuras reais). A pintura de José Leandro é convencional e se equipara à de seu contemporâneo Dias de Oliveira, que também executou pintura alegórica, como a Alegoria a N. Sra. da Conceiçãor ou o Nascimento da princesa M aria da Glórid8. Além disso, foi o responsável pela maior parte da decoração para a recepção oferecida à chegada de D. João. Francisco Pedro do Amaral, que posteriormente tornouse aluno de Debret, terminou por se dedicar à pintura decorativa49. Fez painéis represen­ tando cenas da mitologia greco-romana e cenas de gênero, típicas da pintura pompier. Em 1816, portanto, a Missão Artística Francesa encontrou o terreno prepa­ rado para receber o neoclassicismo e o ensino acadêmico, que marcaram de forma indelével, por todo o século XIX, a pintura no Rio de Janeiro.


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A rigidez dos conceitos e ensinamentos implantados pela Missão encontrou respaldo para se sedimentar numa estrutura política centralizadora e conservadora. Como conseqüência, a liberdade de criação, o “vestígio do debate” continuarão sendo restringidos. No século XV III, o processo de reprodução da imagem na capital da colônia consistia em copiar estampas fornecidas pelo contratador dos serviços ao pintor-artesão. As cópias seguiam fielmente o modelo e a estética colonial se construía a partir da quase absoluta semelhança ao modelo. N o século seguinte esse processo de imitação de certo modo terá continuidade, porém inserido em outro tipo de relação, a relação com o saber acadêmico, ligado ao desenvolvimento de uma perfeição técnica e de um saber instituído e reconhecido pelas instituições ligadas ao ensino artístico e ao Estado. O artista acadêmico se aperfeiçoava na França ou na Itália e produzia uma pintura codificada, baseada nos cânones da pintura clássica. A reprodução da imagem agora se dava a partir da institucionalização de um saber objetivado. A diferença do processo da cópia está em que no sistema acadêmico ela era executada a partir da aquisição de um conhecimento técnico-científico-intelectual, pressuposto indispensável para qualquer aspirante a artista no século X IX , totalmente dispensável ao artista-artesão do século XVIII. Além de permanecer como centro do poder político, o Rio de Janeiro passou, a partir do século X IX , a ser também o centro do ensino artístico do País. Não é de se estranhar, portanto, que, além de difundir seus padrões artísticos para outras regiões, tenha encontrado maiores dificuldades em romper com os cânones acadêmicos, com uma estética baseada na imitação, e acompanhar as transformações ocorridas nas linguagens e no sistema da arte.

Texto elaborado para a pesquisa “O Rio de Janeiro no Processo de Formação Cultural do Brasil Setccentista: Arquitetura, Artes Plásticas e Urbanismo”, realizada com recursos obtidos através da FINEP.

Notas 1. Francastel, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo, Perspectiva, 1973, p. 3.

2. Lobo, Eulália. História do Rio deJaneiro (do capital comercial ao capital industrial ou financeiro). Rio de Janeiro, IBMEC, 1978, vol. 1, p. 17. 3. Como exemplos, a pintura de Ataíde, em Minas; de Rabelo, em Pernambuco; de José Joaquim da Rocha, na Bahia; do Padre Jesuíno do Monte Carmclo, em São Paulo. 4. Sobre pintura colonial em outras regiões ver: Andrade, Mario de. “Padre Jesuíno do Monte Carmelo”. In: Publicação SPHAN, n 14, MEC, 1945. Cardoso, Joaquim. “Notas sobre a antiga pintura religiosa em Pernambuco”. In: Revista SPHAN, n° 3, 1939, pp. 45-62. Dias, Fernando Correia. “Para uma sociologia do Barroco Mineiro”. In: Revista BARROCO, n 1, Belo Horizonte, UFMG, 1969, pp.


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63 . 74 . Jardim, Luis. “A pintura decorativa em algumas igrejas antigas de Minas .

In: Revista SPHAN, n° 3, 1939. Levy, Hannah. “Modelos europeus na pintura colonial”. In: Revista SPHAN, n° 8 , 1944. Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro de. “A pintura de perspectiva em Minas colonial . In: Revista BARROCO, n 10,197879. Idem, “A pintura de Perspectiva em Minas Colonial - Ciclo Rococó . In: Revista BARROCO , no 12, 1982-83. Ott, Carlos. A Escola Bahiana de Pintura (17641850). São Paulo, 1982. 5. Santos, Reynaldo dos. LArt Portugais. Paris, Librairie Plon, 1953. 6 . Santos, Reynaldo dos. Conferências de Arte. Lisboa, 1941 e 1942.

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1

7.

França, José Augusto. Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Livros Horizonte, Lisboa, 1965.

8.

Santos, Reynaldo dos. op.cit., p. 88 , nota n° 5 acima.

9. França, José Augusto, op.cit. 10. Serrão, Vitor. O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses. Lisboa, Imprensa Nacional, 1983. 11 . Carvalho, Anna Maria F. Monteiro de. A Arte Civil de Mestre Valentim: um Programa de Sombra eÁgua Fresca. Tese de Mestrado em Artes Visuais, UFRJ, 1988. 12 . Silva-Nigra, D. Clemente da. Construtores e artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Salvador, Tipografia Beneditina, 1950.

13. Batista, Nair. “Caetano da Costa Coelho e a pintura da Igreja de São Francisco da Penitência”. In: Revista SPHAN, n° 3, 1939. 14. Documentos pertencentes ao arquivo da Santa Casa de Misericórdia. 15. A base deste levantamento foi o dicionário de D. Judite Martins, Artistas e Artífices dos Séculos XVII, XVIII e XIX no Rio de Janeiro, ainda inédito, e cujos originais encontram-se no arquivo da SPHAN; e o Arquivo da Venerável Ordem 1 erceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, guardado sob custódia no Arquivo Geral da Cidade. 16. Denominação dada por Manuel Araújo Porto Alegre aos pintores que trabalharam no Rio de Janeiro do final do século XVII ao início do século XIX. Serve não apenas para facilitar os grupamentos dos pintores e uma classificação mais genérica das pinturas, mas também como tentativa de dar um caráter de arte liberal ao Universo do ofício de pintar do século XVIII. Ou seja, uma tentativa de dignificar a profissão do artista. “Memória sobre a antiga Escola Fluminense de Pintura”. In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 1841, tomo 3, pp. 547-557. I 1

17. Maiores informações sobre a organização profissional dos pintores, ver Levy, Hannah. “A pintura colonial no Rio de Janeiro”. In: Revista SPHAN, n° 6 , 1942.


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18. Moreira de Azevedo. O Rio de Janeiro, sua História, Monumentos, Homens Notáveis, Usos e Curiosidades. Rio de Janeiro, Garnier, 1877. 19. As primeiras referências sobre a Aula Régia de Desenho e Figura foram levantadas por Francisco Marques dos Santos. Ver “O ambiente artístico fluminense à chegada da Missão Francesa em 1816”. In: Revista SPHAN, n° 5, 1941. 20 . Idem, ibidem.

2 1. Mello e Souza, Laura de. O diabo e a terra de Santa Cruz:feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1986, pp. 84-85. 22. Havia na política expansionista portuguesa a justificativa implícita de que a descoberta de novas terras era desejo de Deus para difundir a fé cristã e aumentar o número de fiéis e, acrescentamos, para beneficiar os cofres reais. Isto fica claro desde o início, conforme as palavras do Padre Manuel da Nóbrega, em seu “plano de colonização”: “...sujeitando-se o gentio... a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S. A. terá muita renda nesta terra...”. Transcrito por Baeta Neves, Luiz Felipe em O Combate aos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1978, p. 158. 23. Sobre a originalidade da cristandade e a natureza da religiosidade coloniais ver Hoonaert, “A cristandade durante a primeira época colonial”, In: Hoonaert et alii. História da Igreja no Brasil Petrópolis, Vozes. 24. Martins, Wilson. História da Inteligência no Brasil São Paulo, Cultrix, 1977, vol. 1, pp. 13-14. 25. Baeta Neves, op.cit., p. 11. 26. Levy, H. op.cit., nota 4 acima. 27. Francastel, P. op.cit., pp. 26-27. 28. Wilhelm, Jacques. Paris no tempo do Rei Sol 1660/1715. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 201. 29. Ver Argan, Giulio Cario. “La Fonction des Images”. In: UEuropedes Capitales, 1600-1700. Skira, 1964, pp. 21-24. 30. Serrão, V. op.cit. 31. O uso de modelos tinha também um aspecto prático pois supria as deficiências técnicas e de conhecimento da iconografia das diversas Ordens e Irmandades religiosas, por parte do pintor. 32. Francastel, P. op.cit. 33. Hadjinicolaou, Nicos. “L’Objet de Ia discipline de 1’histoire de 1’art e le temps /L-ITiícmiredesarts”. In: La Sociologie de IArt etsa Vocation Interdisciplinaire. p. 44.


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34. Treze estampas cjue serviram de modelo para esse conjunto foram identificadas por Hanna Levy, op.cit. nota n° 4 acima. Ver também Silva, Áurea Pereira da. “Notas sobre a influência da gravura flamenga na pintura colonial do Rio de Janeiro”. In: Revista BARROCO, n° 10, 1978/79. 35. No início do século XVI a arte italiana chega a Portugal através de Flandres, firmando-se em meados do século, sob a égide do mancirismo internacional. Na segunda metade do século, com o intercâmbio de pintores entre Flandres e Portugal, verificar-se-á também a influência da arte flamenga. 36. Barata, Mário. “A pintura barroca italiana e a sua importância para o Brasil”. In: Revista Brasil, Arquitetura Contemporânea, n° 5, Rio de Janeiro, 1955. Trata-se de uma cópia simplificada de uma estampa da Bíblia editada na Antuérpia no final do século XVI, por Joanne Sadeler (ou Sadler), desenhada por Joanne Stradamus e gravada por Philipo Galle. Ver Levy, Hannah, op.cit. nota n° 4 acima. 37. Idem, ibidem. 38. A fotografia da SPHAN não é datada e nem existe menção, no respectivo arquivo, se foi feita antes ou depois da última restauração. 39. Oliveira, Myriam A. Ribeiro de. “A pintura de perspectiva em Minas Colonial”. In: Revista BARROCO, n° 10, UFMG, Belo Horizonte, 1978/79. 40. Como a que executou Mellon no século XVII, reproduzida no Catálogo da exposição LArt du XVIIe Siécle dans les Carmels de France, realizada no Museu do Petit Palais. Paris, Ed. Yves Rocher, 1982. 41. A pintura civil (ou profana) está sendo objeto de outro trabalho. Ver também Levy, H., op.cit., nota no 4 acima. 42. Batista, Nair. “Pintores do Rio de Janeiro Colonial”. In: Revista SPHAN, n° 3, 1939. 43. Segundo Macedo, J. M. de, em Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro. 44. Lacombe, Américo Jacobina. “A Conjuração do Rio de Janeiro”. In: Holanda, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, Difel, 1982, Tomo 1 , vol. 2, p. 406. 45. Painéis de autoria não identificada de meados do XVIII. Pela qualidade da pintura, muito superior a média do período, provavelmente não foram executados por pintor local. Circundam de maneira contrastante os painéis principais do teto, que, ao lado da pintura ilusionista de Caetano da Costa Coelho, se constitui no melhor conjunto de pintura barroca do Rio de Janeiro. 46. Santos, F. M. dos. op.cit., nota n° 14 acima. 47. Museu Nacional de Belas-Artes.


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48. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 49. Como exemplos, duas salas da antiga Biblioteca Real, que em 1818 se localizava no consistório da Igreja da Ordem Terceira do Carmo; todo o andar superior do Palacete da Marquesa de Santos; antigos coches da Casa Imperial.

EL IZ A B ET H C A R B O N E BAEZ i graduada em Museologia e formada pelo Curso de Especialização em H istória da Arte e da Arquitetura no Brasil da PU

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j>k . Foto 1 Thomas Ender, “Primitivo Chafariz do Largo da Carioca”, aquarela e lápis.


M A R T A Q U E IR O G A A M O R O S O A N A S T Á C IO

Arquitetura Civil no Rio de Janeiro Setecentista: Primeiras C onsiderações

Pelas notícias que temos do primeiro núcleo urbano do Rio de Janeiro no Morro do Castelo, ficamos com a impressão de que o crescimento da cidade se deu de maneira quase espontânea e acumulativa, sem obedecer a nenhum plano pré-estabelecido. Ao serem ganhas novas áreas através de aterros da baixada pantanosa, a começar pela área mais próxima à restinga conhecida como Praia de Manoel de Brito, faixa enxuta que ligava os morros de Castelo e São Bento (atual Praça XV de Novembro), procurou-se dar uma ordenação mais regular ao traçado urbano. A presença de engenheiros militares no Rio durante o século XVII, tais como Batista Antonelli, Baccio de Filicaia, Francisco de Frias Mesquita e Michel de Lescolles, leva a pensar na interferência possível destes engenheiros na determinação de diretrizes do desenvolvimento urbano que se processava como resposta ao crescimento econômico e político pelo qual a cidade vinha passando desde sua fundação e que se acelera ao longo do século XVIII. Com a explosão do ouro na província de M inas e sua passagem obrigatória pelo porto do Rio em direção à Metrópole, observa-se neste período uma expansão urbana e sinais de melhoramentos nos equipamentos e edifícios oficiais - primeiros reflexos da importância que o Rio de Janeiro vai adquirindo no panorama do Brasil colonial e que culmina com a transferência da sede do vice-reinado de Salvador para esta cidade em 1763. Neste sentido, um a das obras de maior impacto foi o término da infraestrutura para o abastecimento de água da cidade e a construção dos primeiros chafarizes públicos. Desde a administração de Martim Correia de Sá (1602-1608) era tentado o empreendimento de trazer a água do Rio Carioca, por um aqueduto, até o Morro do Desterro, chegando ao C am po da Ajuda. Durante todo o século XVII, a obra é iniciada e paralisada várias vezes. Só em 1686 a Câmara consegue recursos e manda construir os chamados Arcos Velhos para captar as águas no sopé do M orro do Desterro, levando-as ate o Campo da Ajuda. Já no século X V III, na administração de Ayres de Saldanha (1719-1723), as obras são retomadas com a proposta de levar a água até o Cam po de Santo Antônio, o que acontece em 1723, ano em que foi erigido o primeiro chafariz da cidade, junto à ladeira para o Convento e Igreja de Santo Antônio (Foto 1). N o governo do Conde de Bobadella (1733-1763) há necessidade de reconstruí-lo, o que é feito sob o risco do Brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim, sendo terminado em 1750 sob a forma em que se encontra até hoje. Por outro lado, edifícios públicos foram construídos ou reconstruídos, adquirindo novas proporções. O Paço dos Governadores (Paço Imperial), por exemplo, vai


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instituir uma nova noção de centralidade urbana em torno do Largo do Carmo. Um dos sítios mais antigos da cidade, este Largo foi sendo ganho através de recuos do mar e aterros e preservado pelos padres Carmelitas, que aí fizeram seu comento, impedindo que outras construções fossem erigidas em frente à sua. Neste Largo, nos séculos anteriores, haviam sido instalados os Armazéns Reais, a Casa da Moeda e a Casa de Câmara e Cadeia. Por outro lado, sua localização, entre o mar e o burburinho do comércio da Rua Direita e do Mercado do Peixe, tornava-o ponto nevrálgico da cidade entre as atividades portuárias e comerciais. Reconstruído na gestão do Conde de Bobadella, sob o risco do Brigadeiro Alpoim, o Paço dos Governadores foi terminado em 1743. Segundo Robert Smith ', neste edifício foram usadas pela primeira vez vergas de influência italiana (vergas em arco de círculo). Um quadro de Leandro Joaquim , do final do século XVIII, “ Revista militar no Largo do Carm o” 2 (ver foto na página 195), mostra este prédio depois da reconstrução. Edifício de grandes proporções, de dois pavimentos, onde predominam a horizontalidade e as aberturas, marcado por cunhais empilastrados. N o andar superior, séries de portasjanelas com sacadas independentes e guarda-corpo em ferro. Vergas e sobrevergas em arco abatido com prolongamento das extremidades e ligeira curvatura para cima, produzindo uma linha ondulante (vergas em arbaleta). N o pavimento térreo, portadas com vergas e sobrevergas semelhantes às das portas-janelas. Tem-se notícia de que a portada principal da fachada que dá para o mar é em granito e mármore de lioz. Essas portadas são intercaladas por série de janelas de vergas retas. A fachada que dá para o Largo apresenta um corpo mais alto nascendo do telhado, como uma grande camarinha, com uma série de portas-janelas semelhantes às do primeiro pavimento. A cobertura é composta de telhados independentes, com duas águas perpendiculares à fachada apresentando tacaniça frontal e pináculos de ornamentação. Comparando-o com a construção do outro lado do Largo - o Arco do Teles, um conjunto de três sobrados contíguos, sendo o do meio atravessado por um arco e de propriedade particular de hrancisco 1 eles de Menezes -, não podemos dizer que fique claramente marcada a importância das atividades que abrigava enquanto residência dos governadores (e a partir de 1763 dos vice-reis), Tribunal da Relação e ainda como Fábrica da Moeda. Apenas por alguns detalhes mais destacados, com o o tratamento das portadas e o aparecimento de pináculos de ornamentação, podem os vislumbrar sua relevância. Interessante ter sido do mesmo autor do Paço - o Brigadeiro Alpoim - o projeto do Arco do Teles, provavelmente posterior, o que poderia explicar a semelhança estilística entre as duas construções e o desejo de regularidade’ expresso pelo conjunto. N o governo do vice-rei Luiz de Vasconcellos (1779-1790), foi feita a cons­ trução do cais - projeto do Brigadeiro Jacques Funck - e do novo chafariz de autoria de Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim, e o calçamento parcial do Largo do Carmo. Estes melhoramentos podem ser notados no quadro de Leandro Joaquim já citado, sugerindo uma semelhança de estilo com a Praça do Com ércio em Lisboa.


)to 2 - Sicur Froger, “St Sebasticn Ville Episcopale du Brésil”. Gravura, 1698.

Outro empreendimento notável realizado no governo deste vice-rei foi a obra do Passeio Público3, executado a partir do risco do Mestre Valentim, em local aterrado da Lagoa do Boqueirão. Esta foi a primeira tentativa, de que se tem notícia, de um tratamento paisagístico planejado. O traçado foi reformado por Glaziou na segunda metade do século XIX, restando apenas alguns testemunhos do primitivo: o portão em linhas barrocas, a Fonte do Jacaré, as armas de Luiz de Vasconcellos e as pirâmides. Diante do porte relativo do Paço, bem como dos demais exemplos de arquitetura oficial, surge a pergunta sobre o seu significado, que certamente não corres­ ponde ao pleno sentido de monumento atribuído às construções congêneres européias de um modo geral, de acordo com a reflexão desenvolvida por Giulio Cario Argan no seu livro L 'Europe des Capitales. As fontes iconográficas que permitem uma leitura do desenvolvimento da arquitetura civil seteccntista são escassas. As vistas do Rio de Janeiro estabelecidas entre final do século XVII (Foto 2) e, quase setenta anos depois, em meados do século XVIII (Foto 3), mostram uma cidade que se expande horizontalmente, mas guardando uma massa construída homogênea e de aspecto uniforme. O alinhamento das casas construídas umas junto às outras determinava as vias públicas. O casario era formado por casas terreas e sobrados; entre estes, a maioria apresentava dois pavimentos, com menos freqüencia tres e excepcionalmente quatro. A solução de duas águas era a mais comumente usada, destacando-se aqui um detalhe: muitas vezes as duas águas eram colocadas perpendicularmente a fachada, recorrendo-se, nesses casos, ao uso precoce da tacaniça frontal como uma terceira água, o que difere do padrão luso-brasileiro mais corrente. De outras vezes a solução configurava um telhado de quatro águas, portanto com duas tacaniças - uma frontal e uma posterior. Este recurso revela certa

Foto 3 - Dom Miguel Ângelo Blasco, “Prospectiva da Cidade do Rio de Janeiro”. Desenho a bico de pena e aquarelado.



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astúcia no sentido de diminuir o ponto do telhado em construções que ocupavam, geralmente, lotes estreitos e profundos (ver foto na página 190). Com o detalhes das coberturas observa-se o aparecimento de chaminés, trapeiras e camarinhas. Estas, mais notáveis, variando sua forma desde aguas furtadas c mirantes a “corpos destacados” ocupando por vezes o centro da composição, certamente por influência do gosto clássico de acentuar o eixo de simetria na fachada. N o telhado em três ou quatro águas já descrito, freqüentemente a ca­ marinha, embora acentuando o eixo de simetria, aparece na fachada principal com o aspecto de um corpo montado transversalmente sobre a cobertura. Muitas vezes a própria camarinha (ou mirante) apresenta também uma trapeira. Estas coberturas são ainda complementadas por platibandas beirasobeiras e cimalhas. Neste sentido, a observação de J. Watsh Rodrigues sobre as águas furtadas como soluções usuais nos casos de moradia no Brasil antigo também se aplica mais especificamente ao caso carioca e é comprovada na iconografia do período: “As águas furtadas são bastante visíveis no perfil da cidade antiga. Às vezes amplas, formando um cômodo; outras vezes minúsculas, servindo apenas para arejar o sótão. Também se usou muito, em toda parte, uma construção no telhado, à frente do prédio, em forma de cruz ou de T , de modo a ficar uma de suas partes sobre a fachada, e as demais lateralmente, indo de um lado a outro da casa” 4. As casas térreas exibem uma série de combinações quanto ao número de aberturas nas fachadas e em função do programa atendido: porta e janela, porta e janelas, portas e janelas e ainda séries de portas (3, 4, 3, 6...). Neste último caso, sobretudo nos estabelecimentos comerciais mais modestos que as residências, localizavam-se nos fundos. As variações de composição ficam por conta da centralização ou não da porta e da largura dos vãos. Esses mesmos esquemas se repetem de uma maneira geral no pavimento térreo dos sobrados. Nos pavimentos superiores a maioria das construções apresenta uma série de portas-janelas em número equivalente às aberturas do pavimento térreo, embora se observe igualmente séries de janelas de parapeito e algumas vezes mezaninos. Nas camarinhas e trapeiras a iluminação e a ventilação são asseguradas por janelas, e raramente por portas-janelas, sobretudo no caso das camarinhas. O s tipos de esquadrias mais encontrados são em madeira com folhas justapostas e em treliças (gelosias). O fechamento dos vãos das portas ou das janelas rasgadas era também feito por “folhas cegas”. 0 uso do vidro foi tardio. Poucas construções no Rio de Janeiro o possuíam, assim mesmo só no último quartel do século XVIII. Neste caso as esquadrias eram em madeira e vidro em forma de guilhotina, de origem inglesa, principalmente nas janelas de parapeito. 1 homas Ender , em 1817, anotou dois tipos de muxarabis como sendo os mais comuns no Rio de Janeiro de então. Treliças fixas eram também empregadas tanto em portas de estabelecimentos comerciais como em pavimento térreo de residências (Foto

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O s vãos da janela e portas-janelas recebiam dois tipos de tratamento: ora mados um a um, ora entendidos como conjunto. N o primeiro caso as aberturas - uma uma - eram enquadradas por balcões entalados entre as ombreiras ou sacados. No gundo caso, as aberturas eram reagrupadas em duas ou três e recebiam balcões sacados corridos. Embora o uso do ferro nos guarda-corpos remonte ao século XVII, os modelos lais correntes no século XVIII são executados em madeira. Podemos notar que de uma maneira geral as construções se parecem, sendo ifícil identificar inovações formais de caráter regional. As particularidades devem, porinto, ser percebidas nas soluções adotadas para resolver os detalhes construtivos: a forma os telhados com seus detalhes, os materiais empregados, o desenho das esquadrias... A


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diversidade das construções parece resumir-se a estes detalhes que têm interferência sobretudo ao nível das fachadas. Mais difícil, devido à falta de documentação existente, a análise da evolução das soluções de distribuição adotadas nas plantas das residências setecentistas. Uma distribuição provável e consagrada em estudos mais gerais sobre a arquitetura do período colonial indica que a parte térrea dos sobrados era ocupada com as atividades comerciais, depósito e espaço para acomodar os escravos. Neste pavimento estava também o saguão de entrada e acesso ao pavimento superior, que repetia as compartimentações das casas térreas com a separação de áreas sociais e áreas de intimidade e serviços. Aparentemente as construções maiores rebatiam ou sobrepunham esse esquema das mais simples apresen­ tando apenas maiores dimensões ou maior número de peças. Neste caso aparece o pátio central, garantindo maior aeração, ventilação e iluminação e mais fácil circulação. Um a planta de 1770 executada pelo Brigadeiro Jacques Funk, propondo a ampliação da Casa do Trem (atual Museu Histórico Nacional) e publicada no livro de autoria de Gilberto Ferrez, As cidades de Salvador e Rio de Jan eiro no século XVIII, traz a planta de algumas casas, a julgar terreas, que seriam demolidas para propiciar a ampliação (Foto 5). Por este desenho podemos notar ora um corredor ligando a parte da frente, provavelmente sala de visitas, aos cômodos dos fundos, ora uma circulação que atravessa aposentos enfileirados, provavelmente as alcovas, que ocupam a área intermediária. Estas distribuições confirmam a descrição genérica encontrada na bibliografia sobre o tema.

Foto 5 - Jacques Funck, “Arsenal du Trem a Rio de Janeiro” (trecho), 1770 .


Arquitetura Civil no R io de Ja n e iro Setecentista.

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Há bastante uniform idade nas construções: geralmente são de dois andares, mas a linha se quebra com casas de tres andares e outras que só têm o térreo e mais uma série de ático no telhado. As paredes (...) estão rebocadas e caiadas de branco, são bem construídas com granito; as soleiras, ombreiras, vergas, são de granito trazido da Bahia (sic) prontas para uso; os telhados são unicamente feitos de telha canal. O andar térreo é, em geral, ocupado por lojas e depósitos de firmas atacadistas, o 2 e 3 pavimentos, quando existentes, pelos cômodos da família, que têm acesso por um comprido corredor no térreo....” 6 Nesta paisagem urbana construída anonimamente, certas construções cha­ mam atenção por seu volume m aior ou por formas diferentes. Uma série de vistas do Rio de Janeiro entre o final do século XVIII e as primeiras décadas de século X IX mostra algumas destas construções notáveis. Uma pintura da Lagoa do Boqueirão antes de ser feito o Passeio Público, de provável autoria de Leandro Joaquim , mostra uma dessas construções complexas (ver foto na página 196): um conjunto formado por três partes distintas, mas interligadas. A primeira, uma edificação dotada de uma cobertura de duas águas, parece destinada a abrigar escravos ou servir com o espaço de atividades de serviço. A segunda, composta por um grande casarão com um corpo central assobradado e dois corpos simétricos, chama a atenção em oposição à precedente, justamente pela composição regular e mais elaborada, deixando perceber também a sua utilização. Aqui, ao contrário de portas em séries, uma única portada guarnecida de sobreverga permite o acesso ao prédio, marcando ao mesmo tempo o eixo de simetria e enobrecendo a fachada. O universo familiar e doméstico assim resguardado de eventuais olhares externos, abre-se no entanto no andar superior por meio de três portas-janelas com sacadas independentes e guarda-corpo de ferro. Esta solução reforça a privacidade familiar e permite que a paisagem seja desfrutada a distância pelos moradores. A terceira parte do conjunto é constituída por um extenso muro que apresenta curiosas aberturas e deixa entrever uma área verde, provavelmente os quintais. A partir das obras do Passeio Público (1779-1783), esta zona da cidade sofre profundas modificações e - antes que a área de São Cristovão seja rapidamente urbanizada depois da instalação da corte na Q uinta da Boa Vista, no início do século XIX -é certamente nesta estreita faixa de terra, entre os novos jardins e a Igreja da Glória, que se constroem algumas das primeiras residências urbanas de maior vulto. Gravuras de Richard Bate datadas de 1808/1809 mostram a ocupação desta área, onde salientam-se pelo menos duas residências de grande porte, uma das quais a do Commodore Taylor. Estas casas se organizam aparentemente segundo os mesmos princípios do exemplo precedente: um corpo central assobradado que pode estar articulado ora com os espaços verdes de quintais, ora com construções térreas dotadas de uma serie de portas. Mas estas construções também se multiplicam em direção a outros vetores de crescimento. Neste sentido, o caminho de Mata Porcos, o caminho de São Cristovão e o caminho do Engenho Velho em direção ao Rio Com prido, e as imediações da zona portuária na Saúde e Valongo, são pontuados por residências ocupadas por adidos estrangeiros ou por famílias de portugueses abastados - sem que, contudo, possamos afirmar que foram todas construídas no período setecentista.


Foto 6 - T h o m a s Ender, “ Palacete d o C o m e n d a d o r S iq u e ira” , aquarela.

Anos mais tarde, em 1817, Thom as Ender registraria duas dessas residências senhoriais, ambas no caminho de São Cristovão (Foto 6). A primeira apresenta um partido semelhante ao conjunto descrito, com corpo central mais alto ladeado por dois corpos térreos. Esta residência, de propriedade desconhecida, apresenta ainda elementos decora­ tivos mais requintados, como pináculos de ornamentação e cunhais empilastrados. A solução da cobertura também é interessante, com telhado contínuo, completado por três tacaniças Frontais sobre a testada. O outro exemplo registrado por Thomas Ender é o Palacete do Comendador Siqueira, descrito como sendo em M ata Porcos: fachadas marcadas por elementos horizontais e verticais, inclusive cunhais empilastrados em cantaria e pináculo de ornamentação à volta da edificação. O desenho sugere uma planta em “U ” ou “H ” com dois grandes corpos laterais cobertos por duas águas com tacaniça frontal. A planta em ” U , com os dois corpos voltados para a parte dianteira, tem ante­ cedentes portugueses no século XV II; são os solares rurais dos quais servem como exemplo a Casa dos Vales das Flores em Braga e o Solar Mateus próxim o à Vila Real, em Trás os Montes (Fotos 7 e 8). A diferença principal entre os solares portugueses e este exemplo brasileiro está no uso de uma cobertura em uma água sustentada por arcaria, entre os corpos citados, íormando na parte central um corpo mais baixo. N ota-se também uma seqüência de arcos na parte lateral, sendo que alguns íoram fechados, provavelmente, para ampliação de cômodos. Esta solução encontra parentesco com procedimento adotado na Casa do Bispo - construção que também se organiza a partir de uma planta em “U ” e que teve alguns de seus arcos fronteiros e laterais fechados em obras de ampliação e reforma.


Foto 8 - Braga, Casa de Vale das Flores.


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Foto 9 - Thomas F.nder, Casa de Campo do Bispo, Rio Comprido”, aquarela.

Foto 10 - Thom as Ender, “Val-Longo”, aquarela.

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Sobre a Casa do Bispo teríamos a acrescentar que se trata de edificação de meados do século XVI11, realizada sob risco provável do Brigadeiro Alpoim. Neste caso os dois corpos que formam o 1 1 estão voltados para a parte posterior constituindo um pátio interno. Na parte inferior da fachada principal existe um pórtico com sete arcos, sendo o acesso feito por escada tipicamente barroca que abraça os três arcos centrais; acima de cada arco existem portas-janelas, tratadas uma a uma com balcões sacados e peitoris de ferro, sendo as vergas e ombreiras em cantaria. Uma gravura de 1 homas Ender revela a existência de outras dependências - atualmente demolidas - articuladas a este corpo principal: a capela e o avarandado (Foto 9). Cabe ainda assinalar a semelhança deste exemplo carioca com a Casa de Câmara e Cadeia de Mariana - obra também de Alpoim - principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento da escada central. A disposição em planta em ambos os casos guarda igualmente certos parentescos na distribuição dos cômodos, sendo que no caso da edificação de Mariana - talvez por imposição do programa oficial - opera uma supressão do pátio interno. No que diz respeito à área portuária da Saúde e Valongo, são ainda as gravuras de Thomas Ender que permitem uma primeira análise dos exemplos que se destacam na paisagem carioca setecentista. Através de uma gravura datada de 1817 (Foto 10), vemos a Rua do Valongo com a chácara e a pequena capela da Madre de Deus, de propriedade da família de M anoel Pereira Pinto Sayão. Com o se pode ler no documento de partilha dos bens da família, cinqüenta anos depois, “ ... a casa é térrea... formada sobre pilares e frontais de tijolos... com um avarandado com colunas de tijolos e gradil de ferro com três portas e quatro janelas, portais de madeira logo depois do avarandado: ... capelinha ao lado, com sua torre e sino, duas salas, um gabinete, nove quartos, sala de jantar, dispensas, grande cozinha, pátio interior; mais outra varanda ao lado do norte, tudo forrado e assoalhado menos a cozinha” . A casa com alpendres e com capela no fim da varanda é típica no Rio de Janeiro e arredores no século XV III, multiplicando-se nos engenhos e propriedades rurais: Fazenda da Taquara, Engenho D'Água, Capão do Bispo e Fazenda do Viegas, entre outras. São edifícios de grandes proporções, geralmente com telhado em quatro águas. N a fachada principal avarandada, colunas toscanas sustentam o telhado: em alguns casos, esta varanda se prolonga para uma ou duas fachadas laterais. Um elemento marcante na fachada é a escadaria exterior de acesso, também de alvenaria, integrando-se ao conjunto e dando-lhe unidade 8. A planta em forma de polígono fechado freqüentemente desen­ volve-se em volta de um pátio interno, que outras vezes se abre na planta em U já descrita. Tanto a feição do pátio fechado quanto as colunas da fachada traduzem uma linguagem clássica, enquanto o pátio aberto parece evocar a busca do espaço ilimitado barroco. Fazendo parte do conjunto havia sempre uma capela que variava sua posição da seguinte forma: ocupando parte da varanda, como em Engenho D Água, desligada da casa grande mas bem próxima, como na Fazenda do Viegas, e bastante afastada da casa grande, como em Colubandê (neste último exemplo, já apresentando um porte maior com torre, nave, capela-mor e sacristia, tendo um largo pátio à volta).


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Vários aspectos desses exemplos “excepcionais” mereceríam destaque, par­ ticularmente quanto às soluções arquitetônicas adotadas e a introdução de novos elemen­ tos ou filiação a um modelo. Entretanto, numa visão mais referida ao contexto urbano, chama-nos a atenção o fato de que todos esses casarões estão situados fora do núcleo inicial. Esta constatação permite inúmeras interpretações: propriedades com o estas, que denotam pertencerem a pessoas mais abastadas, estão localizadas nos caminhos dos engenhos de produção para o abastecimento da cidade - identificados também como os vetores de crescimento urbano no século XVIII, como já foi assinalado. O aspecto destas construções de maior porte e com um maior número de compartimentos que deixam aparente, em alguns casos, a divisão entre a parte social e a parte de serviços, leva-nos a classificá-las como casas de transição entre urbanas e rurais. No espaço urbano, seu porte as aproxima das construções oficiais, especialmente os palácios e as Casas de Câmara e Cadeia. Se, no entanto, nos reportarmos às construções rurais para classificá-las, seriam facilmente enquadradas em um dos tipos apontados por Joaquim Cardoso no seu trabalho Um tipo de casa rural do antigo Distrito Federal e Estado do Rio, primeira descrição e classificação tipológica das construções rurais da região fluminense. 0 Palacete Siqueira, por exemplo, pertencería ao primeiro grupo descrito como ... edifícios de grandes proporções, corpo de fachadas retangulares, grande número de portas e janelas e apresentando uma planta simétrica em “U ” ou de quadrado”. A ressalva a ser feita seria que neste caso o “U ” se encontra ao contrário, com abertura para a parte posterior. Joaquim Cardoso diz ainda que a filiação provável deste tipo de construção seria a primitiva instalação jesuítica hoje conhecida como Solar do Colégio, em Campo dos Goitacazes. 1 ambém o terceiro grupo de edificações descritas por J. Cardoso naquele estudo se assemelha a algumas daquelas construções: “ ... casas com fachada principal mais cuidada, com a parte central elevada em sobrado e duas alas laterais simétricas. Mais requinte no emprego das esquadrias e melhor acabamento na alvenaria e nos revestimen» tos . Há aparente contradição na escolha de algumas famílias mais abastadas ao se radicarem em locais mais afastados do núcleo, hica-nos, no entanto, a impressão de que no século XVIII morar na cidade não significava prestígio social ou econômico. Segundo John Lu ccock9, viajante inglês do início do século XIX, o centro do Rio de Janeiro era formado por ruas estreitas, escuras, as construções como que amontoadas, muitas de baixa qualidade e freqüentemente ainda aparecendo gelosias e muxara is. A isto somamos a falta de infra-estrutura urbana (esgoto, água, ruas calçadas), q eP^n ^a’ Para seu funcionamento, de mão-de-obra escrava, sofrendo constantemente de grandes dificuldades de abastecimento de víveres. Nem prédios públicos de relevo, nem •f •j S sen lor'a's arquitetura mais eleborada, uma paisagem urbana marcada pela uniformidade das construções civis: o Rio setecentista continua a concentrar no conjunto das construções religiosas tanto os exemplos mais próximos das experiências da metrópole como as que se afastam, sinalizando os grandes gestos de criação local.


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Vale observar, contudo, que esta “ pouca expressividade” da arquitetura civil deve ser enfocada em relação às próprias formas de organização social no período. O investimento construtivo nestes raros “ palácios” e residências apontados revelam uma lenta mutação na maneira de apreender a vida urbana. Esta “simplicidade” construtiva que segue padrões tipológicos pouco variados, e aplicados igualmente nas construções rurais, revela não apenas as dificuldades provenientes da falta de materiais e recursos técnicos; aponta também para as próprias atitudes em relação ao “construir” e “morar”, sobretudo por parte dos colonos até pelo menos meados do século XVIII, particularmente nas cidades. Neste sentido, não pode ser minorado o caráter provisório que persistia na instalação no Brasil de muitos portugueses: grande número daqueles que vinham à Colônia sonhavam em conquistar fortuna e, enriquecidos, voltar à terra natal. Mesmo depois que a arquitetura passou a representar uma nova postura ditada pela intenção de se fixar no Brasil, as exigências de conforto e de qualquer requinte de linguagem decorativa mais erudita só muito aos poucos se impõem. Entendemos, no entanto, baseados nas observações levantadas ao longo deste trabalho, que o século XV III, especialmente o último quartel, é um período importante a se considerar no estudo da evolução da arquitetura no Rio de Janeiro, por se tratar de um momento de afirm ação desta como cidade de relevo no panorama nacional, contribuindo posteriormente para a construção de um novo pensamento que virá confirmar o crescimento cultural da sociedade brasileira.

1. Smith, Robert. “Arquitetura Civil no Período Colonial”, in Revista da SPHAN. 2. Tela original pertencente ao Museu Histórico Nacional. 3. Obra analisada com detalhes no trabalho “A espacialidade do Passeio Público”, de Anna Maria M. de Carvalho, in Revista Gávea n“ 1. 4. Rodrigues, J. W. “A Casa de Moradia do Brasil Antigo”, in Arquitetura CivilI. São Paulo, FAUUSP e MEC-IPHAN, 1975. 5. Artista austríaco que esteve no Rio de Janeiro em 1817. 6. Luccock, John. “Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil” Londres, 1820, tomadas durante uma estada de 10 anos neste país, de 1808 a 1818. 7. História dos Bairros - Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Zona Portuária. Rio de Janeiro. Editora Index, 1987. 8. Cardoso, Joaquim. “Um Certo Tipo de Casa Rural do Antigo Distrito Federal e Estado do Rio de Janeiro”, in Revista da SPHAN, vol. 7, 1943. 9. Op. cit.


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Relação da Documentação Fotográfica

Foto 1 - Thomas Ender, “Primitivo Chafariz do Largo da Carioca”. In Ferrez, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender, 1817, p. 121. Rio de Janeiro, Fundação João Moreira Salles, 1976. Aquarela e lápis, 383x509. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello. Foto 2 - Sieur Froger, “St. Sebastien Ville Episcopale du Brésil”. In Ferrez, Gilberto. A muito leal e heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro - 1565/1965, pp. 22 e 23. Rio de Janeiro, 1965. Gravura feita de um desenho de François Froger e publicada em I698em Paris no livro Relation dtin voyagefait en 1695, I696et 1697 aux Côtes dAJrique, Détroit de Magellan, Brésil, Cayenne..., 110x353. Reprodução fotográfica: Pedro Lobo. Foto 3 - Dom Miguel Ângelo Blasco, “Prospectiva da Cidade do Rio de Janeiro”. In Ferrez, Gilberto. Op. cit. pp. 34 a 37 c. 1760. Vista da parte Norte, na Ilha das Cobras, no baluarte mais chegado a São Bento, da qual se vê diminuir em proporção o seu prospecto até a barra como o risco representa. Elevada por ordem do limo e Exmo Senhor Conde de Bobadela, a quem a Cide. deve a maior pte de sua prente Gra e Magncia. Desenho a bico de pena e aquarelado, 0,670x2470. Original pertencente ao Patrimônio do Exército, Ministério da Guerra. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello. Foto 4 - Thomas Ender, “Muxarabis e Rótulas”. In Ferrez, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender, op. cit., p. 85. Bico de pena aquarelado, 155x91. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello. Foto 5 - Jacques Funck, “Arsenal du Trem a Rio de Janeiro, 1770” (trecho). In Ferrez, Gilberto. As Cidades de Salvador e Rio de Janeiro... op. cit., p. 37. Planta existente na Biblioteca Nacional, 380x480. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello. Foto 6 - rhomas Ender, Palacete do Comendador Siqueira” (em Mata Porcos). In Ferrez, Gilberto. A muito leal... op. cit., p. 79. Aquarela original (201x281) pertencente à Akademie der Bildenden Künste, Viena. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello. Foto 7 - Vila Real, Mateus, Solar de Mateus. In Azevedo, Carlos de. Solares Portugueses, prancha 99. Tiragem limitada de 100 exemplares. Lisboa, Livros Horizonte, 1969. Fotografia do autor. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello. Foto 8 - Braga, Casa de Vale das Flores. In Azevedo, Carlos de. Solares Portugueses, prancha 39, op. cit. Fotografia do autor. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello.


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Foto 9 - Thomas Ender, “Casa de Campo do Bispo, Rio Comprido”. In Ferrez, Gilberto. O Brasil de..., op. cit., p. 149. Aquarela, 192x280. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello. Foto 10 - Thomas Ender, “Val-Longo”. In Ferrez, Gilberto. O Brasil de..., op. cit., p. 79. Aquarela, 195x278. Reprodução fotográfica: Eduardo Mello.

MARTA QUE1ROGA AMOROSO ANASTÁCIO é graduada em Arquitetura pela Faculdade Sarta Úrsula e formada pelo Curso de Espeaahzaçao em Hrscóna da Arte e da Arquiretura no Brasil da PUC/RJ.


Desmond, “Vista do Passeio Público tirada da Igreja da Glória da Outeiro”. Desenho, 1809.


A N N A MARIA F. M O N T E IR O D E CARVALHO

O Passeio Público e o Chafariz das Marrecas de M estre Valentim

Um Programa de Sombra e Água Fresca para o Carioca1 “(...) Na Mesopotâmia, o rei representante dos deuses na terra, vivera junto aos imortais, num jardim fabuloso, onde se localizava a Árvore da Vida e a Água da Vida. Seria conveniente não nos esquecermos de que em grego, (parádeisos), fonte primeira de paraíso, significava também jardim. E ao que consta, o Jardim do Éden estava cheio de árvores e fontes (...) Esse Jardim do Éden (Gn. 13, 10; H. 2, 3), simbolizando o máximo de felicidade e sendo equiparado ao Jardim de Deus (Is. 31, 3; Ez. 31, 8-9). Semelhante jardim concretiza os ideais da futura restauração (Ez. 36, 35), da felicidade escatológica, que era considerada como um retorno à bemaventurança perdida nos tempos primordiais.’”

1. Introdução A obra de Valentim da Fonseca e Silva, o mulato Mestre Valentim (c. 1745/ 1813), é reconhecidamente considerada, pela maioria dos estudiosos da cultura brasileira, uma das mais significativas produções artísticas do Rio de Janeiro no século XVIII, período em que a cidade se torna a nova capital do Vice-Reino do Brasil (27 de Janeiro de 1763), a partir da crescente projeção política e econômmica de seu porto - escoadouro natural dos minérios preciosos das Gerais, descobertos ao final do século anterior. Sua produção - de caráter escultórico, arquitetônico e urbanístico - par­ ticipou decisivamente do processo de “civilidade” e de “esclarecimento” da sociedade carioca setecentista e destinou-se quase que exclusivamente às instituições governamentais e laicas, dominantes no período: Valentim “traçou” e executou monumentais obras civis na gestão do quarto vice-rei D. Luiz de Vasconcellos (1779/90), nos principais logradouros públicos da cidade, tais como o Passeio Público, seu primeiro jardim de lazer (1783), os chafarizes das Marrecas (1785), do Lagarto (1786) e da Pirâmide (1789), e ainda a reconstrução do prédio do Recolhimento do Parto, que se incendiara (1789). “ Riscou” e executou monumentais obras de talha e imaginária, lampadários, mobiliários e alfaias, nas mais importantes igrejas do Rio de Janeiro, notadamente nas laicas de Ordens Terceiras, de brancos notáveis (N ossa Senhora do Monte do Carmo; Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte; Mínimos de São Francisco de Paula) e de Irmandades (Príncipe dos Apóstolos São Pedro e Santa Cruz dos Militares, dentre outras) no período de 1773 a 1813. Para


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ordens conventuais, modelou os dois grandes lampadários (1781 /3) da igreja do mosteiro de São Bento e construiu o Chafariz das Saracuras (1795) para o Convento da Ajuda. Empenhamo-nos, neste ensaio, numa investigação histórica e crítica do que consideramos o marco de sua arte civil e que, infelizmente, só a memória recupera: o Passeio Público, descaracterizado em seu traçado original na reforma romântica do paisagista Glaziou (1864) e destituído, ao longo dos anos e de outras reformas, de muitos dos seus elementos construtivos e ornamentais; e o Chafariz das Marrecas, demolido em 1856, por motivo injustificado, quando da reconstrução do Quartel de Polícia no terreno do Quartel dos Granadeiros.

2. Uma Arte como Ofício - Um Ofício com o Arte Nesse Rio de Janeiro do vice-reino, o mulato Valentim, “filho de um fidalgote português contractador de diamantes e de uma crioula natural do Brasil ,' vivia uma situação social de ambigüidade: - pertencia à modesta Irmandade dos Pardos de N ossa Senhora do Rosário e de São Benedito, mas seu trabalho foi praticamente monopolizado por encomendas governamentais e das instituições laicas dominantes; - possuía loja aberta e assinava contratos - era dono da oficina terapêutica mais importante da cidade (local onde também morava), estabelecida à Rua do Sabão, no quarteirão compreendido entre as rua dos Ourives e do Bom Jesus, bem no centro dos interesses comerciais da cidade - quando no Brasil essa sua profissão era exercida, no século XXVIII, por mestiços que na condição de “ infames pela raça”4 não podiam ser patrões; - sua prática profissional indefinia-se tanto na especialização técnica quanto no reconhecimento artístico: seria Valentim um escultor, notadamente na grande estatuária em pedra lavrada e em metal fundido? a ele corriam todos os artistas do Rio de Janeiro, mormente os ourives e lavrantes para obterem desenhos e m oldesde... tudo o que demandava luxo e gosto”,5 relata seu discípulo Simão José de Nazaré a Porto-Alegre, admitindo, talvez, a idéia de concepção na “traça” e no “ risco” de Valentim. Essas profissões vinham já revestidas com a “aura’ de arte, a nível de uma abstração individual, de uma particularização comercial em atelier livre e de um lidar com materiais considerados nobres (pedra e metal) nos principais centros produtores da Europa. O u seria Valentim um artesão, sobretudo em madeira? Pressupondo-se a idéia de habilidade técnica, um entalhador, um mestre conforme consta nos Livros de Receita e Despesa das Congregações, nos recibos que passou por féria e administração nos contratos de sua obra religiosa. Se esta indefinição já existia nas classes dos entalhadores e imaginários portugueses, que apesar de poderem constituir loja estavam rigorosamente submetidos à Bandeira de São José e aos seus regimentos (controlados pela Casa dos Vinte e Quatro, o Grêm io Geral dos Ofícios Mecânicos), ela se acentuava no Brasil Colonial, em regimentos de ofício (quando os havia) pouco rigorosos e em “fluidez na especialização” .7


O Passeio Público e o Chafariz das Marrecas de Mestre Valentim

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- as cartas do vice-rei Vasconcellos dirigidas ao ministro do Real Erário português sucessor de Pombal, Martinho de Melo e Castro,8 referem-se a várias obras públicas, incluindo a do Passeio, sem no entanto mencionar os termos de contratação dos oficiais.'1 E os dísticos inaugurais dos chafarizes que Mestre Valentim construiu foram consagrados ao "povo” na figura de seus benfeitores. N o entanto, no único documento iconográfico de que se tem notícia de Mestre Valentim, o tema da pintura de Francisco Muzzi "Feliz e Pronta Reedificação do Antigo Recolhimento de N. Sra do Parto”, reforçase a ambigüidade: ao figurar o artista à frente de D. Luiz de Vasconcellos no primeiro plano da tela e, ainda por cima, detendo em suas mãos o novo risco de sua autoria do prédio incendiado; contrastando-o pela mulatice, modéstia de atitude e sobriedade das vestes, com a exuberância do gesto de mando e das cores vivas da imagem do vice-rei (ver página 31), aquele pintor italiano (que “ inventou, delineou e assinou seus quadros”) 10 marca em sua tela a ambigüidade social de Valentim: reconhecido já na sua individualidade (numa época em que a retratística no Brasil era vigiada, para não dizer proibida) e na sua dependência. Reconhecido na sua “inteligência” (concepção do risco) mas submetido à corte. Com o bem analisa Damisch, nesse século iluminado pelo Novo Hu­ manismo europeu, na França, Diderot já afirmava que “é a mão-de-obra que faz o artista” e definia: “artista - operários hábeis nas artes mecânicas que requerem inteligência ou em algumas ciências metade práticas, metade especulativas; artesão - operários hábeis nas artes mecânicas que requerem inteligência”.101 Um discurso, como diz Damisch, de atelier e objetivamente astuto, uma vez que o trabalho artístico, ainda que identificado como intelectual, era de natureza artesanal. É que as definições de Diderot expressam um novo sentimento que se inscreve no mundo com a crise do artesanato, indiciando a Revolução Industrial de século XIX. A produção artística tendia a socializar-se, não ser apenas reconhecida como uma elite intelectual. Assim, nivelando o artista ao trabalho do artesão, Diderot teria realçado essa contradição, resultando que “as pertubações impostas à mãode-obra abalam, no artista, menos o artesão do que o intelectual orgânico”.10 ’ A partir de então a arte ocidental ficou marcada pelo sentido de “progresso”, de conquista cultural. “A voz do rei é a voz de D eus” metamorfoseou-se em “A voz do povo é a voz de Deus”. Mas que povo? Certamente a “civilização” racionalizante burguesa e cortesã, e a voz do “Monarca” era a expressão dessa coletividade. Em Portugal, o Iluminismo fora introduzido em meados do século XVIII, por força da obra do escritor e pedagogo Luis Antônio Verney, crítico ferrenho da Monarquia Absoluta e do Santo Ofício. “Eu sim, tive ao princípio particular ordem da corte de iluminar a nossa nação em tudo que pudesse”,11diz o mentor da política esclarecida pombalina, visualmente sentida no plano de reconstrução de Lisboa, arrasada pelo terremoto de 1753. O que não impediu Verney de sofrer a ação despótica do iluminado Ministro todo-poderoso do Rei D. José (1750/77) e continuar confinado na Itália, como nos mostra José Augusto França: “ Pombal (...) ainda menos desejava a presença no reino dos seus próprios mentores, deste Verney sempre arredado em Itália”.12


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E é evidente que essas idéias, mal se esboçavam na Colonia, eram captura­ das pela rigidez do olhar centralizador da metrópole, principalmente no Rio de Janeiro, em sua dependência direta. Assim poder-se-ia explicar o programa iluminista que D. Luiz de Vasconcellos impôs à modesta capital, a fim de torná-la mais atraente aos olhos de uma sociedade com cerca de 43.000 habitantes e que já desenvolvera um certo sentido nativista nos seus dois séculos de aculturação; de uma burguesia “civilizada” cada vez mais dominante e estabelecendo perigosos vínculos financeiros com a aristocracia rural e também com o clero (grandes latifundiários que com a descoberta das Minas haviam sofrido restrições em seus privilégios); de uma comunidade periférica de 24.000 pardos e negros (libertos ou não) vivendo e produzindo em situação de semi ou total m arginalidade.1' Um discurso de sedução e de dominação. Assim poder-se-ia explicar a apropriação da produção mestiça da sociedade carioca - que, como desviante, era ameaçadora - colocando-a a serviço da dominação reinol. Como foi o caso do artista/artesão mulato Mestre Valentim que, preterindo engenheiros militares brancos, diplomados, foi escolhido por D. Luiz de Vasconcellos para levar a cabo sua magna obra de abastecimento de água, saneamento público, lazer e embelezamento urbano do Rio de Janeiro.

3. O Passeio Público e o Chafariz das Marrecas O programa iluminista na capital do vice-reino implantou-se de modo de­ cidido e triunfante com as construções do Passeio Público e de seu contraponto, o Chafariz das Marrecas. O modelo escolhido foi dos mais representativos do ideal de civilidade instituído nas modernas capitais européias da época e já adotado em Lisboa na reforma de 1755: um monumental jardim público, como sinônimo de bom gosto, luxo e entreteni­ mento, e um imponente chafariz para utilização da comunidade. Expressões de uma natureza dominada pela razão e ação do homem.

3.1. A Sacralização de um Espaço Mundano O s elementos visuais que compunham a primitiva forma do Passeio Público - reconstituídos através de relatos, iconografia e dos poucos ornatos de época que ainda lá restam após a reforma de 1864 - definiam-no, em princípio, como um jardim cortesão, mais próximo do gosto aristocrático dos jardins do palácio de Q ueluz14 (Fig. 1) do que o seu congênere lisboeta,1 uma vez que o de Valverde “ (...) não era mais do que uma larga alameda, de uns trezentos metros de comprimento, muito monacal, debaixo da sombra densa de árvores que iam envelhecendo, triste como uma prisão”.16


Figura 1 - Jardins do Palácio Real de Queluz. Paisagista Robillion. Cartão Postal.

Os jardins cortesãos, que dominaram a paisagem das residências palacianas européias dos séculos XVI ao XVIII, originam-se das antigas tradições edênicas orientais dos hortus deliciarum, trazidas pelos romanos para o Ocidente. Retomados no Renasci­ mento sem a função utilitária dos hortus conclususmedievais (mais hortas e pomares), esses jardins de prazer se multiplicaram durante a prática do Estado Absolutista e Cortesão (prin­ cipalmente na França) e caracterizavam-se pela função social de etiqueta, como diz Woodbridge, “forform aloccasions in which conventional behavior is appropriate ”.17Organi­ zados, segundo a estética do barroco, em um tratamento ilusionista e arquitetural sob uma estrutura binária e hierarquizada, esses jardins compunham-se de canteiros e aléias ordenados num traçado geométrico, onde predominava a linha reta, e submetidos a um eixo central, cujo foco era, evidentemente, o palácio e o ponto de fuga, em geral, um esplêndido panorama que ampliava os horizontes da propriedade e o “olhar” do dono (os de Versailles, por exemplo, abriam-se em artérias em direção a Paris). Complementavam sua decoração obras escultóricas e arquitetônicas - figurativas e geométricas - representando símbolos de antigos conhecimentos da História (pirâmides, obeliscos, deuses mitológicos, arcos e arcadas, colunas e colunatas, escadarias, patamares, templos, pavilhões, etc.) e da Natureza (fontes, chafarizes, cascatas e espelhos d agua, grotões, elementos talhados da fauna e da flora locais). Com a prática iluminista de progresso, civilidade, bem-estar, higienização e saúde públicos, esse controle artificial da natureza estendeu-se à cidade, com a construção de jardins e chafarizes para o “povo”, em geral associados a locais de “nobreza”: as residências palacianas e a “ bela’ natureza (mar, bosques, quedas d água, etc.).


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O Passeio Público do Rio de Janeiro, iniciado em 1779, concluído em 1783 e inaugurado em 1785 juntamente com o Chafariz das N/Iarrecas, definiu-se em relação a entrada da Baía de Guanabara, considerado o mais ameno e esplêndido panorama da modesta cidade, na opinião de inúmeros viajantes que nela aportaram desde Tom é de Souza.18 Sem dúvida, uma escolha estratégica19e que a consulta de mapas permite avaliar. Como podemos depreender da cópia da planta de Roscio, um projeto de fortificação da cidade do Rio de Janeiro, datado de 176920 (ver página 13), a zona urbana propriamente dita compunha-se de um quadrilátero limitado ao norte pelo M orro de São Bento (com o mosteiro e a igreja dos beneditinos), ao sul pelo Morro de Santo Antônio (com o convento e as igrejas franciscanas de Santo Antônio e de São Francisco da Penitência) e, ainda, pelo do Castelo (com o colégio e a igreja dos jesuítas e a Igreja de São Sebastião, o padroeiro da cidade), configurando-se estes monumentos um verdadeiro tripé de dominação cultural religiosa da sociedade carioca; a leste pela Baía de Guanabara; e a oeste, pouco mais do que a Rua da Vala (atual Uruguaiana), com duas saídas principais para o interior (zona das chácaras e granjas de abastecimento): uma, pelo caminho de Mata-Porcos (atuais ruas da Carioca e Frei Caneca), nas proximidades do Largo de São Francisco, onde se contrapu­ nham as igrejas da poderosa Ordem 3a de São Francisco de Paula (de brancos notáveis) e da humilde Irmandade do Rosário e São Benedito (dos pretos e pardos); outra, pelo caminho de Mata-Cavalos, passando pelo do Desterro, onde se situavam os conventos da Ajuda (das irmãs Clarissas), dos Barbonos (dos frades barbadinhos) e de Santa Tereza (das irmãs carmelitas, no morro do Desterro), ordens monásticas secundárias de grande prestígio na sociedade local. Do caminho do Desterro partia um, precaríssimo, para a praia e outeiro da Glória, de onde se erguia a igrejinha da poderosa Irmandade de Nossa Senhora da Glória, cujo culto à Assunção da Virgem Maria era um dos focos de maior atração popular da cidade - uma zona de romaria (feita em embarcações pelo mar) já totalmente fora dos limites urbanos. A construção do Passeio Público num terreno no centro ou mais para o interior apresentaria dupla desvantagem: não só idênticas condições de insalubridade e de calor que castigavam a população do quadrilátero - a brisa marítima da tarde, vinda do sudeste, encontrava uma barreira nos morros do Castelo e de Santo Antônio, unidos em sua bases, e as áreas internas eram alagadiças e sem morros próximos para os necessários aterros - como poderia servir de extensão à comunidade dos negros e mulatos, situada nas imediações da Igreja do Rosário e de São Benedito e do Valongo (mercado de escravos), depois do Morro do São Bento. A opção ideal para o local de amenidades do “ público” carioca foi a praia na direção sul (fronteiriça à Igreja da Glória), onde se alcançaria zona mais bela e fresca (não obstante a insalubridade da lagoa pantanosa ali existente) criando-se, também, um ponto de intervenção profana que se contrapunha ao de romaria. A solução foi obtida graças à existência de morrote baixo e de terra, chamado das Mangueiras (um contraforte do M orro do Desteiro), que serviu para aterrar a Lagoa do Boqueirão da Ajuda e as imediações (conforme podemos ver num quadro de época, o óleo do pintor Leandro Joaquim , na página 196).21 J M


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Figura 2 Villard de Honnecourt, “Cabeça Construída”, século XIII.

Verificamos em carta de D. Luiz de Vasconcellos dirigida a Martinho de Melo e Castro, datada de 1781, que o vice-rei faz referências “a um trabalho iniciado com aqueles aterros de 1779 - o Passeio Público” e que dá para entender que Vasconcellos agira com urgência, sem se utilizar dos clássicos pedidos de autorização e de recursos. Segue o texto: “ (...) Segui o meio termo de mandar para a fortaleza da Ilha das Cobras todos esses vadios, que se encontram em algum comisso, fazendo-os trabalhar nos seus offícios; e passando o rendimento e producto das obras que se vendem para um cofre, que mandei estabelecer no calabouço, para se applicarem as importâncias que alli se vão ajuntando às obras públicas d’esta cidade. N o mesmo cofre se guardam as que respeitam os açoutes dos escravos que os seus senhores mandam castigar, afim de se impedir por este modo não só a excessiva paixão com que são punidos, mas ainda de se providenciar a precisão de o serem quando fazem desordens, e se disfarçam por uma indiscreta affeição. Todos estes rendimentos, que se tem apurado por um methodo e escripturação abreviada, se tem consumido nas obras do Passeio Público, a que as pequenas rendas da Camara, e as poucas forças da Fazenda Real não podiam acudir tendo-se conseguido ultimamente diminuírem, com medo d’aquella suave correcção, aspertubações d ’estes indivíduos, dosquaesse vem a tirar uma correspondente satisfação na parte que pode respeitar ao mesmo público".21 (Obs.: grifo nosso.) Instituindo no Calabouço os pagamentos da produção marginal e do açoite à alçada pública, Vasconcellos arrendava e obtinha lucro da mão-de-obra e dava uma satisfação (e um controle) a um determinado público já investido de uma certa consciência desta sua condição. Valentim projetou o Passeio Público na forma de um hexágono irregular, todo cortado por aléias, uma principal reta com vista direta para o fundo e outras secundárias, também retilíneas, num traçado especial de paralelas, perpendiculares e diagonais, perceptível em uma planta de Rivara23. Este traçado geométrico evidenciava


uma arte presa às teorias das proporções construtivas que relacionavam especulações místicas contidas na noção do “ Belo cristão medieval (tornadas técnicas operativas) com a idéia metafísica de “Beleza” enquanto “Verdade” presidindo a realidade, tornada lei mensurável pela consciência humana (da lógica do equilíbrio renascentista) ou deduzida pelo seu espírito (do mundo de incertezas do barroco): inscrevia-se na rede mecânica da figuração humana contida no grande quadrado subdividido de 16 quadrados iguais (do cânone medieval de Villard de Honnecourt), nas figuras do triângulo, quadrado e círculo, consideradas fundamentais nos tratados renascentistas, e projetava-se em linha ascendente para o infinito, a partir do enquadramento entrada do jardim /entrada da baía, conforme podemos demonstrar pela projeção de suas linhas (Fig. 2). É, com o bem diz Panofsky: “(...) a Renascença fundia a interpretação cosmológica da teoria das proporções corrente nos tempos helenísticos e na Idade Média, com a noção clássica de ‘simetria’ como princípio fundamental da perfeição estética. D o mesmo modo que procurou uma síntese entre o espírito místico e racional, entre o neoplatonicismo e o aristotelismo, assim também a teoria das proporções foi interpretada, quer do ponto de vista da cosmologia harmonística, quer da estética normativa. (...) Assim dupla e triplamente santificada (...) a teoria das proporções alcançou um prestígio inaudito na Renascença. (...) As proporções do corpo humano (...) foram reduzidas a princípios aritméticos e geométricos gerais (...); foram vinculadas aos diversos deuses clássicos, de modo que pareciam estar investidas de uma significação arqueológica e histórica, bem como mitológica e astrológica”.24 A exemplo do de Lisboa, o jardim carioca não se abria em passagem natural para o domínio da comunitas. Circundado em três lados por um muro “que de espaço a espaço tem janelas com grades de ferro” ,2S visíveis em litografia de Planitz,26 limitava-se, à entrada, com a Rua do Passeio; à direita, com o Largo da Lapa; e à esquerda, com o Largo da Ajuda, abrindo-se ao fundo para a Baía de Guanabara, num largo terraço, construído em cima de uma barragem de pedra, conforme aquarela de Bates,2 descrita pelo viajante inglês Luccock como elevada cerca de dez pés acima do nível natural”28 e que servia de proteção do jardim contra os efeitos da chuva e das ressacas nas cheias de ventania. O imponente conjunto formado pelo M uro/Portal/Portão, que podemos apreciar na litografia de rh erem in ,'1 denunciava uma estrutura hierarquizada, que marcava a passagem do domtnio do utilitário (espaço da rua, dos escravos e da marginali­ dade) para o domínio do lúdico (espaço utilizado pela elite social) com a idéia do dentro/ fora (uma parede de impermeabilidade que, na Península Ibérica, origina-se das tradições construtivas mozarabes). Relatos de epoca nos dão conta que o portão se abriu para o espaço das comunitas ç.m 1786, por ocasião das festas comemorativas do casamento do príncipe D. João de Portugal com a princesa Carlota Joaquina, filha dos reis de Espanha, conforme consta na Relação dos magníficos carros que se fizeram de arquitetura, perspectiva e fogos, os quais se executaram por ordem do limo. e Exmo. Senhor Luiz de Vasconcellos e Souza, Capitão-General de Mar e Terra e Vice-Rei dos Estados do Brasil, nas Festividades dos desposórios dos Sereníssimos Srs. Infantes de Portugal nesta Cidade, Capital do Rio de Janeiro. (...) N a Praça mais lustrosa e pública do Passeio da cidade, (...)”.30


Figura 3 - K. W. von Thcremin, “ Portão de Entrada do Passeio Público, em 1835”.

O Portal, que ainda lá se encontra, apresenta decoração com elementos arquitetônicos e escultóricos da estética barroca (abstraídos, em regras menos ortodoxas, do Renascimento), dramática e arbitrariamente flexionados, torcidos, aumentados e diminuídos, e articulados em simetria: duas pilastras jônicas de proporções alongadas, talhadas em granito, estão encaixadas em abas de alvenaria, quebradas em flexão e encimadas por urna clássica; complementavam-no duas guaritas em forma de nichos arrematados em contra-curva e pinha e daí seguia o muro, substituído no século XIX por um gradil. O Portão, ainda o primitivo, é todo trabalhado em ferro fundido. Coube a Valentim (tal como o clássico “deus” Mercúrio'1) inaugurar a arte da fundição ornamental no Brasil, executada na C asa do Trem (de materiais bélicos), a partir de melhoramentos nela introduzidos por Vasconcellos, conforme nos dá conta o seu programa de obras públicas32 - o que demonstra já haver um afrouxamento (controlado) do fabrico de metal para outros fins que não só os de artifícios de fogo. Apresenta este portão uma decoração em “estilo rococó”, uma forma marcada pelo sentido de multiplicidade de ritmos e de gradações de intensidade de superfície reunidas em unidade. (Lembrar que no século das Luzes produziu-se no pensamento ocidental europeu uma visão de mundo sem aprioris, marcada pelo sentido de dinam ismo e rransitoriedade progressiva e hamônica da vida, para a qual certamente contribuíram pesquisas científicas como as de Newton - leis da


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gravitação universal; da decomposição do espectro solar; de Rameau - leis da harmonia musical e, ainda, o reconhecimento de valores estéticos em outras culturas que não a ocidental cristianizada - japonism os, chinesices, orientalismos, etc., classificados de “exotismos”.) O traçado ornamental do Portão desenvolve volutas em movimentos de curvas e contra-curvas e torcidos em contornos leves e preciosos (as chamadas rocailles inspiradas num certo tipo de rocha grutesca); utiliza refinadas estilizações florais (palmas e plumas) e remata em perfil à chinesa. Ao centro do remate, em dupla perspectiva para o Chafariz das Marrecas e para a Baía de Guanabara, vê-se com o um olhar de dono “as armas reais com a face para a rua e, no reverso dela, um medalhão em bronze dourado com as soberanas efígies da Rainha N ossa Senhora D. Maria I, e do seu augusto esposo, o Senhor Rei D. Pedro III”.33 (Durante a Regência (1831/1840) foram arrancadas as efígies reais e o escudo do vice-rei, conforme mostra a gravura de Therem in, mais tarde recolocados de maneira invertida, e assim permanecem até hoje (Fig. 3). A escolha da flora que limitava o traçado geométrico das aléias do Passeio minuciosamente descrita em José M ariano,34 parcialmente fixada por Ender (1817/18)35 e Martinet (1845)36 - demonstrava o processo de classificação científica da natureza da visão iluminista: segundo Mariano, o jardim possuía “arborização densa de alto porte, elementos florísticos de sous-bois, e aléias estreitas (...)”; e “obedecia a princípios essenciais para a composição de jardins tropicais” . Garantia-se assim, com a som bra soberba e exuberante das mangueiras, tamarineiros, jaqueiras, jambeiras, fruta-pão,flam boyants, cedros, vinháticos, palmeiras, pinheiros, dos carramanchões com roseiras, passifloras e outras plantas, o parque da civilitascarioca^ numa urbe tão desoladamente desnudada de vegetação em seu espaço comunitário, de ruas, largos e praças excessivamente ensolarados pelo clima tropical. Mas o sentido de ciência que orientava esses princípios, por outro lado, poderia ser contrariado pelo caráter simbólico da tradição construtiva de Valentim, que revestiu a arborização do parque, de acentuado sentido de verticalidade (árvore de “quarenta, cincoenta ou mais palmos de comprimento (—)’ ),' como uma “ imagem que conduz uma vida subterrânea até o céu ; ' e o de acentuada dualidade, pilares símbolos do princípio de masculinidade/feminilidade - força/estabilidade, e que ainda podemos apreciar em duas frondosas mangueiras, geminis que escaparam da reforma de Glaziou. O s elementos visuais da composição do Passeio Público estavam ordenados ao efeito geral do conjunto e induziam a um climax: a com posição era voltada para a força do nascente a partir do eixo central enquadrado pelas pilastras da imponente entrada e por dois marcos divisórios de caráter emblemático - duas pirâmides de base triangular simetricamente colocadas de cada lado ao fim da aléia central, em consonância com o sentido de vei ticalidade e dualidade da arborização (Fig. 4). “ (...) de boa proporção e bem lavradas em granito carioca (escuro), estas pirâmides têm ao centro dois medalhões (rococó) de mármore de liós (claro), colocados um pouco acima de suas bases e que contrastam com as seguintes inscrições: “Ao Amor do Público” e “A Saudade do Rio”, numa ambígua exaltação da memória do vice-rei, do mesmo modo que já fora exaltada a memória real no medalhão do portão. A respeito das formas emblemáticas, cabe aqui uma


FotoAnoa Maria Monteiro de Carvalho. explicação de Panofsky: “ O ano de 1419, como sabemos, assistiu à descoberta da Hieroglyphicaàe Harapolo, e esse fato não apenas suscitou enorme interesse por tudo o que fosse egípcio ou pseudo-egípcio, mas também produziu - ou pelo menos promoveu intensamente - esse espírito ‘emblemático' tão característico dos séculos XVI e XVH”.40 O olhar do espectador percorria esse eixo central formado pela aléia principal e pelas pirâmides em direção ao primeiro foco de suas atenções: um imponente conjunto escultórico e arquitetônico que compunha, como um altar, a chamada “Fonte dos Amores”," que ainda hoje pode ser apreciada: uma cascata formada por uma espécie de outeiro de pedra e vegetação, lembrando uma gruta (rococó), onde se vê um magnífico conjunto, fundido de um só jato em bronze, de dois jacarés entrelaçados,42 aninhados fora da gruta (Fig. 5). A respeito dessa fundição, diz Porto-Alegre.” Valentim modelou aquele grupo de jacarés; e porque falhasse a primeira fundição, foi ele em pessoa a executar a segunda que é o resultado que admiramos hoje”.43 C om o vemos, esse artista a quem coube inaugurar a arte da escultura ornamental fundida no Brasil dominava essa técnica com grande maestria e inventividade. Três garças pousadas e um coqueiro “ de vinte ou mais palmos de altura, todo de ferro, e pintado ao natural,”44 hoje desaparecidos, complemen­ tavam a composição da “ Fonte dos Amores", conforme está relatado em Gonçalves dos Santos e que se pode imaginar na reconstituição de Magalhães Correa43(Fig. 6). As esculturas dos dois jacarés estão representadas segundo as regras do naturalismo ótico, da


r Figura 5 Fonte dos Amores.

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Figura 6 Fonte dos Amores (detalhe).

Figura 7 Fonte do Jardim de Netuno, Palรกcio Real de Queluz, Portugal.


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multiplicidade harmônica dos ritmos e das gradações de superfície (da escola rococó). Mas o símbolo de intermediário (ser que habita o reino entre a Terra e a Água) e de dualidade que reveste esta figuração, demonstra novamente o retorno do olhar ao princípio de masculinidade-feminilidade/estabilidade-força, das antigas tradições construtivas.46Jatos de água correm das mandíbulas dos répteis e do bico das aves numa espécie de tanque em granito carioca, de planta desenvolvendo perfil em inflexões sinuosas e quebradas (rococó), compondo um espelho d ’água (rococó). A cascata é encimada por um frontão em granito carioca, de perfil interrompido e sinuoso (barroco-rococó) tendo ao centro uma carteia rococó em mármore de liós emoldurando as armas do vice-rei. Quatro escadas, dispostas em oposição simétrica, davam acesso a um patamar construído no lado oposto da “Fonte dos Amores’ - o Terraço, que permitia ao espectador desfrutar, com o num clímax (barroco), a visão do infinito (mar e céu) a partir da elevação do ponto de vista. Permanece ainda ali (onde hoje é uma espécie de calçadão dando para a Av. Beira M ar) a outra fonte ornamental do conjunto, a chamada “Bica do Menino’ - com a escultura de um cupido alado,47símbolo andrógino na mitologia clássi­ ca, 48 que numa das mãos segura uma tartaruga vertendo água num tonel e, na outra, uma faixa com o dístico “sou útil ainda brincando’’ (pensamento iluminista que aproxima o fazer artístico do utilitário) (Fig. 7). O Terraço apresentava uma composição arquitetônica e ornamental ade­ quada às amenidades da elite social: convidava à promenade, ao descanso, à conversação e à contemplação do panorama. Pavimentado em “ nobres’ lajotas de mármore e granito, protegido por muretas, tipo parapeito, tinha como encosto bancos de alvenaria revestidos de azulejos com pedra-mármore nos assentos49 (Ver figura na página 82). Dois pavilhões erguiam-se nos dois extremos do terraço, “dois mirantes de figura quadrada com duas portas de cada lado, e todas com vidraça”, 50como nos descreve Gonçalves dos Santos e que precariamente podemos observar na aquarela de Bates. Segundo o relato de Santos, os quatro ângulos dos beirais eram adornados com “pés de ananazes com seus frutos (considerados reais) (barroco) todos de metal sobrepintados que parecem verdadeiros” (regras do naturalismo e do “exotismo” do rococó) e “no alto do mirante, do lado esquerdo, via-se a figura de Apoio tocando lira, e no esquerdo a de Mercúrio com o caduceuV Evidentemente que a escolha iconográfica desses dois símbolos da mitologia clássica não foi aleatória: Apoio, um dos sete metais planetários, Sol, deus da luz e das formas artísticas, e Mercúrio, deus da alquimia, do comércio e da velocidade, “aquele que tangia as almas na luz e nas trevas”, 52 são por Mestre Valentim aproximados e destacados como as mais elevadas figurações do Passeio Público enquanto representações alegóricas e símbolos cons­ trutivos de um fazer que se sente ambiguamente artistico-artesanal. Internamente, os dois pavilhões eram ricamente decorados como pequenos salões rococós: apresentavam uma planta movimentada na forma octogonal, que na visão mística da arte cristã-medieval relacionava-se com a habitação da Virgem - a oitava casa celeste, idéia que na visão metafísica da arte ocidental associou-se à de intermediário entre o quadrado e o círculo; forma essa muito utilizada nos templos católicos renascentistas (na


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rigidez das regras de equilíbrio), maneiristas, barrocos e rococós (mais tensionada, inscrita num retângulo e elipse), observável na forma da igrejinha colonial da Nossa Senhora da Glória do Outeiro, fronteiriça ao Passeio. Segue a descrição dos mirantes, por Gonçalves dos Santos: “O mirante de Apoio tinha o teto forrado de penas, que fingindo flores o ornavam com muita beleza”;54 o de Mercúrio era ornado de conchas artificiosamente reunidas,”55 “e os seus quadros representavam várias oficinas de minerar ouro, diamantes, etc., como também fábricas de açúcar, e de outras indústrias do país”. Em princípio, a visualidade do Passeio Público original estaria de acordo com o sentido de pesquisa, catalogação científica e embelezamento ordenado da natureza - da proposta iluminista -, um processo de racionalização que provocou no mundo o seu desencantamento, marcando-o com o sentido de transitoriedade e de progresso, sus­ ceptível de ser transformado pela ação positiva e regular do homem. Mas, pelas analogias que pudemos estabelecer dessas configurações naturais e das outras geométricas e alegóricas que .vimos, com as representações simbólicas instituídas na metafísica renascentista, maneirista e barroca (por sua vez recorrentes de símbolos construtivos da cosmologia clássica e da mística cristã medieval), diriamos que o espaço do Passeio Público de Mestre Valentim estava marcado pela simultaneidade de duas realidades: a passagem social da comunitas à civilitas se fazia sob o olhar legislador do Estado; a passagem física do mundo lodoso, subterrâneo à superfície da terra, da Terra ao M ar e do M ar ao Céu, se fazia sob o olhar legislador da Eternidade.

Figura 8 - Carl Linde, “Muralha e Terraço do Passeio Público, com os pavilhões do século XIX”, 1860.


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3.2. A Sacralização de um Espaço Utilitário A execução do Passeio Público tornava imperiosa a melhoria do acesso, bem como levar o abastecimento de água as suas fontes e bicas. Fez-se, então, o aproveitamento do caminho do Desterro que, alargado, virou rua, a dos Barbonos (atual Evaristo da Veiga). N o terminal do aqueduto que alimentava de água o convento, o hospício e a capela dos Barbadinhos, foi construído o imponente Chafariz das Marrecas (1785), obra que serviu de contraponto ao plano urbanístico centralizado no monumental jardim, funcionando como um espaço utilitário da comunidade. T odo o excedente de água se destinava ao Passeio Público. Em frente ao chafariz , abriu-se uma rua “com a denominação galante de Belas Noites no princípio, evidentemente porque sua finalidade maior era servir de acesso (ao jardim)”, e mais tarde chamada das “Marrecas”,56 devido às cinco marrequinhas de bronze que serviram de bica às suas fontes. Esta obra não pode mais ser contemplada, uma vez que o chafariz foi demolido em 1896. Para apreciá-lo dispomos das sumárias descrições de Luccock e de Gonçalves dos Santos; de uma litografia de Desmond datada de 1856,s uma aquarela de Pallière (séc. XIX - Fig. 10)58 e dois croquis do historiador Magalhães Corrêa (Fig. 9);59 duas estátuas de bronze (Figs. 11 e 12)Me duas marrequinhas do mesmo metal.61 A distribuição de água do Chafariz das Marrecas ao povo e às fontes do Passeio Público se iniciava com o enchimento num reservatório que, pela gravura de Desmond, supomos ficar sob a cobertura ao término do aqueduto que sangrava dos Arcos Novos, já que não se percebe a existência de um castelo d água.

Figura 9 -

Armando Magalhães Corrêa,

“Chafariz das Marrecas”. Desenho.


Figura 10 - J. A. Pallière, “Chafariz das Marrecas”. Aquarela, 1817.

Classificado por Luccock de “fonte esplêndida, numa cidade tão pouco ornamentada”,62e de “fonte elegante” por Gonçalves dos Santos,6'o chafariz consistia de um paredão semi-circular de fachada côncava, como um fundo de palco, voltado para a Rua das Marrecas, coroado por um alto frontão de perfil barroco e carteia rococó com as armas do vice-rei. Segue a descrição: o paredão tem “cerca de vinte pés de diâmetro, estando a plataforma elevada de seis pés acima do nível da rua” (Luccock). A “corda fica ao correr da rua, onde estão dois tanques para neles beberem as bestas” (Gonçalves dos Santos), “bebedouro de cavalos” um, de “ lavar roupa” outro (Luccock). “N a frente, e acima destes, há um bonito gradil” “e nos pontos em que este encontra a curva de c^da lado, um posto circular para sentinelas” (Luccock). Entre os dois tanques há uma escada de pedras com oito degraus; no plano superior está outro tanque com cinco marrecas de bronze, que nele lançam água pelos bicos. N a fachada desta fonte vê-se uma grande inscrição lapidar, e no alto sobressaem as armas reais” (Gonçalves dos Santos). “ De ambos os lados da frontaria existem pilares quadrados, com cerca de vinte pés de altura” (Luccock), duas pilastras de pedra lavada (...), e sobre as quais estão duas figuras de metal que representam o Caçador Narciso e a Ninfa Eco (Gonçalves dos Santos), ou “a figura de Diana sob o aspecto de


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caçadora, a outra de um homem que, talvez, será a representação de Actéon. Ao redor da curva acham-se bancos de pedra, para acomodação dos que esperam a vez de apanhar água” (Luccock). “De fronte desta fome se abre a Rua das Marrecas, que vai ter em linha reta ao portão do Passeio Público” (Gonçalves dos Santos). Pela gravura de Desmond distingue-se, na parte posterior, em sentido vertical, contrafortes que davam maior rigidez à construção e ainda o posto circular das sentinelas, de que nos fala Luccock. A aquarela de Pallière não abrange toda a obra na sua extensão até os pilares, mas libera um cenário como aquele que, ao vivo, nossos antepas­ sados puderam contemplar: o espaço da comunitas. O segundo croquis de Magalhães Corrêa é mais fiel do que o primeiro às descrições e à aquarela mencionadas, mas em ambas ele acrescenta abas com reixas laterais do chafariz, inspiradas, supom os, nas do conjunto Portal/Portão do Passeio Público. As esculturas que encimam as duas pilastras - representações das divindades mitológicas gregas Eco e Narciso - inauguram, juntamente com as do Passeio Público, o novo olhar da urbe carioca, profanando-a com estatuária pública de caráter não religioso. Evidenciam características formais próprias da grafia plástica valentiana - um estilo híbrido, onde tendências estéticas de um barroco/rococó classicizante (próprio da Escola de Lisboa) e de um sentido místico nativista de mundo se integram organicamente em sua obra, expressando uma cultura heterogênea, inscrita numa duração temporal bem mais longa do que o breve momento da cultura iluminista: modeladas segundo as leis do naturalismo ótico e da multiplicidade de ritmos, a movimentação das massas das duas esculturas se distribui equilibradamente no todo composicional, harmonizando o jogo de tensões provocado pelo peso e volumetria dos corpos exuberantes e pela postura não clássica, denotada nas inflexões da cabeça, do tronco e dos dois membros, à frente, de um lado, na movimentação diagonal do panejamento das vestes e de dois membros atrás, do outro lado (barroco). H á ainda uma evidente preocupação em marcar essas composições com leveza e fluidez, representadas em virtuosismos de detalhamento formal e requintes de cambiantes de superfície (da escala rococó): os cabelos, fartos, têm os fios bem pronunciados caindo lateralmente em ondeado simétrico (classicizante) e em mecha assimétrica sobre ampla testa. O s rostos, embora expressem suavidade fisionômica (classicizante), apresentam feições ligeiramente amulatadas (rococó/nativismo), os olhos (marcados com iris e pupila) são um pouco saltados e caídos, o nariz tem a ponta arrebitada e arredondada, a boca, entreaberta, revela certa sensualidade (notadamente a de Eco); os lábios são cheios e em contorno definido, o inferior bem pronunciado. Os corpos, mal encobertos por panejamentos esvoaçantes (o da ninfa em rendilhados e transparências), revelam, sob a forma roliça dos membros, o gesto delicado. Ainda que alguns autores insistam em ver nessas duas esculturas os deuses clássicos Actéon e Diana Caçadora, ao nosso ver, não ha duvida de que se trata das representações de Eco (pelo atributo da flor de narciso que a ninfa porta numa das mãos) e de Narciso como caçador, estando a escolha iconografica em perfeita coerencia com a narrativa mitológica: segundo a lenda grega, Narciso, caçador dos bosques, era um


Figura 12 - Caçador Narciso. Escultura em metal do Chafariz das Marrecas.

belísssimo jovem, objeto de paixão de numerosas ninfas. A ninfa Eco, perdidamente enamorada, perseguia-o por toda parte, sendo então castigada pela deusa Juno (também apaixonada por Narciso), que a privou da fala, condenando-a a somente repetir a própria voz. Narciso, por sua vez, não conseguindo corresponder a nenhum amor, foi condenado por Nêmesis a adorar a própria imagem. Ao vê-la refletida numa fonte, apaixonou-se e tentou alcançá-la, deixando-se morrer afogado. Em seu lugar nasceu o narciso (flor cor de açafrão e pétalas brancas). Com o vemos, estes dois mitos clássicos são análogos e simbolizam o conflito da duplicação da imagem - uma temática constante na obra de Valentim, conforme vimos no Passeio Público, expressando mais do que uma represen­ tação objetiva da natureza, a incorporação de uma atitude introvertida e ambivalente do seu ser. A marrequinha representa o sentido de catalogação científica da natureza carioca, da proposta iluminista, aliado ao da dualidade do ser que transita as águas e a terra, símbolo da Grande-Mãe, na tradição construtiva mesterel. 64


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A articulação do chafariz no espaço da comunidade, localizado vis-à-vis ao espaço da civilidade carioca e com deform ando um pendent (por suas semelhanças formais com o conjunto Portal/Portão e o jogo de frontalidade dos dois frontões, ambos contendo as Armas Reais), somada às inscrições gravadas na carteia do meio do paredão, definiam, ao nosso ver, o objetivo último desta construção monumental: a consagração dos dois feitos - Passeio Público/Chafariz das Marrecas - ficando o artista esquecido, lembrado apenas na memória popular e na denúncia da contradição cultural (e existencial) que a visualidade de sua obra deixa aparecer. “ Durante o reinado de Maria I e Pedro II/ Secou-se um lago outrora pestífero / E converteu-se em forma de passeio / Repeliram-se as águas do mar por ingente Muralha / Aduziram-se fontes em jorrantes bronzes / Derribados os muros, transformou-se o horto em rua, / Construiram-se casas em admirável simetria. / Ao ViceRei Luiz de Vasconcellos de Souza, sob cujos auspícios foi tudo isso realizado / O povo do Rio de Janeiro, em sinal de grato ânimo / N o dia 31 de Julho de 1785.”6>

Notas 1. Este trabalho baseou-se em parte de nossa Tese de Mestrado, intitulada “A Arte Civil de Mestre Valentim, um Programa de Sombra e de Água Fresca” e defendida na EBA/UFRJ, cm 16 de agosto de 1988. Insere-se ainda na pesquisa “O Rio Setecentista” - PUC/RJ, como parte de um estudo abrangente sobre a obra desse artista. 2. Brandão, Junito dc Souza. Mitologia Grega. Vol. II. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1987, p. 166. 3. Porto-Alegre, Manuel de Araújo. “Iconografia Brasileira”. In Revista do IHGB, Tomo XIX, Rio de Janeiro, 1856, p. 370. Porto-Alegre foi o primeiro biógrafo de Mestre Valentim. Tudo o que escreveu sobre o artista foi a partir do relato de um discípulo de Valentim, Simão José de Nazaré. 4. Bazin, Germain. “ Arquitetos, Artesãos e Operários”. In: A Arquitetura Religiosa Barroca no BrasiL R.J., Ed. Record, 1984, p. 46. 5. Porto-Alegre, Manuel de Araújo. Op. cit. (1856). Obs.: grifo nosso. 6. Como, por exemplo, os regimentos de 1549, 1572 e 1768 de Lisboa, que tratavam especificamente da formação e de produto dos entalhadores. Smith, Robert C. “A Técnica”. In: A Talha em Portugal, Lisboa, Ed. Livros Horizonte Ltda, 1962, pp. 11-13. 7. Machado, Lourival Gomes. “Arquitetura e Artes Plásticas". In: Holanda, Sérgio Buarquc dc. “A Época Colonial”. História da Civilização Brasileira, Tomo I, Vol. 2, S.P. Difusão Editorial S. A. , 1982, p. 108. 8. Sucessor de Pombal no reinado de D. Maria I (1777-1815).


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9. “Novas Culturas. Obras Públicas, Rendas e Despesas do Brasil nos Tempos Coloniaes”. Revistado IHGB, Tomo 51, R.J., 1888, pp. 183 a 194. “Rendimentos dos Empregos e Ofícios das Diversas Repartições do Rio de Janeiro nos Tempos Coloniais”. Revista do IHGB, Tomo 4, 1842, pp. 34-164. 10. Os quadros “Feliz Reconstrução (...)” e seu pendent “Fatal e Rápido Incêndio (...)” contêm a assinatura de Muzzi (c. i. e.) e no verso constava a inscrição: “Muzzi inventou e delineou”. 10.1. Damisch, Hubert. “Artes”. “Artista”. In Artes Tonal/AtonaL Enciclopédia Einaudi, Vol. 3. Lisboa/Porto, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 87. 10.2. Ibidem (1984), p. 87, citando Gramsci. 11. Verney, Luis Antônio. O Verdadeiro Método de Estudar. Porto, Domingos Barreira Editor, s/d, p. 16. 12. França, José Augusto. “Burguesia e Vida Social depois de 1755”. In Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Livros Horizonte, 1965, p. 167. 13. Em 1799, segundo cálculo de Afonso Arinos de Mello Franco. In Levy, Hannah. “A Pintura Colonial do Rio de Janeiro”. Revista do SPHAN, 6. R.J., 1942, p. 21, nota 15. 14. Obra do paisagista e arquiteto francês Robillon, discípulo de Le Nôtre (construtor dos jardins de Versailles). 15. Traçado do arquiteto Reinaldo Manuel (1764). 16. França, José Augusto. A Urbanização da Nova Lisboa”. In: Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Lisboa, Livros Horizonte, 1965, pp. 89-90. 17. Woodbridge, Kenneth. Princely Gardens. New York, Rizzoli International Publications, Inc., 1986, pp. 9-10. 18. Souza, Augusto Fausto de. “A Bahia do Rio de Janeiro”. Revistado IHGB, 1942, pp. 5-41. 19. O escritor Joaquim Manuel de Macedo atribui a escolha do local do Passeio Público aos amores do vice-rei Vasconcellos a uma moça chamada Suzana, moradora das imediações da Lagoa do Boqueirão. In: Um Passeiopela Cidade do Rio de Janeiro, Vol. 1 . R.J. , Ed. Valverde, 1942, pp. 64-73. ' 20. Roscio, Francisco. Plano da Cidade do Rio de Janeiro Capital do Estado do Brazil (1769). Mapoteca do Itamarati. 21. Fazia parte do conjunto de oito ovais encomendados para ornar os dois pavilhões do Passeio Público. Hoje esses quadros pertencem aos acervos do Museu Histórico Nacional e do Museu Nacional de Bclas-Artes.


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22. Rendimentos dos Empregos e Ofícios das Diversas Repartições do Rio de Janeiro nos Tempos Coloniais”. Revista do IHGB, Tomo 4, 1842, p. 165. 23. Ri vara, I.C. Planta do Rio de Janeiro de 1808 ’. Coleção Biblioteca Nacional. 24. Panofsky, Erwin. História da 1eoria das Proporções Humanas como Reflexo da História dos Estilos”. In: Significado nas Artes Visuais. S.P., Ed. Perspectiva S.A.., 1979, fig. 24, pp. 129-131. 25. Santos, Luis Gonçalves dos. Memórias para seriar à História do Reino do BrasiL R.J., Ed. Valverde, 1943, Vol. I, p. 29. 26. Planitz, Barão de. Do álbum 12 Vistas do Rio de Janeiro (1840). Coleção Biblioteca Nacional. 27. Bates, Richard. “The Public Gardens, Convento da Ajuda, Hill of S. Sebastião, Sta. Luzia, Porta do Calabouço as seen from the church of N. Sra. da Glória”. Aquar. color. , cópia da Coleção Biblioteca Nacional. 28. Luccock, John. Notas sobre o Rio deJaneiro epartes meridionais do Brasil - 18081819. S.P., Ed. Liv. Martins, 1942, p. 59. 29. Theremin, Karlvon. Do álbum Saudades do Rio deJaneiro (1835). 30. Edmundo, Luis. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, Vol. I. R.J. , Comp. Ed. Conquista, 1956, p. 222. 31. Brandão, Junito de Souza. Opus cit ( 1987), Vol. II. pp. 196-202. 32. Em Officio de 15 de julho de 1781, enviado a Martinho de Melo e Castro. Revista do IHGB, Tomo 51 (1988), p. 189. 33. Santos, Luis Gonçalves dos. Opus cit. Vol. I (1943), p. 29. 34. Mariano, Josó. O Passeio Público do Rio de Janeiro (T943), pp.44-45. 35. Fcrrez, Gilberto. O velho Rio de Janeiro através das gravuras de Thomas Ender (1955), pp. 73-74. 36. Martinet, Alfred. Brazilpitoresco, histórico e monumental(1845), s/p. 37. Lisboa, Balthazar da Silva. “Continuação da descripção do Rio de Janeiro em contemplação dos objectos naturais de que abunda; tocando-se na formação de suas penhas, árvores, arbustos importantes, descrevendo-se botanicamente os mais úteis”. In: Annaes do Rio deJaneiro. Tomo I, Cap. V. R.J. , Ed. Leitura, 1967, pp. 188 a 289. 38. Bachelard, Gaston. LA ir et les Songes. Paris (1943). In: Cirlot, Juan-Eduardo. “Árvore”. Dicionário de Símbolos. S.P. , Ed. Moraes, 1984, p. 99. 39. Luccock, John. Opus cit. (1942), p. 59.


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40. Panofsky, Erwin. Opus cit. (1979), p. 214. 41. Local atribuído por Macedo aos passeios de D. Luiz de Vasconcellos, na companhia de Valentim, para ver Suzana, uma mocinha carioca, moradora nas imediações, e de quem o vice-rei se enamorara. Macedo, Joaquim Manuel de. Opus cit. (1942), pp. 65 a 73. 42. “A arte de fundição de um só jato era uma técnica tão admirada em Lisboa que, quando da inauguração da primeira escultura pública da cidade, a Estátua Equestre de D. José I consagrou-se mais ao engenheiro fundidor Bartolomeu da Costa do que ao seu escultor Machado de Castro”. In: França, José Augusto. Opus cit. (1965), p. 140. 43. Porto-Alegre, Manuel de Araújo. Op. cit. (1856), p. 373. 44. Santos, Luis Gonçalves de. Op. cit. (1943), p. 29. 45. Corrêa, Armando Magalhães. “Fontes e Chafarizes”. Revista do IHGB, Vol. 170. R.J. , Imprensa Nacional, 1939, p. 22. 46. Schneider, Marins. “El origen musical de los animales-simbolos en la mitologia y la escultura antiguas”. Barcelona (1946). In: Cirlot, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. S.P. , Ed. Moraes, 1984, p. 193. 47. “(...) o menino que hoje lá se encontra é cópia do primeiro (que desaparecera) feita executar, em concurso, pela administração pública”. Porto-Alegre, M. de A. Op. cit. (1856). 48. Brandão, Junito. Op. cit., R.J. (1987), p. 156. 49. Litografia de Desmond (1854). Do álbum Panorama do Rio deJaneiro, número II (1963), prancha 13. 50. Santos, Luis Gonçalves dos. Op. cit. (1943), p. 29. 51. Ibidem, p. 30. 52. Brandão, Junito de Souza. Op. cit. (1987), p. 196. 53. Trabalho de Xavier dos Pássaros, naturalista, diretor da Antiga Casa dos Pássaros. In: Azevedo, Manuel Duarte Moreira de. Op. cit. (1965), p. 144, nota VI. 54. 1 rabalhos do pintor Leandro Joaquim, mencionados pelo viajante inglês John Barrow em A Voyage to Conchinchina in the years 1792 and 1793. Os das vistas da Baía de Guanabara estão, atualmente, nos museus de Belas-Artes e Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Os outros desapareceram. 55. T rabalho de Xavier das Conchas, mencionado em Macedo, Joaquim Manuel de. Op. cit. (1942), pp. 75-77, nota 1. 56 Gerson, Brasil. “O Passeio”. In História das Ruas do Rio. R.J., Livraria Brasiliana Ed. , 1965, p. 303.


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57. Reprodução do álbum Panorama da CidadedoRiodeJaneiro (1963), prancha 9. Original pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional. 58. Pertencente ao Museu Histórico Nacional. 59. Publicadas en Corrêa, Arnando Magalhães. Op. cit. (1939), p. 57 e Mariano Filho, Josó. Os3 Chafarizes deMestre Valentim. R.J. , s/e, 1943, il. 3, p. 17. 60. Encontram-se atualmente no Jardim Botânico. 61. Pertencem ao acervo do Museu da Cidade. 62. Luccock, John. “Rio-de-Janeiro. Instituições e Edifícios Públicos”. In: Op. cit. (1942), pp. 52-53. 63. Santos, Luis Gonçalves dos. Op. cit. (1943), p. 50. 64. Cirlot, Juan-Eduardo. Dicionário deSímbolos (1984), p. 402. 65. Inscrição em latim. Traduzida por Padberg-Drenkpol, in Corrêa, Armando Magalhães. Op. cit., p. 59.

ANNA MARIA FAUSTO M ONTEIRO DE CARVALHO e graduada em Urras pela PUC/RJ, mestra em História Crítica da Arre pela EBA/UFRJ c professora e formada pelo Curso de Especialização em História da Arre e da Arqu.tetura no Brasil da PUC/RJ.



S U E L Y D E G O D O Y W E IS Z

Introdução a um Estudo d a Im aginária Setecentista C arioca

A Função da Imagem Religiosa

A preocupação contra-reformista de convencer e ensinar vai encontrar na imagem o meio eficaz de comunicação e de propaganda missionária. A Igreja Católica, provocada pela iconoclastia luterana, reagiría, a princípio moderadamente e mais tarde de forma retórica e teatral, a favor da imagem religiosa. As polêmicas conseqüentes desta atitude não se restringiríam ao século XVI, perdurando até o XVIII. Fazia-se necessário justificar teoricamente o uso das imagens, já então confirmadas no espetáculo cotidiano das cidades e nos interiores das igrejas. Os tratadistas das primeiras décadas do século XVII, como Vicente Carducho e Francisco Pacheco,1se encarregaram desta teorização, promo­ vendo uma verdadeira revalorização da imagem. A lei cristã admitia seu uso, pois, como expressão de um culto exteriorizado, serviam para a glorificação de Deus, dos santos e da nobreza moral. Para os católicos, os santos eram os intercessores do homem junto a Deus e, quando alguém se prostrava diante da representação de alguma devoção, era como se estivesse prostrando-se diante do Pai. Os jesuítas foram os primeiros a compreender essa sensibilidade popular e a usar a imagem como meio de propaganda para atingir sua meta prioritária, a catequese. A propaganda persuadiría a devoção, e a imagem do santo não exaltaria a figura “ histórica”, mas a virtude de heroísmo que estaria ao alcance de qualquer um. Ela agiria assim sobre as intenções, sobre a imaginação, e não diretamente sobre a ação. A Igreja Católica passou então a utilizar a imagem como instrumento de “educação”. Nesse sentido, a arte foi o seu principal agente, o barroco sua expressão. Giulio Cario Argan,2 em A Europa das Capitais, afirma que a defesa e a revalorização das imagens foi o grande tema do barroco. Ele mostra ainda como a Igreja, consciente do poder persuasivo do belo, encorajou os motivos mais espetaculares da arte, do rito e do culto. É sabido que, no barroco, a retórica persuasiva usa o gesto e o espaço teatral como forma de atingir a imaginação, o sentimento, sem exigir um esforço especulativo ou intelectual. Já a partir do início do século XVII, a forma predileta de representação da imagem religiosa se dá através da exageração. Que outro exemplo seria mais significativo do que o “Êxtase de Santa Tereza”, de Lorenzo Bernini, na Capela Cornaro em Santa Maria das Vitórias? Foi através do teatro, da cena dos espectadores assombrados assistindo o milagre de Santa Tereza, que Bernini encontrou a maneira mais adequada para nos transmitir sua idéia de religião. Entretanto, o impacto maior e causado pelo gesto. É esse


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gesto exuberante que leva A rgan3 a dizer que o “excesso da imagem barroca foi o instrumental criado para causar assombro, romper com o habitual e projetar o pensamento no domínio do possível através da imaginação. Acrescenta-se ainda o poder do simbólico para atingir o espectador através da arte barroca. As alegorias, os êxtases, as revoadas de anjos, os triunfos dos santos e as visões celestiais são representações de idéias e não de fatos reais, o meio encontrado pelo barroco para expressar sua idéia de religião.

A Função Social da Imagem no Rio de Janeiro Setecentista Embora a discussão sobre o conceito de barroco ainda esteja aberta, em geral, aceita-se a idéia de que foi um fenômeno que abrangeu não só a estética como também todas as manifestações da vida do homem europeu e do latino-americano por um longo período da história ocidental. N o Brasil, o barroco está tão estreitamente vinculado à vida colonial que se confunde com ela. Ele representava, além de uma nova ordem plástica, a expressão das características interiores do homem da época, impregnando todas as manifestações da vida cultural, religiosa e social.4 N o Rio de Janeiro, ele foi eficiente no controle indireto de uma sociedade em formação. A cidade era, nessa época, um cenário para o teatro que a Igreja armava e o Estado incentivava. A população participava de suas festas com o espectadora ativa diante de uma cena onde o clero atuava como ator secundário e as imagens das devoções faziam o papel principal. Era em sua homenagem que se promoviam procissões, erguiam-se oratórios nas esquinas, construíam-se igrejas de todo porte e em torno delas girava a vida espiritual e social da colônia. O s viajantes estrangeiros que passaram pela província do Rio de Janeiro durante o século XVIII e meados do X IX são unânimes em comentar o grande número de festas, procissões e comemorações de toda a espécie promovido pela Igreja, sempre ao som de estrondosos foguetes. Chegam mesmo a insinuar que os feriados religiosos eram mais numerosos do que os dias consagrados ao trabalho. O inglês John Barrowf que aqui esteve nos anos de 1792/3, escrevia que dificilmente passava um dia no qual não víamos alguma procissão funerária, ... uma noite sem um santo no calendário, ou a Virgem Maria, cuja imagem é colocada em uma caixa de madeira nas esquinas de cada rua, sendo transportada pela cidade acompanhada de soldados, padres e músicos” . Numa sociedade com uma frágil superestrutura, onde a vida cotidiana era regida pela monotonia, o papel da Igreja colonial ultrapassava sua função primeira, a evangelização. Através do fausto do cerimonial, das encenações teatrais, ela exercia o papel de mantenedora da ordem. O incenso, o badalar incessante dos sinos, os fogos de artifício contribuíam para desviar a mente do universo racional. As expressões dramáticas da Virgem e do Cristo emocionavam e atemorizavam, o homem se dava conta da sua pequenez. Nesse sentido, a Igreja tinha um propósito de “ natureza política, pois, ao promover o envolvimento com tais encenações artificiais, produziam-se simultaneamente


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a atração e a subseqüente sujeição /' Apoiada pelo Estado, ela assumia, assim, o controle moral desta sociedade em formação. Promovendo tais encenações, a Igreja promovia, paralelamente, a vida social da colônia. O trances Jean Baptiste Debret7 e os ingleses John Luccock8 e o reverendo Robert Walsh'1perceberam que as cerimônias religiosas representavam as únicas ocasiões em que a população podia participar na sua totalidade, da burguesia aos marginalizados. Para os notáveis era o m om ento de ostentar sua prosperidade e seu poder, para as classes mais baixas era a ocasião de se divertir. Para as inacessíveis senhoras da sociedade significava a excitante oportunidade de sair de casa, exibir seus dotes físicos e as últimas novidades no vestuário. Para os marginalizados representava o momento de participar, já que não havia outras ocasiões de reunião pública. As procissões, introduzidas no Brasil pelos missionários portugueses, carre­ gavam todo o dramatismo das espanholas, de onde se originaram. E, neste drama, nada surtia mais efeito sobre os espectadores do que as figuras representativas do sofrimento de Cristo e da Virgem. A elas o povo reverenciava e prestava sua homenagem. Entretanto, era irreverente e debochado quando qualquer imagem lhe parecia grotesca. N a procissão do Corpo de Deus, a representação de São Jorge, feita de papelão e coberta de pano, sempre provocava risos na população ao surgir montada em um cavalo.10 Na de Santo Antônio, a fadiga provocada pelo longo percurso e pelo esforço de carregar 12 grupos de imagens colossais acabava gerando uma certa desordem no seu final. O s viajantes foram especialmente críticos com relação a essas manifestações. Para eles, elas não primavam pelos sentimentos verdadeiramente religiosos e a população as acompanhava sem a menor sombra de devoção e respeito, algumas chegando a assemelhar-se a paradas carnavalescas. Segundo D ebret,11 a procissão de Santo Antônio, na Quarta-Feira de Cinzas , representava para os devotos o primeiro dia da quaresma e para os incrédulos a continuação do carnaval. Ao se examinar esses relatórios estrangeiros, é importante lembrar que seus autores eram geralmente protestantes, imbuídos do pensamento iluminista europeu. Para eles, o aspecto teatral da religião representava, além de ignorância religiosa, sinal de superficialidade espiritual. É claro que o lado festivo das manifestações e sua freqüência excessiva contribuíam para a sua vulgarização e para o desvio da atenção do fiel. Entretanto, é inegável o espírito religioso do homem colonial e a força que a devoção exercia sobre ele. Para Eduardo H oornaert12 os viajantes não perceberam o sentido dos símbolos religiosos brasileiros por falta de convivência mais profunda e ficaram chocados com um tipo de cristianismo no qual o dogm a não é primário, mas centrado na devoção aos santos. As procissões não eram as únicas manifestações centralizadoras da devoção popular. Praticamente a cada esquina encontrava-se um pequeno oratório em um nicho, com a imagem da Virgem ou de algum santo, que reunia ao cair da tarde um grupo de pessoas para rezar o terço ou entoar a ladainha. Quase todos os viajantes assinalaram a presença destes nichos, dos quais o unico remanescente no Rio de Janeiro e o dedicado a N. Sra. do Cabo da Boa Esperança, hoje situado na Rua do Carmo, sobre a extremidade do beco que separa a Igreja da Ordem Terceira do Carm o da antiga Catedral.


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Dentro das casas o culto era dedicado ao santo predileto da família. Terços, novenas e pedidos eram feitos aos pés do oratório, diante do qual ajoelhavam-se não só os senhores como também os escravos. Para essa família patriarcal os santos funcionavam como defensores do sistema vigente. “ Eles significavam a sacralização da convivência em torno da casa-grande e fizeram com que os escravos respeitassem ordens emanadas desta mesma casa-grande como se fossem ordens vindas do céu, do mundo dos santos.” 13 O culto particular envolvia uma curiosa relação afetiva, uma intimidade entre o devoto e o santo. Conform e a situação, a imagem era afagada, enfeitada com jóias, vestida com roupas luxuosas ou até mesmo ameaçada de pancada e posta de cabeça para baixo. Dependia da graça ter sido alcançada ou não. D ebret,14, com muita ironia, comenta o tratamento que Santo Antônio recebia quando algum a coisa não saía a contento. Primeiro os devotos retiravam o menino Jesus de seus braços. Depois retiravam as fitas que adornam o santo e por fim mergulhavam a imagem num poço, deixando-a assim até que as preces que o santo dirigia a Deus para livrá-lo desta situação fossem atendidas. Examinando essas manifestações de culto tanto coletivas como particulares, o que se percebe é a regência da devoção na vida cotidiana do homem colonial - uma devoção, na maior parte das vezes, manipulada pela Igreja, que através da encenação teatral barroca seduzia e impedia uma maior interiorização. Esse homem, pouco acostumado a uma reflexão, a uma vida sócio-cultural estimulante, encontrava nas festas e procissões a sua oportunidade de se relacionar socialmente. Essas manifestações religiosas represen­ tavam o momento de liberdade de que toda a população da cidade participava, em maior ou menor grau, e nelas a imagem tinha a função de centralizar a atenção, seduzindo e persuadindo à fé.

Os Executores Nessa sua ação de seduzir e persuadir através do fausto e do belo, a Igreja Católica recorreu à arte. Mas quem eram esses artistas que estavam a seu serviço? Teriam eles consciência de que seu trabalho tinha um importante papel na formação das mentalidades? 1 ierre Francastel diz que direta ou indireta, a ação da arte se estende, mais ou menos, a toda a sociedade, seja porque o artista participa da fabricação dos objetos que servem para a vida cotidiana dos homens, seja porque empresta a sua ação àqueles que querem agir sobre o espírito de seus semelhantes para edificá-los, instruí-los ou comandálos”. Durante todo o período colonial a produção artística foi praticamente coman a a pe a Igreja, a princípio nas oficinas dos conventos das Ordens Religiosas e mais tarde em ateliês laicos onde ela direcionava a encomenda. ,

^ artista no século XVIII era, em geral, proveniente de um meio social umilde, na sua maioria mulatos. Sua formação se restringia à prática, executada durante eterminadas tarefas, sob a supervisão de um mestre, geralmente um branco, português ou


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filho de europeus já nascido no Brasil. O s conhecimentos técnicos e estéticos eram adquiridos da mesma forma empírica. Pouco se sabe a respeito desses homens, que não tinham o habito de assinar suas obras. Diferenciava-o de seus pares a sua marca individual, deixada na peça. A esse respeito, Germain Bazin16 faz um paralelo com a Idade Média, quando o indivíduo pouco valia e não merecia que tivesse registrada sua passagem pela Terra. Ainda segundo o autor, ficaríamos decepcionados se conhecéssemos os detalhes das biografias desses artistas, já que eram operários “que pensavam mais em formas do que em idéias e sua vida se confundia com a obra, aliás inteiramente submetida aos desejos da Igreja e onde quase não podiam colocar elementos de ordem pessoal”. Não é de estranhar que os santeiros ou imaginários - termos que designa­ vam os escultores de imagem em madeira - não tivessem um aprendizado em escolas ou academias. Na Metrópole também não havia essa tradição. José Augusto França,17em seu estudo sobre a Lisboa pom balina, comenta como a falta de um ensino artístico regular teve consequências sobre “o mísero desenvolvimento dos pintores e dos escultores portugueses ... constrangidos a uma formação autodidata sem saída”. Apesar da afirmação de França não poder ser aceita sem reservas, encontra-se a mesma opinião em outros autores. O “Relatório” da Academia das Belas Artes de Lisboa18 registra a “creação de Aula de Gravura em 1768, a d Escultura em 1750, e de Desenho de Figura e Architectura Civil em 1781" e finaliza dizendo que “a despeito das quais poucos progressos fizeram as artes em Portugal”. Na realidade, sabe-se que a Aula de Escultura foi criada em 1753, nas obras do Convento de Mafra, pelo italiano Alexandre Giusti, e que em 1770 foi levada para Lisboa por Joaquim Machado de Castro. Essas aulas se dedicavam à grande escultura, em pedra, e se constituíram empresas independentes e dispersas, pouco contribuindo para a sistematização de um ensino organizado. É muito provável que elas não se dedicassem ao trabalho em madeira, deixando este ao encargo das Oficinas mecânicas. Em Portugal essas oficinas eram regidas pela “casa dos vinte e quatro” (órgão que agrupava um juiz de cada profissão). N o Brasil cada ofício tinha o seu juiz, que por sua vez era controlado pela Câm ara Municipal. Com petia a esse juiz e à Câmara fornecerem, após exames, a carta de habilitação que dava o direito ao exercício da profissão. Os documentos do século XVIII falam em “imaginários”, mas não os situam dentro de um ofício . Assim como os entalhadores, eles não eram oficiais mecânicos propriamente ditos. Seriam profissionais mais independentes? Sabe-se que os escultores trabalhavam sem a carta e não estavam sujeitos a exames, como também não tinham um juiz de oficio. Deduzse, portanto, que eles formavam uma classe a parte dentre as corporações de ofícios, provavelmente, por exercerem atividades consideradas liberais. O dilema torna-se maior quando se coloca a questão da liberdade artística. Pelo que se sabe, a Igreja direcionava todos os trabalhos por ela encomendados, desde a arquitetura até os elementos decorativos. Questiona-se então o papel do artista. Nesse sentido é pertinente a indagação de Hubert Damisch17 sobre uma afirmativa de Francastel. Este diz que “toda vez que existe trabalho à mão, a arte está


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presente de um modo ou de outro” . Damisch responde: A arte talvez, mas o artista. E quando a execução, ainda que manual, foi rigorosamente programada, e não deixa margem à iniciativa, à fantasia, à invenção pessoal?” A esse homem, pouco afeito à reflexão e à crítica, a quem eram impostos um modelo artístico e uma orientação religiosa e moral, poderia ser dado o titulo de artista? Não seria mais apropriado chamá-lo artesão? À exceção dos artistas portugueses Francisco Xavier de Brito e Simão da Cunha, do carioca Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim, e de Pedro da Cunha, de origem não identificada, o que se encontra no Rio de Janeiro são imaginários anônimos, trabalhando sob programa bem detalhado imposto pelas comunidades religiosas que encomendavam o serviço. Com o crentes, cabia-lhes seguir um a diretriz de trabalho, sem ter uma consciência crítica. Raro foram aqueles que ousaram transgredir as normas. Estarse-ia configurando aqui a situação levantada por Damisch. A arte estaria presente no Rio de Janeiro no decorrer do século XV III; já o artista “ livre” , no sentido moderno do termo, teria estado ausente. A imaginária carioca estaria, assim, fundamentalmente marcada por san­ teiros que, com suas obras anônimas, ocuparam maciçamente os altares e oratórios das igrejas.

A Imaginária Como já foi dito anteriormente, no Rio de Janeiro, assim como no resto da colônia, as Ordens religiosas concentraram praticamente toda a vida intelectual e cultural, no decorrer do século XVII e parte do XVIII. Sendo os únicos pólos artísticos, elas contribuíram, com seu espírito tradicional, para manter um certo imobilismo nas imagens dos santos confeccionadas sob sua orientação. As imagens seiscentistas, caracterizadas pelo hieratismo e pela inexpressividade fisionômica, seguiam assim a tradição das ordens jesuíta, beneditina e franciscana. Tanto a iconografia quanto o modelo artístico eram impostos pelas ordens. N o século XVIII, a produção escultórica carioca, como a brasileira em geral, sofre uma transformação. A descoberta do ouro e do diam ante em Minas Gerais provocou uma série de mudanças que inevitavelmente acabariam por influir na trajetória das artes plásticas. O povoamento, até então limitado quase que exclusivamente ao litoral, deslocase para o interior. Entretanto, determinados núcleos litorâneos mantiveram sua autonomia cultural graças a um maior desenvolvimento político e econômico. Um desses núcleos foi o Rio de Janeiro. Por ser o porto de escoamento mais próxim o das minas, em pouco tempo enriqueceria e acabaria por se tornar a sede do governo dos vice-reis (a partir de 1763). A expansão da fronteira economica provocou a diversificação regional da produção artística. N o decorrer do século XVIII, as províncias de Pernambuco, Bahia e Minas Gerais desenvolveram a sua arte escultórica, seguindo características próprias.


Figura 1 “Coro da Sé”. Braga, Portugal.

No Rio de Janeiro, entretanto, parece ter ocorrido um fenômeno distinto. A riqueza proporcionada pelo ouro mineiro possibilitou um intenso comércio entre metrópole e colônia, dificultando a formação de uma escola regional; escola, como foco de produção de obras que tivessem características em comum e que a identificassem no conjunto da produção de outros centros brasileiros confeccionadores de imagens neste período. A busca desta identidade parece indicar, quase sempre, o modelo português. As importações resultantes do ouro mineiro e do comércio entre metrópole e colônia, bem como os artistas que aqui chegavam, procedentes de Portugal, trazendo uma nova concepção de estilo e uma técnica mais apurada, influenciavam de tal modo os escultores locais que se tornou difícil delimitar a fronteira entre o português e o brasileiro. O estilo comum era o barroco, variando sua interpretação, o que pressupõe uma multiplicidade de influências. A conseqüência foi uma linguagem diversificada que dificulta a leitura das características próprias da imaginária carioca e que leva à suposição de que a grande variedade na escultura do Rio de Janeiro revelaria apenas diferentes artesãos com diferentes fontes de inspiração. O u seja, a identificação do escultor não é com uma suposta escola local e sim com sua influência na metrópole. Por essa razão e pela falta de documentação, o estudo da imaginária setecentista carioca deverá, necessariamente, passar por uma análise estilística em confronto com suas diferentes fontes de inspiração no Reino. Uma das fontes detectadas foi o norte de Portugal, mais especificamente a cidade de Braga, cujas alegorias situadas no coro da Sé (Fig. 1) apresentam analogia com


Figura 2 - “São José, São Joaquim, Santa Luzia, Santa Quitéria”. Igreja de Santa Rita. Figura 3 - “Nossa Senhora da Conceição". Igreja Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte.

Figura 4 - “Nossa Senhora do Amor Divino". Igreja da Ordem Terceira do


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seis imagens cariocas, cinco pertencentes à Igreja de Santa Rita (Sant’Ana, São José, São Joaquim, Santa Luzia e Santa Quitéria, situadas nos altares da nave-Fig. 2) e uma à Igreja do Carmo da Lapa do Desterro (Santa Bárbara, situada no segundo altar lateral direito). As semelhanças formais que as imagens cariocas apresentam entre si seriam a confirmação de que teriam a mesma autoria ou, seguramente, teriam saído de um mesmo ateliê. Fica a dúvida se o autor seria um artista bracarense ou um artesão local copiando um modelo procedente daquela cidade. Outro exemplo é a representação de N. Sra. da Conceição, localizada no altar-mor da Igreja de N . Sra. da Conceição e Boa Morte (Fig. 3) e que tem na imagem de N. Sra. do Amor Divino (Fig. 4), exposta no corredor da sacristia da igreja da Ordem Terceira do Carmo, sua correspondente. Com o no exemplo anterior, constatam-se as semelhanças e ignoram-se a autoria e a procedência. A precariedade de informações a respeito da imaginária portuguesa dos séculos XVII e XVIII (ainda não existem em Portugal estudos abrangentes sobre o tema)20 vem dificultar nosso estudo no sentido de uma análise comparativa. Faz-se necessário um exame mais sistemático nos centros produtores e difusores, para podermos melhor avaliar de que modo se processou sua influência na produção carioca e qual foi sua extensão. Quanto à dificuldade de se estudar as imagens cariocas por meio de uma análise estilística, ela não se limita apenas à questão da cópia e da procedência. Agrava-se com o fato de haver somente um número insignificante de obras com autoria comprovada. Essas obras encontram-se, em sua maioria, no Mosteiro de São Bento, onde a documentação preservada foi analisada por D. Clemente da Silva-Nigra,21 revelando dois notáveis escultores: o português Simão da Cunha e o brasileiro José da Conceição. Trabalhando juntos, por um longo período, na talha da nave e nas imagens que a compõem, esses imaginários nos legaram trabalhos que, pela qualidade técnica e sensibili­ dade artística, sobressaem-se dos demais da cidade. Pouco se sabe da biografia desses santeiros. José da Conceição, como seu segundo nome indica, era possivelmente de cor e talvez o mais velho dos dois, já que, no Dietário de S. Bento, é sempre mencionado em primeiro lugar. Sua morte ocorrida no mosteiro em 1755, muitos anos antes da de seu parceiro, fortalecería essa suposição. Simão da Cunha era natural de Braga, cidade do norte português, e teria vindo para o Brasil no início do século XVIII, já que teria trabalhado, juntamente com José da Conceição, como auxiliar de Alexandre M achado Pereira na fatura da talha da nave de S. Bento durante os anos de 1717a 1723. Documentos levantados por D. Clemente atestam que são da autoria desses santeiros os grandes anjos tocheiros situados junto ao arco cruzeiro, as duas capelas falsas na entrada da nave, o pára-vento, a talha abaixo do coro e as 12 imagens de “meyo relevado” representando imperadores, papas e arcebispos ligados à Ordem beneditina. Acredita-se que tenha trabalhado no mosteiro até o ano de 1773. Seu falecimento teria ocorrido nesse ano ou em 1774. Documentação da Ordem 3a de N. Sra. do Monte do Carmo datada de 1762 e 1765 registra despesas pagas a Simão da Cunha pela fatura da imagem do Senhor Bom Jesus do Calvário. Em 1768, a Ordem 3a de São Francisco da Penitência também registrava gastos com uma imagem do Menino Jesus e com um


Figura 5 - Simão da Cunha, “Santa Gertrudes”. Igreja do Mosteiro de São Bento, (acima)

Figura 6- Pedro da Cunha, “Cristo da Coluna”. Igreja da Ordem Terceira do Carmo, (ao lado)

diadema feitos pelo mesmo artista.2' Estes dados comprovam que Simão da Cunha não ficou restrito ao Mosteiro de S. Bento, tendo seu trabalho sido reconhecido na cidade. A longa parceria com José da Conceição dificulta a distinção da autoria individual dos trabalhos executados e a documentação restrita oferece poucos subsídios para um estudo mais complexo. As obras feitas para o mosteiro apresentam um nível artístico pouco ho­ mogêneo. Os 12 santos incorporados à talha da nave são tratados como elementos decorativos, seguindo o modelo traçado por Frei Dom ingos da Conceição, o artista responsável pelo acabamento interior do templo. São figuras sem expressão fisionômica, muito semelhantes entre si, diferenciando-se somente no tratamento do panejamento das indumentárias, “obras banais” , segundo Bazin.23 Os dois grandes anjos tocheiros, apesar de também serem obras decorativas, fogem à regra geral imposta às representações dos santos beneditinos e apresentam maior liberdade formal. São exemplos do gesto exuberante barroco, seguindo uma composição dinâmica em que as linhas do panejamento dão o ritmo e contrabalançam com o volume


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do tocheiro; a cabeça voltada para a direita equilibra com a perna esquerda avançada. Embora apresentem defeitos de composição e anatomia, mantêm o equilíbrio. Já as duas imagens das capelas falsas são tidas como as mais notáveis que o Brasil nos pôde apresentar antes do Aleijadinho, segundo Bazin,24 e, assim, seria difícil aceitá-las como sendo da autoria dos citados artistas. D. Clemente, baseado no contrato que o mosteiro assinou com os dois mestres imaginários para a feitura da talha das ditas capelas, acredita que as imagens também teriam as assinaturas destes mesmos mestres. As representações de Santa Ida e Santa Francisca Romana (Fig. 5) ou Santa Gertrudes e Santa Matilde ou, ainda, como quer Bazin,25 os dois termos da vida espiritual - a Vida Purgativa e a Vida Unitiva -, podem causar polêmica quanto à iconografia, mas mantêm a unanimidade da crítica quando se trata de sua análise plástica. Ambas são composições equilibradas, de massas dinâmicas e drapeados pesados, fugindo às torsões exageradas do barroco. O estilo está marcado pela movimentação do Menino Jesus que, em uma, parece galgar a santa agarrando-se com vigor à sua roupa, abrindo-a na altura do peito, e, na outra, move-se com graça para colocar uma coroa de flores sobre sua cabeça. O estilo ainda é sentido na teatralização das cenas, que expressam momentos intimistas entre os dois personagens, e nos cenários que os compõem, onde anjos, abrindo as cortinas, revelam o palco. Quando a autoria dessas imagens ficar definitivamente comprovada, ter-seá desvendado a identidade de um dos mais significativos artistas da época colonial. Os artistas laicos tiveram seu espaço na venerável Ordem 3a do Carmo. Além do já citado Sim ão da Cunha, Pedro da Cunha, no final do século, destaca-se como o autor dos seis Passos da Paixão localizados nos altares laterais da nave e da imagem de Sta. Tereza D ’Ávila na capela-mor. Quase não se tem informações sobre sua pessoa e muito menos sobre sua formação artística.26 O dicionário Artistas e Artífices dos sécs. XVII, XVIII e X IX no Rio de Janeiro27 apresenta uma relação de obras documentadas do meste Pedro da Cunha, sem, contudo, fornecer dados biográficos. As imagens de Cristo (Fig. 6) nos Passos da Paixão poderíam ser classificadas como de transição estilística. As composições são neo-classicizantes na distribuição contida de suas massas , no m odulado anatomico pouco acentuado e nas expressões mais serenas que fogem ao dramatismo barroco; este se faz presente através da policromia que enfatiza os ferimentos do corpo. São imagens bem proporcionadas em relação aos altares e, embora representem diferentes momentos da Via Sacra, pouco diferem entre si em expressividade (é sempre a mesma expressão de tristeza resignada) e nas atitudes contidas. Já a imagem de Santa Tereza d’Ávila, por sua composição sinuosa, por seu volume, pelo drapeado do panejamento acompanhando o movimento do corpo e pela policromia de sua indumentária, insere-se mais adequadamente no barroco português. Finalmente, também com obras comprovadas, distingue-se aquele que talvez seja o maior expoente do cenário carioca setecentista; o Mestre Valentim. Embora seja mais valorizada a sua obra urbanística e de ornamentação religiosa, as imagens de São Mateus e de São João (atualmente expostas no Museu Histórico Nacional) atestam sua excelência na arte escultórica.


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Segundo Moreira de Azevedo,28 Valentim da Fonseca e Silva teria nascido na Província de Minas Gerais, em data incerta, filho de um fidalgo portugês contratador de diamantes e de uma pobre mulher oriunda do Brasil. Ainda segundo o autor, o artista teria acompanhado os pais a Portugal, onde se dedicou ao estudo da arte. De volta ao pais, estabeleceu-se no Rio de Janeiro com uma oficina voltada para os trabalhos de talha, escultura e de riscos para ourives. Faleceu nesta cidade em 1813. De sua obra documentada29 constam somente duas esculturas religiosas, as imagens dos evangelistas João e Marcos, feitas para os nichos da fachada principal da igreja da Irmandade da Santa Cruz dos Militares. Essas imagens, embora danificadas pelo incêndio que ocorreu naquele templo, ainda apresentam elementos que poderíam definir as características pessoais de estilo de Valentim, no que tange à imaginária. São ambas figuras de grande porte, esguias, em composições definidas por proporções equilibradas, que poderíam ser inseridas no modelo barroco devido às torções dos corpos e ao ritmo dado pelos mantos que as envolvem. As cabeças em 1/2 perfil apresentam cabelos volumosos tratados em mechas estriadas voltadas para trás. Os traços fisionômicos se repetem, embora guardando as diferenças peculiares a cada personagem. São M ateus, mais velho, traz o rosto mais fino, marcado por zigomas salientes e rugas de expressão, com barba trabalhada em pequenas mechas. São João é representado com o rosto oval, imberbe e liso, próprio dos jovens. As semelhanças ficam por conta das sobrancelhas salientes, quase retas, cujas linhas dão conformação ao nariz afilado, levemente arrebitado, e dos olhos amendoados, grandes, com as pálpebras superiores bem marcadas enfatizando o globo ocular que parece saltar para fora. As indumentárias, assim como seu tratamento em pregas, têm a mesma traça. O conjunto perde um pouco de sua harmonia pelo tratamento dado aos atributos. A qualidade técnica da talha demonstrada na firmeza dos traços fisionômicos e na expressão vigorosa de São Mateus não se repete no seu atributo, uma figura diminuta de homem, em pé, à sua esquerda. Trata-se de composição atarracada, anatomicamente imperfeita, com o torso e as pernas na mesma proporção e inconsistente em seu modelado. A águia que acompanha São João ficou reduzida a um pássaro semelhante a uma pomba, sem maiores cuidados. O desconhecimento da existência de outros trabalhos de escultura religiosa de autoria de Valentim impede uma visão plástica mais abrangente da sua faceta de Mestre Imaginário. Na mesma igreja da Irmandade de Santa Cruz dos Militares a representação de N. Sra. da Piedade, situada no alto da capela-mor, suscita dúvidas quanto a sua autoria. No arquivo da igreja encontram-se dois recibos 50assinados por Antônio Barbosa referentes à compra da madeira e à feitura da imagem, datados de 23 de janeiro e 10 de julho de 1807, respectivamente. Entretanto, no mesmo arquivo encontra-se também um recibo31 assinado por Valentim da fonseca e Silva, datado de abril de 1802, acusando recebimento para a compra da madeira e feitura da imagem da Piedade. Com o a documentação não especifica se a imagem em questão é a da Piedade que se encontra na capela-mor, fica a dúvida de quem seria seu autor. Uma análise estilística poderia solucionar o impasse. Contudo, como a imagem foi descaracterizada por sucessivas restaurações, tornou-se quase impossível resolver a questão.


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t Figura 7 - “Nossa Senhora do Amparo”. Capela dos Emaús, Mosteiro de São Bento.

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Dentre as imagens que de algum modo fogem às características dos modelos portugueses, sugerindo uma maior liberdade estilística, sobressai-se a representação de N. Sra. do Amparo (Fig. 7) localizada na Capela dos Emaús, no Mosteiro de São Bento. É a única imagem dessa capela moderna, situada na parte nova do mosteiro. De origem desconhecida, não é citada por nenhum estudioso daquela Casa. Seu autor, escondido no anonimato, demonstra sensibilidade e conhecimento técnico, embora sejam visíveis alguns defeitos de entalhadura. M esmo sem transgredir as regras, ele imprime à obra algo que a distingue das demais m adonas da cidade. São os traços Fisionômicos - rosto largo e cheio, lábios carnudos, olhos grandes e marcantes - que imprimem à figura uma sensualidade que a aproxima mais da beleza tropical do que da beleza padrão-europeu de traços finos e delicados, característicos dos modelos portugueses (Fig. 8). Também o panejamento, caindo em pregas angulosas no manto e nas mangas, de forma exuberante, lembrando algumas imagens mineiras, denota uma obra diferente, quase individualista, onde o artista exprimiu sua espontaneidade. Ele não se prendeu ao formalismo desta ou daquela escola, mas transitou com liberdade pelos estilos. A composição é tipicamente barroca: a cabeça inclinada para a direita, as mãos postas descentralizadas para a esquerda formando uma


linha diagonal com a perna direita flexionada e as massas volumosas do panejamento, dispostas assimetricamente, impondo o ritmo. A delicadeza das cores e dos motivos ornamentais e, sobretudo, a impressão de uma figura mais terrena que celestial fazem pensar no estilo rococó. Os defeitos na entalhadura pouco interferem no equilíbrio e na harmonia das proporções. A parte posterior só foi desbastada, resultando em uma massa disforme, com o maior volume concentrado na altura das costas, o que, de perfil, dá a impressão de uma corcunda; o pé esquerdo, calçado por um sapato grosseiro e mal elaborado, mais se assemelha a uma bola. São deslizes perceptíveis de perto e que seguramente não preocu­ param o artista, já que a imagem deve ter sido concebida para um retábulo e, no teatro barroco, o importante era a encenação, o impacto, e não o que havia por detrás dos bastidores. A transformação formal pela qual passou a imaginária carioca continuaria, com defasagem, a acompanhar os grandes momentos estilísticos da História da Arte. A grosso modo, poder-se-ia dizer que ela foi maneirista - caracterizada por volumes pouco elaborados e estáticos - até por volta de 1740, quando passou a adotar a exuberante movimentação barroca, que predominaria até as primeiras décadas do século XIX. Nessa época, trazido pela Missão F rancesa, o gosto pelas linhas retas e contidas do neo-clássico começa a impor-se. O rococo teria estado representado em algumas obras sem a força expressiva com a qual marcaria a arte religiosa mineira e pernambucana. O aparecimento da imagem de gesso, no período do segundo Império, viria determinar o Fim do predomínio da imagem de madeira e por conseguinte o declínio da arte escultórica.


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A iconografia Impossível falar em imaginária sem analisar a iconografia, uma abordagem indispensável à compreensão das próprias formas artísticas. N o conceito de Erwin Panofsky32, iconografia é o ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma. Ainda segundo o autor, sua análise "pressupõe a familiaridade com temas específicos ou con­ ceitos, tal como são transmitidos através de fontes literárias ou tradição oral”. N o estudo da história da arte ela fornece importantes subsídios para o conhecimento da sensibilidade coletiva, além de auxiliar a desvendar origens, datas e até mesmo autenticidade. N o caso específico da imaginária, a iconografia identifica o tema, o histórico do personagem, classifica e descreve a imagem e fornece os elementos para a identificação da devoção. Esses elementos tanto podem ser as indumentárias com seus acessórios, como os atributos, objetos reais ou convencionais, alusivos a alguma passagem da vida do santo, ou algum símbolo que caracterize cada indivíduo ou coletividade. A necessidade de individualizar o personagem cresceu após as resoluções do Concilio de Trento(l 563), quando o surgimento de uma nova iconografia trouxe como conseqüência uma multiplicação das representações das devoções. Os artistas, então, recorreram à criação de tipos característicos representados com vestes e atributos que os diferenciariam dos demais santos e que foram se repetindo com o correr do tempo. Assim, a indumentária correspondia à condição social da devoção ou seu lugar de origem. Os atributos, coletivos ou particulares, simbolizavam e configuravam algum objeto próprio do grupo ou um momento culminante da vida do santo. O artista colonial, quando esculpia uma imagem, buscava orientação iconográfica na Bíblia, em algum livro, na tradição oral ou em estampas que aqui chegavam, via Portugal, vindas de centros exportadores como Augsburgo, Nuremberg, Flandres, etc. As estampas foram largamente utilizadas, já que, de uma forma simplificada, mostravam uma legenda, a invocação com a notícia do acontecimento milagroso e a origem da festividade ou da promessa, ideal para quem não podia ler o Fios Sanctorum , coleção que tratava da vida de Cristo, da Virgem e dos santos. A representação de N. Senhora da Lapa, situada num altar lateral da nave da Igreja de N. Senhora do Carm o do Desterro, foi inspirada numa estampa portuguesa com a inscrição: ”N. Senhora da Lapa das Confissoens". Outro exemplo é o grupo escultórico que se encontra no altar-mor da Igreja de S. Francisco da Penitência, o qual retrata S. Francisco de Assis ajoelhado recebendo os estigmas de um Cristo alado que aparece no alto, como na estampa do artista francês Miguel Le Bouteaux datada de 1742. N o entanto, nem sempre esses modelos - ditados pela Contra-Reforma foram seguidos com fidelidade. Frequentemente nossos santeiros confundiam gestos e atributos de diversos santos, além de lhes imprimirem características regionais.L assim que determinadas devoções são representadas de maneiras diversas dependendo da interpre­


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tação local. N o Nordeste é mais comum encontrarmos a figura de Sant Ana em pé levando a Virgem no colo, enquanto em Minas Gerais e no Rio de Janeiro a tradição é representála sentada e a Menina em pé ao seu lado. São Sebastião, o patrono da cidade do Rio de Janeiro, tradicionalmente é representado em pé, atado a uma árvore e trespassado por flechas. Com o traço carioca, aparece uma faixa vermelha, que lhe cai pelo torso, represen­ tativa da Grã Cruz da Ordem de Cristo, que aqui lhe foi oferecida pelo Rei D. João VI. Curiosamente, a igreja de N . Senhora do Carmo da Lapa do Desterro apresenta uma imagem do mesmo mártir ajoelhado, com a cabeça e os olhos voltados para o alto e as flechas seguras em uma das mãos, como se as oferecesse ao Pai. Aqui transparece ou uma má informação iconográfica do autor ou uma total liberdade de expressão. Essas diferentes características dificultam a tentativa de se definir os traços de uma iconografia religiosa brasileira, ou, paradoxalmente, encontraríamos aí a peculiari­ dade que marcaria essa iconografia. Entretanto, num certo aspecto, teria havido um ponto em comum. A adap­ tação de determinados temas iconográficos não parece ter sido aleatória. Poderia ter havido uma seleção instintiva dos mesmos. Como a comunicação entre santo e devoto é feita de forma inconsciente, a escolha da invocação recairía sobre devoções que tivessem algum a afinidade com o espírito do povo brasileiro. Seria procedente a análise de Gilberto Freyre33 pela qual o cristianismo luso-brasileiro teria uma nota idílica e até sensual. “Cristianism o em que o Menino Deus se identifica com o próprio C upido e a Virgem Maria e os santos com os interesses de procriação, de geração e de amor mais do que com os de castidade e ascetismo.” Assim, todas as representações da Virgem M aria em suas múltiplas interpre­ tações - jovem, grávida, mãe terna e dramática - teriam sua aceitação imediata em toda a Colônia. N o Rio de Janeiro não se fugia à regra. Cultuava-se a Virgem, como até hoje se continua fazendo, sob várias invocações: N. Senhora das Dores, do Bom Sucesso, do Carmo, etc., além de Sant Ana, sua mãe. Quanto aos santos, a escolha estava ligada àquelas figuras tradicionais das ordens - São Bento, Santo Inácio, São Francisco e todos os seus seguidores ou àqueles santos-guardiães, filiados à tradição portuguesa - São Jorge, São Miguel, etc. Estas devoções citadas, acrescidas de Santo Antônio e São Sebastião, de tal forma estão enraizadas na nossa cultura, que várias fazem parte de outros cultos, no chamado sincretismo religioso. É o caso de Nossa Senhora da Conceição, tão cultuada no nosso candomblé como Iemanjá. Protetora e padroeira do Reino desde 1640, passaria, na colônia, a ter a mesma função, tornando-se sua festa oficial e obrigatória. Um dos mais caros assuntos à arte da Contra-Reforma, ela é sempre representada jovem, bela, de mãos postas, pisando a heresia, simbolizada pela cobra. Sant Ána, presente em quase todos os templos da cidade, simboliza a Santa e or*a- I ara a família patiiaical era o símbolo da casa-grande ensinando o catecismo à i a. ara o povo não teria o significado daquela mãe abnegada, dedicada a ensinar à


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São Miguel, Santo Antônio e São Sebastião continuaram no Brasil com suas funções protetoras, mas agraciados com patentes militares, o que os colocava mais próximos do plano terrestre. São M iguel, Anjo Custódio da Metrópole e defensor da Igreja, vestido como um guerreiro, sempre foi invocado pelos brasileiros como o anjo da guarda das crianças. Santo Antônio, o franciscano português reconhecido como taumaturgo e pregador, no Brasil é o popular santo casamenteiro. Guardião do Convento de Santo Antônio, conta a história que, por ocasião da invasão francesa (1710), o então governador da cidade (Francisco de Castro Moraes) ofereceu ao santo patentes militares, e a seu pedido uma imagem sua foi colocada na murada do convento para de lá presidir o combate. O culto a São Sebastião no Rio de Janeiro coincide com os primórdios do povoamento da cidade. Consta que o santo foi invocado como protetor dos colonizadores contra uma epidemia que grassou no antigo povoado do M orro Cara de Cão e, assim que houve a mudança para o Morro do Castelo, a cidade passou a tê-lo como patrono. N o candomblé, este mártir dos primórdios do cristianismo toma o nome de Oxóssi e tem como função proteger os caboclos. Percebe-se que estas devoções, de uma certa forma, oferecem um sim­ bolismo além daquele proposto pela iconografia contra-reformista. Em seu transplante de Portugal para a colônia, elas sofreram uma certa adaptação, quando adotadas pelo povo. É possível que se possa constatar, nessa adaptação de temas, uma identidade brasileira revelada numa afinidade espiritual e cultural. O estudo da imaginária carioca revela sua importância como pólo conver­ gente das emoções de uma população e como expressão artística deste mesmo povo. Sabese que estas expressões são influênciadas pelo ambiente social e que buscam atender às necessidades culturais do meio em que se desenvolveram. Para uma sociedade que ainda não tinha desenvolvido uma identidade própria e que se via constantemente envolvida pela encenação dramática m ontada pela Igreja Católica, as imagens teriam representado o foco de suas emoções. Com o expressão artística, sua importância não é menor. Percebe-se que as elaboradas talhas dos altares e retábulos de igrejas nada mais eram do que cenário preparado para receber os atores principais: as imagens. Isso significa que a imagem foi o produto principal do artista colonial brasileiro. O artista carioca, preso ao modelo europeu e às diretrizes de trabalho impostas pela Igreja (sua maior demandante), não ousava transgredir as normas. Rara­ mente demonstrava um gesto mais independente, uma liberdade formal, como aquela exibida por alguns artistas mineiros. Quanto à existência de uma escola regional com características próprias, constata-se que a presença dos modelos europeus, o grande número de importações e o predomínio de artistas portugueses nas oficinas teriam sido fatores inibidores a criação ou ao desenvolvimento da mesma. Entretanto, o fato de não ser evidente a existência de uma “ Escola Carioca’' não impede que se encontrem manifestações isoladas de sensibilidade artística. A ja citada


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imagem de Nossa Senhora do Amparo, da Capela dos Emaús, no Mosteiro de São Bento, embora não apresente qualidades extraordinárias, sugere uma liberdade estilística rara na cidade do Rio de Janeiro nesse período.

Notas 1. Vicente Carducho (1576-1638), autor dos Diálogos da Pintura; Francisco Pacheco (1564-1654), autor de Arte da Pintura, sua antiguidade egrandezas-, citados por Fernando Checa e José Miguel Morán em: El Barroco, Madrid, Ed. Istmo. 1985, p. 211. 2. Argan, Giulio Cario. L'Europe des Capitales 166-1700, Ed. Albert Skira, 1964,

p. 21. 3. Argan, Giulio Cario. op. cit., p. 24. 4. Ávila, Afonso. Iniciação ao Barroco Mineiro, S. Paulo, Liv. Nobel, 1984, p. 3. 5. Barrow, John. A Voyage to Conchinchina in theyears 1792and 1793, London, T. Cadell and W. Davies, 1806, p. 98. 6. Cavalcante, Berenice. "Etiqueta, Estética e Poder: a Cultura do Barroco", in Revista Gávea, n° 4, Rio de Janeiro, 1987, p. 38. 7. Debret, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil Liv. Martins, S. Paulo, 1954, vol. I, II e III. 8. Luccock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil. Ed. Itatiaia, Belo Horizonte, Col. da USP, S. Paulo, 1975, cap. XV. 9. Walsh, Robert. Notice ofBrazil in 1828 and 1829. Frederich Westley and A. H. Davies, London, 1830, vol. II. 10. Jacques Arago escreve a um amigo, surpreso ao descobrir que São Jorge tinha a insígnia de general e que a procissão em sua homenagem era acompanhada até pela família imperial, numa grande festa onde "la sagesse et la raison sont bannies '. Arago, Jacques E. Victor. Promenade autour du monde pendant les années 1817, 1818, 1819 et 1820. Paris, 1822, p. 140, vol. I. 11. Debret, Jean Baptiste. Op. cit., p. 30. 12. Hoonaert, Eduardo. História da Igreja no Brasil coleção História Geral da Igreja na América Latina, Petropólis, Ed. Paulinas e Vozes, 1983, p. 388. 13. Hoonaert, Eduardo. Op. cit., p. 351. 14. Debret, Jean Baptiste. Op. cit., p. 56.


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15. Francastel, Pierre. A Realidade Figurativa, São Paulo, Perspectiva, 1970, p. 25. 16. Bazin, Germain. Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, Ed. Record, Rio de Janeiro, 1983, p. 47. 17. França, José-Augusto. LisboaPombalinaeoIluminismo, Lisboa, Livros Horizonte, 1965, p. 168/9. 18. Costa, Luiz Xavier da. O Ensino das Belas Artes nas Obras do Real Palácio da Ajuda (1802 a 1833), Lisboa, 1936, p. 9. 19. Damisch, Hubert. "Artista", in Enciclopédia Einaudi, Artes Tonal/Atonal, vol. 3, Imprensa Nacional, Portugal, 1984, p. 86. 20. O preconceito antibarroco que predominou em Portugal até há pouco tempo já foi denunciado por Germain Bazin em O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil, Rio de Janeiro, Record, 1971, p. 22. Segundo o autor, este preconceito viria dificultando o trabalho de pesquisa, especialmente o relativo à imaginária. 21. Silva-Nigra, D. Clemente M. da. Constutores e Artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, Tipografia Beneditina. Ltda., Salvador, Bahia, 1950. 22. Documentação levantada por Judith Martins em Artistas e Artífices dos séculos XVII, XVIII e XIX no Rio de Janeiro. Vol. I e II, obra inédita. Atualmente os documentos referentes à Ordem 3a do Carmo constantes no Livro 2o Receita e Despesa de 1762 fls. 202 e no livro do ano de 1765 fls. 30, encontram-se no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. 23. Bazin, Germain. O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil, Rio de Janeiro, Record, 1971, p. 57. 24. Ibidem, Ibidem, p. 57. 25. Ibidem, Ibidem, p. 61. 26. Ver o texto de Vera Forman - Dois Mestres Imaginários do Rio de Janeiro Setecentista: Simão da Cunha e Pedro da Cunha. 27. Martins, Judith. Opus cit. 28. Azevedo, Moreira. O Rio de Janeiro, sua História, Monumentos, Homens Notáveis, Usos e Curiosidades, RJ, Livraria Brasiliana Ed., 1969, p. 567. 29. Ver o texto de Anna Maria Monteiro de Carvalho, A Arte de Mestre Valentim na Capital do Vice-Reino. 30. Documento n° 72-Série A - Arquivo da Igreja de Santa Cruz dos Militares Caixa n° 1. 31. Documento n° 28-Série A - Arquivo da Igreja de Santa Cruz dos Militares Caixa n° 1.


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32. Panofslcy, Erwin. Significado nas artes visuais, S. Paulo. Perspectiva, 1979. pp. 47, 58. 33. Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1984, p. 224.

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SUELY DE GODOY WEISZ é graduada em História pela UFRJ, formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC/ RJ c coordenadora do Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados da SPHAN/pró-Memória.



VERA REGINA LEM O S F O R M A N

D ois M estres Im aginários do R io de Janeiro Setecentista: Sim ão da C u n h a e Pedro da C u n h a

A produção escultórica do Rio de Janeiro do século XVIII é praticamente anônima. As obras não eram assinadas, os arquivos que permitiríam o conhecimento da fatura encontram-se, na maioria das vezes, em péssimo estado de conservação. Sabe-se que era com um , no século XV III, a vinda de mestres entalhadores e imaginários de Portugal para a colônia através das ordens religiosas, para a formação de novos artesãos capazes de suprir as deficiências locais na fabricação de altares e imagens. O estudo da imaginária no país pode ser agrupado em produções regionais, com características próprias em Pernambuco, Bahia e Minas Gerais. A imaginária do Rio de Janeiro não apresenta características regionais marcantes que possam diferenciá-la. Representa muito mais o reforço da estética da metrópole: o Rio, em 1763, passou a capital da colônia e, como principal porto escoadouro do ouro vindo das Minas Gerais, recebeu diretamente todas as influências de Portugal. De um m odo geral, a escultura religiosa devocional do Rio de Janeiro no século XVIII partiu da im portação de modelos europeus que vinham através de gravuras, de imagens confeccionadas nos centros produtores da metrópole e de artesãos trazidos pelas ordens religiosas que aqui se fixaram. Essas ordens traziam iconografia e estética próprias. Para os estudiosos do assunto, não há problemas de reconhecimento das imagens produzidas pelas ordens religiosas. Os jesuítas, carmelitas, franciscanos e beneditinos repetiram as imagens de seus santos nos vários monumentos que construíram na colônia. Do último quartel do século XVII até o início do século XVIII, Frei Domingos da Conceição, nascido em Matozinhos, norte de Portugal, trabalhou no risco e na talha do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Exerceu grande influência sobre os auxiliares e continuadores de sua obra: Alexandre Machado Pereira (que precisou se afastar para se dedicar à obra da Igreja da Candelária), Simão da Cunha e José da Conceição. Poucos toreutas daquela epoca obtiveram uma afirmação artística pessoal que os destaéasse individualmente, como é o caso de Mestre Valentim, que atuou no Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII. Mestre Valentim, entretanto, destacou-se muito mais como arquiteto, ur­ banista e entalhador. Sua produção como mestre imaginário foi pequena dentro do corpo de sua obra. Suas esculturas compunham, em sua maior parte, os espaços dos monumentos a ele confiados, como elementos de decoração. O estudo da obra de dois mestres imaginários do Rio setecentista, Simão da Cunha, que atuou desde a primeira metade do século, e Pedro da Cunha, na segunda, pode


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trazer subsídios a um capítulo de nossa historia da arte que ainda não loi escrito. Além disso, os dois artistas são exemplares para que se demonstre que o Rio de Janeiro era, a um só tempo, centro receptor dos padrões estéticos da metropole - sobretudo no caso de Simão - e difusor desses padrões para outros centros brasileiros - este seria o caso de I edro da Cunha, cujas obras chegaram ao interior paulista. Braga, a matriz 0 Arcebispado de Braga em Portugal é um a região que se estende pelas imediações daquela cidade até a costa atlântica no sentido Lcste/Oeste e das cidades ao Sul até as fronteiras do Norte de Portugal com a Espanha. Região mais antiga de Portugal, tem raízes na época romana, testemunhadas por vestígios arqueológicos daquela dominação. Bracara Augusta, como era conhecida naquela época, possui monumentos históricos que lhe garantem um apogeu artístico através dos séculos. N o século XVIII, vários escultores lá atuaram, produzindo obras que deram a Braga um lugar destacado no panorama artístico de Portugal. A escola de Braga é determinante de uma produção característica que a distingue das escolas do Porto e de Lisboa. A sete quilômetros de Braga está situado o M osteiro de Tibães, que abriga uma produção artística da mais alta qualidade, com esculturas de Frei Cipriano da Cruz, entalhador e mestre imaginário. Sua obra, descrita por Robert Smith, permitiu-nos através de uma análise comparativa, afirmar a influência daquele artista na composição formal das obras de Simão da Cunha. As imagens de Cipriano da Cruz, que se encontram na sacristia do mosteiro de Tibães - de santos arcebispos, santos reis e santos papas - foram repetidas na nave do mosteiro do Rio. Sua obra também impressionou vários escultores da região do rio Minho, entre eles Marceliano de Araújo, outro escultor cuja grande obra, o coro da Sé de Braga, certamente influenciou o acervo escultórico do Rio de Janeiro setecentista. Além desses, André Soares, com obra já do período rococó, poderia ter influenciado Pedro da Cunha. Braga foi, por tradição, um centro exportador de imagens e possuía oficinas de produção de santos de madeira policromada que supriam as necessidades religiosas de igrejas tanto na colônia como na metrópole. Isso se evidencia em algumas imagens da igreja carioca de Santa.Rita, que tem no seu verso a marca de Braga como procedência. 1 or pesquisas realizadas nos trabalhos de Robert Smith relativos à arte de Portugal, foi possível identificar uma prevalência da estética de Tibães na imaginária de São Bento no Rio. Tal ascendência pode ser explicada por ser aquele mosteiro a casa-mãe beneditina tanto para Portugal quanto para o Brasil. Além disso, tanto Frei Domingos da Conceição quanto Simão da Cunha eram daquela região. Braga foi, portanto, centro difusor português para a colônia. Nessa passagem, a distância, o clima, as diferenças sociais e econômicas não resultaram, a princípio, em mudanças estéticas marcantes. Os padrões foram repetidos aqui, sem uma reflexão própria, dependentes das peculiaridades e possibilidades técnicas dos artistas.


Simão da Cunha e José da Conceição. “Santo Rei I”. Mosteiro de São Bento, parte superior da terceira pilastra, lado direito.

Em busca de provas Ao realizar trabalho sobre a imaginária da Igreja da Ordem Terceira do Carm o,1impressionou-me a qualidade do Senhor do Calvário, atribuído por Nair Batista a Mestre Valentim da Fonseca e Silva.2 Na tentativa de confirmar tal atribuição através de documentação, encontrei no Livro de Termo da Ordem, de 1780/ um documento que contrariava essa atribuição.Também o Livro de Receita e Despesa de 1762 registra o pagamento da fatura dessa imagem a Simão da Cunha, não deixando dúvidas sobre sua autoria.4


Foto do arquivo da SPHAN


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Posteriormente, buscando saber se as imagens que ladeavam o Cristo eram da mesma autoria, encontrei no Livro de Termos da Ordem5 o nome de Pedro da Cunha como o do escultor que havia copiado a imagem da Santa Tereza de Ávila para o altar-mor. A ele eram também atribuídos os seis Passos da Paixão da nave.6 Ao ter acesso aos documentos do arquivo da Ordem Terceira do Carm o e pesquisando o livro de Mario de Andrade que citava "Pedro da Cunha, do Rio de Janeiro” como autor dos setes Passos da Paixão da Igreja do Convento do Carmo de Itu, São Paulo,8 busquei no Arquivo da SPHAN documentação fotográfica que me permitiu comparar as faturas e constatar a autoria. Há um espaço de vinte anos entre as obras dos dois artistas. Embora eles possuam os mesmos sobrenomes, não foi possível estabelecer relações de parentesco entre ambos, apesar de busca efetuada no Arquivo Distrital de Braga. Entretanto, um documento no Livro de Noviços da Ordem Terceira do Carmo dá a um certo Domingos da Cunha a filiação de Maria Dias da Cunha e Pedro da Cunha, ele natural de Santa Marta de Portuzello, Arcebispado de Braga.9 Sendo também Simão da Cunha natural daquele arcebispado, compreende-se a influência da escola de Braga na obra dos dois artistas. Com o metodologia de estudo foi utilizada, além da busca nos arquivos de provas documentais, análise das características formais dos artistas através de comparação das obras de autoria comprovadas documentalmente com aquelas que não possuem documentação escrita. Fotos das imagens em cinco ângulos - frente, verso, perfil direito e esquerdo e detalhe do rosto - permitiram evidenciar suas autorias.

Simão da Cunha: um artista em transição

Pouco se sabe a seu respeito. Foi biografado por D.Clemente da Silva-Nigra em 1952, em seu livro Construtores e Artífices do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Todas as raras referências ao escultor na literatura do gênero foram nitidamente baseadas em suas informações. Sabe-se que ele era natural de Braga, e que a ele e a Joseph da Conceição são atribuídas, pelo Dietário do mosteiro, “todas as imagens que vemos em todo o corpo da Igreja”. Sua assinatura é conhecida por ter sido firmada em dois recibos de despesa do Livro de Receita e Despesa da ordem beneditina, em 1734, referentes ao pagamento pela execução de duas capelas falsas, do grande pára-vento e dos dois anjos tocheiros do altarmor. Ela reflete uma caligrafia firme e desenhada, própria de alguém com certo nível de aprendizado, diferindo da assinatura de Joseph da Conceição, seu constante companheiro, menos elaborada. D.Clem ente afirma que Simão morreu em 1774, baseado em documento encontrado no Livro Segundo dos Óbitos dos Irmãos da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do M onte do Carmo do Rio de Janeiro.10


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Sua obra representou um momento de passagem da arte portuguesa da metrópole para a arte portuguesa da colônia. Representou também um momento de mudança no estatuto social do artista na colônia. Diferentemente dos artistas que traba­ lharam nos mosteiros beneditinos nos séculos XVI e X V II, Sim ão da Cunha não tomou o hábito monacal. Era leigo, contratado e, curiosamente, irmão terceiro da Ordem do Carmo, prenunciando regras que só vieram a ser estabelecidas no final do século XVIII, quando os artistas eram livres e contratados pela qualidade de seus trabalhos. De autoria comprovada de Simão da Cunha no Rio de Janeiro são o Cristo do Calvário da Ordem Terceira, os dois anjos tocheiros de São Bento e um Menino Jesus para servir às cerimônias natalinas da igreja da Ordem Terceira da Penitência. Tudo o mais são atribuições. Apesar de Simão da Cunha ser o autor de quase todas as imagens do corpo da igreja do Mosteiro de São Bento do Rio, não lhe foi conferido um espaço correspon­ dente à sua importância nos dois livros básicos sobre a arte colonial brasileira, de autoria de D.Clemente da Silva-Nigra"e de Germain Bazin.12 Simão da Cunha produziu também expressivo trabalho de entalhe de elementos decorativos no Mosteiro de São Bento, que não será aqui analisado, mas serviu como fonte de observação e comprovação da qualidade de sua obra como um todo. N o mosteiro trabalhou sempre em parceria com José da Conceição, morto em 1755. N ão se conhece documento que comprove trabalho de José da Conceição independentemente de Simão da Cunha, o que leva a crer que se tratava de um colaborador constante e dedicado. Nos 18 anos em que trabalhou sem esse auxiliar, Simão da Cunha continuou a produzir obras, como é o caso do Senhor do Calvário, de 1762. Sua produção é significativa . Só em São Bento , encontramos dois santos beneditinos da nave da igreja, duas santas beneditinas da entrada da nave, São Bento e Santa Escolastica da Capela das Relíquias, São Caetano, São Brás e São Lourenço nas capelas laterais e a Sagrada Família feita para o altar de Santo Amaro. Os doze santos de meyo rellevado que decoram as colunas da nave aos pares, medindo l,50m de altura e representando quatro santos papas, quatro santos reis e quatro santos arcebispos, foram executados a partir de 1717, sob o risco de Frei Domingos da Conceição. Possuem grandes semelhanças formais entre si e suas diferenças se fazem muito mais pela representação de atributos hierárquicos. A iconografia repete a represen­ tação dos mesmos santos reis, arcebispos e papas, de autoria de Cipriano da Cruz,1^ que se encontram na sacristia do M osteiro de 1 ibães, em Braga, e certamente seriam do conhecimento desses dois mestres. Como elemento diferenciador, nota-se que os santos arcebispos mantêm uma posição hierática típica das imagens beneditinas, com rigidez formal mais acentuada em relação ao panejamento da indumentária dos santos reis e papas. As pregas dos hábitos dos arcebispos são retas e duras; já nos outros santos, passam a se alargar e a se quebrar. Gei main Bazin considerou essas imagens medíocres. Mas é preciso lembrar que, ao contrário das imagens das santas beneditinas e dos anjos tocheiros, os doze santos receberam um tratamento de talha, ou seja, de elemento de decoração.


Simão da Cunha e José da Conceição. “Anjo tocheiro”. Mosteiro de São Bento,


Simão da Cunha (atribuído). “Santa Francisca Romana’

Mosteiro de São Bento.


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Os dois anjos tocheiros que se encontrar* à entrada do altar-mor datam de 1 /34. São típicos do N orte de Portugal. Sua composição formal lhes dá uma compleição robusta, com excessos de roupagens e exuberância nas linhas tipicamente barrocas, até então não adotadas no mosteiro. Analisando os detalhes dos rostos, verifica-se que os queixos são quadrados e proeminentes, com covinhas no meio; logo abaixo, dobras modelam um queixo duplo. Apresentam linhas de demarcação na junção do corpo com o pescoço e do pescoço com a cabeça. As mãos são alongadas e corretas, sem marcas de expressão. Uma observação cuidadosa desses detalhes e características é importante para que se possam verificar as diferenças e semelhanças entre os anjos tocheiros comprovadamente de sua autoria e as duas santas que se encontram na entrada da nave, de atribuição controvertida. Há uma divergência entre os historiadores. D.Clemente as atribui a Simão da Cunha. Bazin, por considerá-las “obras-primas da escultura lusitana antes de Aleijadinho”, acha impossível que o autor possa ser o mesmo dos doze santos da nave. Para Bazin elas são obras anônimas. De fato, há uma desigualdade na fatura dessas imagens. Isto se deve, porém, a estilos diferentes. Uma análise dos detalhes dos rostos comparando-os com as das imagens anteriores mostra semelhanças entre todas elas. O formato do rosto, a implantação do nariz e dos olhos, as covinhas nos queixos quadrados como se fossem apostos à obra, são características que expressam um estilo peculiar do artista. São também marcantes o tamanho agigantado das imagens e o panejamento do hábito. Foi possível ainda, através de fotos tiradas em cinco ângulos e posteriormente projetadas em dois projetores de slides simultâneos, aproximar os detalhes que tornaram plausível a atribuição da autoria a Simão da Cunha. Estas duas imagens foram interpretadas por D.Clemente como Santa Michtildes, a da esquerda, e Santa Gertrudes, a da direita. Bazin, por sua vez, considera a primeira uma “Alegoria à Vida Unitiva” e a segunda uma “Alegoria à Vida Purgativa”. N ão parece haver sentido em erigir-se uma imagem de Santa Gertrudes na entrada da nave, já que existe um altar dedicado a essa santa no corpo da igreja. A interpretação dada por Robert Smith parece a mais apropriada. Sem entrar nessa discussão, soluciona o problema: reproduz em seu livro14 a imagem de uma Santa Ida, com legenda gravada na base, do mosteiro beneditino português, e a relaciona com a imagem do mosteiro do Rio. A representação iconográfica da colônia seguir o modelo europeu existente na casa-mãe beneditina em Braga parece mais coerente do que qualquer outra interpretação. Q uanto à Santa Michtildes, os próprios monges beneditinos hoje a nomeiam Sta. Francisca Romana. Santa Escolástica e São Bento, que estão na Capela das Relíquias, possuem uma composição formal rígida, bem própria das imagens desses dois santos, sempre repetidas nos altares das igrejas beneditinas. Se elas forem realmente de 1769, data da inauguração da capela, representariam um retorno de Simão da Cunha às normas impostas pela ordem no sentido de ser dada uma postura hierática aos seus santos padroeiros. Os anjos tocheiros anteriores a elas demonstram uma liberdade estilística pouco comum


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naquela época. A análise das fotografias mostra que am bas estão carregadas de repinturas com um excesso de brilho que lhes dá um aspecto de m anequins.15 O conjunto escultórico da Sagrada Família foi atribuído por D.Clemente a Simão da Cunha à luz de manuscritos inéditos do Dietário do Mosteiro de 1770 e 1772.16 Essa obra seria, então, do final da vida do artista, que morre em 1774. Entretanto, é uma peça singular, que difere das demais. Poderia ele ter-se inspirado na imagem que está no Museu do Aveiro, em Portugal (reproduzida no livro de Robert Smith, The Art o f Portu­ g al)? Os chapéus pastoris e as roupas cortesãs dão à cena um sabor profano e há um encadeamento rítmico na composição. Entretanto, a daqui apresenta características peculiares. Há uma estilização incomum das pedras quadradas e policromadas; da árvore modelada como composição de fundo; os chapéus de abas largas diferem dos chapéus de tres pontas do modelo de Aveiro; os cabelos de Maria são dourados como o das alegorias de Marceliano de Araújo, de Braga.1 Podemos notar também o rosto quadrangular do Menino, típico das imagens de Sim ão da Cunha.


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Apesar das imagens de Simão da Cunha terem sido, na sua maioria, produzidas na primeira metade do século XVIII, de um modo geral conservam uma ponderação renascentista nos rostos, mesmo quando adotam um volume barroco para as outras partes da composição. Obedecendo no início do seu trabalho ao risco de Frei Domingos da Conceição, Sim ão da Cunha ficou preso às influências daquele escultor e conseqüentemente a um a estética anterior à do seu tempo. As imagens do artista, quando não obedecem a um risco ou parceria e não se destinam à ordem beneditina, onde os cânones são mais rígidos, modificam-se, tornando-se mais soltas na medida em que o artista tem mais liberdade de expressão. É o caso do Cristo do Calvário da Ordem Terceira da Carmo. Nessa obra, ele foge inteiramente às suas características anteriores e, aproveitando o tema dramático da Paixão, expressa-se de forma única. Explicita todos os seus conhecimentos de anatom ia, exagerando num expressionismo barroco e patético e num entalhamento mais elaborado - os ossos estão aparentes e os ferimentos dilaceram a mus­ culatura do corpo. Faz do perizônio meio de expressão com um modelado cheio, em que prevalecem as linhas curvas e esvoaçantes. Sem dúvida, Simão da Cunha assume aqui a estética do seu próprio tempo artístico. Apesar da heterogeneidade de estilos e de qualidade na sua obra como um todo, os traços fisionômicos das imagens de Simão da Cunha conferem ao conjunto uma unidade formal. A análise comparativa entre as obras documentadas e atribuídas não deixa dúvidas em relação à autoria comum e esclarece definitivamente quem foi o artista capaz de produzir uma obra da qualidade do Cristo do Calvário da Ordem Terceira do Carmo.

Pedro da Cunha: a fama além do Rio de Janeiro E pouco o que se sabe de Pedro da Cunha, como aliás acontece com a maioria dos mestres imaginários cariocas do século XVIII. A atribuição de sua origem nasce de uma suposição: documento de entrada de um de seus filhos como irmão noviço da Ordem Terceira do Carmo aponta-o como natural de Santa Marta de Portuzello, no Arcebispado de Braga, em Portugal. D aí - e pela análise das características formais de sua obra, que denotam a influência estilística da região - infere-se que Pedro também teria nascido naquele arcebispado. Pela citação em livro de Mário de Andrade18 foi possível saber que Pedro da Cunha havia produzido os Passos da Paixão para a Igreja do Carmo de Itu, São Paulo.19 Em crônicas do final do século XIX de Itu, o escritor paulista mostra que o artista foi citado como “o célebre Pedro da Cunha do Rio de Janeiro”, apesar do seu nome jamais haver figurado na literatura carioca de época. T odos os Passos da Paixão de Cristo que se encontram na nave da Igreja da Ordem Terceira do Carm o do Rio de Janeiro são de Pedro da Cunha. Através de registro nos livros de receita e despesa da ordem, é possível a comprovação documental de parte das imagens. As outras, não comprovadas por documentos, são-lhe seguramente atribuídas, através do método comparativo.



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Sua obra e significativa: cerca de doze imagens na Igreja da Ordem Terceira do Carmo do Rio, a saber, seis Passos da Paixão na nave; o senhor morto sob a base do altarmor; dois anjos da guarda, sob o altar; o senhor dos passos do andor, no Museu da Ordem no segundo andar; o Cristo do Calvário em papier mâché, que está também no museu; cópia do Cristo que Simão da Cunha fez para o altar-mor e a Santa Tereza de Ávila, no nicho esquerdo do altar-mor. N o Convento do Carmo de Itu, São Paulo, há sete imagens: O Cristo do Calvário, seis Passos da Paixão da nave, atualmente no convento ao lado, já que a igreja encontra-se há anos em restauração. É possível ainda que Pedro da Cunha tenha obras nos Carmos de São Paulo e de Mogi das Cruzes, ou, pelo menos, que seu estilo tenha influenciado os artesãos que trabalharam nessas igrejas. Na tentativa de atribuir a imagem de Santa Tereza de Ávila da igreja da Ordem Terceira do Carm o do Rio de Janeiro a Sim ão da Cunha, encontrei um documento que relatava ter sido aquela imagem feita por Pedro da Cunha, copiada de outra que deveria ter sido enviada ao Rio Grande do Sul, mas que por algum motivo não o foi, “ficando para sempre neste altar”.20 Os seis Passos da Paixão da nave da igreja são imagens que prenunciam o neoclassicismo, embora ainda impregnado de expressionismo barroco e rococó. Nas seis imagens de tamanho natural reconhece-se a mesma caligrafia escultórica. Elas repetem uma tradição iconográfica das igrejas terceiras do Carmo, que costumam expor em suas naves os Passos da Paixão, três a três, tudo se completando com o senhor crucificado no trono e com o senhor morto na base do altar-mor. A compleição física das três imagens com carnação aparente é acanhada e denota enfraquecimento e debilidade, o que nem sempre se deve à intenção, mas à debilidade da fatura. A expressão facial, repetitiva, valese de poucos sulcos nas faces e de uma ou outra ruga horizontal nas testas, os olhos sempre assustados. As outras são de roca, gênero que no século XIX iria vulgarizar-se na imaginária brasileira e que, no século XVII, havia sido comum, principalmente na Espanha e nas áreas que, em Portugal, acusam sua influência. Todas têm perucas de cabelos naturais. O s dois anjos que velam pelo senhor morto, sob o altaç, demonstram que Pedro da Cunha, ao esculpi-los, já havia adotado a iconografia neoclássica como fonte de inspiração antes mesmo do final do século XVIII. O senhor morto apresenta características italianizadas, tal com o os olhos fechados à Bernini, com o globo ressaltado sob as pálpebras. Seu tratamento lembra o que é dado ao mármore e o tom da carnação também é mais claro do que o usual. As imagens do Carmo de Itu guardam, nitidamente, as características formais das imagens do Rio. É possível notar, entretanto, uma certa mudança nas soluções formais de certos membros e postura física das imagens. Os rostos é que mantêm as características usuais do artesao. É possível que ele tenha trabalhado no rosto e deixado as outras partes para serem executadas por algum auxiliar, como se usava nas oficinas da época. O Senhor dos Passos de Itu tem a cabeça voltada excessivamente para baixo, talvez


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porque devesse ser visto de baixo para cima, já que se destinava também a ser carregado sobre o andor nas procissões. Pedro da Cunha não apresenta em suas obras a qualidade de Simão da Cunha, que certamente o influenciou. Ele adotou estilos diferentes, que vão do barroco na cópia de Santa Tereza ao neoclassicismo do Senhor M orto, passando pelo rococó.

Simão e Pedro: semelhanças nas diferenças

Há uma forte evidência de influência de Sim ão da Cunha sobre Pedro da Cunha na solução formal de suas obras. Entretanto, fica nítida a mudança de vocabulário estilístico entre ambos, que pode ser interpretada pela defasagem dos períodos em que atuaram. Entre o Cristo do Calvário contorcido de Sim ão (1762) e os Passos da Paixão contidos de Pedro (1779), há um intervalo de 16 anos. Embora a obra dos dois tenha elementos do barroco e rococó, se tomarmos como base sua época, em Pedro ela tende para o neoclássico, que já entrava em voga no Brasil a partir de 1775. A cabeleira esculpida do Cristo de Simão denota, além do estilo próprio da época, um esmero na solução dos fios com movimentos em ondas e cachos que caem de um lado demonstrando a elaboração do escultor na organização dos detalhes. As cabeleiras naturais dos passos da Paixão de Pedro simplificam a escultura, que faz da cabeça uma bola raspada apenas para o suporte da peruca; por outro lado, tentam expressar um realismo patético muito em moda, com a utilização de cabelos humanos. Imagina-se que as imagens de Simão e Pedro cumpriam, naquela época, sua função religiosa de mediação sensível entre o fiel e a divindade pela representação do sofrimento que emociona, comove e acaba por conquistar para a causa católica. N o Cristo de Itu de Pedro que muito se assemelha ao de Simão não houve, passados tantos anos, nenhuma tentativa de individualidade artística. O modelo foi seguido fielmente, até as ondas dos cabelos são esculpidas conforme o original. Já os passos da nave apresentam soluções mal resolvidas, tendendo para uma degeneração dos elemen­ tos formais. O Cristo do Calvário de papier mâché que se acha no Museu da Ordem no Rio foi também copiado do de Simão, para certamente servir nas procissões, já que é bem mais leve. O verdadeiro, que fora fixado no altar-mor por Mestre Valentim em 1779, permanece até hoje no local e serviu de modelo também para o Cristo de Itu. Se a expressão artística de Simão da Cunha é mais forte e influenciou Pedro da Cunha, coube a este irradiar a estética do Rio a São Paulo, o que, de certa forma, concorreu para o processo dc formação de uma visuahdade brasileira. É possível que, em breve, levantamento mais apurado possa resolver todas as questões relativas à arte da escultura religiosa do Rio de Janeiro no século XVIII. N ossa contribuição foi a de trazer a luz o nome desses dois artistas tão pouco referidos nos estudos cariocas.


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Características formais das imagens de Simão da Cunha - Rosto quadrado - Zigom as salientes - Nariz pontudo com abas salientes - Nariz descendo direto da testa - Sobrancelhas conjugadas sobre o nariz - Olhos amendoados - ausência de olhos de vidro - Narinas pequenas em relação ao tamanho do nariz - Lábio superior mais fino que o interior - Sulco naso-labial demarcado em forma de cunha - Espaço naso-labial entumescido - Queixo quadrado proeminente com covinha - Dobra logo abaixo do queixo sugerindo queixo duplo - Orelhas mal resolvidas - Boca entreaberta - Sulco mento-labial pronunciado - Pouca expressão no rosto por ausência de entalhamento - Rostos firmes e jovens - Ausência de expressão facial - rugas de expressão - Dobra do pescoço nítida na junção com o corpo - Dobra do pescoço nítida na junção com a cabeça Características formais das imagens de Pedro da Cunha - Rosto oval - Zigom as salientes - Nariz descendo direto da testa - Sobrancelhas conjugadas em bico sobre o nariz - Nariz afilado - Lábio superior mais fino que o inferior - Sulco naso-labial - Q ueixo (nos passos) encoberto pela barba - nos do Rio a barba forma coração invertido contornando a boca - Orelhas mal resolvidas - Boca entreaberta com dentes superiores aparentes - Alguma expressão no rosto - O lhos de vidro, assustados - Preferência pelas imagens de roca - N os seis passos, preferência pelo uso de perucas - Cristos do Calvário com cabelos esculpidos

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Notas 1. Forman, Vera Regina Lemos. “A Imaginária da Ordem Terceira do Carmo”. Trabalho apresentado em setembro de 1982, cadeira de Arte Colonial, ministrado pela Prof. Miriam Ribeiro de Oliveira, PUC, Rio de Janeiro. 2. Batista, Nair. “Valentim da Fonseca e Silva”. Revista da SPHAN v. 4. Rio de Janeiro, 1940. 3. Livro de Termos - p.15. Data: 14 de outubro de 1780 ... “A respeito da obra do trono e sua talha que se mandou fazer” "... por conceção da Mesa, passada e presente, à cobcação do Ultimo Passo da Paixão no Altar-Mor da nossa capela fazendo-se o trono tirando as colunas direitas e pondo outras retorcidas numa maquineta para a Snra no meio da última banqueta e no fim do trono e um docel com seu espaldar para a imagem do Snr. Cruxificado o que tudo se executou na conformidade do risco, pagando-se ao mestre Valentim da Fonseca Hum conto seiscentos mil réis que recebeu do mesmo Jonas, secretário atual...” Documento 1 Arquivo da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, que se encontra hoje no Arquivo Municipal da Cidade do Rio de Janeiro. 4. Silva-Nigra, D. Clemente Maria da. Construtores e Artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, Bahia, Ed. Beneditina, 1930. “Em assentamento del762, consta pela primeira vez, que Simão da Cunha também trabalhou para a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, desta cidade do Rio de Janeiro. Conforme está no livro 2o. da Receita e Despesa, fl. 202 onde se lê: Pello que se deu a Simam da Cunha, a conta da imagem do Snr. Bom Jesus do Calvário que a mesa mandou fazer, 54$000. Esse trabalho deve ter sido muito vagaroso, ou se terá interrompido durante anos, pois diz o mesmo livro a 306: “ 1765 Pello Do. a Simão da Cunha do resto do feitio da Imagem nova do Snr. do Calvário 50$000”. 5. Na folha 13 do Livro de I ermos de 1780 da Ordem do Carmo, consta que foi paga a quantia de 105S600 pela fatura da cópia da “imagem de Santa Thereza de vulto que se acha no altar-mor ... e para todo o tempo constar do referido”. 6. Sarmento, 1 erezinha de Moraes. Breve rebito sobre a Igreja do Carmo. 7. Andrade, Mário de. Padre Jesuíno do Monte Carmelo”, publicação n° 14 do SPHAN, pp.17, 83, 85. 8. Nardy Filho, Francisco. A Cidade de Ytú. 9. Documento do arquivo da Ordem Terceira do Carmo, Arquivo Municipal da Cidade Livro dos Noviços do ano de 1779 que inscreve seu filho Domingos Dias da Cunha como noviço daquela Ordem. 10. Silva-Nigra, op. cit. nota 4. Livro Segundo dos Óbitos dos Irmãos da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo do Rio de Janeiro - 1763 a 1785 a fl. III -V: “Rio de Janeiro 1774 - Faleceu o nosso Ird. Cappm Simão da


Dois mestres im aginários: S im ã o da C u n h a e Pedro da C u n h a

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Cunha Pra. e foi depositado na Igreja dos Reverendos Religiosos e encomendado pellos mesmos com assistência da N.Vel. Ordem 3a. e sepultado na Via Sacra sepultura no. 15 e para constar fiz este termo sendo Vigro. o Lir. Affonso Neves de Olivra.” 11. Silva-Nigra, op. cit. nota 4 p. 150. 12 Bazin, Germain. O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil. Rio/São Paulo, Dist. Record, 1971. 13. Smith, Robert. Frei Cipriano da Cruz - Escultor de Tibães. Barcelona, Ed. do Minho, 1968. 14. Smith, op. cit. nota 13. 15. Uma avaliação melhor dependería de análise da peça in loco, o que não foi possível porque as normas beneditinas não permitem a entrada de mulheres na clausura. 16. Silva-Nigra, D. Clemente Maria da. “Temas Pastoris na Arte Tradicional Brasileira” In: Revista da SPHAN n° 8, Rio, 1944. 17. Smith, Robert. Marceliano de Araújo - Escultor Bracarense. 18. Andrade, Mário de. op. cit. nota 7. 19. Documento citado nota 5. 20. Conforme citação de Mário de Andrade em seu livro Padre Jesuíno do Monte Carmelo, pp. 17, 83, 85.

VERA REGINA LEMOS FORMAN é graduada em Museologia e formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC/ RJ.


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I homas Ender, Igreja-de Santa Rita , desenho a lĂĄpis ligeiramente aquarelado.


CLAUDIA M O R E N O D E PAOLI LUIZ A N T O N IO LO P ES D E SO UZA

U m O lh ar Sobre a A rquitetura Religiosa do R io no Século X V III

O século XVIII marca para o Rio de Janeiro um novo momento em sua trajetória de cidade, onde serão evidenciados os seus papéis econômico, político e administrativo. Esse momento trará mudanças para a composição de sua população, agora mais diversa e disposta em classes mais definidas; para a composição de seu espaço urbano, oriundo de uma organização partida da estratégia militar1e agora voltado para um processo de valorização de sua própria identidade; e para a composição de sua arquitetura, que se voltará, ao nível das instituições, para a erudição calcada nos moldes europeus. A arquitetura religiosa irá desenvolver-se dentro deste processo, baseada na grande maioria dos casos no partido contra-reíormista trazido pelos jesuítas entre os séculos XVI e XVII. A Contra-Reforma representou para a Igreja católica européia uma reformu­ lação ideológica levada a cabo através do advento da Companhia de Jesus. Foi a partir desta reformulação que a Igreja desenvolveu uma ação no sentido de recuperar a extensão da sua autoridade, abalada pelos movimentos protestantes, reforçando o poder de seus dogmas.2 Esta ação se deu através da militância dos padres jesuítas, no espaço-cenário da nave única, congregando os fiéis diante da pregação. A salvação, vista na abóbada celeste no alto de suas cabeças, dar-se-ia pelo caminho da devoção que seria o meio de ligação com Deus, o instrumento de justificativa das ações de cada cidadão na terra a fim de alcançar o céu. É esta postura ideológica que será herdada pelas construções religiosas da terra virgem e permanecerá até o século XVIII.3 E é também esta postura, na devoção, que possibilitará a formação das Confrarias, Irmandades e Ordens Leigas ou Terceiras. Podemos constatar que estas Ordens e Irmandades começam a surgir durante o sécuo XVII reunindo primeiramente os seus participantes nas igrejas dos conventos e colégios, sendo que no século XVIII passam a ter sede própria, com a construção de novos templos. O crescimento das Ordens Leigas, apoiado pela Coroa Portuguesa na figura do Marquês de Pombal,4 se dá paralelamente ao declínio do poderio jesuítico, sendo verificado nas décadas de 40 e 50 um aumento no número de igrejas em construção. A expulsão dos jesuítas em 1760 relaciona-se com este processo, que se estenderá até o final do século. N o Brasil, as Ordens Leigas puderam reunir considerável patrimônio, asso­ ciando sua devoção à prosperidade de seus membros. Elas eram responsáveis pela organização das festas dos padroeiros e pro­ cissões, manutenção de hospitais, administração de cemitérios, promoção de empréstimos, além do amparo a órfãos e viúvas e atividades educacionais. Foram-lhes concedidas diversas regalias pela Coroa, tais como a propriedade das igrejas e capelas que viessem a construir,


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dos cemitérios, dos animais de sela, imagens, utensílios e mobiliário. 1ornar-se-ão independentes do financiamento governamental, com fundos vindos da caridade particu­ lar, de doações e de heranças. Estavam organizadas de acordo com determinados grupos sociais, raciais, de atividades profissionais ou interesses comuns, tendo cada uma sua respectiva de\oção. Tem-se notícia, por exemplo, de que a Ordem 1 erceira do M onte Carmo era íormada por pessoas de projeção e fortuna, a Irmandade de N. S. da Lapa dos Mercadores por pequenos comerciantes e a Irmandade de N . S. do Rosário e S. Benedito por pretos livres e escravos. A presença das igrejas no espaço urbano refletirá o novo momento da sociedade e servirá para marcar o lugar e o papel de cada cidadão no processo de lormação do Rio de Janeiro setecentista. A Igreja representará o fazer e o direito concedido a cada um de construir uma nova urbanidade, que terá seu ponto alto com a elevação da cidade a capital do ViceReino em 1763. N o espaço aberto da rua as construções religiosas serão como símbolos: momentos de lembrança colocados como pontos de referência nas diretrizes de perspec­ tiva formadas pelos planos de fachada do casario, assum indo o caráter de monumento. Na visão de Giulio Cario Argan, m onum ento é uma alegoria, uma tradução de conceitos abstratos em formas visíveis. A arquitetura transmite um determinado conteúdo ideológico que através do tempo afirma os seus valores.6 As construções religiosas são como uma revelação, que lembra ao cidadão a cidade institucionalizada e seu papel dentro dela. N o Rio de Janeiro, as igrejas tomam diferentes posições na malha urbana, de acordo com as relações estabelecidas com os grupos sociais aos quais se vinculam tornando-se reflexos da carga simbólica que lhes é atribuída. As igrejas sedes de freguesias, divisões administrativas da cidade, são geralmente tratadas com o uma unidade construtiva em si, localizadas em espaços abertos, formados pelas fachadas do casario. A Igreja de Santa Rita, por exemplo, apesar de suas pequenas dimensões, dom ina o espaço do largo em que se situa. Um a aquarela de I homas Ender, datada de 1817, mostra esta área da cidade, que pouco se modificou com a chegada da corte em 1808.7 Estes espaços abertos não só criam ângulos visuais, como são o prolongamento do espaço ritual interno da igreja na cidade. Funcionam com o local de realização de festas religiosas, quermesses, procissões, principais atividades coletivas da população. A Igreja de São Francisco de Paula pertence ao mesmo grupo das igrejas que se situam em um grande espaço aberto na malha urbana. A questão que aí se coloca é a escala. Sendo o Largo de São Francisco um espaço aberto, há a predominância do elemento lachada de dimensões monumentais. Esta proporção seria contraposta pela catedral - a Sé Nova - que não chegou a ser concluída.8 Para Argan, a fachada, como elemento da monumentalidade, é um fato visual pei tencente ao exterior, sendo demonstrativo para o público do valore do significado do edifício ao qual pertence. N ão é um elemento de separação entre o interior e o exterior, mas os coloca em comunicação. Isto revela sua função mediadora, sendo a fachada um


Thomas Ender, “Igreja de São Francisco de Paula”, desenho a lápis aquarelado.

organismo urbano essencial. Pondera o espaço urbano não definindo-o somente como traçado ou perspectiva, mas como realidade plástica. Tem maior significado para o espaço urbano onde se localiza que para o próprio edifício ao qual pertence. É exceção em relação aos edifícios vizinhos, acentuando espacial e plasticamente seus elementos em um momento de apelo visual. As igrejas de N. S. Mãe dos Homens, de Santa Efigênia e de São Gonçalo Garcia e São Jorge, i rmandades de menor poder de atuação na vida da cidade mas com certa capacidade organizacional, situam-se no espaço contínuo da rua. Têm suas fachadas adossadas em relação aos edifícios vizinhos, sendo reforçada a sua bidimensionalidade. Comportam-se, porém, com sua altura e com a disposição de seus elementos no plano da fachada, como um momento de descontinuidade no ritmo formado pela seqüência de portas e janelas dos demais prédios ao longo da rua. Apesar do século XVIII caracterizar-se pela predominância da construção de igrejas, de associações seculares, há ainda casos de finalização de mosteiros, conventos e colégios, e o crescimento das ordens terceiras a eles vinculadas determinará uma arquitetura ligada às ordens primeiras de onde se originam. A Igreja de São Francisco da Penitência, localizada no lado da igreja do Convento de Santo Antonio, por exemplo, faz parte deste conjunto arquitetônico. Apesar de apresentar-se como um único edifício, tem sua frontalidade reforçada pela presença do prédio vizinho, que cria uma nova relação para o conjunto como um todo.


Como elementos de participação na frontalidade das fachadas, as torres, tímpanos, frontões, portadas e aberturas constituem pontos de convergência do olhar, valorizando as linhas de perspectiva, sendo a própria fachada sem ponto limite, con­ vertendo se em membrana de transposição exterior-interior. Em seu projeto para a fachada da Igreja do Gesú em Roma, prédio que servirá de modelo para as demais construções jesuíticas e mais amplamente para as igrejas no Brasil, Vignola havia utilizado como recurso de frontalidade a colocação de dois níveis de ordens sobrepostos, formando um anteparo visual frente à cúpula e tirando-a de evidência em relação ao exterior. Para concordância da ordem inferior com a superior utiliza curvas de enlace. As partes laterais mais baixas correspondentes à projeção dos espaços interiores são recuadas, não transparecendo na fachada. Giacomo Delia Porta modifica esta configuração na fachada executada, ao reduzir a reentrância nas alas laterais, aplanando o organismo plástico criado por Vignola e resumindo-o a um traçado gráfico, ressaltado apenas por um leve jogo de claro-escuro. A relação construtiva entre a fachada e o corpo do edifício é revogada, sendo agora acentuada a relação entre a fachada e a praça em que se localiza.10As volutas, inicialmente utilizadas com o elemento de enlace, passam a ter função ornamental. Delia Porta lança mão de um recurso que será largamente utilizado no barroco: um tímpano de grande coroamento do portal, enquadrado num tímpano triangular de fechamento curvilíneo e duas ordens.


Igreja de São D o m in go s.

Este recurso é utilizado em Portugal na Igreja de São Roque de Lisboa, pelo arquiteto italiano Filippo Terzi. Notamos, porém, que a frontalidade é mais evidenciada pelo grande frontão sustentado por um plano duplo de ordens. O frontão abarca toda a largura da fachada, sendo destacado o caráter planar de sua superfície extremamente simplificada. Nesta localizam-se apenas seis aberturas encimadas pelos mesmos frontões curvilíneos e tringulares relacionados do Gesú. O agenciamento destas aberturas é mais disperso, ocupando cada uma área considerável na distribuição dos cheios e vazios e revelando uma proximidade com a arquitetura civil da época. As igrejas de Santa Rita, São Francisco da Penitência, do Rosário e de São Domingos possuem em suas fachadas uma disposição similar de elementos. Duas pilastras definem verticalmente o plano principal de acesso composto por portada, duas janelas, óculo e frontão. Este plano é ligado aos demais, que se encontram em mesmo nível a seu lado, por uma cimalha corrida de alinhamento. As portadas têm um tratamento especial. Os frontões são barrocos com volutas. A torre sineira presente na fachada da Igreja de Santa Rita lhe confere maior verticalidade em relação à de São Francisco da Penitência, que, marcada pela horizontalidade de seus dois pavimentos, com dois planos de mesma proporção lado a lado do principal, expande-se, comportando-se como uma construção civil. A fachada da Igreja de São Domingos, demolida em 1942, embora de grande simplicidade, tinha em si proporções clássicas, possuindo sua torre independência na


composição em relação ao plano principal de acesso, um frontão de grande área demarcada por pronunciadas volutas. A Igreja do Rosário apresenta a versão mais simples de fachada durante o século XVIII, com frontão triangular ladeado por duas torres sineiras (uma delas não terminada). As igrejas de São Francisco de Paula, N ossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora Mãe dos Homens, juntamente com a igreja do Convento do Carmo, seguem o modelo de frontaria com três portas encimadas por três janelas no plano de acesso principal, não contando as aberturas eventuais nas torres. Na igreja do Convento do Carmo, pilastras formam planos entre as aberturas, o que não acontece na Igreja da Mãe dos Homens. Estas duas possuem em comum o plano intermediário entre o segundo andar e o coroamento com frontão trabalhado, de largura menor do que a do plano em que se situa. Todos estes casos revelam a existência de um tipo, um modelo, que sofre variações.11 A concepção dos frontões de São Francisco de Paula e Nossa Senhora do Carmo pode ser incluída numa preocupação de criar zonas de sombra, acentuada com a participação de seus volumes curvilíneos na fachada. Isto leva a uma variação dos efeitos luminosos no decorrer do dia e seu volume cria uma tensão com as formas retilíneas do restante da fachada.


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Esses exemplos fazem alusão aos temas propostos por Borromini no século XVII, de se evitar estruturas demasiadamente rígidas que apresentem uma delimitação geométrica determinada. A igreja da Glória aproxima-se desta concepção de arquitetura, pois, ao contrário das demais, não expressa sua monumentalidade através da frontalidade, mas atua como um volume. A fachada aí não é parte de uma superfície contínua, infinitamente extensível, mas é o limite de um volume tridimensional. Não é utilizada como elemento de uma composição, mas é a própria gênese do espaço e seu volume. Abordando agora a configuração dos espaços internos, observamos que, no Gesú, Vignola havia elaborado um espaço destinado à devoção coletiva e à pregação constituído por uma nave única com capelas laterais e uma abside profunda; utiliza o esquema basilical onde o transepto é coberto por uma cúpula de proporções e desen­ volvimento limitados. Isto possibilitou a criação de uma perspectiva em profundidade, onde tribunas e capelas laterais aparecem dentro de um ritmo contínuo. As paredes são iluminadas em contraponto com a profundidade escura de cada capela, ao mesmo tempo em que a cúpula encaminha o olhar para o alto, em direção a Deus.12 Isto remonta à Igreja de S. Andréa de M antua, onde Alberti reuniu elementos distintos de monumentos antigos, recompondo uma monumentalidade ideal e fechando-os em uma caixa arquitetônica única. A fachada é um arco triunfal aposto ao espaço interno, formado por uma planta basilical, com uma cúpula sobre o transepto, cuja cavidade se relaciona com as grandes massas de vazios de capelas laterais. A forma antiga não traduz mais a estrutura ou se apresenta apenas como ornamento. Conserva seu significado espacial inicial, não transcendendo sua própria etimologia. Esse caráter, porém, não impede a utilização da forma com novos e diversos significados, ou com os elementos arquitetônicos da espacialidade aplicados de acordo com a necessidade prática e, portanto, moderna daquele momento. Esta espacialidade faz do edifício um espaço ideal, com a transposição da experiência estética para o nível elevado, sobrenatural.13 A Igreja de S. Roque de Lisboa baseia-se nesta tradição. É um espaço único delimitado por uma caixa de alvenaria. As capelas laterais são praticamente altares escavados na parede. As capelas ao lado do altar-mor, de menor profundidade, formam um falso transepto. A capela-mor está reduzida a um nicho profundo, cercado por dois outros de menor escala. N o Rio de Janeiro, a maioria das igrejas setecentistas apresenta plantas que são variações do tipo proposto por Vignola no Gesu e Terzi em Sao Roque. O esquema de nave única com capelas laterais varia desde os exemplos onde essas capelas sao apenas altares justapostos às paredes laterais até casos onde formam espaços definidos por arcos. Na igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, este esquema é mais simplificado. Em São Francisco de Paula a própria obra em talha forma altares laterais. A igreja do Convento do Carm o apresenta capelas profundas, bem como a Igreja de N. S. da Conceição.


São Pedro dos Clérigos, 1733-1738.

Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, 1747-1755.

Nossa Senhora da Glória do Outeiro, 1714-1738.

Nossa Senhora Mãe dos Homens, 1758.


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A inovação do esquema brasileiro em relação ao português é a existência de corredores laterais, salas de consistório e sacristia, que atuam como volumes justapostos à nave única. Esta característica permite que haja uma flexibilidade de adaptação de um programa de características monumentais a terrenos de dimensões reduzidas. Haverá um momento, porém, onde veremos o exercício de uma nova espacialidade, diferente desta configuração e mais afim com a retórica dos espaços barrocos italiano e alemão, também presente na arquitetura religiosa mineira. Este momento se dará a partir da década de 30, com a construção de apenas quatro igrejas: São Pedro dos Clérigos, N. S. da Glória do O uteiro, N . S. da Lapa dos Mercadores e posteriormente N. S. Mãe dos Homens, datada de 1758. A Igreja de N .S. da Lapa dos Mercadores é uma variação em torno do tipo em que a nave tem a forma de uma elipse, sendo coberta por uma cúpula que dá verticalidade ao espaço. Em São Pedro dos Cléricos essa forma interna, elíptica, transparece no exterior, sendo que os volumes das torres sineiras e das capelas laterais estão justapostos ao volume da nave, resultando em uma forma híbrida. Isto porque as partes relativas à sacristia e corredores laterais ainda são formas retangulares. Na igreja da Glória esta concepção é levada ao espaço externo de forma mais definida, sendo a capela-mor, juntamente com os corredores laterais, constituidores de um volume adicional ao formado pela nave. N. S. Mãe dos Homens possui uma nave octogonal de partido centrado, coberta por uma abóbada de arco com lunetas, em uma composição de extrema limpeza e discreção. N ão obstante estes casos excepcionais, a arquitetura religiosa setecentista do Rio de Janeiro é marcada por variações do tipo proposto no Gesú: o espaço interno da igreja é uma alegoria da salvação. A utilização da perspectiva, seja em direção ao alto, através de pinturas “trompe E o eir que rompem o espaço construtivo, seja através da profundidade da capela-mor, leva à mediação entre terra e céu. O espaço arquitetônico que normalmente tende a se colocar com o limite entre o espaço real e o espaço imaginário funciona como suporte de uma ornamentação, linguagem de persuasão. A utilização desta ornamentação torna-se a característica predominante do espaço interno, onde os altares, cadeiras, confessionários, órgãos e bancos são tratados como peças monumentais, com fausto, resultando em um espetáculo de riqueza. Para atuar sobre os sentimentos populares, o cerimonial e o ritual tomam um aspecto de festa. A monumentalidade interna é, alem de meio de transporte dos fiéis em direção a Deus, um instrumento de afirmação social na vida de uma cidade que quer definir e firmar seus novos papéis.

Este texto foi produzido a partir da análise do fichamento de 50 construções religiosas executado pelo projeto “O Rio de Janeiro no processo de formação cultural do Brasil Setecentista”. Preocupa-se em trazer uma visão geral dos espaços religiosos no contexto histórico da cidade durante o século XVIII, base para estudos posteriores mais específicos sobre a arquitetura do período.


— — 1710 1720 1730 1740 1750 1760 1770 1780 1790 Igrejas col. jesuíta igr. St° Inácio (1575) conv. e igr. Bom Jesus ■ conv. e igr. N. S. do Cone. da Ajuda conv. e igr. N. S. do Carmo da Lapa do Desterro (1590) conv. e igr. N. S. do Monte Carmo 1___ conv. de Santa Tereza conv. de Santo Antonio (1607) mosteiro de São Bento (1633/42) sem. e igr. São Joaquim ___ L recolhim. dos Barbonos Sé Nova (1861) Bom Jesus do Calvário N. S. da Candelária (18112 N. S. de Bonsucesso (1567) N. S. da Apresentação (1613) N. S. da Ajuda (1833) N. S. Conceição e B. Morte N. S. do Desterro (séc. XVII) N. S. Glória do Outeiro N. S. Lapa dos Mercadores N. S. da Lampadosa N. S. do Loreto (1664) N. S. Mãe dos Homens (1840) N. S. da Penha (1635) N. S. do Terço N. S. da Saúde N. S. Rosário e S. Benedito (1600/50) N. S. do Monte Carmo São Francisco de Paula (1855) S. Francisco da Penitência Sant'ana St3 Cruz dos Militares (1811) Santa Ifigênia Santa Luzia Santa Rita São Fco da Prainha S. Gonçalo Garcia e S. Jorge São José (1633) São Pedro dos Clérigos São Sebastião (1567/83) N. S. do Parto (séc. XVII) (1811) São Domingos N. S. Monte Serrat | S. Gonçalo do Amarante (1625) São José (ilha das Cobras) 1 Menino Deus N. S. da Cabeça (1625/32) Total 04 04 05 10 12 14 08 08 08 09

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Igrejas analisadas neste texto

- São Francisco da Penitência (1653/57), obras no século XVIII. - São D om ingos (1706). - N. Senhora do Rosário e São Benedito (1711/36). - Santa Rita (1720/21). - São Pedro dos Clérigos (1733/38). - N. Senhora da Glória do Outeiro (1739). - Santa Efigênia (1747/54). - N. Senhora da Lapa dos Mercadores (1747/55). - São G onçalo Garcia e São Jorge (1750/60). - N. Senhora do Monte Carm o (1755/60). - N. Senhora Mãe dos Homens (1758). - São Francisco de Paula (1759). - Igreja do Convento do Carm o (1761).

Notas

1. Acerca da configuração do espaço urbano do Rio no século XVIII, ver em: . Ferrez, Gilberto. O Rio de Janeiro e a defesa de seu porto (1555-1800), Serviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1972. . (idem). A Praça XVde Novembro - antigo Largo do Paço, Riotur,1978. . Reis Filho, Nestor Goulart. Contribuição ao estilo de evolução urbana no Brasil (1500-1720), EDUSP, São Paulo. 1968. pp. 118, 119. 2. Acerca dos aspectos ideológicos de Contra-Reforma, ver em: . Cragg, Gerald R. The Church in the Age ofReason (1648-1789). Aylesbury, Bucks, Hazel Watson & Viney Ltd, Penguin Books, 1981 (p. e. 1960). 3. Sobre a arquitetura jesuítica no Brasil, ver em: . Bazin, Germain. Arquitetura Religiosa no Brasil, vol. I, Ed. Record, RJ. . Costa, Lucio. "A Arquitetura Religiosa no Brasil" in Arquitetura Religiosa - Textos Escolhidos, VVAA. 4. W AA. “PombalRevisitado - Comunicações ao Colóquio Internacional Organizado pela Comissão das Comemorações do 2* Centenário da Morte do Marquês de Pombal’’, Coordenação de Maria Helena de Carvalho dos Santos, vol. I, Editorial Estampa, Lisboa, 1984.


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5. Sobre ordens terceiras e irmandades no Brasil colonial, ver em: . Valladares, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos cemitérios brasileiros. Conselho Federal de Cultura, RJ, 1972. pp. 927, 928, 934, 936. 6. Argan, Giulio Cario. L ’Europedes Capitules (1600-1700), Éditions D ’Art Albert Skira, pp. 21, 22. 7. Ferrez, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender, 1976, p. 70. 8. Idem item 7 p. 123. . Ferrez, Gilberto. A mui leal e heróica cidade do Rio de Janeiro, 1965. p. 81. 9. Idem item 6, pp. 108, 109, 110. 10. Argan, Giulio Cario. Historia D el Arte Italiana, vol III, Sangoni Editoriale, Florença, 1968, p. 250. 11. Argan, Giulio Cario. El Concepto dei Espacio Arquitetônico - desde el Barroco a nuestros dias. Coleccion ensayos / Serie História de la Arquitectura. Ediciones Nueva Vision, Buenos Aires, 1973 (curso dictado en el Instituto Universitário de História de la Arquitectura, Tucuman, 1961). pp. 29, 30. 12. Idem item 11. 13. Idem item 10, p. 249.

Relação da Documentação Fotográfica

Convento de Santo Antonio e Igreja de S. Francisco da Penitência”. In Schultz, Harold. Álbum: Igrejas e Conventos do Rio de Janeiro. Arm 18.5.1. Biblioteca Nacional, iconografia. Igreja do Rosário e São Benedito , aquarela de I homas Ender. In Ferrez, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender. IHGB/Fundação Moreira Salles, 1976, p. 122. Igreja de São Francisco de Paula , desenho a lápis aquarclado de Thomas Ender. In Ferrez, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender. IHGB/Fundação Moreira Salles, 1976, p. 123. Igreja de Santa Rita , desenho a lápis ligeiramente aquarelado de Thomas Ender. In Ferrez, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender. IHGB/Fundação Moreira Salles, 1976, p. 70.


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“ Igreja de São Pedro dos Clérigos”. In Malta, Augusto. Álbum: Igrejas e Conventos do Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional. Foto de Augusto Malta. “Igreja de Santa Cruz dos Militares”. In Malta, Augusto. Álbum: Igrejas e Conventos do Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional. Foto de Augusto Malta. “Igreja de São Domingos”. In Malta, Augusto. Álbum: Igrejas e Conventos do Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional. Foto de Augusto Malta.

1 UI7 ANTO N IO LOPES DE SOUZA e CLAUDIA DE PAOLI são arquitetos formados pela FAU/UFRJ e participantes do pro,ero Rro Se.ecemisra do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC/RJ.



A N A M A R IA M E S Q U I T A

A zulejaria Setecentista no Rio de Janeiro

A revalorização do barroco, tão característica do nosso tempo, tem acen­ tuado o interesse pelo estudo das manifestações artísticas no período colonial brasileiro, onde a azulejaria desempenha papel relevante. Encontram-se no Rio de Janeiro grandes painéis de azulejos historiados remanescentes do século XVIII, representando cenas religiosas ou profanas, sempre localizadas em espaços religiosos: Igreja de N ossa Senhora da Glória do Outeiro, Convento de Santo Antônio, Convento de Santa Teresa, Igreja de Nossa Senhora da Penna e Igreja de Nossa Senhora da Sáude. Uma análise iconográfica inicial chama a atenção para a preferência pelos temas de desterro, de banimento, de expulsão. Assim, por exemplo, a fuga da Sagrada Família, a ida de José para o Egito e a “expulsão primordial” - a de Adão e Eva do Paraíso - são tratadas no Convento de Santa Teresa, na Igreja de Nossa Senhora da Penna e na Igreja de N ossa Senhora da Saúde. Outros temas aparecem: a vida de Santo Antônio, a vida campestre e cortesã, etc. Na Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, que possui a mais elaborada coleção de azulejaria setecentista da cidade, o espectador podese surpreender com as inúmeras cenas pagãs-pastoris, onde pululam cupidos e outros símbolos de amor e fertilidade. A tentativa de buscar uma ligação entre a temática aparentemente dispare dos diversos exemplares da cidade leva-nos a abandonar a leitura puramente iconográfica entendida como “ identificação de imagens, estórias ou alegorias 1 para investigar os princípios subjacentes” ’ reveladores da atitude basica da comunidade setecentista do Rio de Janeiro colonial, depreeendidos a partir do objeto em estudo. O s painéis de azulejos que decoram as igrejas cariocas setecentistas eram todos executados em Portugal, porem sob encomenda expressa de agentes do poder real - a burocracia governamental - , de agentes do poder religioso - as ordens religiosas - ou de irmandades formadas pela população colonizada.

I C om o se sabe, a Igreja católica teve atuação estratégica enquanto formadora e mantenedora de um “corpus social”. Pierre Bourdieu, em Gênese e Estrutura do Campo Religioso \ tece uma série de considerações sobre as visões marxista e weberiana do papel da Igreja na sociedade, enquanto monopolizadora e dispensadora dos meios de salvação,


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fornecendo o caminho a ser impreterivelmente seguido, abrindo espaço a esperança que traz um paliativo para a angústia existencial e também criando uma justificativa para que o indivíduo ocupasse determinada posição social, privilegiada ou não. Foi na luta contra o herege que a religião católica, como agente de unificação nacional, conseguiu conciliar jesuítas, ferrenhos opositores da escravatura, e senhores escravocratas contra os calvinistas franceses, protestantes ingleses ou reformistas holande­ ses. Por outro lado, o indígena só era considerado inimigo enquanto infiel, situação que cessava assim que batizado. Houve como que uma cruzada profilática ao herege e ao gentio, que remetia à Reconquista do próprio território português aos árabes, e na qual a empresa colonial era confundida com uma empresa sagrada4. “A principal causa que me levou a povoar o Brasil, foi que a gente do Brasil se convertesse à nossa Fé c a tó lic a d e c la ro u o próprio D. João III. No caso específico do Rio de Janeiro, cabe lembrar que os portugueses já encontraram os temíveis huguenotes franceses estabelecidos e em boa convivência com os índios naturais da terra. A guerra e a religião farão parte da vida cotidiana. A Igreja será um espaço sagrado-guerreiro, conjugado à missão de reproduzir os valores simbólicos, morais e estilísticos da Metrópole. Edificadas em posição estratégica, no alto dos morros à beiramar, as igrejas poderão auxiliar os diversos fortes no combate aos invasores: a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, por exemplo, possuía sete baterias que cruzavam fogo com as do convento da Ajuda e o palácio episcopal ladeava as baterias do M orro da Conceição. Evidentemente, essa função estratégica da Igreja é vital, porém não a principal; nela se reúnem os fiéis da comunidade em formação, para o ato litúrgico, no qual tudo contribui para o envolvimento do espectador. As orações, a música, o cheiro do incenso, a voz ameaçadora do pároco em intermináveis sermões, sobretudo a decoração elaborada, são recursos usados no esforço de criar o encantamento. Painéis de azulejos historiados servem de cartilhas que contam episódios religiosos para o fiel analfabeto, ensinando-o a obediência ao poder religioso, ponta de lança do poder civil. Para o protestante, somente a graça, dispensada por Deus apenas a alguns eleitos, é que poderá conduzir à salvação. Para os católicos a Igreja continua sendo a grande medianeira, como o fora na época medieval, e a gestora dos bens para a salvação. A estética e a ética barroca, serão as operadoras do impressionar, comover, persuadir 6 os fiéis dessa cidade que vivia em constante ameaça herética. Através da imaginação o artista religioso exercitará seu ofício didático. Sua técnica, criando o artifício mágico que favorecerá o jogo de ambigüidades procurado, irá ensinar a imaginar e ultrapassar os limites do finito e do contingente . Um a cena pintada propõe uma imagem que fascina, enfeitiça ou pode mesmo provocar indignação. De qualquer maneira, envolve o espectador numa atitude de adesão ou repúdio; nunca de passividade acomodada. Será o exercício da faculdade da imaginação que permitirá a um observador ativo conceber a salvação como possível.


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Lm uma igreja o espectador maravilhado é envolvido num jogo poético sem hm, de aproximar-se de uma coisa através de outra; sujeito sem centro que persegue sem jamais alcançar um objeto. O Barroco aqui é encarado no seu significado psicológico: traduz um estado de alma que anseia pela liberdade, na medida em ,que vai romper com as regras dos tratadistas renascentistas, abandonando as copvenções na construção e procurando sempre a dilatação espacial, para a qual contribui o emprego da$ superfícies brilhantes dos revestimentos em azulejos. O' Barroco não estaria apenas circunscrito à esfera artística, tratando-se, sobretudo, de manifestação cultural com finalidade religiosa. A técnica do artista, diz Argan*, assim como a do artesão e do operário não é um fim em si, é executada ad maiorem D ei G loriam - a obra do homem feita para maior glória e prestígio de Deus sobre a terra. Assim, o barroco passa da esfera da arte à esfera dos costumes, da vida social, para modelar de forma particular a cidade. Apesar de todas as conquistas geográficas e invenções técnicas que instau­ raram o Ocidente M oderno, o fantasma do “ único" retorna sempre (“ lespossessions même sarticulent sur quelque chose de p e r d ü A instabilidade política e a deterioração dos quadros referenciais criam o tecido sobre o qual se destacam as unidades políticas nacionais que substituem a cristandade, mas, mesmo nessa época de fé abalada, o Estado é avalizado por Deus. O barroquism o tende a uma reestruturação do organon, procurando com esforço c paixão uma nova linguagem. Desesperado para alcançar a identidade, o homem barroco perde a objetividade. Com o não consegue apreender o objeto na sua essência, abandona a busca da semelhança, da mimesis, uma vez que captar o real lhe parece impossível10. Vai adotar, então, procedimentos próprios da poética e da retórica, recor­ rendo ao análogo, ao simulacro, ao metafórico. A Arte Poética de Aristóteles fornece aos artistas da Contra-Reforma, como Baltasar Gracián - escritor jesuíta - a chave para se conceber que qualquer coisa de não real poderá tornar-se realidade. “ É preferível escolher o impossível verossível do que o possível incrível” " . A cam panha de persuasão ideológica conduzida pela Igreja Católica vai também procurar em Aristóteles, na sua Retórica, as regras de criação para construir seu discurso propagandístico. A tarefa da Retórica “não consiste em persuadir, mas em discernir os meios de persuadir, como sucede com todas as demais artes” 12 e esses meios são o silogismo, que se com põe de verossimilhança e sinais, e o exemplo, que é a indução própria à Retórica. Aristóteles ensina que a Retórica tem três gêneros: o deliberativo, que trata de aconselhar ou desaconselhar para o futuro; o judiciário, que acusa ou defende, baseado em fatos do passado; e o demonstrativo, que se apóia no estado presente das coisas, para elogiar ou censurar. A arte do século XVII e XVIII vai utilizar-se do discurso demonstrativo, onde o presente aparece como o ponto de encontro entre experiências do passado e a perspectiva do futuro13. As cenas de pintura religiosa articulam, sobre essa nova idéia de


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tempo, a composição e a estrutura de espaço que utilizam. Alusões históricas aparecem ao lado de visões da Glória celeste, mantendo sempre presente algo que se ligue à experiência imediata - vestuário, frutas, flores, objetos representados de modo realista". Esse jogo de imagens supõe a existência de uma língua comum, embora cada um a decodifique de acordo com sua capacidade de entendimento, ignorante, ou erudito; o povo e os dirigentes. A descoberta em 1419 das Hieroglyphica de Horapollon vai ser uma das fontes para a constituição de uma ciência descritiva de imagens alegóricas, diversas, emblemas e outras ilustrações simbólicas que combinarão inscrições egípcias, histórias bíblicas, oráculos dos Profetas, parábolas de Cristo e fábulas da Antiguidade Clássica. Cesare Ripa faz em 1593 um inventário de toda essa imaginária na sua “Iconologia, Descrittionedeli’im agini universalicavatedali'antichitáetdaaltriluoghi....opera non meno atile che necessária à poeti, pittori et scultori per rappresentare le vitti, virtu, affetti etpassioni humane”. No seu prólogo Ripa diz que essas imagens são feitas para significar uma coisa diferente daquela que o olho percebe". Se hoje certas metáforas ou alegorias parecem-nos incompreensíveis sem um estudo dessas fontes, devemos lembrar que no século XVII, com a imprensa se expandindo, elas eram extremamente populares. É a mudança do código cultural que as torna hoje misteriosas. De qualquer modo, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro possui exemplares do Horapollon, da Iconologia de Ripa, assim como da Emblemata de Alciati (Augsburgo, 1531). Gracián, no seu Criticón, fala-nos do m undo como uma grande metáfora, na qual tudo é codificado, tudo é o contrário do que parece16.

II

A arte da contra-reforma trabalha buscando a salvação para os fiéis da Igreja Católica e ao mesmo tempo a certeza do poder para o Estado. Nas terras recém-descobertas é mister incorporar a população pagã à população cristã, através da propaganda1 que persuade à devoção pela manipulação das imagens. O Concilio de I rento fixou na sua 25* seção, em 1563, o “ Decreto sobre a intercessão dos santos, a invocação ou a veneração das relíquias e o emprego legítimo das Imagens , no qual, procurando refutar a acusação de idolatria dos protestantes, reafirma que serão os santos que estabelecerão a ligação terra-céu: “o olhar virado para cima, as mãos abertas para a terra, os santos pedem graças e as distribuem aos fiéis” 18. Existe uma propaganda direta, como se pode verificar nos painéis de azulejos da Sacristia do Convento de Santo Antônio no Rio. Um painel mostra a cena em que o santo cura um cego; o outro é conhecido como painel do falso cego. Esses dois quadros remetem-nos de imediato à questão do tipo de representação em Portugal e por extensão no Brasil e dão-nos exemplos práticos, realistas, de como se processa essa intermediação dos santos, defendida no Concilio.


Figura 1- C on ven to de Sa n to Antonio. D etalhe d o painel da sacristia.

N o primeiro, Santo Antônio cura um cego, prostrado de joelhos em uma atitude humilde de arrependimento e súplica. N o segundo, ao contrário, o santo mostrase implacável, aplicando punição exemplar, quando faz saltarem fora os olhos de um jovem que tentava enganá-lo (Figura 1). N ão há aqui um código misterioso, compreendido por iniciados, mas uma demonstração inequívoca, crua, de que serão os santos os agentes mediadores de Deus na distribuição de seus dons através de milagres. Tratando-se de painéis de um convento franciscano, parece-nos que essa ênfase realista confirma o consenso de que nas ordens primeiras o artista está mais preso às regras da ordem para a qual trabalha. O mesmo já não acontece nas Capelas de ordem terceira, onde a “transgres­ são” é maior, quer no nível da representação plástica, quer no próprio registro de significados, permitindo, com maior clareza, avaliar a interferência que possa ter havido de uma cultura autóctone, em se tratando de obra de países colonizados, ou o grau de reinterpretação em cima de modelos absorvidos da Metrópole. Neste sentido, deve-se assinalar que a azulejaria setecentista do Rio de Janeiro é toda produzida em Portugal, impossibilitando a interferência do artista local - porém, como os painéis são encomen­ dados especialmente para os espaços onde serão aplicados, haverá intervenção de quem faz a encomenda, na escolha dos temas e na sua abordagem.


Figura 2 - Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Detalhe do painel da nave.

Estas grandes alegorias - conceitos transmutados em imagens” - são de grande impacto psicológico e muito pouco intelectual, pois buscam produzir um encan­ tamento e envolver o fiel pelos seus sentidos e não pelo seu intelecto. Nessa linha, os painéis da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro oferecem um a fonte imensa para o estudo das simbologias da época. Eles revelam todo um repertório de significados que permite dar crédito a Santos Simões na sua decifração iconográfica de que se tratam de cenas do Cântico dos Cânticos de Salomão, contrariamente à tese sustentada por Frei Pedro Sinzig, que, consultado em 1940 pelo provedor da Irmandade, Thiers Fleming, desenvolveu a hipótese de ilustrarem o Livro de Tobias. Há toda uma simbologia de origem mística que permeia a Igreja, sua conformação em oito (infinito) e a disposição dos painéis, permitindo que o peregrino (tratava-se, no século XVIII, de um local de peregrinação) desenvolvesse sua deambulação, no seu caminho ao encontro de Deus. Tendo perdido o paraíso de sua alma, o homem do


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século XVII, como dizia Paracelsus - médico e alquimista será um eterno caminhante. O próprio São Boaventura escreveu sobre a viagem da mente para Deus. Baltasar Gracián transpôs para a literatura as idéias pedagógicas jesuíticas os instintos maus podem ser dominados, os bons, aperfeiçoados, buscando alcançar um fim deliberadamente escolhido. O triunfo do “livre arbítrio”. O herói inaciano é um cavaleiro errante que tem como meta alcançar a salvação. Ele se encontra frente a um labirinto onde muitos caminhos lhe são abertos. Sua liberdade de escolha é total, mas ele não está abandonado por Deus. Seu entendimento será um de seus fios condutores. N o Criticón Gracián faz a parábola dessa viagem do homem pelo mundo, em que Critilo representa a Razão, que guiará Andrenio, o Corpo, no encontro de Viterlia, a verdadeira virtude, e que por sua vez indicará onde se encontra a desejada Felisinde, mãe e esposa, respectivamente20 - no céu. Nos painéis do Outeiro da Glória temos essa figura do peregrino com seu cajado e do anjo que o guia, ajudando-o a vencer as seduções do mundo terreno, para alcançar, no último painel, a figura da Suma Beleza, uma interpretação alegórica de Nossa Senhora, às vezes apresentada como uma suprema virtude, outras como a Vênus Celeste, significando o amor sagrado, em contraposição à Vênus Terrestre, o amor profano. Cesare Ripa, na sua Iconologia, apresenta Cupido com grandes asas e que ilustra o desiderio verso Iddio - o desejo que tem Deus por objeto (Figura 2). O cupido é símbolo do desejo místico de união com Deus. Cupidos estão presentes em todos os painéis dessa Capela, nos seus temas centrais, nas carteias, nas pilastras, em todos os lugares. As imagens da Glória carregam uma linguagem erótica, exemplificada não só pela profusão de cupidos com suas flechas, mas também nos dois painéis com mulheres deitadas, o primeiro à esquerda da entrada e sobretudo o ultimo a direita, trazendo a espada “fálica”, os “frutos” da fertilidade. Parece-nos estranho tal vocabulário em local de oração. A escolha começa a ter sentido se fizermos uma leitura do casamento místico, da dor no extase, lembrando Santa Tereza de Bernini, extasica, transbordando de amor, atingida pelo dardo celeste . Frei Agostinho de Santa Maria, no seu Santuário Mariano, trata da invocação de Nossa Senhora da Glória: “ ... Maria Santíssima como May experimenta em si gozo e glória, nas suas penas e nos tormentos que seu Santíssimo Filho padece, porque amando Maria com resignação de May a vontade de Jesus Deos, tem tanta glória e gozo em o ver padecer Homem que estava tao gostosa e conforme com a divina vontade... Gilberto Freyre nos fornece ainda uma pista para entender a representação simbólica dessa Igreja. Analisando as influências que a cultura árabe deixou para a religião portuguesa, citando os painéis de azulejos diz que. ...animaram-se de formas quase afrodisíacas nos claustros dos conventos e nos rodapés das Sacristias. De figuras nuas. De Meninozinhos-Deus em que as freiras adoravam muitas vezes o deus pagão do amor de preferência ao Nazareno, triste e cheio de feridas que morreu na Cruz”22 (Figura 3).



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I endo deam bulado de frente para todos os painéis da Igreja, que represen­ tam uma metáfora do caminho da vida, o peregrino encontra-se diante do último painel que marcará, com sua sim bologia do casamento místico, o encontro com Deus, ou melhor, proporá a possibilidade desse encontro com Deus depois da sua morte, quando verdadei­ ramente se encerrará sua peregrinação errante.

III A grande metáfora barroca é no entanto o próprio movimento em si. O barroco é a arte do m undo em mutação e, se representa uma conquista espacial, fá-lo na medida que conjuga espaço, volumetria e elementos decorativos atuando na ruptura com o cubo perspectivo renascentista, tectonicamente fechado23. Busca-se o espaço infinito que não pode ser objeto de uma representação figurativa, não pode ser expresso por uma imagem que pressupõe um nome em conformi­ dade com um conceito, como foi definido por Cesare Ripa na sua Iconologia: “Con questo poi siform a iarte deli 'altre Im agini, le quali appartengono a l nostro discorso, per la conformità che hanno con le defin itioni’!4. Esta representação, ou melhor, o “sentimento” do que seria o espaço divino, a possibilidade de uma nova vida depois da morte, será confiada à decoração interior que terá por causa final mobilizar o olhar do espectador para todos os lados, jogando com seus impulsos emotivos da mesma maneira que o orador sacro, que o tentou convencer por argumentos, tocando magicamente a mola dos afetos, atingindo-lhe a alma, mobilizandoa também. C om o disse Germain Bazin, o barroco é uma “miragem” que “predispõe a alma a apreender tudo enquanto fato”23. O jogo com a luz, a magia de seus efeitos, se originará nas Igrejas da América do Sul da decoração em talha dourada, que chegará a receber em alguns lugares pedaços de espelho para acentuar ainda mais seu brilho insólito. T ambem a azulejaria terá um papel a desempenhar nessa procura do indefinido que fascina. Mais do que nunca, o apelo sera sobre a visão do espectador, que transportara para a alma o tumulto que o olhar experimenta, contrariamente ao que acontece com a imagem figurativa, que pressupõe por parte do espectador um certo conhecimento de um codigo que o permitira reconhecer, na cena que lhe é apresentada, a alegoria que representa. O próprio material de que é feito o azulejo (o esmalte branco, conferindolhe um brilho irregular, já faria o olhar brincar no seu nacarado); a decoração em azul, cor da desmaterialização da imagem, do im palpáveb(; o jogo com certos elementos ar­ quitetônicos, a pintura em perspectiva de paisagens ou interiores, tudo contribui para criar a ilusão de movimento. N a Igreja de Nossa Senhora da Saúde, que possui um alisar com nove azulejos de altura, a dinamização do espaço se dá com o uso da pintura dos elementos


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arquitetônicos que compõem a moldura, em diversos planos, fazendo o desenho central saltar para fora da parede, e os intervalos entre os painéis entrarem parede a dentro, vazando-a. Nas cenas centrais nem sempre o ponto de fuga é único, e uma parede parece que vai desabar em cima do passante. A busca de profundidade, de transpassar o muro e ganhar o exterior, vai fazer com que através do azulejo se desenvolva a paisagem com o um novo gênero de pintura, tratada de maneira mais elaborada que na pintura a óleo. O s painéis de azulejos possuem cercaduras muito precisas, molduras enquadrando uma cena que irá perder-se no hori­ zonte. A Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro oferece ótimos exemplos para estudarmos o que teria sido uma primeira fase dessa história da pintura de paisagem, quando, por influência da Arcádia, pintavam-se cenas pastorais completamente ideali­ zadas, quase sempre copiadas de gravuras importadas por Portugal da França ou do Norte da Europa, marcando uma nova relação do homem burguês com a natureza. Já numa segunda fase da pintura de paisagem vai dar-se a influência do naturalismo de Jean Jacques Rousseau, a volta a uma simplificação em que os ceramistas Figura 4 -Convento de Santa Teresa. Detalhe de painel da portaria.


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interpretarão a paisagem diretamente da natureza. Um exemplo seria o painel da Portaria do Convento de Santa Teresa: “Neste castigou os Adam quão comece senão a custa do sor de seu rosto”. A cena que mostra o lavrador arando a terra, Eva representada como cabocla, choupana e palmeiras no fundo, é uma tentativa de falar com mais realismo ao povo, em contraste com as pinturas da Sacristia da Glória, onde os peregrinos do século XVIII deparavam-se com cenas de nobres conversando, de caçadas ao javali e à corça, jardins ao modo de Le Nôtre. Difícil imaginar a reação dos cariocas diante de cenas tão afastadas da sua realidade cotidiana (Figura 4). Nessas pinturas de paisagem, em que o olhar vagueia no horizonte, que se apresenta infinito, introjeta-se também a idéia da possibilidade de salvação que permeia toda a produção artística da Igreja da Contra-Reforma. O homem novo imagina-se capaz de uma vida melhor depois da morte, uma vida em Deus, quando contempla o espaço que se apresenta liberto. Assim, a azulejaria setecentista encontrada no Rio de Janeiro documenta todo o procedimento de determinada época, especialmente o afã do poder real em imitar a corte de Luiz XIV, e que, à falta de recursos, limitou suas ambições ao terreno das artes decorativas (Figura 5). Figura 5 - Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Detalhe de painel da sacristia.


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Notas

1. Panofsky, Erwin. Significado das Artes Visuais. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 51. 2. Panofsky, Erwin. op.cit., p. 52. 3. Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 4aed., São Paulo, Perspectiva,

p. 982, p. 14. 4. Hoonaert, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro, 1500-1800. 2a ed., Petrópolis, Vozes, p. 32. 5. Hoonaert, Eduardo, op.cit., p. 32. 6. Argan, Giulio Cario, op.cit., p. 258. 7. Argan, Giulio Cario, op.cit., p. 303. 8. Argan, Giulio Cario. Storia dellãrte italiana. Firenze, Sansoni, p. 258. 9. De Certeau, Michel. op.cit., p. 13. 10. Bazin, Germain. op.cit., p. 45. 11. Aristóteles. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro, Tecnoprint, Cap. XXV,7, p. 342. 12. Aristóteles, op.cit:, Cap. 11,1, p.34. 13. Argan, Giulio Cario. L 'Europe des Capitales. Génève, Skira, p. 31. 14. Argan, Giulio Cario, op.cit., p. 33. 15- Damisch, Hubert. Fhéoriedu nuage, pour une histoirede lapeinture. Paris, Seuil,

1972, p. 80. 16. Gracián, Baltasar. Figures du Baroque. Paris, Presses Universitaires de France, 1983, p. 306. 17. Argan, Giulio Cario, op.cit., p. 42. 18. Argan, Giulio Cario, op.cit., p. 48. 19. Argan, Giulio Cario, op.cit., p. 43. 20. Pelegrín, Benito. Éthique et esthétique du Baroque, 1’espacejésuitique de Baltasar Gracián, Actes Sud. 21. 1 ellcs, Augusto Carlos da Silva. Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Arte no Brasil, 1, Rio, Agir, 1969, p. 11.


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22. Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, p. 224. 23. Zevi, Bruno. Saber ver a Arquitetura, p. 135. 24. Damisch, Hubert. op.cit., p. 80. 25. Bazin, Germain. L'Architecture Religieuse Baroqueau BrésiL vol. 1, Paris, Plon, 1956, p. I. 26. Bachclard, Gaston. L Air et les sonjes essai sur Vimagination du mouvement. Paris, José Conti, 1987, p. 191.

MARIA MESQUITA é graduada em Letras pela PUC/RJ e formada pelo de Especialização em História da Arte e da Arqu.tetura no Brasil da I UC/ RJ.


-mor/arco cruzeiro primitivos.


HELOÍSA M AGALHÃES D U N C A N

D iferentes M om entos da Talha Religiosa da Igreja do M osteiro de São Bento

No estudo da talha religiosa colonial do Rio de Janeiro, a igreja do Mosteiro de São Bento assume particular interesse por reunir as principais tendências estéticas do final do século XVII e de todo o século XVIII, dispostas em segmentos organizados de tal forma que o espírito de unidade que preside cada fase estilística integra-se organicamente no conjunto da obra, resultando numa composição harmoniosa e dinâmica. A igreja beneditina do Rio de Janeiro permite uma leitura dos vários momen tos artísticos da talha colonial de acordo com a classificação tipológica smithiana,1 reve­ lando ainda a interação de mecanismos de propulsão e resistência que atuam nos processos de implantação, fixação e ruturas estilísticas - quer através da adoção precoce de um partido decorativo, evidenciando um espírito inovador; quer através da soma de diversas gramáti­ cas estilísticas, caracterizando as indecisões dos momentos de passagens; quer através de mudanças de estética, definindo transformações de concepção plástica ornamental. Outro aspecto relevante apresentado pelo cenóbio beneditino do Rio de Janeiro é a qualidade do elenco de artistas-entalhadores que, por mais de um século, realizaram a obra de talha da igreja. Cumpre-nos reconhecer, entretanto, que apesar das pesquisas exaustivas de D. Clemente da Silva-Nigra2 em relação aos artistas e obras do Mosteiro, ainda persistem certas dúvidas quanto a datas e autoria de alguns retábulos, pela precariedade da documentação a este respeito. Resta-nos, desta forma, levantar hipóteses tendo por base a periodização da talha em Portugal3 e o confronto das características estilísticas individuais dos seus artistas, na tentativa, não de firmar conclusões prematuras, mas de abrir caminhos que possam trazer alguma contribuição na solução destas questões. A talha da igreja, concebida no terço final do século XVII dentro da estética do estilo nacional português, foi sendo executada vagarosamente e com interrupções, sempre repetindo o mesmo partido ornamental ate a terceira década do século seguinte (1734), quando, tardiamente e de forma incipiente, as primeiras manifestações de mudança estilística começaram a tomar lugar - como, por exemplcf, nos altares laterais de Santa Mechtildes e de Santa Gertrudes. Somente na década seguinte (1747) é que o barroco D. João V vai-se impor de forma plena nas capelas laterais. Finalmente, na penúltima década do século (1788) o estilo rococó chega à igreja de São Bento com a remodelação do revestimento do arco cruzeiro e da capela-mor e a execução da talha da capela do Santíssimo Sacramento (1795 a 1800). A talha de linguagem decorativa barroca de 1* fase foi realizada de acordo com um projeto geral - risco e mosteiro em breve ponto ou maquete - elaborado por Domingos da Conceição, por volta de 1670, segundo supõe D. Clemente da Silva-Nigra.4


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Germain Bazin,5 no entanto, considera prematura esta datação, tendo em vista a cronologia da talha portuguesa. Realmente, atentando para o fato de que as primeiras manifestações do estilo nacional português remontam, em Portugal, ao início do último quartel do Seiscentos - retábulos de São Nicolau do Porto e retábulo da Árvore de Jessé de Santa Maria de Beja, ambos de 1676, hoje perdidos6 - caberia uma pergunta: seria possível a Colônia antecipar-se ou mesmo equiparar-se à Metrópole? Contudo, os relatórios do Catálogo dos Abades, informando sobre a cronologia das obras do Mosteiro, consignam o início da execução do retábulo da capela-mor em 1669 e seu término em 1676. Que estilo teria, então, esta talha? Seria maneirista? Em caso de resposta afirmativa, teríamos como conclusão que o retábulo da capela-mor se diferenciaria estilisticamente do arco cruzeiro, já que, quanto a este, não há dúvidas em relação ao seu estilo, conforme prova sua parte remanescente - colunas externas com seu respectivo arco e todos os painéis abaixo do entablamento. Esta suposição invalidaria, ainda, o único documento iconográfico exis­ tente deste conjunto, que é uma reconstituição em desenho de autoria do Irmão Paulo Lachenmayer. Não nos parece válida a hipótese levantada. O sentido de unidade que sempre orientou os trabalhos da Igreja não oferece justificativa para tal diferenciação. Trata-se, portanto, de uma questão que merece maiores pesquisas, tendo em vista uma melhor compreensão do fenômeno barroco no Rio de Janeiro. Deixando de lado este ponto ainda não devidamente esclarecido e tomando cruzeiro e vista

nave.


Talha Religiosa da Igreja do Mosreiro de São Bento

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em consideração apenas as talhas do arco cruzeiro do final do século XVII, verifica-se que a contemporaneidade desta obra permanece em relação às manifestações estéticas portu­ guesas. Segundo Germain Bazin, trata-se também de um exemplo precoce de igreja toda forrada de ouro." Dom ingos da Conceição foi o primeiro entalhador da igreja do Mosteiro de São Bento e o responsável por toda a obra seiscentista, além de autor do controvertido projeto geral da talha. Posto que a maior parte deste trabalho não mais existe e que a questão estilística da capela-mor permanece ainda no cam po indeciso das hipóteses não com­ provadas, temos que recorrer à reconstituição iconográfica do Irmão Paulo Lachenmayer para a análise desta talha. Todas as principais características do estilo nacional português estão aí representadas. O s suportes, em colunas torsas, pseudo-salomônicas com espiras cobertas por parras, sustentam arquivoltas concêntricas que repetem a decoração das colunas. A combinação de suportes e arcos de igual ornamentação transmite ao conjunto um ritmo de continuidade orgânica e um sentido de harmoniosa unidade, privilegiando o aspecto escultural cm detrimento do arquitetônico. O retábulo e o arco cruzeiro assemclham-se a arcos do triunfo, cuja plástica decorativa organiza o espaço em painéis e frisos com suas superfícies invadidas por acantos em forma de plumagem, envolvendo temas simbólicos - crianças representando a Colheita Eucarística; fênix, a Ressurreição, pelicanos, a Euca­ ristia; flores, geralmente margaridas, simbolizando a inocência do Menino Jesus. Arco cruzeiro. Base de coluna torsa.


A talha das paredes laterais e do forro da capela, também compartimentada e seguindo a linha decorativa acântica, cede espaço a painéis pintados por Frei Ricardo do Pilar (1669-1679), cujos temas são relativos a aparições de Nossa Senhora a São Bento. O revestimento da nave já é obra do século XVIII, mas apresenta um sentido de unidade com a talha seiscentista, revelando a preocupação com a manutenção do partido decorativo estabelecido anteriormente, ou seja, o barroco de 1* fase. A datação do início dessa obra não é m uito precisa. Porém, entre 1704 e 1714, é certo Frei Domingos da Conceição ter executado a talha do arco da capela lateral de São Cristovão,9 que se tornou o modelo de todos os outros arcos da nave. A capela de São Cristovão transformou-se, em 1795, na capela do Santíssimo Sacramento. A conti­ nuação da talha da nave ficou a cargo de Mestre Alexandre M achado Pereira, que, entre 1714 e 1717, revestiu o arco da capela da Imaculada Conceição, sendo em seguida contratado para o restante da obra."’ Sabe-se, com certeza, que este trabalho estava concluído em 1734. Com o o último sinal que se tem de Mestre Alexandre data de 1721," torna-se difícil saber se foi este artista que completou todo o revestimento. A composição da talha da nave, sob o ponto de vista plástico, organiza-se também de forma compartimentada em painéis que recobrem os arcos e pilares até o entablamento. Com exceção dos pilares que ostentam os púlpitos, todos os outros apresentam duas esculturas de santos benedititinos, perfazendo um total de 12 imagens -


quatro santos imperadores, quatro papas e quatros santos arcebispos obra dos artistas José da Conceição e Sim ão da Cunha. A ornamentação mantém a estética do barroco de 1‘ fase, articulando acantos espiralados num lirismo decorativo de ritmo flexível, enquadrado em moldurações inflexíveis. Envolvidos nesta floresta acântica que se projeta dos painéis, despontam putti em posições dinâmicas, pássaros e pequenas flores. Germain Bazin12chama a atenção para as pequenas diferenças de tratamento formal entre a talha do 1" e 2° tramos da nave. Neste último, a plasticidade dos elementos decorativos diminui, surgindo uma talha com inclinação para a regularidade; o acanto torna-se menos exuberante, enquanto que os putti perdem a robustez, a figura se atrofia, diminuindo de tamanho. Este fenômeno talvez signifique o esgotamento de um estilo e seu reflexo na lenta transformação que se processa e se acumula na produção artística até a adoção de uma nova estética que, na igreja beneditina do Rio de Janeiro, acontecerá com um certo retardamento e timidamente (1734) nos dois altares laterais, idênticos, da entrada da nave - altar de Santa Mechtildes à esquerda e o de Santa Gertrudes à direita - obra dos artistas José da Conceição e Símão da Cunha.13 Estes altares representam uma fase de transição da estética beneditina: o antigo vocabulário havia alcançado o limite de suas possibilidades; o novo vocabulário, entretanto, ainda não fora totalmente aceito, acar­ retando uma superposição de linguagens plásticas.


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Tratam-se, portanto, de retábulos que reunem características do barroco de T fase aliadas a elementos do barroco de T fase. O estilo nacional português é definido pela estética dos acantos retorcidos emergindo dos painéis e pelos suportes, em pilastras, que se transformam em remates concêntricos dando continuidade à linguagem plástica ornamental e fechando o coroamento. Apesar de ser o mesmo vocabulário da nave, os ornamentos já são tratados de forma bastante diferenciada, sem o mesmo vigor, tornando-se mais presos ao painel, perdendo o volume e deixando perceber segmentos vazios. N o coroamento, observam-se os primeiros sinais do estilo barroco D. João V. Novos motivos decorativos são intro­ duzidos - festões, dossel arrematado por sanefas, panejamento em cortinas esculpidas, com movimento diagonal, seguras por dois grandes anjos - tornando mais eloqiiente o conjunto. Além desdes altares, que na verdade são falsos, adossados à parede e sem tribuna, os artistas José da Conceição e Simão da Cunha realizaram também toda a talha debaixo do coro (1739 a 1743).14 Nesta parte da nave, a decoração procura libertar-se da antiga estética através de acantos já dissimétricos que se organizam em concheados sinuosos. A fixação da estética barroca D. João V se concretiza na igreja de São Bento, somente a partir de 1747, apesar deste estilo já ter-se instalado no Rio de Janeiro desde a T década do século XVIII (1726), com a talha dos Brito - Francisco Xavier de Brito e Manuel de Brito - na igreja da Ordem 3a de São Francisco da Penitência.|S O reflexo do “estilo Brito” vai-se dar, então, nos sete retábulos das capelas laterais, de autoria ainda não identificada. Sabe-se, apenas, que são obras contemporâneas ao trabalho dos artistas Simão da Cunha e José da Conceição (este falecido em 1755), conforme atestam recibos de pagamento por outros serviços.16 A estrutura compositiva e a proposição formal destes altares laterais é bastante semelhante, verificando-se, apenas, algumas variações de interpretação e de tratamento do mesmo vocabulário plástico, além da substituição dos atributos iconográficos, de acordo com a simbologia cristã de cada santo. O retábulo da Imaculada Conceição é o mais antigo de todos. A única diferença marcante entre este altar e os demais é o painel da tribuna, que, neste caso, se apresenta quase totalmente recoberto por volutas formando nuvens revoltas que envolvem querubins, enquanto que, nos outros, a ornamentação se faz de forma espaçada e de volume reduzido, em perfis entrelaçados com elementos fitomorfos. O retábulo de São Lourenço, o último a ser executado (depois de 1772), demonstra que o espaço de mais de um quarto de século em nada alterou a gramática estilística. O espirito de unidade que presidiu, durante 65 anos, a talha do corpo da igreja, repete-se agora, pelo período de mais de 25 anos, nestas capelas que invocam os oragos Imaculada Conceição, São Lourenço, Santa Certrudcs e São Brás pelo lado direito e Santo Amaro, Nossa Senhora do Pilar e São Caetano pelo esquerdo. No partido ornamental do barroco D . João V, o coroamento perde o fechamento hermético, explodindo numa apoteose decorativa; as figuras esculpidas em


Nave. Entrada da Igreja. Pia de água.

Capela lateral. São Lourenço.

Capela lateral. São Lourenço. Ilharga.


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meio relevo conquistam sua autonomia, libertando-se da trama decorativa e projetandose sobre pilastras, fragmentos de arcos ou outros elementos arquitetônicos, sempre em gesticulações dramáticas; os motivos decorativos, apesar de mais esparsos e menos volumosos, diversificam-se, predominando os feixes de palmas e de plumas, os folhetos, os botões de flores, as grinaldas (principalmente de rosas, margaridas e girassóis), os perfis entrelaçados, as volutas retorcidas e os medalhões, além de dosséis, sanefas e cortinas; os suportes alternam pilastras, geralmente misuladas, com colunas berninianas ou salomônicas - fuste em espirais, terço inferior estriado, ornamentação em flores, o perfil da tribuna se enriquece em renda formada por entrelaçamentos de pequenos motivos ornamentais onde, na maioria das vezes, se encaixam querubins e flores. Cabem, aqui, algumas reflexões sobre os esquemas ornamentais adotados nas duas fases do barroco. Observa-se que o estilo Nacional Português utiliza-se de um vocabulário decorativo mais reduzido, tendo no acanto seu elemento predominante que, dobrando-se, enroscando-se em curvas, em espirais, produz um movimento incessante de formas e volumes. Os atributos da iconografia cristã, envolvidos nesta decoração luxuriante, não tornam flagrante o discurso simbólico religioso. O apelo ao sentido religioso se dá muito mais através do sentido plástico do que do discurso literário. Já o barroco joanino é discursivo e retórico. Os motivos ornamentais, embora mais variados, são espaçados e presos ao painel, enquanto que as figuras e símbolos ganham destaque. Grandes anjos ora em atitudes de devoção, incentivando a humildade, ora em atitudes triunfais, glorificando os céus, somam-se a atributos iconográficos iden­ tificando passagens do Velho e Novo Testamento ou ainda registrando fatos da vida dos santos e da Virgem. Deixando de ser centrada na forma estética para se materializar no discurso simbólico, a intenção de persuasão religiosa passa a ser explícita, palpável. Retomando a talha beneditina, verifica-se que, no último quartel do século XVIII, a igreja do Mosteiro de São Bento adota o estilo rococó, passando por transfor­ mações que alteram seu aspecto anterior e lhe dão a feição que ainda hoje ostenta. Mestre Inácio Ferreira Pinto foi contratado, em 1788, para reformar a talha do arco cruzeiro e fazer um novo revestimento para a capela-mor. Porém, até a descoberta de documentos, em 1949,' que comprovaram sua autoria, esta obra era atribuída a Mestre Valentim da Fonseca e Silva. N o arco cruzeiro permanecem, do antigo vocabulário barroco de 1 fase, os painéis abaixo do entablamento, as colunas externas e o arco concêntrico que lhes dá continuidade; a nova talha de linguagem rococó é, então, cercada por essa moldura barroca. O confionto entre a nova coluna em fuste reto canelado, com ornamentação variada, e o antigo suporte espiralado, decorado por videiras naturalistas, oferece um exemplo eloqüente das diferentes concepções estilísticas que foram associadas nesta talha, tornando-a uma obra híbrida. No coroamento, os eleitos ondulantes do decor rococó são neutralizados pelo tratamento formal rígido que dá ao conjunto uma aparência pesada, distante da leveza e graciosidade características deste estilo. Acrescentem-se ainda a profusão decorativa e o


Capela-mor. Coroamento do retábulo.

douramento total não condizentes com a gramática rococó que privilegia os espaços livres, a ornamentação elegante que joga com o contraste dourado versus cores claras. Provavel­ mente a adoção de tal partido foi uma conseqüência da tentativa de harmonia com o vocabulário exuberante e totalmente dourado do estilo nacional português. A talha do altar-mor, a despeito do revestimento ser inteiramente novo e de seguir a linguagem rococó, ainda apresenta certa submissão ao barroco de 2a fase, pois os suportes se fazem por colunas berninianas. O coroamento tem alguma semelhança com o perfil à chinesa pelas linhas ascendentes do seu frontão. As rocailles, entretanto, densas e consistentes entrelaçando-se com perfis sinuosos de excessivo volume, disfarçam os festões pendentes.


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Capela-mor. Painel lateral.

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A talha das paredes laterais da capela-mor repete a mesma plástica pesada pela força dos relevos compactos imitando bronzes m odelados; no entanto, a estética rococó se evidencia na ornamentação espaçada que utiliza a rocaille como elemento predominante, combinada com motivos naturalistas em oposição à superfície lisa das paredes pintadas de marrom avermelhado e ostentando as pinturas de Frei Ricardo do Pilar, da antiga decoração. O aspecto severo e contido das rocaillesdenuncia um tratamento formal pouco afeito a minúcias e detalhes. Falta-lhe o vazado, o rendilhado e, na maioria das vezes, a assimetria e o esgarçamento.


O revestimento de talha da capela do Santíssimo Sacramento, embora realizada no fechamento do século XVIII (1795 a 1800), época de transição para o academicismo, apresenta uma linguagem mais rococó que a capela-mor. Sua autor,a e ainda bastante controvertida por falta de provas conclus.vas. O s untcos documentos existentes, um risco e um relato minucioso da obra,'» não regtstram os nomes dos autores. Porém, a comprovação de autoria de Mestre Inácio nas talhas do arco cruze,ro e capelamor levou D. Clem ente a atribuir também a este arnsta o revest,mento da capela do Santíssimo Sacram ento.1


GÁVEA

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A análise das talhas destas duas capelas evidencia concepções estéticas diferenciadas, sem contudo se constituírem em provas convincentes para invalidar a hipótese aventada por D. Clemente. A obra de Mestre Inácio é instigante. N a Igreja do Carmo da Antiga Sé, seu primeiro trabalho conhecido (1785) e de autoria confirmada,'" o estilo ornamental revela uma linguagem aliviada pela diafaneidade dos motivos deco­ rativos assimétricos, graciosos e libertos que se derramam pelos painéis. A leveza das rocailles esvoaçantes, a sutileza formal dos elementos fitomorfos, produzem efeitos plásticos que se opõem à simetria, ao peso dos agrupamentos, ao abandono das minúcias da talha da capela-mor da igreja beneditina. Por outro lado, tal modelado severo e compacto se repete em outro trabalho de Mestre Inácio realizado na igreja da Irmandade de Nossa Senhora Mãe dos Homens (1789),21 configurando a versatilidade de tratamento formal deste entalhador, cujo domínio da habilidade técnica é inquestionável. A autoria da capela do Santíssimo Sacramento é, portanto, uma questão merecedora de estudos e pesquisas. Em relação ao estudo do vocabulário rococó dessa capela, verifica-se que os suportes do retábulo, berninianos, também fogem a esta gramática, sem, no entanto, destoarem do conjunto, seja pela graciosidade de suas espirais alongadas, seja pelo recorte e sinuosidade das flores e folhas de suas guirlandas. O sacrário, de grandes dimensões, destaca-se pela ornamentação de relevo suave que enfatiza seu aspecto rendado e sua forma ondulada. O ritmo elegante do coroamento é alcançado pelas inflexões de seu dossel e pela influência chinesa do perfil de frontão. No fosso e nas paredes laterais da capela o ritmo decorativo segue o mesmo esquema plástico suave e requintado. Em síntese, a igreja do Mosteiro de São Bento é um “santuário” da expressão estética colonial dos setecentos, cujos valores formais demonstram as diversas tendências estilísticas transplantadas da metrópole. Sua obra de talha revela ainda a teatralidade típica desta arte religiosa na qual a imaginação é superada pela decoração luxuriante, grandiosa e cenográfica, cujo esquema compositivo, privilegiando linhas curvas, formas contorcidas e ondulantes, adapta-se perfeitamente à exuberância de nossa vegetação tropical.22 A talha, por sua particularidade dé suscitar o sentimento religioso pela via do fascínio visual, imprimindo ao mesmo tempo a glória do poder divino e a glória do poder temporal da Igreja, tornou-se a arte de impacto do barroco e rococó. Sem dúvida, a talha constituiuse num meio capaz de operar o valor emotivo da comunicação, criando uma realidade sensível que “falava” uma linguagem mais direta do que as próprias palavras. E a igreja do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro é um testemunho vivo e grandiloquente deste fenômeno. Notas 1. Smith, Robert. A Talha em Portugal. 2. Silva-Nigra, D. Clemente da. Construtores e Artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. 3. Smith, Robert. op.cit.


Talha Religiosa da Igreja d o M osteiro de São B en to

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4. Silva-Nigra, op.cit., p. 70. s=>. Bazin, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no BrasiL Tomo I, p. 296. 6. Smith, Robert. op.cit., p. 70. 7. Silva-Nigra. op.cit., p. 126. 8. Bazin, Germain. op.cit., p. 295. 9. Silva-Nigra. op.cit., p. 136. 10. _______ . op.cit., Documento 42, p. 73. 11 • _______ . op.cit.. Documento 43, p. 79. 12. Bazin, Germain. op.cit., p. 298. 13. Silva-Nigra, op.cit., Documento 47, p. 94. 14. Silva-Nigra. op.cit., p. 148. 15. Barata, Mário. Igreja da Ordem 3 a da Penitência do Rio de Janeiro, p. 25. 1 6 . ______ . op.cit., Documento 48, p. 94. 1 7 . ______ . op.cit., Documentos 84 e 85, pp. 151 a 153. 1 8 . ______ . op.cit., Documento 86, p. 154. 19. A este respeito, D. Clemente, op.cit., p. 153. “E, muito provavelmente, é também este (Mestre Inácio) o legítimo Autor da graciosa capela do Santíssimo Sacramento.” 20. Ver a este respeito: Pastas referentes à Igreja do Carmo (ex-Catedral) no Arquivo de Inventário do SPHAN, especialmente, os textos de Barreto, Paulo Thendin, Santos, Noronha, e Silva Telles, Augusto Carlos. Ver também: Moreira de Azevedo, Manuel Duarte. O Rio de Janeiro, sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. RJ, 1969, Tomo I, p. 84. 21. Autoria comprovada in Livros de Atas da Irmandade de Nossa Senhora Mãe dos Homens 1784/1890, fl. 5. 22. Averini, Riccardo. A Tropicalidade do Barroco, p. 332.

HELOÍSA MAGALHÃES DUNCAN é graduada em Museologia pela UNI-RIO e formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC/RJ.



MARIA ED U A R D A C A S T R O M A G A LH Ã ES M A R Q U ES VERA BEATRIZ C O R D E IR O SIQ U EIR A

O R io de Janeiro Setecentista: A H istó ria da C o n stru ção da Capital

O Rio de Janeiro setecentista é uma cidade em movimento. De localidade portuária cobiçada por corsários franceses passa à condição de capital da colônia lusa. Uma movimentação que se inicia com a ocupação cautelosa das terras enxutas da várzea e, ao findar o século, apresenta uma cidade cindida em dois espaços socialmente distintos: o Bairro da Misericórdia e os terrenos recentemente incorporados do antigo campo da cidade. Essas duas áreas urbanas, que o século seguinte irá nomear “Cidade Velha” e "Cidade Nova”, sintetizam uma lógica de divisão social do espaço urbano característica não mais de um mero porto colonial, mas de uma cidade que se vê e se arruma como uma “capital”. Ainda que diverso, na opulência e no fausto, das capitais européias de então, guardados o recato e a discrição que convêm à colônia, o Rio de Janeiro afirma-se no século XVIII como a sub-sede do império lusitano do ultramar. Apesar de Salvador ter permanecido oficialmente capital até 1763, é nos setecentos carioca que a idéia de capital se condensa na vida colonial. E é a construção dessa capital que imprime a marca da grande aventura urbana do Rio setecentista. A articulação entre construção e aventura consagra o caráter específico do movimento urbano de então. Trata-se de um a expansão marcada pelo experimento cotidi­ ano, pela vivência empírica do espaço físico e social. Traz antes o sinal da cautela e do comedimento que o da ousadia. Construção que se faz sem plano, que vai no mesmo processo erguendo a cidade e sedimentando a idéia de capital. Não uma noção abstrata de capital, mas o esforço rotineiro de levantar casas, de abrir ruas e, sobretudo a partir de meados do século, de hierarquizar os espaços. O prim eiro assentamento na várzea, berço definitivo da cidade, não obedece a nenhuma ordenação rígida. A unica orientação parece ser a perseguição da marinha. Assim, a trama de ruas que compõe esse sítio tem como eixo a Rua Direita, que acompanha a praia, a partir de onde se definem as paralelas e as transversais. O traçado mais ou menos regular dessas vias pode sugerir a adoção de uma lógica planificadora. Contudo, as primeiras ruas da cidade, ao invés de resultarem de um plano, sãariscadas em função das edificações, ou com o intuito de permitir o acesso a um sítio distante da orla. A própria designação dessas vias, comumente chamadas de “caminhos”, revela a feição do primitivo arruamento carioca, formado essencial mente por vias de acesso a determinados sítios ou casas.

Vale notar que apenas no final do século XVIII as ruas vêm a ser conhecidas pelos seus nomes. Anteriormente prevalecem as inúmeras designações de determinados


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nj Richard Bates, “West Side of Rua Direita”, 1808. Aquarela. sítios, esquinas ou cantos, geralmente relacionadas a um excêntrico ou ilustre morador. Só a Rua da Quitanda, por exemplo, possuía o “canto dos Meirinhos”, o “canto do Tabaqueiro”, além do trecho conhecido até meados do século XIX por “Sucussarará”, em alusão aos prognósticos do médico inglês face à enfermidade do comerciante português que ali habitava. O curioso hábito carioca de nomear seus sítios pelas suas referências específicas e a recusa em utilizar denominações globalizantes exprimem a natureza da vivência espacial urbana. Cada recanto da cidade, sobretudo daquele primeiro assentamento na várzea, encerra uma particularidade, tornando-se irredutível à designação geral da rua. O mais antigo caminho da cidade, e que veio a ser o eixo viário mais impor­ tante do século XVIII - a Rua Direita - tem seu desenho definido a partir do desejo de ligação entre o Morro do Castelo e o Morro de São Bento, onde situavam-se, respectiva­ mente, o Colégio dos Jesuítas e o Convento dos Beneditinos. A despeito do que o nome sugere, sua linha é sinuosa, acompanhando o contorno curvo da praia. Situada numa restinga arenosa, limitada à frente pela imensidão do mar, a Rua Direita exibe o distintivo da urbanidade carioca dos setecentos: volta-se obstinadamente para a marinha e faz a ligação de dois destacados lugares da cidade. O século traz consigo modificações significativas para a antiga Praia de Manuel de Brito. O caminho que unia os altares beneditinos aos jesuítas ganha novo estatuto. Passa a sintetizar a vocação mercantil da cidade colonial. Nas suas margens erguem-se os armazéns da alfândega, as mais diversas lojas e sobrados, assim como importantes casas da administração colonial: a antiga Casa dos Contos, o Armazém do Selo da Alfândega, a Companhia Geral da Junta do Com ércio - transformada em Arsenal da Marinha em 1764 - e o Paço dos Governadores.

Foto Eduardo Mello

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A História da C o n stru ç ão da C ap ital

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A reunião dos grandes negócios marítimos e dos altos órgãos administrati­ vos faz da Rua Direita uma via de intenso movim ento. Mas não são só a gente do comércio e os funcionários da coroa lusa que compõem sua paisagem humana. Durante quase todo o século a rua concentra um verdadeiro mosaico social. Em seu leito convivem confusamente carruagens, carros de boi, senhores de cartola, ambulantes, membros da guarda, escravos aguadeiros, autoridades, lavadeiras, senhoras em cadeirinhas e serpentinas, irmãos pedintes. I urbulenta circulação da qual se protegem as casas com suas rótulas e gelosias, guardando o conveniente recato das mulheres de situação. 1am bém o Largo do Paço, inicialmente chamado de Terreiro do Carmo, centro dessa área conhecida por Bairro da Misericórdia, abriga indistintamente os diversos segmentos sociais. N os setecentos o antigo pelourinho é removido das cercanias do novo Paço dos Governadores (inaugurado em 1743), sendo substituído pelo chafariz em pedra de lioz importado de 1ásboa. Se os açoites públicos já não fazem mais parte desse ambiente, o novo chafariz reforça o convívio dos vários grupos da hierarquia colonial, pois serve como aguadouro para os navios, bebedouro, bica para lavar roupa ou mesmo como cenário para os refrescantes passeios vespertinos dos senhores de bem e do governador. Na descrição do abade Courte de la Blanchardière, que por aqui esteve em 1748, aparecem em destaque as edificações que formam o Largo do Paço: “A praça, situada no porto, é grande, mas não pavimentada. O Palácio do general (o governador Conde de Bobadela) fica no sul: é uma fachada bastante regular de dois andares. N a ala direita fica a Casa da Moeda que lhe é contígua (na parte norte), defronte a nordeste há um bloco de casas (as casas dos Teles de Menezes), em frente ao qual construía-se um reservatório e um aqueduto para levar água à beira-mar (...). A oeste em frente ao cais há um convento das carmelitas bastante regular e que forma o fundo da praça”.1 N o depoim ento acima, o abade francês localiza o Convento do Carmo ao “fundo da praça” . C om efeito, os carmelitas, que nos seiscentos foram os senhores dessas terras marinhas, no século seguinte tiveram que se avizinhar, depois de longas querelas com a Câmara, com os representantes da coroa portuguesa. O antigo Largo do Carmo passa assim a ser definido pela sua nova feição laica, sede da administração e principal porto da colônia. Ao longo da costa, da Praia de D . Manuel à Prainha, instalam-se importan­ tes instituições aduaneiras e administrativas. Apesar da presença dos mais destacados órgãos de fiscalização e defesa colonial, a área portuária pontua-se por pequenos mercados que fogem do grande sistema de exportação e voltam-se para o rudimentar consumo interno. Logo à frente da casa dos Teles de Menezes fica o Mercado do Peixe, na chamada Praia do Peixe, onde chegam canoas com o pescado e os gêneros das lavouras que margeiam as terras da baía. Ali os “ pombeiros” estendem suas barracas ao rés do chão, atravessando o produto entre o pescador e o consumidor. Ao final do século, quando manda construir o cais, o vice-rei D . Luiz de Vasconcellos procura também ordenar as barracas, ensaiando um certo arruamento entre elas. Esse tipo de comércio livre se encontra ainda na Praia de D. Manuel, próxim o à Casa da Ópera, onde os negros quitandeiros vendem frutas,


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hortaliças e aves. Na Prainha surgem diversas barracas e depósitos de produtos agrícolas em meio aos quais circulam pescadores, embarcadiços, tanoeiros e mercadores de escravos, além de atravessadores, traficantes e contrabandistas. O sítio urbano inicial, ainda que se tenha assentado de forma espontânea, assume paulatinamente, no decorrer do século, novos hábitos, novos usos e nova visualidade. O Largo do Paço torna-se o coração dessa área cortesã, transformando-se de praia em cais, de terras carmelitas em palco de festas oficiais e manobras das tropas do vicerei. A magnitude do Largo, que impressiona os estrangeiros que chegam ao Rio setecentista, foi exemplarmente anotada pelo viajante inglês John Barrow em 1792: A primeira coisa que atrai a atenção de quem chega na cidade é uma bela praça, que tem três de seus lados cercados de prédios e o quarto voltado para o mar. (...) O Palácio, o obelisco e o píer são todos construídos em blocos de granito talhado, e a sua face para a praça é um sólido pavimento do mesmo material. (...) Esta área aberta é um vistoso símbolo do poderio da nação portuguesa em tempos remotos”.2 Até meados do século XVIII, a cidade se identifica com a área do Bairro da Misericórdia. A vala que serve de sangradouro das águas da Lagoa da Sentinela é também a fronteira da cidade. É ali que o sítio urbano encontra seu limite pelo lado do sertão. Para além da vala ficam os brejos e alagadiços, cortados tão-somente pelo Cam inho de Capueruçu, que leva às fazendas jesuítas do Engenho N ovo e Engenho Velho. Por ser essa região pantanosa, avessa à lavoura e às construções sólidas, a terra entre o mar e o Morro do Desterro se estendendo até o Mangue serve, sobretudo, à pastagem do gado. Inculta e desabitada, essa vizinhança forma o Campo da Cidade, cuja paulatina conquista integra a expansão urbana setecentista. Cruzar a vala não foi empreendimento da gente de bem, da gente endi­ nheirada, proprietária de almas e de terras. Esta rumou em direção ao sul, pela Praia do Sapateiro (Flamengo) e pelo vale do Catete, para alcançar as margens de Capueruçu (Lagoa Rodrigo de Freitas), onde plantou suas fazendas. Desvalorizados, os terrenos do Campo da cidade são desmembrados em sítios e chácaras, ou ainda em lotes menores, onde a população mais pobre edifica suas residências. Cabe especialmente a irmandades negras a tarefa de povoar essa área insalubre e de foro módico. Em 1700 é expedido alvará para se erguer a Igreja do Rosário e São Benedito, formada por negros congos, em área próxima à vala. Em seguida, bem ao centro do Cam po da Cidade, os devotos de São Domingos levantam em sua honra uma ermida igualmente destinada ao povo negro. Um grupo oriundo dessa irmandade funda mais tarde, em suas imediações, a Capela de Santana (1735), cujas cercanias recebem o conhecido nome de C am po de Santana. Ainda no vasto campo, em terras doadas às irmandades negras, inaugura-se em 1748 a Capela da Lampadosa , na qual se celebram os festejos em louvor ao Rei Baltasar. Mas não são apenas os negros os responsáveis pelo povoamento desse rossio. Também os ciganos - ou calons , como se dizia - estabelecem-se nas cercanias do Cam po de Santana. Suas pequenas casas, guarnecidas de esteiras ou rótulas de taquara, flanqueiam o dito campo, dando origem à chamada Rua dos Ciganos (Constituição). Ali se concentra


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grande contingente desse povo medianeiro de escravos e conhecido por seus perigosos vingadores. Apesar da diversidade dos costumes, põem-se os ciganos a festejar Santana, a quem chamavam de Cigana Velha. Aos calons juntam-se soldados desertores, escravos fugidos, evadidos das prisões, degredados, a gente banida de toda espécie que procura refúgio na região mais pestilenta e mais deserta da cidade. À presença de malfeitores aliam-se as ameaças das endemias provocadas pelos alagados pestilentos e das balas perdidas dos soldados de tiro da Barreira de Santo Antônio, fazendo com que de lá se esquivassem o comércio e as famílias de bem. Perma­ nece o Rossio como área de serventia pública, que abrange inúmeros campos, apresentando um aspecto híbrido, meio rural, meio urbano. Os diversos largos que surgem além da vala apresentam o aspecto de um descampado, que mistura a paisagem rural à construção tímida da igreja do santo devoto. Aqui, a cidade comprimida no Bairro da Misericórdia pode estender-se mais desafogada. Por serem os terrenos menos cobiçados e mais desvalo­ rizados, a cada templo forma-se um largo contíguo, que ao fim do século acaba sendo de­ marcado para ganhar foros de praça. Nos setecentos, os campos de São Domingos, de Nossa Senhora da Lampadosa, do Capim ou da Forca, dos Ciganos e de Santana prestamse especialmente às festividades populares, aos exercícios da tropa de linha e aos sinistros espetáculos de enforcamento e de castigos públicos. As execuções fazem parte da rotina da população, que acompanha aten­ tamente a procissão da forca, cujo grande desfecho - o enforcamento - realiza-se na área do Rossio. O patíbulo ali está armado desde 1753, próximo ao antigo Cemitério dos Mulatos, de onde é transferido em 1755 para as imediações do Campo de São Domingos, quando, então, a Rua de São Pedro torna-se conhecida como “caminho que vai para a forca” ou simplesmente Rua da Forca. Além do patíbulo, lá também se apresenta o pelourinho, translocado das imediações do Largo do Paço possivelmente na década de 40. Apesar dos estudiosos não formarem um consenso em torno do local preciso do martírio de Tiradentes, todos concordam que sua realização se deu em terras do Campo da Cidade. Segundo Vieira Fazenda, foi construída uma forca especial, no Largo da Lampadosa, mais alta que as demais, numerando 20 degraus para ser vista de longe. As pessoas assistiram à execução das janelas, sótãos e telhados dos prédios das ruas adjacentes, dos morros de Santo Antônio e do Castelo. Foi ainda Fazenda quem recolheu o depoimento da escrava Clemência Teixeira, testemunha ocular do cortejo de execução de Tiradentes: “Foi um dia de gala, colchas nas janelas, muita tropa formando alas, muita gente nos morros, nos sótãos das casas e nos telhados. Senhoras e cavalheiros trajando as melhores roupagens, muito veludo, muita seda e muitos brilhantes 7 0 préstito, partindo da Ladeira da Misericórdia, rumou pelas ruas da Cadeia (Assembléia) e do Piolho (Carioca), parou na Igreja da Lampadosa e seguiu para o cadafalso, prolongando-se por toda a manhã. As cenas desse espetáculo macabro não podiam ter ocorrido em outra área da cidade senão nas terras do Rossio - locus da vida e da tradição popular. Dos ciganos que montam acampamento em seus brejos pestilentos. Dos negros e pardos que cultuam seus santos de devoção. D o primeiro teatro no Largo do Capim, do padre mulato Ventura, que


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apresenta as comédias e óperas bufas de Antônio José da Silva - o judeu. Da Igreja de Santa Rita de Cássia, ou Igreja dos Malfeitores, onde as últimas consolações eram dadas aos condenados à polé. Das ruas da Vala (Uruguaiana) e do Cano (Sete de Setembro), cuja população de vadios tira o sono de governadores e vice-reis. Da taberna do Jacá, na esquina da Rua do Piolho, casa de comércio muito freqüentada, de cujo dono se dizia ter escondido o cadáver retalhado de um homem em um jacá. Enfim, é o Rossio a morada daqueles povos que, no dizer do vice-rei Marquês do Lavradio, são “gentes da pior educação, de um caráter o mais libertino, como são os negros, mulatos, cabras, mestiços, e outras gentes semelhan^ ” 4 tes . Ao lado dos espetáculos ameaçadores de castigos e execuções, o Rossio presencia também as festas da tradição popular, que recebem o prévio consentimento das autoridades. Dentre as mais importantes destaca-se a coroação do rei negro realizada anualmente no dia de Reis. Provavelmente as congadas aconteciam anteriomente nas proximidades da Igreja do Rosário, onde funcionava a irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa. Mas a partir de 1748, com a construção da capela da Lampadosa, foram aí ter lugar. Quando amanhece o dia de Reis, o Cam po já se encontra cheio de gente e a igreja pomposamente adereçada. Chegada a procissão trazendo o rei, a rainha, os príncipes, o feiticeiro, os escravos e os vassalos do rei, acontece o ritual de coroação no interior da capela. À tarde, dão-se as festanças no pátio da igreja, para as quais concorrem os negros e mulatos de toda a cidade, bem como os escravos das fazendas próximas. Apesar de ser uma manifestação permitida pela Câmara e pelos senhores proprietários de escravos, o terreiro do congado é bem delimitado e permanentemente vigiado pela guarda. 1 radicional reduto popular, o Rossio registra lapidarmente a crescente or­ ganização social dos espaços urbanos. A polé e a forca representam a vigilância do poder, particularmente cruel no espaço característico da tradição popular. É preciso manter os povos em “sossego e obediência” , como diz o vice-rei marquês, ainda que sob a presença ameaçadora dos instrumentos supremos da justiça colonial. A mesma preocupação com a ordem pode ser notada , a partir de meados de século XVIII, na forma como se processa a ocupação do Rossio. Com a expansão urbana, os terrenos das irmandades negras e dos ciganos valorizam-se. E, portanto, verifica-se o interesse dos governantes em urbanizar essa região, urbanização esta que envolve, no mesmo movimento, a incorporação de novos sítios à cidade e a delimitação de fronteiras sociais. Os armadores da Câmara passam a demarcar terras e ruas no antigo Cam po de São Domingos, definindo os contornos do que veio a ser o Largo do Rossio. A Rua do Piolho recebe arruamento regular, oficializando-se em 1798 como Rua da Carioca. Seu prolongamento (atual Rua Visconde do Rio Branco), caminho que servia à Chácara do Carmo, também e cordeado ate o Cam po de Santana, sendo batizado de “Caminho Novo do Conde , em homenagem ao vice-rei Conde da Cunha. A azinhaga de Mata Cavalos, que atravessando os pantanais de Pedro Dias comunicava com a estrada de Mata Cavalos (Riachuelo), é igualmente arruada e traçada, conservando até hoje o nome legado pelo vicerei que ordenou sua criação: Rua do Lavradio.


Richard Bates, “Houses in Rua Mata Cavallos”, 1808. Aquarela.

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Igualmente necessária e pertubadora da hierarquia colonial, a população do Rossio vê seus espaços serem demarcados e incorporados à cidade. A visibilidade da área potencialmente perigosa impunha a regularização do armamento, os aterros dos brejos e lamaçais pestilentos, a demarcação dc praças e a abertura de novas vias de comunicação com o Bairro da Misericórdia. Nessa parte da cidade, onde está localizado o cerne do poder colonial - o que lhe confere uma certa positividade - o ímpeto de colonização se traduz pela edificação de monumentos e construções vultosas, símbolos do poderio da metrópole. A história da construção do aqueduto da Carioca constitui exemplo para­ digmático do desejo de erguer marcos urbanos perenes. O que inicialmente era apenas um cano que conduzia as águas do rio da Carioca à população da cidade, com o governador Gomes Freire é substituído pelos arcos novos, com duas fileiras de arcadas romanas, projeto inspirado nos Arcos das Águas Livres de Lisboa. O aqueduto, que servia somente ao suprimento de água, assume a função de monumento. Essa vultosa obra foi tema da pintura de Leandro Joaquim , que retratou sua grandiosidade em contraste com o aspecto rústico da Lagoa do Boqueirão que lhe avizinhava. Marco da visualidade do Rio de Janeiro, os arcos são comentados por todos os viajantes que aqui estiveram nos setecentos. John Barrow bem observou sua magnificência: “Aquela parte desta grande obra que atravessa o vale e se comunica diretamente com o reservatório, parece tão desnecessária quanto deve ter sido cara... conforme observou muito corretamente Sir George Stanton, grandiosidade e extravagâncias, assim como benfeitorias de utilidades, são certas vezes atribuições do setor das obras p úblicasV


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Leandro Joaquim, “Lagoa do Boqueirão”, óleo s/ tela. Museu Histórico Nacional.

O anseio de estabelecer marcos urbanos faz parte de um processo mais amplo, perceptível a partir da década de 1740, de positivação do antigo Bairro da Misericórdia. Aquele sítio inicial, ocupado cautelosamente e sem muita planificação, torna-se o coração do poder metropolitano , e como tal deve ser ordenado. A construção do Paço dos Governadores (1743) estabelece um marco cronológico importante no que se refere à regularização do Largo do Paço e à sua definição como espaço de corte, marcado pela presença da autoridade colonial. Antes mesmo da elevação oficial da cidade à condição de capital, a inauguração do Paço vem cravar o destino desta praça, convertendo-a em lócus do mundo oficial e das instituições do poder. Este processo de positivação, porém, é gradual. É somente o Marquês do Lavradio que retira definitivamente os escravos das ruas próximas à moradia dos vice-reis, construindo no Valongo um mercado para os negros desembarcados da África. O Marquês saneia as principais ruas da cidade, livrando-as da cena dos escravos nus “sentados em umas tábuas, que àli se estendiam, ali mesmo faziam tudo que a natureza lhes lembrava, não só causando o maior fétido nas mesmas ruas e suas vizinhanças, mas até sendo o espetáculo mais horroroso que se podia apresentar aos olhos”.6


D ando continuidade ao processo de positivação, ao findar o século, o Largo do Carmo recebe as mais dignas melhorias, como o chafariz em forma de pirâmide de Mestre Valentim (inaugurado em 1779) e o cais em cantaria, obra do engenheiro sueco Jacques Funck. A reurbanização do Largo coroa a operação de “limpeza social” da área, transformando-a na verdadeira sala de visita da cidade. Torna-se a praça desimpedida e adequada para as festividades oficiais e as evoluções da tropa em dias de gala, aspecto consagrado por Leandro Joaquim em uma de suas telas ovais “Revista Militar no Largo do Carm o”, do final do século XVIII. O Largo do Paço passa a ser o cenário privilegiado das dramatizações do poder. Além dos pomposos deslocamentos do vice-rei e sua guarda, aí acontecem os momentos mais distintos das festas comemorativas referidas à coroa lusitana. Os festejos alusivos à notícia do nascimento do Príncipe da Beira em 1762 se espalharam por toda a cidade, mas foi ao lado da residência dos governadores que eles se fizeram mais magníficos. Assim descreve um autor anônimo: “As Luminárias do Excelentíssimo Conde Governador se desempenhou o gosto às expensas da grandeza. Encostado a face do seu palacio, se formou um belíssimo pórtico executado com tanto artifício, que as estratagemas do pincel


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muitas vezes enganaram os olhos... Sobre um teatro que se construiu na praça contígua ao palácio de residência dos governadores, se deram ao povo três óperas à custa dos homens de negócios, que para este obséquio concorreram com mão larga. Com dizer que havia ali uma decoração soberba, que as vistas eram naturalíssimas, que a orquestra era numero­ síssima, e as personagens excelentes na música e peritos na arte de representar...” . Enquanto área nobre e central da cidade, é no Largo do Paço que o poder se representa de forma faustosa e exuberante. O luxo e a artificiosidade constituem a prova de sua grandeza e poderio social, celebrando, em última análise, a hierarquia e o pacto colonial. Ao final do século, com a criação do Passeio Público (1779-1782), a corte carioca ganha um novo espaço, igualmente nobre, porém livre do peso da presença das instituições oficiais. Foi ali que os festejos comemorativos ao casamento do Príncipe D. João com a Princesa D. Carlota Joaquina, em 1786, tiveram seu ponto culminante. Dali partiram os “carros de idéias” que percorreram as principais ruas da cidade até o Cam po de Santana. Segundo Antônio Francisco Soares, artesão dos carros alegóricos, achava-se então o Passeio “magnificamente iluminado” para abrigar a platéia - o vice-rei, sua corte e a plebe - que do adro de Nossa Senhora da Lapa assistiu ao espetáculo. O Passeio Público, à época do vice-reinado, serve não aos desfiles pomposos da tropa, mas sim às caminhadas, às pequenas festas e às diversões com fogos e música da gente bem situada. Os patrões tomam fresco sem os chapéus para não serem identificados pelos caixeiros. O muro e as grades resguardam o sossego da selecionada freqüência das pessoas mais qualificadas da cidade. Os vendedores e ambulantes permanecem fora de seus limites, ensaiando-se, assim, uma ordenação social pouco comum à paisagem conturbada dos centros urbanos coloniais. A implementação da maior obra de engenharia do vice-reinado, a despeito da nova simbologia que o envolvia, não significa uma ruptura no processo da evolução urbana carioca. Erguido num sítio até então despovoado, confinado em seus muros, o Passeio não estabelece uma relação espacial nova para a atravancada cidade colonial. É como um acréscimo, mas sem poder transformador. Ao invés de fornecer à cidade novo modelo de planificação urbana, age no sentido de reforçar a prática da hierarquização social dos espaços. O desenvolvimento urbano, ainda que respondendo sobretudo às neces­ sidades imediatas de expansão, processa-se de m odo a resguardar os princípios da hierarquia e da distinção social. Com a definição do Largo do Paço, do Rossio e do Passeio Público, o século XVIII finda prenunciando a função que o Rio de Janeiro irá assumir a partir de 1808: ser a sede da corte metropolitana. Durante quase todo o século, a cidade vem incorporando c delimitando seus espaços, edificando seus monumentos, estru­ turando-se, cautelosa mas decididamente, como a capital do Império luso. Notas 1. La Blanchardière, René Courte de. “Nouveau voyage faite au Perou”. Paris, 1741. In: Ferrez, Gilberto. O Rio deJaneiro no tempo de Bobadela visto por um padre


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francês. Revistado 1HGB, v. 264. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1965. p. 159. 2. Barrow, John. Voyage to Cochinchina in theyears 1792 and 1793. London, T. Cadell and W. Davies in the Strand, 1806. pp. 79-80. 3. Fazenda, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio deJaneiro. Rio de Janeiro, Revista do IHGB, 1921. p. 225. 4. “Relatório do Marquês do Lavradio”. In Carnaxide, Visconde de. O Brasil na administraçãopombalina. 2a ed. São Paulo, Editora Nacional; Brasília, INL, 1979. p. 219. 5. Barrow, John. op.cit. p. 80. 6. “Relatório do Marquês do Lavradio”. op.cit. p. 242 7. “Epanáfora festiva ou relação sumária das festas com que a cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil, celebrou o feliz nascimento do Sereníssimo Príncipe da Beira, Nosso Senhor”. In: Coelho, Jacinto do Prado. O Rio deJaneiro na literatura portuguesa . Lisboa, Edição da Comissão Nacional do IV Centenário do Rio de Janeiro, 1965. pp. 69-76.

MARIA EDUARDA CASTRO MAGALHÃES MARQUES é graduada em História pela PUC/RJ e formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC/RJ. VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA é graduada em História pela PUC/RJ, formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC/RJ e aluna do programa de Mestrado em História Social da Cultura da PUC/RJ.


GĂĄvea pode ser encontrada nas seguintes livrarias: Rio Timbre Leonardo da Vinci PadrĂŁo Bookmakers


O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação latu sensu, foi formado há seis anos. O curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira apreendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar. Coordenador Acadêmico: Margareth da Silva Pereira Professores Ana Maria Monteiro de Carvalho Antonio Abranches Antonio Edmilson M. Rodrigues Berenice Cavalcante Carlos Zilio Eduardo Jardim de Moraes Fernando Cocchiarale Jorge Czajkowsi José Thomaz Brum Henrique Antum Katia Muricy Margareth da Silva Pereira Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira Paulo Sérgio Duarte Ricardo Benzaquem de Araújo Ronaldo Brito Washington Dias Lessa

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