GAVEA Revista de História da Arte e Arquitetura
MARGARETH DA SILVA PEREIRA A Arquitetura Brasileira e o Mito. ILEANA PRADILLA CERÓN Castagneto: O Jo go do Ambíguo. TITO MARQUES PALMEIRO A Estética de Kant. ROBERTO CONDURU “ O País Inventado” de Antonio Dias. GERD A.BORNHEIM Introdução à Leitura de W inckelmann. NOEMI SILVA RIBEIRO A Obra Gráfica de G oeld i. O Esboço de uma Cronologia. BERNARD BLISTÈNE Fontana: O Heliotrópio Contem porâneo. ENTREVISTA Anselm Kiefer - Pintar com o Feito Heróico.
GÁVEA Editor Responsável: Carlos Zílio Editor Adjunto: Margareth da Silva Pereira Editor Assistente: Vanda Mangia Klabin Secretária da Redação: Sonia Santos Silva Laureano Conselho Editorial: Carlos Zílio Eduardo Jardim de Moraes Jorge Czajkowski Katia Muricy Margarida de Souza Neves Margareth da Silva Pereira Maria Cristina Burlamaqui Ricardo Benzaquem Araújo Ronaldo Brito Vanda Mangia Klabin Correspondência: Editor Responsável, revista Gávea Pontifícia Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 sala 515-F CEP 22453, Rio de Janeiro, Brasil
Produção: Revisão Tipográfica: Claudia Maria Brum Arruda Programação Visual: PrintZ Marketing Editorial Ltda. Montagem e Arte-final: Luiz Carlos da Silva Impressão: CBAG
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8 Revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Departamento de História Coordenação de Cursos de Extensão Dezembro de 1990
2 MARGARETH DA SILVA PEREIRA A Arquitetura Brasileira e o Mito. 22 ILEANA PRADILLA CERÓN Castagneto: O Jo go do Ambíguo.
36 TITO MARQUES PALMEIRO A Estética de Kant.
44 ROBERTO CONDURU “ O País Inventado” de Antonio Dias.
60 GOERD A.BORNHEIM Introdução à Leitura de Winckelmann.
82 NOEMI SILVA RIBEIRO A Obra Gráfica de Goeldi. O Esboço de uma Cronologia.
100 BERNARD BLISTÈNE Fontana: O Heliotrópio Contemporâneo.
113 ENTREVISTA Anselm Kiefer - Pintar com o Feito H eróico.
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Melancholia in Jobst Amman - Wappcn und Stammbuch rrancfort, 1589
M argareth da Silva Pereira
A Arquitetura Brasileira e o Mito: Notas Sobre um Velho Jogo entre Afirmação-Homem’ ’ e “ Presença-Natureza” .
...E então disse o filósofo: - Estamos curiosos. Sendo tão rústica em tuas montanhas, em teus desertos, em teus mares, gostaria de saber como te revelas, no entanto, tão engenhosa em teus anim ais, em teus vegetais”. Ao que ela respondeu: M inha pobre criança, quer que eu te diga a verdade? É que me f o i dado um nome que não me convinha: chamam-me natureza, mas sou inteira mente arte”. E [perplexo] o filósofo continuou... ‘ - Essas palavras perturbam todas as minhas idéias. Como? A natu reza não seria senão a arte? - Sim, sem dúvida. Não sabes que existe uma arte infinita nesses mares, nessas montanhas que achas tão rústicos? Não sabes que todas essas águas gravitam para o centro da terra, não se elevando senão por leis imutáveis, que essas montanhas que cingem a terra são imensos reservatórios das neves eternas que produzem sem descanso essas fontes, esses lagos, esses rios sem os quais meu gênero anim al e meu gênero vegetal pereceríam? E quanto ao que se chama meus reinos anim al, vegetal, mineral, não vês mais que três; aprenda, porém, que eu os tenho aos milhares. Se tu consideras somente a formação de um inse to, de uma espiga de trigo, o ouro ou o cobre, tudo te parecerá maravilhas da arte. ’ ’ (Voltaire, 1764) Este diálogo imaginário entre um ingênuo Filósofo e uma experien te e personificada Natureza, publicado no verbete “ natureza” do Dictionnaire Philosophique, é apenas um fragmento de uma extensa literatura produzida a partir do século XVII e ao longo do século XVIII na França, na Grã-Bretanha e na Alema nha que se dedica a pensar as relações entre a arte e a natureza. 1 Estes escritos deli neam uma nova sensibilidade em relação à paisagem e ao entorno da existência hu mana que é indissociável da própria questão do conhecimento e instauram um no vo significado e uma nova função para a arte e para a arquitetura. Entretanto, essas reflexões em torno de temas comuns desdobraram-se de maneira diferenciada e cristalizaram noções, atitudes e formas que, embora muitas vezes até mesmo anta gônicas, estiveram sempre associadas à mesma palavra - natureza . No campo da arte, já em finais do século XVII, o crítico literário in glês John Dennis5 relatava a experiência de cruzar pela primeira vez os Alpes, ques-
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,ionando.se sobre as correspondências entre o "furor poético da natureza" que observava naquela paisagem retorcida e trágica e as faculdades do esptrt.o Dennts, de certa forma já delineava uma relação, teorizada mais tarde por Kant, entre a na tureza calma dós vales e dos jardins (lugar de meditação) e a natureza selvagem da paisagem daquelas montanhas - "ruínas do mundo antidiluviano” - suscitando terror e êxtase (o apelo das paixões). De idéia abstrata na Renascença a estímulo das faculdades do espíri to, a natureza parecia ganhar contornos de realidade mas se “ escondendo" ao mes mo tempo numa pluralidade de significados. Norma estética, essência, aquilo que é genérico e exclui as diferenças, parte da realidade empírica não transformada pe la ação humana, força ou princípio que produz o desenvolvimento de um ser, aqui lo que é universal e imutável no pensamento, espontaneidade, não cálculo, or dem, aquilo que é necessário: a lista dos sentidos atribuídos à palavra é extensa ca racterizando talvez, justamente, essa faculdade da “ natureza" de nunca poder ser capturável em um conceito .4 “ É uma mulher que adora disfarçar-se, cujas diferentes máscaras, dei xando escapar ora uma parte, ora outra, dão aos que assiduamente a perseguem alguma esperança de conhecer um dia toda a sua pessoa” .' Assim a interpretava Diderot, pouco antes de Voltaire, acentuando esse seu mistério e de certa forma sublinhando a sua força ao colocá-la com o uma eterna miragem, sempre fugidia c inalcançável. Natureza: uma noção que se tornava tanto ou mais poderosa e invul nerável quanto permanecia vaga, isto é, imprecisa e prolixa, e portanto impensá vel e inexistente enquanto idéia.6 Esse nada de pensamento sob o conceito de natureza permitiu, entre tanto, que por oposição, ou a partir dela, outros temas fossem pensados. Neste sen tido, os escritos sobre o tema da natureza dos séculos XVII e XVIII não foram ca pazes de subverter - aparentemente com raras exceções' - uma antiga tradição que vem entendendo, até os nossos dias, o artifício justamente por oposição à idéia de natureza, como uma extensão da natureza” - um epifenômeno dela - que po de até mesmo traí-la, mas que tem nela a origem de sua existência e graças a ela seu campo de operação delimitado .8
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, ^ ao ^ nosso propósito fazer um mapeamento dos diversos significauídos à palavra natureza pelo pensamento europeu e muito menos apon. S *mP^caÇões nos mais diferentes campos da sensibilidade moderna - da po
tros r o T UÇã° artística e arcluitetural, passando pela filosofia, literatura, entre ouDrónrio arnos> apenas, de chamar a atenção para a importância da questão no e2 I T T H1381161™ 1 ° nde qUalquer rcncjtâ° cam po d . cultura parece - que c u m n ó I ^ ^'h " <'' 1° tanto para esses sent'dos "escorregadios" da palavra mo para uma tc 3 1Mona das mentalidades tentar melhor circunscrever - cofoi simultaneamente ÓtntevLsto° ent^nd'” lem o d° par natureza/artifício, que, aqui
cultura européia iluminista. Neste só ntido, U d ^aaprópria T " 1^ 'práticaameS “ deSe" har ” da arquitetura - enquan-
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to prática, em princípio, do artifício - será permeada por essa tensão, ora se tornan do inteiramente desnecessária numa nova arcádia ou num paraíso prestes a ser re encontrado; ora, em sentido exatamente oposto, instituindo uma “ segunda nature za e se substituindo enquanto princípio fundador da ordem à própria natureza; ora diante do paradoxo inevitável de se construir no paraíso, buscando um diálo go possível entre afirmação-homem e presença natureza através de “ espaços inter mediários’’ - artifícios-naturais e naturezas-artificializadas. Com efeito, no que diz respeito a cultura brasileira, o tema da nature za e suas ambiguidades ganham contornos complexos. Fugidia e misteriosa na sua diversidade, como descrita por Diderot, ou sábia e referenciada ao trabalho do ho mem - mas não menos exemplar - como nos diálogos de Voltaire, a natureza, no Brasil, nunca representou apenas uma idéia abstrata e foi evocada tanto como o domínio da ordem como o do caos. Quatro séculos depois da era dos descobrimentos, um observador “ avisado ”, um homem da ciência, como Lévi-Strauss, manifestava um mesmo estra nhamento diante da paisagem brasileira - essa “ natureza virgem’’ - que séculos an tes havia ofuscado também a retina de Caminha e Vespúcio, como registraram suas cartas. Homem da cultura da cidade e da vida em sociedade, Lévi-Strauss se espan tava em descobrir no Brasil a supressão da oposição que lhe era familiar entre a ca sa e a rua (entre o individual e o coletivo) e descobria a radicalidade de uma nova oposição entre o homem e a natureza que seu olhar, formado por “ paisagens inte gralmente humanizadas’’, não conseguia mais captar em seu país.9 Mesmo quando pensava nas paisagens européias mais rudes, ele as associava ao olhar permeado pela história das telas de Poussin, para só então entender que a harmonia sublime que mostravam, “ longe de serem uma expressão espontânea da natureza, (...) [pro vinham] de entendimentos longamente estabelecidos no curso de uma colaboração entre o sítio e o homem ” . 10 Na verdade, estas reflexões em torno do eu, que nasciam diante da observação do outro, servem-nos para chamar a atenção para essa “ experiência de viagem” não apenas como um simples deslocamento no espaço, mas como uma situação que há quatro séculos vem marcando as relações Novo Mundo-Velho Mundo em relação a tudo o que circunda a existência humana - a natureza, inclusive. Embora de maneira esparsa, pode-se detectar uma tendência historiográfica no campo da história das mentalidades que vem tentando resgatar o impac to produzido na própria cultura moderna tanto pelas descrições “ objetivas” das viagens ao Novo Mundo como por todos os sonhos e utopias que puderam fomen tar, justamente pelo fato desse território desconhecido e infinito se oferecer co mo o lugar de todos os possíveis. Impacto que definirá, de certa forma, até mes mo um antropofagismo às avessas, onde os “ devoradores de homens são, antes de tudo, os europeus letrados dos séculos XVI e XVII. Não se pode ignorar, por exemplo, que a atitude reflexiva em rela ção à realidade “ natural” experimentada pela cultura européia setecentista fora.
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em grande parte estimulada pelo próprio eco das odisséias daqueles que se haviam lançado ao mar e ao desconhecido dois séculos antes. Ardentes de fé ou heréticos, sedentos de riquezas ou de prazeres, estes navegadores, viajantes de passagem, co lonizadores, descobriram cada qual a seu modo a “ soberania do espírito huma no” , seu poder ‘‘quase divino” recolocando o trabalho do homem como novo prin cípio ou força que dá desenvolvimento às coisas: em resumo, justamente uma se gunda natureza, agora, humana. Por um lado, uma profusão de “ coisas sensíveis” - sabores, ruídos, cores e odores - obrigou esses “ europeus desterrados” a exercitarem a observação, ensinando-os a experiência do ver. Por outro lado, aqueles que, pouco a pouco, tinham acesso aos relatos das suas visões eram alertados para tudo o que se dava a ver de maneira insólita - árvores, frutos, animais e, até mesmo, outros homens e para um espaço novo que se abria para o fazer humano. Este universo desconhe cido contribuía, assim, para “ desdivinizar” a idéia de natureza revelando-a, justa mente, como uma parte da realidade empírica a ser descoberta, explorada e inventoriada (descrita, como diria mais tarde Buffon) pelos homens. Mas essa natureza vista com o pura diferença, estranhamento e expe riências era também perigosa fonte de tentações e de pecado. Diante dela, o viajan te se deparava com um “ mundo às avessas” feito de luxo e volúpia. Bela e perigo sa, a natureza não remetia a nada além de sua própria experiência e era uma for ma que atraía e esgotava os sentimentos dos homens “ sem levá-los a Deus nem prepará-los para acolher a sua graça” 11 As reflexões de Giulio Cario Argan sobre a pintura de paisagem no século XVII nos auxiliam a descrever este mundo subitamente revelado como des tituído de hierarquias entre as coisas e as imagens das coisas . 12 Mundo desnudado por uma experiência que provoca um contato violento com a matéria e que “ natu raliza’ tudo aquilo que antes era considerado prodígio. A curiosidade, o inventário e a própria imaginação se esgotam diante de sensações tão completas, tão corpo rais, que bastam a si mesmas. 13 E é aqui que se introduz ainda um novo paradoxo: essa natureza que tanto produzira a exacerbação do olhar e dos sentidos, acaba por produzir uma certa cegueira - uma denegação do ver - e uma certa inação que recupera o dese jo de ordem e calma num solo inamovível. Aqui a autoridade de uma palavra - se ja ela divina ou humana - não é imposta, mas ardentemente invocada como últi mo refugio para conter o movimento, o turbilhão dos sentimentos, a atopia. Não nos compete, neste texto, demonstrar14 como as visões do para íso atravessaram o imaginário desses primeiros colonizadores, embora ainda mere çam ser investigadas as crises teológicas provocadas por teses que defenderam, co mo a do jesuíta Simão de Vasconcelos em meados do século XVII, a existência de um paraíso sobre a terra próximo a linha do equador, ou ao sul dela. Teses que, a vez mais perturbadoras que as de Lutero e Calvino, traziam, por outros camin os, o germe da heresia - e da subversão - ao associar a proximidade desse paraí-
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so à visão de homens errantes, sem fé, sem lei e sem rei e ao sugerir, de certa for ma, que a palavra divina era na verdade um artifício humano desnecessário. Natureza a domar ou a retornar - tal parece a questão com que se de frontam esses novos Hércules diante de uma escolha radicalmente excludente. A observação da natureza se revelava como a experiência de uma crise, indissociável da constatação de que a condição humana é marcada pelo artifício e por uma liber dade que se pode revelar estranhamente perturbadora. Assim, ao contemplar esses territórios infinitos onde os sinais das ações do homem estavam ausentes, esses eu ropeus desterrados viam refletida nessa ausência sua própria face: seu passado, sua história, tódo o seu poder de criação. Entretanto, aqui a civilização entrava em con tradição com a imagem edênica e libertária que era oferecida pela própria nature za e o modelo, não se situando nem plenamente num presente, nem no passado, abria-se assim para esperanças depositadas num amanhã totalmente outro (as utopias). O fato dessa visão da natureza evocar simultaneamente tanto uma visão fechada do tempo passado como uma interrogação aberta frente ao que esta va por vir conferia a esses homens uma atitude completamente original - de des conforto - diante da natureza e da história. Em outras palavras, aqui também se pre nunciava um duplo afastamento do entendimento tanto da natureza quanto da his tória como imagens positivas, só bem mais tarde claramente enunciado pela cons ciência moderna européia. Questionamentos sucessivos, e crise, que colocavam estes homens, livres e perplexos, diante de modelos que se revelavam em ruínas ou como mira gens na medida em que o ideal não estava nem na natureza, a ser transformada, nem na história, a ser corrigida, mas num futuro - ainda a ser construído em todos os seus detalhes e portanto sem rosto, sem lugar. Esses europeus desterrados desco briam, pouco a pouco, uma sensibilidade nova - barroca - forjada do nada, da au sência, da crise. E descobriram ainda que se a condição humana era um fato e pres supunha o artifício, a existência podia se furtar a um desígnio, a qualquer princípio natural ou artificial, a toda lei e se dar como puro acaso.1' No que diz respeito à arquitetura, esta dialogará com essas esperan ças ora de paraísos naturais finalmente reencontrados, ora de utopias - bom lugar, não lugar - rigidamente desenhadas pela mão do homem: velhos ou novos mitos que buscam reestabelecer a paisagem serena do jardim ou da citadela - o lugar da estabilidade diante do excesso. Mas a ordem e a calma serão intensamente deseja dos na mesma medida em que suspeita-se de que são inalcançáveis: utopias e para ísos buscarão incessantemente o presente justamente porque esse presente só mos tra a instabilidade, o precário. Sem dúvida, no campo da arte urbana, da arquitetura ou da pintura, diversas obras realizadas no século XVIII no Brasil poderiam ser entendidas como resultados da nova sensibilidade européia frente à natureza natural” e à natureza “ humana” transladada aos trópicos com alguma defasagem e muito desajeitamento. Basta que pensemos - só no que diz respeito ao Rio de Janeiro - no belo Pas-
Vista do Recife e seu Porto Gillis Peeters (1612 - 1653)
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Frutas Tropicais, Albert Eckout Tela oferecida como presente por Maurício de Nassau a Frederico III da Dinamarca em 1654
seio Público com suas terrasses ou ainda nas “ marinhas” de Leandro Joaquim, ou na perspectiva pittoresca da cidade do Rio de Janeiro desenhada por ordem do Conde de Bobadela. 16 Entretanto, considerar estas manifestações apenas deste ponto de vis ta é minorar a força de uma reação poética à paisagem que colocara, séculos antes, um jesuíta solitário frente a espaços infinitos, escrevendo - ao que diz a lenda - ver sos à beira-mar: incompreensíveis para homens nus ferozes e antropófagos, palavra efêmera e necessária, antes de tudo, apenas para si mesmo. Palavra que, como acon selhara Loyola, abrigava o nada e inseria, agora, esse lugar vazio e significante - iden tificável neste caso com a natureza - para se instituir enquanto sistema.
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Esta sensibilidade nova diante de paisagens grandiosas e insólitas foi revelada, ainda, por holandeses que reagiram de formas diversas, mas jamais indife rentes, às coisas que os cercaram. Eckhout, por exemplo, focara o seu olhar em maracujás, melancias, tartarugas e mamelucos, dando imagens precisas ao discur so que se chamaria “ etnográfico” , iniciado pelo francês Jean de Léry quase um sé culo antes em sua Voyage faict en la terre du B résil.lH Uma mesma sensibilidade que por caminhos opostos fará Franz Post ou Gillis Peeters transformarem o espa ço da tela numa reflexão sobre a própria ação do homem ao retratarem mundos novos onde a história está em ruínas, e o futuro, apenas esboçado. A Olinda de Franz Post e o Recife de Gillis Peeters colocam em estado de alerta uma civilização que se deseja justamente construída pela razão, mostrando, em primeiro plano, os próprios limites desse projeto. Mais ainda: a observação das coisas naturais e cons truídas revela, como nos mostra Peeters, que o espaço agora reservado às obras humanas nasce seguramente de um desenho novo - como as complexas e moder nas fortificações holandesas de Recife e seu porto - mas esta proposta está em aber to e seus contornos se perdem numa luz difusa em meio 3 uma natureza sem fim. Passado em ruínas, futuro sem contornos claros, natureza incomensurável onde alguns homens dormem preguiçosamente enquanto outros andam de um lado para outro, sempre em movimento. A cena retratada pode ser trágica, dra mática ou banal, mas é quase sempre impossível prever de antemão o seu desfecho: são fragmentos de uma realidade em fragmentos. Revelam hoftiens sem origem e sem destino, presos na própria contingência de construir, de combater, de ir e vir como nas figurinhas de Prost -, de viver, de sobreviver. Esta é a realidade do mundo novo, do mundo moderno, antevista por estes pintores. Mundo Novo onde as figuras humanas vivem o doce abandono do País da Cocagna ou se empenham na construção de uma nova Torre de Babel, que atingirá definitivamente os céus. Poética diante da paisagem que imobilizará alguns destes colonizadores diante da contemplação de uma nova arcádia, do paraíso não importa que nome tenha esse sonho - e levará outros a contrariar e transfor mar esta natureza com violência: bandeirantes, caçadores de esmeraldas e ouro, conquistadores, religiosos, artistas e arquitetos, quem são, também pouco importa. Neste sentido, durante o século XVIII se introduzem efetivamente algumas alterações na sensibilidade destes homens frente àquilo que percebem, in terpretam ou transformam. O que se observa justamente a partir de fins do século - particularmente nos centros que mantêm um contato mais estreito com os países europeus - é um movimento de resgate positivo do passado onde os mitos são in corporados num mesmo e novo discurso da história. Ao contrário dos primeiros séculos de colonização e descobertas, a natureza não está mais em conflito com o artifício, nem as marcas da cultura estão em desagregação. A partir de agora, natu reza e artifício mantêm entre si uma relação de continuidade: a natureza é história. Ela é a realidade sobre a qual se sobrepôs continuamente e num movimento de ex pansão esta segunda natureza que nasce do homem: o pensamento historicizante devorará agora, um a um, os mitos.
"Vista do Passeio Público” Desmond
Assim, a partir do século XVIII as utopias não estão mais restritas a algumas dezenas de comunidades surgidas em nome da fé, que haviam multiplica do pelos quatro quadrantes do continente americano. Parte do seu ideário deixa ra de ser ficção e lentamente havia sido digerido e recolocado dentro de uma histó ria em perspectiva, engendrando revoluções e teorias políticas que se apoiavam nesta nova noção de natureza humana. 19 Fim igualmente da busca de paraísos míticos: do ponto de vista da história, a realidade americana e seus bons selvagens não remetem a nenhum pre nuncio de uma súbita revelação do divino. O divino estava em toda a parte ausen te e suas obras, outrora pensadas perfeitas, agora, são passíveis de críticas. Estes territórios úmidos com seus animais de pequeno porte, sua infinidade de serpentes e répteis, seus índios imberbes espelham a civilização em sua infância - apenas saí da das águas diluvianas.20 As paisagens tranqüilas do Éden são criação, agora, dos paisagistas, que concebem uma natureza feita de árvores, pedras, lagos, animais, construções “ artificialmente” dispostas. Jardins, telas, espaços onde o pitoresco e o sublime, os sentimentos agradáveis ou desagradáveis, a passagem do sentimento à reflexão são mediados pela mão do artista, do arquiteto, do paisagista."' Relatando sua visita em 1778 ao jardim do duque de Anhalt, em Dassau, Goethe diz sentir-se como num sonho em meio aos Campos Elísios, ao cami nhar entre bosques e lagos cuidadosamente planejados."" Malgrado seus canteiros, suas estátuas, seu chafariz ou suas espécies vegetais exóticas, cuidadosamente cias-
1° Arrasamento do Morro do Castelo Abertura da Avenida Rio Branco 1902 - 1906
sifícadas como num horto botânico, o jardim do Passeio Público do Rio de Janei ro transformava a natureza mas não conseguia se rivalizar com a paisagem da pró pria baía de Guanabara. Nem mesmo o jardim do Solar da Bandeira, “ maravilha e orgulho da Bahia” , conseguia subverter a força da paisagem natural: “ encantadora mente situado" , frente à Baía de Todos os Santos, era considerado “ ingenuamen te composto” e exibia até mesmo uma “ gruta malfeita de conchas vulgares, não obstante possuir o país [na natureza] grande e bela variedade delas. ” 23 Para Humboldt, Maximilien, Langsdorff e tantos outros viajantes que visitam as cidades brasi leiras a partir do final do século XVIII e, principalmente, ao longo do século XIX, o sonho continuaria a ser a plácida contemplação de vastos “ panoramas” naturais, embora esta mesma paisagem escondesse o pesadelo, a angústia e até a loucura. A sensibilidade nova que se manifesta na arquitetura brasileira de fi nal dos setecentos e ao longo de mais de um século é muito menos quanto à paisa gem ela mesma - secularmente fonte de sentimentos contraditórios, de extases e de reflexões - do que em relação ao próprio gesto de construir investido agora pe la história.24 A eternidade das montanhas ou dos mares, engenheiros militares ou arquitetos vêm sobrepor massas construídas poderosas, imponentes, bem-acabadas. Como na velha Utopia de Thomas Morus, a construção celebra um poder de reali zação sobre-humano, mas em relação ao qual já quase não pesa nenhuma incerteza. Na Europa setecentista, até mesmo as visões de ruínas já não são
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ameaçadoras. Afinal, a contemplação das ruínas pode ser experimentada de forma pitoresca, desde que sejam vistas numa apaziguadora continuidade histórica. O sen tido do monumento leva arquitetos como David Le Roy, Sufflot, James Stuart ou Nicolas Revett a partir em missões arqueológicas buscando imortalizar as ruínas do passado. Pompéia, Paestum, Atenas. Mas o novo sentido do monumento tam bém está presente em arquiteturas revolucionárias como as de Boulée ou de Ledoux que colocam o gesto do arquiteto frente a forças cósmicas, frente até mes mo à própria morte.2'’ O Cenotáfio de Newton, o cemitério da cidade de Chaux lembre-se da sucessão de arquiteturas funerárias que excitam a imaginação até dos jovens alunos da Academie des.Beaux-Arts de Paris. O que ocupa o jovem Grandjean de Montigny na Europa são cuidadosos levantamentos ou projetos dos lugares da morte: Eliseu ou Cemitério Público que lhe valeu o Prix de Roma, o estudo da Tumba de Cecília Metela e uma série de monumentos comemorativos.28 A razão iluminista já “ naturalizara” a idéia de morte e substituira a esperança de imortalida de nos céus por uma sobrevivência inscrita na própria memória dos homens.29 É esse culto do monumento30, é esse desejo de passado - mas não de qualquer passado - dominante na cultura brasileira do século XVIII e XIX e for temente presente até hoje que marca novos tempos para a arquitetura. Atitude que se contrapõe ao abandono e gozo frente ao presente e ao desejo de construção do novo, do diferente, que dominaram as práticas construtivas durante mais de dois séculos e meio, mesmo quando esses europeus desterrados aparentemente re produziam a tradição. O modelo a partir do final do século XVIII é claro: ele é a longa e evolutiva estrada que retira os homens da barbárie e os encaminha à civilização. As edificações mudam de escala - primitivas Igrejas são ampliadas, re formadas, reconstruídas ao longo do século XVIII e início do século XIX. Prédios públicos ganham nova magnificência e a partir do século XIX são as residências urbanas que ganham novas formas e novas dimensões: frontões, fustes, capitéis, rotondas e abóbadas pontilham a paisagem das cidades. Também a arte dos jardins - com o exercício do pitoresco - ganha uma relativa força: as cidades se enchem de árvores e de praças e as praças se enchem, por sua vez, de bustos e estátuas.31 Ao longo do século X IX criam-se ainda academias, escolas de desenhos e liceus de artes e ofícios, num movimento que segue, de certa forma, as palavras de Felix Emile Taunay: “ A arquitetura distribui as condições de espaço e ordem para as Be las-Artes. Saibamos fixá-las aqui para reavivar o espírito público...[que] nossas pra ças, nossos passeios se povoem ...de belas e sublimes representações dos filhos bemamados da pátria e da virtude .32 A idéia de monumento histórico e artístico que começara a irromper nos desenhos dos arquitetos e se revelara claramente no projeto de cupula da Igreja da Candelária do Rio de Janeiro, de Francisco João do Roscio (1775), multiplicase • malgrado as dificuldades - com a institucionalização do ensino de arquitetura no país. Neste sentido, esse desejo de uma arte capaz de educar o povo através de exemplos que resgatam a autoridade e a dimensão universal da histona expltci-
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ta-se tanto na grande maioria dos projetos urbanos concebidos por Grandjean de Montigm na primeira metade do século XIX, como nos discursos de seu discípu lo Bethencourt da Silva ou na luta para a elevação de um monumento comemorati vo a D. Pedro I, para enfim se cristalizar na construção da Rio de Janeiro civiliza da de Pereira Passos.i} Durante o século XIX, a positividade do gesto organizador de cida des e sociedades e particularmente a fixidez implícita na idéia de monumento artís tico e histórico estariam em toda parte. Ela investe até mesmo naquilo que resta das visões do paraíso: as palmeiras, que ilustraram sistematicamente os relatos so bre o Brasil desde a carta Mundus Novus de Vespúcio e que desde sempre haviam servido de cobertura para a casa de Adão no paraíso, serão a contribuição de uma natureza sempre “ generosa" para os novos “ lugares de memória” da nação. A partir das primeiras décadas do século XIX, o perfil de dezenas de palmeiras passará a enquadrar residências urbanas ou rurais e prédios públicos. Elas vão figurar, ainda, em mapas e projetos de urbanização do Município Neutro. Frágil presença da história local, sua disseminação nada tem a ver com a efemeridade de sistemas políticos. Muito mais do que celebrar o Império - como muitos in sistem em interpretar sua presença recorrente nos jardins e residências da Corte elas continuariam silenciosamente - por enquanto - a guardar as portas do paraíso. Esse ciclo, entretanto, tomaria novos rumos nas primeiras décadas do século XX. Com o movimento moderno, sobretudo a partir da visita ao Brasil de Le Corbusier, a paisagem exuberante dos trópicos era repotencializada. Em fi nal dos anos 20, o escritor Blaise Cendras - mais um viajante - comentava: “ [No Brasil, no Rio] o que quer que eles façam com seu pequeno urbanismo, serão sem pre esmagados pela paisagem ” .34 Mas Le Corbusier apontava novas saídas reformulando o discurso so bre a história e criando superfícies de diálogos com os mitos ao escrever: “ ...Por um magnífico desígnio, o homem pode aqui, mais uma vez, realizar o que a Grécia fez na Acrópole e o que Roma fez nas sete colinas: impor-se à paisagem pela arqui tetura certa. ...Quando tudo explode em festa; quando do verão tropical o verde nasce na borda das águas azuis, ao redor de rochas rosadas; quando estamos no Rio de Janeiro - as baías lápis-lazulis, céu e água, sucedem-se ao longe em forma de arco, ornadas de cais brancos e praias rosadas...quando, então, tudo é festa e espetáculo, tudo é alegria em nós, tudo se contrai para guardar a idéia florescente., .somos possuídos por um desejo violento, louco talvez, de tentar, aqui também, uma aventura humana - o desejo de jogar uma partida afirmação-homem contra ou com presença natureza.' ^ Palavra que soldava velhos mitos sufocados durante mais de um sécu lo pelo peso da história e que reexplodiam agora com toda potência. Desejo de construção do novo e desejo de desfrute de um jardim - secularmente tidos como Pórtico da Antiga Escola Nacional de Belas Artes, 1826 Grandjean de Montigny
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antagônicos - se aliavam nas mãos de um homem, de um arquiteto, para desenhar uma história nova. Em nome dessa história, a fixidez das construções neoclássicas e eclé ticas foi desmantelada para ser substituída por uma linguagem nova, mas que tam bém ambicionava a'atemporalidade. Até mesmo o primeiro prédio da Imperial Es cola de Belas-Artes, construído por Grandjean de Montigny - construção destina da, por excelência, a celebrar a arte e a história - ruiu sob o impacto dos novos princípios. Seu pórtico, salvo das ruínas de fato em início dos anos 40, foi transfor mado em cenário-ruína, cercado de palmeiras, e seu frontão vem sendo mansamen te devorado pelas ervas do Jardim Botânico: vitória da “ livre república das plantas” e da ideologia naturalista.3'’ Fracasso da natureza e do artifício enquanto princípios, condenados ao acaso do olhar que aí se detém. Entre 1940 e 1960, a prática da arquitetura no Brasil, particularmen te aquela que pressentiu no discurso corbusiano a voz de uma memória sufocada, encontraria sua força de invenção justamente na atualização do velho jogo afirmação-homem, contra ou com presença natureza. Do ponto de vista da forma, multi plicaram-se as grandes aberturas e superfícies vidradas, as fenêtres en longueur fa zendo do artefato um refúgio para a pura contemplação da natureza. Certamente a nova arquitetura exibia amplas janelas corbusianas, mas também pátios, terraços e varandas, ou ainda uma série de espaços ou elementos que vinham articular a fron teira entre natureza e construção e demarcar sua singularidade.
Parque Guinlc * 1948 - 1954 Arquitetura de Lucio Costa
Os pilotis presentes na proposta corbusiana inicial, ganhavam no ges to dos arquitetos modernos cariocas - não por acaso os primeiros a ouvirem a pala vra dos mitos - inúmeros desdobramentos que resgatavam justamente a memória lentamente sedimentada numa velha relação com a natureza. Pórticos, varandas abertas e semi-abertas, passagens cobertas-abertas, pátios, pérgolas, brises, leves treliças e çobogós foram soluções que se impuseram nas pranchetas dos arquitetos. As edificações já não eram mais rarefeitas presenças da cultura frente à natureza. As cidades haviam se constituído como fatos e os modernos arquitetos - sem denegar seu próprio gesto - investiam as possibilidades agora oferecidas de diálogo com a natureza através justamente de espaços e de elementos que garantiam essa apro ximação. O próprio paisagismo ressurge, valorizando essas superfícies de frontei ra entre natureza e artifício, semeando muitas vezes novos jardins frente a jardins, como já fizera, no Rio de Janeiro, Mestre Valentim e como fazia, agora, Burle-Marx. Dos arquitetos desta geração dita “ moderna” , o grande teórico será, como se sabe, Lucio Costa. Mais do que escrever sobre o novo, ele se empenha em dissecar as relações artifício/natureza, reatualizando o discurso dos mitos e reinserindo-o, a seu modo, na história. Mais do que qualquer outro arquiteto de todo esse ciclo da arquitetura brasileira é também Lucio Costa quem certamente deixa não meia dúzia de formas - “ reprodutíveis à maneira de“ -, mas uma herança de questões. Em relação à arquitetura e à natureza, ainda está para ser devidamen te analisada não tanto a euforia, mas a melancolia que Lucio Costa revela, por ve-
Parque Guinle - 1948 - 1954 Arquitetura de Lucio Costa Fachada do Edifício Bristol
Parque Guinle - 1948 - 1954 Detalhe de Janela Incrustada em Cobogó
A Arquitetura Brasileira e o Mito
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zes, frente a esse velho jogo. O entusiasmo foi capaz de engendrar o MES e Brasí lia, esta um exemplo máximo da crença na positividade inquestionável do gesto humano. Este entusiasmo, presente no plano da Barra e em residências dos anos 40, é passível de ser rapidamente dissecado em algumas linhas. Mais complexa de se entender é uma certa melancolia entrevista em algumas de suas obras. Melanco lia capaz de conceber a arquitetura como uma sucessão de fronteiras que vão anu lando os limites do artifício frente à paisagem até recolocar o homem em pura con templação da natureza. Riposatevi, já aconselhava no seu projeto para o pavilhão do Brasil na 13a Trienal de Milão. Repousai, indicava o tênue desenho de uma bananeira e o mole desenho da rede nas casas dos operários de Monlevade. À primeira vista, os contornos do paraíso parecem brotar nas perspectivas que traçam centenas de palmeiras no projeto da Cidade Universitária e até mesmo nas janelas incrustadas em cobogós que enquadram francamente a paisagem do parque Guinle. Redes, pal meiras, amplas varandas. Janelas que se sobrepõem a cobogós-janelas e que, atra vés do inusitado perfil dos seus recortes quadrados na malha já vasada, afirmam a força de uma experiência de contemplação que atravessa os tempos. Contemplação, entretanto, que não é da ordem do pitoresco. Natureza “ bucólica” - como diz o arquiteto - onde o pitoresco está inteiramente ausente e onde artifício e natureza nem participam de uma mesma continuidade histórica nem estão plenamente em ruptura. Ambos estão entregues ao acaso. Janelas que se sobrepõem a treliças. Janelas e treliças. Varandas fecha das ou abertas. Muarabis. Na verdade, não importa de onde se contemple monta nhas, mares, palmeiras ou cerrados. O enigma que os artefatos concebidos por Lu cio Costa parece encerrar é que natureza e cultura estão condenadas a se alimenta rem continuamente através do acaso de um gesto. Gesto afirmativo e imprevisível que não participa de nenhuma necessidade externa a si próprio. Gesto envolvido por uma doce melancolia que concebe artefatos que chegam a buscar sua própria dissolução. Artefatos que, assim, atingem os limites de sua materialidade enquan to objetos arquitetônicos. Arquiteturas que menosprezam detalhes de acabamento e se mostram atravessadas pelo tempo, mal-acabadas - deliberadamente não-cicabadas. Arquiteturas que declinam qualquer ambição à permanência. Arquiteturas mi nuciosamente construídas para evocar o paraíso. Paraíso cortado por artefatos que desmentem sua existência. Objetos que, não obstante uma autodenegação extre ma, acabam confrontando homens não a jardins, mas ao próprio artefato, desenhan do o espaço onde o artifício instala, precariamente, a cada gesto, sua necessidade.
NOTAS 1. Sobre essa literatura ver por exemplo: Arthur O , Lovejoy, “ Nature as aesthetic norm” , in Essays in the History of ideas, Baltimore, The Johns
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Hopkins Press, 1948; Marie-Madaleine Martinet, Art et Nature en Grand-Bretagne - De 1’harmonie classique au pittoresque du premier romantisme 17è - 18è siècles, Paris, Aubier, 1980 ou ainda as análises de Ernst Cassirer, La philosofie des Lumières, Brionne, Ed, Gerard Monfort, 1966, par ticularmente os capítulos “ Nature et Science de la Nature e “ Les problèmes foundamentaux de I’esthètique” 2. Cf. Arthur O. Lovejoy, op. cit. 3. Dennis, John. Letter, 1688. Fragmentos desta carta, teve grande reper cussão na Inglaterra quando da sua publicação em 1693, são reproduzi dos em Marie-Madeleine Martinet, op. cit., p. 62 e ss. 4. Cf. Clement Rosset, A Anti-Natureza: elementos para uma filosofia trágica Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989, que empreende uma aná lise detalhada desta questão, particularmente no capítulo “ A miragem na turalista” 5. Diderot, “ De línterprètation de la nature” citado por Clement Rosset, op. cit., p.18. 6. Idem, ibid. 7. Idem. 8. Idem. 9. Lèvi-Strauss, Claude. Tristes Tropiques, Paris Plon, 1955, pp. 94,95 e 104. 10. Idem, ibid,p. 105. 11. Argan, Giulio Cario. L’Europe des Capitales, Genève, s.d. Ver particu larmente o capítulo dedicado à pintura de paisagem e a análise, entre ou tras das obras de Poussin, Lorrain, Rubens. 12. Idem ibid. 13. Idem 14. Para uma demonstração detalhada sobre as marcas das Visões do Pa raíso e da Utopia no próprio entendimento do gesto de construir (cida des e sociedades) no Novo Mundo e no Brasil veja Margareth da Silva Pereira, Rio de Janeiro: 1’ephémère et la pérennité, Tese de doutoramen to defendida na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 1988. 15. Rosset, Clement. op. cit. Faz uma detalhada análise sobre “ o artificialismo pré-cartesiano” que tem traços comuns com esta sensibilidade bar roca. Ver particularmente p. 128 e capítulo dedicado a Balthazar Gracian. 16. cf. Margareth da Silva Pereira, Rio de Janeiro: 1’éphémerère et la pé rennité, op. cit., onde estes exemplos foram analizados. 17. Sobre Inácio de Loyola e este “ lugar vazio e significante” veja Roland Bathes, Sade, Fourier, Loyola, Paris, Seuil, 1971. 18. É o próprio Lévi-Strauss quem sublinha a importância do olhar “ obje tivo” de Léry em suas descrições sobre o Brasil. 19. Sobre os desdobramentos do pensamento utópico particularmente presente nas teorias de organização de cidades e comunidades veja por exemplo Françoise Choay La règle et le modèle, Paris, Seuil, 1978. 20. Cf. Antonello Gerbi, La disputa dei Nuevo Mundo - História de uma polêmica - 1750 - 1900, México, Fondo de Cultura, sd., particularmen te o capítulo Buffon: La interioridad de las especies animales en América” . 21. Sobre a importância da arte dos jardins veja Marie-Madeleine Marti net, op. cit. 22. Carta de Goethe a Mme, Von Stein citada por Hans Sedlmeyer, El ar-
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te descentrado, Barcelona, Ed. Labor, 1959, p. 22. O parque do duque de Anhalt construído na cidade de Dessau foi o primeiro jardim em esti lo inglês construído na Alemanha. 23. Comentário de Lindley, Authentic narrative of a voyage from the
Cape o f Good Hope to Brazil a portuguese settlement in Soth America in 1802 - 1803, Londres, 1808, p. 132, citado por Gilberto Ferrez, Aí cidades do Salvador e Rio de Janeiro no Século VIII, Rio de Janeiro, IHGB, 1963, p. 68. 24. Veja Margareth da Silva Pereira, Rio de Janeiro : l’éphémère et la pé rennité op. cit., onde a questão recebe maior aprofundamento. 25. Veja por exemplo: Ecole Nationale supérieure des Beaux-Arts, Paris - Rome - Athenes - Le Voyage en Gréce des Architectes Français au XIXé et XXé siècle, Paris, ENBA, 1982 ou ainda Jean Starobinski, L ’inventiom de la liberté, Paris-Genève, Skira-Flammarion, 1987. 26. Veja 5 e ss. 27. Veja Margareth da Silva Pereira, Rio de Janeiro : 1’éphémère et la pé rennité. 28. Idem, Ibid. 29. Sedimeyer, Hans. El arte descentrado. op. cit., p. 28 30. O livro de Alois Riegl, Der moderne Denkmalkultus, Vienne-Lepzig, 1903 (trad. francesa Le culte moderna des monuments, Paris, Ed, Sseuil, 1984) permanece como uma das mais exaustivas análises sobre o moder no culto dos monumentos, tal como ele se constrói a partir do renasci mento até se “ naturalizar” nos séculos X V III e X IX . 31. Para exemplos específicos desta atitude particularmente no Rio de Janeiro - cidade-capital veja Margareth da Silva Pereira, Rio de Janeiro-. féphémêre et la pérennité, op. cit. 32. Taunay, Felix Emile. “ L’Education par les lettres et les Beaux-Arts” . 12/mai/1844. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro AP35-DOC. ms. 33. Para exemplos específicos desta atitude particulamente no Rio de Ja neiro - cidade capital veja Margareth da Silva Pereira, Rio de Janeiro-. l’éfémère et la pérennité, po. cit. 34. Veja Cecília Rodrigues dos Santos, Margareth e Romão da Silva Perei ra, Vasco Caldeira, Le Corbusier e o Brasil, São Paulo, Tessela-Projeto, 1987, p. 71. 35. Idem, ibid, pp. 87/89. 56. A expressão “ Livre república da plantas foi utilizada pelo príncipe Maximilien em sua relação de Viagem sobre o Brasil citado por Morales de los Rios em Grandjean de Montigny e a evolução da arte brasileira, Rio de Janeiro, A Noite, 1941, p.38. Sobre a ideologia naturalista moder na apoiada agora na noção de natureza humana veja Clement Rosset, op. cit. MARGARETH DA SILVA PEREIRA é arquiteta formada pela FAU-UFRJ, urbanista diplomada pela universidade de ParisVIII e doutora em Histó ria graduada pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris,é atualmente coordenadora acadêmica do Curso de Especializaçãoem Histó ria da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC-RJ e participa do progra ma de Mestrado em História Social da Cultura oferecido pelo Departa mento de História da PUC-RJ.
Giovanni Battista Castagneto, sem título óleo s/madeira, 12x9,5 Coleção particular
ILEANA PRADILLA C ER Ó N
O jogo do Ambíguo
A figura de Giovanni Battista Castagneto sintetiza dois aspectos apa rentemente paradoxais: o do artista independente e quase liberado das normas pic tóricas impostas pelo sistema acadêmico de ensino de arte e o do pintor de gêne ro relativamente tradicional, dotado de uma facilidade intuitiva. Isto ficaria ilustra do até na imagem típica que ele suscitava: era o próprio artista boêmio, pobre e “ romântico” , de trato rude e de poucas palavras. Pintor rebelde e solitário, abando na a Academia de Belas-Artes em 1884- seguindo os ensinamentos liberais do ale mão Georg Grimm, a quem deixaria, entretanto, logo em seguida - para, cinco anos mais tarde, com a declaração da República, unir-se ao grupo de artistas que clamava por seu fechamento. Mas, sintomaticamente, recebe poucos meses antes aquela que viria a ser a última encomenda oficial do Império: a tela representan do o navio Almirante Cochrane, presente da Coroa à missão oficial chilena, home nageada no famoso Baile da Ilha Fiscal. O que importa é que essas atitudes de caráter contraditório de Cas tagneto extrapolam o âmbito do comportamento social para tomar corpo em seu próprio trabalho. O conflito com as normas acadêmicas e sua decorrente visão de mundo não se resolve totalmente nessa pintura que parece incapaz de assumir aber tamente a renovação que ela mesma traz. Castagneto recorrerá a certos artifícios tradicionais que lhe permitirão tanto sobreviver dentro do espaço social quanto alcançar a independência e a liberdade indispensáveis para a sua poética. Não é possível, por exemplo, referir-se à sua obra sem entendê-la como um conjunto apa rentemente dividido ainda nos termos das categorias tradicionais estudo/obra aca bada. Daí os pequenos quadros em tampas de caixas de charutos ou cartões e as telas de maiores dimensões. Em sua época, porém, a coerência dos trabalhos vinha aparentemen te assegurada pela insistência do artista numa mesma temática. Reconhecido co mo o nosso melhor “ pintor de marinhas’ , Castagneto tornava-se, assim, um sujei to especializado, um trabalhador na posse de um ofício com o qual adquiria utilida de social. Mais próxima, aliás, à de um artesão do que à de um artista da metade do século XIX. Ao mesmo tempo, como vimos, em que pese a sua indiscutível no vidade plástica, as “ caixinhas de charuto” pareciam obedecer à hierarquia acadêmi ca entre estudos e obras, própria da pintura de atelier, desviando a atenção públi ca para seus quadros mais tradicionais. Segundo críticos da época, como Gonzaga Duque e Francisco Aquarone, essas pequenas obras eram fruto da espontaneidade
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e da compulsão do artista para a pintura; meras “ manchas” ou exercícios de um autodidata cujo fim seria, inequivocamente, as telas destinadas aos salões oficiais ou às poucas encomendas que ele recebia. Salvo algumas exceções, no entanto, tais quadrinhos jamais foram meios para pinturas posteriores, menos ainda anotações a serem reproduzidas pos teriormente no atelier. Em sua singeleza, tratam-se de pinturas únicas e acabadas. Apresentam-se como exercícios porque o seu caráter aberto duvida da eternidade que a obra possa alcançar. Sua espontaneidade radica precisamente nessa ausência de finalidade, nesse pintar “ para si próprio” 1, tal como Constable em suas telas não oficiais. Silenciosa, mas drasticamente, essas tabuinhas assumem um dos fatos cruciais, da pintura moderna: a falta de destino social prévio para as obras de arte. Elas seriam já Homeless Painting, como afirmou Bernard Berenson2, compreenden do e denotando a falta de uma função social definida para o artista. Só resta a esses pequenos trabalhos, portanto, evidenciar um sujeito que não omite o seu lirismo singular diante da suposta universalidade do gosto es tético. A ausência de lugar preestabelecido se traduz na busca incansável de situa ções que venham a enfatizar sua individualidade, sua própria solidão, enfim. Giovanni Battista Castagneto, ‘‘Ponta do Gelo da Praia de Santa Luzia” , 1886 Óleo s/cartão, 14x19,5cm. Coleção Luiz Buarque de Holanda
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Diante das caixinhas de charuto” , ficamos, de certa maneira, impe didos de guardar a distância e a imobilidade necessárias à contemplação da cena tradicional, a janela renascentista. Com seu pequeno formato, o quadro nos inci ta a uma relação muito próxima, por assim dizer “ corporal” : ele não é mais o obje to inalcançável e quase sagrado como se pretendia o quadro de cavalete. Ao con trário, o trabalho só se apresenta de fato no momento em que conseguimos rom per a barreira intelectual e nos dispomos a utilizar francamente o nosso olhar. Graças a essa fundamental mudança operada no estatuto de nossa pintura, Castagneto já evidenciava a inadequação - típica da Arte Moderna entre a poética do artista e as aspirações de identificação do público, que insistia em ver suas pinturas com o olhar classicizante das Belas-Artes. Se a obra revela o juízo de um sujeito de percepção aguda, atento aos problemas que o afetam como indiví duo e artista na sociedade do seu tempo, não é porque ilustre aspirações indivi duais contrárias às coletivas, e sim porque o nosso artista constrói uma relação par ticular com esse universo, baseada tanto na limitação rigorosa a praticamente uma única temática quanto na “ obsessão” com que se relaciona com suas paisagens. Mais do que a empatia afetiva com um dado motivo, seus quadros são fruto de uma disciplina dos sentidos em funçãd de uma escolha bastante delineada. E esta, como qualquer outra escolha, implica também uma renúncia. No caso, a evidente recusa de deter seu olhar sobre a vida urbana, sobre a cidade como estímulo sensí vel. E, sem dúvida, essa decisão contém um juízo de valor. A Natureza como construção Vivendo numa época de rápidas mudanças urbanas, o artista se ne ga, entretanto, a registrar qualquer sinal de transformação ocorrida na paisagem do Rio de Janeiro no final do século XIX. Nos quadros em que encontramos algu ma inconografia urbana, tratam-se de casarios velhos (Casas rio Porto, 1885), recan tos abandonados (suas inúmeras e anônimas praias), igrejas a meio construir (Igre ja de Santa Luzia, 1885), sítios, enfim, já na época em franco processo de decadên cia. Inexistem em seus quadros vestígios da pompa de uma cidade que pretendia a dignidade de capital de um império do século X IX . Com sua escolha, Castagne to insiste em mostrar que, por trás de um ideal de civilização e de um progresso universal, do qual a própria Academia de Belas-Artes era fruto, existe algo de con creto, algo de particular, como essas casas pobres e canoas de pescadores, cujo abandono não chega a ser atingido por aquele ideal. É evidente que esses lugares nunca deixaram de, reconhecidamente, fazer parte da cidade, assim como Castag neto sempre foi um cidadão reconhecido e aceito na sociedade do seu tempo. Da mesma forma que esses cantos, porém, nosso artista parece saber que esta afasta do da vida e do destino da cidade. Cabe a ele, então, afirmar sua presença, sua atua lidade, pela própria matéria pictórica quando constata em seus motivos o fosso en tre o rumo do presente e sua condição marginal.
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A recusa em pintar a cidade como lugar da civilização não significa necessariamente que Castagneto busque, igual a Gauguin, a Natureza como saída ou alternativa para o “ inferno” da vida moderna. A pobreza que Castagneto apre senta nada tem a ver com aquela causada pela civilização industrial; isto, naquela época, seria totalmente impossível. Os velhos botes nas praias ou os casebres sem pre estiveram aí, parecem uma condição permanente. Seria inútil, portanto, procu rar nessas pinturas qualquer tipo de denúncia: o artista tampouco cultiva a esperan ça de que a civilização consiga acabar com esse estado de coisas. Ao contrário, pa rece descrer que o progresso logre erradicar um estado humano. Se a Natureza não é a alternativa para os impasses da civilização, tam pouco aparece tratada ingenuamente como uma totalidade previamente ordenada no intelecto, como ocorre, por exemplo, na pintura de Georg Grimm. O pintor alemão tinha a preocupação extrema de reproduzir a exuberância da paisagem bra sileira. A Natureza equivale à paisagem que está aí para ser detalhada e exaltada pe lo artista. O pintor é o espectador privilegiado, com uma visão ainda idealizante de um mundo sem conflitos. Mas, numa canoa na praia de Castagneto, por exem plo, a Natureza não se reduz à precária indicação do mar, do céu, da areia. A Natu reza é a construção equivalente ao próprio espaço e ao resultado visual do traba lho; e, simultaneamente, é apenas um fragmento, pois o olhar só apreende peda ços de realidade que, enquanto dado visível, não abriga hierarquias. Os elementos da tela, por mínimos que sejam, atuam còmo fatores construtivos; não são como nos quadros de Grimm, elementos descritivos. A paisagem de Castagneto não é mais tributária das categorias do Be lo, não desperta mais sentimentos de harmonia ou de temor. Nem pitoresca co mo a de Constable, nem sublime como a de Turner. Talvez, por isso mesmo, seja possível afirmar que Castagneto é o pintor do perído mais sensível à paisagem bra sileira, ao seu espírito e à sua luz. Ele compreende,como só um artista às voltas com a sensação visual pode compreender, que esta paisagem é um tanto árida, nem acolhe, nem inspira temor. Dispõe, sim, de enormes espaços vazios, intermináveis, com uma luminosidade impiedosa. E é justo com essa extensão, tomada enquanto solidão e monotonia, que Castagneto se identifica. O primeiro olhar talvez estranhe, nessas marinhas aparentemente pouco luminosas, a ausência da luz excessiva de nossas praias. Isto, paradoxalmen te, não se deve a uma omissão da luz e sim à compreensão do seu excesso. Castag neto parece notar que a abundância de sol na região tropical, em vez de salientar, ofusca as cores. A luz tropical não se difunde de forma homogênea: estamos no sol, ou na sombra, e nela também se escondem as cores. Daí as cores de Castagne to: os cinzas, marrons, ocres e verdes escuros vêm da experiência da visão, distan te já de uma concepção intelectualista e mimética de pintura. Contrastando com o seu registro da paisagem brasileira, durante a estadia na Europa Castagneto revela em sua pintura o deslumbramento com a luz mediterrânea. As cores tornam-se agora claras em relação às pinturas anteriores.
Giovanni Battista Castagneto, "Veleiro Navegando” (c.l898) óleo s/madeira, 9x12 cm. Coleção particular
No entanto não devemos confundir a mera claridade com a inteligência da cor. Nos seus quadros europeus, em geral, o mundo aparece calmo, acolhedor, quase alegre. Porém, apesar da "alegria” e do estado de tranqüilidade dessas telas, elas nos parecem, hoje, muito menos modernas. A cor deixa de ser elemento construti vo, como o era nos trabalhos anteriores; a pincelada é velada e as cenas têm con tornos; o pintor, enfim, está postado como observador distante. Desaparece, assim, um dos dados mais importantes e típicos da pintura de Castagneto: a sensação de proximidade do pintor. A marca da vivência do ato de pintar, deixando sua impres são sensível no quadro, mediante o embate direto com o suporte e os materiais. Longe de apenas retratar uma cena de paisagem, as "caixinhas de charuto” de Castagneto exigem e expressam o alto grau de identificação e familia ridade do artista com sua ambiência. Esta, contudo, não é captada como se tives se uma "essência” mas estruturada enquanto imagem. Voltando às canoas na praia, por exemplo, vemos que elas não são idealizações da vida simples ou dos instru mentos de trabalho do pescador. A forma quase geométrica, simples, quase ideal, faz a ligação entre o plano da terra e o plano último do horizonte. É a aproxima ção de todos os planos à superfície, quer dizer, a sua atualização. A imediatidade do quadro vem, contudo, impregnada de uma intimidade do artista com a cena, que de certo modo torna a pintura uma extensão do próprio pintor.
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À familiaridade de Castagneto com os lugares corresponde, pois, um sentimento. Ao enfrentamento com o mundo dos fenômenos - já que obvia mente a paisagem só pode ser captada através dos sentidos - corresponde a neces sidade de tornar o sentimento visível, para dotá-lo do mesmo grau de realidade que os fenômenos detêm. A relação de Castagneto com a paisagem vive e se ali menta da busca de uma correspondência sensível para um sentimento pessoal que permanece, no entanto, anterior à visualidade das coisas e não se dá, como nos quadros de Constable na leitura de Giulio Cario Argan3, a partir da visualidade das mesmas. É curioso que este europeu (afinal, Castagneto passou metade de sua vi da na Itália) encontre em nossa paisagem algo monótona e árida, mais do que na calma da paisagem mediterrânea, a pronta correspondência entre o seu sentimen to e a sua situação no mundo. Temperamento intimista Talvez se possa definir tal sentimento como Temperamento, já que se trata da construção de uma visão de mundo pessoal. É ele que permite encon trar, no vasto conjunto que formam suas pequenas obras formam, uma unidade e uma coerência inéditas na produção artística brasileira da época. É ele, sobretudo, que denota o fundamental aparecimento de uma Poética em nossa pintura, ou seGiovanni Battista Castagneto, sem título, 1985 Óleo s/madeira, 14 x 20 cm. Coleção particular
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Giovanni Battísta Castagneto,' 'Chalupa de Dois Mastros Navegando” (c. 1898) óleo s/madeira, 15x 11 cm. Coleçio particular
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ja, de uma Obra cuja unidade se encontra, tomando emprestadas as palavras de Argan, “ numa intencionalidade cujo fim último pode até estar além da arte, mas deve ser alcançado através da arte’ ’.4 A introdução de uma pintura que “ se sustenta no temperamento do artista ”5 e não mais em regras filosóficas, religiosas, históricas ou mesmo estéticas, aproximaria Castagneto dos impressionistas, principalmente de Claude Monet. Pa ra ambos a pintura era, com o escreve Pierre Francastel, uma arte vivida(...) um estado da alma” 6, “ um desenvolvim ento que substitui as leis da experiência objeti va pelas leis da experiência subjetiva” .
Nada mais oposto, porém, à euforia e à vibração típica da pintura de Monet do que o temperamento intimista de Castagneto. O quadro de Monet abriga o “ espetáculo” do fluxo dos fenômenos. Monet inaugura a pronta corres pondência entre o mundo sensível e a superfície da tela. Castagneto relaciona-se com os fenômenos de outra maneira. Dada a necessidade prévia de identificação com uma certa realidade, parece não conformar-se com o fato dos fenômenos se rem tão somente imediatos, irrecuperáveis, meramente sensíveis. Por isso, tenta aproximá-los, deles apropriar-se, constituí-los em unidades, através de um tempera mento que visa a permanência e não a fugacidade. Curiosamente, por esse moti vo, Castagneto acaba também por evidenciar a superfície material do quadro. Os seus trabalhos revelam uma gestualidade que, embora não seja, como em Monet, fruto da liberação dos sentidos, tem origem na necessidade de construir uma ima gem interior do mundo, a ser confrontada com a exterioridade que experimenta pelos sentidos. Ainda no terreno da sensação visual, portanto, Castagneto capta dos fenômenos justo o que permanece inalterado, mesmo quando as circunstâncias mudam. Diante do real, isto é, diante do instável e do mutável, o artista afirma paradoxalmente a impossibilidade de mudar sua maneira de captá-lo. O quadro re mete à singularidade do olhar do artista que busca expressar sensivelmente sua pró pria constante. Nessa busca de uma anterioridade talvez residam tanto a densida de quanto o aparente arcaísmo dos pequenos trabalhos de Castagneto. Nas séries de Monet (Catedrais de Rouen, Pontes de Londres, etc.) o pintor fixa-se perante o mesmo motivo, conservando basicamente a mesma locali zação, a mesma distância. Assim posicionado, capta os elementos mutáveis na mes ma imagem, as modificações da ordem do sensível, mantendo ao máximo as con dições constantes. Nas séries de Castagneto, como a dos barcos a vela ancorados (Toulon, 1893), o que muda é a proximidade do pintor frente ao objeto. O artista se afasta ou se aproxima sem que mude substancialmente o resultado das imagens nos diversos trabalhos da série. Tudo se passa como se o pintor diante da Nature za, e por correspondência o espectador frente ao seu quadro, concluísse a mesma relação que já fora concluída em obras anteriores. Como se, a cada quadro, Castag neto renovasse a mesma relação com o mundo. Tais séries não remetem ao senti do de tempo como sucessão de momentos. Remetem, sim, a um sujeito que deve
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Giovanni Battista Castagneto, “ Ilha” , 1885 óleo s/madeira, 14x24 cm. Coleçào particular F.A.
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guardar sua unidade para assim poder experimentar e relacionar-se com o mundo. Mas o passar do tempo se faz efetivamente presente em suas pinturas, pois Castagneto deixa à vista o processo de elaboração da imagem. E, surpreenden temente, como se não esperássemos tanto, somos obrigados a refazer o percurso do pintor, visível no sentido e no ritmo dado a cada uma das pinceladas que cons tróem o trabalho. Ao evidenciar a fatura delicada, como o trabalho de um artesão, deixando, contudo, bem claro que é fruto da pintura ao ar livre, que não pode deter-se em nenhuma sensação particular, nem tampouco voltar atrás - ao atentar, em suma, para cada um dos elementos do quadro: pincelada, tinta, tamanho e qua lidade do suporte -, o artista levanta uma dúvida sobre a pintura enquanto ilusão ou cópia da realidade. Estamos frente a um processo material de pintura que deve mos reconstruir somente através do olhar. O jogo das tensas relações A obra de Castagneto foi construída, aproximadamente, ao longo de 18 anos: de 1882 a 1900, ano de sua morte. Comparando um trabalho do início de sua carreira, Ilha, 1885, com outro próximo ao fim, Chalupa de uma Vela e Va por Navegando, por volta de 1898, verificamos, de forma sumária, as modificações e as características que permaneceram inalteradas em toda a sua obra. Castagneto opera nesses quadros, como o faz na grande maioria, uma drástica redução do mo tivo: temos, basicamente, um objeto no mar. Nos dois casos, são objetos banais dos quais pouco se sabe: um rochedo e uma chalupa quaisquer. A simplificação do motivo, que vem acompanhada de extrema sim plificação na maneira de pintá-lo, torna patente uma enorme sensação de solidão: na Ilha ela aparece porque uma única rocha se ergue verticalmente, qual um vul to, ocupando grande parte do espaço do quadro. Haveria, a rigor, apenas uma mas sa bruta e escura contrastando com certa fluidez e clareza do mar. Na Chalupa o processo é inverso: o objeto está prestes a ser absorvido por um espaço que ame aça tornar-se absoluto, salientando a insignificância dos sólidos, reduzidos à mera indicação. O efeito, porém, é o mesmo: o contraste entre os objetos e o espaço se rá a pergunta do artista sobre a possibilidade da pintura representar volumes no espaço infinito e ideal. Ainda na Ilha, contrastando com as pinceladas horizontais e quase brancas do mar, espaçadas, algo ralas e bastante largas, temos a construção do ro chedo mediante uma manobra circular. Castagneto tenta construir o volume partin do dos seus contornos para chegar ao que seria o centro ou “ coração” da pedra. Aqui surgem, dramaticamente, o gesto e a massa de tinta, na medida em que a soli dez desejada exibe o seu próprio esforço para constituir-se. O quadro acaba impreg nado de certa carga romântica, não porque exista idealização ou elogio da Nature za, e sim porque fica patente o desajuste entre a noção clara de mundo a represen tar e a impossibilidade do artista em fazê-lo.
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À primeira vista, o desajuste desaparece na Chalupa. Também aparen temente, no final, após a descoberta da luz mediterrânea, Castagneto teria se apro ximado de uma poética impressionista. Teria reconhecido a vibração da atmosfe ra e posto de lado os negros e cinzas em favor dos brancos, rosas e azuis. Mais ain da, a pincelada bruta se transforma em pequenos toques ligeiros, menos expressi vos e turbulentos. No entanto, a meu ver, seria precipitado afirmar que a obra de Castagneto evoluiu simplesmente do “ Romantismo” ao “ Impressionismo” . Com certeza, seus últimos trabalhos exibem uma fatura mais imediata e uma superfície mais vibrátil. A imediatidade da fatura continua a conviver, no entanto, com a ex periência da profundidade do espaço. O olhar, nesta composição bastante particu lar, fica apenas a meio caminho: sem poder penetrar de todo essa profundidade, porque céu e mar aparecem praticamente indistintos na cor, o que os torna quase uma única superfície, tampouco ele chega a ser atingido pelas vibrações dessa su perfície, pois o artista está ainda preso à visão unitária e projetiva de mundo. Cas tagneto, sintomaticamente, coloca uma pequena pedra na Ilha e um vapor na Cha-
Giovanni Battista Castagneto ‘Chalupa de uma vela e vapor navegando’ , 1898 óleo s/madeira, 9 X 1 2 cm. Coleçào Particular
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lupa que, devotamente situados em relação aos objetos que seriam o motivo prin cipal dos trabalhos, procuram ainda indicar distância e profundidade por estarem escalonados em relação à linha do horizonte. Basicamente, porém, o que existe nessas pinturas é a evidência da tensão entre a tentativa da representação do corpo sólido - o volume - e a análo ga notação do espaço que seria, ao menos em tese, infinito em sua extensão. Para doxalmente, contudo, a pintura de Castagneto parece tornar visível a falência de uma fácil e tranqüila representação. A Chalupa, por exemplo, não acaba nunca por dissolver-se completamente no mar; o objeto continua preso a contornos que pre servam, ainda que precariamente, sua individualidade e até, de certo modo, sua idealidade. E o espaço ilimitado restringe-se às ínfimas e um tanto bizarras dimen sões do suporte escolhido pelo artista, que aponta claramente para a materialida de do quadro. Em resumo, a construção dos trabalhos revela que agora é impossí vel destacar positivamente os objetos do espaço em que se encontram. E também faz notar que, à pintura enquanto representação privilegiada do mundo, só resta a alternativa de registrar o jogo das tensas relações. Conciliação de dois tempos Castagneto seria, pois, enfaticamente, pintor de sua época. Isto é, apresenta em sua obra as questões e as problemáticas do período em que viveu: época de passagem entre o modelo acadêmico e.o modernismo. Entretanto, seria injusto situá-lo como mero artista de transição, mesmo porque a passagem da Aca demia para o Modernismo foi muito mais uma ruptura do que uma modificação estética. Sua pintura talvez seja entre nós a maior contribuição efetiva para o fim da Academia, embora recorra a soluções muito distantes de nossa arte moderna “ oficial” . Em suas pinturas reúnem-se os nossos principais paradoxos: sendo ain da um pintor de província - sua produção guarda um tom arcaico e familiar, certa precariedade de meios e certa timidez que impedem o gesto franco e um tamanho maior para seus quadros - Castagneto já percebe e sente a necessidade de respon der de forma imediata aos estímulos sensíveis, exigências por excelência do mun do moderno. O conjunto de sua obra abriga ainda certo “ romantismo” no apego afetivo à paisagem, mas com certeza está muito longe da contemplação bucólica da Natureza. Talvez de tudo isso possamos concluir que um dos dados mais curio sos - e, ao mesmo tempo, misteriosos - da pintura de Castagneto resida na própria vontade de identificação com um mundo em tensão. Isto nos apresenta frontal e formalmente uma questão inédita na arte brasileira de sua época: de que modo pen sar esse desejo de identificação? Como um arcaísmo, uma certa ingenuidade, por estar em busca de uma empatia que, na arte européia, há muito se sabia perdida? Ou como uma modernidade, prestes a assumir a falta de solução, ao reconhecer o mundo como tensão?
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Sem resolver o problema, tornando-o, isto sim, insistentemente visí vel, a obra de Castagneto coloca, portanto, uma das questões cruciais para boa par te de nossa arte moderna: o problema da conciliação dos dois tempos em que vive mos. O tempo da província, constante e invariável, e o tempo instável imposto pe la modernidade, urgente e ávido de novidades. Com semelhante problema vão con viver de maneiras diversas Guignard, Pancetti, até mesmo Dacosta e Volpi. Pode mos, assim, tomar a obra de Castagneto com o a introdução à ambigüidade intrínse ca da arte moderna no Brasil.
NOTAS: 1. Venturi, Lionello. Para Com preender a Pintura. Lisboa, Estúdios Cor, 1968, p. 143. 2. Berenson, Bernard. Estética e H istória. São Paulo, Ed. Perspectiva, Col. Debates, 1972. 3. Argan, Giulio Cario. El Arte M oderno 1770/ 1970. Valencia, Fernan do Torres, 1983, p. 32. 4. Argan, Giulio Cario. “ Os movimentos artísticos’’. Arte e Crítica de Arte. Lisboa, Ed. Estampa, 1988, p. 28.
5. Notas de aula do curso “ H istória d a Arte Moderna , professor Ro naldo Brito, no 1° semestre do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, PUC, 1987. 6. Francastel, Pierre. El Im presionism o. Buenos Aires, Emecé, 1983, P- 48. 7. Francastel, Pierre. op. cit., p. 42.
1LEANA PRADILLA CERÓN é graduada em Artes Cênicas pela Universida de do Rio de Janeiro (UNI-RIO); formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, Pontifícia Universidade Cató lica, Rio de Janeiro.
T IT O M ARQUES PALMEIRO
A Estética de Kant
A filosofia de Kant' tem por tarefa a fundamentação de nossas expe riências (seja a experiência estética, o conhecimento ou a moral) através da deter minação das suas ‘condições de possibilidade” , condições que se referem a uma necessidade e a uma validade universal. Para Kant aquilo que pode fornecer ‘‘ne cessidade” e “ validade universal” é a razão: ela se define pela preocupação com o incondicionado, com o que transcende o singular, tornando-o possível. A Crítica do Juízo, no entanto, não se preocupa em fundamentar ex periências, mas antes em delimitar a possibilidade da própria filosofia transcenden tal; a questão inicial desse livro é a de como a razão pode desempenhar esse papel fundador. E foi por tentar responder a esta pergunta que Kant se deparou com a experiência estética. Surge, assim, uma profunda interrelação entre filosofia e arte, na medida em que ambas referem-se ao nosso estar no mundo, à nossa relação com a natureza. Natureza em Kant não é um elemento externo à razão, só existindo rela cionada a ela. A Crítica do Juízo investiga as condições de possibilidade dessa cons trução da razão: a natureza.2 É interessante notar que esse livro de Kant trata da experiência esté tica não de uma maneira descritiva, distanciada, mas em uma identificação plena. Ele apresenta duas soluções opostas para a questão do estar no mundo3: oscila en tre a hipótese de uma harmonia entre a razão e natureza, atitude clássica, e a hipó tese oposta, de um conflito entre ambas, atitude essencialmente romântica. Sua es trutura interna resulta tensa; reflete essas diferentes visões, o que fica explícito nas estéticas do belo e do sublime, como veremos adiante. A experiência estética é definida de uma forma original por Kant. Ela se refere àquilo que é próprio do sujeito - os sentimentos de prazer e de desprazer. Seria uma experiência exclusiva do sujeito porque o objeto não é sua causa, mas apenas a ocasião de sua ocorrência. Não se deve entender com isso que a experiên cia estética seja algo subjetivo, pertencente apenas àquele que contempla: trata-se, na verdade, de algo inter-subjetivo, uma vez que o sentimento terá uma validade irrestrita para todos os sujeitos. Assim, mesmo não se referindo a algo comparável objetivamente, es sa experiência é válida universalmente, é racional. A validade inter-subjetiva que atribuímos à contemplação pressupõe a existência de um senso comum entre os sujeitos que ‘‘determina o que agrada ou desagrada, por meio do se n tim e n to ape nas e não através de conceitos, mas com validade universal .4
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A experiência estética fala da possibilidade de a razão fundamentar a experiência em geral; como se houvesse uma espécie de “ acordo” prévio entre a natureza e a razão. E esse é o motivo pelo qual Kant estuda o belo: nessa ocasião a razão não está determinando a realidade. Pelo contrário, o belo é sentido como um prazer na medida em que “ somos liberados” 5 da tarefa de ordenar a natureza. Belo seria o prazer de verificarmos que a natureza parece ser ordenada independen temente da razão.6 Ou seja, o belo seria a experiência do acordo entre a natureza e a razão. O estado da razão na contemplação do belo seria compreendido, se gundo Kant, como o de um jogo, onde o prazer está ligado ao fato de se estar li vre da função de ordenar a realidade, e o prazer do belo é dito um prazer desinte ressado. A razão fica nüm estado auto-referente similar a uma celebração, em uma pura atividade livre, num jogo calmo, onde pode se demorar contemplando o objeto. Kant diz que, no Belo, uma forma que serviría ao jogo da razão seria não regular, mas livre. As figuras geométricas, por estarem associadas a conceitos, não seriam belezas livres. Se quisermos encontrar formas que tenham essa liberda de, deveriamos nos dirigir à natureza. Segundo Kant, a “ natureza, por não ser su jeita a nenhum constrangimento ou regras prévias, é generosa, pode fornecer .cons tante alimento” 7 para esse jogo da razão. Vê-se então que o belo natural tem uma posição privilegiada, se com parado ao belo artístico (que sofre um constrangimento, pois surge de um fazer). O acordo entre a natureza e a razão parece ser tão profundo que che garia a haver uma espécie de reciprocidade entre ambas: à liberdade que atribuí mos à natureza correspondería um comportamento livre da razão.8 Pois se, por um lado, a natureza não está determinada pelos conceitos da razão, por outro a ra zão se encontra independente de um objeto sensível. Kant diz, então, que o belo não é um atributo do objeto, mas a forma de a razão se comportar quando ela se encontra num acordo harmônico com a natureza, comportamento de um jogo. Be lo é a harmonia entre as faculdades da razão quando ela se encontra nesse acordo harmônico com a natureza. Entretanto, não se deve pensar que Kant está preocupado em demons trar o acordo entre natureza e razão. Na esfera estética estamos fora de provas con ceituais, porque é como se essa esfera fundasse o uso conceituai da razão. A racio nalidade da experiência estética não é a mesma desse uso conceituai, mas, segun do Kant, ela é como que prévia a esse uso, pois “ assumimos um senso comum co mo a condição necessária da comunicabilidade universal de nosso conhecimen to -9 Abre-se aqui uma nova dimensão da razão, que trata não da elucidação de conceitos10, mas do uso da metáfora. Kant fala que a cor branca do lírio parece dispor a mente para idéias de inocência *... e o acordo harmônico é identificado por Kant pela expressão como se : é como se a natureza fosse adequada à nossa razão; o que faz com que na experiência estética a natureza seja encarada como símbolo.12
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Efetivamente não podemos provar o acordo. Não podemos provar que uma árvore, por exemplo, foi feita para nós. Nada nos garantiría de antemão que o mudo não fosse algo hostil, in compreensível em sua particularidade, algo com que a razão não pudesse se relacio nar. Logo, não se trata de provar o acordo, mas apenas de vivenciá-lo. Mais que is so, esse acordo é verdadeiramente digno de espanto15: Kant diz que é motivo de admiração a natureza ter espalhado o belo com tanta generosidade, até mesmo “ nas profundezas do oceano, que raramente podem ser alcançadas pelo olho hu mano” .14 As formas belas são o paradigma da contingência. E isso porque o belo tem lugar a partir de nossa relação com um objeto singular. Dizer que ‘‘as ro sas são belas” não é um julgamento estético, para Kant - dizer ‘‘esta rosa é bela” , sim. “ As rosas são belas” é uma proposição conceituai, que não surgiu de um con tato livre e imediato de nossa razão com o mundo. O caráter de jogo é fundamental também para a segunda categoria estética, o sublime. Porém, aqui o jogo é mais dramático, não só pelo fato de a es tética do sublime lidar com tensões - como veremos a seguir -, mas também pelo fato de o sublime se definir como contraposto ao belo. Esse aumento de tensão, enfatizando o gesto romântico, dominará a estrutura do livro. Os exemplos que Kant dá do sublime se referem, inicialmente, aos acontecimentos que ultrapassam o poder de nossa razão: o céu estrelado, que não pode ser apreendido de um relance, o mar tempestuoso, que vivenciamos como uma força física que nos coloca em perigo, os Alpes descomunais... tudo aquilo que nos ultrapasse em termos de força ou de extensão. Esse desacordo é vivido pela razão como um jogo de atividades atrativas e repulsivas, como se ela estives se tentando dar conta daquilo que a ultrapassa. Mas o desacordo do sublime não nega a facticidade do mundo. Ne ga, apenas, que esse mundo seja dócil (uma visão de mundo quase oposta à do be lo). E é isso que incita a razão a domá-lo, a querer ultrapassá-lo. Ao contemplar mos um céu estrelado, sentimos dois movimentos alternantes: o céu estrelado ul trapassa a tentativa de nossa razão de apreendê-lo em sua totalidade (o que gera um desprazer), porém a razão descobre que a totalidade não é um atributo da natu reza, e sim dela, razão. É a razão que se coloca a questão do incondicionado, do todo. Desse modo, a razão, por ser totalizadora, descobre-se como uma potência superior à natureza (o que produz um prazer) e projeta na incompletude do céu estrelado a idéia de infinito. O jogo do sublime é o da alternância entre o despra zer (nascido do desacordo com o mundo) e o prazer da razão em se descobrir co mo um poder que ultrapassa a natureza, que busca ultrapassar os obstáculos sensíveis. A experiência do sublime é a do arrebatamento, daquilo que leva a razão até seu ponto mais alto. A natureza passa a ser a tela onde a razão projeta seus símbolos: o mar agitado é encarado como símbolo da fúria, os picos gelados
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Foto: Cecília Mello
William Turner, “ A Primeira Ponte Sobre Altdorf, 1845 Aquarela, 236 x 296 mm.
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como símbolo do poder. O jogo do sublime é mesmo o das alternâncias, já que é o desacordo que permite à razão simbolizar idéias de que normalmente não temos qualquer experiência sensível. Fúria, poder e outras idéias .só no desacordo têm uma exteriorização. Desse modo se vê que o desacordo não é absoluto. Ele é mais um “ ardil” 15 da natureza, pois ela permite essa projeção. A desarmonia nunca é tal que venha a questionar a possibilidade da harmonia do belo. Então belo e sublime não são efetivamente opostos. Eles são, na rea lidade, complementares. Existe, assim, a possibilidade de ambos terem uma interrelação, o que nos daria uma outra medida de nosso relacionamento com a nature za. Mas pela contemplação só experimentamos belo e sublime, e não algo que re solva esse enigma... Para compreendermos esse relacionamento, no entanto, resta na Crítica do Juízo uma terceira possibilidade ainda não analisada. Trata-se não da contemplação, mas da produção de formas estéticas, a que Kant dá o nome de gê nio. Talvez ao analizarmos o gênio possamos ter uma melhor compreensão do ti po de relação entre acordo e desacordo, belo e sublime.
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Gênio é aquele que produz o belo artístico, estando sua atividade re lacionada à harmonia com a natureza. É um talento especial da razão, singular: nem todos são gênios. Esse termo não se refere à ciência, mas apenas à arte, e mesmo assim a poucos artistas. Ao produzir uma obra singular, o gênio transforma-a em modelo, subs titui a ordenação que o conceito dá à realidade pela feitura de um singular com va lor universal. A obra do gênio é singular também porque, apesar de ser objeto de contemplação, existe uma parte dela que só poderá ser apreendida por outro gênio. Este descobrirá nela uma pista que apenas a natureza lhe permite seguir. Gênio é uma mensagem lançada a outro gênio. Mas não se pense que o enigma de nossa relação com o mundo te nha no gênio uma solução definitiva e única. Ele será importante como um exem plo dessa relação, sendo nessa medida tão interessante quanto belo o ou o subli me. Ao estudá-lo reforça-se que respostas a esse problema teriam sua validade asso ciada a uma singularidade. A noção de gênio está relacionada ao ultrapassamento, à potência e ao singular... gênio é aquele que parece não se prender a regras prévias nem se guir modelos, ele produz o exemplar a partir de sua originalidade, surgida de sua relação com a natureza (Kant diz que o gênio é a “ atitude mental inata através da qual a natureza dá regra à arte)” .16É aquele que consegue ser uma potência de cons tituição tanto quanto a natureza: “ A arte só pode ser considerada bela se, estando consciente de ela ser arte, ainda assim tiver a aparência de natureza” .17 Mas o be lo artístico difere do belo natural, já que nele sempre se pode identificar o seu fa zer, enquanto o belo da natureza é mais misterioso. No entanto, mesmo no belo artístico encontraremos um mistério, que se impõe através do gênio: ele só pode produzir o exemplar porque a natureza lhe deu as regras, porque ele é um talento inato, natural.
A experiência estética refere-se apenas a si mesma, e não a um objeto. Neste sentido, ela não é uma atividade autônoma que determina a realidade. Na verdade, determina apenas a si mesma. Sua autonomia só pode ser pensada ne gativamente, pelo fato de não estar determinada por nada externo.18 Assim, essa experiência ganha seu significado: ela é a razão sentida, sentida pela sua limitação. E a razão fica então em um jogo entre o limite e o ultrapassar do limite. Mas o jogo não tem esse único aspecto (ele não se refere apenas à li mitação da razão), refere-se também, como vimos anteriormente, a uma positivação do mundo pela razão, e parece ser jogado pela razão e pela natureza. A natureza é encarada pela razão com o participante, por permitir as visões conflitantes do belo e do sublime. O gênio é esse jogo entre belo e sublime, que relaciona os temas de
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acordo e desacordo,- ele, que é um eleito da natureza - uma razão singular é um ponto focal desse acordo, sendo assim um lugar privilegiado para o estudarmos. O gênio não é a resposta final desse problema, uma vez que o fazer artístico não se reduz à resolução de questões de modo determinado, conceituai. Gênio é um ponto ideal para observarmos o relacionamento entre belo e sublime. Ao produzir, ele se mostra como uma potência que sempre trará consigo a natureza (afinal, ele é um talento natural), seja como incentivo, seja co mo limitação. Sua produção tematiza as visões do mundo: belo como a ordem, a forma que nos deixa em casa no mundo, e o sublime, que coloca em combate a potência da natureza e da razão, o acordo possível nessa desarmonia. Mas de que valeria haver um só ganhador? O jogo com a natureza não visa à vitória, mas a ele mesmo. Visa apenas tematizar nosso pertencimento ao mundo. O que está fora de uma prova positiva ou negativa, mas está no domínio do símbolo, de um senti do que se coloca, que escapa à definição conceituai. O gênio surge como paradigma dessa razão aberta ao mundo. Ele vi ve seu fazer entre dois intervalos distintos. Por um lado, ele trabalha no in entre singular e universal: o exemplar. Através de sua atividade um gesto ou um objeto é transformado em valor universal. Por outro lado, a atividade do gênio car rega em si um segundo intervalo. É o intervalo entre belo e sublime: o belo artís tico é uma singularidade nesse intervalo. Ele é diferente do belo natural por ter um fazer que este não tem. E esse fazer remetería ao seu autor, que não é um me ro sujeito isolado, mas sim o gênio, aquele que de certa forma é natureza, é potência. O gênio tem em si a questão do acordo com a natureza. Sua respos ta nunca será definitiva, mas exemplar, fazendo-se pela constituição de uma segun da natureza, a arte.
NOTAS: 1. Immanuel Kant (1729-1804) nasceu e viveu em Koenigsberg, Prússia Oriental. A Crí tica do Juízo foi escrita em 1790, depois da Crítica da Razão Pura, de 1781, e da Críti ca da Razão Prática, de 1788. 2. Gilles Deleuze, A Filosofia Crítica de Kant, Edições 70 Lda., Lisboa, páginas 20-21, diz que para Kant a natureza não é algo externo à razão porque “ o que se nos apresen ta de maneira a formar uma Natureza deve necessariamente obedecer a princípios do mesmo gênero (mais ainda, aos mesmos princípios) que aqueles que regulam o curso de nossas representações . Assim surge o problema de nossa relação com a natureza, pois por que motivo e de que modo está o dado que se apresenta na experiência ne cessariamente submetido aos mesmos princípios que os que regulam a priori nossas re presentações?”
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3. Embora a filosofia de Kant privilegie como resposta à questão do estar no mundo aquela dada na segunda parte da Critica do Juízo - a teleológica -, o presente texto tra ta, somente, das possíveis respostas estéticas. A teleologia é uma concepção da nature za como tendo em si seu próprio fim (telos), natureza encarada como organismo. Mas a suposição da finalidade do particular nos leva a pensar num Entendimento para o qual ele fosse completamente determinado, Deus. Assim, uma possível teologia física deve-se fundar na teleologia da natureza. 4. Crítica do Juízo, p. 238. 5. Op. cit., p. 184. 6. Kant define o belo no “ Terceiro Momento da Analítica do Belo” como sendo a “ for ma da finalidade de um objeto, na medida em que é percebida nele sem representa ções de um íim” . 7. Crítica do Juízo, p. 245. 8. Lugi Pareyson, L ’Estetica di Kant, Mursia Editore S.p.A., Milão, 1968, pp. 54-61. 9. Crítica do Juízo, p. 239. 10. Kant define o belo no “ Segundo Momento da Analítica do Belo” como sendo um prazer com validade universal, mas “ sem conceito” . 11. Crítica do Juízo, p. 302. 12. Jean-François Lyotard, Le Différend, Les Editions de Minuit, Paris, 1983, página 191, diz que o “ como se” torna a natureza em um “ como se” fenômeno, um símbolo. 13. Apesar do prazer do belo ser desinteressado, ele gera um interesse. É o que Kant chama no parágrafo 42 de “ Interesse intelectual no Belo” . 14. Crítica do Juízo, p. 279. 15. Deleuze, página 80, diz que existe um ardil da natureza que faz com que o sensí vel, ao seguir suas próprias leis, “ possa receber o efeito do supra-sensivel” . 16. Crítica do Juízo, p. 307. 17. Op. cit., p. 306. 18. Não é determinada por nenhum objeto externo ou por qualquer faculdade.
Agradeço o auxílio de José Thomaz Brum e de Ronaldo Brito.
ROBERTO CONDURU
Fou>: G abricle Basfllco/Reproduçlo das focos: Glaudio Louzada
“ O País Inventado” de Antonio Dias
O País Inventado (Dias-de-Deus-Dará) é um irabalho de Antonio Dias composto ae uma vara de bambu laqueado e um recorte de seda vermelha na forma de um retângulo no qual não existe um canto superior. É uma bandeira. Essa .forma é a mais recorrente nos trabalhos do artista. Mas ela é menos importante em si do que o princípio que subsidia a sua formação, o qual se manifesta também em quadrados e círculos na produção do artista. Segundo es se princípio, a forma geométrica não resulta íntegra porque não se a completa ou porque se lhe retira uma parte, ou ainda porque ela é produto da união de duas formas íntegras e com diferentes proporções. A não integridade das formas geradas por esse princípio pode ser li da, metaforicamente, como um indício negativo da totalidade, questão que revol ve o trabalho de Antonio Dias. Nesse princípio formador a integridade não é efetivada ou é desfeita (por supressão ou acréscimo). Uma vocação não totalitária do artista, se pensarmos como Wassily Kandinsky: “ / always fin d it advantageous in each work to leave an empty space; it has to do ivith not imposing: (...) in this rests an eternal law” . 1 O vazio seria, no irabalho, o espaço da consciência de sua impotência, do reconhe cimento de sua falibidade no mundo, ou o lugar da dúvida de si mesmo, da auto crítica necessária à sua existência contemporânea. Uma espécie de autocensura que usa como método crítico aquilo que pretende questionar. O espaço não ocupado ou a parte suprimida, ou as for mas justapostas, são unidades íntegras em si. A totalidade desaparece ou não é atin gida, paradoxalmente, devido à insistência em si mesma, manifestando-se no traba lho através de seu excesso virtual. O que falta para consegui-la, ou o que a faz per dida, é um todo em si. Não é tanto a totalidade, mas ela enquanto modelo que es tá ausente. Para Antonio Dias a totalidade não é um ideal inatingível ou uma per da irreparável, não há o seu desejo utópico ou nostálgico. Ela é menos uma impos sibilidade do que um problema. A ausência da totalidade é um dado material que governa o trabalho.
O País Inventado (Dias-de-Deus-Dará), 1976. Seda e bambu laqueado.
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Se a Forma é o idêntico da Idéia, a desintegridade formal indica a crise da totalidade enquanto questão. Pensando no caso específico do quadradoreferência a Malévitch e Albers, essa forma indica não só a crise da modernidade artística, mas também a da utopia enquanto questão; no caso do retângulo - símbo lo da tela (espaço privilegiado da arte ocidental) - evidencia não apenas a crise da arte, senão a de todo o sistema cultural do ocidente; e no caso do círculo - forma íntegra por excelência - enuncia não somente a falência da Forma, como também a crise do mundo. Uma condição que se assume, incorporando-a cônscia e critica mente à produção, mas que se questiona, forçando os seus limites. A totalidade se manifesta literalmente: Antonio Dias não recusa a sua prática, pois sabe que “ a renúncia à unidade como princípio formal permanece por sua vez como unidade su i g e n e ris..."} Em O cam inho do Meio, duas folhas de papel na forma do retângulo imcompleto se encaixam formando um retângulo íntegro. Retoma-se a unidade para criticar a lei de sua impossibilidade e indicá-la enquanto trauma, expondo francamente a sua constituição efetivada por meio do Criança, 1981. Folha de Ouro, tintura de chá e óxido de ferro sobre papel Nepal, diâmetro 140 cm.
“ O País In ven tad o ” de A n to n io Dias
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fragmento (seu contrário e indício de sua crise) e, em sua “ cicatriz” , a violência da operação integradora, com o o título do trabalho sinuosamente aponta. A questão da ausência da totalidade é posta em suspenso. O recorte vermelho de O País Inventado também pode ser visto não como o que poderia ser ou tena sido, mas com o o que é - uma forma íntegra em sua irregularidade e atualidade. Pois classificá-la como não íntegra é referenciá-la a uma noção de unida de coincidente com a regularidade geométrica e a uma temporalidade anterior ou futura que não é a sua. Em sua unidade irregular e atual, essa forma vermelha critica o anseio de totalidade no que ele possui de idealidade e virtualidade. Km Criança, uma folha circular de papel Nepal não se apresenta ínte gra por ter-se retirado de seu centro uma porção também circular e por ter-se acres cido um outro círculo em folha de ouro à sua lateral superior. A questão da totali dade reverbera no trabalho: através do vazio que pulsa em seu âmago - o modelo da continuidade do mundo que o trabalho destrói ao nele ocupar o seu lugar - e através do cheio que lateja em sua borda - o modelo da integridade ideal.do traba lho que é perdida para habitar o mundo, e se acentua com a reincidência da for ma circular. A espécie singular de integridade que o trabalho apresenta é uma fun ção da tensão de sua ausência, um momento que cada trabalho deverá reconquis tar, gerando um movimento inercial que desdobra a produção. II A recorrência da forma vermelha de O País Inventado nos outros trabalhos de Antonio Dias é, também, o indício de uma reflexão do artista que an tecipa e questiona o desejo e a necessidade do sistema de arte de transformar um conjunto extremamente variado e desconexo em um todo ordenado. Se dentro do sistema vigente é problemático circunscrever uma pro dução que, seguindo aparentemente o incentivo do sistema, transforma-se com cer ta freqüência e não apresenta uma unidade facilmente determinável, se é complica do comercializar e criticar uma produção que não se aloja adequadamente em ne nhuma das classificações estabelecidas mas que não chega também a se constituir em uma outra classificação, se o sistema é avesso a uma produção que não apresen ta rótulos, o artista oferece um, uma “ marca” , a sua, um “ selo” Antonio Dias que unifica o conjunto. Apresentando-se com “ uma obra que se renova , o artista aten de, corrosivamente, às exigências contraditórias do sistema: satisfaz seu desejo de “ novos” produtos, seu anseio por rupturas, e garante a “ qualidade” dos mesmos, a necessidade de inscrevê-los na tradição. Um selo que é uma presença incômoda. Porque sacia a vontade de um “ estilo” Antonio Dias com a recorrência superficial de uma forma, ironizando o anseio por forjar uma Obra. Porque desarma aquilo que a produção cinicamen te sugere: o estabelecimento de uma totalidade com o seu inverso, o suceder de rupturas como princípio integrador, demonstrando que pensar que a produção es-
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Monumento Inacabado, 1969. Acrílico sobre tela 83 x 10 3 cm.
capa à unidade é reuni-la segundo um outro princípio de unidade. Porque em sua irregularidade formal,indica a violência da vontade de totalidade que destrói a par ticularidade das unidades singulares, dos trabalhos de arte enquanto momentos iso lados e relativamente autônomos. E porque em sua forma despersonalizada mani festa uma subjetividade problemática que orienta o trabalho, determinando em seu conjunto uma coerência, ainda que “ residual” , como indica Ronaldo Brito.3 Compreendendo a natureza do sistema de arte, Antonio Dias não o aceita simplesmente, não pratica alienadamente o seu jogo (seria conformismo), mas também não o rejeita sumariamente, não foge da relidade (seria escapismo), nem mesmo é “ revolucionário” , não quer destruí-lo (seria ingenuidade). O artista enfrenta as condições do sistema, problematizando-o: ativando o seu jogo e as suas regras para tensioná-las em proveito próprio. O sistema de arte não é um lugar pacífico, mas um campo de batalha. Produzir arte é como guerrear, estratégia e tática aqui não são figuras de linguagem - são modos de operação do artista. A iconografia da violência presente na produ ção evidencia menos uma temática do que o pathos da relação do trabalho com o mundo. Enfrentar o sistema é indispensável à existência do trabalho de arte contemporâneo e, no caso de Antonio Dias, fator essencial da produção - transfor-
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nrta-se a adversidade em dado produtivo. Para ele, produzir um trabalho não é sim plesmente fabricar um objeto ou engendrar um conceito e colocá-lo à disposição do sistema de arte, mas também contabilizar na elaboração e incorporar no corpo do trabalho as condicionantes de sua produção, de sua circulação e de seu consu mo, e, principalmente, lançá-lo no embate com o sistema. O incitamento das instâncias do sistema de arte é praticado em tom de desafio e de sedução, pois, se o trabalho as sabe limitadoras, também é cônscio que são libertadoras. Se o esforço tentativo do sistema é sempre o de neutralizar o trabalho de arte e «nquadrá-lo no esquema geral da cultura, o embate com o sis tema é o momento em que o trabalho de arte tem determinada a sua potência espe cífica e o seu campo real de ação enquanto fato estético. É no instante e no espa ço que o trabalho escapa às instâncias que limitam a sua ação que ele efetivamen te existe. O trabalho de Antonio Dias demanda uma ativação do circuito que, lon ge de circunscrever seu alcance, lhe dará combustível. Antônio Dias é um “ guerreiro” que luta devido à consciência de sua obrigatoriedade, por necessidade, e pelo prazer que nela encontra, por desejo. O sistema de arte é o habitat do artista e de seu trabalho, por imposição e por esco lha, sendo simultaneamente a sua arena e o seu ninho; não por acaso aquela for ma vermelha pode simultaneamente ser a galeria de arte e a casa. A operação artística de Antonio Dias insiste na presença da arte no sistema cultural e no mundo, sendo este o caráter político de sua produção. O ar tista não acredita na arte com o meio de transformação social, mas como forma de inserção problemática no mundo. Como diz o artista: “ Tentar se inserir num deter minado processo através de uma função cultural que acentua o aspecto político da operação” 4. Pensando esteticamente o mundo, o trabalho de arte se coloca nu ma posição peculiar no sistema, posto que o questiona com um pressuposto estra nho à sua lógica. A produção até pretende alcançar outros fins, mas efetivando-os através da arte e de seus procedimentos. Pois será na maneira como tratará das especificidades artísticas, e não como as operacionalizará no engajamento e na sub serviência a alguma causa, que se questionará o sistema, inquirindo o lugar e o al cance que ele determina à arte. Antonio Dias afirma: “ Sobre o papel do artista na sociedade, eu diria que é o de qualquer outro profissional” 5, descartando a possibilidade de qualquer mitificação do artista e de seu trabalho, mas também a de uma visão mecânica dos mesmos. Como “ qualquer outro profissional” ,.o artista deve ter a consciência crí tica da função e da condição específicas de seu trabalho na sociedade. O trabalho do artista não está imune à realidade, embora também não seja simples produto de suas condicionantes e de suas possibilidades. III
o País Inventado se situa no campo critico da escultura contemporâ-
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nea. É completamente diverso da tradição das esculturas no ocidente, mas, devi do à sua condição de bandeira, cumpre a função das mesmas, como define Rosalind Krauss: “ ...fazer a mediação entre o local onde se situam e o signo que repre sentam” . Não praticando uma ontologia do corpo nem a espacialização ideal da es cultura moderna, o trabalho guarda, contudo, sua “ condição negativa” : ser “ fun cionalmente sem lugar e extremamente auto-referencial” .6 O artista retorna critica mente ao caráter espacial-significativo da escultura investigando sua possibilidade atual, contradizendo a lógica do monumento ao não apresentar suas premissas tra dicionais: verticalidade, centralidade, localização definida e significação precisa. A instabilidade do trabalho, devido à sua inclinação e não axialidade, dificulta uma mediação, já em si problémática, entre um local indeterminado e uma significação imprecisa. Mas Antonio Dias não é escultor. Assim com o ele não é pintor, grava dor, desenhista, cineasta ou videomaker, apesar de ter utilizado como meio de tra balho o desenho, a gravura, a pintura, a escultura, o objeto e as assemblages, as instalações ambientais, a fotografia e os impressos, o disco, o vídeo ê o cinema. Não se pode vincular sua produção a um meio específico.
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Foto: Mário Paulo Monteiro.
O poeta / O Pornógrafo, 1973. Instalação no MAM/RJ, ncon rosa e azul.
Também não se pode vinculá-la a um tipo de material. A seda e o bambu laqueado de O P a ís Inventado não são usuais no trabalho de Antonio Dias, mas também não são excepcionais. O artista já utilizou uma enorme diversidade de materiais (de óleos e acrílicos a pigmentos metálicos, de tela e madeira a papel artesanal e papelão industrial), sem, contudo, eleger um dentre os demais como característico de sua produção. A diversidade de meios e materiais na produção de Antonio Dias mantém estreita relação com o que afirma Giulio Cario Argan acerca da “ crise das técnicas artísticas’’7 no mundo contemporâneo. A técnica artística tradicional - o artesanato - não é mais o modelo ideal da produção sócio-econômica, é agora “ téc nica atrasada” . E a técnica industrial - novo modelo tecnológico - é “ mecânica e repetitiva” , não produzindo algo “ artisticamente válido” . A experiência típica da arte perde seu lugar nas técnicas tradicionais, mas não o encontra nas novas técni cas, podendo estar em qualquer lugar ou em lugar nenhum. Antonio Dias comprende que a crise das técnicas as potencializa igual mente. Utiliza meios e materiais incomuns à tradição da arte, permitindo-se e obri gando-se a praticar a liberdade conquistada e impingida à modernidade. E recorre às categorias tradicionais, pois se a arte pode estar em qualquer lugar ela pode es tar onde sempre esteve. Mas não se adota a diversidade técnica como princípio, a
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sua ocorrência na produção não é a adesão irrestrita à condição de múltiplas possi bilidades. O artista não se deslumbra com os novos recursos técnicos ou com a possibilidade de desdobramento dos tradicionais, e muito menos com o conjunto variado e não hierarquizado acessível. Ele sabe que a equalização de todas as técni cas não significa que elas sejam igualmente receptivas, mas, ao contrário, identica mente retratarias ao gesto artístico. Melhor seria dizer que a crise geral dás técnicas as desqualifica igualmente. A variedade de meios e de materiais em sua produção não é a tentati va de “ modernizar” as técnicas artísticas tradicionais, nem a de dotar as novas téc nicas com um coeficiente artístico nelas ausente, distanciando-se da crença no pro gresso linear e não traumático da arte e na possibilidade de humanização do mun do tecnológico. Não é também o exercício de um virtuose que manifesta seu talen to na prática exploratória dos meios de trabalho disponíveis; o artista não acredi ta ingenuamente na neutralidade técnica ou na criatividade que tal operação deman daria. Nem é tampouco a utilização desses meios com o veículos para a expressão de sua subjetividade, já que o artista é cônscio de que a técnica não possui a per meabilidade necessária para tanto e de que, contemporaneamente, expressão e sub jetividade são, antes de tudo, problemas para o artista. Na produção de Antonio Dias não há a afirmação apologética do pro gresso tecnológico, mas também não há a sua simples negação. O artista não é um entusiasta da nova condição da técnica e não acredita no seu uso neutro, po rém sabe da impossibilidade de fazer arte sem ela. Sabe que o coeficiente artístico do trabalho não está na técnica, mas que também não pode ser-lhe dissociado. In siste na técnica como obrigatoriedade, embora sem submissão, usando-a negativamente. O trabalho pensa o seu constituir consciente da desimportância que é atribuída ao ato. produtivo no sistema tecnológico contemporâneo. Antonio Dias incorpora a lógica de produção atual no uso absolutamente coerente dos meios e dos materiais para, de seu interior, poder criticá-la. O uso de técnicas anódinas e despersonalizadas como o mascaramento, a pintura lisa e chapada, a monotipia e o esparramamento mostra o nível a que foi relegado o fazer humano no sistema. A utilização de procedimentos não inventivos como o seccionamento, a justaposi ção, o desdobramento, a repetição e o espelhamento, entre outros, revela o cará ter mecânico do produzir contemporâneo. Um fazer não “ criativo” que é reflexi vo e questiona a sua presente condição. O mesmo se dá com as linguagens. A diversidade de linguagens na produção de Antonio Dias não é, como não é no uso da técnica, a procura inces sante e frustrada de um ideal ou de algo particular a si. Não é também a simples adesao ao instante do sistema, nem a mímese do momento histórico que o traba lho vive, e muito menos a prática de um citacionismo inteligente e oportunista. Seu trabalho manifesta uma dependência ativa e sensível aos eventos seus contem porâneos que é, por um lado, a prática do “ direito de ruptura” 8, a insistência so bre o caráter não restritivo do trabalho de arte, que corre sem temor o risco da in-
Fotograma do Filme ” A Ilustração da Arte” (Gimmick), 1972. Múltiplo cm tiragem limitada.
coerência, pois acredita que a liberdade é sua única lei possível. E, por outro lado, é uma reflexão mediada das linguagens contemporâneas de arte, praticada com um hibridismo que não é princípio compositivo mas método crítico, o qual não deixa de ser poético sendo irônico. Uma prática dispersa e diversificada, mas não por isso menos metódica e obsessiva. Na produção de Antonio Dias, nenhum elemento, dos meios e mate riais usados à aparência final, é simples casualidade, não sendo, entretanto, mera causalidade. Todo elemento é ativo e indispensável, sendo operacionalizado critica mente no trabalho. A produção se ancora em seus elementos estruturais, mas não é apenas o resultado da articulação e da reflexão sobre os mesmos. IV O recorte vermelho de O País Inventado pode ser um indício nega tivo da totalidade, um “ selo” que unifica corrosivamente a produção de Antonio Dias, um signo da galeria de arte ou da casa, apenas uma forma geométrica, algu ma outra coisa, tudo e nada mencionado. Mais do que esconder algum significado específico ou aludir à possibilidade nula ou múltipla de significados, essa imagem evidencia o problema contemporâneo da significação e da formalização.
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Nota sobre Morte Imprevista, 1965. Técnica mista sobre duratex e tecido, lateral do quadrado 122 cm.
Se, como outras imagens dentro da produção de Antonio Dias, essa também admite diversas leituras, não é para formular um enigma. As imagens em seu trabalho não guardam um segredo, não são adivinhações; ao contrário, são fa cilmente identificáveis. O que não quer dizer que o artista não se utilize cinicamen te desse mistério latente das imagens, transformando-o em modo de sedução do espectador e em ironia da visão do trabalho do artista como,algo pessoal e inacessível. A multiplicidade significativa das imagens na produção de Antonio Dias é aparente e, até certo ponto, verdadeira, porém não é a adesão à disponibili dade significativa das imagens contemporâneas, sendo, ames, o seu uso crítico Apesar de não ter empatia com a intercambialidade incessante das imagens no mun do atual, o artista utiliza a sua lógica para questioná-la. As imagens em seu trabalho não sedimentam um significado, se adquirem algum é para perdê-lo no instante se guinte por um outro e depois outro, e assim sucessivamente sem que se alcance um significado definitivo. Não há um código que decodifique e posicione os diver sos significados dessas imagens, estabelecendo a diferença entre eles e articulandoos entre si. Se essa polissemia significativa não quer mostrar o caráter vago e não determina definitivamente essas imagens, não é para afirmar a equanimidade dos significados, mas para enunciar o seu inverso: a ausência de significado das ima gens na contemporaneidade. Contudo, o artista não enfrenta a questão simplesmen te evidenciando sua impossibilidade.
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Cavalo de Tróia, 1985. óxido de ferro, grafite e pigmçnto metálico sobre papel Nepal, 55 x 82cm. In: Antonio Dias.Rio de Janeiro, Thomas Conh Arte Contemporânea, 1985.
As imagens em seu trabalho não afirmam positivamente um significa do, mas também não anulam a pertinência dos que se sucedem nas diversas leitu ras. Os significados específicos não são invalidados em nome de uma inercialidade não significante porque as imagens guardam uma espessura significativa que, se não chega a sedimentar-se univoca e definitivamente, ao menos insere uma den sidade problemática na lógica superficial do mundo imagético atual e impede que os trabalhos se reduzam a arranjos óticos e decorativos, a composições formais. O aspecto significativo dessas imagens manifesta questões particula res (do artista e da arte) e coletivas (do homem e do mundo), contemporâneas e ancestrais: trabalho e prazer, produção e destruição, vida e morte, materialismo e espiritualidade, sensualismo e racionalidade, mas não bem e mal. Paul Klee afirma: ‘‘A introdução dos conceitos de bem e mal estabelece uma esfera moral. O mal não deve ser algo hostil, a triunfar e a nos envergonhar, mas uma força que, de um modo geral, participa na criação e na evolução. A simultaneidade do elemen to masculino primitivo (mau, estimulante, passional) e do elemento feminino pri mitivo (bom, gerador, sereno) funciona como um elemento de estabilidade éti ca” .9 Antonio Dias compreende a oposição como elemento ativo do trabalho, po rém não como operação de equilíbrio. Em sua produção essa simultaneidade de forças (as quais ele não qualifica positiva ou negativamente) não “ funciona como elemento de estabilidade ética” , pois é um antagonismo e não uma complementari-
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dade. Não há a noção de harmonia posto que o conflito é a lei que rege o trabalho. O aspecto significativo dessas imagens tem um tom simultaneamen te arcaico e atual que é o mesmo de seu aspecto formal. Ou são formas tradicio nais da geometria euclidiana e da história das formas, ou são formas típicas dos meios de comunicação de massa e do ambiente contemporâneo. Formas que o ar tista utiliza não por sua potencialidade, mas por sua obviedade, e que, como os sig nificados dessas imagens, estão no limite entre a consistência e a superficialidade. Não há inventividade formal ou significante na produção de Antonio Dias; aquele retângulo fragmentado, entre outras imagens, é “ seu” por apropriação e insistência no uso, e não devido a um investimento criativo. O artista retesa seu conhecimento sobre a estrutura da forma e a trama do signo na apropriação e na manipulação de imagens correntes no mundo. Não há plenitude da forma ou do signo. A maneira aleatória ou combinatória como se agenciam essas imagens retiralhes a relação sintáxica que lhes daria o sentido, insistindo no caráter formal das mesmas, paradoxalmente formas na imanência de significar. As imagens não se efe tivam enquanto formas ou signos, podendo ser “ quase-signos” 10:'elementos visuais que não se definem na polarização entre a referência significativa e a imediaticidade visual e física. O que, por um lado, é a compreensão e a explicitação da natureza da imagem, sua polaridade entre o referente e o literal. Uma polarização que se manifesta, também, em outros elementos do trabalho. A cor, por exemplo, é usa da em si: enquanto elemento de construção dos trabalhos e como pigmento emara nhado na matéria (seja a sutil pesquisa cromática com elementos naturais dos traba lhos do Nepal ou a imediaticidade dos pigmentos metálicos e industriais), e também como signo: a paleta claramente definida de Antonio Dias (basicamente o preto, o branco, o vermelho, o azul, o amarelo e o cinza) faz referência à ancestralidade cro mática e à cor neoplástica, bem como à cor direta e não sutil dos meios de comu nicação de massa e do ambiente contemporâneo - novamente o arcaico e o atual, o erudito e o banal. Por outro lado, essa polarização incessante da forma-signo é uma evi dência da situação contemporânea da imagem. A operacionalização de um talento como o de Antonio Dias na manipulação dessas imagens correntes e corriqueiras, ainda que, por vezes, potentes e pertinentes, é fato sintomático do problema da forma e do signo atualmente. As imagens em seu trabalho são aparições críticas da possibilidade de formação e de significação. A não plenitude do signo é um in dício da crise da intuição, a da forma aponta para a crise da sensação; revelando, ambas, a crise da experiência estética do mundo. O mundo como não-lugar para a experiência estética é corresponden te à não receptividade do suporte material dessas imagens à inscrição do sentido. A tela, no caso da pintura, não é mais o campo ilimitado de virtualidades, o espa ço privilegiado que determina o contexto das imagens e é por ele determinado, mas a superfície saturada, corroída e fragmentada que não estabelece o espaço dis
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cursivo. As imagens até dinamizam o espaço da tela, porém não sedimentam o sig nificado ou a forma. Assim com o ativam a matéria, mas não a sensibilizam, travan do-a; a matéria não é energizada pelo signo e não substancializa a forma." Antonio Dias compreende a natureza polissêmica da forma e a incompletude natural do signo12, mas percebe que, contemporaneamente, tanto a forma como o signo são acionados pelo mero prazer e lucro de seu agenciamento; ativamse os sistemas de significação e de formalização para não significar e não formar. Se o artista segue criticamente a lógica contemporânea das imagens, assim como a do sistema de arte, a da técnica e a da linguagem, é porque realiza seu trabalho, conscientemente, segundo suas condições atuais, ressaltando a sua vacuidade e forçando a resistência das mesmas ao gesto artístico. Antonio Dias sa be que o trabalho de arte não é a análise ou a crítica de si mesmo, apesar de saber que, contemporaneamente, não pode esquivar-se de também sê-lo. Seu esforço se rá sempre o de fazer surgir o instante poético sem escamotear, mas a partir e con tra a opacidade do real. V O País Inventado (Dias-de-Deus-Dará) não possui similares entre os trabalhos de Antonio Dias, embora não possa ser-lhes desconectado: suas quesBoundaries, 1988. Técnica mista, 139xl48cm. In: Antonio Dias. Mülhcm an der Ruhr, Stàdtisches Museum, 1989.
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tões estão relacionadas às dos demais. A produção do artista apresenta um agrupa mento serial, com o isolamento de alguns trabalhos e um desenvolvimento por meio de rupturas (que podem ser, ou não, aparentes e bruscas, autocríticas e irôni cas), articulados por uma “ coerência poética’’13 que estrutura o conjunto. O que evidencia a impossibilidade contemporânea do desenvolvimento linear e tranqüilo de uma poética e caracteriza a manifestação da subjetividade do artista frente à situação atual da experiência estética. Se modernamente os artistas já viviam a angústia da dificuldade de constituição e da inviabilidade de sedimentação da experiência estética, quando os trabalhos de arte eram o local onde a subjetividade do artista se inscrevia mas onde ela apenas se manifestava com a participação reiterada do observador, contemporaneamente os artistas enfrentam a impossibilidade de imantar o objeto com al gum coeficiente artístico - o sistema não só impede a sua existência, como o resga ta atroz e velozmente para o seu domínio quando acontece. Antonio Dias insiste sobre as brechas existentes nos meios e lingua gens disponíveis para instauração de um instante poético, abandonando-os caso se “ fechem” . O conjunto de trabalhos apresenta uma desconexão externa corres pondente a uma densidade interna que é devida ao não temor do artista à incoerên cia superficial, já que, assumindo a condição de liberdade e incerteza do trabalho de arte contemporâneo, procura convicta e rigorosamente manifestar sua sensibili dade estética no real. O artista não visa a produção material, apesar de não a renegar, utili zando-a taticamente. Para ele o trabalho é um instante negativo, uma inflexão do processo conflitante entre a vontade criativa e o cerceamento institucional, e não se determina como ponto de equilíbrio ou de suspensão, mas como campo onde pulsam as forças em oposição. O momento poético do trabalho não é o de seu re pouso mas, ao contrário, o da deflagração do fluxo inercial de sua procura. Os tra balhos são vetores que indicam o processo através do qual o artista demarca e problematiza o território onde se localiza sua ação artística. A espécie singular de uni dade que o conjunto apresenta advém da potência que os trabalhos possuem em desvelar o percurso da ação estética de Antonio Dias. A subjetividade do artista se consubstancia através dos resíduos de sua luta incessante por sua possibilidade de existência e por meio de um imaginá rio que lhe é particular por eleição e o identifica na exata consonância entre o in dividual e o universal. Não há a plenitude de uma peculiaridade do sujeito que se instale e irradie dos trabalhos circunscrevendo um solo próprio, mas o acúmulo de indícios falsos e verdadeiros que mapeiam e minam estrategicamente o campo de ação de uma subjetividade ameaçada. O “ país” de Antonio Dias vive em esta do de guerra, sendo reiteradamente “ inventado” . NOTAS:
1. Citado em Buchloh Benjamin D.H. “ Andy WarhoKs One Dimensional Art: 1956-1966” . In: Mc’Shine, Kynaston. editor. Andy Warhol - A
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Restropective. New York, The Museum o f Modem Art, 1989. p. 47. 2. Adorno, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa, Martins Fontes, 1988. p. 212. 3- Brito, Ronaldo. “ Símbolos e Clichês” . In: Dias, Antonio. Antonio Dias. Rio de Janeiro, Galeria Saramenha e Thomas Cohn Arte Contemporânea, 1985. Catálogo de exposição. 4. Dias, Antonio. “ No Nepal, a Poética do Trabalho de Antonio Dias” . In: Revista Arte Hoje, Rio de Janeiro, Rio Gráfica e Editora, n° 04, outubro de 1977. 5. Citado em Morais, Frederico. ‘‘Antonio Dias: obra inventiva é um colapso no entendimento” . Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 10/09/85. 6. Krauss, Rosalind. “ A Escultura no Campo Ampliado” . In: Revista Gávea, Rio de Janeiro, PUC/RJ, n° 01, s.d., pp. 88-89. 7. Argan, Giulio Cario. Arte e Crítica de Arte. Lisboa, Editorial Estampa, 1988. pp. 91-105. 8. Duarte, Paulo Sérgio. “ A Trilha da Trama” . In: Dias, Antonio. Antonio Dias. Rio de Janeiro, Funarte, 1979. p. 19-28. 9. Klee, Paul. “ Credo Criativo” . In: Chipp, Herechel Browning. Teorias da Arte Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1988. pp. 186-187. . 10. Pignatari, Decio. “ Os quase-signos de Antonio Dias” . In: Revista Módulo, Rio de Janeiro, n° 66, setembro de 1981. p. 34. 11. A partir de Argan, Giulio Cario. op. cit. pp. 115-117. 12. Krauss, Rosalind. “ In The Name o f Picasso” . In: Krauss, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge, The MIT Press, 1988. p. 34. 13. Duarte, Paulo Sérgio. “ A Astúcia de Permanecer Sempre Novo” . In: Revista de Arte Hoje, Rio de Janeiro, Rio Gráfica e Editora, n° 04, outubro de 1977. p. 31. Esse texto é parte da monografia apresentada em dezembro de 1989 como trabalho de conclusão do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura do Brasil da PUCPRJ, feito sob a orientação do Prof. Ronaldo Brito. Em outra parte do trabalho segue-se o desenvolvimento cronológico da produção de Antonio Dias, contextualizando as questões aqui abordadas. ROBERTO LUÍS TORRES CONDURU é graduado em Arquitetura pela FAU/UERJ, formado pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC/RJ e aluno do Programa de Mestrado em História Social da Cultura da PUC/RJ.
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"As coisas humanas são nele mais fortes que as divinas” .1 Com essa discutida afirmação, Lutero pretende delimitar a perspectiva em que se coloca o pensamento de Erasmo; em verdade, opondo-se ao humanismo do autor do De Libero Arbítrio, Lutero torna óbvio o conflito entre duas culturas que vieram cin dir a unidade que informara o mundo medieval: o humanismo renascentista e o protestantismo nórdico. Os pálidos e isolados reflexos da cultura latina, que chega ram a manifestar-se na Alemanha desse período, permitem afirmar a ausência de Renascença nesse país; e, assim, a Reforma adiou ao século XVIII a eclosão de uma volta aos antigos. Nesse sentido, pode-se afirmar que a Renascença alemã coinci de com o último dos classicismos, juntamente depois de ter sido superado, por ini ciativa de homens como Kant e Goethe, o isolamento da cultura alemã em face da latina. É precisamente a índole anti-humanista da Reforma protestante que, pe la sua fixação no irracional e no exclusivismo do mundo sobrenatural, deixa expli car essa tardança. A supremacia do sobrenatural que então se instaura, estabelecendo o reino da fé em termos de contraposição e incompatibilidade com a razão e a na tureza, não poderia impor-se, porém, como conclusão de um itinerário ou uma emancipação definitiva. De fato, a perda da unidade medieval não representa tão só a consagração de uma unilateralidade mais ou menos exclusivista, mas, para os alemães, também uma nova tarefa: o isolamento os confinara a uma situação de in ferioridade cultural, que iria determinar a volta aos valores humanistas e a tentiva de reintegração na cultura européia. Essa tarefa será realizada de maneira especial mente intensa, pois trará uma contribuição que, além de original, será de suma im portância para toda a cultura do Ocidente. E na base desse esforço alemão encon tramos, entre outras, a figura curiosa e excepcional de Winckelmann. A obra de Johann Joachim Winckelmann pode ser compreendida co mo um singular capítulo da famosa querelle des anciens et des modernes, e seu mérito fundamental consiste em haver possibilitado a visão do mundo antigo sob uma nova luz, dentro de uma nova perspectiva. Sua importância histórica não re pousa apenas no fato de defender entusiasticamente os antigos, mas sobretudo em saber problematizá-los, em perguntar o que se deve entender por “ antigos” . Nos “ modernos” , Winckelmann pensa pouco, ou pensa como uma obra a ser rea lizada. Todo o aspecto polêmico e construtivo de seu pensamento está concentra do em uma nova concepção dos antigos e no influxo que essa concepção poderia vir a exercer sobre a Alemanha e a cultura ocidental..
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Por “ antigos” , W inckelm ann entende a cultura grega clássica, e nis to encontramos sua originalidade. Evidentemente, não se pode afirmar, sem maio res explicações, que nosso autor tenha descoberto os gregos. É que ele soube em prestar aos gregos e ao que considerava ser a Grécia clássica uma importância bem definida, situando-os, sobretudo, em tal perspectiva que os antigos passaram a ter uma nova modalidade de presença na cultura do O cid ente.
De fato, antes de Winckelmann, por maior que tenha sido nos países latinos a preocupação com os gregos, pode-se afirmar que toda a cultura aquém dos Pirineus permaneceu sob o signo de Roma, e isso desde a Renascença até o Barroco. Característica fundamental permanece, devidamente glosada a contribui ção cristã, a coincidência da Hum anitas com a R om anitas. Mesmo antes da Renas cença, durante mais de mil anos, Roma mantém-se com o centro do Ocidente, se ja do ponto de vista católico-romano, seja do ponto de vista do humanismo clássi co, ciceroniano. Compreende-se, assim, por exemplo, que se deplore a queda do Império Romano, mas que ninguém se lembre da queda de Atenas - com exceção da voz, de resto imperceptível, de um bispo ateniense do fim do século XII, Michael Akominatos. Ja há séculos ocupada por forças estrangeiras, em 1458 Atenas cai nas mãos dos turcos, e com isso a infeliz cidade parece reduzir-se definitivamente às fronteiras do Oriente Próximo. O renascentista vivia com entusiasmo o sentimento romano - riviva la semente santa di quei roman, cantara já Dante2, e mais tarde, em 1725, em sua Nova Ciência, Vico afirmará ainda que os grandes heróis foram os antigos roma nos e não os gregos. Por isso compreende-se que os gregos, quando conhecidos, o eram normalmente através dos romanos, já porque os italianos viviam concreta mente a terra, a paisagem romana - o que viria a acentuar-se de modo fascinante com as escavações efetuadas a partir de Bruneleschi - como também, e principal mente, porque Roma era considerada o valor mais alto, que arrastava atrás de si Atenas; emprestava-se-lhe a densidade maior que permite compreender aquilo que se lhe julgava subordinado. A Renascentia Rom anitatis foi impossível na Alemanha, primeiro, devido a Lutero, depois, devido a Winckelmann. Realmente, o valor mais alto para Lutero é o Evangelho, e só o Evan gelho poderia, para ele, ter força de origem. Antipática não lhe é apenas a impor tância atribuída à razão ou ao simplesmente humano, mas principalmente o elogio dos antigos. Por isso, pregava que se deveria deixar de lado todo o católico-roma no, por representar um princípio de aviltamento dentro do cristianismo, algo de impuro, camufladamente pagão, que teria vindo macular a mensagem de cristo. O Urchristentum, o Novo Testamento grego, é que conta. E o fato de que Lutero se prende ao texto grego dos Evangelhos terá conseqüèncias que ele mesmo não po deria prever. Assim, como que se desliga uma das fontes da Cultura Ocidental e, o que é mais significativo para o nosso tema, a Alemanha passa a ignorar ou a con denar qualquer sentido positivo atribuível à cultura antiga.
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Mas a vitória inicial alemã dentro desse novo comportamento cultu ral transformou-se aos poucos em amargura, desenvolvendo qualquer coisa como um complexo de inferioridade, o gosto da insatisfação e a dor do orgulho ferido sentimentos cujas raízes talvez remontem aos primeiros contatos dos antigos ger manos com a superioridade das tropas romanas - situação esta que terá uma impor tância enorme para o desenvolvimento subseqüente da cultura alemã. A reação e o início da superação desse sentimento de inferioridade encontramos em três gênios do século XVIII, fundadores da nova cultura alemã: Winckelmann, Herder e Kant. Kant, nascido em 1724, tenta subordinar ao racio nal as verdades em que fora educado na infância e na juventude, quer dizer, bus ca resolver dentro dos limites da pura razão o irracionalismo pietista, seita protes tante muito difundida na época e que pretendia fazer voltar o cristianismo à sua forma mais primeva. Herder, nascido em 1744, procura desenvolver a consciência nacional, fundamentado na idéia de um desdobramento orgânico da cultura, com preendida desde as suas raízes populares. E, finalmente, Winckelmann, nascido em 1717-0 mais velho, portanto, dos três - fornecerá ao classicismo alemão, junta mente com Herder, o seu ideal estético. A partir de Winckelmann, a Alemanha co meça a desprender-se do exclusivismo de Lutero, buscando uma nova dimensão para a sua alma na antiga Grécia. Presença da Grécia A biografia do jovem Winckelmann revela um fato significativo. Des tinado ao estudo da teologia e ao ministério de Deus, muito cedo dedicou-se à lín gua grega, e conta-se que, durante as aulas, sermões e ofícios religiosos, nosso au tor ocupava-se com a leitura dos poetas da Grécia antiga. Em verdade, detesta a te ologia, assim como detestara o humilde trabalho artesanal que seu pai lhe quisera transmitir.Winckelmann é mais exigente: não aceita imposições e pretende estudar apenas o que lhe dita o próprio coração. Além disso, manifesta-se aos poucos ne le uma incontrolável capacidade de sonho, a nostalgia de um passado longíquo. Fantasia a Grécia; e fará o impossível para realizar esse sonho, inclusive sacrificar a sua integridade pessoal quando, mais tarde, farisaicamente, se converte ao catoli cismo, a fim de, através da católica corte de Dresden, toda voltada para o Vatica no, obter os favores dos cardeais romanos. Kant nunca saiu da Prússia, não chegando sequer a conhecer a Ale manha; não alentava sonhos pela Grécia e foi o que alguém chamou de um ale mão sem compensações” . Já Herder só consegiu formar seu espírito atrávés de via gens empreendidas por diversos países da Europa. A necessidade de sair de seu pa ís torna-se exacerbada em Winckelmann - poderiamos dizer que ele é só compen sação” . Após longos anos de estadia em Roma, volta à Alemanha para rever ami gos; mal atravessa a fronteira, é tomado de tal horror por sua pátria, de tal mal-es tar diante da “ terrível, deprimente paisagem” , que suspende seus planos e retor-
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na apressadamente para a Itália, embora, recém-chegado a Trieste, o destino o fi zesse cair nas mãos de seu assassino. O que caracteriza Winckelmann é a sua pere ne e insubstituível nostalgia - quase mórbida - pelo sol mediterrâneo. Buscava a Grécia, mas nunca conseguiu ir além de Nápoles, e essa fa talidade, longe de ser exclusiva de Winckelmann, repete-se em todos os grandes sonhos gregos da Alemanha. Um século mais tarde, em um poema intitulado O Único (Der Einzige), Hoelderlin perguntará: Was ist es, das An die alten seligen Kuesten Mich fesselt, dass ich mehr noch Sie liebe ais mein Vaterland?5 E mais adiante acrescenta: Und gehoeret hab ich Von Elis und O lym pia.4 Esses versos são de extrema importância para compreender as rela ções entre a Alemanha e a Grécia clássica. A necessidade da compensação grega é cultivada como algo de fundamental não só enquanto ideal e descoberta de novos horizontes, mas, sobretudo, pelo modo nostálgico com o esse ideal é vivido. To dos ouviram falar de Elis e Olímpia, e o importante está precisamente em que ape nas se ouça falar. Dos grandes da época, quem mais se aproximou da Grécia foi Goethe, e assim mesmo não consegiu ir além das praias da Sicília, onde, de pé, nas margens do Mediterrâneo, voltado para a Grécia, recitava os versos de Homero. Se o passado a que pretendem voltar os romântico é precipuamente a Idade Média, esta “ volta” se processa inserida na paisagem concreta das ruas e das catedrais góticas das cidades medievais alemãs. Nesse ponto, os “ clássicos” ale mães são mais nostálgicos do que seus colegas românticos, pois nunca tiveram a experiência concreta da tão valorizada paisagem grega. E isso os distingue também dos clássicos latinos, que apenas se apossavam, quase sem sonhos, de uma raiz ain da próxima e que se impunha como herança natural. Assim, se o classicismo latino encontra seu centro em Roma - o que não quer dizer exclusão da Grécia - os alemães vão encontrar o seu centro em Ate nas - e excluem Roma. Significativo sob este ponto de vista é o encontro, em Jena, de Goethe e Napoleão; e o desejo, expresso por este, de ser a inspiração de um drama de Goethe. Goethe, que havia em sua juventude acalentado a idéia de um César , compreendera mais tarde que tal plano lhe era completamente impos sível. Napoleao, um César que tentou realizar o seu Império, como que pede a Go ethe, um grego homérico, a glorificação do romano.”’ Mas como glorificar quem desfigurara o grego?
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A destruição do Barroco
Winckelmann não reage, ao menos inicialmente, contra a Renascen ça italiana; bem ao contrário, faz até mesmo o elogio da Madona Sixtina de Rafael, por exemplo, com a qual se familiarizara no museu de Dresden. Diretamente, tam bém não ataca a Roma antiga. Mas ergue-se contra a arte barroca, e é através des ta que atinge Roma. Em Dresden, para onde se mudara em 1748 e assumira o pos to de bibliotecário do Conde Buenau, no castelo de Noethnitz, Winckelmann sofre o impacto violento da arte barroca, sobretudo no Grosser Garten, que oferecia na época mais de 150 estátuas de imitadores franceses, italianos e alemães de Berníni. Em um local mais escondido e de difícil acesso do mesmo jardim, tinha a opor tunidade de flertar com algumas peças abandonadas de arte antiga, pouco valoriza das e por isso em má condição. A influência que sofreu do pintor Oeser fez com que Winckelmann, em 1755, escrevesse sua primeira obra: Reflexões sobre a Imita ção da Arte Grega na Pintura e na Escultura, um ensaio que contém já as princi pais idéias do autor; mais tarde as desdobrará e fundamentará mais amplamente, fazendo correções apenas secundárias. Esse panfleto (pois na época o ensaio teve força panfletária) teve considerável repercussão, fazendo de seu autor o porta-voz e o vigoroso líder de um movimento antibarroco, que se anunciava já, mas de ma neira débil. O que motiva a reação de Winckelmann contra o barroco? O assun to é complexo e a partir de seu fundo histórico podemos compreender melhor a importância das Reflexões. Nesta obra, mais do que ao barroco de Dresden, Winckelmann se opõe à arte de Berníni. Restringindo-se à consideração da obra deste escultor, an tes de atacar propriamente toda a arte barroca, limita-se a recusar certas idéias de fendidas por Berníni, relativas sobretudo ao aprendizado da arte. Assim, por exem plo, escreve: “ O estudo da natureza deve ser, pois, ao menos para o conhecimen to do belo perfeito, um caminho mais longo e mais trabalhoso do que o estudo das obras da antiguidade; e Berníni, que recomendava sempre aos jovens artistas estudar preferentemente a natureza no que ela mostra de mais belo, não lhes teria indicado, para isso, o caminho mais curto” . Winckelmann recomenda aos jovens que, no processo de iniciação aos mistérios da criação artística, façam o aprendiza do não a partir da natureza, mas da imitação dos antigos. Creio , diz ainda, que a imitação destas obras (do Antinous Admirandos e do Apoio do Vaticano) poderia ensinar mais rapidamente, pois o artista encontra aqui, numa, a soma do que está disperso em toda a natureza, e aprende, através da outra, a que ponto a mais bela natureza pode elevar-se acima de si própria, destemida e sabiamente . E acrescen ta: ‘‘Mesmo se a imitação da natureza pudesse tudo dar ao artista, certamente não lhe daria a exatidão do contorno, que só os gregos sabem ensinar .
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Concluídas as Reflexões em junho de 1755, em setembro do mes mo ano Winckelmann parte para Roma, e nesta cidade uma série de circunstâncias vão obrigá-lo a ampliar seu campo de luta e a aguçar seu modo de visualizar a ar te antiga. À guisa de exemplo, basta lembrar a larga reputação que gozava na épo ca a obra de Giovanni Battista Piranesi. Suas gravuras, Vedute d i Roma, espalhavam a glória da cidade, em seus aspectos antigos e modernos, por toda a Europa. Em sua arte manifesta-se pujantemente a grandiosidade da arte romana barroca e o elo gio da monumentalidade do passado histórico. Em obras como Anticbità Romane, de 1756, e Delia Magnificenza ed Architettura de' Rom ani, de 1761, Piranesi de fende o decoro e gravità da arte romana e recusa a tese da filiação grega da arte romano-italiana. Contra o entusiasmo que já se anunciava pela arte grega, Piranesi acreditava ter a arte romana surgido antes e independentemente do conhecimen to dos gregos. Logo depois, em 1764, Winckelmann afirmava a gratuidade desta tese e a impossibilidade de compreender os romanos sem os gregos. Dentro desse ambiente, cercado de posiçoes semelhantes, Winckelman é levado a defender as suas idéias. E tais idéias se desenvolvem através de po lêmicas com os defensores do barroco; as posições do nosso autor podem ser com preendidas através dos quatro pontos seguintes. Winckelmann adora Roma, sua pátria de adoção. “ Abandonar Ro ma’’, escreve a um amigo, “ é o mesmo que abandonar a minha amada” . Nesta ci dade, liberta-se da seriedade das catedrais góticas e consegue ver a beleza nos olhos, saciando assim a sua nostalgia. Há quem diga terem os alemães estragado os olhos de tanto ler: com Winckelmann começa o aprendizado do ver. Mas o que mais o interessa em Roma não é Roma, e sim a Grécia. De dentro de Roma, vence-a e vol ta-se para a Grécia. Já nas Reflexões havia escrito: “ As fontes mais puras da arte es tão abertas: feliz quem as encontra e as sorve. Procurar estas fontes significa partir para Atenas ’. Se faz o elogio da Madona Sixtina de Rafael, é porque vê nela a ins piração grega de “ um contorno grande e nobre” . No barroco, Winckelmann pas sa a ver uma forma corrupta da arte clássica, um filho bastardo da Grécia, falsifica do por Roma. Mas o ataque vai mais longe e com isto passamos ao segundo ponto. Lembremos que a arte barroca preenchia duas finalidades básicas: a glória de Deus e a glória do Príncipe, da Igreja e do Estado. E esta dupla exigência era realizada com temas cristãos e motivos romanos antigos, em igrejas, palácios, óperas e festas de corte. Mas, com a crise da idéia do Estado e a consciência cres cente da impossibilidade de unificação das religiões, esse mundo termina caindo por terra, dando assim lugar à cultura burguesa, da qual Winckelmann já faz parte. Dentro, e em função desse novo horizonte, Winckelmann foi o homem que consegiu salvar os antigos. E esse salvamento obedece ao seguinte processo. No barro co, volta à tona o sonho de uma arte total, que chega a realizar-se de maneira especialmente ilustrativa na ópera. A ópera persegue a união, sobre o fundo de um uni verso mitológico, do canto e da dança, da poesia e da música. O fato de o poeta
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ser subordinado à música e às festas da corte e da Igreja, só pode ser compreendi do como uma exigência da arte total. E, obviamente, certo privilégio cabe à músi ca: significativo é encontrarmos o nome de Orfeu no título do que pode ser consi derada a primeira grande ópera ocidental. Essa criação italiana já era, há muito tem po, familiar a Winckelmann, pois ela invade também o norte (o libretista Metastásio vive em Viena como poeta da corte), atingindo lá, talvez, a sua forma mais com pleta e perfeita. Para Winckelmann, a excelência que o barroco atribui à música não tem sentido algum: interessa-se tão só pelas artes plásticas, ou melhor, pela escultu ra, e não há nele sequer uma sensibilidade maior pela pintura ou pela arquitetura. Daí sua reiterada insistência na idéia de “ linha simples” ou de “ contorno nobre” . E o importante é compreender que não se trata aqui apenas de uma questão subje tiva de preferência pessoal. Segundo nosso autor, a escultura, se não é o único, im põe-se como o caminho mais seguro que nos pode fazer voltar à fonte pura de Ate nas. E mais: sublinhando o plástico, e apenas o plástico, o que cai por terra é sim plesmente o ideal barroco de uma arte total. Winckelmann tem horror ao sentido de monumentalidade e de pompa, tão característico do barroco, e busca um ele mento puro, o mais simples possível. Nesse sentido, poderiamos quase dizer que encontramos aqui um comportamento abstrato, que não é evidentemente absolu to, por encontrar-se sempre intrincado com uma dimensão valorizadora e uma in tenção pedagógica. No barroco, nenhum elemento pode ser isolado. E o isolamen to de um elemento é precisamente a obra de Winckelmann. E mesmo esse elemen to por ele desligado das pretensões da arte total é valorizado em um sentido diame tralmente oposto ao barroco porque, se neste encontramos uma forte tensão dinâ mica (ligada à música), para Winckelmann o plástico por excelência é o calmo, o estático, o que sabe concretizar o ideal de um repouso absoluto. Em terceiro lugar - e aqui topamos com mais uma decorrência da derrubada da arte total - dissocia-se o elemento cristão. O barroco é talvez a última Kulturepoche, no sentido rigoroso da ex pressão, quer dizer, um estilo que penetra, unitária e profundamente, todos os cam pos da atividade cultural. Sob esse aspecto, o barroco não deixa de assemelhar-se à Idade Média, com ao menos uma diferença importantíssima: a herança deixada pela Renascença italiana. Através desta, acentua-se a presença do elemento pagão antigo, ou, mais precisamente, o da última fase da cultura romana. Esse elemento, contudo, não entra em choque com o cristianismo: ao contrário, é absorvido, tan to nas artes plásticas como na ópera, contribuindo para a conquista de uma harmo nia que no barroco é compreendida como o fruto da tensão entre opostos. Winckelmann, na sua contribuição para o dessoramento do ideal de arte total, isola também o elemento pagão do elemento cristão, sem opô-los, porém, em uma tensão conflituosa. Diante do cristianismo, seu comportamento caracteri zou-se sempre por uma profunda negligência: melhor fora se não existisse, pois nosso herói teimava em sentir-se como um grego perdido nos tempos modernos,
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exilado de sua impossível pátria nativa. Em seu exacerbado sentido para a amiza de (ele sempre quis fazer da amizade e da liberdade os ideais norteadores de sua existência), pretendia vislumbrar o seu parentesco, a sua afinidade profunda, com os gregos clássicos. E, finalmente, em quarto líigar, acentua-se o elemento subjetivo. Antes da Renascença a arte é dominada pelo que Fritz Blaettner, usan do uma expressão da escolástica medieval, chama com felicidade de intentio rec ta:s a função criadora do artista torna-se anônima diante dos valores objetivos (as exigências do culto, por exemplo), e a arte é manifestação da glória divina. Na Re nascença, as coisas começam a mudar de figura. Descobre-se a arte antiga, ou se lhe dá ao menos uma nova dimensão, integrando-a ingenuamente no próprio cli ma espiritual da época. Põe-se, por exemplo, um violino nos braços de Apoio - e disso queixa-se revoltado Winckelmann - e o deus grego se torna o espírito prote tor das festas. Dessa forma, a figura de Apoio é deturpada, ela perde seu sentido originário, pois já nada tem a ver com o que lhe atribuíam os gregos. Assim, aos poucos, esvai-se a integração em um ideal objetivo e intro duz-se uma intentio obliqua. Com outras palavras, começa-se a descobrir sentido na atividade criadora do gênio artístico. Surgem as biografias e mesmo as autobio grafias. Le Vite de piu eccellenti pittori scultori ed architettori, de Vasari, é um ex celente indício dessa mudança de acento tônico, pois a biografia do artista come ça a impor-se como algo tão ou mais importante do que a própria obra realizada. Com o individualismo protestante passa-se a sublinhar ainda mais a obra de arte considerada como o produto de uma alma determinada, de uma existência exem plar, e Hamann nos dá a primeira fundamentação importante dessa atitude na sua teoria do “ gênio” . A mudança de perspectiva, no sentido de uma subjetivação cres cente, abre as portas para todo um mundo novo que entusiasmará, mais tarde, tan to os românticos como os seus sequazes simbolistas, etc. Torna-se cada vez mais secundário saber o que produz o artista, e su blinha-se o como ele produz. Winckelmann deu nesta orientação, de modo cons ciente, um passo decisivo. Quando descreve uma estátua grega, busca um ideal hu mano que vale por si, independentemente da estátua; persegue o ideal da “ nobre simplicidade e da calma grandeza’ . Se os gregos são importantes é porque nos po dem ensinar o excelente, nos podem dar a “ visão do elevado e do sublime” : a ar te adquire uma nova função educativa, presa ao estético, que passa a ser considera do o alicerce e o caminho para uma nova sabedoria. Daí a idéia que se introduz de uma dignidade e de uma santidade próprias do artista. Neste ponto, porém, Winckelmann não pode ser considerado mais do que um precursor, pois não che ga a desenvolver propriamente uma doutrina sobre a matéria, nem a desprenderse completamente da intentio recta ao falar, de modo platônico, em um “ reino de idéias incorpóreas . A tendência ao subjetivismo permanece a meio caminho. O conceito de imitação Quais são os problemas centrais da doutrina de Winckelmann?
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Quando alguém hoje inicia a leitura de sua obra não deve esperar demasiado, pois não há nela uma doutrina de grandes dimensões. Examinando-se mais de perto suas idéias, constata-se mesmo a ausência de originalidade maior. A influência de um Oeser, por exemplo, é patente nas Reflexões. Desde cedo, a leitu ra de Shaftesbury o acompanhava. Sua primeira obra, mais que grande originalida de, nos apresenta a codificação de um estado de revolta contra o barroco e de um espírito novo disseminados na época. E, sobretudo, Winckelmann não é um pensador; não se deve tomá-lo por esse lado. Isso tudo, aliás, já foi muito bem compreendido por Herder ao dizer que o ponto de partida de Winckelmann é o seu amor à beleza na arte grega, e a sua finalidade, tornar os gregos novamente vivos e atuais. Mais do que o pensamen to, é o entusiasmo pela arte grega que o norteia. Já nas Reflexões assevera: “ O único caminho para nos tornarmos grandes e, se possível, inimitáveis, é a imitação dos antigos” . Ora, o conceito de imitação facilmente pode ser mal interpretado, e o perigo que oferece não decor re apenas de uma possível falta de compreensão, mas sobretudo das dificuldades que oferece a sua realização prática, dificuldades que talvez só o artista excepcio nal consiga vencer. Winckelmann tinha consciência disso e a sua frase pode ser melhor compreendida se for explicitada da seguinte maneira: o único caminho pa ra nos tornarmos grandes e, se possível, tão inimitáveis quanto os antigos são ini mitáveis, é a imitação dos antigos. A imitação visa, de fato, tornar-nos inimitáveis, tanto quanto os gregos. Não se trata de levar a uma imitação pura e simples, ingê nua, dos gregos, pois por esse caminho se pretendería refazer a arte grega, o que é manifestamente um absurdo. A um primeiro exame, a /rase de Winckelmann pa rece implicar, portanto, uma contradição: a imitação do inimitável; tornar-nos ini mitáveis imitando o inimitável. Mas a contradição só existe se tomarmos a imitação no sentido de cópia. Ora, sobre esse mal-entendido escreve o próprio Winckelmann: “ A imitação do belo na natureza concerne ou bem a um objeto único ou então reúne as notas de diversos objetos particulares e faz delas um único todo. O primeiro processo implica fazer uma cópia semelhante, um retrato; é o caminho que con duz às formas e figuras dos holandéses. O segundo é o caminho que leva ao belo universal e suas imagens ideais; esse foi o seguido pelos gregos” . O que interessa, pois, não está simplesmente na cópia, e sim no eidos, na idéia ou na forma univer sal. O sentido da imitação não é naturalista ou realista, mas platônico. O importan te, quando se faz arte, não consiste simplesmente em copiar os antigos, e sim em pensar como os gregos, em comportar-se como eles, exigindo da arte uma missão semelhante à dos gregos. Só desse modo a imitação pode ser criadora e evitar o im passe do servilismo. É necessário insistir um pouco no tema: porque a necessidade da ins piração nos antigos? Mais tarde, em sua obra mais importante, a História da Arte na Antiguidade, Winckelmann defenderá o ponto de vista de que, entre todos os
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povos antigos, os gregos foram os únicos que atingiram o pleno desenvolvimento de sua forma e, por isso, o esplendor maior da natureza. A perfeição foi tal que o divino, poderiamos dizer, tornou-se sensível; a natureza grega - humana - era tão perfeita, que nela podia-se ler o traço da mão divina. A educação e o condiciona mento geral da cultura grega ofereciam ao artista um tal esplendor da natureza, que o seu ato criador se processava em condições excepcionalmente felizes. O en tusiasmo de Winckelmann radica precisamente nessa coincidência entre a nature za e o eidos; assim compreende ele a natureza grega. A diferença entre o grego e o moderno reside em que, naquele, a na tureza já se apresentava ao artista em seu estado de perfeição, ao passo que para o moderno - e aqui vai implícita uma crítica ao cristianismo - a perfeição da nature za perdeu-se. Desse modo, o que para o grego era realizado sem esforço maior, para o moderno dever-se-ia tornar objeto de uma laboriosa conquista, de um traba lho paciente e teimoso. Exclui-se, portanto, a obtusidade da arte entendida como cópia e ace de-se ao sentido de uma frase como a seguinte: “ O estudo da natureza deve ser, ao menos para o conhecimento do belo perfeito, um caminho mais longo e mais penoso que o estudo das obras da antiguidade” . Daí a sua oposição a Berníni, que recomendava o estudo direto da natureza. Segundo Winckelmann, este caminho é penoso, senão impossível, devido à deficiência da natureza moderna. Os gregos, pelo contrário, ‘‘tinham, quotidianamente, a ocasião de observar o belo na nature za; ocasião que, para nós, não se oferece todos os dias e raras vezes se mostra tal como o artista a deseja” . Torna-se claro, assim, que quando Winckelmann prega a imitação da arte grega não se refere simplesmente a uma cópia, mas à captação da natureza em seu estado de perfeição, o que só pode ser conseguido em nível exemplar atra vés dos gregos. Em última análise, não se trata de imitar a natureza - a isso está con finada a cópia - e sim uma presença na natureza que a transcende. ‘‘Estas numero sas ocasiões de observar a natureza levaram os artistas gregos a ir ainda mais lon ge: começaram a formar certos conceitos universais - tanto a partir de partes isola das do corpo, como de suas proporções de conjunto - que se erguiam acima da própria natureza; o seu modelo original, ideal, era a natureza espiritual concebida tão só pelo entendimento ’. E podemos acrescentar: pelo entendimento divino, à maneira platônica. O artista realiza uma obra bela, apenas na medida em que seu traba lho manifesta sensivelmente o divino na natureza. A arte deve, consequentemente, apresentar através do sensível aquilo que o transcende; trata-se, portanto, de fazer coincidir o plano físico da realidade com o metafísico; a arte tem por finalida de um processo recíproco, de transcendentalizar a imanência e de imanetizar a trans cendência. Mais tarde, inspirado na mesma idéia, Schiller dirá que a arte nunca é real, precisamente por revelar o verdadeiro absoluto. Impõe-se à arte, assim, co mo objetivo, a aproximação do eterno. Compreende-se, por isso, que os gregos re
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duzissem sua arte quase que exclusivamente à representação dos deuses, tenden do à concretização de uma exemplaridade divina. Essa idéia é expressa por Winckelmann em sua frase mais famosa e que condensa sua doutrina: o ideal da arte é “ a nobre simplicidade e a calma gran deza . Nesta frase, contudo, nada é novo; et le mot et la chose já haviam sido de fendidos antes, tanto do ponto de vista do ideal artístico, quanto de sua dimensão pedagógica. De fato, já na Renascença italiana encontramos a exigência de um archetypus bumanitatis, cujo nervo seria constituído pela sancta simplicitas. Do seicento italiano, os franceses vão aceitar a idéia de uma simplicité, naturelle, de uma noble simplicité, chave para compreender o verdadeiro homem, o verus homo. Shaftesbury também já falara na accurate sim plicity o f the ancients. A idéia, portan to, não é nova. Mais do que italiano, francês ou inglês, o ideal da “ nobre simplicida de e calma grandeza” deve ser entendido como manifestação de uma tendência básica e constante do Humanismo Ocidental: a crença de que o divino, o digno, o nobre, estão aliados ao imóvel, ao simples, ao calmo, ao repouso. A primeira ex pressão vigorosa dessa estaticidade encontra-se no pré-socrático Xenófanes, quan do diz, por exemplo, em um de seus fragmentos, que “ nem é próprio de Deus mover-se” . O reverso dessa concepção implica asseverar que a mobilidade está unida à ausência de perfeição, à insuficiência, a um certo déficit da realidade. O movimento acentua a finitude, está preso ao sentido da morte e traz consigo até mesmo certa vulgaridade. Essa idéia, que penetra a arte religiosa e o retrato, vai impor-se sobre modo na chamada arte clássica, presa sempre a uma dimensão pedagógica e, não raro, até mistagógica, fazendo com que o ideal da arte seja elevar o terreno ao divi no, a fim de tornar os “ filhos da terra” - para usarmos as expressões de Platão “ amigos da forma” ; a perfeição só seria exequível através de um processo de divinização. A tentativa de transportar o sensível ao divino constituirá a alma daquilo que o classicismo alemão vai batizar com o nome de bela alma (die schoene Seele)\ e que implica a suspensão de todo o conflituoso em uma harmonia superior de “ nobre simplicidade e calma grandeza” . Goeth explorará a idéia de que os deu ses se humanizaram a fim de divinizar o homem. Característica de Winckelmann é a crença de que a “ bela alma” en contra o seu Urbild, o seu modelo original, na Grécia antiga, razão pela qual a imi tação dos gregos afiança-se como sendo um caminho insubstituível. Quem não conhece as obras da antiguidade não creia saber o que é verdadeiramente belo. O fundamental, assim, é aprender a ver a beleza grega e, através desse ver, despis tar um comportamento arqueológico; ou a compreender o arqueológico no senti do etimológico da palavra, como um dizer a origem, mas uma origem que é pere nidade e por isso empresta à arte antiga uma realidade sempre atual, desveladora de um fundo permanente e divino das coisas. A volta aos antigos não significa ape
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nas a volta ao passado, e sim a conquista para o homem de um estado natural per feito, a sua atualização plena. A visão da Grécia defendida por Winckelmann concretiza-se através de suas análises de peças da escultura antiga, de modo especial do Laocoonte e, so bretudo, do Apoio Belvedere. O grupo do Laocoonte é analisado não como mani festação do patológico - que era a tese de Berníni - ou da violência, um estado efê mero e indigno da arte, mas a partir da idéia do triunfo da alma, de um extremo da dor que se sabe vitoriosa e que, por isso mesmo, é plenamente compatível com a perenidade do divino. O interesse principal que oferece, contudo, a análise do Laocoonte é que a calma grandeza não se confunde, para Winckelmann, com uma estaticidade morta; a famosa escultura seria a personificação da vitória da vida, o triunfo da nobreza e da medida sobre a dor e a imperfeição. Mas é no Apoio Belvedere que Winckelmann vê a suprema síntese da arte e do homem gregos, o mais alto ideal antigo e a máxima vitória da divinização do humano. Diante dessa estátua, seu comportamento transforma-se em religio so e ele a descreve com tal entusiasmo que suas palavras se tornam um hino. Er gue o Apoio à condição de critério supremo para compreender a arte grega e inau gura, assim, a visão apolínea da cultura antiga; contemplando-o, “ acreditava ver o próprio deus, tal como aparece aos mortais” . Apoio passa a ser a epifania do senti do último da Grécia. Trajetória de um sonho Resta-nos ainda um problema: a influência exercida por Winckel mann. Essa influência leva a um problema maior e complexíssimo, do qual só é possível, aqui, acenar aos marcos mais importantes do seu desdobramento. Referimo-nos ao delicado tema das transformações do ideal apolíneo da Grécia no evolver da cultura alemã. Que sua obra deveria forçosamente permanecer fragmentária, disso Winckelmann tinha plena consciência; sabia que não passava de um iniciador e queria sê-lo. De fato, estava reservado a outros espíritos interpretar e corrigir a sua obra. E mais: outros tentariam a realização de seu ideal - mas de um ideal submis so agora à inexorabilidade histórica e que viria, por isso, sofrer profundas transfor mações. A influência exercida pelo autor das Reflexões encontra-se, desde o seu inicio, presa a um paradoxo, pois o setor sobre o qual Winckelmann exerceu não só a menor, mas também a pior das influências, foi precisamente o de sua es pecialidade. as artes plásticas. Seus autênticos continuadores não são os escultores os pintores, mas os poetas. Os artistas que se deixaram entusiasmar por suas idéias compreenderam tão mal o mestre, que a conseqüência foi o academismo e u. ação impiedosa de ter sido Winckelmann o seu provocador. “ Aquele que
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negligencia a natureza a favor do antigo, arrisca tornar-se frio e sem vida” , reza a crítica formulada já por Diderot em seu Salon de 1 765. Uma crítica que, em últi ma análise, vem dar razão a Berníni, embora Diderot se limite a fazer, afinal de con tas, a defesa do aprendiz e do pequeno artista. Por discutíveis que possam ser os ideais estéticos inaugurados por Winckelmann, devemos reconhecer que ele não é totalmente responsável pelo estado de decadência que se introduziu; a deficiên cia, mais do que em Winckelmann, reside na dificuldade em colocar-se à altura possível ou impossível - por ele exigida. Seu conceito de imitação muito facilmen te pode ser deturpado, mal compreendido, derivando, talvez fatalmente, para a có pia. De qualquer forma, Winckelmann inaugura um sonho, e seu continuador não é um Bertel Thorvaldsen, mas Goethe. Se Winckelmann pretendeu dar novos cânones à arte, por outro la do é importante salientar que, longe de se reduzir a isso, ele se propôs um progra ma muito mais complexo e vasto. Na introdução de sua História da Arte da Anti guidade, escreveu: ‘‘A história da arte deve mostrar sua origem, seu crescimento, suas modificações e sua queda, bem como ensinar os diversos estilos dos povos, épocas e artistas” . A seqüência das palavras ‘‘povos, épocas e artistas” parace indi car uma certa hierarquia; em verdade, o realizador de um programa tão exigente realizou apenas parcialmente o seu intuito, e quem vai chamá-lo a si, entre outros, é Herder. Winckelmann não teve a preocupação de enquadrar a arte grega - e muito menos a cultura grega - rio contexto da História Universal. Ora, esta é uma das peças fundamentais da preocupação de Herder; surge com ele um sentido espe cialmente agudo para o histórico e para o desenvolvimento orgânico dos povos e das nações. O problema já não é apenas o de saber qual possa ser o destino da ar te, mas, e enfaticamente, o destino de um povo, de uma cultura. O autor das Idéias para a Filosofia da História da Humanidade aceita o ideal estético de Winckelmann, fazendo, contudo, avançar o problema em uma direção decisiva: pergunta até que ponto será possível uma renascença “ grega” em solo germâico. E mais: Herder crê - e nisso será seguido mais tarde por Humboldt, Goethe e outros - em uma affectio originalis, em uma conaturalidade, em uma afinidade profunda entre a Grécia anti ga e a Alemanha moderna. Haveria, segundo ele, uma espécie de palingenesia entre os povos; donde as grandes esperanças em relação ao futuro da cultura moderna. Mas esse ideal não se realizaria de maneira ingênua - ou ao menos não tão ingênua quanto em um Lessing. Herder sabia que a cultura grega perten ce definitivamente ao passado, e sua sensibilidade para a história o fazia compreen der o absurdo de sonhar com uma renascença grega em tempos modernos. Tal re nascença não poderia repetir simplesmente a “ maneira grega, pois só se poderia processar realizando plenamente a própria cultura moderna; assim como os gregos legaram a grande cultura da antiguidade, os alemães poderíam realizar a grande cul tura moderna. Poderiamos dizer que, através de Herder, Winckelmann abandona seu longo exílio voluntário e volta à Alemanha - volta para aclimatar em sua pátria
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as vivências assimiladas em terras mediterrâneas. E, obviamente, já aqui encontra mos uma renúncia: o ideal estético de Winckelmann só se poderia concretizar en quanto derivado de um absoluto que permanece definitivamente preso ao passado. Esse ideal, visto agora com novos olhos, passa a ser com Herder o programa da cultura alemã, embora não seja ele quem vá realizá-lo. Na literatura alemã falta ainda, lamenta-se Herder, a grande obra, falta o Homero nórdico. Esquematizando: Winckelmann dá ao classicismo alemão o seu ideal estético, Herder lhe dá a sua teoria, que será posta em prática por Goethe e Schiller. Como para Herder, para Goethe o grego por excelência não é o artis ta plástico, mas Homero. A despeito disso, Goethe foi na Alemanha o homem que permaneceu mais próximo de Winckelmann. O aprendizado do ver, iniciado por este, atinge em Goethe a sua plenitude; pode-se até dizer que Goethe está todo nos olhos - é plasticamente que ele compreende Homero. Assim se explica, por exemplo, seu perene desejo de tornar-se pintor. A viagem à Itália, a necessidade de ver a paisagem mediterrânea, tornou frutuosa a concepção da Grécia que Goe the lera, inicialmente sem maiores conseqüências, nas páginas de Winckelmann e Lessing. Através de seu contato com os antigos, o poeta forma seu conceito de es tilo, um conceito, aliás, muito próximo da idéia de imitação defendida por Winc kelmann. Tanto quanto é possível para um alemão, em Goethe realiza-se o classi cismo, ao menos durante alguns anos, na fase em que escreve Tasso e o poema épico Herrmann e Dorotea. Sem dúvida, o ideal de calma grandeza e nobre simplicidade se tor na real em algumas obras de Goethe e também em sua vida, pondo-se assim à pro va a teoria classicista dos profetas que o antecederam. Os ideais forjados por Winc kelmann, de uma cultura olimpicamente apolínea, atingem quase que mais na pes soa de Goethe que em sua obra o seu ponto culminante, fazendo com que Schiller não estivesse de todo errado ao ver em seu amigo a realização da “ bela alma” . O ápice desse classicismo coincide, no mais, com os 10 anos de amizade dos dois gran des poetas; em 1786, Goethe nos dá a versão definitiva da Ifigênia, e dois anos mais tarde Schiller escreve sua última versão de Os Deuses da Grécia, sua máxima contribuição ao tema grego, que soube impor-se, durante muito tempo, como um dos poemas mais populares da Alemanha. Durante alguns anos os dois poetas comungam os mesmos ideais clás sicos. Schiller, porém, permanece muito mais distante da Grécia do que permitem julgar as aparências. Se em alguns dos seus poemas programáticos há o elogio da Grécia, seu teatro é profundamente alheio à dimensão grega; mesmo a Noiva de Messina, a única de suas peças em que procurou inspirar-se em um modelo antigo, aproxima-se mais do teatro barroco do que do grego. Se o conceito de “ bela al ma encontra seu paradigma no homem dos tempos homéricos, a sua problemáti ca só pode ser compreendida a partir de Kant e do bon sauvage de Rousseau. A nostalgia do Sul é débil em Schiller, e se o grande acontecimento da vida de Goe the foi a viagem à Itália, em seu amigo encontramos a experiência puramente inte
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rior das leituras das Criticas de Kant. E, dessa forma, Schiller, em quase todos os aspectos de sua evolução e de sua obra, é o oposto de Winckelmann. A certa altura, acontece a inquietante fatalidade: Schiller insiste para que Goethe volte a ocupar-se com um dos temas de sua juventude, da época do já distante Sturm und Drang. Relutante no início, Goethe cede e se entusiasma. O tema é o Fausto, e nessa sua decião há toda uma renúncia da qual o poeta acaba tomando consciência: a lenda implica uma problemática eminentemente românti ca. Paradoxalmente, a obra mais importante do chamado classicismo que nunca conseguira realmente criar raízes nem transcender o âmbito privilegiado de uma rica mas reduzida elite, termina reconhecendo no romantismo o seu sentido mais profundo. Frederico Schlegel, em um de seus fragmentos, chama Winckelmann de “ santo” . O elogio, evidentemente, é excessivo: com o romantismo, os ideais winckelmannianos sofrem sua derrota mais significativa, já no sentido de que a música passa a ocupar o lugar das artes plásticas (Wagner dirá mais tarde que os olhos não lhe são suficientes), como também - e isto é fundamental - porque a pró pria idéia apolínea da Grécia começa a dissolver-se, comprometendo os ideais clás sicos. Já Humboldt falara da melancolia grega. A despeito disso, o sentimento da alegria condiciona a interpretação clássica da cultura antiga. Mas Schlegel começa a pressentir em Sófocles uma veia dionisíaca e um sentido noturno da existência grega, pressentimento que depois toma vulto, encontrando seu apogeu nas inter pretações de Burckhardt e de Nietzsche. Para a satisfação de Goethe, Winckelmann havia comparado a arte grega ao mar, mas a um mar calmo, que consegue dominar e permanecer superior ao caos de sua profundidade. Para o romântico, essas superfícies calmas são ape nas superfícies, pois o que lhes importa é a profundidade, a origem, mesmo se des tituída de sentido, mesmo se comprometida com o caótico. Esse traço dionisíaco dos antigos, em verdade, não leva os românticos a ignorar o sentido da harmonia apolínea própria dos gregos. Nos seus escritos sobre a filosofia da história, escre ve Schlegel: “ Com a sua arte, os gregos foram os que melhor realizaram a harmo nia interna; ao menos em sua época de apogeu, muito menos na ciência e ainda menos na vida” . É com fortes restrições, portanto, que reconhece a harmonia gre ga. E essa escassa harmonia, em vez de aproximar os românticos da Grécia, em cer to sentido os distancia, ou faz com que coloquem os gregos em perspectivas mais amplas de valorização, empalidecendo a singularidade inconfundível que lhes em prestaram os clássicos. De fato, os românticos vão além da Grécia, continuam a peregrinação iniciada por Winckelmann, vão até a índia e lá pretendem encontrar o berço tanto da Grécia quanto do cristianismo. Esvaindo-se o seu caráter olímpico e supra-histórico, a importância da Grécia diminui, reduzindo-se a ser um momento, por mais importante que te nha sido, da evolução histórica. E esse imenso caudal que é a História, parte da ín dia, assimila a Grécia e encontra seu sentido pleno e último no cristianismo. A par
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tir do ensaio de Novalis, A Cristandade ou a Europa, o passado para o romântico já não é a Grécia, mas a Idade Média cristã. O objetivo passa a ser a reconquista da catolicidade do cristianismo e a Grécia sofre o batismo da interpretação cristã. Com o romantismo, descobrem-se não apenas as dimensões irracionais e dionisía cas dos gregos, mas, sobretudo, eles perdem o seu lugar em face da aspiração de uma unidade maior e mais intensa, que culmina no amor e conseqüentemente no cristianismo. Houve um poeta romântico, contudo, que permaneceu fiel à Grécia. Esse poeta foi Hoelderlin. O jovem Hoelderlin e seu colega Hegel (que mais tarde chamará o mar de “ mau infinito” ), companheiros de estudos na Universidade de Tubinga, tinham uma mesma preocupação central: a de harmonizar as duas fontes da cultura do Ocidente, o classicismo grego e o irracionalismo da cristandade romântica. Poucos alemães tiveram tanta sensibilidade pele mundo grego quan to Hoelderlin, e nenhum, talvez, o tenha compreendido tão bem. “ A Grécia” , con fessa, “ foi meu primeiro amor e - não sei se deva dizê-lo - será o último” . A Grécia o acompanhou durante toda a vida, embalando-lhe o desejo de poder visitar algum dia “ o túmulo da jovem humanidade” . Já se vê: seu amor pelos antigos é profunda mente triste. “ A arte chora com igo” , confessou Winckelmann, e esse seu choro brota do entusiasmo e da alegria, confundindo-se com a esperança da reconquista próxima. O choro de Hoelderlin, ao contrário, é todo tristeza. Seu mais famoso personagem, Hyperion, exclama: “ O Genius meines Volks, o Seele Griechenlands! ich muss hinab, ich muss im Totenreiche dich su ch erí'.7 Hoelderlin sabe que a Grécia é definitivamente uma ausência. Em verdade, ele a compreende de uma maneira fundamentalmente clássica e recusa, assim, a unilateralidade em que incidiam frequentemente os ro mânticos, presos ao excesso irracionalista do anticlassicismo. Mas recusa também o horror de Goethe pelo noturno, porque só a partir da raiz, do caótico (daquilo que Goethe alcunhava de doentio), pode o clássico crescer e desdobrar todo o seu sentido. Dessa maneira, a idéia de um grego fixo, produto apolíneo da terra, é subs tituída por um grego que conquista o seu classicismo, que faz a sua própria histó ria desde o absurdo até atingir a claridade dos deuses olímpicos. Se o romantismo é insuficiente e tende ao classicismo com a necessidade da raiz que encontra na ár vore o seu sentido, o classicismo, por sua vez, é problematizado. Poderiamos di zer que encontramos em Hoelderlin um classicismo crítico. Desde o tempo de Winckelmann, a visão que Hoelderlin nos apresen ta da Grécia é a mais equilibrada e a que maior familiaridade revela com o “ olhar sagrado dos deuses, de “ uma clareza calma e eterna” . E se Hoelderlin não pode esquivar-se do fascínio do olhar de Diotima - a encarnação da Grécia - esse olhar torna-se sempre mais vago e distante, como que viciado pela nostalgia, vivendo da ressonância da plenitude perdida. Wohnt doch die Sdle in Lande der Seligen, und ueber den Sternen vergisst das Herz seine Not und seine Sprache.8 Ao homem que mora na terra - na terra dos homens e não na dos santos - resta apenas o so
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nho. Se Winckelmann pretendia tornar presente e atual a Grécia, com Hoelderlin predomina a idéia da distância, e sua tristeza nasce da consciência aguda de um abismo entre a Grécia e a Alemanha. O poema Grécia (Griechenland) termina com as palavras: D enn mein Herz gehoert den Toten an.9 A morte chama-se Jacob Burckhardt e é o capítulo final da história do sonho grego. Winckelmann acorda para a realidade: com Burckhardt o sonho já foi completamente esgotado. As raízes do autor das Considerações sobre a Histó ria Universal ainda estão no classicismo alemão, mas, se para Goethe o mais belo sonho da humanidade foi sonhado pelos gregos, esse sonho, em Burckhardt, trans forma-se quase que em um pesadelo, objetivado na sua monumental História da Cultura Grega, a primeira visão pessimista da Grécia. Ele vê a cultura antiga com os olhos de Schopenhauer, e suas categorias interpretativas básicas, que adquirem corpo na arte, são as da angústia, da melancolia, do desespero, da dor. A partir desta obra, a Grécia deixa de ser uma religião. Se Hoelderlin realmente acreditava nos deuses gregos, agora abrem-se as portas para uma inter pretação do mundo antigo determinada pelo critério da objetividade. Digamos, com Walter Rehm, que a antropodicéia greco-alemã chega a seu termo.10 Esgotase essa modalidade de Ersatzreligion, que Santo Agostinho colocaria sob o título geral de experimentum suae medietatis. Curioso é ainda observar que a Grécia não ocupa o lugar central das preocupações de Burckhardt, e sim a Itália renascentista, da qual faz o elogio, ele gendo-a como pátria espiritual. Isso é significativo, porque Roma, desbancada por Winckelmann, vai reintroduzir-se na Alemanha. Se Goethe recusara escrever o dra ma de um César - Napoleão - a Alemanha, que adquire enfim sua unidade política e começa a crescer economicamente, tentará inutilmente escrever, através de sua própria história, esse drama. Sob esse aspecto, mais profética do que a obra de Burckhardt, é a História Romana, escrita por um contemporâneo seu, Mommsen. A esta altura, Winckelmann, batido em seu próprio terreno, parece perder comple tamente qualquer sentido. Por que ler Winckelmann? Nesse caso, impõe-se a pergunta: qual a importância de Winckel mann? For que ler sua obra e estudá-la? Sua importância histórica não pode ser exagerada, não só por estar Winckelmann na base do sonho grego que acompanha momentos essenciais do humanismo alemão e ocidental, mas sobretudo porque a idéia que ele nos deu da Grécia clássica continua inalienável, mesmo quando não aceita. Uma interpretação como a de Nietzsche é impensável sem Winckelmann. E dele vem, ainda hoje, a primeira idéia que se faz da Grécia. No entanto, se analisarmos o conteúdo de sua obra, quase nada resis te à crítica, quer por ser falsa uma boa parte de suas interpretações, quer por esta
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rem elas fundamentadas, demasiado freqüentemente, em dados históricos errados; mas ser passível de crítica não acarreta, como pensa certo senso cientificista, ausên cia de valor. Há, contudo, uma intuição em Winckelmann que é profundamente verdadeira, e nela reside o nervo de seu pensamento. Winckelmann viu qualquer coisa da natureza dos deuses gregos, ao visualizá-los com as categorias de nobre simplicidade e calma grandeza; o que ele disse das esculturas pode ser transferido, sem violência, aos personagens da mitologia grega. Nesse sentido, justificam-se ple namente as palavras de Walter F. Otto: “ Winckelmann, a quem hoje começamos novamente a escutar, após um período de obscuridade e de pensamento retorci do, bem sabia que o perfeito e divino é repouso e calma” . E mais adiante: “ Somen te quando se conhecem os deuses em seu sagrado repouso compreende-se também seu modo de agir e de criar. E quem compreende esse agir e criar em um sentido autenticamente grego, a este se lhe revela também o sagrado repouso dos deu ses” .11 O que Winckelmann compreendeu de maneira ingênua termina vencendo as visões dolorosas de um Burckhardt ou as intuições de um Nietzche, sem, contu do, roubar-lhes completamente a razão. Evidentemente, como ciência, a História da Arte só surgiu no sécu lo passado, pois foi então que os historiadores puderam dispor de métodos adequa dos. Mas existe uma fase pré-crítica da História da Arte, que se divide, por sua vez, em dois períodos. O primeiro culmina com o aristocrático Vasari, que apresenta a arte através da biografia dos artistas, pretendendo, assim, fazer compreender me lhor a sua obra e contribuindo para tornar mais eminente a posição social do artis ta. Vasari faz, fundamentalmente, o elogio da arte e do indivíduo, e um elogio que se nutre do sentimento nacional em ascenção nos principais países europeus. Nes ta mesma linha, encontramos, na França, um Felibien, na Alemanha, um Sandrart, nos Países Baixos, um Karel van Mander. Tal situação sofre viceral transformação a partir de Winckelmann, caracterizando-se a sua atitude por dois novos aspectos: em primeiro lugar, Winc kelmann faz a análise da obra de arte independentemente da biografia do artista, e uma análise que tende a recriar no crítico as condições estéticas da criação da obra de arte; o historiador passa a ser uma espécie de artista em segundo grau. Além disso, o historiador deve procurar voltar à época em que foi criada a obra de arte, e reconstituir, assim, também as condições gerais dentro das quais ela nas ceu, captar, portanto, as causas originantes da obra de arte. Daí sua exigência de acompanhar em suas fases de origem, crescimento, maturidade e queda a vida dos povos antigos.12 Em verdade, esse duplo programa só foi seguido parcialmente e mes mo de maneira deficiente por seu autor; ele foi tão só o desbravador de uma no va atitude diante da arte. Mas já aponta claramente para a necessidade de apreen der a essência da obra de arte, e não meramente de fazer-lhe a história ou uma apro ximação biográfica. Essas exigências, após o desaparecimento de seu fundador, fo
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ram esquecidas, e tornaram-se novamente atuais de modo mais crítico e fundamen tado, apenas em nossos dias. Para a História da Arte, Winckelmann deve ser consi derado não só o iniciador de um novo comportamento em face da arte, mas tam bém o precursor da moderna metodologia científica. Tais méritos, que devem ser reconhecidos em sua obra, são todos mais ou menos limitados, quer por deficiência individual, quer por precariedade das condições históricas. Mas há um mérito, fundamental nele, que desconhece es sas desvantagens e que torna valiosa a leitura de sua obra ainda em nossos dias: Winckelmann foi um entusiasta da arte grega, e de um entusiasmo que contagia e deixa sua marca no leitor. Poucos autores conseguem transmitir a Grécia como uma presença de modo tão vibrante e com tanta vivacidade quanto Winckelmann. E isso não é pouco -é mesmo o mais importante. Com Winckelmann, aprendemos a amar a Grécia (1961).
Indicações Biográficas Johann Joachim Winckelmann nasceu a 9 de dezembro de 1717, de pais extremamente pobres, em Altmark (Stendal), Alemanha. Irrequieto, recusa-se a aprender o ofício de sapateiro que seu pai lhe queria transmitir e parte, aos 17 anos de idade, para Berlim, onde entra em contato com Christian Tobias Damm, um dos raros alemães na época que exaltavam a língua grega e se dedicavam ao es tudo da literatura antiga. Dois anos mais tarde, vencendo consideráveis dificulda des, Winckelmann consegue chegar a Hamburgo e adquire, com dinheiro penosa mente coletado, luxuosas edições de textos clássicos postos em leilão. Preparando-se para o ministério de Deus, a despeito de sua completa antipatia pelas ciên cias teológicas, estuda em Salzwedel, Halle e Jena. Antes mesmo de concluir seus estudos, planeja fugir da Alemanha, partindo para Paris em 1741. Contudo, sua ten tativa fracassa por razões de ordem financeira, não indo além de Frankfurt; volta então a Jena. Forçado a trabalhar para sustentar inclusive seus pais, torna-se tutor em Osterburg, em casa da família Grollmann. Concluídos seus estudos universitá rios, passa a ser tutor na família Lamprecht, em Hadmersleben: profunda amizade o liga ao filho da casa. Um ano depois, torna-se mestre-escola na vila de Seehausen, onde permanece durante cinco longos e sacrificados anos. As coisas começam a melhorar a 10 de agosto de 1748, quando abandona a Prússia - trazendo consigo apenas o ódio - para ocupar o cargo de bibliotecário do Conde de Buenau no cas telo de Noethnitz, próximo a Dresden, cargo ao qual se havia candidatado. As no vas funções representam para ele o primeiro momento de alívio; abria-se-lhe ago ra um mundo mais amplo, com maiores possibilidades de independência. Nessa corte barroca, a mais civilizada da Alemanha, permanece durante sete anos. Sonha com uma viagem a Roma e, a fim de consegui-la, converte-se ao catolicismo em ju lho de 1754. Em junho do ano seguinte escreve as Reflexões sobre a Imitação das
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O bra s Gregas em Pintura e Escultura, partindo para Roma a 15 de setembro do mesmo ano. Sustentado por magra pensão da corte de Dresden, passa alguns anos em dificuldade. A bem paga amizade com um mecenas, o Cardeal Archinto, melho ra temporariamente a situação, passando Winckelmann a morar no palácio desse príncipe da Igreja. Mas Archinto falece em 1758 e seu protegido transfere seus ser viços ao Cardeal Albani. Empreende diversas viagens (Florença, Nápoles) e publi ca, em 1764, sua obra mais importante, H istória da A rte da A ntiguidade. Três anos mais tarde, escreve M o n u m e n to s In éd itos, em italiano. Seu nome cresce, adquire fama, e recebe diversas honrarias, entre as quais a de um posto de bibliotecário no Vaticano. Não obstante as numerosas amizades e as facilidades de toda ordem que lhe eram oferecidas, não consegue realizar a diversas vezes planejada viagem à Grécia. Famoso já em toda a Europa, decide, após muitas vacilações, visitar ami gos na Alemanha, onde era esperado com grande ansiedade. Parte em abril de 1768, mas a simples visão da paisagem do Tirol fá-lo exclamar a seu amigo Çavaceppi, que o acompanhava: “ Olha, meu amigo, olha; que terrível, deprimente pai sagem!” Chegados a Munique, recusa-se a continuar e pretende voltar para Roma. A insistência de Cavaceppi arrasta-o até Viena. Febre, melancolia, depressão fazemno voltar para a Itália, chegando a Trieste, sozinho, a I o de junho de 1768; nesta cidade, uma semana após sua chegada, é assassinado por Francesco Arcangeli. Além das obras acima citadas, salientam-se: Ensaio so b re a Capacida d e d e Sentir o B elo na A rte (1763), S o b re a G raça nas O bra s d e Arte (1759) e Me m órias so b re a C o n tem p la çã o das O bras d e A rte (1759).
Algumas Edições da obra de Winckelmann I - Obras Gerais 1 - Winckelmann, J.J. W inckelmann saemtliche Werke. Donaueschingen, Joseph Eiselein, 1825-29, 12 v. 2 - Ewiges Griechentum , Ausw ahl aus seinen Schríften und Briefen. Introd. Fritz Forschepiepe. Stuttgart, Alfred Kroener Verlag, 1943.
3 - R éflexions sur 1’Imitation des O eu v res Grecques en Peinture et en Sculpture. Trad., introd. e notas Léon Mis. Paris, Aubier, 1954. 4 - Lo Bello en el Arte. Trad. M. Schoenfeld e S. S. Miatelo. Buenos Ai
res, Nueva Visión, 1958.
5 - História d ei Arte en la Antiguidad. Madrid, Aguilar, s/d. II - Estudos sob re W inckelmann
1 - Barrenechea, Mariano A. W inckelm ann, su vida y sus ideas. Estúdios sobre la Estética Clásica. Buenos Aires, Claridad, 1939. Berlim, 1933.
^ Baumecker, Gottfried. W inckelm ann in seinen Dresdener Schríften, ^ * B*aettner» Fritz. Das Griechenbild J .J . Winckelmanns. In: Bruno Snell.
Antike und Abcndland. Hamburg, Marion von Schroeder Verlag, 1944, v .l.
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4 - Goethe, J.W . D ichtung und Warhcit, parte II, livros 7 e 8. 5 - Winckelmann und sein Jahrhundert. Berlim, 1805. 6 - Herder, J. G. Denkmal Joahnn Winckelmanns, Berlim, 1778. 7 - Vallentin, Berthold. Winckelmann. Berlim, 1931. III -Obras Gerais 1 - Benz, Richard. Der wandel des Bilds der Antike im XVIII. Jahrhun dert. In: Snell, Bruno. Antike und Abendland, Hamburg, Marion von Schroeder Verlag, Hamburg, 1944, v. 1. 2 - Butler, E. M. The Tyranny of Greece over Germany. Boston, Beacon Press, 1958.
3 - Carpeaux, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Rio de Janei ro, Ed. O Cruzeiro, 1961, 4 - Heidrich, E. Beitraege zur Geschichte und Methode der Kunstgeschichte. Basel, 1917. 5 - Lessing, G. E. Laokoon oder ueber die Grenzen der Malerei und Poesie. 1876, parte I. 6 - Pater, Walter. Winckelmann et ego in Arcadia fui. The Remaissance. Londres, Peguin, 1873. 7 - Rehm, Walter. Griechentum und Goethezeit, Geschichte eines Glaubens. 3 ed., Muenchen, Leo Lchnen Verlag, 1952. 8 - Seldmayr, Hans. Kunst und Warheit, zur Theorie und Methode der Kunstgeschichte. Rowohlt, 1958. 9 - Waetzhold, Wilhelm. Deuschte Kunsthistoriker von Sandraro bis Rumohr, Leipzig, 1921. família Lamprecht, em Hadmersleben (1) Humana pracvalent in eo plus quam divina. In carta de Lutero a Lang, de Io de março de 1517, in Luthers Werke, ed. Walter de Gruyter, Berlin, 1955, vol. VI p. 4. (2) In La Div. Comm., “ Interno” , canto XV. 76. (3) “ O que me prende às antigas e sagradas praias, para que eu as ame ainda mais do que a minha pátria?” (4) “ Ouvi falar de Elis e Olímpia.” (5) Ver, sobre o assunto, a esplêndida análise de Walther Rehm, in Griochentum und Goethezeit, Muenchen, 1952, p. 20 e ss. (6) “ Das GriechenbildJ. J. Winckelmanns” , in Antike und Abenland, Ham burg. ed. Marion von Schõder. 1944, vol. I, p. 121 e ss. (7) “ Ó gênio de meu povo, ó alma da Grécia! devo descer, devo procu rar-te no reino dos mortos.” (8)
“ A calma mora na terra dos santos, e além das estrelas esquece o cora
ção a sua necessidade e a sua linguagem.” (9) “ Pois meu coração pertence aos mortos. (10) Op. cit., p. 14. (11) In T h eo p h an ia , der G eist der A ltgriech isch en Religion, H am bu g, Rowohlts, 1956. p. 67-8.
(12) Este esquema já está presente na tese de Vico, de uma história al eterna” .
Fantasticher Kopf (Cabeça Fantástica) - cerca 1930 Relacionada sob o n° 102 no catálogo Goeldi, Coleção Nelson Mendes Caldeira, no hoje extinto Museu Goeldi. Matriz 16x15 cm.
NOEMI SILVA RIBEIRO
A O b ra G ráfica de G oeld i: O E sb o ço de uma C ro n ologia
As várias etapas desse trabalho foram sendo lentamente desenvolvi das durante anos de contato direto com as matrizes de Oswaldo Goeldi, pertencen tes à coleção do Gabinete de Gravura do Museu Nacional de Belas-Artes. Deste acer vo surgiu a idéia básica para esse estudo, que ainda está longe de abranger todo o procedimento técnico de Goeldi. O que se segue seria, portanto, o esboço para um trabalho maior: o levantamento de um catálogo raisonnée da obra gráfica do artista. Fazendo a leitura comparativa das matrizes e gravuras pertencentes à Biblioteca Nacional e ao Banco do Estado do Rio de Janeiro, além da já citada co leção do Museu Nacional de Belas-Artes, e analisando as coincidências cronológi cas existentes entre as mudanças técnicas e poéticas, arbitrou-se um código deci mal na tentativa de realizar a leitura descritiva e analítica de um estilo inovador que rompeu com o paradigma acadêmico, através de uma técnica revolucionária. Na xilogravura, o desenho é feito diretamente com grafite ou nanquim, na superfície de um bloco de madeira, ou indiretamente, por meio de trans ferência ou decalque. Na moderna xilogravura, as partes que vão ficar brancas na cópia final são escavadas, deixando linhas ou superfícies em relevo. Quando fala mos em nova xilogravura, referimo-nos às linguagens gráficas que surgiram da gran de influência exercida pela gravura japonesa na Europa. Gauguin, Munch e mais tarde os expressionistas alemães, renovado res da técnica de gravação em madeira, dedicaram-se conscientemente ao estudo da cromoxilogravura japonesa e dela absorveram o essencial. A visão desses artis tas obedecia a intenções criativas que tiveram origem na gravura oriental, mas a so brepujaram. Goeldi, entendendo a técnica como expressão específica e intraduzível, sofreu os efeitos do japonismo e os estendeu. Suas propostas não deixam de ter um ponto de contato com os objetivos dos orientais e também com as preocu pações que animavam a gravura em madeira medieval e expressionista. Porém, ape sar das influências técnicas evidentes, a gravura de Goeldi é ímpar na sua especifi cidade técnica. As ferramentas usadas pelos gravadores em madeira são as goivas e os buris, além da “ faca” , que é uma peça de aço pontiaguda, muito empregada na gravura oriental. O buril, utilizado na madeira “ de topo” , é muito semelhante ao usado para a gravura em metal, com a diferença de um pequeno chanfro na ponta para permitir o corte uniforme das fibras lenhosas. Os perfis dos buris deter minam a profundidade e espessura das linhas. Dependendo da abertura dos ângu-
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los dos losangos e triângulos, que usualmente determinam esses perfis, as linhas gravadas serão finas e superficiais ou largas e profundas. A madeira cortada de to po” (bois debout) torna-se extremamente resistente à incisão, criando uma superfí cie própria ao uso de buris. O que se vê na superfície da madeira, quando o corte é transversal ao crescimento da árvore, é o agrupamento maior ou menor dos fei xes lenhosos, representados pelos círculos anuais que marcam o tempo que esta tem de vida, formando uma autêntica e única “ digital” . Quanto mais lento o cres cimento da árvore, melhor será sua madeira para a gravação. O guatambu, o pequiá-marfim, a peroba-osso ou peroba-amarela e também a rosa, além do jacarandá e do vinhático, se alinham entre as madeiras excelentes para a gravação “ de topo” . As goivas são pequenos formões, com perfis em V ou U, que regis tram na madeira “ de fio” (bois de fil) linhas finas ou largas. As madeiras brasileiras usadas no sentido do fio, ou seja, no sentido das fibras lenhosas por onde corre a seiva ascendente, são a canela, o cedro, que é macio ao corte e deixa muitas evi dências da sua estrutura fibrosa na cópia, o mogno, o pau-marfim, a peroba-rosa, a peroba-osso, enfim, uma variedade imensa. Goeldi percebeu a riqueza estética das estruturas vegetais e também aproveitou as marcas produzidas pelo acaso. Os elementos externos à obra se con vertem em elemento decorativo, acrescentando à imagem gravada efeitos específi cos e característicos. Goeldi usava apenas goivas simples, desprezando o virtuosis mo mecânico típico das gravuras em madeira do final do século XIX. Explorando as condições internas da gravação e adaptando a intenção artística a um trabalho artesanal inovador, Goeldi mergulha suas raízes no passado e amplia os horizontes de uma técnica secular que se perderá nos meandros de um frio artesanato. Ele nos deixa a evidência de um conhecimento técnico profundo, que se reflete na cla reza formal do ato produtivo e se manifesta na originalidade de sua poética. - 1924 a 1930 Goeldi começou a gravar como um exercício. Em depoimento a Fer reira Gullar, publicado no Jo rn a l do Brasil, RJ, em 12 de fevereiro de 1957, ele nos diz: Comecei a gravar para impor uma disciplina às divagações a que o desenho me levava. Senti necessidade de dar um controle a essas divagações” .1 As primeiras gravuras foram realizadas sobre pedaços de madeira en contrados ao acaso. Eram pequenas matrizes, das mais variadas espécies de madei ra, medindo entre 5x5 cm e 10x15 cm, irregulares no contorno e também varian do muito de espessura, o que demonstra o aproveitamento do material. Muitas das matrizes desta época foram gravadas sobre pedaços de tábuas encontrados em de molições - um dos lados era intensamente polido, e õ outro, era deixado no esta do original em que fora encontrado. Algumas das imagens produzidas entre 1924 e 1930 levam títulos em alemão, o que se tornará raro na obra do artista: Phantasticher K opf (Cabeça Fantastica) (Fig.l), Mullwagen (Carro de Trigo) e Negersoldat (Soldado Negro), rela-
A Obra Gráfica de G o e ld i:
-ampião na Noite - cerca 1933 , Relacionada sob o n° 100 no catálogo Goeldi, Coleção Nelson Mendes Caldeira. Vlatriz 18x16,5 cm.
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cionadas na Coleção Nelson Mendes Caldeira, em catálogo da exposição realizada no hoje inexistente Museu Goeldi de São Paulo, além de Fischer Kopf (Cabeça de Pescador) e Bettelweiber (Mendigas). Goeldi não datava e apenas ocasionalmente dava títulos às suas gravu ras. As obras aqui citadas, assinadas e tituladas pelo artista, porém sem numeração de cópias, fazem parte da sua produção inicial, podendo ser encontradas na Biblio teca Nacional. Essas primeiras e raras imagens já apresentavam alguns dos recursos formais e temas que iriam definir seu repertório. Nelas encontramos o uso inten so de áreas luminosas concentradas sobre pontos específicos da composição. Goel di já abordava os pescadores, a noite e seus casarios, com grande interesse. Analisando de perto a gravura Lam pião na Noite (Fig.2), relaciona da no catálogo editado pela Fundação Armando Penteado em 1964, pertencente à coleção Nelson Mendes Caldeira, podemos entender melhor como surgem os con tornos espectrais e os brancos assombrosos que não só povoam esta imagem em particular, como vão ser elementos característicos do vocabulário do artista. Por meio de incisões entrecruzadas, Goeldi constrói de maneira impulsiva áreas em que a madeira é completamente arrancada - no caso específico desta obra, o halo de luz que envolve o lampião. Para sublinhar essa presença luminosa, trabalha in sistentemente, realizando um movimento circular com a goiva em V, gesto intensa mente repetido numa mesma área, deixando apenas pequenas evidências da super posição excessiva e nervosa das incisões, traduzidas em pontos fosforescentes quan do a cópia é impressa. As protoimagens do universo do artista (entre 24 e 30) já se definiam por tal “ construção” luminosa. Essa produção se resume hoje a poucas matrizes, o que não nos permite avaliar cuidadosamente a técnica de gravação deste perío do inicial. A Escola Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro, à época em que Goeldi voltou ao Brasil, vivia fechada em seus próprios conceitos estéticos. Mais adiante, o Modernismo e suas propostas, que aliás não chegaram a conquistá-lo to talmente, levaram Goeldi a ser considerado um artista com enorme poder de proje ção, capaz de formar a partir do zero e de objetivar uma completa transformação. O gesto nervoso de Goeldi, imobilizado na imagem, reflete sua inadaptação de re cém-chegado e torna visível um lado grotesco da paisagem carioca. Goeldi passou a infância e a adolescência em Zurique e Genebra. Quando retornou ao Brasil tinha 22 anos e, segundo seu próprio depoimento: A paisagem brasileira me pareceu estranha, era como se eu nunca tivesse estado aqui...” .2 O trabalho da goiva em perfil V produz traços finos e precisos. Com gestos paralelos e entrecruzados, repetidos várias vezes, Goeldi elimina o que res ta de madeira, recortando o contorno dos casarios, cantos de rua e lampiões. O re sultado obtido pode ser observado nas gravuras Noite Tropical de 1924 (exposta
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na I Bienal de São Paulo), e Subúrbio, circa 1929, reproduzidas na edição do Ser* viço de Documentação do Ministério de Educação e Saúde, o álbum "G o e ld i" , de Anibal Machado. Essa última imagem recebeu o título de Tropische Garten (Jardim Tropical), em cópia assinada pelo artista e que se encontra no acervo do Museu Nacional de Belas-Artes. Goeldi trabalha o contraste das massas brancas e negras, usando-as em toda a sua possibilidade expressiva e retirando desta vibração luminosa um va lor funcional que dá vida e dinâmica à superfície. É um mestre em aproveitar a ten são provocada pelos contrastes para criar ilusão de espacialidade e volume. Num jogo algo mórbido de fantasia e realidade, ele distorce a paisagem urbana, criando na madeira de fio, ou seja, no sentido do desenvolvimento das fibras, uma realida de “espectralmente exagerada” .3 - 1930 a 1940 Goeldi ainda aproveitava o que lhe caía nas mãos, o que se compro va pelos formatos e pela variedade de tipos de madeira, além das bordas quebra das ou lascadas das matrizes. Gravava sobre fundos de gaveta feitos de imbuia, tam pas de caixote de maçã argentina, pinho-de-riga, onde aparecem marcas deixadas por pregos c furadas por térmitas, sinais que integra sabiamente à obra. Inicia, por volta desta década, uma mudança no processo de gravação, a partir de uma lingua gem gráfica mais sintética, eliminando a quantidade excessiva de traços, dominan do numa crescente economia as incisões que vão definir as zonas de luz. Os talhos são mais e mais precisos, sua mão já não tropeça no emba te com o material. As incisões tornam-se paralelas, não mais entrecruzadas, e con centram-se disciplinadamente à volta de um perfil de árvore ou de um pássaro, dan do maior pathos dramático a cenas como a dos Urubus (Fig.3), de 1938, reprodu zidas na edição do Serviço de Documentação do MEC. As imagens produzidas de 1930 a 1940 são concebidas principalmen te em preto e branco. O desenho, feito a nanquim ou grafite sobre a madeira poli da e lixada, só é gravado após um estudo detalhado de luz e sombra. Na gravura Cavalo Cansado, circa 1932, a luz que vem do casarão é obtida através de incisões com a goiva em U, que abre traços largos, definindo a intensidade luminosa dos fundos. O casarão é destacado através de traços oblí quos que contornam o desenho do telhado e das paredes, nos quais são aplicados contragolpes, com a ferramenta em V. Apenas retirando pequenas lascas da madei ra, Goeldi cria todo um céu movimentado, alcançando um profundo refinamento técnico e estético. O contraponto dramático é dado pela figura do cavalo. O recor te, realizado em profundidade, é um corte único que define a silhueta do animal. Usando o perfil em V, Goeldi extrai da madeira sua vida própria e nos transmite o vigor da mão que adquiriu uma concisão de linguagem. As madeiras mais usadas por Goeldi eram pedaços de peroba-rosa,
Umbus - cerca 1938
E S T S f ,* ! 0
109 "° Ca,Í,° 8° GOe'dÍ’ C° ' " 5° N“ *>" Mendes Caldeira
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peroba-de-campos, perobinha e pau-marfim; madeiras que, lixadas várias vezes, de finem uma superfície extremamente lisa e sedosa, sem veios aparentes. A perobarosa (Aspydosperma polyneuron), por exemplo, pertence ao grupo das chamadas “madeiras duras” - madeiras fibrosas, densas na quantidade de lignina, que é a subs tância responsável pela rigidez das fibras e, portanto, pela dureza do material. Abun dantes em seu tempo e hoje praticamente extintas, eram usadas por Goeldi numa produção onde os traços finos eram feitos com leves toques da goiva V, extrema mente afiada. Nas cópias, as densas áreas negras deixam que o desenho apareça fil trado por uma rede sutil de traços paralelos. Na gravura Urubus podemos sentir, mesmo através da reprodução, que o desenho é recortado sobre um fundo totalmente negro, o que denuncia o uso de um dos tipos de peroba como matriz. Quando a cópia é realizada, o preto se apresenta totalmente uniforme pela ausência de veios na superfície da madeira. Em outras imagens agrega os veios da madeira, extraindo efeitos dos traços deixa dos pelo material. Um exemplo é a gravura M ar C alm o, circa 1937, também repro duzida no álbum Goeldi. Como nos diz o professor Mário Barata: “ Ele vai procurar tirar o melhor partido da estrutura orgânica do ma terial, de seus veios e filetes naturais, sendo que a própria madeira responde de di ferentes formas à ação da ferramenta.” 4 Exemplares desta época, já passados alguns anos em que a experiên cia com a madeira deixou de ser mera disciplina para tornar-se um meio de expres são, são as ilustrações para Dostoievski e Gustavo Corção. Com uma técnica já to talmente amadurecida, encontrou formas mais sintéticas de expressão. Goeldi gravou as ilustrações de Hum ilhados e Ofendidos e Recorda ções da Casa dos Mortos, de Dostoievski, sobre pau-marfim, e Lições de Abismo, de Gustavo Corção, em peroba-rosa, madeiras com poucos veios aparentes, para que a reprodução tipográfica da imagem atingisse uma perfeita definição entre os contrastes do preto e do branco. Na virada dos anos 30, há uma mudança radical na obra do artista. Ele mesmo nos conta: ‘‘Depois descobri os pescadores e toda madrugada ia para o merca do ver o desembarque do peixe e desenhava sem parar. ” s No momento do seu encontro com os pescadores há uma reviravol ta e ele dirige sua reflexão de dentro para fora, encontrando, talvez, seu autêntico Eu. A partir daí, os acontecimentos que animam a orla marítima, toda a vida que aí ocorre, serão o centro da sua temática. As gravuras Lagoa, de 1940 (premiada na I Bienal de São Paulo), e Pescadores e Pedra da Gávea, da mesma data - a primeira reproduzida no livro Oswaldo Goeldi, editado pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, PUC/RJ - mostram uma liberdade de gravação, com cortes profundos e largos, realizados com força emocional tão intensa que transmitirão a
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estas imagens uma paixão evidente pelo tema, o que se refletiría no gesto. As gravuras em questão deixam expostos alguns ' defeitos da ma deira A superfície não foi totalmente polida e isto se traduz, na impressão, em uma cópia irregular, com arranhados que acabam por se transformar em efetuas estéticos. As imperfeições da madeira são incorporadas ao desenho e conscientemen te exploradas com o valor, o que aumenta a riqueza dos contrastes extremos, cmn do um meio-tom. Paralelamente à conservação das matrizes, num trabalho de corres pondência com vários museus da Europa, procuramos as cartas e os desenhos de Goeldi a Kubin. O resultado dessa pesquisa se encontra, hoje, no acervo Goe i na PUC/RJ, e também na Biblioteca do Museu Nacional de Belas-Artes. As cartas de Goeldi a Kubin (Fig.4) - gentilmente traduzidas por Maria Kikoler - nos falam também de suas preocupações formais. Nelas Goeldi questiona o limite impôs pelo preto e branco da xilogravura, expondo suas tentativas por novos caminho, através do uso de recursos de impressão. Ele sentia uma limitação formal pelo co tante uso do preto e branco, como nos revela a carta a Kubin, de 01/02/1931 “ Estou cansado da madeira. Ela limitou rapidamente meus horizon tes - a improvisação com grafite na madeira (o desenho) é maravilhoso, mas o ma terial é duro, frio e odioso. Para um trabalho com garra, apaixonado, ela é um ca - o desenho nervoso do contorno de um objeto e já está tudo aí, compacto sombrio, mas o perigo da repetição das formas em breve, é inevitável . Na gravura Lagoa, reproduzida no livro Oswaldo Goeldi, da PLC à pagina 65, pode-se observar que a faixa horizontal que determina a água corr^ ponde a um cinza “ arranhado” , não uniforme, numa evidência do tratamento irregularidade dessa superfície e seu uso intencional. Outra gravura exemplar e termos de cinza, C avaleiro, foi reproduzida no álbum do Serviço de Documen ção do MEC. A matriz foi entintada uniformemente com o preto e depois raspa em determinadas áreas, dando uma variação tonal para conseguir profundidade Nessa fase intermediária, em que Goeldi trabalha com meios to encontramos várias cópias onde, após a impressão, realizada manualmente em P^ pel japonês extremamente fino, o artista aplica sob a cópia uma folha de PaPe ^ gres, em tonalidades de cinza, verde ou rosa, quebrando o extremo contrast branco e do preto e suavizando, para o olhar do observador, a luz de intensi ^ fosforescente. Pensamos serem estes os primeiros indícios da necessidade do ^ da cor. Tais procedimentos técnicos serão explorados nos anos a seguir, de a que, neste acrescentar de tonalidades, se faça a passagem para a policromia ^ Em 1937, foi feita uma edição especial do livro Cobra Norat Raul Bopp. a obra, ilustrada com xilogravuras em policromia, foi realizada ^ matrizes diferentes para cada cor. Goeldi gravou matrizes separadas, impressa^ tons de vinho e rosa, verde e azul que se somaram nas diversas imagens que põem o livro. Este procedimento, no entanto, é abandonado por seu resulta
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tremamente recortado, remetendo visualmente à estampagem de tecidos. A gravura Siri, de 1938, que foi apresentada na I Bienal de São Pau lo e está datada no catálogo geral editado pelo Museu de Arte Moderna de São Pau lo, localiza-se numa fase intermediária; os recursos de impressão que ali surgem se rão intensamente explorados na maturidade da produção cromática de Goeldi. Aqui nos interessa chamar a atenção para a data (1938). Todas as evidências nos le vam a acreditar que esta foi atribuída pelo próprio artista, pois à época ele ainda vivia, o que permite uma maior segurança nesta divisão por períodos. - 1940 a Í950 “ Estava saturado do preto e branco e procurei a cor. Inicialmente Goeldi usava duas matrizes gravadas e impressas em co res diferentes, numa técnica que no seu próprio dizer se aproximava da estampagem . No acervo do Museu Nacional de Belas-Artes e do BANERJ, encontra mos várias dessas matrizes que iniciavam o processo policrômico. Algumas delas foram gravadas dos dois lados, sendo que na face posterior aparecem pequenos re cortes que serão aplicados numa segunda impressão. Na matriz da gravura Homem com Boné, circa 1948, matriz pertencente à coleção do Banco do Estado do Rio de Janeiro, pode-se observar que o colarinho, o chapéu e pequenos detalhes do fundo, como as janelas na parte superior da gravura, foram recortados no verso da madeira e ainda estão entintados de vermelho e verde. “Já houve tempo em que usei mais de uma placa para gravar as dife rentes cores, mas hoje prefiro fazer numa só Inicialmente, Goeldi isolava as cores em pequenas áreas, entintan oas com pequenos rolos de borracha, colocava o papel sobre a matriz e imprim a com colher de osso. A seguir, virava a matriz, entintando a face principal com tinta p e voltando a aplicar o papel onde já se encontravam impressas as cores. Est p dimento é substituído pelo uso de diferentes cores em várias áreas da mesm “ Nas primeiras gravuras em que usei a cor, usei a com um diferente, meio simbólico, meio fantástico, como na gravura do guarda c uva ve melho e na do siri vermelho, entre outras.” 8 As mudanças das últimas décadas não se dão apenas no policromia, elas seguem várias mudanças na narrativa visual. O tra a di reflete completamente o seu sentimento. A gravura G u a rd a -C h u v a erm se torna um símbolo de solidão, uma caracterização da angustia. A gravação, com as goivas de perfil U e V , seguem os contornos dos volumes e os brancos são vigorosamente escavados à volta da figura prÍn^Íp* V luz é construída a partir dos recursos de impressão. Os cinzas do mu vens são conseguidos na retirada do excesso de tinta: já o vermelho o g
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va é aplicado com o dedo e uniformizados com pequenos rolos. Na gravura Briga (Fig.5), de 1949, reproduzida no álbum do MEC, percebem-se as mudanças iconográficas que ocorrem no vocabulário do artista nes ta década. Há uma geometrização dos volumes, um construir dos sólidos que vão representar as casas, numa evidente estruturação e simplificação dos signos, em re lação à década anterior. 1950 a 1960 A produção dessa fase se realiza sobre madeiras aparadas, encomen dadas, muito cuidadas quanto ao formato e à superfície. Esporadicamente aparecem fundos de gaveta, os quais, na época em que o artista era vivo, não eram feitos em compensado e sim em madeira maciça. Os formatos das madeiras passaram a ser estudados em função dos desenhos e croquis, que, como ele mesmo diz, eram inúmeros: “ Toda minha gravura é desenhada muitas vezes, tomo apontamentos e só muito depois, às vezes anos, nasce a gravura’’ .9 Ao substituir a gravação de suas matrizes pela entintagem múltipla numa única matriz, Goeldi determina uma técnica de caráter único, pessoal e tam bém muito experimental, na medida em que é quase impossível se obter duas có pias iguais com este procedimento. Goeldi entinta a matriz com o preto, limpa com um pano a área que vai ser colorida, entinta novamente uma pequena área com o dedo, aplica um pequeno rolo que vai igualar a superfície da tinta, repete o mes mo procedimento nas outras áreas, até que a matriz fique completamente colori da e pronta para impressão. A descrição desta técnica de entintagem nos foi relata da pelo gravador Newton Cavalcanti, que à época freqüentava o atelier da Escola de Belas-Artes, onde conviveu com Goeldi. A impressão é então feita com a pressão da mão e da colher, varian do em intensidade, para que o preto possa se tornar cinza onde for necessário e para que a cor não fique com aspecto grosseiro e pesado. Na verdade, o processo de impressão desenvolvido por Goeldi se reduz a poucas e limitadas cópias bem sucedidas. A experimentação policrômica sobre uma mesma matriz reduz conside ravelmente a possibilidade de repetição uniforme. A tiragem das gravuras do artista variava entre 5 a 12 cópias no máxi mo, e há casos em que foram experimentadas diferentes tonalidades para a mes ma imagem. A xilogravura em policromia Pescador Perdido, da coleção de Afon so Ramos Costa, aparece com a numeração 2/12, enquanto que na coleção da Fun dação Armando Álvares Penteado, a mesma imagem, numerada 7/12, surge em no va edição em preto e branco. Goeldi efetiva com a cor uma experiência muito particular, impossí vel de ser repetida por quem quer que seja. (Fig.6) Nos anos que antecedem a sua morte, o artista trabalha no sentido de Sem título - cerca 1950 Matriz no Museu Nacional de Belas-Artes, 23x38 cm.
Briga - 1949 0 Gravura premiada na 1BienaLde Sào Paulo, relacionada no catálogo sob o n 3 Exemplo de imagem gravada em peroba
ocupar áreas cada vez maiores, fase que seria a mais rica em termos de cor, varia ção de formatos das goivas e também em generosidade de tamanhos das matrizes. São desta fase: Casa M aldita, de 1951, gravura que participou da II Bienal de São Paulo. Nesta gravura vê-se a figura de um homem correndo deixando um rastro de fogo, um clarão vermelho que o envolve, contra um fundo escuro composto por velhos casarões. Todos os recursos cromáticos são utilizados numa única ma triz; Bacia de Sangue, circa 1957, onde o interior de uma peixaria, com seus ins trumentos de trabalho, tábuas de cortar peixe, facões e os próprios peixes mortos, tornam-se elementos secundários diante da elipse vermelha e da grande variação de cinzas obtidos também, numa única matriz, com a enorme habilidade de impres são de Goeldi. Há um dado curioso em relação a uma determinada matriz que se en contra no acervo do Museu Nacional de Belas-Artes, Interior de Peixaria com Pol vo, titulada pelos técnicos a partir da descrição da imagem. A matriz apresenta no verso as iniciais “ O .G .” seguidas da data, 1957, gravadas em traços finos e fortes
1 M I^í Pescadores - cerca 1955
Exemplo de imagem gravada sobre cedro. Matriz 21x27,2 cm.
pela mão do próprio artista. Este fato é raro quando estudamos detalhadamente o conjunto de suas matrizes e gravuras, pois, como dissemos anteriormente, Goeldi quase nunca datava suas imagens. Essa mesma matriz apresenta ainda, também no verso, anotações detalhadas acerca das diversas cores a serem usadas na impressão e sua localização, com a descrição minuciosa dos tons de amarelo e verde que iriam compor a gravura. Pelos nomes das cores (saffgreen - ja u n e cadmium foncée 2,3 vezes... ) percebe-se que eram tintas a óleo, o que significa que na época, como ainda hoje, não se fabricavam materiais próprios para impressão. O reflexo desta dificuldade se concretizou no chamado Salão Preto e Branco do III Salão Nacional de Arte Moderna em 1954. Goeldi declarou quando da realização do Salão: “ Com a resolução que tomamos, o público terá a noção do que se ja a falta de cor para o artista.” 10 Na imagem aqui reproduzida (Fig.7), publicada também no livro Oswaldo Goeldi, da PUC/R.J, Peixe sobre Travessa, circa 1957, a assinatura do artis-
Fig. 7 Peixe sobre Travessa - cerca 1975 CĂłpia assinada no verso da impressĂŁo, mantendo o sentido origina na madeira. Matriz 25,5x30 cm.
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ta foi posta no verso da impressão, mantendo o sentido do desenho sobre a ma deira. Esta atitude deixa bem claro que, para Goeldi, os limites impostos à gravu ra podiam ser facilmente rompidos, as fórmulas e as receitas não detinham valor estático e intransponível. O importante era a imagem e seu impacto, o diálogo com o olhar. Goeldi é exemplo único de artista e artesão que joga sua intuição com toda a liberdade* diante dos obstáculos da'matéria. Dominou, explorou e apro veitou sabiamente todas as possibilidades expressivas do material e ampliou os re cursos e as soluções técnicas (Fig.8). A gravura de Goeldi é herdeira tanto de Gauguin, que resgatou a im portância da xilogravura como arte, como de Munch no que diz respeito ao proce dimento experimental da impressão e ao uso dos veios para criar tensões‘visuais. Finalmente, é herdeira também de Kirchner, na maneira dramática de arrancar las cas profundas da madeira, e do gesto ansioso e angustiado de Van Gogh, que nun ca fez xilogravura, “ o que representa perda máxima para a história* da gravura em madeira” , segundo palavras do próprio Goeldi para A Sem ana, em reportagem con cedida a José Roberto, em 29 de outubro de 1955." Apesar dessas heranças, a obra gráfica de Goeldi é única e genialmen te inigualável. No seu caso, não é apenas a técnica que determina o estilo, mas sim a agudeza de espírito e a visão penetrante de gravador que se refletem em sua po ética, através da manipulação segura dos elementos técnicos. Sabemos que ainda há muito a ser feito em relação à obra de Oswaldo Goeldi. O fato de trabalhar isoladamente, recusando os sistemas predetermina dos pela sociedade, não permitiu a divulgação da sua obra. A fragmentação posterior que sofreu o conjunto dos seus trabalhos, pulverizados em várias coleções, dificulta, e muito, uma leitura linear da sua produ ção. As matrizes são um acervo inestimável, tanto quanto as cópias impressas, por que na verdade não representam o total da obra. O precário mercado de arte não era capaz de absorver a febril produção do artista, razão pela qual várias matrizes permaneceram sem edição. Somando as intuições apreendidas na matéria, juntando-as aos frag mentos do pensamento de Goeldi sobre sua produção, tentamos localizar os indí cios da gênese do momento em que a tensão interior do artista transformou a per cepção em forma. NOTAS: 1. Oswaldo Goeldi. Coord. Carlos Zílio, Solar Grandjean de Montigny, PUC/RJ, sem data, p. 111. 2. Idem, p. 112. 3. Idem, p. 11. 4; Idem, p. 64. 5. Idem, p. 111.
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6. Idem, p. 112. 7. Idem, p. 112. 8. Idem, p. 112. 9- Idem, p. 112. 11. Idem, p. 98. 10. FUNARTE, Instituto Nacional de Artes Plásticas. A arte e seus materiais - Salão Preto e Branco/ III Salão Nacional de arte Moderna, 1954 - Rio de Janeiro: FUNARTE, INAP, 1985, p. 9. BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA Brito, Ronaldo.“ Goeldi: O brilho da sombra” In: Novos Estudos CEBRAP, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, n°19, dezembro de 1987. Ferreira, Orlando da Costa. Imagem e Letra, Introdução à Bibliografia/A imagem gravada, Edições Melhoramentos, Ed. da Universidade de São Paulo, Sec. da Cultu ra, Ciência e Tecnologia do Estado de Syão Paulo, 1976. Hind, Arthur Mayger. An Introdction to a History o f Woodcut. Dover Publications, Inc., New York, 2 vol. Machado, Anibal M. Goeldi, Coleção Artistas Brasileiros, Serviço de Documetação do Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1955. Reis JR., José Maria dos. Goeldi, Coleção Panorama das Artes Plásticas, Ed. Civiliza ção Brasileira S.A., Rio de Janeiro, 1966. Werner, Alfred. Grapbic Works o f Edvard M unch, Dover Publications, Inc., New York, 1979. Westheim, Paul. El Grabado em Madera, Braviarios dei Fondo de Cultura Econô mica, México, 1954. I BIENAL DO MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO - Outubro a Dezem bro, 1951, 22. edição/outubro. Serviço de Documentação do Ministério da Educa ção e Saúde, Departamento de Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1951. Este artigo foi escrito originariamente para a pesquisa sobre Oswaldo Goeldi realizada pelo Curso de Especialização em História da Ar te e Arquitetura no Brasil, PUC/RJ, em 1989. NOEMI SILVA RIBEIRO é gravadora; graduada em Comunicação Vi sual pela FAAP/SP, especializada nos EUA em Recuperação de Bens Culturais, formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, PUC/RJ.
BERNARD BLISTÈNE Tradução: Sonia Santos Silva Laureano
Fontana: O H e lio tró p io C on tem p orân eo
A dificuldade em julgar o conjunto da exegese consagrado à obra de Lucio Fontana não escapa a quem pretenda avaliar sua produção. Ora o historiador nele identifica um símbolo da Itália do século XX, “às voltas com uma necessidade experimental comum a todos” , ora o artista encar na, à falta de melhor expreasão, uma figura bastante contraditória. O caráter essen cialmente escultório de obras anteriores aos seus primeiros “ bucchi” de 1949 é cla ramente negligenciado. Raros são os que, a exemplo de Edoardo Pérsico, que pu blica uma primeira monografia sobre o artista em 1936, sabem reconhecer a ampli tude do projeto: a sua “ consciência crítica” . 1 Alguns anos mais tarde, Duilio Morosini observa que Fontana sofre a necessidade imediata e difusa porém bastante contínua de mergulhar nas ten dências as mais opostas a fim de dar livre curso a uma experiência cotidiana” .2 Mais recentemente, Nello Polente acrescenta: “ Ele aboliu os limites entre matéria e matéria, entre estrutura compositiva plástica e estrutura compositiva pictural” .3 Em 1960, quando emerge o aspecto mais heráldico da obra em questão, Alberto Boatto pressente com sutileza o que permitiría a Fontana livrar-se das amarras da história: “A liberdade e a ironia de Fontana acima de tudo humilham a matéria, a matéria com todo o seu peso, necessidade e exigências” .4 Torna-se, pois, complexo tentar algum tipo de classificação da obra fontaniana, uma vez que todos nela reconhecem a dimensão heterodoxa e encon tram no artista a figura verdadeiramente livre e disponível, refratária a todo e qual quer hermetismo. Fontana realizou uma obra “ conveniente” , plausível de inserir-se pre cipitadamente no academicismo, tanto parece ligada ao estudo de seus mestres e acorde aos modelos da história. Entre eles, Wildt, o professor da Academia Brera, cujo nome evoca remotamente um certo Flaxman, fascinado por uma Itália a bra ços com seu passado, ou ainda Arturo Martini, mesmo que o projeto deste último, realizado nos anos trinta, seja bem mais intrigante que os elaborados pelos discípu los de De Chirico e de uma Metafísica habilmente desertada por seu instigador. Por outro lado, Fontana será um dos poucos artistas engajados no conflito do Mo dernismo e da Modernidade, cuja produção não rechassa a encomenda. Pelo con trário, adapta-se a ela e reage com mecanismos que, muito além de evidenciar a preferência pelo “ gosto das influências” , explicitam a opção imediata pelo gosto d° jogo’’.3 Considere-se o reducionismo deliberadamente abstrato, nascido do de bate europeu sobre o construtivismo, do túmulo Bestetti no cemitério de Comab-
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bio e o Cristo em bronze verde e dourado da tumba Castellotti no cemitério monu mental de Milão, obras realizadas no intervalo de apenas um ano. De um lado, es ta “ lógica do Monumento” que Rosalind Krauss, numa leitura historicista própria do modernismo, concede à função da escultura deste século; de outro, a ausênsia de toda e qualquer “ comemoração” , uma erosão cometida passo a passo. Emerge o propósito de não rejeitar o “ gosto das influências” ou qualquer outra proposição e retomar, enquanto artista deliberadamente laico mesmo nas numerosas encomen das religiosas, o debate do papel da obra e seu destino. Certamente, “ L ’aurigue” , “ Som m eir' e “ Femme Blessée” são o aval de uma relação, sempre levada a termo com o modelo, entre realismo, naturalis mo e a convenção da Estética. Obviamente, há ainda nesta “ démarche” os temas primários, os arquétipos emotivos, algumas esfinges gloriosas ou lamuriantes que são também permanências estáveis, natas menos da escultura que da estatuária, o apego difuso ao Simbolismo, também detectado nos futuristas do princípio do sé culo. Mas Fontana jamais afirma percorrer dois caminhos ao mesmo tempo... Não estabelece diferenças entre suas produções e, coerente, nunca evoca os aspectos materiais da encomenda, os concursos e sua oficialização necessária. O artista a tu do responde. Seus temas confundem-se, mesclam-se de tal maneira na execução Fontana, “ Concetto Spaziale/Altese, 1966 Acrílico s/tela e madeira, 115 x 190 cm. Coleção particular
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que um inventário temático torna-se impraticável. Quanto a Picasso, este modelo polimorfo e genial cuja produção invasora representa por si só o século e suas con tradições, muito mais que assimilá-lo, Fontana consome-o por completo, e o faz na proliferação ou na capacidade de tudo ser e estar em todos os lugares. Diante de tal diversidade, a crítica embaraçada fracassa ao tentar uma visão ordenada. Vencida, ela fala então de experiências, requer a instauração de uma hierarquia de gêneros, exatamente onde o próprio Fontana pretende aboli-la: sua considerável e determinante produção cerâmica será classificada como “ bibelot” quando Fontana nela entrevê o meio de exorcisar os limites da matéria. De um lado, o material clássico, o bronze e a pedra, inertes, sua cultura e seu simbóli co; de outro, a matéria, esta projeção figurada e distendida no espaço a ponto da extinção, enfim possível, da obra enquanto objeto, uma vez que “ a arte permane cerá eterna enquanto gesto, mas perecerá com o matéria” .6 Todo o sistema repele a cronologia. A organização de uma exposição ou a concepção de um exaustivo ‘‘catalogue raisonné” , não serão capazes de ins crever a obra numa projeção calcada no modelo modernista, evoluindo da figura ção à abstração ou, com o é comum atualmente, da abstração à figuração, o que, segundo Pérsico, seria ‘‘arbitrário” em se tratando de Fontana, desde 1935. Com ele o edifício vacila. Será então indispensável retomar a questão diante do "Harponneur" , ou ainda, de modo mais realista, repensar todas as teo rias sistematizantes que as melhores obras tornam caducas e ridículas? Se algumas datações permanecem até hoje improváveis - tais com o as do próprio Harpon neur" ou da ‘‘Femme A ssise" ou ainda as de alguns desenhos que parodiam simul taneamente o suprematismo de Malevitch e o ahistoricismo de De Chirico - é por que Fontana se presta deliberadamente ao capricho e faz disso um gênero capaz mesmo de arruinar os caminhos convencionais. No mais, pode-se correr o risco de concordar com Giulio Cario Argan, que se trata de uma “ elegância fútil , ou afirmar que “ as esculturas abstratas não são certamente esculturas . Neste ponto, seria conveniente reler o texto de Pérsico, que em certos aspectos, assume o pa pel de profeta. Citando Gioli, em 1936, ele afirma: “ Aqueles que se obstinam em considerar esta forma de escultura como insólita - o crítico alude ao dilema do pú blico: trata-se de escultura ou pintura? - indentificam sua própria inquietude com a que invade o artista” .8 Assim, o ecletismo explicitado é menos uma indecisão do que um método para suprimir o que existe apenas com o arquétipo de História. O espaço no qual Fontana age e opera, a exemplo daquele dos futuristas, que ainda o fascina riam bem depois dos anos trinta, é polimorfo. Devemos questionar menos a diver sidade de sua obra do que nossa própria urgência em elaborar algum tipo de ordenação Convenhamos, assim, que Fontana não está onde o procuramos. A encontra-se, figurada, a “ terra incógnita” . Entretando, é evidente que sua pro u Çào não teria importância avalizada sem o gesto inaugural dos primeiros b
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(1949) e “ taglf ’ (1958), que de certo modo constituirão o estigma de toda obra, como o “ drípping” da mesma época caracteriza Pollock, a quem, de resto, o artis ta contradiz. Onde então procurar Fontana? Não sofreu ele, por longo tempo, o trauma de ter toda sua produção reduzida à radicalidade de seu gesto, ao absolu to deste entalhe tantas vezes repetido a ponto de cansar alguns e ser bastante ridi cularizado por tantas críticas incapazes de desvendá-lo como uma recorrência cons ciente? Este gesto, que não é certamente pintura, mas está na pintura, tem algo de incoercível, nem adição ou subtração, e por si só invalida as análises desestruturantes. Este gesto propriamente dito carece de palavras para designá-lo dentro das gramáticas dos estilos existentes, e é nesta ambigüidade que permanece antes de tudo, como princípio e fim. Não se trata mais de preservar a integridade da su perfície plana e sim de agredir o seu sentido. Não é tampouco a figura como qua dro, mas antes o quadro como figura que desmorona, perfura-se, lacera-se, apunha la-se. O artista encarna o predador. E a apreensão de Fontana na totalidade de sua poética, entrevista por esta faceta de violação, é tão mais fácil ou sedutora pa ra os interessados quanto a própria construção da Modernidade repousa precisa mente nesta noção de rompimento. Assim, Fontana representaria a imagem epistemológica da idéia mes ma de ruptura, o que seria muito conveniente. Para que houvesse este corte, basta ria tomar literalmente o sentido da palavra e esgotar na amplitude da tela o discur so sempre volátil da desconstrução. Ao violar o suporte na sua integridade, mes mo que obsessivamente, “ quanto mais numerosas as lacerações, mais a superfície emerge e permanece’’, Fontana objetivava o projeto futurista que compelira Marinetti a escrever, antes mesmo'de perder-se na Berlim dos anos 30: “ A vocês, as pi caretas ”, mesmo que ele jamais as tivesse empunhado. Entretanto, nesta história de abandonos, que bem ou mal se desenro la no decorrer do tempo, nessa tradição de ruptura que constitui o apanágio dos modernos, invoca-se facilmente “ Les Demoiselles d ’A vignon” , “ Formes Uniques de la Continuité dans 1 Espace” , “ Carré Blanc” , o “ ready-made” , o “ drípping', o monocromático e tantos outros saltos no desconhecido. Mas ninguém conside ra a primeira incisão. Por que tal negligência histórica? O artista certamente nos previnç contra as denominações e, mais ain da, deixa-se seduzir pela união de duas palavras contraditórias que vão se tornar a marca quase sistemática de cada uma de suas obras: “ Concetto spaziale” . Discuti mos as diversas traduções possíveis desta expressão sem considerar a necessidade ou não de distinguir com cuidado, como tenta fazer o “ catalogue raisonné” , os cortes do entalhe, os buracos das fendas, que são, como observa Fanette RochePézard, numa recorrência incansável ao “ Manifesto Blanco” , antes de tudo “ uma consciência material’ .l0 Por que pretender dar forma e sentido ao que o prórpio artista deseja “ informe e destituído de sentido” ? Por que batizar algo que, afinal de contas, não passa de um meio de entreabrir? Fontana reafirma que, antes de tu-
Fontana, “Bataglia", 1947 Cerâmica policrftmica, 23,5 x 29cm. Coleção Tcrcsita Fontana, Milão
do, a tela está " lí" , nâo pelo que representa, mas pela destgnaçao deste ’ através do qual é possível ver. Coloca-se com o observador e a tela lacerada destgna o infinito, tornando-o “ explícito Ta. ruptura, essa fissura central e arqueológica que - o c a Foucault frente à aporia do nosso saber, na qual Fontana mergulha, convi a na° mais sar a fratura do espaço pictórico, mas é ainda “ a P o e i r a , a ,gu ’lmente tenebrosa e definitiva incursão que ele jamais rea 1 O que sio então estes sedimentos, esses resíduos qutt c^hístoríadot cataloga, assim como o arqueólogo inventaria os * * * * * quisa? Face à História, na qual Fontana navega, com sempre f3SCinado por tes que se modificam em relação ao espectador e qu > . , de «.Quantas” ? uma ciência que o seduz por sua dimensão enigmática e irrevers ’ q decora_ Qual aessêndade suas “ cerfm/cas” , vistas por ele ^ c o n i o ^ ^ de tivo, mas como uma introspecção táctil da mat ^ de seus « a ju bientif terracota temerariamente fundidas no bronze. q célebre carta dos quais o próprio artista reconhece a importância, ao a
Fontana, ‘‘Concetto Spaziaie/Venice Moon” , 1961 óleo sobre tela, fendas 150 x 150cm. Coleção Teresita Fontana, Milão
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publicada por Guido Bailo: “ Esta espacialidade me proporciona a sensação exata de uma descoberta, hoje resta-me uma dúvida terrível...” .12 O próprio Fontana assume a “ aparência” do disparate, mais ainda, reivindica-o. E o prova, fazendo-se deliberadamente fotografar cercado pelos mais diversos ângulos de sua obra, para que não fique a menor sombra de dúvida: tra ta-se não só do mesmo homem, mas, sobretudo, de uma mobilidade desejada e impenitente. Aí está a “ estética do diverso” , da qual fala Segalen diante do exotismo. Melhor, Fontana é este exótico mesmo e sua vida o “ ponto de partida” de uma viagem à procura daquilo que os grandes navegadores chamam de “ quinto mun do” : a consciência do tropismo. Ele sabe que o moderno só poderia sobreviver menos na persegui ção de um modelo único do que na heterodoxia, mas faz uma distinção entre bus ca e pesquisa. A diversidade de modelos e gêneros, temas e estilos, é para ele a única possibilidade de romper com o passado. Tenta resgatar este passado, mas não o faz como Ernesto De Fiori ou Arturo Martini, ambos atrelados à perpetuação de um protótipo do qual pretendem ser os detentores e avalistas, buscando uma “ doxa” perdida. Não é ele a encarnação evidente, nestes anos de retomada que são na quase totalidade o interregno das duas guerras, da utopia - utopeia -1}, o “ além” - dos anos próximos, cujo modelo está menos no passado do que projetado no futuro? Por ser a obra em si a.elaboração de uma linguagem, não rejeitará ela mesma as palavras da língua? A arte de Fontana é um léxico “ aberto” onde to da tentativa de ordenação se choca com o primado sempre frequente das “gera ções latentes” . Seus textos, cartas e assertivas não esclarecem grande coisa. Algu mas vezes não as escreveu, apenas as assinou. Coloca-se à distância de grupos, com os quais não saberia conviver. Entretanto, cada frase, cada conferência, é uma pro fecia cuja origem messiânica e declamatória evoca o modelo futurista ou qualquer outra declaração de intenção que por ventura possa ser escrita para melhor ser re futada. A crítica sempre analisou as relações que se estabelecem inelutavelmente entre o Futurismo, o Espacialismo e Fontana. Boccioni certamente cativou-o, pois, como ele, evadira-se do Simbolismo e sempre fora um fascinado por Dante e suas estrelas.14 A própria estrutura dos manifestos e escritos fontanianos parece ser com freqüência o eco dos textos futuristas. Certamente é fácil retomar um grande núme ro de afirmações e expressões de Boccioni ou Marinetti: “ o espaço não existe mais” , “ o dinamismo universal destrói a materialidade dos corpos” , ou tantas outras mais. O “ duplo esplendor do infinito interior e do infinito exterior” 15 funciona sempre. Que dizer ainda do “ núcleo central” , citado no “ Manifesto Técnico da Escultura Futurista” , ou de certos títulos dados a pinturas de Boccioni, como “ Matéria” ? E, como sugere Fanette Roche-Pézard a respeito do Futurismo, seria possível pensar a técnica fontaniana “ não mais sob a luz da escolha da cor, mas através do seu manejo” ?16 ' • O vórtice dos entalhes, dos “ tagli” e “ bucchi” , além de expressar a
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maestria do gesto, não seria também comparável ao citado Manifesto, segundo o qual o antagonismo de forças sugere “ abrir a figura como uma janela e aprisionar nela o ambiente ao redor” ? Fontana, sem dúvida, preocupa-se também com “ o que se agita além das densidades” .17 Eis aí uma prática realmente empírica e aleatória. Eis também uma obra que, apesar das aparências, não tem um pro grama escrito. Discute-se ainda hoje a paternidade dos conceitos: por que o pri meiro manifesto seria “ branco” ? Por que Espacialismo? Quais as diferenças reais a apontar entre as palavras “ conceito” e “ meio” ? Talvez aí resida a aspiração do pósguerra em situar-se além das atitudes filosóficas e estéticas dominantes, surrealis mo ou existencialismo? Talvez aí resida a fascinação por alguns escritos violentos, como o “ Manifesto do Futurismo” , sobre o qual repousam a ideologia e as contra dições do Modernismo na Itália, assim como recaem sobre o “ Valori Plasticf’ as contradições do academicismo? É preciso igualmente concordar com Fanette Roche-Pézard a respeito das discrepâncias existentes entre “ o programa oficial de Fon tana e as obras que ele produz, entre o nominalismo pseudo-racional que determi na a própria escolha do termo 'espacialismo’ e a elaboração de fatos plásticos irre dutíveis a uma simples fórmula” . Se o enunciado permanece difuso, se Fontana hesita e parece às vezes contraditório, é porque ele também opera como poeta, mesmo que deva empreender “ passagens pelo desconhecido” . Nesse contexto, a prática da arte seria ainda, numa época em que os conceitos de revolução, novo e vanguarda têm um sentido que hoje parecem perdidos, aquilo que Thierry de Duve designa com o “ hipóstase simbólica dos di reitos do homem” .18 Fontana e os “ espacialistas” são fiéis à exigência do progres so e, segundo Jean François Lyotard, conscientes de “ que é preciso aprisionar es te tempo irreversível” . É óbvio que Archipenko, Maillol, Zadkine, Brancusi, Despiau, Laurens e a arte abstrata dos anos 30, são modelos que devem ser confrontados para melhor serem dominados, assim como devemos apreender trabalhos, ensaios, re cursos técnicos e práticos, para depois desprezá-los. Se Fontana pertence às vanguardas, precisamos também contemplar o primeiro estágio de sua obra como algo ligado a uma série de abandonos, o que fazia parte de sua tarefa. Com eles e por eles o artista desfaz-se das limitações da abstração e figuração, da pintura e escultura, do “ desenho e antidesenho” , para abranger as relações entre matéria, espaço e tempo, de acordo com a proposta já expressa no Manifesto Blanco: “ A matéria se manifesta de modo total e eterno, de senvolvendo-se no tempo e no espaço” .19 O espacialismo existe, pois, aqui e ago ra, não como um sonho, mas como uma vivência... Esta vivência que Fontana de signa como a valorização do transitório, do dinâmico” é também “ evolutiva” . Não há condições estáveis e algumas obras do período 1947-1949, analisadas por Fanette Roche-Pézard, traduzem bem este estado cambiante, esse reconhecimento indefectível e inimitável do “ impensado” .
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Fontana, “Concetto Spaziaie Naturc” , 1959 e 1960 Bronze Coleção particular, Colônia
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Já não basta saber esculpir ou elaborar um inventário quase didático do Modernismo, ser mais ou menos “ virtuose” , evoluir do trabalho à indiferença, do labor ao desdém, do acabado ao inconcluso. A exigência da obra passa menos pela posse deste saber do que pela possibilidade de livrar-se dele. A obra fontaniana encontra sua verdade nas sucessivas renúncias que o levam a resgatar “ o espa ço interior” . Será por essa razão que seu gesto é sempre mais livre e apressado? Ou ainda será por isso que Fontana traduz sempre com mais insistência esse proje to ‘‘onde a rapidez cede lugar à aceleração” , e finalmente remete a empreitada do Futurismo ao fracasso por ter apenas sabido agir no espaço sem jamais transpassálo? Das reminiscências das primeiras obras de 1926 às esculturas aracnóides de fer ro, da escrita cursiva nas tabuletas gravadas ao gesto na matéria em estrias das obras dos anos sessenta, ou da assinatura que se torna grafismo, a mão de Fontana se dis tende, abandona-se e se faz ‘‘volátil” .20 A própria escrita do artista e sua assinatura tornam-se quase ilegíveis, confundem-se com signos e ideogramas que o cinzel traça na matéria, antidesenho e também antiescrita21. Como se o tempo o pressionasse, como se fosse preciso mostrar que a escrita, tal como ela existe, não mais lhe basta e que o átimo entre o que se tem a dizer e o que se escreve abre-se num abismo sempre maior. A Fon tana falta tempo, jamais espaço. Para distinguir historicismo de exotismo, Segalen aponta a diferença entre ‘‘remoto no passado e longínquo no espaço” ; pode ser que a expressão mais simples, encontrada pela imprensa, para dar título a um artigo por ocasião da mos tra ‘‘ Ambiente Spaziale" na Galeria Del Naviglio, em 1949, seja menos ridícula do que possa parecer e que Fontana, heliotrópio, tenha literal, pura e simplesmente ‘‘chegado à Lua” .
NOTAS: 1. Pérsico, Edoardo. Lucio Fontana, Milão, Campo Gráfico, 1936. 2. Morosini, Duilio. Lucio Fontana, Milão, ed. di Corrente, 1940. 3- Ponente, Nelio. ‘‘Lucio Fontana” , L ’esperienza moderna, n° 5, Roma, março 1959. 4. Boatto, Alberto. “ Libertà di Fontana” , Taccuino delle arti, n° 55, Ro ma, junho 1960. 5. Pérsico, Edoardo. Turre /e opere, Milão, ed. di Comunità, 1964. 6. Spatialistes I , reproduzido no catálogo "Lucio Fontana” - Éditioq? du Centre Pompidou, 1987.
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7. Argan, Giulio Cario. Le arti, fevereiro 1939. 8. Pérsico, Edoardo. Lucio Fontana, Milão, Campo Gráfico, 1936. 9. Bailo, Guido. Lucio Fontana, Idea per un ritratto, Turin, llte, 1970. 10. Roche-Pézard, Fanette. “ Matière, espace, temps: Fontana de 1947 à 1949” . IIIo Colloque d’histoire de l’art contemporain, Saint-Etienne, C.I.E.R .E.C., 1978, p. 217 dans Art et Idéologies. 11. Ibid., p. 215. 12. Bailo, Guido. op. cit., p. 248. 13. Borer Alain , Un sieur Rimbaud se disant négociant, ‘‘La terre et les pierres” , Paris, Lachenal et Ritter, 1983 - 1984. 14. Roche-Pézard, Fanette. L Aventurefuturiste, op. cit. 15. Roche-Pézard, Fanette. L'Aventure futuriste, op. cit. 16. Ibid. 17. Ibid. 18. Duve, Thierry de. conferência pronunciada no Colégio Internacional de Filoso fia - Cf. Thierry de Duve, Nominalisme Pictural, Marcei Duchamp, la peinture et la modernité, Paris, 1984. 19. Manifesto Blanco, 1946. Publicado na Argentina. 20. Roche-Pézard, Fanette. “ Fontana ou la main volante, essai sur foeuvre graphique” , infra. 21. Bartolomeis, Francesco De. Segno antidisegno di Lucio Fontana, Turin, ed. d arte Fratelli Pozzo, 1967. 22. Este texto foi publicado no catálogo “ Lucio Fontana - Éditions du Centre Pompidou, 1987.
Varus, 1976. Ă&#x201C;leo e acrĂlico s/lona, 200 x 270 cm Van Arbe Museum, Eindhoven, The Netheriands.
Traduçào: Leo Epstein
Pintar C o m o Feito H eróico: A Prim eira Entrevista co m Anselm K iefer
Há 20 anos presente no cenário da arte, o pintor Anselm Kiefer, nas cido em Donaueschingen, 44 anos, vem alcançando sucesso crescente em conseqüência de suas ações políticas, dos seus quadros com materiais poéticos, livros “ escultóricos” e instalações que documentam a procura das raízes históricas e míti cas do desenvolvimento humano, sempre provocando questões. Dezessete auxilia res e assistentes trabalham em seu ateJier, perto de Buchen (Odenwald), compos to de três edificações imponentes: o estúdio fotográfico, na antiga sala de pintura de uma oficina de automóveis, dois galpões compridos de uma ex-fábrica e uma olaria desativada que Kiefer restaurou com muito amor e dinheiro. Nesses galpões com cerca de 1600 m2, já apertados para o artista, ele trabalha simultaneamente em diversas telas, às vezes à noite, depois que seus auxi liares se retiram. A olaria, com depósitos de barro, câmaras de secagem, câmaras de fogo e trilhos decauville, serve como depósito das formas e, temporariamente, como atelier para o filme que Kiefer está produzindo com diretores da BBC de Londres. Enquanto duas costureiras fazem as vestimentas dos atores, as inúmeras folhas de chumbo são impressas com o auxílio de monta-carga, para esse filme que tem o título provisório de Sessenta Milhões de Ervilhas, material básico da bibliote ca de livros de chumbo, sobre o “ Plebiscito de 1987", do qual Kiefer se negou a participar. Sua recusa provocou a reação do tribunal superior eleitoral. As críticas ao desconfiado e solitário Kiefer culminaram com uma acusação injusta de que sua arte seria fascista (revista ART 3/1984). Ele nunca fugiu a uma conversa informal sobre sua arte e os motivos de seu trabalho, mas só ago ra consentiu na realização de uma verdadeira entrevista, com perguntas e respostas. No dia 7 de novembro de 1989, reservou tempo para uma longa “ conversa de ate lier’’ com os redatores da ART, Axel Hecht e Alfred Nemeczek, em Buchen. Kiefer aprovou o esboço da entrevista em 22 de novembro, precisou mais suas respostas c liberou o texto para publicação. ART - Anselm Kiefer, seu trabalho tende cada vez mais à terceira di mensão, necessita cada vez de mais espaço. Tematicamente, não houve grandes mudanças nos últimos anos. É uma impressão enganosa? KIEFER - Sim, porque essa impressão se baseia somente nos títulos e nas inscrições pictóricas, como Teutoburger Wald (Floresta Teutoburg), Markischer Sand (A Praia de Mark) ou Isis. Estes são apenas aspectos e restos de um te ma. Mas a impressão procede quando se trata do “ tema de base , ao qual referi to dos esses aspectos.
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ART - Com o se poderia formular este tema de base? KIEFER - Ele não é explicável por meio de simples dados ou dizeres. Toda a pintura, assim como a literatura e tudo o que se relaciona com eles, é sem pre um caminhar ao redor de um inexplicável, ao redor de um buraco negro, ou de uma cratera, cujo centro não se pode penetrar. E o que se capta em temas tem sempre e somente o caráter de pedrinhas ao pé da cratera - são marcos que formam círculos e vão se estreitando em direção ao centro. ART - É o que se poderia chamar de uma estratégia artística. E quan to à sua tática? KIEFER - Basicamente, existem dois métodos diferenciados: pode-se ir do comum para o único ou do único para o comum. É o que faço, e, em geral, escolho um ponto de partida banal, trivial e até vulgar. Por exemplo, fiz agora um avião que é em si mesmo naif, uma “ coisa à to a ", mas representa para mim um ponto de partida. Também o Teutoburger Wald foi um início banal. Mas não posso partir de uma coisa pronta. Por isso não faço arte sobre arte, como ocorre na arquitetura pós-moderna. Pegar um capitel bonito, em qualquer lugar, seria pa ra mim um procedimento tautológico. Isto eu não faço. ART - O senhor é famoso internacionalmente como pintor, mas ulti mamente se afastou, e de um modo radical, da tela. Em Londres, apresentou sua biblioteca de livros de chumbo, sob o título Zw eistrom land (Terra dos dois rios); em Paris exibiu o seu Container para o tema “ Plebiscito” e, há pouco, surpreen deu Colônia com a já mencionada esquadrilha de aviões. A plástica tridimensional seria um meio novo que chega mais rapidamente ao seu objetivo? KIEFER - Não há nada aí de novo para mim. Já fiz obras assim, produ zi “ objetos” de livros e montei no atelier imensas instalações fotográficas que ti ve que desfazer por falta de espaço. A única diferença é que agora, ocasionalmen te, mostro estas obras fora do atelier. ART * Para demonstrar que hoje o senhor domina também “ o traba lho em terceira dimensão” ? KIEFER - Para falar com franqueza, fiquei simplesmente entediado em pendurar quadro atrás de quadro. No tempo da m inim al art e da "arte concei tuai , produzi preferencialmente telas quadradas pois havia poucas telas. Agora, temos uma enxurrada de quadros. Achei por bem me afastar do quadro. Mas isto é só aparente, pois nunca em meu trabalho apontei diferenças entre intervenções, quadros ou instalações. Penso sempre em volume. ART - Então o senhor considera então a m inim al art algo superado? KIEFER - Não acho que a m inim al art tenha que ser superada. A mi nimal e a arte conceituai foram necessárias enquanto reações ao informalismo da Escola de Paris e ao expressionismo abstrato dos americanos. Foi necessário quase diria, psicologicamente - fazer uma coisa clara, como uma caixa vazia ou uma simples linha. Os resultados nunca me satisfizeram e hoje é algo que se perce be como design. Mas certos pensamentos que se desenvolveram nesse tempo en
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traram como material no meu trabalho. Não falo de transposição, mas do trabalho inicial, de um impulso para aquilo que veio depois. ART - Não conhecemos nenhum artista da atualidade que se preocu pe tão intensamente com o passado como o senhor. A História, da antigüidade até o 3° Reich, é o centro de seu trabalho: os mitos de muitos povos e suas culturas são apresentados em seus quadros. Há alguma explicação para este dom de atuali zar acontecimentos tão remotos e retrabalhá-los artisticamente? KIEFER - Se você espera uma explicação psicológica, lembranças da infância ou coisa parecida, devo decepcioná-lo. Apesar de ter nascido ainda duran te a guerra e crescido no meio de escombros, considero isso tudo desinteressante. A explicação não se baseia em uma constelação psicológica, mas no meu conceito sobre o mundo. ART - Semelhante conceito tem que ter tido um desenvolvimento. E plausível imaginar que o senhor teve um bom professor de História, ou então um muito ruim, que o obrigou a desenvolver uma iniciativa própria. KIEFER - Sim, uma coisa assim pode se adquirir. Mas acredito que nascemos com a maior parte das coisas. Porém, eu me preocupo com Alexandre, o Grande, e me sinto quase no seu ambiente. Não é o resultado de uma aula de História. ART - O ensino pode lhe fornecer os fatos, o conhecimento de como foi. KIEFER - Como foi, ninguém sabe, pois não existe uma escrita clara da História, há somente um manejamento da História. O artista procede de forma diferente do cientista. Eu procuro, de uma maneira não científica, chegar próxi mo ao centro de onde emergem os acontecimentos. De uma figura como Alexan dre, realmente, pouco sabemos, mesmo assim preocupa os artistas há séculos, pe la sua presença como fenômeno complexo. Não foi somente o conquistador que queria fundar um domínio mundial. O ponto inicial de suas campanhas é tão inte ressante quanto fascinante: ele queria achar as correntes de Prometeu no Cáucaso. E, enquanto esteve a caminho, o quadro mundial modificou-se a cada ano; podese provar pelos mapas. Pode-se dizer que Alexandre criou o mundo. ART - E foi o precursor de Colombo. KIEFER - Com a diferença que Colombo foi o descobridor de uma terra que já se sabia que era redonda. ART - O senhor desconfia, portanto, da ciência? KIEFER - Ao contrário, há necessidade de mais ciência para que tu do possa melhorar. E o que me é accessível em termos de conhecimentos científi cos entra também em meus trabalhos. Mas sou contra que a ciência mantenha, na vida pública, uma função fetiche. Quem tem na Alemanha um título, uma cátedra ou uma posição institucional será sempre consultado, e o que ele diz, conta. Os políticos se remetem aos cientistas em vez de decidirem segundo sua convicção. E a ciência é sempre parcial. O perigo das usinas atômicas foi proclamado por pes soas sem conhecimento científico, mas os políticos só reagiram depois do desastre de Chernobyl.
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ART - A ciência,então, é sem sentido? KIEFER - Totalmente, pois não questiona a si mesma. Ela não é des necessária, mas sem sentido. ART - O senhor acha que quando alguém descobre que a terra é re donda, tal fato continua sem importância enquanto não mexer na cabeça dos homens? KIEFER - O descobridor seguiu um impulso de procura do novo e isto, por si só, ainda não é sentido. ART - E o artista fornece o sentido? KIEFER - Sim, somente o artista, e me refiro não apenas ao artista profissional. Existe muita gente que ninguém conhece e cuja existência produz sen tido. O artista estabelece conexões que ninguém pode produzir. Ele produz senti do fazendo algo sem sentido. ART - Isto precisa ser mais esclarecido. KIEFER - Quando a gente se livra da premissa de que o homem é o centro do mundo, do cosmo, aí acontece o sem sentido. Mesmo assim existem as nuvens, as chuvas e o vento, mas não se sabe para quê. O que o artista faz também é inesperado, sem motivo e sem nexo neste sentido. Tanto faz o que éu pego uma árvore de Caspar David Friedrich, que nada tem a ver com a árvore diante da janela, ou uma escultura de Praxiteles. Mas, ao concatenar algo com o seu sen so cósmico, eu crio, naturalmente, um sentido. Mas é um sentido sem nexo, um sentido imaginário... ART - E que, algum tempo depois, pode surgir como um sentido ver dadeiro? KIEFER - Temos que assumir um pensamento sem subterfúgios, co mo uma aporia. Fica-se no quase e não se chega a ponto algum. Não se pode reco nhecer o mundo objetivamente apenas em contraposição a ele, mas saindo de si para se entregar. E, enquanto apenas se participa, reconhece-se o mundo na práti ca, sem ter dele um real conhecimento. Há que sair para depois captar o sentido, o que existiu antes. Mergulhado em meditação, o pensamento fica desligado. Este é o ponto culminante de toda filosofia. Este é o processo quando se produz uma obra de arte ou se a contempla; eu não vejo grande diferença entre contemplação e produção. É sempre uma linha em ziguezague, mergulhar e depois emergir... ART - Mas conservando as lembranças. KIEFER - Infelizmente, a lembrança se desfaz. Se eu quiser dizer algu ma coisa do que falamos há um minuto, sai algo totalmente diferente. A gente exterioriza um momento da meditação, no nível do sentido pleno, e perde a metade. Sempre estamos perdendo. Por isso não existe uma escrita da História. ART - Não fica a experiência que induz ao ato? Quem machuca o po legar numa porta fica mais cuidadoso. KIEFER - Trial and Error. Todo fazer é sempre falso. Não há um fa zer totalmente puro. Conhecemos, por exemplo, as teorias das revoluções. Existe o ato libertador, mas o ato vem sempre carregado de muitos erros. Um quadro,.
Your Golden Hair, Margarete, 1981. Óleo, emulsão e palha s/tela, 130 x 170 cm. Coleçio Sanders, Amsterdam.
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quando é mostrado, é sempre uma solução de emergência, um objeto ressequido, comparado com aquele que poderia ser. Porque havia alguma decisão no plano da vontade do pensamento que influenciava a obra de arte e que estava em minha cabeça. Assim, fica um espantalho seco daquilo que deveria ser. ART - Existe influência dos acontecimentos políticos atuais sobre a sua obra? KIEFER - Tudo é influenciável, não há nada que possa ser excluído. Naturalmente, não vou fazer um quadro sobre os deslocamentos populares do les te para o oeste. Fiz isto há 15 anos na obra Fur Chlebnikov-Welle des Ostens gen Westen (Para Chlebnikov-Onda do Este para o Oeste). Mas, agora, seria uma mímesis falsa. ART - Mas o senhor viu o seu ciclo de trabalho Markischer Sand ad quirir, de repente, uma nova dimensão. Quando pintou esses quadros, as localida des estavam num país distante, que Theodor Fontane conhecia melhor do que nós, na República Federal Alemã. E, de repente, transforma-se numa realidade de fato. KIEFER - Para mim, não. O desenvolvimento político das últimas se manas me surpreendeu, mas os quadros não adquirem, por isto, outra dimensão, porque não se trata de Mark Brandenburg. Nomes de lugares e palavras formam uma espécie de halo, como o da lua. Existe uma conotação específica, materialmen te não fixável, entre o nome e aquilo que o nome representa. Nunca pensei em re tratar os territórios do leste. ART - Que importância, em geral, têm os dizeres em seus quadros? KIEFER - Muitas vezes servem para confundir o espectador. Existia nos anos 60 e 70 muita lírica sentimental, literatura e também arte de sentimento. Nada disso me interessa. Os quadros não estão aí para modificar algo no sentido social. Podem fazê-lo, às vezes, mas não é programado. O engajamento do artista deve concentrar-se no trabalho preciso e contínuo, até o término exato da obra. Por este motivo sempre me recusei a fornecer uma direção de leitura. ART - Mas, entre o auxílio da interpretação recusado e um desvio proposital, há uma diferença enorme. KIEFER - Há necessidade de enganar, pois uma parte dos quadros tem uma interpretação perigosa. Alguém que se declara super impressionado necessita de uma ducha fria. Ninguém deve se excitar pelas cores lindas, pela estrutura boni ta ou por um belo plano. O quadro em que trabalho será a minha contrapartida, o que me pergunta algo. Às vezes escrevo lá o que penso. Ou o contrário. Acho que um título como Deutschlands Geisteshelden (Os Heróis Espirituais da Alema nha) é um absurdo. Só a palavra “ heróis espirituais” é tão ridícula que não podia ter sido levada a sério... ART - Mas foi tomado ao pé da letra, de modo inesperado, e produ ziu mal-entendidos. KIEFER - É verdade, fui atacado uma vez por causa das pesadas Eichenholzraume (halls de madeira de carvalho) em um quadro. Quando esclarecí
Kiefer: Pintar C o m o Feito H eróico
March Sand, 1977.
25 imagens fotográficas em página dupla com areia, óleo e cola montado em cartolina, 62 x 42 x 8,5 cm. Coleção Andrew Saul, New York.
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que se tratava de outra qualidade de madeira, aí me levaram mesmo a mal. Então alguém puxou pela cabeça em vez de olhar direto. A cabeça também é importan te. Não sou um pintor que pinta visceralmente. ART - Dizem que três colegas mais velhos foram importantes para o seu desenvolvimento: Joseph Beuys, temporariamente seu professor, Marcei Duchamp, o grande precursor da Avant-Garde, e, estranhamente, também Andy Warhol. KIEFER - Penso que Warhol bate na mesma tecla que eu no que se refere a uma arte diferenciada. Também ele principia por coisas externas, vulgares, e descreve uma pele absolutamente fina. Quanto ao meu plano de cobertura, dele só se deveria falar de uma pele monomolecular... ART - No seu caso deve-se pensar em couro de elefante, tão folhea das são as suas velaturas. KIEFER - O plano de Warhol é uma folha no que diz respeito à mate rialização. Mas ele é um artista que sempre me preocupou, assim como outros pin tores pop. Quando a velatura se torna extrema, transforma-se no contrário dela mesma, de acordo com as leis da dialética. Assim, um pintor pesado como Emil Nolde pode ser leve em seu peso. Ou Matisse. Parece até contraditório. Sua obra é tão bonita que parece sem fundo. Assim vejo Warhol. ART - Warhol foi uma espécie de sábio, seguidor dos ensinamentos de Marcei Duchamp. Duchamp o induz a evitar as provocações da retina? KIEFER - Não, não as evito. Meus quadros são totalmente compreen síveis pelos sentidos. O que me fascina em Warhol é a idéia do desmoronamento de um muro entre o objeto artístico e a realidade. Isto é uma realização intelectual que me anima. ART - Mas não leva a experiências de sentido. KIEFER - Eu sei. Mas somente a experiência dos sentidos é algo mui to desbotado. Procuro a integridade. ART - O senhor acha os componentes dos sentidos importantes... KIEFER - Dentro disto existe, para mim, a totalidade do homem e também de sua obra. ART - Segundo a avaliação de Joseph Beuys, o caminho era o de uma escultura com uma influência social direta. Este também é o seu caminho? KIEFER - Este não foi o caminho dele. Ele não se tornou deputado federal, apesar de o desejar, e a organização para a democracia direta está em Appenzell. Mas por isso, justamente por isso, o que ele produziu, influencia e modifi ca o pensamento. Se fosse possível transpor em pensamento o caminho da teoria vulgar de Appenzell para a sala de Beuys na coleção Crex de Schaffhausen, então estaríamos no centro da cratera. “ Só quem ainda sabe a palavra na ponte dourada para a ninfa Karfunkel, será o vencedor, só que derreteu com a última neve sobre o jardim no ano passado . Falamos há pouco sobre o quadro Markischer Sand. Como se transformou numa bela idéia, trivial e sentimental, de colar a areia da pro víncia de Mark? (o Papa leva um saquinho de terra da Polônia em seu bolso). De
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ve ter acontecido algo que nada tem a ver com o meu ponto de partida. ART - O ponto central de seu trabalho está em seu atelier. Ele perma nece hoje intimamente ligado à sua pessoa? KIEFER - É inevitável, naturalmente, assim como cada homem tem sua língua. Mas eu não digo: fiz isto ou produzi isto do nada. Não se pode separar o trabalho de mim, mas, ao mesmo tempo, é um enigma. O quadro é, por um la do, uma coisa preciosa, porque trabalho nele longamente até mostrar seus porme nores - e, se ele prestar, será um tanto enigmático. Não é compreensível de imediato, nem para mim. Quando o ponto de partida está certo, o impossível acontece. É impossível produzir quadros, pois já existem tantos! Também é impossível encontrar um sentido. O que fazemos? Acreditamos que tenha sentido. E isto é uma ação heróica. Não uma ação de gênio - não acredito nesta expressão -, mas uma ação heróica. ART - Quando considera um quadro concluído? KIEFER - Nunca. Ou sempre, quando um ser humano o viu. Então se forma, para o homem, um quadro pelo qual sou em parte responsável. Os dra mas de Shakespeare estão prontos? Não. De vez em quando, os quadros dormem por 50 ou 100 anos, e então são vistos novamente. E aparecem complemente dife rentes. Ainda tenho comigo quadros iniciados nos anos 70. Ficam nos containers e depois os esqueço. Então os descubro novamente. ART - O senhor lamenta quando um quadro deixa o atelier? KIEFER - Não, pois desejo que seja visto. Não o faço para mim. Ca da obra tem a ver com o sentimento, o pensamento e o desejo. Quando os três es tão equilibrados, sai uma coisa boa. Depois tenho que cortar o cordão umbilical, o que acontece muitas vezes de forma natural. ART - O senhor trabalha sempre paralelamente em diversos quadros. Como mantém o controle quando cada obra pertence a ciclos de temas diferentes? KIEFER - Já lhe disse: depois de um certo tempo, vêm as telas que não me dizem mais nada, esgotadas, dentro de um Container no pátio. Aí trabalham por si mesmas. Isto ajuda. ART - Os quadros estão todos em cima de carros. O senhor anda pe los galpões à noite e mexe nos quadros? KIEFER - Gostaria que se movimentassem sozinhos de noite, e em parte já o consegui. Às vezes, de manhã, estão em outros lugares e surgem novas conjecturas. Se eu me concentrasse hoje numa tela, três semanas na próxima, aca baria uma produção linear. ART - E o senhor não se confunde? KIEFER - É, naturalmente, um perigo. Quando não presto atenção, o caos toma conta do atelier. Mas o outro perigo também é grande, pois a ordem pode predominar. ART - O término puro, artificial, de uma composição é uma solução para o senhor?
Osíris e fsis, 1985/87.
Óleo, acrílico e emulsão s/tela (em duas partes) com ferro, porcelana, chumbo, fio de cobra e placas de circuito impresso, 380 x 560 cm Museu de Arte Moderna de São Francisco.
KIEFER - Eu podería produzir quadros às centenas, pois, a partir de um certo tempo, dispomos dos meios clássicos. ART - Isto deve ser evitado. KIEFER - Justamente numa época de grande procura por objetos de arte é tentador produzir uma obra após a outra. A procura se dirige unicamente aos objetos. Não há procura pelo sentido ou pela idéia. ART - Ao vender seus quadros, o senhor se interessa em fazê-los che gar o mais possível a lugares públicos, onde possam ser vistos. Os museus alemães só adquiriram suas obras lentamente e o senhor se esforçou inutilmente para evi tar a transferência do quadro Deutschlands Geistesheldern da coleção Hahn para a América. KIEFER - Sim, pois era uma questão econômica para o colecionador. Mas não acho mais importante o fato de uma obra estar na Alemanha ou na Améri ca. No meu entender, o mundo ficou menor e assim'não é mais importante onde ficou a obra. Talvez retornemos a quadros como o Evangeliar de Henrique, o Leão. ART - Há poucos anos, na Alemanha, o senhor foi acusado de mani pular Mythen Recycling, Wende-Malerei e Erntedankfest-Kitsch. Além disso, acusamno de apresentar mais uma vez Das groba Naturhistorien und Mythen-theater der Romantik (O Grande Teatro Natural-Histórico e Mítico do Romantismo). O senhor se sente incompreendido? KIEFER - Comecemos pelo romantismo: é um procedimento espiritual-intelectual, não tem nada a ver com endeusamento de mitos. O romantismo
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é quase uma filosofia. Romantismo não é Bingen no Reno, mas um sistema preci so - mais parecido com a física de toque, da dissolução de objetos compactos em movimento, num ambiente vazio. Assim chegamos novamente ao início da nossa entrevista, quando mencionamos o buraco ou a cratera. Chegamos à expressão “segredos” de Novalis. ART - Uma certa fluência no iluminismo pretendeu jogar os mitos no lixo da História... KIEFER - O silêncio dos mitos, que significam muito para o ser do homem na História, não é um iluminismo, mas um iluminismo minucioso. Quan do se lê o Gilgamesch-Epos ou a Kalcvala, torna-se tão presente e atual que não pode ser trabalhado só em uma vida. ART - Também não se deve arquivar. KIEFER - Não é possível arquivar, como se fosse parte de um docu mento, ou um casaco que espera o inverno. Todos os que afirmam que os mitos são desnecessários, ou não deveríam existir, cometem um grande erro de avaliação. Pensam que os Nazis devem desaparecer porque usaram os mitos, e os manipula ram. Isto está errado. É a mesma coisa que o credo errôneo de demolir prédios pa ra derrubar o fascismo. ART - Os mitos foram utilizados pelos Nazis... KIEFER - Sim, como faz hoje a Werbung, que maneja de forma mali ciosa os mitos. Seus adversários pretendem eliminá-los, sem saber que a eliminação provocaria uma presença perigosa de modo subterrâneo. O mesmo vale também para um pensamento palpável, intelectual e sub-liminar, quando acredita que o afas tamento de livros como Gilgamesch ou Edda levaria a algo concreto. ART - Nos Estados Unidos o senhor foi saudado pelos críticos co mo our Kiefer. Isto influenciou o seu “ lado” americano? KIEFER - Não tenho ainda uma concepção da América, a não ser de algumas cidades; do país, não. Mas uma coisa chama a atenção: 95% dos coleciona dores americanos, que possuem obras minhas, são judeus. Isto, naturalmente, é um aspecto da América, e muito importante. ART - Com o o senhor reage à supremacia dos clientes americanos? KIEFER - A euforia diminuiu, felizmente, pois já me sentia sepulta do como um Old Master. Já existem vozes contra, e uma discussão verdadeira sem pre é positiva. ART - O senhor vive aqui em Buchen, muito retirado, não compare ce às vernissages, evita fotógrafos e repórteres. Esta sua posição seria um imperati vo moral: assim deveria viver um artista? KIEFER - Nada tenho a ver com moral. Buchen é uma localidade neu tra onde se pode trabalhar. Às vezes vou às vernissages, se não forem tão monóto nas. Prefiro ler algo sobre minha arte, em vez de falar sobre a mesma, e desejo que se olhe para os meus quadros, não para mim.
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ART - Numa discussão sobre a História, o indivíduo parece ser insig nificante para o senhor: nada de quadros com personagens dominantes, nem endeusamento das vitrines. O senhor excluiu propositadamente o indivíduo? O poe ta solitário só aparece no coletivo do herói espiritual. KIEFER - O indivíduo único é um grão de areia ao redor do qual se forma a pérola. O grão de areia não é mais visível, somente a pérola. ART - O senhor se refere a Holderlin e a seu círculo? KIEFER - Não me refiro só a Holderlin e a seu círculo de amigos, mas aos anéis que se formam ao longo da História ao redor de Holderlin - anéis de entendimentos e de desentendimentos. ART - Existe uma relação disso com as várias camadas das quais sur gem os seus quadros? O senhor disse uma vez: “ Meus quadros crescem em sedi mentos. Estas camadas estão em mim” . Como se pode entender a segunda parte da frase? KIEFER - Também sou sedimento. Tenho cerca de 2.000 anos. E is to corresponde, ao longo dos anos, às camadas dos sedimentos das histórias huma nas e da terra, que surgem durante o processo de produção numa tela. Mímesis no sentido transposto. Dois tempos correspondem entre si: o “ pequeno” tempo humano individual e o “ grande” tempo universal. É uma relação osmótica na qual a tela é a membrana. ART - Mas o senhor não “ se aproxima” para demonstrar cada coisa, cada indivíduo? Será ceticismo? KIEFER - Sempre me opus à “ expressão de gênio” do século 19, que cresceu muito na era do progresso, quando a burguesia precisou dela, no começo da industrialização, para demonstrar e personificar o sonho da possibilidade infini ta do desenvolvimento. Sempre recusei o individual como auxílio para os investi mentos sociais. Também achei sempre insuficiente, na história alemã mais recente, concentrar toda a problemática em Hitler. É muito mais, não somente Hitler. ART - O senhor pensa da mesma forma acerca de Gorbachev, que movimentou o mundo ultimamente? KIEFER - Gorbachev está numa outra posição em relação a Alexan dre, o Grande, visível como o grão de areia ao redor do qual começa a se formar a pérola. Aqui estamos no momento vivido, não ainda nas camadas. Naturalmente não existe somente um Gorbachev que o provoca, mas ele é um volume, e visto pelo ângulo do Velho Testamento, um profeta, através do qual tudo passa. E po de, talvez, surgir uma outra forma diferente do volume. Gorbachev o sabe, pois ele é um artista. Recorda-se do início da nossa entrevista? ART - Aí estava a cratera. KIEFER - Sim, e lá estava o intervalo, por exemplo: entre a Alp de Appenzell e o salão de Schaffhausen. Pense sempre no intervalo. Deixe sempre em branco umas linhas no seu caderno. Esta entrevista foi publicada na revista ART - n° . l , janeiro 1990.
REVISTA GAVEA N2 8 - ERRATA
Folha de rosto: onde está Goerd leia-se Gerd. Pág. 43: TITO MARQUES PALMEIRO graduado em Engenharia pela UFRJ, formado pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC/RJ e aluno do Mestrado em Filosofia da PUC/RJ. Pág. 61: título: onde está “Escorço do Horizonte Cultural” leia-se “Introdução à Leitura de Winckelmann”. Pág. 81: GERD A. BORNHEIM é professor do Departamento de Filosofia do INFCS da UFRJ e professor convidado do curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC/ RJ. Pág. 117: a legenda não corresponde à ilustração. Pág. 119: a legenda corresponde à ilustração da pág. 117. Pág. 122: a legenda corresponde à ilustração da pág. 119. Onde está “cobra” leia-se “cobre”. Pág. 122: a legenda correspondente à ilustração desta página é “Avião com Asas de Chumbo, Carregado de Livros, Papoulas e Cabelos de Mulher”. Galeria Maénz de Colônia.
O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação latu sensu, foi formado há dez anos. O curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira aprendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar. Coordenador Acadêmico: Margareth da Silva Pereira Professores Ana Maria Monteiro de Carvalho Antonio Abranches Antonio Edmilson M. Rodrigues Carlos Zilio Fernando Cocchiarale Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Margareth da Silva Pereira Paulo Sérgio Duarte Ronaldo Brito
Apoio: Fundação dc Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ. Programa de Apoio à Publicações Científicas do CNPQ/FINF.P.
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