Revista de História da Arte e Arquitetura
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Revista de História da Arte e Arquitetura
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Racionalismo: Um Conceito Filêlofico na Arquitetura
CORRESPONDÊNCIA: Editor Responsável, Revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de Sáo Vicente, 225 sl. 515-F CEP 22453, Rio de Janeiro, Brasil
CORRESPONDÊNCIA: Editor Responsável, Revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de Sáo Vicente, 225 sl. 515-F CEP 22453, Rio de Janeiro, Brasil
ISSN 0103- 1996
R ev ista Sem estral do C u rso d e Especialização em H istória da Arte e A rquitetura no Brasil P on tifícia U niversid ade C atólica do Rio de Janeiro C en tro de C iências So ciais D epartam ento de H istória C oord enação d e C ursos de Extensão Dezembro de 1991
Editor Responsável: Carlos Zilio Editor Adjunto: Margareth da Silva Pereira Editor Assistente: Vanda Mangia Klabin Secretárias da Redação: Sonia Santos Silva Laureano Margaret O'Neill Ferrario Conselho Editorial: Carlos Zilio Eduardo Jardim de Moraes Jorge Czajkowski Katia Muricy Margarida de Souza Neves Margareth da Silva Pereira Maria Cristina Burlamaqui Ricardo Benzaquem de Araújo Ronaldo Brito Vanda Mangia Klabin
GÁVEA. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, Rio n.g, ago. 1991. Revista semestral. 1. Arte - Histórica. L PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA, Rio. CDU 7 (091)
L U IZ C A M ILLO O SÓ R IO DE ALM EIDA
A Estética Romântica e Joseph Beuys 4 A N N A T E R E SA FA BRIS
A Parábola do Semeador 14 JO Ã O M A SA O KA M ITA
Mira Schendel: O Desafio do Visível 30 C E C ÍL IA C O TRIM M A R T IN S DE M ELLO
Goeldi e Iberê: Romantismo e Atualidade 38 D A V ID CURY
Reverso Ser no Contemporâneo (arte conceituai, body art, land art) 48 L U IZ CO STA LIM A
O Controle do Imaginário e a Literatura Comparada 62 E L IA N N E A N D RÉA C A N E T T I JOBIM
O Risco e o Olhar: Sobre a Imagem da Cidade do Rio de Janeiro 74 A L A N C O LQ U H O U N
Racionalismo: Um Conceito Filosófico na Arquitetura 90
L U IZ C A M IL L O O S O R IO DE A L M E ID A
A Estética Romântica e Joseph Beuys
A intenção deste artigo (1) é a de enxergar no romantismo o ato inaugural da estética moderna, avaliando suas redefinições sobre o conceito de arte e de artista. Num segundo momento irei propor a conlemporaneidnde do ideário romântico uma vez que na obra de Joseph Beuys percebe-se a presença de suas irradiações poéticas.
I A modernidade surge com o processo de racionalização das visões de mundo tradicionais, que se justificavam pelos mitos e pela religião, e que passam a se reestruturar segundo normas deliberadas racionalmente. De acordo com Max Weber, a partir daí constituem-se três esferas axiológicas autônomas: a ciência, a moral e a arte. Cada uma desenvolvendo um corpo discursivo próprio, com instituição independente e critérios específicos de validade: verdade para a ciência, direito normativo para a moral, e autencidade e beleza para a arte. As obras de arte passam a ser produzidas para o mercado e intermediadas por ele, transformando-se em objetos estéticos. Cabe observar "que a fruição estética certamente não esperou a arte moderna, mas foi aí que ela conquistou seu título de princípio e suas intensidades brutas". (2) Os museus vieram institucionalizar o julgamento leigo sobre a arte. A discussão tornava-se um meio para a sua significação e apropriação. O que até então mantinha sua autoridade através da não-verbalização, é agora amplamente discutido, verbalizado. Seria até correto acres centar que o pleno desvelamento da potência estética de uma obra, muitas vezes pressupõe este contexto de esclarecimento dialógico, comunicativo. Como observou Kenneth Baker (3), a beleza nas obras de arte é irradiada com a energia de nossa atenção, e pode ser modulada e intensificada pelo que dizemos ou imaginamos dizer aos outros a seu respeito. É a profanação daquele caráter outrora sagrado que apreendia imediatamente o absoluto. A percepção incorpora assim a dimensão heideggeriana do sentir estético, que traz em si uma forma de pensamento. É de certa maneira aceito que a matriz filosófica donde germinariam as teorias românticas é o criticismo kantiano. As duas principais postulações teóricas do romantismo, reconhecidamente beberam da fonte kantiana, ou melhor, partiram dela: Fichte e Schelling. Não cabe aqui discorrer sobre essas duas doutrinas, mas o que se Joseph Beuys, Performance "I like America and America likes me" René Block Gallery New York, Maio, 1974
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resgataria - direcionando para os interesses deste artigo - seria em Fichte uma tentativa de legitimar os princípios de originalidade e entusiasmo concernentes ao caráter do sujeito, e em Schelling a idéia de uma natureza como individualidade orgânica, oposta assim à concepção mecanicista do modelo clássico. Sobressai desta filosofia idealista um anseio de conjugar liberdade (espírito) e natureza (sentimento), que implicou numa valorização da vontade como a faculdade legisladora. A intuição seria o canal privilegia do que ligaria espontaneamente o artista à natureza. A plasmação deste anelo de unidade realizar-se-ia na obra de arte. Jamais na tradição ocidental se atribuiu à arte tamanha credibilidade. O que a filosofia nos ensinava abstratamente, a arte realizava numa dimensão mundana; ela era a idéia encarnada no sen sív el. A arte deveria contraporse ao encolhimento espiritual representado pela racionalidade conceituai: pretendia, voluntariosamente, reconciliar espírito e vida. Pela primeira vez a arte era valorizada por suas próprias qualidades e méritos - ad maiorem artis gloriam. Nas palavras de Schlegel, apreende-se nitidamente este sentido: "O ideá rio antigo era a concordância e o equilíbrio perfeitos de todas as forças; a harmonia natural. Os novos porém - nós os românticos - adquirimos a consciência da fragmentação interna, que torna impossível esse ideal. Por isso a poesia espera reconciliar os dois mundos em que nos sentimos divididos - o espiritual e o sensível - e com todas as pluralidades que isto implica." (4) Era um anseio irrefreável da renovação espiritual, que combinava nos homens uma mescla de entusiasmo e torpor que dava vazão, como chamou a atenção Anatol Rosenfeld "a violentas oscilações de temperamento, que derrubaria, com paixão e exaltação, todos os cânones e padrões estilísticos que cercavam o estro classicista, instaurando uma nova forma, descerrada, fundamento da moderna estética do informe". (5) Vejamos agora as três principais reformulações que despontam do uni ver so poético romântico: que são o gênio, a ironia e a imaginação produtiva. Iniciemos com as considerações acerca da teoria do gênio artístico, conce bida por Kant na sua Crítica do Juízo e cerne do ideário estético romântico. Constata-se tanto um corte em relação à tradição clássica, como também o início da conceituação moderna de artista. Para Kant, as obras de arte da antiguidade não serviriam de modelos irretocáveis. Elas apenas estimulariam no artista uma força criadora, sem prescrever um conjunto de regras que orientassem sua empresa. O belo artístico seria incompatível a qualquer receituário fixo; cada artista teria um caminho próprio, único, de dar forma ao belo. É importante salientar que a liberdade necessária à criação não significa a aprova ção de todo capricho descontrolado, arbitrário. Não é gratuita e incondicional porque depende do gosto, inconcebível sem oqueK antcham adelegalidadelivredaim aginação. Esta imaginação é livre, porém atrelada a uma ordem exem plar que provém da natureza - "uma disposição inata do espirito pela qual a natureza dá suas regras à arte". (6) O entico, por seu lado, estaria desautorizado a impor padrões, pautando o juízo. A este caberia estimular a sensibilidade estética, conservar seu poder receptivo. No parágrafo 46 de sua Crítica do Juízo, Kant discorre sobre as quatro qualidades inerentes ao gênio artístico, que são extremamente valorizadas pelos rom ân ticos, a saber: a originalidade, o exemplarismo, o entusiasmo e um acordo secreto com as intenções da natureza. É curiosa a conciliação das duas primeiras características, originalidade e exemplarismo, que são aparentemente contraditórias. Apesar de Kant
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contrapor radicalmente a genialidade à imitação, ele afirma que a recepção da obra original deve abrir novas possibilidades de significação, que devem ser apreendidas sem a repetição e a confirmação do já apreendido. Assim, à obra do gênio é inimitável, mas exemplar. Talvez uma maneira possível de pensar esta relação do original com o exemplar seja tomando a idéia de que a criação do gênio é metafórica, onde a metáfora é um recurso para dizer algo novo, a partir de associações inexploradas de fenômenos ou objetos já conhecidos. A metáfora seria a possibilidade de atrelar à matéria sensível um significado mais grave, inicialmente invisível. A criação de metáforas, para alcançar este significado alargado e poético, requer sensibilidade e atenção do espectador para viabilizar seu pleno des velamento. Como dissemos, sensibilidade aqui já incorpora algo do pensar, do diálogo interior consigo mesmo, visando a apreensão dos aspectos da obra que não são materialmente explícitos. Esta fruição reflexiva, ativa, é tipicamente român tica, moderna. Prosseguindo na compreensão das características do gênio artístico, vale dizer que a tal sintonia do artista com a natureza exigiu dos românticos uma transfor mação no que tange à relação entre corpo e espírito. Pode-se dizer que na poética romântica o corpo começa a falar, e a "linguagem que fala é a linguagem dos sonhos, dos símbolos e das metáforas, numa estranha aliança do sagrado com o profano e do sublime com o obsceno". (7) Fica evidente que o horizonte de expectativa do movimento romântico ultrapassava os domínios da estética, reclamando um novo modo de pensar, de sentir e de viver. Este espírito transgressor entranha-se no âmago das poéticas vindouras, incorporando inclusive - como será visto no dadaísmo e no surrealismo - a problemática ambição de fundir arte e vida. Schlegel, num de seus escritos programáti cos, buscava esta fusão através da ação conflituosa, porém convergente, da imaginação e da ironia. A ironia como dizia Thomas Mann é um problema profundo e fascinante. Ela será aqui compreendida como uma reação frente a fragmentação da subjetividade moderna. Aquele mesmo espírito que desejava conhecer, apreender a totalidade do universo, tinha consciência da impossibilidade desta empresa. Desesperadamente o artista romântico tentava conciliar o primitivo e o sofisticado, o religioso e o crítico. O conflito desses polos antagônicos formou uma personalidade oblíqua e cindida, donde derivaria a "versatilidade infinita do intelecto culto" (Novalis). Já para Schlegel, a ironia seria a consciência clara da eterna agilidade, do caos infinitamente puro. Era a forma do paradoxal. Daqui já se pode aventar que a ironia dava ao artista um distanciamento necessário para a destilação de seu espírito crítico, que se virava tanto para a sociedade quanto para os domínios da própria linguagem artística. Seria interessante notar que a ironia ao longo da história apresentou-se como um recurso da retórica, portanto, sendo essencialmente do âmbito da política. O romantismo, quando apropria-se da ironia na fundamentação de sua poética, aponta para uma ambiguidade, recorrente na modernidade, da arte afirmar sua autonomia e ao mesmo tempo confessar seu engajamento político - o surrealismo seria o exemplo mais claro dessa ambiguidade. Uma argumentação cabível para a absorção da ironia pelo artista romântico/moderno, seria o da conscientização de uma dissonância entre a obra e o valor da arte. Cabia ao artista uma tomada de posição em sua obra frente às pressões externas do sistema institucional da arte. Quando não feducionista, me parece legítima
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eSsa preocupação política das poéticas modernas. É importante todavia, sabermos discenir o elemento engajado, do artístico. Uma reflexão que situe melhor esse imbricamento de ação (política) e fabricação (arte) é necessária para uma melhor compreensão da arte moderna. Isto posto, seria interessante notar na ironia uma acidez crítica que desestabilizava as convenções, iniciando a dilaceração dos valores tradicionais que culminaria na segunda metade do século XIX com as obras de Nietzsche e Kierkegaard. Os românticos perceberam que a linguagem artística deslegitimava-se como meio de discussão dos valores éticos/normativos da sociedade. Verifica-se, a partir daí, uma acentuada tendência para a experimentação com novas formas pictóricas, narrativas, musicais, contribuindo para a reversão da hierarquia tradicional entre forma e conteúdo. Nota-se, por conseguinte, muito mais como resultado do que como intenção desse "laboratório" romântico, uma valorização da forma - aparência - , que ao se revelar no mundo não quer ser atestada pelo que já é, pelo real; mas constituir algo de novo, de irrefutável, "cuja instauração é um excesso, uma oferta". (8) Abandonava-se a referência do já instituído, da realidade "lá fora", como parâmetro para a representação artística, recuperando, trazendo à tona, significações soterradas nas ruínas do passado, e especu lando sobre possibilidadesdo real. Ao aboliras amarras da ordem racional, dando panos à livre imaginação do gênio, o romantismo proclamava em alto e bom som ser a imaginação a suprema faculdade do artista: "a imaginação é a rainha do verdadeiro, e o possível é uma das esferas do verdadeiro. Positivamente ela é aparentada com o infinito". (9) A imaginação permitia estabelecer correspondências entre as coisas mais desconexas e desencontradas, buscando sempre significados originais. Novalis, já apontando para futuras experiências surrealistas, revelava poder mostrar todas as imagens, conjurar com a música da fantasia a afinidade química das coisas mais díspares. Percebe-se também forte ressonância deste tema das correspondências na obra de Baudelaire, e mais tarde em Joseph Beuys. Num de seus ensaios sobre os salões, Baudelaire sugere uma intercambialidade de som, cor, melodia e até mesmo de idéias. Parece-me razoável supor que concomitante a essa liberação da imagi nação, tenha se aberto uma possibilidade para o artista experimentar novas linguagens e técnicas de expressão. Também não se deve dissociar nenhum âmbito do sistema cultural daquele momento histórico em que o homem reivindicava, além da liberdade, seus direitos de cidadão. O entusiasmo revolucionário está para a história política assim como a liberdade e originalidade do gênio artístico estão para a história da arte. O homem afirmava-se enquanto sujeito da história. Feitas essas considerações, podemos entender melhor o novo estatuto assumido pela arte desde o romantismo. Ela deixava de ser uma duplicação da natureza, perdendo aquela dimensão ontológica sugerida pela noção de mímesis que se relaciona a uma determinada compreensão apriori do real. A arte adquiria uma imagem própria, que nos espanta e faz pensar na medida cm que expressa novas possibilidades de significação e visualização do mundo. O risco comunicativo, que muitas vezes veio a reboque nas realizações da arte moderna, não representa uma fraqueza que devemos superar, mas talvez o preço a pagar por esta arte original e autônoma que nos introduz novas perspecti vas ao invés de confirmar-nos em nossas próprias. A ntesdeterm inaresta primeira parte, deve ser ressaltado que não obstante as diferentes concepções artísticas
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e distinções quanto ao estatuto da arte clássica e moderna, não se pretendeu neste artigo proferir juízos de valor no que tange a qualidade das obras de arte; não implicando tampouco no rompimento dos vasos comunicantes entre as obras do passado e do presente: a motivação poética acompanha, inabalável, a existência do homem no mundo.
II Analisada nesta primeira parte o romantismo e sua significação para a formação da estética moderna, preocupar-me-ei nesta segunda parte com a obra de um artista atual, Joseph Beuys (10), de forma a sustentara afirmação, tomada emprestada de Antonio Cândido, de que o romantismo ainda é nosso contemporâneo. Antes de iniciar as avaliações sobre Beuys, cabe observar o risco desses saltos pela história que muitas vezes inviabilizam uma compreensão mais abrangente, na medida em que cortam o fio que liga as transformações históricas às da sensibilidade e da percepção. Para qualquer reflexão sobre a arte contemporânea é inevitável a passagem por dois artistas que se situam neste intervalo inabordado pelo artigo: são eles Cézanne e Duchamp. As relações entre pintura e realidade e entre a arte e seu objeto são problematizadas de forma definitiva nestes dois momentos cruciais para a constituição da razão estética moderna. Feitas essa observações, passemos à análise da obra de Joseph Beuys. Em muitas opiniões, ele é o mais polêmico e fascinante artista das últimas décadas. Como um tardio representante da tradição idealista alemã, Beuys canaliza a evidência pública do artista para a transformação dos valores de sua época. Destacaria como uma das possíveis interpretações do significado de sua obra, uma preocupação em apontar como central na crise da arte contemporânea a incompatibilidade entre valores estéticos e os valores dominantes de uma sociedade utilitarista. Seria interessante, para caracterizara poética de Beuys, utilizarmos o argumento de C. C. Argan (11) que nos diz ser mera questão de princípio afirmar como estético tudo aquilo que se diferencia do modo de experiência inestético e alienante que nos impinge o sistema. Como os românticos, Beuys enxergava na arte um meio de formação e educação do ser humano, atribuindo a ela um papel de reconciliação do homem com o mundo. Reconciliação não implica em conformação nem em passividade, mas decorre de uma das premissas básicas da condição humana: a mundanidade. Os materiais básicos de suas esculturas - gordura e feltro (12) - carregam energia e expressividade, cobrindo-as de estranheza impressionante. Suas esculturas são criadas de forma a transmitir um significado das energias que dão direção e sentido à vida. Entretanto, Beuys ressalta que suas esculturas questionam mais que respondem. A força de sua obra e o espírito que a fomenta, permitem compreendê-la como uma tentativa de recuperar algumas premissas essenciais da estética romântica, principalmente no que concerne seu caráter formativo que dota a arte de uma dignidade espiritual comparável a da religião e da filosofia. Ao explorar o misticismo e a mitologia, Beuys enfatiza que uma com preensão meramente racional é insuficiente para a fruição da arte: "Se a arte fosse simplesmente intelectual, melhor seria se sua expressão se desse através de equações
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lógicas, implicando no abandono das cores e form as. O homem todavia, confronta-se com diversos campos de força contidos na experiência: a percepção visual, olfativa, tátil, e os sentidos de equilíbrio e tem peratura". (13) Percebe-se aqui afinidades evidentes com as reflexões de Novalis m encionadas acima, no qu e tange à correspondência entre as afecções sensitivas e a consciência. O fato de seus trabalhos serem essencial mente metafór diretam ente àquela sugestão anterior que associava a criação do gênio a de metáforas. Beuys insistia na intenção de incitar uma reflexão sobre o papel da escultura, e assim optava por uma posição extrem ada frente aos códigos estéticos, utilizando um material básico para a vida e estranho à arte: a gordura anim al. Ele exploràva a passagem da gordura de seu estado fluido, caótico, para o estado enrijecido, cristalizado. A harmonia destes dois polos, o caótico e o ordenado, sim bolizava uma interação essendal do homem com a natureza. Numa ocasião, em 1974, Beuys realizou a mais ousada de suas metáforas, e a mais delirantem ente germ ânica também. Foi uma performance numa galeria novaiorkina entitulada "I like Am erica and Am erica likes m e". Ele trancafiou-secomum Josep h B eu y s, P erfo rm an ce " I lik e A m e rica and A m erica lik e s M e" René B lo ck G a llery New Y o rk , M aio , 1974
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A Estética Romântica e Joseph Beuys
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coiote numa sala. Além dele e do animal, via-se uma bengala, luvas, um cobertor, feltro, e exemplares do Wall Street Journal. Seu significado surgia da história americana; dialogavam o passado e o presente. Era resgatado um trauma - o índio e seus mitos (o coiote era a principal deidade em certos cultos indígenas) - e confrontado com a onipotência dos valores consagrados da economia capitalista (representada pelo W. S. Journal). É possível associar esta performace com a conhecida frase de Nietzsche: "Para que se possa construir um santuário, é preciso que um santuário seja destruído." Romântico, demasiadamente romântico. É notável como Beuys funde idéia e matéria, que sem cessar se destroem e sem cessar se renovam. Este processo de renovação, de descarga de energia, de entusiasmo enfim, está no núcleo de sua poética. Não me parece problemática a crítica feita contra Beuys, de que muitas vezes há dissonâ ncias entre o que o espectador a preende e o que ele concebe. O que deve ser focalizado é que entre o que o artista quis fazer e o que o espectador acredita ver, há uma realidade: a obra de arte. Sem ela é impossível a recriação do espectador, que é instigado a pensar e a criar significados, e assim converte-se ele próprio numa espécie de artista. Gostaria de compreender esta ampliação do ato criativo até o espectador, menos como uma desvalorização da figura singular do artista que produz a obra, e mais como uma ênfase na participação do fruidor e de suas capacidades criativas e imaginativas, no esforço de dar à obra significados, de arrancá-la de sua ocultação original. Numa de suas últimas instalações, apresentada em Londresem 1985, eram exploradas duas questões fundamentais que aparentemente nada têm em comum, a saber: a incomunicabilidade dos homens na modernidade, e o fato de que a radicalidade da arte situa-se em sua voz silenciosa - a idéia cria ti va. A galeria estava totalmente envolta por uma camada dupla de feltro, tendo um piano situado no centro com um quadro negro fechado e um termômetro. O espaço estava exageradamente abafado, isolado... sufocante. Entitulava-se "Plight". Palavra de duplo significado; por um lado é um enorme dilema, uma situação desconfortante, por outro uma expressão de confiança, uma promessa. Beuys quer exatamente avultar esta ambiguidade. Ele expõe nosso isolamento, a ausência de comunicação. O clima até sugere algumas aproximações com Beckett: solidão e desespero. Em contrapartida, o calor é um elemento positivo de expressão, de liberação de energia. A arte como uma possibilidade de abrirmos novos vasos comuni cantes. O que se destaca dessasobraséa honestidadedesuasintenções, sua seriedade e autencidade; daí seu exemplarismo, tão marcante na produção artística atual. Beuys deu profundidade à arte contemporânea revigorando sua dignidade espiri tual. Sua arte aberta e crítica, expandiu até o limite do ponderável o experimentalis mo do século XX, e revitalizou a arte alemã e européia após um longo e estéril pesadelo. Por sinal, o tema do trauma alemão do pós-guerra perpassa grande parte de sua obra, como num trabalho que apresenta um piano de cauda inteira, sem pernas, no chão, inutilizado por um envelope ajustado de feltro grosso, cinza, hermeticamente cosido. Este trabalho, outra de suas metáforas, diz respeito à grande tradição da música alemã de Beethoven, Schumann e Wagner..., que havia se silenciado com a trágica experiência dos campos de concentração. A expressão de sua perplexidade frente aos acontecimen tos radicais de sua época nos apresenta um mundo em que somos incapazes de reconciliação. Apesar da força contida nesta obra, há um evidente estranhamento do artista com o mundo. Aqui, o espírito romântico de Joseph Beuys encontra-se na
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negatividado temática e expressional que agride a contemplatividade reconfortante das Belas-Artes. O belo depois do rom antism o ganha uma complexidade interessante. Enfim, espero ter indicado com ajuda dos exemplos, a ascendência român tica de Joseph Beuys. Ele atualizou aquela poética surgida no bojo de uma crise de identidade do fazer estético, que rompia com os padrões de mensurabilidade tradirionais sem encontrar uma m edida fixa donde com preender-se. O estranhamento dessa ausência de medida fundam entou a diversidade da criação artística moderna. Ela vem se realizando exatam ente na busca de um sentido para essa arte que confunde o princípio de mudança com o de perm anência. A arte tem sido desde o romantismo algo proble mático, um resultado a alcançar, e não mais um objeto possuído econquistado. A incrível liberdade que assumiu a produção artística após o rom antism o veio acompanhada por uma interrogação de sinal contrário sobre o próprio lim ite desta experimentação. Beuys seria um exemplo paradigm ático desta tensão rom ântica na contemporaneidade. Para além disso, só me resta d estacar que a filiação rom ântica de Joseph Beuys revela-se na gratuidade de sua crença absoluta na arte: ad m aiorem artis gloriam.
Joseph B eu y s, In sta la ç ã o "P lig h t" A nthony d 'O ffa y G allery L ond res, O u tu b ro 1985
A Estética Romântica c Joseph Beuys
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NOTAS 1 - Este artigo diz respeito ao meu projeto de tese junto ao programa de mestrado do Departamento de Filosofia da PUC-RJ, sob a orientação do professor Eduardo Jardim de Moraes. Todavia, o argumento deste artigo relaciona-se a minha monografia de conclusão do curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, também na PUC- RJ, com a orientação do Prof. Antonio Abranches. 2 - AMEY, C. - "Experiência estética e agir comunicativo" in Novos Estudos, n° 29, São Paulo, Março 1991. 3 - BAKER, K. - "Um uso para o belo" in Revista Cávea, n° 2, PUC-RJ, 1985. 4 - SCHLEGEL - Preleções sobre Literatura e arte dramática apud Roman tismo e Classicismo in O Romantismo, Perspectiva, SP, 1978, pg. 273. 5 - ROSENFELD, A. - O Romantismo, op. cit. pag. 273. 6 - KANT, E. Critique of Judgement, Oxford Univ. Press, 1988, pag. 168. 7 - PAZ, O. - Os filhos do barro, Ed. Nova Fronteira, RJ, 1984, pag. 54. 8 - HE1DEGGER, M. - A Origem da obra de arte, Edições 70, Lisboa, 1989, pag. 60. 9 - BAUDELA1RE, C. - "O Salão de 1859" in A modernidade em Baudelaire, Paz e Terra edit., 1988, pag. 76. 10 - Joseph Beuys é um artista alemão nascido na cidade de Kleve em 12 de Maio de 1921 e falecido em 1986. Suas obras e performances artísticas principais concentram-se nas décadas de 60, 70, 80. 11 - ARGAN, G. C. - El Arte Moderno, Fernando Torres edit., Valência, 1984. 12 - Estes materiais estão intimamente relacionados a um fato de sua experiência de vida. Ao sofrer um acidente quando pilotava um avião durante a 2a guerra mundial, Beuys foi resgatado por camponeses da Crimeia, que o envolveram em camadas espessas de feltro e gordura, substâncias estas altamente regenerativas e curativas. 13 - TISDALL - Joseph Beuys, Thamcs & Hudson, Londres, 1979. Agradeço o auxílio de Antonio Abranches e Eduardo Jardim de Moraes.
Luiz Camillo Osorio de Almeida é Bacharel em Economia pela PUC-RJ, diplomado em História de Arte Moderna na Inglaterra, formado pelo Curso de Especialização em História da Artee Arquitetura no Brasil PUCRJ, aluno do Mestrado em Filosofia da PUC-RJ.
A N N A T E R E S A F A B R IS
A Parábola do Semeador
Em janeiro de 1890, o M ercurede France publica um artigo de autoria de A lbert Aurier intitulado "O s isolados: Vincent van Gogh". Era a primeira vez que aparecia um texto sobre o pintor holandês, cujas obras Aurier vira nas casas de Tanguy e de Theo. Numa linguagem eivada de metáforas simbolistas, em que im agens de ourivesaria se confundem com visões de pesadelo, Aurier fala de uma natureza "retorcida freneticamente, num paroxismo, transportada ao máximo da exacerbação", de uma obra caracterizada pelo excesso - "excesso de força, excesso de nervosism o" - e pela "violência da expressão". O artista que emerge das considerações de Aurier é uma "figura poderosa", definida por uma adjetivação peculiar, que não deixa de levar em conta e de dobrar aos intuitos da afirmação de uma nova visão artística a metáfora da doença, tão corriqueira naquela época. Van Gogh apresenta-se aos olhos do jovem crítico como uma figura "máscula, ousada, frequentemente brutal e, às vezes, ingenuamente delicada. Isso é revelado pelo exagero quase orgiástico de tudo o que pintou; é um fanático, um inimigo da sobriedade e da mesquinharia burguesas, uma espécie de gigante bêbado (...), um cérebro em ebulição que espalha sua lava livrem ente em todos os barrancos da arte, um gênio terrível, contristado, freqüentem ente sublime, por vezes grotesco, sempre beirando o patológico. Enfim, e sobretu do, é um hiperesteta com claros sintomas de quem, com uma intensidade anormal, talvez mesmo dolorosa, percebe as características imperceptíveis e secretas da linha e da forma, e mais ainda, aquelas cores, luzes e nuanças invisíveis aos olhos sadios, a mágica irisação das sombras. É por isso que o realismo desse neurótico, bem como sua sinceridade e sua verdade, é tão diferente do realismo, da sinceridade e da verdade desses grandes pequeno-burgueses da H olanda, que eram tão saudáveis de corpo e tão bem equilibrados de mente, que foram seus ancestrais e seus m estres". Apesar da distinção estabelecida, Aurier acaba por classificar van Gogh na "sublime linhagem de Frans Hals", por considerá-lo um "realista". Mas se trata de um realista que, à moda do artista vislumbrado por Zola, vê a natureza através de seu temperamento, que deforma e molda e realidade de modo a estabelecer Van Gogh, "Camponês sentado à mesa" (Estudo para Os comedores de batatas) Nuenen, março - abril 1885
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uma tensão entre objetivid ad e e subjetividade. (1) As reações d e van C ogh ao artigo podem ser seguidas através de sua correspondência, na qual se detectam oscilações, m as também afirmações de poéticaque deixam transparecer a visão que o artista tinha do próprio trabalho. Numa carta endereçada a Theo (1 d e fevereiro de 1890), d issocia sua pintura da análise de Aurier, remetendo a afirm ação do crítico à pintura im pressionista em geral, à qual estaria sendo indicada "a lacuna a preencher". A única in d icação que aceita individualmente é que aqui e acolá há coisas boas em seu trabalho "tã o im p erfeito ", pelo que é reconhecidoao crítico. A 12 de fevereiro, volta a abordar o artigo com Theo, afirmando que Aurier deveria aplicar sua análise a Gauguin e fazendo um a verdadeira profissão de fé pictórica: "o artigo d e A urier m e en corajaria, se eu ousasse me abandonar, arriscarme ainda mais a sair da realidad e e a fazer com a co r um a espécie de música de tons, assim com o são certos M onticelli. Mas a verdade é tão cara para mim, o procurar faw o verdadeiro também, enfim creio, creio que prefiro continuar sendo sapateiro do que ser m úsico com as cores. Em todo caso procurar perm anecer verdadeiro é talvez um remédio para com bater a doença qu e continua a m e inquietar sem p re". Na m esm a ocasião, envia atrav és do irm ão uma carta a Aurier, na qual mostra seu acanham ento perante os elogios recebid os: "(...) em seu artigo, reconheço m inhas telas, mas melhores do queelassão na realidade, mais ricas, m ais significativas. No en tan to, não me sinto bem quando penso que aquilo que o senhor diz, mais do que a m im , seria devido a outros". Estes "o u tro s" são M onticelli e G a u g u in , cujo cromatismo vanCoghexalta em detrim ento de sua própria contribuição, q u e considera “Instante secundária". Ao mesm o tempo resgata M eissonicr - a cujas "p eq u en a s infâm ias" Aurier se referira *,que considera igualm ente um colorista precioso. O im pacto do artigo é realmente muito grande em van C ogh porque o pintor continua a referir-se a ele em sua correspondência, numa carta à mãe (15 de fevereiro), fala dos "e x a g e ro s" do crítico e do sentimento que guia seu trabalho - fazer com o fazem os outros. É m ais explícito ainda numa carta à irmã (m eados de fevereiro) qua ndo aborda a questão da doença, que ta nto espaço ocupara nas considerações de Aurier:
impressionistas sãò1^ o8<lssim Ua^ V ? la 'U ° 830 m inhas' Pois' cm S craI' os artistas pouco neuróticos Isso n r
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Pintura, diga-lhe com in s ^ s t^ • ^ ^ Pafa n5° escrcv cr mais artigos sobre minha deP°is que me sinto re a liJÍT ?3 j UC/ P rirnciro lugar, se engana a meu respeito* enfrentara publicidade e dL'maSÍad° Perturbado pelo desgosto para pod« Fazer quadros distrai-me, mas ouvir falar nisso causa-me ais dcsgosl° do que ele imagina". (2) .. . psicoComo explicar as razões de tal atitude? Enveredando pelo Vl * j eUin logia para perceber na humildade do pintor "os signos invertidos do orgu ' ^ narcisismo absoluto com remoções exibicionistas"? Ou atribuindo, como Jea
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a condu ta a uma "intransigência consciente da arte e de seu papel na sociedade moderna, onde a crítica é freqüentemente desviadora e o sucesso falso" (3)? A resposta não é simples nem linear. Torna-se necessário buscá-la na atormentada relação de van Gogh com o fazer pintura, da qual as reações ao artigo de Aurier fornecem uma série de pistas. Se o crítico tinha razão em sublinhar o caráter peculiar do trabalho de van Gogh, o pintor não podia aceitar a unicidade de linguagem, o "isolamento" ao qual Aurier o expunha, porque se sentia e queria sentir-se parte da história da arte e da arte de seu tempo. Não é por acaso que sua correspondência - elemento tão fundamental para compreender sua trajetória quanto a própria obra - é pontuada por referências freqüentes a outros pintores. Através deles, Vincent não expressa apenas o seu gosto, mas suas mais profundas concepções de arte, que se tornam verdadeiras projeções quando se trata de figuras determinantes como Millet, Monticelli, Delacroix, Hals e Rembrandt. O desejo de fazer parte de uma história, de não ser um isolado é clara mente explicitado numa carta que deve datar de agosto de 1888. Ao mesmo tempo em que concorda com o argumento de Theo - a necessidade de seguir o próprio caminho, de trabalhar para si -, não pode deixar de anotar seu desejo mais profundo: "fazer coisas que a geração anterior: Delacroix, Millet, Rousseau, Diaz, Monticelli, Isabey, Decamps, Dupré, Jongkind, Ziem, Israéis, Meunier, muitos outros, Corot, Jacque, etc. poderia compreender". A frase seguinte da carta é uma verdadeira chave de acesso à sua concepção de pintura, à vontade profunda que guia sua pesquisa: "Ah! Manet esteve muito perto, e Courbet também, de casar a forma com a cor". (4) A forma, que van Gogh chama freqüentemente de figura, e a cor são os dois elementos que busca pertinazmente ao longo de sua vida de pintor. Se, a princípio, a primeira prevalece graças a uma paleta surda, monocromática, a visão da pintura holandesa e flamenga, a viagem a Paris em 1886 e o contato com os impressionistas o levam a exacerbar o que, até aquele momento, ficara em segundo plano, tentando chegar a uma síntese na qual a realidade é refeita através da cor. Nesse percurso, Millet permanece um ponto firme como exemplo espiri tual e técnico, constantemente presente nas reflexões e na prática de Vincent. Por ter uma idéia ética da vida, por acreditar no engajamento do artista na realidade, não concorda cora a idéia de Zola que faz de Manet o precursor de uma nova concepção de arte. Esse papel, segundo ele, deve ser reconhecido a Millet, "o pintor essencialmente moderno que abriu um horizonte a muitos pintores". Poucoimporta que o público não se identifique com suas obras: numa projeção do que seria seu próprio trajeto, Vincent se identifica com Millet, que sacrifica o conforto e a riqueza à própria verdade, que investe tudo na arte. A verdade de Millet chama-se vida camponesa e, tal como ele, van Gogh persegue uma pintura que tenha "caráter", sem temer ser considerado "sujo, grosseiro, enlameado, fedorento". Millet, por outro lado, permite-lhe confirmar uma idéia de arte longe dos ditames acadêmicos, na qual o sentimento e a visão própria do artista desempenham um papel fundamental. Se van Gogh está atento à captação da realidade, não lhe interessa, contudo, pintar "as coisas tais como elas são, secamente analisadas, escrutadas". Tendo como modelos Millet, Lhermitte e Michelangelo, seu desejo "é aprender a pintar aquelas inexatidões, aquelas anomalias, aquelas mudanças, aquelas modificações da realidade, para que tudo aquilo se possa tornar, claro, mentiras, se se quiser, mas mentiras mais verdadeiras que a verdade literal". (5)
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Emblema desse momento, em que Vincent gostaria de pintar o camponês "com a terra que ele sem eia", é Os comedores de batotas, pintado em Nuenen em maio de 1885. A crítica não é unânime no julgamento da tela. Ao juízo de Venturi, que considera problemáticos o desenho "pesado e material" e a cor "m uito escura e suja, sem energia nem vitalidade", pode ser contraposto o de Leymarie, que faz referência a "uma espécie de Ceia rústica, na qual a rude verdade traz em si uma grandeza violenta". Sob o signo de Hals, Rembrandt, Millet, Delacroix e, sobretudo, deC roux e Israéis, van Goghcria um verdadeiro quadro de camponeses, fazendo coincidir o desejo de uma verdade simboli camente objetiva com a rudeza expressiva do estilo. O que van Cogh deseja expressar na tela é uma verdadeira simbiose entre homem e natureza, entre a dignidade do trabalho manual e o alimento por ele produzido a fim de estabelecer uma distinção nítida entre o camponês e as "pessoas civilizadas". (6) Recoloca-se, desse modo, sobo signo de Millet, cuja retrospectiva visita em Paris em 1887 e ao qual permanece fiel, mesmo quando incendeia sua paleta. Van Gogh está se aproximando naquele momento do impressionismo, o que permite reconduzira discussão a seu segundo pólo de atenção, a cor. Também nesse caso busca filiações, localizadas ora em Monticelli, ora em Delacroix, ora na tradição holandesa e flamenga. Monticelli é descoberto por van Gogh tão logo ele chega a Paris em março de 1886. Atraído por seus empastes densos e pela capacidade de "reunir num único quadro toda a gama de seus tons mais ricos e melhor equilibrados", de dar vida a uma verdadeira "orquestração crom ática" que lhe faz lembrar Delacroix, Vincent começa a fazer cópias de suas obras como exercício de compreensão da articulação das cores. Ao mesmo tempo em que acredita "continuar" o trabalho de Monticelli, (7) discute vivamenteas teorias cromáticas de Delacroix, das quais se sente herdeiro e das quais faz derivar as pesquisas impressionistas, que lhe parecem complicadas e não tão diretas quanto sua busca pessoal desejaria. Essa atitude é claramente explicitada numa carta escrita em Aries, na qual se distancia dos impressionistas e se coloca sob a égide de Delacroix, posto que "em vez de procurar traduzir exatam ente o que tenho diante dos olhos, sirvo-me da cor do modo mais arbitrário para expressar-m e com vigor". "Colorista arbitrário", como ele próprio se define, confia todo o poder expressivo à cor, deixando para trás o "preconceito realista" inerente ao programa impressionista. (8) Mas Aries é um momento de chegada na poética de van Gogh e não pode ser compreendido apenas em si porque vem mediado por uma série de passagens rumo à conquista da cor, encartadas, a princípio, na tradição holandesa e flamenga. Em Rembrandt e Hals, admirados em Amsterdam (outubro de 1885), além de um sentido cromático particular, descobre uma maneira de pintar an ti convencional, uma poética do não-acabado, feita de primeiras pinceladas, sem qualquer retoque". Cor e desenho constituem uma unidade indissociável na pintura holandesa e é isso que van Gogh parece perseguir quando comenta negativamente a técnica de muitos de seus contem porâneos, que desenham com tudo, exceto com uma cor sadia". As indagações sobre a cor tornam-se cada vez mais constantes na corres pondência de vanC oghea partir desta descoberta começa a interrogar-se sobrea pintura que praticara ate aquele momento. Consciente de estar conquistando uma paleta mais fluida, descobre o valor expressivo da cor e chega a considerar um erro "o estudo do natural, a batalha com o real" para afirm ar concisamente: "A caba-se por criar tranqüila-
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mente partindo de qualquer paleta, e a natureza nos segue c caminha em nossas pegadas". (9) Isso não significa que van Gogh deseje pôr de lado a relação com o real, partir para uma pintura só de imaginação, mas é inegável que o impacto cromático o leva a rever seus postulados de partida e a pensar a própria prática em termos menos naturalistas e convencionais. A revelação de Amsterdam amplifica-se em Antuérpia (novembro de 1885-feverciro de 1886), onde descobre em Rubens um artista que condensa as quali dades de Rembrandt, Delacroix e Millet. Não é a expressão de Rubens que lhe interessa, mesmo porque a considera "superficial, vazia, empolada". O que retém sua atenção é a "sinfonia cromática" dos quadros do pintor flamengo, capaz de conseguir "sentimentos de alegria, de serenidade, de dor" pelos jogos de luz e sombra, pelas refrações de uma cor para a outra, unificadas pelo tom. O estudo das cores complementares torna-se dominante nesse momento. O próprio procedimento técnico começa a se modificar graças ao uso de tons fluidos e fundidos. (10) A abrupta chegada em Paris em março de 1886 marca um ponto de parada naautoavaliaçãode vanCogh porque sua correspondência se torna rarefeita. Nas poucas cartas que escreve durante os dois anos em que reside na capital francesa, reafirma sua "fé na cor" e descreve os exercícios aos quais se submete em busca daquilo que ele próprio denomina "progresso": "O ano passado pintei quase somente flores para meacostumarausaruma cor diferente do cinza, isto é, a utilizar o rosa, o verde, pálido ou cru, o azul pálido, o roxo, o amarelo, o laranja, um bolo vermelho. Este verão, enquanto pintava paisagens em Asniòres, vi mais cores do que antes. Agora procuro fazer retratos". (11) Paris não representa apenas a consciência de uma nova luminosidade, conquistada graças ao contato com os impressionistas e aos longos exercícios técnicos aos quais se submete para ganhar uma nova gama cromática. Paris representa também o contato constante com os mestres amados - Rubens, Rembrandt, Delacroix - e a descoberta de novas maneiras de pensar a arte, propiciada tanto pelo contato com Seurat, que lhe revela novas possibilidades da cor, quanto pelas contribuições das gravuras japonesas, nas quais Vincent encontra uma dimensão peculiar nos dizeres de Leymarie: uma mensagem técnica sustentada por uma mensagem espiritual c social. (12) É para encontrar o Japão que parte para o sul da França em fevereiro de 1888. As cartas escritas de Aries estão repletas de referências ao Oriente ou de visões plásticas despertadas por seus modelos artísticos. Acreditando que o futuro da arte está no "equivalente do Japão", convida Theo a visitar o sul para tomar consciência das mudanças de percepção propiciadas por uma natureza diferente do artificialismo de Paris: estabelece-se um novo sentimento da cor, surge uma expressão mais simples e mais rápida. A questão cromática torna-se cada vez mais importante. Não só invade suas telas, como ocupa páginas e mais páginas de sua correspondência, levando-o finalmente a afirmar que "o pintor do futuro é um colorista como jamais houve. Manct o preparou, mas você sabe que os impressionistas já tiveram uma cor mais forte que a de Manet (...) Creio ter razão quando sinto que isso virá com uma geração posterior, e que nós devemos fazer o que nossos meios nos permitem nesta direção, sem duvidar e sem tropeçar". (13)
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A cor atinge tons cada vez mais elevados, sem contudo pôr em risco a composição, sem trair excessos, sem concretizar-se numa pincelada brusca ou demasia do movimentada. O van Gogh de Aries (e mesmo o de Saint-Rém y e de Au vers-sur-Oise) descobre um cromatismo simbólico, que investe de suas qualidades os objetos e os sentimentos despertados por eles. Esse interesse, que Schapiro atribui ao contato com Gauguin e Bernard, parece explicitar-se em toda a sua vitalidade na descrição que o próprio van Gogh faz do Café noturno (setembro de 1888): "Procurei expressar com o vermelho e o verde as terríveis paixões huma nas. A sala é vermelho sangue e amarelo surdo, com um bilhar verde no meio, quatro lâmpadas amarelo limão com um esplendor alaranjado e verde. Há por toda parte um combate e uma antítese dos verdes e dos vermelhos mais diferentes, nos pequenos personagens de vagabundos adormecidos; na sala vazia e triste, o roxo e o azul. O vermelho sangue e o verde amarelo do bilhar, por exemplo, contrastam com o leve verde pálido Luís XV do balcão, onde há um buquê rosado. As roupas brancas do dono, que vela num canto desta fornalha, tornam-se amarelo limão, verde pálido e luminoso. (...)
Van Gogh, "A ponte de Langlois" Aries, março 1888
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procurei expressar que o café é um lugar onde alguém pode arruinar-se, enlouquecer, com eter crimes. Enfim, com contrastes de rosa pálido e de vermelho sangue e borra de vinho, de suave verde Luís XV e Veronese, contrastando com os verdes amarelos e os verdes escuros azulados, tudo isso numa atmosfera de fornalha infernal, de enxofre pálido, procurei expressar algo próximo do poder das trevas de uma taberna. E, no entanto, sob uma aparência de alegria japonesa e de singeleza de Tartarin". (14) Esta breve incursão pela autovisão criadora de van Gogh mostra que o pintor se vê como elo de uma cadeia que deita raízes no passado e se projeta no futuro, não se reconhecendo naquele "isolado" vislumbrado por Aurier porque desejoso de estabelecer uma comunicação com seu tempo, de dialogar com a história da arte, de propor um caminho às futuras gerações. Mesmo que este caminho significasse dor e renúncia, como demonstra uma carta datada provavelmente de maio de 1888: "(...) sentimos a realidade de que somos pouca coisa, e de que por sermos um elo na cadeia dos artistas, pagamos um preço alto em saúde, juventude,-liberdade, que quase não gozamos, assim como o cavalo de fiacre, que puxa uma carruagem cheia
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Van Gogh, "O quarto de Vincent" Arles, 1888
de pessoas que vão gozar a prim avera". (15) Não é sempre que Vincent tem essa visão amarga da pintura. Nos primeiros anos, quando se sente ainda um aprendiz, concebo a pintura como missão, como uma "dívida" para com o mundo, ao qual quer deixar "por gratidão algumas lembranças em forma de desenhos ou de quadros - que não foram feitos para agradar a esta ou àquela tendência, mas para expressar um sentimento humano sincero". Nesse momento, chega a ter como ponto de referência Guillaume Régamey, um artista morto aos 38 anos que, por seis ou sete anos, embora doente, se dedicara exclusivamente à sua obra. Se não se considera artisticamente à altura de Rcgamey, vê nele um exemplo de domínio de si e de vontade, uma projeção do que ele próprio deveria fazer: "realizar em alguns anos uma obra cheia de coração e de amor, e dedicar-se a ela energicamente". (16) Uma meta sem dúvida alcançada, se considerarmos o volum e da obra, que atinge a marca de 868 quadros pintados num período de nove anos, mas que começa a se revelar difícil quando o corpo-a-corpo com a pintura acaba por tomar conta de toda a sua vida. O sentimento de confiança, que ainda o guia no verão de 1883, come tornar-se determinação obstinada no outono até transformar-se em percepção de perda de vida a partir da estadia em Paris. Não é apenas a questão do não-reconhecimento de seu trabalho que está em jogo. Mesmo em caso de sucesso, a pintura não compensaria seu custo. E o custo não é apenas material, como comprova cada vez mais a corres pondência de Aries, mas também psicológico. Van Cogh não se sente apenas um peso morto, que só pede dinheiro a Theo, propondo-lhe em troca uma "parceria criadora", nem recrimina apenas a "maldita pintura" por ser uma "am ante ruinosa". No seu caso, a dedicação à pintura significa renuncia à vida sentimental, porque "o amor verdadeiro
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Van Gogh, "O Banco" Saint-Rémy, 1889
desvia da arte". Em Aries, a dedicação se torna absoluta, pois Vincent não pode mais dispensar aquela que, entretanto, considera um entrave à vida. Acossado pela com pulsão ao trabalho e pela miséria material que dela deriva - chega a passar fome para sustentar a amante "dispendiosa" -, pensa, às vezes, que caberia à sociedade manter os artistas. Mas tem consciência ao mesmo tempo de que a sociedade não se interessa pela arte, de que ninguém o "obriga a trabalhar", e renuncia à sua cobrança. Após a crise provocada pelo incidente com Cauguin, pensa em alistar-se na Legião Estrangeira para encontrar um equilíbrio imposto pelo "regulamento" e para não sentir-se mais esmaga do pelo sentimento de "dívida" e "covardia" provocado pelo custo financeiro da pintura. (17) A dívida para com o mundo transformada tão somente em dívida finan ceira revela-se, contudo, necessária diante da escalada da doença. Assumindo-se como louco depois do incidente com Cauguin, expressa freqücntemente em suas cartas a idéia não só da necessidade do trabalho, como da possibilidade de redenção da doença pelo trabalho. Às vezes, como na primeira carta enviada de Saint-Rémy, o trabalho aparece como uma potência ameaçadora por absorvê-lo em demasia, por torná-lo cada vez mais "abstrato e canhestro" para a vida corriqueira, mas não se pode esquecer que é ele próprio que pede para ser internado para poder continuar a trabalhar. Através do trabalho, Vinccnt tenta dominar o fenômeno que ele próprio chama de loucura. Interna do no hospital de Aries, ressente-se da falta de trabalho e tenta demonstrar a Theo que as telas posteriores à crise "são calmas c não inferiores a outras". Esse sentimento torna-
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se mais forte em Saint-Rémy, onde pensa o trabalho como “o melhor remédio" contra a doença. Uma carta de setembro de 1889 expressa claramente essa consciência. "(...) é sempre nos intervalos do trabalho que lhe escrevo - labuto como um verdadeiro possesso, mais do que nunca tenho um furor surdo pelo trabalho. E creio que isso me ajudará a sarar. (...) Luto com todas as minhas forças para dominar o meu trabalho, dizendo a mim mesmo que se eu ganhar, isso será o melhor pára-raios para a doença". Estas observações de van Cogh sobre o resgate da doença pela pintura levam Pascal Bonafoux a afirmar que a obra do artista representa a tentativa de fazer frente ao que o acossa, de dominar aquele desespero interior que o solapa. Bonafoux lembra que não existem retratos de Vincent louco. Os dois auto-retratos com a orelha cortada representam, a seu ver, a afirmação de seu domínio e de sua lucidez, do mesmo modo que todos os demais auto-retratos que nada mais são do que "retratos de Vicent salvo". (18) A doença, negada por Bonafoux, é, no entanto, afirmada várias vezes pelo próprio artista em mais uma tentativa de inscrever-se na história da arte. A associação arte-loucura, apesar de contradita pelo exemplo de Delacroix, parece a van Gogh uma decorrência inevitável do próprio trabalho, que torna o homem "muito abstrato". E quem são os companheiros nos quais projeta essa idéia? Gauguin ("um pouco louco" como ele próprio), Troyon, M archai, Méryon, Jundt, M aris, Monticelli, artistas de "comportamento sereno", cujas crises podem ser atribuídas a uma "sensibilidade excessiva". (19) Ao fazer esta constatação, van Gogh cumpre várias operações ao mesmo tempo. De um lado, exorciza o medo da doença, apresentando-a como um dado quase incindível da personalidade artística. De outro, apropria-se da metáfora da doença, tão comum naquela época para desqualificar a arte nova, e a inverte. Se um crítico como Albert Wolff chamara os impressionistas de "alienados", de "infelizes atingidos pela loucura da ambição", de "transviados" por sua negação da visão normal ou seum clínico como Charcot analisara pouco depois a arte pelo prisma da histeria, ou seja, pelo afastamento do critério naturalista (20), não parece abusado pensar que van Gogh, sabedor das críticas feitas à produção contemporânea, a coloque sob o signo da doença justamente para afirmá-la como uma expressão à frente de seu tempo. A idéia do precursor - figura que ele estende a toda a sua geração - e a negação do sucesso parecem confirmar esta hipótese. Renunciando a si para afirmar a arte, van Gogh encarna a figura do artista agônico, daquele artista que, segundo Poggioli, está num estado de permanente tensão, de conflito constante com o meio em que vive, fazendo do ato criador um desafio e um gesto de crise. O artista agônico sacrifica-se em prol do futuro: pelo fracasso de sua ação tende a um resultado que justifica e transcende o ato, pois percebe em seu eesto uma obrigação fatal. (21) ,. ^ correspondência de van Gogh é pontuada pela visão do artista como vitima-herói. Descontente com o universo artístico de seu tempo, que considera "horro roso e miserável", encontra consolo no prazer fornecido pelo ato pictórico. É ele que justifica a vida de "cães vadios" que alguns pintores levam, pintores que no futuro terão provavelmente "mais importância que todo o Salão oficial". É paja o futuro que van
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Gogh trabalha - embora insista o tempo todo em se inserir no mercado -, é para preparar "vidas mais ricas a pintores que caminharão em nossas pegadas". Entende-se, desse modo, porque o pintor confere tanta importância ao motivo do semeador, objeto de inúmeros desenhos e quadros. A parábola do semeador, na verdade, interessa van Cogh antes de sua conversão à pintura. No período em que pensava em se tornar pastor, fala a Theo "do homem que espalhava a sem ente no campo e depois dormia e se levantava, dia e noite, e a semente brotava, crescia, alonga va-se e ele mesmo não sabia como aquilo acontecia". Nessa antecipação do que seria a tarefa que imporia a si próprio - interpretar o homem ea natureza através da pintura van Gogh inspira-se na figura de Millet, cujo significado profundo vem à tona em Saint-Rémy cm novembro de 1889. O semeador, como havia afirmado Aurier e como afirmará Meier-Graefe em 1921, é Vincent, que concebe a pintura como uma tarefa cotidiana, como um "trabalho lento e longo", no qual o fracasso não é temido, poise o exercício que garante o futuro sucesso. "Semente" ou "pão", todo homem tem uma tarefa a cum prir e Vincent cumpre a sua, escolhendo o papel de semeador. Deixa aos outros o papel complementar, o do ceifador, no qual percebe a "imagem da morte". Mas não é uma morte triste, porque a cena que concebe "se passa em plena luz com um sol que inunda tudo com uma luz de ouro fino". (22) Vida e morte entremeiam-se como dois momentos indissociáveis: o autosacrifício de Vincent, o semeador, é a garantia do aparecimento do ceifador, daquele artista que será antes de tudo colorista, daquele artista que dará à pintura novos tons, novos matizes e uma nova luz.O trajeto do artista agônico só chega ao fim quando a geração fauve-expressionista reconhece nele o precursor de um novo modo de fazer pintura, vazado na luz, na cor e na expressividade da forma sintética.
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Van Gogh, "Cam ponês ceifando" Nuenen, 1885
NOTAS 1 - Vide: B. Welsh-Ovcharov, org. Van Gogh in perspective. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, pp. 55-57. 2 - Correspondance complète de Vincent Van Gogh. Paris, Gallimard/Grasset, 1960, t. 3, pp. 434, 436-439, 441-442, 445-446. 3 - J. Leymarie. Van Gogh. Roma, Newton Com pton, 1989, pp. 130-132. 4 - Correspondance, t. 3, p. 162. 5 - Correspondance, t. 2, pp. 306-307, 418-419, 427, 463-464. 6 - Correspondance, t.2, p. 423; L. Venturi, La via dell'impressionismo. T orin o, Einaudi, 1970, p. 313; Leymarie, cit., pp. 42-44. 7 - Correspondance, t. 3, pp. 34, 210. 8 - Correspondance, t. 3, pp. 164-165; apud: Venturi, cit., p. 317. 9 - Correspondance, t. 2, pp. 484-485, 487-488, 496.
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10 - Correspondance, t. 2, p. 532; P. Cabanne. Van Gogh. Lisboa, Verbo, 1985, p. 87; Leym'arie, cit., p. 45. 11 - Correspondance, t. 3, pp. 8, 20. 12 - Leymarie, cit., p. 67. 13 - Correspondance, t. 3, pp. 100, 64. 14 - M. Schapiro, L'arte moderna. Torino, Einaudi, 1986, p. 101; Correspon dance, t. 3, pp. 190,192-193. 15 - Correspondance, t. 3, p. 77. 16 - Correspondance, t. 2, pp. 152-153. 17 - Correspondance, t. 3, pp. 15, 200, 120, 17, 40, 166, 331. 18 - Correspondance, t. 3, pp. 339, 321, 310, 368, 373-374; P. Bonafoux. Van Gogh par Vincent. Paris, Denoël, 1986, p. 54. 19 - C orrespondance, t. 3, pp. 336, 300-301,343,307. 20 - Vide: J. Lethève. îm pressionistes et sym bolistes devant la presse. Paris, Armand C olin, 1959, pp. 76-77;]. M. Gros, "L'hystérie comme l'un des beaux-arts". C ritique, Paris, (459-460), août-sept. 1985, p. 896. 21 - R. Poggioli. The theory o f the avant-garde. Cambridge, Harvard University Press, 1968, pp. 65-68. 22 - Correspondance, t. 3, p. 101; apud: Bonafoux, cit., p. 21; Correspon dance, t. 1, p. 125; t. 3, pp. 408,373.
AN N ATERESA FABRIS é bacharel-licenciada em História pela Uni versidade de São Paulo. Fez seus estudos de pós-graduação na Escola de C om unicações e Artes da Universidade de São Paulo e na Univer sidade de N ápoles (Itália). É professora do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes (USP) nos cursos de graduação e pós-graduação. É autora de Futurismo: uma poética da modernidade (São Paulo, 1987), Portinari, pintor social (São Paulo, 1990) e coordenadora de Ecletismo na arquitetura brasileira (São Paulo, 1987) e Fotografia: usos e funções no século XIX (São Paulo, 1991).
JO Ã O M A S A O K A M IT A
Mira Schendel: o desafio do visível
Qualquer leitura das obras de Mira Schendel exige um decisão. De saída, implica um compromisso: o com promisso do olhar, já que é, exa tamente, dessa atividade que tratam seus trabalhos. O curioso é que esse resgate seja suscitado por obras extremamente discretas e econômicas. Pequenas incisões, marcações quaseim perceptíveis, tornam o olhar incapaz de fixação imediata, de determinar seguramente aquilo que vê. O processo de desvendamento é gradual, intima a proximidade e a concentração. O surpreendente é que essa presença, a princípio precária, após uma inspeção atenta, adquire densidade c espessura capazes de propiciar um envolvimento total. Interessa, portanto, a artista captar a transição que vai do limite da indiferença à presença-limite, o momento mesmo em que as coisas aparecem e ganham existência. Recusando a se entregar prontamente, os trabalhos produzem um estranhamento: contrariam as expectativas ao evitar significados estabelecidos. Questionam assim nosso comportamento ao demonstrar que nossos sentidos recebem passivamente imagens já processadas. Contra essa percepção alienada, as séries de Mira propõem a reflexão sobre o olhar. A retenção, a resistência a uma leitura superficial, significa, sobretudo, que as obras devem ser "conquistadas" pela percepção. Para este olhar voraz, nada visível é dispensável. Atenta e pacientemente ele deve percorrer toda a superfície, perceber as variações sutis, distinguir especificidades. Enfim, tomá-las como um todo íntegro, levando em conta os diversos elementos, os vários atributos que efetivamente a conformam. Tal modo singular de inserção evidencia os dilemas da percepção no mundo atual. A sociedade da proliferação exponenciada de imagens não propiciou, como podia se supor, uma ampliação da nossa capacidade perceptiva. No reino da Imagem, o ato efetivo de olhar torna-se, paradoxalmente, um ato transgressor. Em função do fluxo incessante de mensagens buscando orientar o consumo, uma verdadeira operação coercitiva tende a sobrepor-se ao processo de escolhas autônomas. Exígua em seu tempo, a percepção reduz-se a um mecanismo reflexo, funcionando em termos de estímulos e respostas. Incapazes de estabelecer nexos entre o ato perceptivo, seu correlato e sua significação, acabamos por ver coisas sem apreendê-las. Limitamo-nos, portanto, a uma visão indiferenciada do real: oolhar perdoa iniciativadefazerdistinções significativas num ambiente cada vez mais massificado e homogêneo. Semelhante situação coloca de imediato para as Artes Plásticas, o problema
Série: "Desenho Lineares" Sem título, 1972 Colagem e letra-set sobre papel, 49,2 x 25,2 cm. Coleção Afonso Henrkjue Ramos Costa
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de sua pertinência e inserção sociais: assimilar uma sensibilidade relâmpago, pois essa é a nova dinâmica do mundo, e ainda assim, fazer-se presença concreta, de modo a proporcionar ao olhar um instante de concentração. Se a própria realidade tornou-se dispersa e impalpável, o intento de conferir atualidade à Arte, não pode apoiar-se mais nos padrões tradicionais de unidade e estabilidade. Segundo R. Brito (1), ocorre um impasse crucial: insistir nos modelos clássicos de ordem , clareza eecjuilíbrio seria cair em obsolescência; recusar uma ordem de definição qualquer, por seu turno, seria aceitara efermidade insignificante, a diluição em meio a um am biente informe. Confrontando esses dilemas, as séries de Mira Schendel empreendem um constante esforço de formalização, isto é, de elaboração de presenças distintas que questionem as relações vigentes. Tensas eavcssas assim ilação fáceis, justamente por isso, incitam o olhar a ver a si mesmo como atividade intencional, não como mera vivência irrefletida. Asobras querem efetivar no presente da percepção enquanto puros fenômenos visuais. É como se existissem no lim ite de algo prestes a consti tuir-se. Todas as definições anteriores, as noções adquiridas são, fenomenologicamente, postas "entre parênteses", para nos fixarmos no próprio aparecer. A obra não surge como o termo final de um processo e sim como unidade instável, sempre a repor-se num jogo de reversibilidades constantes. Esse caráter transitório e dinâmico, im pede a cristalização das formas e provoca a tensão entre uma ordem emergente, que aspira estabelecer nexos, e a ameaça permanente de sua dissolução. Neste intervalo, o trabalho expõe seu risco: ele só se dá a ver quando conseguimos coordenar, vale dizer, reconsti tuir suas relações estrutura ntes. Participando de seu ciclo, podemos encontrar as razões de sua sustentação e constatar que a obra efetiva a sua própria reflexão crítica: contém simultaneamente a afirmação e a dúvida sobre seus postulados. Ela será, portanto, muito m ais a ocasião de uma reflexão atual do que a proposta de axiom as absolutos. Ao lado do método, do controle, há a abertura para o imprevisto, o arbitrário que questiona e desafia; instaura a interrogação sobre sua própria formação. De uma certa forma, ao indagar-se sobre o modo de constituição das coisas, a poética de Mira Schendel repõe o problema da gênese. Mas esse apelo a origem não significa o resgate de uma interioridade, dada como "causa primeira". A sua concisão e rigor anunciam a recusa em estabelecer uma relação de possessão sobre as coisas. O distanciamento frente a uma subjetividade im posi ti va, que pretende intervir enfaticamente no mundo, assinala o desejo da obra aparecer num fluir aberto. Por isso, em relação à matéria, prevalece uma outra lógica. Não se trata de moldá-la segundo uma vontade imperativa, atuando diretamente sobre suas propriedades. Nem tampouco, extrair desse confronto uma tensão plástica expressiva. A intervenção desenvolvida procura acionar qualidades específicas, para desta form a, evidenciar o que é singular a cada material. As M onotipias", por exemplo, revelam um contínuo embate entre presenças istintas. Resumindo-se a traços soltos, frases e às vezes figuras sobre papel japonês a emergência de sua m aterialidadeadvém , justam ente, da tensão existente entre ca eza a superfície e a incisão do traço. Ao reconstituirm os o gesto que formam . S slS nos S rá icos, percebem os tanto as suas qualid ades materiais - (textura, sparcncia, uminosidade, espessura) quanto asd o próprio suporte. Este não selimita
Série: "M onotipias" Som título, 1965 óleo sobre papel arroz, 47,0 x 22,9 cm Coleção Afonso Henrique Ramos Costa
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a fundo inerte, nem aquela a mero elemento abstrato. Assim o trabalho apresenta-se constituído por superposição de camadas: não ocorre mescla e sim contato entre materiais, assegurando a cada qual a manutenção de suas características. O refreamento em intervir de maneira autoritária revela um mas seguro, que se realiza num tempo sucinto, um instante: a aplicação da letra é rápido, o traço decidido, a pincelada firme. O que foi intensa mente meditado, resolve-se no ato mesmo de sua realização. Calculados em sua posição, direção, velocidade, amplitude e intensidade, cada qual possui uma forma adequada de acontecer. Não colocam outro significado que não seja o seu processamento operativo; com isso eles nunca se completam, estão sempre a refazer-se.
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O esforço de esclarecer, fenom enologic manifesta, acima de tudo, uma preocupação ética: qualquer ação deve orientar-se por uma vontade lúcida, realizar-se sem hesitações. Procura ndo pensar a sua existência, este fazer não quer esquecer a consciência de atuar na ação. D esconfia sempre de sua potência empreendedora, exatamente, para ater-se ao ato no m om ento de sua realização
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Série: "Sarrafos" Sem título, 1987 têmpera acrílica sobre gesso e barrote de m adeira 90,0 x 180,0 cm
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ESTRU TU RA S EM TRANSIÇÃO Em 66, Mira produz as "droguinhas" e os "trenzinhos", estruturas compostas de papel japonês amarrados em nós ou pendurados por fios de nylon. Como bem observou Cuy Brett, com sua "falta de pretensão técnica e formal" (2), essas peças problcmatizam a própria "noção de escultura". Esvaziadas de peso, massa e volume definidos, qualidades escultóricas tradicionais, acontecem sem base ou forma fixa. Apenas folhas entrelaçadas, expostas à luz e ao vento, sujeitas à manipulação do espectador. Reclamam para si a condição moderna da transformação, do movimento incessantequosuscita uma percepção sempre diferenciada eexigea participação integral em sua experiência. Campo ativo, mobilizam o espaço ao redor, através dos ritmos básicos que engendram seu desdobrar e lhe conferem valor de "presença física". Mais recentemente, nos "Sarrafos" de 85, Mira retoma o problema do próprio estatuto da pintura. Se nos colocamos frontalmente, os "sarrafos" reduzem-se a um traço negro sobre a superfície branca. Um leve deslocamento e percebemos que essas peças avançam no espaço, ganham concretudee engajam o corpo. Oscilando entre o signo gráfico e o elemento tridimensional, entre a pintura e a escultura, as obras não oferecem uma resposta definitiva. Jogam, segundo Ronaldo Brito (3), com as convenções tradicionais: de um lado o quadro de cavalete, artifício que se oferece à contemplação, tendo a linha como indicativo do horizonte; de outro, noções como verticalidade e solidez. Os "Sarrafos" parecem contrariar a ambos, pois a pureza do plano como superfície projetiva é perturbada tanto por uma textura levemente diferenciada, quanto pela condição de placa de apoio. Aos barrotes de madeira, por sua vez, faltam massa e volume, negando a condição de elemento tridimensional. O jogo ambíguo faz emergir uma questão histórica: a red ução empreendida aponta para o esgotamento do plano pictórico, exaurido após sucessivas manobras (do ilusionismo renascentista á conquista de sua materialidade) e indaga sobre suas atuais possibilidades. Não se trata de rejeitar sumariamente a tradição, mas suspendê-la enquanto tal. A estratégia seria cruzar as referências para relativizá-las: só assim poderemos considerá-las quanto ao seu significado e quanto ao seu emprego. Esse distanciamento necessário, que busca sempre referenciar procedimentos operatórios a uma situação definida é, em síntese, uma maneira de se historicizar o fazer da pintura. Efetivamente, o que se encontra em debate é o próprio olhar ocidental, uma vez que recolocar a validade de seus pressupostos é afirmar que inexiste uma forma natural, ahistórica de ver. Acima de tudo, significa apresentá-lo como o que sempre foi: uma atividade de constituição. E, em última instância, tomar a pintura não como modo de reprodução do visível, mas como agente construtor da visualidade. Mais do que circular em meio a categorias convencionais, Mira Schendel procura, de fato, superá-las. A situação de instabilidade, as trocas constantes, tornam suas obras avessas a determinações fixas, e a parâmetros estáveis. A "indefinição" que vislumbramos de início, pode dar a impressão de que os trabalhos carecem de uma articulação coerente. Ossignos mínimos parecem isolados na superfície, soltos, provocando a sensação de vazio, algo a ser preenchido. Mas o próprio atributo "inarticulado" pressupõe, de saída, uma ordem constituída segundo um modo de estruturação dado. No caso de Mira, não há, como coloca Rodrigo Naves (4), uma "força dominante", um
Série: 'T êm peras com ouro" Sem título, 1984 têmpera e folha dourada sobre eucatex, 90,5 x 120,5 cm Coleção Afonso Henrique Ramos Costa
"substrato comum" que unifique e tranquilize as obras. Na série "Têmperas com ouro" de 85, a oscilação entre o estável e o precário é preponderante. Nas am plas su p erfícies m onocrom áticas, emergem assimetricamente pequenas placas em ouro. Uma vez mais, a contraposição dequalidades ressalta os materiais utilizados. A opacidade dos tons em têmpera (azul, vermelho, cinza) confere um aspecto compacto aos quadros. À retratação cromática, opõe-se o brilho do ouro, que tende a expandir-se no ambiente. Tais oposições, por si só, não são suficientes para sustentar o trabalho. Na extensão informe da cor, o que evita a dispersão da pequena figura em ouro é uma finíssima linha que apenas vislumbramos quando muito próximos da tela, já que ela se materializa somente pela diferença de espessura da têmpera. Tênue, a linha confere, entretanto, certa ordem a composição. Devido a sua presença volátil, situa-se num limite, na iminência mesmo de sucumbir na homogeneidade da cor. É uma ordem prestes a esvanecer, sobrepujada pela indiferença. Fugazes, os laços entre as coisas só se mantém a um olhar atento. Não há um arcabouço prévio que coordene a construção dos quadros, nem um traçado regulador que confira unidade à obra. Essas pinturas singelas expressam, numa certa m edida, uma proposição: não há ordem oue se auto-determine. Seja qual for, sua concreção só se efetiva através da
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mediação da consciência, ainda que isso ocorra sem garantias seguras de êxito. Essa estética por assim dizer crítica, demonstra que na dinâmica do mundo atual, a ordem não pode ser imposta: ela se colocará constantemente como um problema, um desafio. Na sociedadedocontinuum eletrônico, do movimento dinâmico, a estrutura não será apreendida segundo padrões de constância e sim entrevista de modo descontínuo e irregular, em meio à cadeias de processos ininterruptos, no instante exato de seu acontecimento. O que percebemos são vislumbresdeordem,estruturasem formação. De fato, o processamento incessante do real moderno, parece nos dizer que Mira Schendel não consente figuras (empíricas ou geométricas) fixas, uma vez qucelas se encontram em permanente transição.
NOTAS (1) Esta idéia é desenvolvida no catálogo: "Elizabeth Jobim - desenhos". Rio de Janeiro, Caleria Paulo Klabin, 1988. (2) BRETT, Guy. "Knetic Art". Londres, Studio Vista, 1968. (3) BRITO, Ronaldo. Texto do catálogo: "Mira Schendel", Rio de Janeiro, Galeria Sérgio Milliet/FUNARTE, 1989. (4) NAVES, Rodrigo, Texto do ca tálogo "Mira Schendel". São Paulo, Paulo Figueiredo Galeria de Arte, 1985.
JOÃO MASAO KAMITA é graduado pela UEL/PR, formado pelo Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da PUC/ RJ e mostrando do Programa de Mestrado em História Social da Cultura da PUC/RJ.
C EC ILIA C O T R IM M A R TIN S DE M E L L O
Goeldi e Iberê: Romantismo e Atualidade
“Ainsi il va, il court, il cherche. Que cherche-t-il? A coup sûr, cet homme, tel que je l'ai dépeint, ce solitaire doue d'une imagination active, toujours voyageant à travers le grand désert d'hommes, a un but plus élevé que celui d'un pur flâneur, un but plus général, autre que le plaisir fugitif de la circonstance. Il cherche ce quelque chose qu'on nous permettra d'appeler la modernité; car il ne se présente pas de meilleur mot pour exprimer Vidée en question." Charles Baudelaire. (1) A experiência estética com os trabalhos de Oswaldo Coeldi e Iberê Camargo revela imediatamente traços comuns. De início, percebemos que o estranha mento do mundo, o apego a uma poética do noturno, assim como certa nostalgia do Todo, permeiam suas obras. Sobretudo as telas mais recentes de Iberê, que retratam cenas da vida urbana, passantes e ciclistas, destilam um sentimento que nos aproxima do universo sombrio de Coeldi. Iberê e Goeldi estariam assim traçando os nexos possíveis com um mundo comum, ainda que transmutado e povoado de imagens espectrais; nele, o reconhecimen to do banal não é imediato e causa desconforto. Os trabalhos traduzem angústia perante a transi toriedadede uma era marcada pelo fluxo dos acontecimentos, testemunham uma inquietude frente ao processualismo moderno. A correspondência poética entre as obras de Iberê e Coeldi surge já da associação entre dois objetos sensíveis. As ma trizes de Coeldi possuem algo da densidade expressiva das telas de Iberê. A madeira gravada, marcada por traços, remete à materialidade da pintura. Tanto na matriz, matéria bruta, como na tela, estão inscritos os gestos do artista. Em Iberê, a ma téria é puisante, carnal, se reveste de expressão e memória. A pasta é densa, constituída por camadas espessas de tinta; apesar de refinada, pâte à Ia belle manière, possui um caráter de matéria bruta, como se fosse anterior ao desenho. O gesto de desenhar atravessando a matéria pictórica, subtrai. Os traços trazem a luz do fundo branco da tela. Na gravura de Coeldi, o gesto, mais incisivo, retira matéria do taco - sulcos que serão luz no papel. Em ambos os artistas identificamos o esforço expressionista de uma abertura para o mundo, o rompimento da esfera solipsista. Considerado como um "movimento do interior ao exterior" (2), o expressionismo pode ser entendido ainda
Camargo, "Ciclista" Oleo sobre tela, 1989 Coleção Maria Camargo, Porto Alegre
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como movimento de simultaneidade e de comunicação, partindo da completa adesão do sujeito ao mundo. A feição carnal da arte expressionista, o seu apego ao mundano, diz respeito a esse desejo de comunicabilidade - oposto ao recuo frente ao mundo, próprio, entre outros, a certo racionalismo subjetivista. A pintura seria a expressão da constitui ção simultânea de sujeito e mundo. (3) O traço expressionista mais forte talvez seja a tentativa de romper com a insularidade de cada Eu. A pintura de Van Gogh, com o a de Kirchner e Rottluf, trata de ligar o emaranhado do mundo dos objetos à esfera das individualidades. A expressão de uma sensibilidade "arcaica" originária do mundo, determ ina essa imbricação carnal, que liga sujeito e objeto num só tecido. Assim, a materialidade pictória que sustenta a carga subjetiva nela impressa, assinala por si só o esforço de rompimento de solidão do eu. O expressionismo busca o contato com esse núcleo originário e silencioso em que o mundo se acende para a consciência e as coisas ganham forma e são nomeadas. A ação originária sobre a tela ou sobre a madeira traz para o campo do visível esse mundo nascente e mantém indissociados o olhar e o sentido tátil do gesto. As considerações sobre expressionismo e comunicabilidade articulam a arte expressionista à atualidade, à superposição moderna de planos perceptivos, e a vinculam ao sentimento de universalidade, à vontade d eabarcareatin giroser do mundo através do próprio comércio mundano. O expressionismo permanece, portanto, fiel à sua origem romântica, à premência com que o romantismo se dedicou à busca do Todo, mesmo sabendo-o precário e tão transitório quanto a pintura de Goya. Essa arte está sempre lembrando a falta do Todo; se já não existe a revelação de uma N atureza dada a priori, empenha-se na construção do mundo e na metáfora da cultura com o natureza. Na instabilidade de Goya e na vertigem de Delacroix já se anunciava a urgência do atual e também a vontade de superar essa transitoricdade através da própria arte. O artista como "testemunha de seu próprio tempo", (4) a essa estética pertencem os traços da efemeridade moderna de Goeldi e Iberê.
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Oswaldo Goeldi
As imagens de Goeldi traduzem invariavelm ente um certo antagonismo, traço constitutivo de sua poética. Artista descendente da estética expressionista germâni ca com as suas raízes românticas, pela potência da im aginação tende a desestabilizar o rigor da modernidade pós-cubista. Contudo, o seu expressionism o, exercido distante da matriz europeia, perde um pouco da obsessão pelo literário da corrente alemã e adquire uma forma econômica próxima ao cubismo. É patenteem Goeldi o apego profundo ao que seria a verdade da arte, que talvez corresponda ao modo direto" de pintar de Van Gogh. Essa pureza rege o seu fazer, a busca constante pela forma "mais justa" de expressão da gravura. Até mesmo o a eatório acaba por adquirir expressão em sua gravura - a fibra, os veios, a resistência da madeira, a marca dos pregos, as bordas da tábua. As primeiras gravuras já mostram uma tendência à geometrização do espaço, ao que viria a ser seu "expressionismo m ínim al" (5), com formas definidas por
Oswaldo Coeldi, "Lagoa" xilogravura MNBA, Rio de Janeiro
algumas poucas linhas brancas - objetos e planos construídos mediante um sistema de luz positiva e negativa. A gravura deG oeldi traduz de imedia to a ação de gravar, inversão que cria um paradoxo. O resultado, no papel, são traços brancos, "sóis explosivos" (6) em meio ao negro. Essa inversão ganha força expressiva, não procura o equilíbrio entre áreas brancas e pretas, ao contrário do que observamos em gravuras de Kirchner e Nolde. As matrizes são sempre noturnas, um bloco negro trabalhado pela incisão, entre pedaço da natureza e artifício humano; emocionam pela contenção expressiva - o gesto interrompido, detido em sua expansão, deixa as formas em aberto. O cenário, apesar de provocar a imaginação e revelar certo laivo literário, reduz-se à estrutura cubista das marcas na madeira. Em Coeldi, a paisagem do Rio de Janeiro é surpreendentemente noturna. Sua gravura suspende nossa visão habitual - ao invés da imagem esperada, há uma inversão, o mundo é transmutado. Esse movimento leva a um estranhamento da paisagem cotidiana e desperta um sentimento híbrido de reconhecimento e isolamento. Sem se afastar da paisagem mundana, mas invertendo-a, Coeldi evoca a angústia do
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estar-no-mundo, o espanto que ativa perpetuamente o pensamento. Como se fosse uma referência ao negro da m atriz em madeira, tudo parece noturno nas gravuras. Os objetos são definidos por traços brancos, em oposição ao preto total. O olhar mais demorado opera a inversão dos valores preto-branco, a partir do reconhecimento de indícios da vida diurna. A imagem exprime uma atualidade tran sitória, tendendo sempre a seu duplo. Essa constante ameaça de inversão vem do tratamento insólito da luz; seu esquema deluz e sombra não se ajusta a uma única visada. Reconhecemos os objetos, mas não somos capazes d e decifrar a lógica de iluminação daquele cenário espectral. Ocorre o curto circuito da convenção claro-escuro e da visão monocular. O rigor cubista pode explicar, até certo ponto, tal arbitrariedade. De todo modo, a luz torna-se uma dúvida, uma indagação sobre a ordem das coisas materializada em fato plástico.
II Iberê Camargo A singularidade da pintura recente de Iberê, face às propostas contem porâneas, reside no modo com que retoma as questões modernas e as questões da tradição. É uma aventura que visa o desconhecido, tentando repotencializar o passado. Iberê é um herdeiro digno da grande pintura - Ticiano, Velasquez - no sentido do saber, da maestria de uma pintura plena, da riqueza e do refinamento da pasta. A luz, os ocres e sienas vêm do fundo da matéria, remetem ao passado; a arte do passado ressurge como esse monturo, revivido pela ação do artista, que confere o prenúncio do Atual à tela. Iberê procura seus tons na região mais sombria da memória, material envelhecido pelo tempo. C ore luz assumem umadramaticidadequecorrcsponde ao sentimento profundo do artista: ao mundo recriado pela ação de pintar. Os vínculos de Iberê com o campo do m oderno remontam aos estudos com André Lhote e Giorgio de Chirico, no fim dos anos quarenta. A simplificação, a solução da pintura através do gesto urgente, assim como a sensualidade volumétrica, revelam entretanto maior parentesco com Picasso, dentre os artistas da Europa pós-cubista. "Descendente" da escola moderna, o trabalho de Iberê traz naturalmente a marca do plano cubista; mas atinge o planar sem reduzir a pintura ao caráter operatório do cubismo analítico. O paralelo com um contemporâneo, De Kooning, por exemplo, mostraria a particularidade do cubismo em Iberê. M ovimentando também uma cadeia de res sonâncias com a tradição e a arte moderna, a pintura de De Kooning manifesta, mesmo atuando em meio à saturação, um típico frescor am ericano nos tons ácidos, na luminosidade e na superficialidade pronunciada das telas. De Kooning radicaliza a dissolução cubista como constatação da fragmentação do mundo, do não-ambienteedo processualismo tecnológico. Em Iberê, ainda que obedecendo a uma ordem efêmera, a figura não sofre a mesma desagregação, a ameaça de dissolução não resulta em indifercnciação quase total. O gesto não segue fragm entando como no De Kooning das W om en". A sucessão intem pestiva dos gestos em Iberê é induzida por uma força agreS a Úva, nuclear, quebusca entretanto uma estrutura dinâmica. Não ha veria dissolução contínua da imagem na superfície, mas um ir e vir de gestos que movimenta a estrutura,
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Iberê Camargo "Desastre" Oleo sobre tela, 19S9 Coleção Maria Camargo, Porto Alegre
criando a tensão entre figura-e-fundo, a dinâmica entre o caótico e o cristalino. A matéria vai sofrendo uma estruturação pela ação da pintura, trabalhada por gestos mais suaves ou mais incisivos, a cor segue modulando a forma, avançando e recuando, até que a estrutura se firme, atingindo a cristalização. De certa maneira, Iberê pinta como um escultor: a estrutura se concretiza com a força sintética de uma escultura. No trabalho de Iberê Camargo, como se sabe, um mesmo motivo perdura obsessivamente, até o esgotamento. O tema é repetido à exaustão, as lentas metarmorfoses concentram todo o esforço do pintor. Os carretéis marcaram sua pintura por um longo tempo; o movimento urbano, passantes, desastres, e sobretudo ciclistas são o interesse contemporâneo do pintor. Não obviamente com o mera tradução do real e sim talvez como a única possibilidade de interferência e comunicação. Porque nessas pinturas, há tanto uma urgência plástica quanto ética, o transitório e o permanente são reexaminados. Enfim, o próprio valor da humanidade é reescrito. As telas podem lembrar o Coya fantasmagórico, a aparição da morte no ambiente racionalizado da cidade - morte que, segundo Ceorges Bataille, "nos escapa,
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que em princípio não conheceremos jamais, pois ao se produzir, destrói o conheci m ento". (7) A lembrança de Goya ocorre não apenas pela coincidência do assunto dos desastres e da aparição da morte, mas pela morbidez já subjacente nos cartões para tapeçarias, em meio à alegria vazia das cenas de jogos, despertando melancolia e espanto. Do mesmo modo, os ciclistas traduzem um romantismo quase pueril e revelam um sentimento de perplexidade. Telas atormentadamente noturnas, ou i ncendiadas por violentas manchas avermelhadas inspiram uma sensação de transitoricdade inquietante. São figuras cons truídas por múltiplos golpes, parecendo vulneráveis à "fu ria" incansável de um pintor que busca sempre os contornos ambíguos. Há a expansão máxima da figura, o desafio de abrir a forma até o limite de uma dissolução que, paradoxal mente, não se pode consumar.
Oswaldo Coeldi, Sem título xilogravura MNBA, Rio de Janeiro
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Tropicais Som brios
Goeldi e Iberê teriam em comum a atração pelo isolamento, um sentimen to como o de "Gauguin na ilha" (8) - o Rio suburbano, a paisagem interiorana, lugares ermos que exprimem angústia e instabilidade. A referência aos trópicos é discreta e silenciosa, ao contrário do traço exuberante que marca o nosso modernismo. O sol tropical vira noite, ou vem apagado por cores baixas e sombrias. Essa visada do Brasil, como a imensa solidão de lugares abandonados, distingue ambas poéticas. Os restos, o que sobrou de um mundo que perdeu o sentido diante da máquina, sobrevivem na arte dos dois artistas - os carretéis de Iberê, os móveis jogados na rua das gravuras de Goeldi. Trata-se de objetos impregnados de vivência, que parecem ter atingido contudo um estado mórbido - semiapagados pelo tempo, transformam-se numa espécie de signos primitivos. Parece com certeza primitivo o estranho cenário de Goeldi - "urubu na rua, móveis na calçada, postes de luz enterrados na areia" - o ambiente do cais e dos pescadores, as praias e os vendavais selvagens de Ipanema. Esse mundo fala do malestar do homem moderno. Em Iberê, por sua vez, o mesmo sentimento seria revelado pela correspondência entre a imagem melancólica de "um banhado, uma sanga", e o universo "caótico" de sua pintura. Um desenho, "A Queda do Armário", de Iberê Camargo, mostra muito bem o sentimento que aproxima as poéticas de Iberêe G oeldi. O olhar reconhece a mesma tensão no espaço plástico dos dois artistas: a estrutura densa, antagônica, planos que sugerem profundidade mas lançam-se frontalmente, como a noite ambígua - negro total que não deixa de ser o dia ao inverso. A noite é revelada como um sentimento atormentado porém reconhecível - ela é de fato o segredo de nossa presença no mundo. O estranhamento desse espaço plástico vem de sua lógica implausível, da sensação de deslocamento, de algo fora de lugar. Esse universo antagônico, que não remete senão ao intransigente espaço bidimensional, tem, não se sabe como, a capacidade de desdobrar olhar e pensamento, e refletir assim a própria experiência do mundo. "A Queda do A rm ário" é uma esmagadora solidão -a mesma que provoca o clima de abandono da gravura de Goeldi. O vazio, o ermo, aparecem nesse espaço interior, como na imagem do armário. Prevalece entretanto a sensação de clausura, os objetos são tensionados ao extremo nesse espaço alterado por um cruzamento vertigino so de planos que terminam por se precipitar sobre nós. Ao tornar tangível ao olhar a angústia do ser, a arte possibilita a comuni cação, volta a interligar a existência solitária ao mundo. Os trabalhos desses dois grandes artistas brasileiros atuam entre a severi dade moderna - o plano cubista - e um certo romantismo, que vem do movimento da imaginação, da profundidade, e de uma "aspiração ao infinito". (9) O paradoxo faz pensar em Goya, que, segundo Bataille, "minava, do interior, o templo do passado" (10). A ssim , o positivismo moderno sofre outra vez um abalo romântico.
Iberê Camargo, "A Quedei do Armário" Guache, 1989 Coleção Maria Camargo, Porto Alegre
Goeldi e Iberê: Romantismo e Atualidade
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NOTAS: 1 - Charles Baudelaire, “La M odernité", in “Curiosités Esthétiques", Edition Garnier Frères, Paris, 1962, p. 466. 2 - Ciulio Carlo Argan, " L'Artc Moderna", Sansoni Ed., Firenze, 1982, p. 277. 3-Ontogênese, para Merleau Ponty; ver "Le Visible et l’invisible", Gallimard, Paris, 1988, especialm ente cap. "Interrogation et Dialectique". 4 - Giulio Carlo Argan, in ibid, p. 38. 5 - Ronaldo Brito escreve sobre Goeldi em "A Luz das So m b ra s":... "E semelhante operação, levada a cabo sem vestígios de "bravura", vai tornálo ainda mais contemporâneo - espécie de expressionista minimal, se isto for concebível". Jornal "O Globo", 28/6/1987. 6 - Manuel Bandeira, Apresentação para o álbum "10 Gravuras em Madeira deO sw aldo Goeldi": "A imaginação de Goeldi tem a brutalidade sinistra das m isériasdasgrandescapitais, a soledadedascasasdecômodos onde se morre sem assistência, o imenso êrmo das ruas pela noite morta e dos cais pedrentos batidos pela violência dos sóis explosivos..." Oswaldo Goeldi, cat.; Solar Grandjean de M ontigny, p. 83. 7 - Georges Bataille, Manet, Skira, Génòve, 1983 p.5 8 - Oswaldo C oeldi, Notas Intimas: "Senti-m e mais ou menos como Gauguin na ilha. A ruptura com a Europa deixou-me em pleno abandono, numa luta de consciência". Citado por Wanda Mangia Klabin em "Goeldi e as Instituições de Arte no Brasil", Osxvaldo Goeldi, cat.; Solar Grandjean de Montigny, p. 38. 9 - Charles Baudelaire, "Salon de 1846"; in ibid, p. 102. 10 - Georges Bataille, in ibid, p. 50.
Agradecimentos: Maria e Iberê Camargo
Cecilia Cotrim M artinsdeM elloéaluna do Doutorado em História da Arte da Universidade de Paris I; formada pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, PUC, RJ.
Joseph Kosuth PURPLE, 1966 Fotóstato negativo sobre cartão, 122 x 122 cm
I
pur
ple
n o u n 1 A color of mingled red and blue, be
crimson and violet; in ancient times, the color obtained from the murex, properly a crimson. 2 Cloth or a garinen; of this color, worn iormerly by sovereigns, especially the emperors of Rome; hence, royal power or dignity; pre eminence m rank or wealth. 3 The ohice of a cardinal: from the official red hat and robes; also, the episcopadignity; from its purple insignia. — verb [ p u r p l e d (-pld), p u r p l i n g ] To color or imbue with purple; become purple. — adj. l Of the color of purple. 2 Hence, imperial; regal 3 Conspicuously brilliant or ornate; said of language.
DAVID C URY
Reverso Ser no Contemporâneo (arte conceituai, body art, land art) (l)
I Platão sustenta, no seu Hípias Maior, que o conceito (ou idéia, em sua terminologia) do belo "é uma bela virgem (..) uma bela lira (..) o ouro". (2) Submetendo tal aporia à analítica de Frege, percebo que Platão não distinguia propriedade possuída de propriedade indicada, isto é, a coisa de que fala possui propriedades (a natureza animal da virgem; a sonoridade da lira; o brilho do ouro) mas os conceitos apenas indicam-nas. Se toda coisa é coisa (uma identidade lógica independente, que prescinde de verificação experimental), isso não implica que seja, necessariamente, de natureza animal, sonora, brilhante - ou, no caso da propriedade referida, bela. Daí a insolubilidade do diálogo platônico: o conceito do belo não pode ser uma coisa bela porque as propriedades do conceito do belo são propriedades que referem-se a conceitos e não às coisas. A coisa não é o concei to do belo do mesmo modo que é bela. Permanece indefinida a propriedade (no caso, bela) da coisa à qual convém o conceito. De modo sem elhante a Platão, Joseph Kosuth transcreve Ad Reinhardt (1963): "a única coisa a dizer a respeito da arte é que ela é uma coisa. (..) Arte não é o que não é arte". (3) Tal arte como definição de arte sugere somente a extensão do conjunto ao qual ela se aplica e não sua compreensão, ou seja, as propriedades daquilo ao qual é pertinente. A diferença problemática e não menos inconclusiva, entre a aporia platônica eas tautologias da arte conceituai, estaria em passar do conceito cjueéa coisa para o conceito que é o conceito da coisa - o que implicaria uma arte apenas conceitualmente acessível. A irrefutabilidade do que seja arte (a afirmação do artista conceituai de que algo é arte) estaria em que, se não há como prová-lo através da experiência, analiticamente justificase: seu caráter linguístico é incontestável. Se, por outro lado e através do primeiro Wittgenstein, considero a com preensão de uma proposição apenas a compreensão de seus elementos constituintes, a situação pouco altera-se. Aliás, em se tratando de tautologias, o autor do Tractat us LogicoPhilosophicus (1918) delas desinteressa-se "pois além de não determinarem qualquer realidade, não possuem condições de verdade já que são incondicionalmente verdadeiras (■•)". (4) O mesmo Wittgenstein é que reflete sobre as implicações do vazio das tautologias: elas definiriam um a ausência de proposição porque, para que signifique, éIhe conveniente a possibilidade - em detrimento da certeza (a tautologia) e da impossibilidade (a contradição). O sentido apenas possível a uma tautologia seria não fazer sentido e, aqui, a cond ição tautológica da obra de arte conceituai parece incontestavelmente comprometida.
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No entanto, com "o significado é o u so", (5) é o Wittgenstein das Investi gações Filosóficas (1948) que Kosuth transcreve. Ou seja, é sobre as funções práticas das palavras dentro de uma proposição, e não sobre seus significados descontextualizados, que se deve inquirir. No caso das linguagens artísticas, é o que Kosuth chama de "libertação de constrições m orfológicas". (6) Assim, o problema da simetria das tautologias estaria superado não porque seja compreensível mas, justamente, porque cumpre os objetivos reais da filosofia e da arte: fazer ver a perplexidade do mundo e o quanto ela está entranhada no pensamento e imaginação hum anos. Se todo o sentido da pesquisa da natureza da linguagem deve referir-se à existência do indizível, ao labirinto aparente mente sem saída em que se converte a pesquisa da natureza da arte responder-se-ia "apenas com a libertação da idéia de que existem labirintos". (7) Daí Wittgenstein conceber um ser transcendente, que "não pertence ao mundo, mas é limite do mundo"; (8) ou ainda, em vez de pensamento da razão (a lógica corrigida), o artista conceituai com preendera manobra artística como pensamento do pensamento irracional (a lógica errada) - algo nada absurdo mas que situa-se fora do alcance da linguagem. O cogito na arte conceituai é simbólico: um cu-penso que realiza-se pela improbabilidade absoluta de integrar-se à existência do que lhe excede. Contra a indistinção fenomenológica, a arte conceituai busca anular a paridade entre sujeito e objeto sem que, para isso, recupere o tradicional valor do sujeito do conhecimento da ciência ou da filosofia. Ela concebe um eu-neutro ou anti-eu - que não é com-o-outro (eu fenomenológico); não é o-outro (eu existencialista); não é por-outro (eu psicanalítico). Distante do eu-anulo-o-mundo platônico, o cu-nulo conceituai recusa incorporar uma psicologia - o que seria dizer de um sujeito objeto de si mesmo. Esse sujeito do conhecimento da condição conceituai da arte verifica-se tanto mais na presença de um nome implicando obras de ninguém porque, ainda que assinadas, elas convertem-se em identidades paradoxalmente mecânicas ou reificadas (On Ka wara, e os postais da série IG ot l/p/1969; os certificados de James Collinsem Introduction P iccen 9. 5/1970). Outras, quais os exercícios em lógica de Agnes Dcnes (Dialect Triangulations: a Visual Philosophy into Symbolic L og ic/1970) e as pinturas-textos-fotografados diretamente de livros por Bem ar Venet (Total Positivity/1969; Linguistic and Logic D iagram s/1966) são escudos próprios a uma autoria a somar indiscriminadamente nos bancos informatizados de tendência unificante (Hanne Darboven e seus One Page o fja n . 2 3 , 1968/1968). De suas definições e aforismos, memórias de dicionários am pliadas (os fotóstatos negativos T itled/A rt as Idea as Idea; Square e Composition de Joseph Kosuth/1967) e enciclopédias raras (o Seth Siegelaub, catálogo-show de Douglas Huebler/1968) resulta um sistema de símbolos limítrofes: sua evidência imediata ou transparência aproxima-os de virtuais suspeitas e desfuncionalização. São objetos cuja matéria (mental) viria do ato mesmo de pensá-los. Daí, corpos indiferenciados ou obras de arte que tendem ao desaparecimento por dispersão. Tal super-pensamento ou pensamento experimental permite mesmo arriscar relações caras à empiria: se o pensamento experimenta-se, é dito que está empiricamente verificado em si mesmo. Tábulas rasas às avessas, as obras da arte conceituai pressupõem uma indeterminação que virá dos registros de significações e retóricas - colhidos na dis solução do ambiente-para recomposição das fraturas mentais do homem contemporâneo. A nulidade da arte conceituai diria respeito à recusa de uma metafísica inverificável
Herman Nitsch ORGIEN-MYSTERJEN THEATER, 1974 Açào, Munique
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(portanto, clássica) que é decidir sobre a existência ou não da arte. O artista conceituai pronuncia-se sobre arte com o um problema insolúvel por (sua) natureza. A natureza da arte não seria, por natureza, passível de dem onstração final. Há aqui, na idéia de que cada conceito emitido sobro a natureza da arte apenas subtrai-lhe a natureza infinita (confirmando-a, portanto), uma implicação da eternidade em Platão. Neste, o tempo ("imagem móvel da eternidade im óvel") (9) estaria para o ato de conceituar: no todo-otempo platônico, o presente é o ponto nevrálgico porque determina uma continuidade anterior ou passado (o menos infinito) e uma continuidade posterior ou futuro (o mais infinito). O drama do presente é ser esse hiato que adquire espessura entre o que deixa de ser e o que passa a ser. O instante é a instabilidade dessa passagem ou, antes, a náusea dos imóveis. De modo semelhante, o desafio da manobra conceituai estaria em que deve caracterizar a condição inesgotável da arte por um conceito que seja um seu pré-conceito e um seu pós-conceito - isto é, um conceito que seja a própria subtração de si mesmo. A conceituação deveria extinguir-se (ou desconceituar-se) nos termos mesmos que defi nem sua existência e necessidade. Assim como Platão desfuncionaliza o que seja passado ou futuro através da condição eterna do presente (este que, sendo presente sempre, nada adicionou a um anterior e a que nada deve ser somado), a função investigara natureza da arte não seria contradita por um ato de conceituar destinado ao fracasso naquilo que ele tem de imóvel pois que nada deve haver nele que definisse uma herança, nem que implicasse um posterior ou tradição de s i-o que o tornaria tradicional no sentido mesmo de um passado? Ainda que pense numa sucessão infinita de conceitos de arte, será que investiga sua natureza inesgotável ou apenas faz cum prir um único conceito a priori que dela tem-se, qual seja, um investigar-se? A rigor, um prim eiro conceito para a arte não é senão o seu ultimato ou fim. Tal qual a ciência no século XX (que sob o pretexto de uma cultura de massa, recusa assumir qualquer finalismo relativo à vida) mas com um resultado radicalmente diverso, a arte conceituai (através da indecibilidade de suas tautologias) admite uma correspondência ou sobreposição precisa entre a imanência própria à lógica interna da história da arte e o restrito lugar que a história da sociedade ocidental lhe garantiria apenas - antes mesmo de a ele condená-la. Certeza absolutamente simétrica (portanto, mais real queo real), a tautologia da arte conceituai, em seu virtual limite, não é som ente a expressão de um choque mental mas do neopositivismo que caracteriza um ser de alinhamento avassaladoramente cientificista e anti-metafísico.
II A luz que incide sobre o corpo do M arat Assassinado (1793), de David, é a definição da excelência da história como superação da morte. Ela funciona em favor do aparecimento do corpo que, mesmo morto, é paradoxalm ente íntegro e asséptico: ele é no banho; é puri ficação. Terno e quente, um corpo-figura ascende à condição de memória, e tal preservação dever-se-ia à imortalidade do espírito; sua sensualidade não é um apelo à morte mas, antes, à qualidade da vida que ela encerra. Trata-se de um desaparecimento para a revolução ou da vitória da nitidez sobre a indistinção.
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Contraria mente, Vito Acconci pensa o seu Trademarks (1970): "morder-me: morder tantas partes do meu corpo quantas eu puder alcançar; aplicar tinta de impressão nas dentadas; sobrepor os cunhos das mordidas a superfícies diversas". (10) O corpo na body art já não pode merecer a clareza e dignidade das formas clássicas ou jamais aspirar à condição de modelo - por ser sinônimo de degradação. Agora a luz é necrópsica: dissolvendo a figura na matéria, a idéia de uma integridade físico-espiritual desaparece ao mesmo tempo que o ser e a história, potência e realização. Resgatando a arte como experiência do insuportável, e qual Kierkegaard, "não há possibilidade de esquecimento do corpo" (11): o ato body art não é senão isso, e a ele corresponderia um corpo tão apaixonado por si mesmo que, apenas assim, justifica-se o modo como degenera. A impotência diante da morte (a evidência da separação definitiva dos corpos) conduz à reativação de uma sexualidade primitiva como procedimento auten ticamente bélico: em Sccdbed (1972), acconci masturba-se sob uma rampa em Nova York. Em tal compulsão à repetição do choque (ou transformação de experiências dolorosas em espetáculo), não haveria o que Freud chama de verdadeiro instinto de morte, "a tendência profunda de todo organismo vivo regressar ao inorgânico, para retornar ao estado anterior sem consciência nem sofrimento"? (12) Aproximados por uma situação negativa (ou antes, inseparáveis), os impulsos do ego (preservação de si mesmo) e os impulsos sexuais (preservação da espécie) corresponderiam a um eros (deus do amor; princípio de ação e prazer; sím bolo do desejo cuja energia é a libido) vencido por um tanatos (deus da morte; princípio da autodestruição ou masoquismo e da destruição do mundo ou sadismo). Daí, também, Barry Le Va atirar-se contra um muro até a exaustão (197?): um corpo sozinho indistingue os limites porque não há o outro corpo que é promessa de colisão ou afetividade (a paixão). A morte aqui não é senão o impedimento de uma visão definida como aparecimento. A nova iconografia é a cegueira da extinção: a presença incontomável do corpo humano converte a encenação em happening ou horror aos olhos. A evidência do tátil (a fisicalidade do corpo) no domínio institucional do ótico (a farsa ou intangibilidade da dor) remete à constante dissimulação do olhar ou sua falsificação recorrente. A exposição plena, direta (digo hiperreal, naquilo que encena o que há no acontecimento) do corpo e sua absoluta incapacidade de transparecer implicam um informalismo radicalizado: qual um De Kooning vivo, põe-se um corpo como figura agônica; da carne da matéria pictórica (excelência para De Kooning) à tangibilidade da carne humana (excelência body art) trata-se do tridimensionamento do universo desesperado de Bacon - no qual, como quer Argan, a pessoa pode apenas "degradar-se até o nível do signo ou indício de uma situação", (13) qual seja, a destruição do homem como fim último da história. Mas a ação body art desse niarat suicida, anti-dândi e anti-darling - muito embora personifique o heroísmo clássico de Wilde e Boardsley - não diz menos respeito a um narcisismo ligado aos mecanismos de idealização não somente no que se refere à libido mas, sobretudo, à idéia mesma de morte. Por isso, prevaleceria agora um caráter antipsicológico no sentido que é a consciência do artista dos valores impostos pelo conjunto total da sociedade cuja ética do consumo não e senão supressão e aniquilamento (a consumação). Um automatismo aqui, longe de ser psíquico como aos surrealistas, deve-se à lógica interna da história da arte em meio à história mais vasta da cultura ocidental. A sua condição contemporânea (o valor suspenso; a manobra artística
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condenada à imanência) reage-se com cruzamentos categóricos entre política e sexuali dade, direito e desejo, realidade e encenação: o ruim, o grotesco, o ridículo em torturas, travestismos, sacrifício de animais e suicídios (Orgicn-Mystcricn Thcater/1974: Herman Nitsch nu, crucificado, banhado em sangue de anim al morto presente, numa quase zooerastia; Rudolf Schwarzkogler suícida-se por automutilação, em Viena/1969). Embora rigoroso, o conhecimento que a liturgia body art manipula é, necessariamente, inconclusivo: a sabedoria da morte desaparece com quem a experimenta. Mas o artista talvez considere-se um privilegiado por cogitar, nas palavras de Heidegger, essa "possibilidade de im possibilidade". (14) A virtual nega ti vidade ou desmoralização da vontade de morrer como vontade de poder parecerá à body art um absurdo maior que a facticidadeda morte porque define um ser que encarna sua situação na história ou, como em Jaspcrs, sua "historicid ad e profunda". (15) Num limite, a antecipação do Gina Pane LE CORPS PRESSENTI, 1975 Ação, Innsbruck
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desaparecimento do artista e o modo como ocorre equivaleriam a um ato inercial ou movimento em falso. No entanto, entre ontologia forçada e ontologia negada, diria Jaspers que "o malogro da ontologia nos revela o ser, e nesse sentido, o malogro da ontologia é ontologia". (16) Assim, a autofagia potencial body art (a idéia do artista alimertar-se do seu próprio desaparecimento) radicaliza o canibalismo pop art ou o estreito limite entre sobrevivência-suicídio-assassinato: o consumo do imaginário urbano e dos extratos tecnológicos. O desejo (integridade do corpo) é tornado obsoleto pelas necessidades do mercado; daí atribuir-sc ao corpo qualidades indesejáveis: de sua naturalidade feia, falha emerge uma escatologia de duplo significado. Bacanal, agressão e agonia, imobilidade e ascese: à exposição cínica pop art corresponderia o trágico exibicionismo body art; agora, o objeto encontrado, de realidade simbólica, é o cadáver humano. O telos do consumismo não pode ser senão a extinção do consumidor já que o consumo levado ao paroxismo implica um desejo jam ais correspondido - portanto, patológico. A rigor, a neurose pop art (as perversidades do mercado tornadas compulsivas) é quase tão terminal quanto a epilepsia calculada body art (as compulsões pervertidas pela repetição deliberada). Entre elas, a escassa di ferença entre euta násia e distanasia: do riso radioativo das marylins de Warhol ao Le Corps Pressenti (1975) de Gina Pane. Contrariamente a Hegcl (seu idealismo prospectivo mas imóvel porque fatalista), a imagem da história ( o que são todos os homens) é produzida no corpo de seu agente (o que é o ser), e não apenas em seu olhar. Esse, talvez, será o sinal preciso do fim do vício ocularista da cultura ocidental, bem como do antropocentrismo recalcado desde Copérnico. Há, então, um ser propriamente existencialista porque preocupado com sua presença c passagem; um ser cuja existência é pura temporalidade (Kierkegaard), móvel do inconcebível e contínuo perigo: ele é todo paixão - um corpo a corpo consigo, daí arriscar-se necessária, desesperadamente. Um corpo como depositário do desejo é zerado pela escatologia: a paixão transgressiva substitui o discurso amoroso por discurso horroroso. A possibilidade da arte está para a impossibilidade do desejo (o outro corpo) e da história (todos os corpos) -o que sugere sua impossibilidade. Ante a derrota da psique humana (a incapacidade de centrar-se com o mundo), o artista body art dispersa-se ou, antes, contrai-se (rota no curto espaço que lhe cabe). Propondo-se obra de arte em substituição ao paradigmático objeto artístico do século XX, mas tal qual ele, o corpo do artista é em torno de si mesmo: a órbita que descreve não é senão o círculo vicioso de seu desengano e recolhimento históricos. Entre o humano e o sobrehumano, o artista body art é a esfinge na Tebas contemporânea e dirá: "decifra-m e ou devoro-me". Eis que ninguém lhe responde. A pacificação da agonia do ser é, na body art, sua impossibilidade de desejar ou morte. Num sentido, o artista reconhece-se como a grande boca sobre o mundo •aquela queo experimenta tão profundamente, seja por uma dentada ou beijo. E leé tanto a boca que abocanha-se, quanto o beijo que asfixia.
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III Em M ile-long Drawing (1968), W alter De Maria percorre uma milha entre duas linhas paralelas traçadas a giz sobre o deserto M ojave, na Califórnia. Ele cruza a indeter mi nação dessa América de sinal contrário com o a deixar um vestígio de sua chegada e imediata partida. Direções sem sentido porque, afinal, uma paralela é apenas paralela a outra paralela que, por sua vez, é paralela ao quê? Há, então, um homem paralelo às suas paralelas ou a elas perpendicular - o que, de resto, não orienta ou significa. Mas as linhas retas subvertem a m onotonia das areias dispersas por sua intelectualidade: seus cortes precisos implicam uma presença irresistivelmente maior que as miragens relativas ao drama do calor e sede. Sem elhante a um Cy T wombly (onde o ser define-se como uma vírgula existencial) encarnado, o artista land art é um traço sem anterior ou um nada original;© choque de si consigo. O sentido, que em Twombly éa présignificação da existência, aparece em De Maria com o o rastreamento dos maniqueísmos da comunicação - daí saturá-la: a manobra artística torna-se uma memória do esqueci mento; uma marca da impermanência ou sequelas de uma visão indccidível. O deserto é a existência zerada no m omento mesmo em que principia: zona morta, espaço perdido, ele não será historicamente atraente, decerto. A ideia do tempo parado ou esquecido em si mesmo emerge: em seu cotidiano escasso e m esquinho; em sua economia de subsistên cia, o deserto é um desabrigar-se - um ser auto-suficiente, que nega tudo e todos senão a experiência de sua própria indiferença. Tal como em Kierkegaard, o ser aprenderia com a pura dispersão que ele é separado: quanto mais avança, as coisas dele distanciam-se. 0 deserto é uma exaustão em expansão. Mas para Heidegger, que define o ser como fora de si (e mesmo em solidão, essa interioridade é para a ausência), o vazio é o seu excesso. Por isso mesmo, pensa-se o futuro relativamente ao passado (os acúmulos) e, daí, o presente implicar o tempo ou "horizonte a partir do qual podemos por o problema do ser". (17) Em Heidegger, o outro (qualquer que seja ele) é o transcendente ou superexistente, e o que importa é colidir intensamente com ele. Essa existência heideggeriana, atravessada de outros do mundo, aproxi ma-se do ato land art: o artista encontra sua contemporaneidade (a relação do ser consigo) por chocar-se contra a encarnação do deserto - o momento em que ele convertese no mais excessivo vazio. Para Heidegger, visto que não pode haver duas coisas superiores e iguais em sua absoluta indemonstrabilidade, "o nada é o ser e o ser é o nad a".(18) Mas, aqui, a identidade complexa que o artista land art parece conferir-se distancia-se: ele é a consciência de um vazio apenas isso, não mais sobrecarregado de sentido como no suprematismo malevitchiano. No Aspluilt Rundown (três toneladas de asfalto lançadas sobre imensa rocha nas proximidades de Roma/1969), de Robert Sm ithson, configura-se a dissipação lenta mas a aparente intemporalidade da pedra. Qual mácula acidental, o betume garante-se a gravidade como se quisçsse já surgir arcaizado: ele é o leite negro do minério ou a pasta seca a reforçar sua estrutura, obscurecendo-a mesmo. Ainda, se lama congelada, trata-se da conversão do monte em vulcão extinto: à visão do derrame corresponderia um desastre mental - daí a manobra artística definir-se elo violento entre a superfície da terra (o limite da existência) e sua câmara íntima (a interioridade do ser); ela é o amálgama que sela homem e acidente como se, finalmente, apenas participasse
Robert Smithson ASPHALT RUNDOWN, 1969 Três toneladas de asfalto sobre rocha
do movimento do cosmos através da produção de um cataclisma ou sinal a funcionar de modo mínimo. A nova máscara asfáltica implica uma relação promíscua entre homem e mundo, fundamentada no desregramento da ação que a constrói ou naquilo que indistingue limitações e elogia o caos. De modo sem elhante ao ostracismo imposto a Péricles e Fídias na Atenas clássica, o artista land art condena-se ao exílio por um excesso que investe contra a comunidade. A cidade é-lhe uma transparência intransponível, lugar de obstáculos e choques marcados. Desertor no deserto, ele torna-se um extra-vagante para colidir na ausência ou dissolver-se nessa abundância virtualmente negativa. Por um ser precipita do ao nomadismo físico-espiritual, a ação land art implicaria um antiurbanismo hiperurbano" (19) ao combinar civilidade c desvio, concentração e dispersão. Em Abstraction/Dissipate (Deserto Mojave/1968), de Michael Heizer, uma
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linha fragmentada ou em realinhamento avança sobre o espaço liso que cresce indeterminadamenteem seus limites informais. Grafias sem tino, esses sinais parecerão dízimas periódicas de uma existência ou cálculo aproxim ado mas errado: o ato artístico parece, aqui, contra a interpretação dessa inteligência extinta. Já em Circumflex(Massacre Creek Dry Lake/1968), Heizer escreve uma linha curva irregular qual uma serpente, em sua adesão incondicional à areia. Contínua mas desviante, ela intercepta pontos de sua extensão (curva-se sobre si mesma) como se indicasse uma retomada de sentido - muito embora ali, ele não possa ser designado. Assim, a manobra land art parece definir a existência como uma onda ou vertigem -o c\uc a separa da relação que a natureza tem com a história na Grécia antiga tal como quer Hannah Arendt (20), qual seja, o equilíbrio da presença humana (num universo de movimentos circulares) viria da retilineidade que caracteriza o curso de seus gestos individuais. A iconicidade das rotas land art, que surgem de grandes intervenções em breve apagadas pela indeterminação do acaso, implica uma individualidade que não é senão o isolam ento do ser e sua incomunicabilidade - por isso mesmo elas perdem-se nu m processo histórico defi nido pelo surgimento e imediata queda da relação homem /cosmos. A arte moverá montanhas, será super e não resistirá ao instante. O sentido do ser é, agora, fluir acidentalmente num mundo cuja fragmentação dissemina-se e apenas o deserto resta como grande mancha imaculada um branco pré-mental ou uma falha originária da natureza. O artista land art abandona a visão da abundância (o paraíso tecnológico) e vai ao deserto para solidão e secura. A cidade é-lhe a parede cega da arquitetura, promessa de colisão ou perplexidade deixada para trás como a mulher de Lot petrificada em sal. A nova utopia é o deserto: nesse não-lugar, ele desloca-se para o horizonte abismal, que dele distancia-se simultaneamente. A princípio a história não é comprimida porque deve terminar no ilimite dessa linha imaginária: o horizonte é o sentido da utopia, daí o ser caminhar para encontrá-lo. Mas ele não o encontra, e nem a si mesmo - perdendo-se em perspectiva quando todos os pontos são de fuga. E o prospecto moderno? Quando é que se está de frente para o deserto? Aspirando ao inacessível, o ser land art torna-se um claustrófobo do vazio pois é o deserto que surge como a clausura do tempo e do espaço. Um tempo que é todoo-tem po (tem po-sem -passagem ; tem po-sem -tem po) e um espaço todo-o-espaço (espaço-sem-aqui; espaço-sem-lugar) aos quais não se lhes reconhece expansão.
IV O artista contemporâneo parecerá um prestidigitador, seja em arte con ceituai (a ilusão das tautologias ou perfeição do raciocínio); body art (a ilusão da imortalidade ou perfeição do homem) e land art (a ilusão do horizonte ou perfeição do deserto). Elebusca triunfar sobre o fracasso, quer por antevê-lo ou a ele antecipar-se: trata-se da inverificabilidade do conceito de arte na arte conceituai; da saturação da morte na body art; da colisão com o horizonte na land art. A hipertrofia do tempo e do espaço aí implicados gera, sobretudo, perplexidade: é a paralisia mental (as tautologias) da arte conceituai;a imobilidade física (o corpo morto do artista) da body art; o entorpecimento espacial (o deserto ensimesmado) da land art.
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Talvez a superfície reversa (o plano moderno, agora contraído) em que convertem-se o tempo e o espaço hipertrofiados pela "desmaterialização do objeto de arte" (21) implique um ser narcisista e saturado de classicidade (e não classicismo, já que não haveria correspondências formais) porque nostálgico da eternidade platônica naquilo que não poderia ver para além ou aquém de sua atualidade. Mas o sentido, agora, não é senão o esquecimento contínuo qual espelho contra espelho: um ser que nada julgue em um tempo como pura suspensão de valor. Entre o conceito de arte, o cadáver do artista e o deserto em que vaga-se, há um ser obsessivamente contemporâneo de si mesmo em perplexa busca por intemporalidade mas, sinestesicamente, definido pela consciência que o artista tem do dilema histórico da arte e da cruel densidade cumulativa de sua tradição.
NOTAS: 1 - Muito embora considere as versões arte do corpo e arte da terra para body art e land art, respectivamente, os termos em Inglês parecem-me de melhor sonoridade. Por outro lado, é preciso dizer que apenas uns poucos trabalhos dos referidos segmentos da arte contemporânea é que são considerados aqui - o que implica dizer que as idéias expostas não podem ser consideradas para a totalidade daqueles. 2 - PLATÃO. Le Grand llippias em "P ia ton/Oeuvres Complètes". France Éditions Gallimard, 1984, V. I. pp. 30, 31, 33. 3 - KOSUTH, Joseph. Arte depois da Filosofia em "M alasartes", nû1, Rio de Janeiro, 1975, p. 10. 4 - WITTGENSTE1N, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo, Abril Cultural (coleção Os Pensadores), 1979, pp. XIV e XVII. 5 - KOSUTH, Joseph. Op. cit., p. 10. 6 - Idem, ibidem. 7 - WITTGENSTEIN, Ludwig. Op. cit., p. XIII. 8 - Idem, p. XII. ^ " PLATÃO. Ti meo, O De La Naturalcza em "Pia ton/Obras Completas", Madrid, Aguilar S. A. de Ediciones, 1979, p. 1138. 10 - LASCAULT, Gilbert. Le Corps M arque em "L 'A rt Vivant", nQ40, Paris, Arte 13,1973, p. 6. 11 - WAHL, Jean. As Filosofias da Existência. Lisboa, Publicações EuropaAmérica, 1962, p. 24. 12 - CLERAMBARD, André. Dicionário das Grandes Filosofias. Lisboa, Edições 70,1982, p. 299. Înoc^^■’'^ / G iu lio Carlo. Ar/ecCr/f/cndc Arte. Lisboa, Editorial Estampa, 1988, p. 110. r
14 - WAHL, Jean. Op. cit., p. 88. 15 - Idem, p. 70. 16 - Idem, p. 54. 17 - Idem, p. 56. 18 - Idem, Ibidem. 19 - Essa expressão é de Otflia Beatriz Fiori Arantes, e consta do seu Arquitetura Simulada (em "O Olhar". São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 276) no subitem Ultramodcruismo à Deriva - referido à vanguarda arquitetônica dos anos 60. 2 0 -ARENDT, Hannah. Eight Exercisesin Political Thought Between Past And Future. New York, Penguin Books, 1968, pp. 42 e 43. 21 - Essa expressão é de Lucy R. Lippard, no seu Six Years: The Dematerialization o f the Art Object from 1966 to 1972. New York, Praeger Publishers, 1973.
Esse texto é com posto de idéias e fragmentos que fazem parte da monogra fia apresentada em dezembro de 1990 com o trabalho final do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura do Brasil da PUC/RJ, feito sob a orientação do Prof. Fernando Cocchiarale - a quem agradeço publicamente.
DAVID ABDALA CURY é graduado em Arquitetura pela UFPE, formado pelo Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da PUC/RJ, mostrando em Artes Visuais pelo CLA/UFRJ e pintor.
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Francisco Goya, "El Suefio de la razon produce monströs" Cravura e Aquatina, 21,6 x 15,2 cm CaprichoS 43,1797-1798
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L U IZ C O S T A L IM A
Tradução: Sonia Santos Silva Laureano e Margareth da Silva Pereira
O Controle do Imaginário e a Literatura Comparada *
Desde 1980 venho-me dedicando ao exam e c à complexicação de determi nada hipótese: a razão ocidental, a partir do declínio da concepção que fazia de Deus como o avalista da verdade, m ostrou-se duvidosa, até mesmo desdenhosa, rejeitando ao extremo, toda forma de pensamento e expressão que não fossem apoiados e justificados apriori por um método, ele próprio autojustificado. Em decorrência desta atitude, já na Renascença, um privilégio era atribuido às matemáticas, seja na filosofia mágica de um Cornelius Aggripa, seja na concepção da ciência experimental de Calileu. A ausência de uma indiscutível segurança transcendental sobre o que poderia se afirmar como verdade explica a consideração concedida às matemáticas. Embora seu raciocínio, necessaria mente abstrato, pudesse incom odar aqueles que não concordavam com as premissas platônicas de um cosmos perfeitam ente maternatizável, esta dificuldade era compensa da pela força de verificação do cálculo matemático. Se Niklas Luhmann está correto ao enfatizar o papel da percepção na procura de uma verdade em termos estritamente humanos (1), a falta que, do ponto de vista percepti vo, afeta a demonstração matemática era rapidamente substituída e ultrapassada pelo alcance de uma certeza inabalável. O cálculo matemático, para além dos pcrcepta, mostrava que o não "visto" obedecia à mesma regularidade do visto. (2) Enquanto a percepção gozava de um previlégio, a imaginação, principal mente no campo da concepção experimental da ciência enfim vitoriosa, via-se, ao contrário, desprezada ou cercada de normas - os princípios do iniitatio, da conveniência eda verossimilhança - com as quais a poética da Renascença julgava capaz de bem ornar seus produtos para o consumo das pessoas ilustres. Quanto mais um gênero era legitimado, mais exercia-se sobre ele a pressão controladora ou maior era a necessidade de conceder-lhe uina margem de tolerância. (A tolerância não pode ser concebida sem a existência da interdição contrária). É a p a r tir d e s t a s p r e m i s s a s q u e e s b o ç o o q u e c h a m o " c o n t r o le d o i m a g i nário". N ão le v a re i e m c o n t a o s a r g u m e n t o s h i s t ó r ic o s q u e a ju d a r a m a p r o m o v ê - lo , como o e x e m p lo p o r e x c e lê n c ia d a s l u t a s r e l ig io s a s , n e m u m f a t o r h is tó r ic o - s o c ia l n ã o menos im p o rta n te : o r e c o n h e c im e n t o p r o g r e s s i v o d a s u b je t i v i d a d e e n q u a n to f a c u ld a d e individual.
Por outro lado, em bora as bases desse controle já se mostrassem no idealismo da teoria platônica e na epistemologia da concepção de Aristóteles, ou ainda para contemplá-lo a partir de uma perspectiva ainda mais ampla - desde que a concepção de verdade como algo anterior ao seu enunciado venceu a concepção oposta dos sofistas, preferi não abarcar uma am plitude tão considerável. Ainda que fosse um helenista, a escolha de tal extensão temporal impediria previamente o desenvolvimento
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significativo desta hipótese. Tomei assim o partido de estudar, sob este ângulo, o pensamento moderno. O primeiro objeto de minhas interrogações é, deste modo, a poética do Renascimento. Como já publiquei em livro as conclusões a que cheguei (3), abordo aqui alguns passos que se seguiram em duas outras publicações e que teminaram por constituir a trilogia do Controle, Sociedade e discurso ficcional (1986) e O Fingidor e o Censor (1988). Diferentes formas de controle evidenciaram-se ao longo destas pesquisas. Começamos por falar de um controle predominantemente religioso, exercido ao longo dos séculos XVI e XVII e, a partir daí, de um outro, progressiva mente laico e científico, em vias de expansão desde o Iluminismo francês. Do ponto de vista puramente expositivo, propus a existência de três círculos: o europeu, o hispano - americano e o brasileiro. Cada um deles foi tratado, ou de forma global ou, ao contrário, por meio de casos particulares. Não escrevi, nem escreverei uma história sistemática do controle do imaginário: esta não é uma tarefa que possa ser levada a termo por uma única pessoa, ainda mais, nas condições precárias do terceiro mundo. Contentar-me-ia se esta hipótese fosse julgada válida no sentido de uma melhor com preensão da obra ficcional em nosso mundo e, como também Sociedade e discurso ficcional e O fingidor e o censor, serão brevemente publicados em inglês, considero poder participar do diálogo internacional sobre a questão. Gostaria de traçar algumas considerações sobre qual a concepção de literatura e sobretudo, qual concepção de literatura comparada foi definida nesta démarche. Deve-se, ainda, perguntar em que medida este tipo de questão não leva a confundir a literatura com a história das idéias? A literatura, não seria ela, uma de suas manifestações? A questão não é inteiramente destituída de sentido. A hipótese com a qual trabalho opõe-se tanto ao isolamento da série literária quanto à pretensão que seus componentes se encontrariam investidos de traços textuais que lhes seriam próprios i.e., à existência de uma literaridade textual e definitivam ente estabelecida. Ou ainda, à pretensão que um produto,uma vezmodelado por procedimentosliterários permanece ria para sempre identificado, justamente, como obra literária. Esta caracterização da literatura iniciou-se no começo do nosso século, seja através de Croce seja pelo trabalho dos formalistas russos, com o reação ao historicismo positivista do século XIX. Propagouse com a explicação de texto" dos franceses e com o ncio criticism anglo saxão, atingindo seu apogeu com a corrente que se denominou o estruturalism o francês. Se a ênfase então atribuída aos procedimentos constituídos da obra dignificou o objeto literário - da mesma forma que as m icro-análises que eram feitas o liberaram do caráter de fantasma murmurante da história - em compensação a identificação dos elementos psico-sociais aos fatores extrínsicos (W ellek), por um lado, esterilizou o que havia de mais fecundo nas investigações de Tynianov e de Mukarovsky e, por outro lado, ajudou a desconectar a obra literária do solo histórico a partir do qual ela adquire seu significado. Reconhecen do sua importância mas divergindo da concepção que toma a obra literária, sobretudo sua espécie poemática, como o resultado da com binação de traços textuais, fui levado a colocar em questão a própria tradição dos estudos literários. Para não nos perdermos num oceano de correntes, de nomes e de dis-
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tinções, é melhor considerar a questão levando em conta a tradição que desde as primeiras décadas do século passado começou a prevalecer. Ninguém ignora que a idéia de estado-nação está na base da instituciona lização do estudo da literatura com o um corpo autônomo e não mais confundida com as formas de eloqüência. As literaturas distinguem-se então segundo o princípio da nacionalidade e os autores são dispostos em camadas diacrônicas que manteriam e renovariam um pretenso espírito nacional. Além desta disposição histórica, o objeto literário era ainda submetido ao exam e filológico. Donde a importância das categorias de fontes, influência, causalidade, vicissitudes biográficas, determinação de variantes e fixação do texto considerado com o texto crítico e definitivo. (4) Justificadas vagamente pela idéia de Volksgcist, os estudos literários do século passado apresentaram a curiosa peculiaridade de não questionar a natureza do seu próprio objeto. Tudo lhe dizia respeito menos, precisamente, o porque disto ou aquilo pertencerem à literatura. Daí a facilidade com que se praticava o anacronismo, identificando como literárias obras que em séculos precendentes, eram destituídas do conceito, posterior, de literatura. (5) Esta recorrência é bastante conhecida para que nos detenhamos neste tema. Entretanto é preciso assinalar que a legitimação dos estudos literários pelo princípio da nacional idade im plicava a vitória de uma das tendências observáveis na reflexão romântica sobre a literatura. Se repensarmos os ensaios de Schiller - Über die ästhetische Erziehung des Menschen - , de Shelley A Defense on Poctry e de Coleridge - "On Poesy orart" -, poderemos verificar que um dos seus denominadores comuns girava em torno da função social que a arte deveria cumprir. Em Coleridge, a arte é a mediadora, por isso, a reconciliadora do hom em com a natureza e teria por função restabelecer o equilíbrio que havia sido desfeito pelo desenvolvimento da sociedade. Além disso, esta reconciliação era destinada aos povos que haviam ultrapassado um estágio inferior onde os sons são "a mera expressão da paixão". Neste sentido Coleridge observava: "A assim chamada música das tribos selvagens merece tão pouco, do ponto de vista do entendimento, o nome de arte quanto, o ouvido o afirma do ponto de vista da música". (Coleridge, S.T.: 1818, 253). Antes mesmo de me questionar a respeito das consequências do evolucionismo no pensamento de C oleridge, pergunto-me sobre o que pode significar o equilíbrio declarado que a arte deveria restabelecer entre homem e natureza. O fato de encarar a busca deste equilíbrio, de saída, como a justificação da superioridade e do domínio das nações européias sobre as tribos selvagens seria um caminho correto mas demasiado cômodo. Já sua aproxim ação das reflexões de Schiller nos permitirá um melhor rendimento. Na im possibilidade de proceder a um exame adequado, sublinho desde já, no pensamento do poeta alemão, uma maior clareza a respeito de um diagnóstico da modernidade. De acordo com seu ensaio de 1795, esta se compõe de indivíduos fragmentados e disto decorre, simultaneamente, a superioridade do homem grego e a função que a arte do tem po deveria desempenhar. "Por que cada grego qual ifica va-se como representante de seu tempo e por queo homem moderno não ousa fazê-lo? Porque aquele recebia suas formasda natureza, que a tudo une, e este as recebe do entendimento, que a tudo sep ara." (Schiller, F.: 1795, carta 6,19). Se o homem grego, diferentem ente do homem moderno, permanecia em
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contato com a natureza, a função atual da arte seria, evidentemente, a reintrodução do equilíbrio perdido. Eis a í o papel da educação estética proposta como único meio, aos olhos de Schiller, capaz de modificar uma relação insatisfatória do indivíduo com o Estado. Mas como conseguí-lo? O elogio schilleriano do homem grego nos levaria a um equívoco se disséssemos que a sua posição é apenas nostálgica. Longe disso, dirá expressamente que as questões do passado nos mostram sempre "que o gosto e a liberdade evitam-se m utuam ente e que a beleza só estabelece seus fundamentos sobre os restos das virtudes heróicas. " (Schiller, Carta 10, 40). Esta insatisfação quanto ao exemplo do passado é ainda mais claramente explicitada em outra passagem: "Quantas formas frágeis de raciocínio não se colocaram em desacordo com a ordem social só porque a fantasia do poeta pretendeu erigir um mundo onde tudo se passa de outra forma (...)" (Schiller, Carta 10,39). Isto quer dizer que a educação estética enfocada por Schiller não se confundeabsolutam entecom oestím ulodoespíritocrítico,sendoesteúltim oconfundido com o delírio da fantasia e com o espírito de discórdia. A educação seria realizada pela harmonização do impulso sensível - onde o indivíduo é governado por seus apetites com o impulso formal - onde, ao contrário, nenhuma dependência em relação ao objeto entravava a liberdade de ação do sujeito. É através desta conciliação que, no Estado estético, o artista harmonizaria os campos científico e moral. A funcionalidade da arte se encontraria, assim, em relação direta com a formação de almas belas e sábias; interiori zada a lei, o cidadão estaria em condições de exercer a sua plena liberdade de ação. Enfatize-se pois: esta internalização da lei se opõe, em Schiller, ao desenvolvimento da criticidade. Estas observações sobre o texto schilleriano permite-nos entender melhor a direção estética como uma das forças centrais da justificação da arte na modernidade e/ graças ao paralelo com o ensaio de Coleridge, com preender qual seria o elo entre a justificação estética e o princípio de nacionalidade. Em outras palavras: o papel reconciliador do homem com a natureza atribuído à arte só poderia ser alcançado pelas nações civilizadas; i. e., segundo as palavras de Coleridge, aquelas onde os sons não são mais a mera expressão de paixões ou, segundo Schiller, aquelas que são constituídas por cidadãos que aprenderam a combinar seus im pulsos sensível e formal. Esta articulação do elogio do estético e do nacional não faz parte dos elogios habitualmente reservados à literatura. Entretanto, quando captado, como não reconhecê-lo na caracterização que Curtius fazia do modelo do bom europeu? Só conheço uma maneira de ser um bom europeu: ter fortemente a alma de sua nação e, com vigor, alimentá-la de tudo que há de singular na alma de outras nações, amigas ou inim igas", (apud, Wellek, R.: 1963, 288). O cidadão civilizado se caracterizaria pela interiorizaçãoda alma nacional sem entretanto tornar-se um chauviniste. O diário parisiense d'Ernst Junger talvez seja a melhor demonstração de como um nazista podia se encaixar nesta forma. Pode-se dizer que a concepção de literatura que estava na base da legitimação de seu estudo univer sitário implicava uma visão estetizante - estetizante, justamente porque não critica colocada a serviço de uma concepção imperial das nações civilizadas. Ou, falando claramente: a serviço de uma concepção imperial do Ocidente. Nada de novo, portanto, se acrescentarm os que a idéia de literatura
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comparada era, e ainda é, diretam ente ligada à de literatura nacional. Se, como sublinha um comparatista tradicional, ela estava reduzida a um lugar marginal pelo "chauvinis mo e provincialismo de outros departamentos literários" (Levin, H.: 1969, 82), sua evidência pressupunha pelo menos a relação entre duas nacionalidades diversas, onde uma identificava-se com a fonte irradiante e a outra com o campo que dela se beni ficiaria. Uma vez que é nesses termos que concebemos e formulamos a visão tradicional e majoritária da li teratura comparada, é evidente que nossas relações com ela não são relações de afinidade. N egar esta visão, é repelir a visão estetizante da literatura, deprezar o critério nacional ao qual ela es tá ancorada, renegar o positivismo, anti-teórico, que se contenta apenas em apontar fatos e que está em sua base.
*** Até aqui, a démarche expositiva adotada consistiu em enfatizar as corren tes das quais se afasta a minha própria orientação teórica-analítica. Trata-se, agora, de invertera direção tomada e assinalar a vertentecom a qual ela apresenta, de uma maneira ou de outra, pontos de contatos. No artigo "Com parative literature and literary theory", Jonathan Culler sublinha a ambiguidade que preside as relações entre a literatura comparada e a teoria literária. O comparatista, beneficiando-se da dificuldade enfrentada por seus colegas para justificar teoricamente a noção de unidade de uma literatura nacional, tem sobre estes últimos a vantagem de solicitar um certo apoio teórico que o justifique academica mente. "Estudantes de litera tura comparada sem pre investiram tempo e engenhosidade discutindo, gêneros, períodos, estilos de época, temas, como objetos apropriados para o estudo literário e que devem ter precedência sobre o outro objeto tradicional, a literatura de um estado nacional, organizada em suas sequências cronológicas" (Culler, J.: 1979, 170-1). Mas é precisamente nisto que a ambigüidade se mostra: apesar da voca ção teorizante" do comparatista, Culler observa, com razão, que desconhece qualquer departamento de literatura com parada onde este programa seja rigorosamente realiza do. Isto se explica, diz ele, pelo elo umbilical que une os departamentos de literatura comparada aos de literaturas nacionais. "A situação é que qualquer argumento teórico que coloque em questão a importância dos limites nacionais e promova outro tipo de unidade, (...) sugeriria, sebem desenvolvido, que a organização em termos de literaturas nacionais deveria reclamar por algum tipo de poética teoricam ente fundamentada" (Culler, J.: op. cit., 171). Poderiamos acreditar que aqui se estabelece uma aliança unindo, segundo a passagem de Hegel, os senhores e os escravos: a fome do lobo é facilitada pela docilidade das ovelhas. Que eu sabia, esta denúncia de Culler não teve desdobramentos. Com efeito, o princípio de nacionalidade, enraizado, como vimos na justificativa estética da arte e da literatura, permanece extremamente poderosa. Disso resulta a 'longa crise da literatura comparada" (W ellek, R.: 1963, 290) e se não se fala muito disso, é talvez
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simplesmente porque são poucos os que têm interesse nessa discussão. Não serei ingênuo a ponto de acreditar que a simples referência a um estado de coisas bastante conhecido represente um passo adiante. Meu objetivo é bem mais modesto: a situação de carência que acabamos de assinalar pode ser entendida como um dos efeitos da derrota de uma outra linha de força que se fazia presente na reflexão romântica. Já havíamos apontado a ligação existente entre a estetização da arte e o critério, enfim vencedor, das literaturas nacionais. Seria necessário assinalar, agora, a correlação oposta que se estabelece entre a pesquisa de uma caracterização do poético como atividade crítica e a ausência de uma reflexão teórica, desejada há décadas. Do mesmo modo que o recurso à - Ästhetische Erziehung - foi decisivo para a primeira relação; para a segunda, seria necessário apelar para as duas coleções de fragmentos de Friedrich Schlegel, os "Kritische Fragmente" (1797) e os Athenäum Fragmente (1798). Não podendo expô-los aqui, contento-me cm sublinhar um de seus aspectos fundamentais: aqueleque evidencia a relação entre poesia, crítica e estética. Os fragmentos 117 e 57 dos KF são essenciais para a relação ente a crítica e a poesia. Do primeiro, contentamo-nos em citar a abertura: "A poesia só pode ser criticada pela poesia". Mas não podemos de modo algum deixar de citar o segundo: "Se certos amantes místicos da arte, para os quais cada crítica equivale a uma dissecação e cada dissecação equivale à destruição do prazer, fossem consequentes, o melhor julgamento sobre a melhor das obras seria: que maravilha! Há muitos críticos que não dizem nada de melhor, apenas usam mais palavras". É apenas em aparência que estes dois fragmentos contradizem-se. Ambos sublinham que a crítica não pode ser uma atividade exterior ao poético mesmo (o que não se deve confundir com a afirmação que ela deva ser um poema!); que, tanto quanto o próprio poema, ela é também poiesis. Razão pela qual não se confunde com exclamações entusiásticas. Em resumo, para Schelegel crítica e poesia são partes inseparáveis. O que o jovem Benjamin na dissertação sobre a crítica romântica, surpreendentemente, já perceberia: "É apenas com os românticos que a expressão "crítico de arte" opõe-se definitivamente àquela que lhe era anterior: "juiz de arte" (Benjamin, W.: 1919,52). Ora, esta ênfase na crítica enquanto atividade interior - "kantiana", uma vez que orientada pela exploração e verificação dos limites de um modo de conhecimen to - e não exterior, o que é próprio dos juízes que pronunciam sentenças, era afastada da estética por Schlegel: A palavra estética", no sentido que lhe é correntemente atribuído na Alemanha, trai, como sabemos, a total ignorância tanto da coisa designada como da língua que designa. Porque ela se manteve?" (Schlegel, F.: op. cit., 170). O êxito que obteria o ensaio de Schiller mostraria que o erro que estava na origem da escolha da palavra "Ästhetik" respondia a uma necessidade histórica. A cultura burguesa coloca a arte "acima de qualquer suspeita" desde que investida de um instrumental que a neutralize. Afastada de sua função questionadora - como o mostraria o decorrer dos tempos - a ficção torna-se divertimento lúdico, meio eventual de preencher a ociosidade dos carrascos "civilizados". Insisto: o controle do imaginário que buscamos mostrar não é desmentido pelo prestígio que o século XIX atribuiu à arte. Este prestigio se sustentava na prévia neutralização do seu potencial questionante.
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*** Eis a arqueologia que poderia traçar de minha posição. Da tradição constituída a partir do final do século XVIII, afasto-me da vertente estctizante-nacionalista que, pouco mais tarde, se torna factual-positivista. Por outro lado aproximo-me da direção crítica, internacionalista e interpretativa. Mesmo que resum ido, este exame não poderia prescindir de uma avalia ção da cena atual. Assinalando primeiramente nossa discordância quanto à tentativa de caracterizar a literatura por meio de traços textuais próprios, de uma certa maneira nossa tarefa torna-se mais fácil: no mercado acadêmico, os "new critics" e os métodos estritamente estruturalistas estão em baixa. Mas o que dizer da desconstrução? Como este ensaio deve ser breve, limito-me a destacar o dado indispen sável: a reflexão desconstrucionista sobre as fronteiras da literatura. São numerosos os méritos do desconstrucionismo. Seus praticantes aboliram o cordão sanitário que os "new critics" haviam posto em torno da poesia, proibindo-lhe o contato com o mundo das idéias; um deles, Paul de Man, no artigo "Aesthetic formalization: KleisPs Ü bcrdas Marioiiettaithcater", chamou a atenção para a força e as consequências da justificação estetizante da arte; são eles que estimularam o especialista em literatura a retornar aos textos acadêmicos distantes de sua área, sobretudo aos textos filosóficos e religiosos; foram eles que denunciaram a unicidade da obra e ressaltaram a crítica da "au ra" que envolve o criador. A tudo isto junta-se ainda a dignidade que conferiram ao trabalho sobre a literatura, agora capaz de influir nas pesquisas antropológicas e históricas. Sua influência pode ser avaliada pela disseminação de suas idéias num livro como The Ccncsis o f Secrccy, cujo autor, Frank Kermode, obviam ente não pertence à corrente. Num plano geral seria ainda preciso louvar o combate que encetaram contra as classificações limitadas e estanques que estabeleceram o lugar definitivo do que se deveria denominar religião, ciência, filosofia, crítica, ficção, etc. Creio que um livro como Criticisni in the wildcrncss, de C. Hartmann é hoje uma leitura indispensável para aqueles que não se contentem cm considerar a crítica como um comentário, uma ordenação sistemática ou uma divulgação da obra literária. Pois, tanto quanto a poesia, a atividade crítica é um problema de linguagem. O crítico terá apenas um êxito fugaz se não for estimulado por um "im pulso ficcional" ou se não tornar seu leitor consciente das ficções críticas contidas nos textos de que trata (Cf. Hartmann, G.: 1960,201). Ele não se coloca nem aquem nem além do terreno onde trabalha o poeta. O ato de desconstruir implica a desmistificação do gênio criador, da originalidade absoluta e do privilégio conferido à noção de autor. Por outro lado supõe "estar consciente que toda escrita é uma fusão de histórias heterogêneas" (Hartmann, G.: 1986, 13). As paredes que encerravam em compartimentos fechados poetas e pensadores, romancistase historiadores, narradores e cientistas passam a ser eliminadas. T u d o is s o é f e c u n d o e e s t im u la n t e . M a s a id é ia d o te x to c o m o u m a sed im en tação m ú ltip la e h e t e r o g ê n e a a im p l i c a r d i s c o r d â n c i a s e c o n t r a d iç õ e s i n t e r n a s não sig n ifica ria q u e a s c l a s s i f i c a ç õ e s d e te x to n ã o s ã o a p e n a s t r ib u tá r ia s d o m it o d o sujeito in d iv id u a l, a u t ô n o m o e c r ia d o r ? A s s im p a r e c e s e r a o r ie n t a ç ã o d o s m e l h o r e s d esco n stru to re s. A s s im , e m s e u e n s a i o s o b r e o e p i s ó d io d a lu ta e n t r e J a c ó e o A n jo ( C e n :, 32), H a rtm a n n a c a b a p o r a f i r m a r :
Van Gogh, "O s Sapatos" ó le o sobre tela, 34 x 41,5 cm Museu de Arte de Baltimore, Paris, 1887
"A universalidade do combate de Jacó e o anjo, finalmente, repousa neste outro combate para um texto - uma suprema ficção ou relato autorizado que seja despido do supérfluo, de todas diversões, de tudo o que podemos descrever como arbitrário, provinciano, até mesmo estético" (Hartmann, G.: 1986,16). As conseqüências da posição tomada por Hartmann ficam mais claras se relacionamos a passagem acima com a reflexão de Paul de Man, em The Rcsistence to Theory. Definindo-a como uma resistência à própria leitura, Man se opõe a Jauss e Iser, uma vez que eles "não permitem a problematização do fenominalismo do ler e por isso permanecem confinados acriticamente dentro da teoria literária enraizada na estética" (Man, P.: 1986,18). À leitura estética, portanto, se opõe uma outra, de ordem retórica i. e., aquela que dirigida para a determinação de estratégias expressivas que orientam o texto analisado. As leituras retóricas, acrescenta ele, "são teoria e não teoria ao mesmo tempo, a teoria universal da impossibilidade de teoria. (...) Nada pode se sobreporá resistência à teoria, uma vez que a teoria é, ela própria, esta resistência" (Man, P. de: op. cit., 19). É impossível fazer justiça aqui à força desta passagem. Basta observar que
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a leitura retórica incorpora à própria teoria, a referida resistência à teoria, isto é, ela torna esta resistência - que não se confunde certamente com a resistência banal à teoria fundamentada na evocação de clichês tipo - participação intuitiva, emoção provocada pela poesia, invenção do autor, etc. - em algo positivo pois a retórica desvenda o texto como um conjunto indeterminado, tendendo sempre a disseminar-se em outras figuras, interpretações, e outros... textos. Pela maneira com o a enuncia Paul de M an, a posição desconstrutiva apresenta o problema de não considerar o rendimento do texto no seio das sociedades nas quais circula. Neste sentido, o desconstrutivismo segue o mesmo caminho do "new criticism": um e outro hipostasiam o texto. Se os "new critics" limitavam-se aos textos literários,osdesconstrutivistas alargam seu campo de ação chegando mesmo ao trabalho da linguagem. É sem dúvida bastante útil e fecundo desconstruir a oposição entre literaridade e linguagem figurada e mostrar, como faz Derrida em "La Mithologie blanche", o salto metafórico por meio do qual Aristóteles caracterizava a própria metáfora. Esta não é mais específica aos discursos ornam entais e sua presença nos discursos científicos mais rígidos leva-nos a renunciar à idéia da ciência como reconliecimcntodas propriedades já contidas na coisa per se. Admitimos a instabilidadeconstitutiva do texto e igualmente admitidos que todo relato, seja em prosa ou em verso, é uma construção, e que a ficção, conseqüentemente não tem fronteiras fixas. Mas destacar apenas este aspecto significa professar ainda uma espécie de substancialismo - a substância da linguagem seria sua própria indeterminação de que decorre sua pregnância dissemina ti va. Ora, todo texto pressupõe uma linguagem e esta encontra-se sempre na situação do jogo de palavras, isto é, pressupõe sem pre parceiros que a recebam, a elaborem e dela se sirvam seguindo as normas e as conveniências sociais. Fugir disto em nome da indeterminação constitutiva da linguagem seria torná-la literalmente um objeto méta-físico. Precisaríamos então acrescentar: a determinação do sentido e a escolha entre as diversas possibilidades de significação que um texto oferece variam segundo a rede que preside sua produção e recepção. Certamente não há traços textuais que distinguam textos filosóficos de textos poéticos ou textos poéticos de um texto religioso. Mas à identificação de seus procedimentos retóricos devem-se seguir as questões históricosociais, postas face às situações discursivas onde tais procedimentos acontecem. Mais claramente: à indeterminação da linguagem é preciso acrescentar a análise da idéia de discurso, compreendido como uma form a de territorialidade. O que importa em considerálo como constituído por uma série de marcas, verbais ou semiológicas, que indicam ao interlocutor individual ou coletivo, qual a forma de recepção esperada. Historicamente, os textos deslizam de uma forma discursiva para outra, na medida em que têm a possibilidade de atualizar diferentes constelações de traços, considerados como as marcas próprias de um outro discurso que não mais aquele visado originariamente. O horizonte estético, e neste ponto concordamos com Paul de Man, estabelece um limite arbitrário à mobilidade do texto. Em compensação, o horizonte retórico acentua de tal modo a indeterminação do texto que torna impossível reconhecer, do ponto de vista social, seu funcionamento e suas diferenciações. Em poucas palavras, se não há marcas próprias à literatura, ela também não dispõe de um território que lhe seja próprio, pelo menos desde o Quixote. Impossi-
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bilitados no momento de melhor análise, acrescentamos simplesmente: o ficcional não é aquilo que se isenta da dicotomia "falso ou verdadeiro", mas o que permite a perspectivização da verdade. Seu caráter sui generis, como mostra W.Iser, consiste em estimularesta perspectivização, sem que proponha uma outra verdade. Quando conside ramos o controle do imaginário, analisamos as condições histórico-sociais que impedem ou restringem a atualização do território ficcional. Pelo menos fica agora mais fácil compreendera razão da presença do controle: numa sociedade guiada por um princípio de verdade experimental, como a moderna sociedade ocidental, a existência de um território não só "questionador" da verdade como, além disso, que não propõe uma outra verdade, só pode causar escândalo. A justificação estética da literatura e da arte sempre procurou dissipar este seu traço crítico. E por isso que encaramos sua presença como umvigoroso testemunho da existência do controle. * Conferência apresentada para discussão no “Departenient de Littératiire Cotnparce" da Universidade de Montreal cm 19 de fevereiro de 1991.
Notas: (1) Escreve Luhmann: "No caso da verdade, a percepção adquire uma importância específica; no caso do am or é a sexualidade" (Luhmann, N.: 1975, 62). (2) Embora não estejamos em condições de explorar a fonte, parece-nos extremamente fecundo considerar com Leo Strauss a diferença de caráter que tem a Revelação divina no mundo cristão, judaico e muçulmano. Enquanto nos dois últimos casos a Revelação é identificada com a Lei, no primeiro caso é identificada com a Fé. No primeiro caso, o filósofo só tem lugar enquanto intérprete da Lei enquanto o cristianismo lhe assegura um papel conciliador da fé e do logos. Como aponta Strauss, a rejeição do filósofo no islamismo e no judaísmo não foi, necessariamente, um in fortúnio pois, a menos que ele se tornasse o agente da Lei, sua atividade tornava-se, esta sim, necessariamente privada enquanto que, em contra partida, o oficial reconhecimento da filosofia no mundo cristão tornou a filosofia sujeita à supervisão eclesiástica" (Strauss, L.: 1952, 21). Ora, à medida que o controle é exercido pelos poetólogos, ou pelos próprios poetas, o filósofo assim 'articulado" é o primeiro motor de sua efetivação. Cf, neste sentido, o levantamento que faz R. Kearney (Kearney, R.: 1988). (3) O controle do Imaginário, Rio de Janeiro, Forense, 1989, 2a edição. (4) Cf. a este respeito o belo texto de Bernard Cerquiglini: 1989. (5) A propósito dos séculos XVI e XVII, cf. Marc Fumaroli: 1980.
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Referências Bibliográficas:
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Luiz Costa U m a ó doutorem Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela USP e professor do Programa de M estrado em Historia Social da Cultura, da PUC-RJ.
P U . r T M* V,sta 1 «noramica do Cor lUVilUC Publicada em Nosso Século, Volume 0 Editora Abril, s/d
ELIANNE A NDRÉA C A N E T T I JO B 1 M
O Risco e o O lh a r: sobre a im a g em da C id ad e d o R io de Jan eiro
“A cidade é um corpo d e pedra com um rosto". Machado de A ssis (1) Este texto pretendo observar o processo de formação da imagem da cidade do Rio de Janeiro, fazer uma leitura de sua visualidade de modo a distinguir, entre as imagens de sua imagem, por assim dizer, as suas várias faces e os modelos que supõe. A situação geográfica da cid ad e, em torno de montanhas à beira-mar, possibilita uma leitura peculiar da relação entre o natural e o construído, o sítio e o risco urbano e sua arquitetura, num jogo rico d e tensões e acordos, conquistas e recuos, em que a imagem da cidade como um to d o seap óia c fragmenta sistem aticam ente nas linguagens diversas de desenhistas, fotógrafos, arquitetos e urbanistas. A contemplação de panoramas, as características naturais e seus privilegiados pontos de obsei vação são os mais precis e frequentes componentes d essa imagem e chegam a ser confundidos com e a. orn ^ se, como a Torre Eiffel de B arthes (ou o pintor de M erleau I onty), (2) uma v*sa° ^ objeto com "ambos os sexos de visão", (3) símbolos visíveis da possi 1 1 A história u rbana do Kio não é especialm entó original. Ç o m o ouba cidades da América, esp alha-se a par.ir de um protegido porto colon»' *- a , sendo transformada incessantemente pelos rumos de sua urbanizaçao. “
- cm dia<
nomes próprios são substituídos, os contornos f,s' " S “ la’™ breVive como uma espécie andando pelas ruas, se tenta recom por a sua image , ««tem ente díspares e de espaço gago, mistura ainda indiferenciada de elem entos aparentemente d.spar hiatos de tempo e de história. As cidades tem um caratcr
ma de coreS/ cheiros, luz, visão se faz no m eio das
temperatura e espaço, sua com preensão sc dc Y constante para a percepção coisas". (4) O seu imaginário espacial atua como^re c ^ habitantes, num processo e a consequente formulação d e im agens e concei tam Numa cidade capaz de interativo em que cidade e hom em s e m o lc la m c a le g ib ilid a d e f a v o r e c e a produzir uma imagem ao m esm o tempo níti a e f ^ ' 5o cuitura e mitologia. A comunicação de símbolos e m em órias coletivas L sua pr(5pria diversidade, do sua identidade só pode surgir a partir da rc exao ^ ^ paisagem, ruas e préeventual acordo harmônico entre a função e o sigm ao espaço urbano como um lios. E não obviamente dc m aneira isolada, nr ^ diversas faces, que possibilitem odo, pensando-se novas relações c leituras e d e valores (...) históricos, morais, ' •administrar, no interesse com um , um Pa tn " lo n \ cntariadosou sedimentados .(5) oletivoseindividuais;devidam entcrecon cci o
William John Burchell, Parte do Panorama de 360 graus executada do alto do Morro do Castelo, 1S25 Lápis e aquarela, 37 x 54 cm Coleção Biblioteca de Johannesburg, África do Sul Publicado em Gilberto Ferrez, O Paço Impérial Fundação Nacional Pró-Memória, Rio de Janeiro, 1985
Para G. Cario Argan, a cidade moderna deve cumprir o trânsito do concreto, da dureza das coisas, até a mobilidade das imagens, para realizar uma abertura que traduz-se iyn vários outros planos, sobretudo na capacidade de tom ar decisões éticas e políticas.
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O Olhar
Das montanhas do Rio, o primeiro cartão-postal de sua imagem, o Rio é visto a seus pés. O sítio é o grande tema: a particular im ersão da cidade na natureza - o sol, o mar, a floresta, os mitos da criação. Em desenhos ou fotografias, o Rio é panorama. A paisagem parece convidar ao desenho a vôo de pássaro, vistas dos morros próximos - Castelo, Santo Antônio e Senado - de ilhas da Baía, ou de navios imaginados ao largo do cais. O olho se centraliza em perspectiva aérea e gira: a cidade ao seu redor se esparrama. As imagens, como os relatos dos viajantes, falam de outros tempos, espaçoso mi tos; com os morros desaparecidos, novos pontos de vista, mais altos e distantes, serão necessários. No Rio, a primeira im agem é o contorno das montanhas e seus pontos de observação privilegiados. De lá, a cidade (com o uma Esfinge), banhada pela natureza, vista do alto, pode ser lida como um "tex to ".
Marc Ferrez, Vista Panorâmica do Corcovado, c. lS9t
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Publicada em Cilberto Ferrez, O Rio A ntigo do Fotógra o . •' Editora Ex-Libris, Sâo Paulo, 1984
O ponto do vista cloito é o do fotógrafo que mago mediador do aprisionam ento do real c .sua elege seus em blem as e reproduzível: o olhar constrói a im agem , tconiza sc ) , ondcoenquad ramento valoriza o banal. A fotografia revela um olho plano, con r* ‘ ' - Qdo mUndo, entre sugere bordas acidenta is. Faz a interm ediação entro o sujei o l . QS instantes do o olho e a rua. É uma janela para a paisagem capaz «. <- man imaeina revelação tempo", (7) que busca reter; *d m c póstum o" (8) e sile n c o so , que sc imagin da verdade inequívoca dos m istérios do ser. „rnnte seu caráter A fotografia, no cn tan .o , nasce da « " ^ r^ ‘u ir, . realidade: documental justamente pelo papel de represui F itosd aocu p ação urbana,que fotografias de cidades deixam transparecer os mo c c - ^ q jlomern e a natureza. A são o produto de oposições e harm onias da relaçao e ' rafjas de cidades situadas compreensão e totalizaçâo d essa relação, nas primeira ^ acentuara nCcessidade de num meio físico excepcional, com o o Rio de Jan u ro , p ^ construção, na escolha dos se reportar a um olhar rom ântico durante seu i , a cidade que surge, aos olhos pontos de vista que ajudam a construir nosso im aginar ^ da realização do sujeito, maravilhados do início do século, é o território CSP e . seuS contemporâneos com Os fotógrafos da cidade ordenam a re ^ ° ^ d o r dcstaCa, da paisagem o meio urbano, a escolha d e seu ponto <- c vis *
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CÁVEA
indiferenciada, o que deve ser visto e valorizado, criando seus próprios clichês, que se multiplicam em cartões-postais, produtos de consum o visual. A escalabuscaa totalidade, o panorama, garantir a identidade do todo dentro do enquadramento da objetiva. A distância possibilita uma maneira de abarcar o espaço natural, mas a imagem é limitada a pontos de vista reais, ao contrário do que ocorre nos desenhos a vol d'oiseau, ondeo artista se pode posicionar num ponto im aginário, com a virtude de englobar a cidade na imagem. No Rio, os pontos de vista coincidem com os pontos da natureza que, privilegiados, entronam-se também. As vistas do Rio de Janeiro são as vistas dos morros: dos menores e desaparecidos do Centro aos dom inantes e panorâmicos, entronizados em vista-em-si, visão também, imagens da possibilidade da imagem; sua conquista, ampliando o olhar, descobre novos territórios a desbravar. E a reter. Novas técnicas serão necessárias para atingir a imagem fiel da im ensidão sem distorções - câmeras giratórias, negativos em largo formato, reificações reproduzíveis de pontos de vista também desbravados e eleitos. Nesta construção do olhar, contrói-se a imagem da cidade. A primeira face identificável da cidade fotografada permanece como pano de fundo: o conjunto arquitetônico é harmônico e equilibrado, o casario se estende do mar pela planície com suas fachadas regulares, gelosias e telhados de cai mento suave. As torres das igrejas pontuam os cam inhos, as funções c os ofícios parecem ter lugar e nome próprio, dos morros dom ina-se a paisagem. M as a cidade de fato escapa ao todo: como sua imagem, éelusi va. A captura intuitiva da fotografia urbana, ao misturarão seu tema principal a presença da realidade em pírica, os rostos dos passantes, o inesperado do momento, enquanto reafirma a autoridade factual d e sua imagem como crônica, possibilita sempre novas leituras. Ao olhar para as antigas fotos do Rio, somos levados, numa espécie de jogo fatal, a perceber totalidades onde hoje conhecemos fragmentos anommos, e a reconhecer traços da paisagem diária ainda enquanto possibilidade, misto es um ramento c perplexidade diante do futuro que sabemos. Para Argan, a cidade moderna n io é C cslall, mas C cslallung . (9) As cid ad es se fazem o tempo todo e sua imagem nao se completa numa forma, ela resulta do acordo entro suas várias faces.
Marc Ferrez, Vista do Castelo, 1885 Vê-se a Rua Direita, o Largo do Paço e o Porto
Lto?at?ubriibSo%F::;“ ',?s4Rio An,iso do Fo,ó*raf“
Marc Ferrez, Enseada do Botafogo, 1880 Publicada em Gilberto Ferrez, O Rio Antigo d o Fotógrafo Marc l errez Editora Ex-Ubris, Sâo Paulo,1984
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O Risco
“A noite é clara e q u en te; podia ser escura c fria . e o efeito seria o mesmo. A enseada não difere de si. Talvez os hom ens venham algum dia a atulhá-la de terra e pedras para ev casos em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corrida i c cavaco possível debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, barão, e que morreremos an Machado d e A ssis (10) O padrão da ocu pação urbana do Rio de Janeiro é características físicas, canalizando o crescim ento ao longo c os v a L a ee n se desmonsucessão de conquistas sobre pântanos e montanhas, com aterros, c rc i i a básica que foi tes, definindo os contornos c os lim ites dos bairros e pro vem o uma n ‘ cenário sendo preenchida e superposta por diversos traçados n o T i = selvagem será a matéria bruta perpassada pela vontade do eolom zador.q^ adjetiva os morros, pontos fundam entais que darão sen i o a A té o in fd o d o sé cu lo X X ,a malha^urbaiw a c .
Rio(j e ja n eiro sofre ^ jelo d e uma
um crescimento orgânico e o risco original base a se . ; , LÍor;seU olhar e sua ação cidade ideal e sim na oganização espacial possive ao co om ^ g simt ><3iicas, por situam a escolha do sítio, ordenam funções e fma ^ ^ condiqões e a imagem de sua vez, começam a lhe dar nom es e valores, es c transform aro vazio sua ocupação. B.Zevi vê a arqu itetura como a busca c humano. M odelos sólidos ameaçador em espaço "d o m ad o", produto da razão, para ibilidadesdo tem po.N as e protetores são c r ia d o s segundo o gosto, as necessidades e p
Lito. Victor Frond, Mosteiro de São Bento Visto da Ilha das Cobras, 1870 Publicada em Castão Cruls, Aparência do Rio de Janeiro Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1965
colônias, os modelos são inevitavelmente importados. Assim, na colônia, uma das faces do fazer da arquitetura traduz certa visão da Utopia - a pulsão do modelo é realizar-se, seja sobre o território vazio ou ocupado. As terras descobertas, por sua diversidade, constituem um manancial de trocas entre o imaginado e o relatado, o que neste momento inicial assegura que as utopias existem. Logo, porém, as utopias voltarão a ser apenas um lugar lírico na imaginação, pois o que se impõe é a necessidade de dom inar novos espaços - e a razão européia encontra diante de si um universo de diferenças para absorver e processar. O pensamento barroco que vai ocupar esses novos espaços pode ser visto como uma tentativa de compreensão do heterogêneo, uma lógica suficientemente forte e plástica que não se deixe abalar por fato algum. A fé deve ser a mesma para salvar todo tipo de paganismo: desde os mais sofisticados, oriundos de culturas milenares, até os mais selvagens, dos "paraísos" tropicais. O pensamento europeu do século XVII acerca-se do mundo estabelecendo limites entre as diversas formas de conhecimento, antes imersas num fundo confuso e indefinido. Cada coisa passa a ser entendida como signo, i.e., formas em que o pensamento, que pretende ser livre e assumir sua autonomia, pode pensar o mundo. As relações entre o homem e o real serão intermediadas por toda uma rede de signos, condições da existência da nascente sociedade de massas urbanas e seu limite - Religião,
Marc Ferrez, Vista do Passeio Público, Igreja da Lapa e ao fundo, o Morro do Castelo, 1S75 Publicado em Cilberto Ferrez, O Rio Antigo do Fotógrafo Marc Ferrez Editora Ex-Libris, Sáo Paulo, 1984
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p fcrre z . Morro do Castelo, 1890 Editor, c0etm,Gilb^rto Ferrez, O Rio Antigo do Fotógrafo Marc Ferrez “"tora Ex-Libris, S5o Paulo, 1984
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Rei, Etiqueta e vários outros sinais cumprem a função de interpretar o mundo e tornálo habitável. A concepção urbanística do barroco europeu impõe-se sobre a malha anterior com o intuito de adjetivá-la. Sua força ordenadora atua diretamente no mundo, intervém no traçado das cidades criando avenidas e interligando monumentos, pon tuando a cidade em novo sentido. Na colônia, a malha já se dispõe segundo esta ordem simbólica. No Rio de Janeiro, entretanto, essa razão parece sofrer um abalo diante da potente natureza tropical, que ameaça ultrapassar seus limites e despertar sentimentos de impotência e exaltação: o sentimento do Sublime. O homem que aqui chega tende a repetir os afetos e gestos de sua cultura européia, mas sofre a impressão dessas forças naturais e aparentemente não consegue expandir sua razão livremente. A sua ação não se dá contra um ambiente já estriado, como na Europa, mas em um espaço vazio, repleto de marcações dadas pela natureza. Assim, a organização da cidade ocorre sobretudo em relação à natureza: direcionada por ela e também reagindo a ela, reiterando a tentativa de impor sua lógica a esse mundo. A implantação barroca no Rio de Janeiro não é, portanto, o simples transplante de um modelo, mas o produto complexo do deslocamen to de pessoas de uma cultura para um outro ambiente, onde essa cultura revela-se até certo ponto inadequada. Nessa atuação, os fundamentos de seu pensamento organiza dor vão entender a topografia local como figuras geom étricas ideais que o convidam a ajustar suas unidades (a casa, a quadra) às formas da natureza. Para além da cidade está o lugar da natureza, espaço não organizado,"... fronteira entre o habitado e o inabitável, entre a cidade e a selva, entre o espaço geométrico ou mensurável e a dimensão ilimitada, incomensurável do Ser", em que "a cidade é a dimensão do diferente, do relativo, do ego, e a natureza sublime é a dimensão do transcedente do absoluto, do super-ego." (11) O povoamento da cidade começa no M orro do Castelo, no interior da Baía, Jean Baptiste Debret, O Largo do Paço, 1825 Pintura litografada por Thierry Frères, 12,8 x 37 cm Coleção Biblioteca Nacional, Publicada em Gilberto Ferrez, O Paço Imperial Fundação Nacional Pró-Memória, Rio de Janeiro, 1985
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Augusto Malta, Avenida Central, 1906 Publicadoem H. L. Hoffenberg, Nineteenth Century South America in Photographs Dover Publications, New York, 1984
região de bom porto e de defesa, rodeado por terras pantanosas e com uma boa visão da entrada da barra. Ali se instalam a Fortaleza, o Colégio dos Jesuítas, a Casa do Governador. Ao final do século XVI, a ocupação se estende para a planície: a região pantanosa é estriada no padrão retilíneo que determina a malha da cidade, em traçado paralelo e perpendicular à costa, formando quarteirões. A cidade começa a se espalhar no quadrilátero formado pelos M orros do Castelo, São Bento, Conceição e Santo Antônio: como em outras colonias católicas, o crescim ento é protegido pela sombra das torres das igrejas, que dão um caráter sagrado às montanhas. Ruas são nomeadas por sua igreja ou atividade principal. O aparelho burocrático cria cargos, funções e serviços, os poderes clerical e monárquico ajustam entre si o dom ínio da nova colonia. A cidade gradualm ente desenvolve sua autonomia baseada na atividade do porto. O traçado dos futuros eixos de crescimento é delineado ao longo das encostas e vales, com sobrados e chácaras. A terros e drenagens vão sucessi va mente cria ndo novas áreas; espaços públicos sim bólicos se formam em pontos de confluência e vão sendo organizados com paisagismo, sugerindo a contemplação pitoresca conduzida por aléias sinuosas, jardins europeus, bancos e terraços, pontuados por chafarizes e monumentos. Passeio Público, Largo da Carioca, Campo de Santana, Quinta da Boa-Vista. As institui ções se aprimoram, os portos se abrem ao comércio, o poder revela, na cidade, sua face burocrática e mudana. Fundam-se horto botânico, biblioteca e academia. Ordem e simetria organizam a arquitetura oficial do agora Vice-Reino, e volumes de formas clássicas e inequívocas se popularizam enobrecendo detalhes de fachada de velhos sobrados portugueses. Ferrovias e bondes conduzem técnica se ofícios novos, imigrantes e ornamentos. Serviços públicos, iluminação, marcenaria, fundições, lambrequins, vidros, novas relações de trabalho e de consumo. Ladeiras vão vencendo distancias
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depois encurtadas por túneis. Praias oceânicas abrem novas possibilidadesao olhar, com vento, maresia e novos modelos de ocupação. A cidade se desenha e qualifica: agora é capital, rosto exterior do país, república tropical. Precisa se atualizar, justificar nas fachadas os prazeres urbanos: cenário de elegância e grandeza, expressão frívola do poder que se auto-monumenta e focaliza em avenidas e obeliscos. Novos eixos urbanos são criados rasgando e deslocan do a malha original, levando a seus próprios rumos e pontos-de-vista. Os antigos morros provedores de visão a vôo de pássaro abrem espaço para os novos traçados do artistedémolisseur; o olhar vai da abstração e escala das plantas para seu objeto, o novo chão a ser ocupado, organizado pelas perspecti vas retilíneas e diagona is de grandes boulevares arborizados, cafés e teatros. As ruas a tingidas se retraem, descontextualizadas, o sinuoso permanece nas fachadas e no desenho da pavimentação. Na cidade moderna, os caminhos se geometrizam, conduzindo não ape nas o olhar, mas os passos, ou os automóveis. A venidas mais largas, eixos de deslocamento de tropas e massas, arranha-céus, novos planos de "afirm ação do homem contra ou a favor da presença da natureza". (12) A planta agora é de situação, do avião para a prancheta. A paisagem é emoldurada pela geometria, diferenciada do construído, forma pura que pretende tudo ver e prever. A arquitetura passada é adjetivada, espelho do que não é presente. É selecionada em si, como maquete, não como conjunto. Áreas extensas são demolidas abrindo espaço para novas vistas eleitas. Não há muito mais o que se ver. Os prédios voltam-se para dentro, informatizam-se, isolados da luz da paisagem por vidros escuros, abolindo as calçadas e os próprios pilotis, símbolo da integração urbana moderna. O olhar é substituído pela circulação.
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A Imagem
“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que vejo c o beco." Manuel Bandeira (13) A malha criada pela ocupação urbana do Rio de Janeiro até o início do século XX revela uma face curiosa. Por um lado, suas linhas básicas são definidas por condições topográficas e a cidade cresce tendo que se adaptar a elas. A este padrão correspondeum traçado que poderia ser chamado de orgânico, de leitura fácil ehistórica. Por outro lado, está a visão que determina a paisagem primeiro enquanto quadrilátero virtual, depois nomeia e entrona seus vértices, e depois ainda o secciona internamente. O traçado aparentemente orgânico revela então sua subordinação às arestas e aos símbolos. Largos, mirantes e chafarizes criam novas pontuações; em torno deles a imagem da cidade se faz em sons e água, mas continuam subordinados: Colégio e Forte continuam seencarando de frente, enquanto sesmarias são doadas nas secções. O Rei fica no Porto e na Casa da M oeda. Como vimos, intervenções sucessivamente alteram o desenho original, muitas vezes de maneira definitiva, inclusive em seus contornos geográficos; a malha urbana resultante exibe os efeitos dessa superposição de traçados e prioridades, onde a
Panorama do Pão do Açúcar e Baia de G uanabara, c. 1945 “ostol Colombo, s/d
legibilidade e coerência do conjunto parecem comprom etidas. O olhar do planejador do início do século XX tenta se relacionar com o espaço da cidade de maneira a afirm ar seu domínio não apenas sobre este traçado original, mas também sobre a natureza, ainda inculta e mistoriosa. Ambos são igualados e negados: a memória do passado colonial e a presença de sua própria especificidade. Suas prioridades falam de adaptação a modelos ideais, progresso, evolução, ciência. No risco, é justamente sobre as arestas e vértices que vai atuar. Busca subm eter o desenho pela força de um novo traçado, mais largo, claro e urbanizado. A cidade que lá está para ser ocupada não é mais o território liso" (14) da imaginação, mas um campo real cheio de afirmações que é preciso transformar. A nova leitura é absoluta: corta a malha original depontaa ponta, em vários pedaços, secciona as seções, subverte seus rumos, mede seu poder: Estado e Técnica, lado a lado tomam posse da capital e a saqueiam. O símbolo se fundamenta na arbitrariedade. O traçado que atua repete o gesto do que tenta apagar, com o duas faces da mesma moeda, desenho deslocado no espaço. O mundo é que já está mais alienado e o processamento da diversidade é eclético e superficial. Não tem a mesma eficácia e beleza do modelo. É condenado a simulacro, a face mais visível de uma mudança de poder que de outra forma teria passado meio despercebido por pessoas com o o Conselheiro Aires. (15) M as que remédio, é preciso ser moderno! Para a cidade todo esse processo é rito de passagem. O arrasamento do
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Morro do Castelo nos anos 20, pode então ser visto em toda sua significação, ponto de vista pioneiro da história da cidade. As alegadas "necessidades de ventilação" por si só parecem pouco para justificar uma obra tão radical; os terrenos que surgem em sua esplanada abrem espaço para pavilhões internacionais, grandes ministérios e avenidas em escala maior que as ruas onde desaguam. O mesmo princípio orienta as dramáticas aberturas das Avenidas Central e Presidente Vargas, cada uma a seu tempo e escala, que desaparecem com tudo que estava em seu caminho, ruas, casas, praças, igrejas, memórias; o que sobra parece estar ameaçado de atropelamento. A Avenida Chile, aberta com o desmonte de Santo Antônio, nos anos 50, é ainda hoje zona indiferenciada, semiocupada, onde a urbanização da escala humana é prescindida - não há calçadas nem mesmo pilotis. Requisitos de trânsito justificam também os viadutos para vias expressas que vão sendo colocados indiscriminadamente sobre a malha urbana já alterada, numa dupla negação. A A v. Perimetral passa absoluta sobre o que restou do antigo cais e Largo do Paço - e lá permanece como barreira intransponível para o olhar ao primeiro acesso ao mar da cidade. Ao longe, da Ilha das Cobras ou dos navios antes imaginados ao mar, sua presença acaba com a visão do conjunto da cidade original, tão desenhada e fotografada: da ponta do Calabouço ao Castelo, que não mais existem, a São Bento. Nomes e fragmentos de ladeiras inúteis são deixados para trás, isolados e destituídos de função e significado. Fundos de vales e áreas residenciais são atravessados por corre dores de trânsito. Nos anos 60, Brasília é o novo modelo, e o Rio se diferencia, voltando-se para seu próprio passado colonial, agora enobrecido. Novos planos vão demolir quarteirões inteiros na Lapa e no Mangue, áreas boêmias e decadentes, abrindo espaços para gramados com a intenção de provir dramáticos pontos de vista para as "relíquias" coloniais, o Aqueduto, o Convento de Santo Antônio. Cafés, confeitarias, livrarias, leiterias, charutarias, armazéns, teatros e cinemas desaparecem e não são substituídos. O trabalho dissocia-se do viver e do lazer. O modelo não parece ter se esgotado. A ocupação moderna tenta recompor a relação com o mundo, criando objetos que pairam sobre o sítio natural, deixando porém que a natureza e a vida interior se integrem pela transparência. O objeto é intervenção diferenciada e discreta, em que o que é exibido é "o fato simples dp material", (16) que se conecta com o mundo como projeção virtual. Numa sugestão de totalidade, o moderno busca a cidade "ideal", para Argan, ficção antes política que arquitetônica. A cidade vira metrópole e processa informação; o plano é técnico e especializado, abra nge a circulação nu ma escala de mapa, "setores" onde "particularidades" não aparecem. Mas já que um homem é um fenômeno excepcional" e o drama da arquitetura é de inteligência e paixão do homem que vi ve ao lado e atra vés do universo", valeo contraste entre o poema da humana geometria ea imensa fantasia da natureza". (17) Permanece a pulsão do desejo de resgatar a potencial imortalidade da obra em sua realização no mundo dos homens. "Tudo é possível debaixo do sol e da lua", até a idéia de que as cousas futuras não nos façam sentir, como Machado, que "a nossa felicidade, barão, é que morreremos antes". (18)
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Le Corbusier Publicado em Le Corbusier, Oeuvre Com plete 1938 - 1946 Editions d'Architecture Artemis, Zurich, 1964
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NOTAS: 1 - Machado de Assis, citado in Modulo nu 40, (Rio de Janeiro, 1975) 2 - Maurice Merleau-Ponty, El Ojo y el Espiritu (Barcelona, 1986) 3 - Roland Barthes, The Eiffel Tower mul other mythologies. (New York, 1983): pp. 143 4 - Maurice Merleau-Ponty, Ibid. (Barcelona, 1986): pp. 17 5 - G . C. Argan, El espacio visivode In ciudnd, in Historia del Artc como Historia de la Ciudad (Barcelona, 1984): pp. 223 6 - G. C. Argan, Urbanismo, espacio \j am biente, in Ibid., (Barcelona, 1984): pp. 209 7 - Maurice Merleau-Ponty, Ibid., (Barcelona, 1984) 8 - Walter Benjamim, Sobre alguns temas cm Baudelaire, (São Paulo, 1983): pp. 43 9 - G. C. Argan, Ciudad ideal y ciudnd real, in Ibid., (Barcelona, 1984): pp. 75 Gestaltung: formação da forma
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10 - Machado de A ssis, Esmí e Jacó, Obra Com pleta, vol. I, (Rio de Janeiro, 1985): pp. 1011 11 - G. C. Argan, U rbanism o, espado \j am biente, in Ibid., (Barcelona, 1984): pp. 203 12- Le Corbusier, in Norma Evcnson, Two Brazilian Capitals, (New Haven, 1973): pp. 53 13 - Manuel Bandeira, Estrela da M anhã, (Rio de Janeiro, 1983) 14 - "(...) As Utopias consolam : é que, se elas não têm lugar real, desabro cham contudo num lugar maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis ainda que o acesso a elas seja quimérico."; M ichel Foucault, The O rder o f Things, (New York, 1973): pp. XV11I 15 - Personagem de M achado de Assis em Esaú e Jacó e M emorial de Aires 16 - Mies Van der Rohe, in P. Blake, Os G randes Arquitetos, Vol. II, (São Paulo, 1966): pp. 68 17 - Le Corbusier, in P. Blake, Ibid., Vol. I, (São Paulo, 1966): pp. 153 18 - Machado de Assis, Ibid. vol. I, (Rio de Janeiro, 1985)
EUANNE ANDRÉA CANETTI JOBIMédesignergraficaeprofessorado Departamento de A rtes da PUC/KJ, graduada em Desenho Industnal Comunicação Visual pela PUC/RJ; M estre em Communications 0 .s t g pelo Pratt Instituto, Nova York; formada pelo Curso de Especialuaçao em História da Arte e Arquitetura no Brasil, I UC/RJ.
ALAN COLQUHOUN Tradução: Milton Feferman
Racionalismo: um conceito filosófico na Arquitetura *
Do Racionalismo C lássico ao Ilum inism o: a busca da beleza Há uma visão corrente que divide as atividades mentais em científicas,
dependentes da razão, e artísticas, dependentes do sentim ento ou da intuição. Esto dicotomia simplista falha em não levar em conta tanto o papel que a intuição rep ^ no pensamento científico quanto o que o intelecto form ador e ju gamen os penha na criação artística. Não obstante a distinção contem um e emen o e menoscomo um modo de distinguir entre ciência e arte do que como modo de disting
^
entre os diferentes aspectos do processo artístico. . • A arquitetura, de todas as artes, é aquela na qual e menos p o ^ l e x c l u t r a idéia de racionalidade. Uma edificação tem que satisfazer critérios P construtivos, que circunscrevem, mesm o que não determ inem , o campo
S '1' ser
trabalha a imaginação do arquiteto. Assim, o grau em que a „racionais" do considerada racional depende menos da presença ou a u sen a a de cr, eri tônicQ que da importância atribuída a esses critérios no processo tota u e esci j d e de acordo com ideologias específicas. O "racional" na arquitetura mente. Não é uma categoria da história da arte como por exem p^ ^ ^ de uma um dos aspectos de um complexo sistem a que so pou e p , /desordem; série de oposições mais ou m enos hom ólogas: razão/sent.m ento, ordem/desord
necessidade/liberdade; universal/particular; o assam Mas, uma vez feita esta distinção mu-ia ,
comoutra.Adermiçãodo"radonal"emarquiteturanaoperma^
imediatamente m nstante ao longo
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da história. Não estamos lidando com um concei P dominante em cada fase conceito que tem variado segundo a constelação c u u 0 ideologias e não histórica. Essas mudanças de significado depen ^ econôm icos e sociais ou das podem ser consideradas independentem ente d idéias filosóficas. . finicâo do racionalism o arquitetônico é Como passo prelim inar na def>n Ç h istóriad a filosofia. Em filosofia, necessário notarosentidoem que o termo eutih/i c
- . * >4 rrhitckiur und Philosòphie seit der * Publicado originahnente cm "Das Abentcuer der i een. RauausstcUung, 1987). Industriellen H . O n a BM us (brita: J^rikfctrusBerlaee Jjjterdam Exchange
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a distinção básica é aquela entre o racionalismo e o empirismo, ou, entre a razão e a experiência. Embora a oposição razão/sentimento não possa ser reduzida a tais catego rias filosóficas, há contudo uma relação entre elas. Em ambos os casos a razão pressupõe a intervenção de um regra ou uma lei entre a experiência direta do mundo e qualquer prática (praxis) ou técnica (techné) tal como a arquitetura. É esta noção - a de que a arquitetura é o resultado da aplicação de regra gerais, estabelecidas por uma operação da razão - que deve ser tomada como a definição mais ampla do racionalismo em arquitetura. O conflito entre racionalismo e em pirism o é entre duas concepções de conhecimento (ou ciência) que o definem como “a priori" ou "a posteriori". Na medida em que o conhecimento é tido como a priori, o conhecimento empírico parece incerto, sem fundamento, e sujeito à contingência. Na medida em que o conhecimento é considerado "a posteriori", os termos são invertidos e é o conhecimento "a priori" que se torna inseguro e dependente da autoridade, de idéias transmitidas ou do hábito. A história da teoria da arquitetura durante os últimos duzentos anos tem sido a história do conflito entre esses dois conceitos de conhecimento arquitetônico. E mais ainda; a dominância de um ou outro determinou o papel atribuído aos outros processos mentais que não podem ser substituídos soba operação da razão ou da ciência. Quando se discute o racionalismo na arquitetura discute-se portanto dois conjuntos de relações variáveis: aqueles que provêm de diferentes concepções sobre o próprio conhecimento, e aqueles que provêm da distinção entre conhecimento e intuição ou sentimento. A filosofia racionalista do século dezessete, representada por Descartes, Spinoza e Leibniz absorveu em seu sistema a visão tradicional de que existiam idéias "inatas" e que baseado nelas a "ciência" é uma tarefa fundamentalmente "a priori". As idéias inatas são pensadas como implantadas por "D eu s" e, como tal, sacralizadas por uma sabedoria revelada à humanidade no passado que constitui uma autoridade válida. O conhecimento obtido por experiência e indução, em última instância, será avaliadoem função desta autoridade. O racionalismo cartesiano não abandona esta tradição mas inaugura uma busca pela clareza de conceitos, o rigor na dedução, e certeza intuita dos princípios básicos. Isto refletiu-se nas teorias artísticas acadêmicas do século dezessete, das quais a "L'art poétique" de Nicolas-Boileau Deespréaux, o "Traite de l'armonie réduite à ses principes naturels" de Jean-Philippe Rareau e o "C ours d'architecture" de François Blondel seriam exemplos. Os princípios enunciados nesses trabalhos eram baseados em idéias antigas. Quando, no final do século quinze, a arquitetura pela primeira vez se constituiu como ramo independente da ciência, uma parte importante do conhecimento que formava esta ciência dependia da autoridade dos a ntigose dos preceitos encontrados no único tratado arquitetônico antigo que sobreviveu: o de Vitruvio. Ao mesmo tempo a teoria arquitetônica passou a incluir-se dentro de uma doutrina artística derivada de Aristóteles, Horácio e Cícero por um lado, e do neo-platonismo de outro. O mais importante componente desta doutrina era a idéia de que a arte era uma imitação da natureza, e que a arte da antiguidade derivada desta lei merecia ser imitada. A aproximação à natureza se fazia, portanto, através da autoridade da antiguidade. A noção de autoridade está extremamente ligada à doutrina do século dezessete do conhecimento "a priori" e das idéias inatas.
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Ciuseppe Terragni do Faseio Como, 1934
Uma das fontes do conceito de im itação pode ser encontradas na "física"
de Anstóteles. f t t e
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fomecida pela natureza, ^ a mesm^do
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extensões
Vemos aqui duas idéias que para a m ente diversas senão contraditórias: a idéia de que a a rqu i te tu ra c o dasleisda natureza ea idéia de que isto exige um processo
^ ^ ou representação. ressjva separação entre
De fato, através dos séculos dezoito e dezenove houve uma^P essas duas idéias e o conceito de arquitetura dividiu se en e "científicas" e funções "artísticas" representacionais, sen o a primeira e o "sentimento" para a últim a. Tal divisão, entretanto, seria inC° ^ verdade eà beleza se fazia por interm édio de leis ji
^^ a arte ou natureza",
funções construtivas « reServada para
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Otto Wagner Post Office, Saving Bank Viena, 1 9 0 3 -1 9 0 6
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natureza. A verdade era a revelação do que já existia e, se dependia da revelação, deveria igualmente basear-se em verdades previam ente reveladas aos homens. Toda a verdade era portanto uma reapresentação. Esta visão é ainda encontrada em certos escritores até o final do século dezoito. O arquiteto inglês John Wood "o V elho" afirmava que a "riência" da arquitetura era sua parte especulativa e m etafísica, enquanto a "a rte" da arquitetura o conhecimento de suas causas específica s e sua apl icação aos usos hum anos. (2) É a causa final que dá sentido à arquitetura e não a causa eficiente ou as soluções de problemas específicos. A distinção que encontram os aqui entre ciência e arte é o oposto da que geralmente fazemos hoje; a ciência para Wood pertencia ao reino da metafísica, aarteao reino do prático e do contingente. Quatremòre de Q uincy é igualmente convicto quantoàarquitetura imitara "id éia" de natureza. Esta im itação resulta num edifício com um "caráter" que pode ser de três tipos - essencial, relativo e acidental - segundo im ite a natureza em seus aspectos genéricos e atem porais ou em aspectos mais específicos e momentâneos. (3) (A idéia de caráter vem da teoria dos gêneros na "poética" de Aristóteles, mas Quatremòre a transform a em algo bem ncoplatônico). Mas uma nova atitude se desenvolveu com o "cthos" do racionalismo do século dezessete, enfatizando o papel qu e tanto a ciência em pírica quanto a inteligência individual desempenliavam na descoberta da verdade e qu e tendia a lançar dúvidas sobre o "status" do conhecimento "a priori" e das idéias inatas assim como sobre a autoridade dos antigos ou da Bíblia. A querela entre os "an tig o s" e os "m odernos deu origem a uma crescente disputa crítica sobre quais regras arquitetônicas pertenciam ao reinodas idéias inatas e quais pertenciam ao reino da experiência empírica. A lei agora dividia-se entre o que era eterno e absoluto e o que era costum e - o último cada vez mais guiado pelo "gosto". Essa divisão está exem plificada na teoria arquitetônica ena teoria musical. Na arquitetura Claude Perrault atacava a doutrina clássica das ordens, argumentando queas regras das proporções eram baseadas somente no costum e. (4) Na música havia desentendimento entre os seguidores de Gioseffo Zarlino (1517-90), que insistiam na base matemática para a aceitação dos acordes e os seguidores de Vicenzo Galilci (1533 91) que afirmavam que o belo só podia ser decidido pelo ouvido. Face ao problema, o objetivo do século dezoito tornou-sc o dc rcconci iar 0 a priorismo" racionalista com o gosto e o julgam ento subjetivo c mostrar que constituição do ser humano individual tende à harm onia com a Lei Natural, a Etienne Briseaux dizia: "A natureza sem pre age com a mesma sabedoria e de uma man uniforme ... do que se pode concluir qu e o prazer do ouvido e do o io cons perfeição da concordância harm ônica análoga à nossa própria constituição ... e q princípio reside não somente na m úsica mas em todos os produtos das artes No ensaio de Laugier, "E ssa, sur 1' A rch ilec.u re" de 1753,as regrasd a to a arquitetura são apresentadas com o autoevidentes para a m ente e olhos nao corro P ' arazão "a priori" éconfirmada pela experiência em pírica e pela sensação. arazão sem tutor confirma as verdades das arquiteturas m ais rem otas e nao • orientação de modelos antigos específicos. Mas razão e verdade estavam am ^ Purificação da tradição e nesse sentido modelos mais ou m enos im per ei o im itar A*im caso a tarefa do pintor e do escultor, na doutrina clássica e neoclássica, era im itar
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a idéia subjacente às aparências imperfeitas da natureza, a tarefa do arquiteto consistia em descobrir os tipos escondidos nos múltiplos e imperfeitos exemplos apresentados pela história da arquitetura. A arquitetura é tratada exatamente como se fosse um fenômeno natural. Mesmo Cario Lodoli, cujo racionalismo "avant la lettre" tem sido erroneamente considerado um puro empirismo, adere a um conceito de ornamento arquitetônico no qual persiste uma clara distinção entre o que é norma ti vo e típico e o que se deve a diferença culturais "acidentais". (6) O Iluminismo podia querer substituir "o espírito do sistema" pelo "espiri to sistemático", de modo a libertar a prática da dominação da autoridade e das idéias fundadas, mas o seu objetivo ainda era descobrir o universal e as leis imutáveis sob a experiência empírica. Uma construção tal como a Sainte Geneviòve de Soufflot, unindo "a nobre decoração dos gregos à leveza dos arquitetos góticos" (7), e o racionalismo de um Lodoli ou de um Laugier, apontavam ambos para a necessidade de libertar a arquitetura das regras arbitrárias e sem gosto às quais ela havia sucumbido com o barroco, e trazê-la de volta à natureza, cujas leis eram simples e eternas. Este projeto era em muitos aspectos similar ao dos Cramáticos e sua busca das leis racionais e universais da linguagem. (8) A arquitetura era também uma "linguagem" racional sujeita às variações de caráter demandadas pelo clima, costume e "decorum", mas capaz, entretanto, de ser reduzida pelo exercício da razão a um sistema universal a cujas leis nem os gênios poderiam escapar. O século dezoito é marcado pela oposição razão/capricho, somente a razão sendo capaz de discenir verdades universais. Mas essa razão alia-se agora à experiência subjetiva; a experiência empírica não é mais tomada em oposição a uma razão que foi implantada em nós por Deus e que constitui autoridade inquestionável. Ela é usada como uma prova suplementar da existência da Lei Natural. Racionalismo utilitário e eclético: a busca da utilidade Com o crescimento do utilitarismo, a estrutura de pensamento sob a qual repousava a aliança entre racionalismo e classicismo tornou-se mais vez mais tênue. A razão "científica" direcionou-se mais e mais para a eficácia instrumental ao invés da metafísica. Causas eficientes substituíram causas finais. Não havia agora teoria que pudesse resistir ao crescimento do capricho e do ecletismo ou à proliferação do que Quatremòre chamou de "caráter acidental". J.N.L. Durand, embora trabalhasse dentro da linguagem formal do classicismo, justificava uma arquitetura racional puramenteem termos de economia e utilidade. (9) Os esforços dos arquitetos e teóricos tais como Durand, Legrand, Thomas Hope eSchinkel eram agora direcionados para um ecletismo que selecionaria, num sistema de combinações e permutações, os elementos estilísticos apropriados do panorama da história ou de edifícios de natureza utilitária. Havia agora tantas "arquiteturas" (palavras de Legrand) quanto povos e tempos; o classicismo foi reduzido a uma tradição específica (reconhecidamente "a nossa") cujo uso era justificado puramente por convenção. Ao final do seu livro, "Essai sur l'Histoire Generale d'Architecture" de 1800, Legrand coloca a questão retórica: "Não podemos chegar ao fim (da arquitetura moderna) tomando empres tado de todos os gêneros o que cada um tem de razoável e peculiar de maneira a compor
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Escola de David Gilly 800 - c o r t e
Warehouse, c l
um estilo moderno apropriado para o clima, costumes e m ateriais... e as regras de decoro de cada país, e que seria o feliz resultado do nosso conhecim ento da arte de construir entre todos os povos"? (10) Thomas Hope expressa a mesma opinião: "Ninguém parece ainda ter concebido o ... desejo ... de tomar em pres a o década estilo antigo a-quitetônico, somente o que apresente de utilitário ou ornamen ,
científicooudegosto..compondoumaarquiteturaque...cresci a onossopropn e em harmonia com o nosso clim a, instituições e hábitos ... deva verdade,ramente merecer o nome de "nossa". (11) Mas por mais qu e esses sentimentos pareçam antecipar a orgânica" do romantismo e o "revi vai" gótico ainda aderem as noç° * século dezoito, e à concepção de "com posição m ecân ica ', que, a par i virulentamente atacada pelos rom ânticos alemães. (12)
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Racionalismo orgânico e estrutural: a busca da autencidade A partir da segunda metade do século dezoito, a divisão conceituai entre arquitetura enquanto construção earqui tetura enquanto representação começou a minar seriamente a doutrina unitária do classicismo. M as persistia uma forma "fraca" da doutrina clássica, na qual era possível pensar o uso permissível de diferentes estilos segundo as noções clássicas de caráter e decoro. O desenvolvimento de um racionalismo baseado na lógica da estrutura teve lugar especialmente na França onde, desde o século dezessete, os arquitetos reconheciam na arquitetura gótica princípios construtivos racionais. Os racionalistas estruturais do final do século dezoito não rejeitavam o classicismo; buscavam submetêlo a uma análise racional mais severa em termos da nova ciência da resistência dos materiais e em termos do uso. (13) Esta tradição prolongou-se pelo século dezenove,
A Perret 25 rue Franklin planta tipo
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mesmo após o impacto do positivism o comtiano. A crença, característica dos positivis tas, que a ciência propicia o único conhecimento válido, e que os fatos são os seus únicos objetos, compatibilizava-se muito bem como a forma de idealismo que promovia tudo que não era redutível à ciência experimental, a um vagamente neoclássico reino da "beleza". Esta visão foi expressa por LéonceReynaud, um proeminente representante da persuasão clássico-racionalista nos meados do século dezenove: "Embora eu acredite que considerações de tipo científico devam entrar no estudo da forma de nossos edifícios, estou longe de pensar que cobrem tudo. O que toca a essência íntima da arte é algo sentido, não explicado. " (14) Para Reynaud, o classicism o era um conjunto de princípios formais definidos de modo geral, ao qual uma arquitetura apropriada a uma idade científica poderia se vincular. Certas form as históricas haviam alcançado por evolução, uma espécie de perfeição e não poderiam ser descartadas. (Ecos desta noção seriam ainda encontrados em Le Corbusier). As categorias em que Reynard dividia os valores arquitetônicos - utilidade, ordem e simplicidade, e cará ter- eram similares às que lia viam sido sugeridas por Durand meio século antes. 0 último representante desta tradição, César Daly, fundador da "Revue Cénérale d'Architecture, definia o racionalismo arquitetônico como se segue: 1 . Arquitetura é estrutura ornamentada. 2 . As formas arquitetônicas necessitam justificação racional e devem derivar suas leis da ciência. 3 . A tarefa da escola racionalista é a de reconciliar a arquitetura com a moderna ciência e tecnologia. 4 . Uma vez que se consuma a aliança entre a arquitetura e a razão o próximo passo será a aliança entre a arquitetura e o sentim ento". (15) Dentre os arquitetos praticantes, o mesmo sincretismo entre a técnica moderna e classicismo é com frequência aparente. Por exemplo, na Biblioteca SainteGeneviòve, Henri Labrouste não permite que seu interesse pela estrutura de ferro interfira com sua idéia - derivada da teoria clássica - da forma correta externa de um monumento público. O debate, entretanto, tomou uma forma diferente entre os revivalistas góticos. Segundo eles a arquitetura gótica não era um estilo que poderia ser usado ecletica mente, como uma maneira de obter associações literárias dentro da definição clássica de "caráter"; ela deveria ser vista como uma tradição "alternativa" à do classicismo. A diferença entre os revivalistas góticos e os ecléticos clássicos era a de que para os primeiros à própria estrutura tornara-se a base do significado arquitetônico. Ornamentaçãoe "representação" eram agora pensados como emergindo da estrutura de um edifício, muito mais do que uma roupagem arbitrária que poderia ser acrescida. A consequência é que, dos três tipos de caráter descritos por Quatremère, somente o primeiro - o caráter essencial - foi mantido.
O principal porta-voz dessa escola de pensamento e, possivelmente o mais
influente escritor de arquitetura do século dezenove, foi Viollct-Le-Duc. (16) Râ*"3 a técnica tornou-se a base para uma arquitetura que é racional por sua própria essencia. Ele vê na arquitetura gótica um princípio construtivo que deveria torna-se o paradigma metodológico para a arquitetura do futuro. A despeito da predominância de restau-
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rações na obra de Viollet e de sua nostalgia pela cultura medieval, seus escritos exibem a mesma adesão ao positivismo da escola oposta, os ecléticos clássicos, e até uma crença mais forte no progresso sem fim da humanidade, que supostamente se seguiria à onda da revolução industrial. Mas, para Viollet-le-Duc, a história da arquitetura é um desenvolvimento tecnológico contínuo que exclui a possibilidade de repetição das formas "perfeitas" derivadas da antiguidade. A morfologia da arquitetura não é mais determinada pela taxonomia de formas históricas e externas e sim por um sistema de funções básicas. "Aquilo que é geralmente considerado como o tema da verdadeira arte, nomeadamente a simetria, a forma aparente, é uma consideração secundária". (17) Este raciocínio "evolucionário", que ligava a arquitetura a um implacável e objetivo destino histórico, combinava-se com um moralismo subjetivo. Os princípios da arquitetura gótica eram racionais e morais ao mesmo tempo. Numa brilhante análise dos escritos de Viollet, Philippe Junod mostra que ele flutua constantemente entre um ponto de vista objetivo e um subjetivo. Por um lado, a razão é oposta ao sentimento, a lógica à fantasia, o sistema ao instinto, de um modo que o aproxima à tradição racionalista, que se estende mutatis mutandis de Descartes a Comte; de outro lado, a sinceridade, a honestidade e a verdade são opostas ao fingido, ao falso, e às mentiras. Por esse argumento circular, Viollet apela ao sentimento subjetivo para justificar o racional, e ao racional para justificar o sentimento subjetivo. (18) Quais são essas "leis" que permitem a Viollet flutuar com vísivel incon sistência entre uma avaliação positiva euma negativa do sentimento subjetivo? Discutindo a relação entre as partes do edifício e do todo, Viollet diz: "D a mesma forma que quando vemos a folha de uma planta, podemos deduzir dela a planta inteira: de um osso de um animal, o animal inteiro, vendo um perfil deduzimosas partes da arquitetura edas partes o monumento inteiro". (19) Não há nada particularmente novo nesta analogia; Denis Diderot já havia sugerido que a zoologia oferecia ao artista um exemplo típico de coerência funcional. (20) Mas, a partir da metade do século dezenove, o argumento se aprofundou. Viollet (tal como Gottfried Semper) poderia aduzir o exemplo da taxono mia "funcional" de Cuvier para as espécies animais, e sobretudo seguir as pegadas do romantismo germânico. A sua analogia orgânica não está longe daquela expressa por A. W. Schlegel nas suas "Dramatic Lectures": "A forma é mecânica quando... é relacionada a um material meramente como adição acidental, sem relação com sua natureza... A forma orgânica, por sua vez, é inata; desenvolve-se de dentro e adquire definição simultaneamente ao desenvolvi mento total do germe... Todas as formas genuínas são orgânicas, isto é, determinadas pelo conteúdo da obra de arte. Numa palavra, a arte não é senão o significado exterior, a fisionomia expressa de tudo... que mostra o testemunho de sua natureza oculta". (21) A menos que reconheçamos o aspecto romântico e "orgânico" de Viollet, próprio de sua interpretação do gótico, é difícil explicar sua influência sobre a vanguarda do século vinte, sobre o vitalismo do Art Nouveau e sobre os arquitetos da Escola de Chicago. A teoria da arquitetura orgânica de Louis Sullivan (retomada posteriormente por Frank Lloyd Wright) deriva parcialmente de Viollet e dos românticos germânicos (presumivelmente via Coleridge e os transcendentalistas americanos), o que está clara mente expresso na declaração: "É lei abrangente de todas as coisas, orgânicas e inorgânicas, de todas as coisas humanas e superhumanas, de todas as verdadeiras
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manifestações da mente, do coração e da alma, de que a vida é reconhecível em sua expressão, que a forma sempre acompanha a função, esta é a lei". (22) É evidente que uma linha estrita não pode ser traçada, no século dezenove, entre o racionalismo positivista e o romantismo orgânico, com sua ênfase no imperativo moral que sublinha a necessidade de conformar-se às leis da natureza. Mas nesse ensaio não podemos seguir esse outro atalho que vai de Viollet-Le-Duc, através do ArtNouveau até o arganicismo e ao expressionismo, porque isto nos afastaria da corrente principal da vanguarda do século vinte, na qual a teoria da forma orgânica foi assimilada a idéias de tipo analítica e mecanicista, adotando ao invés de se opor a máquina.
O Racionalismo e a vanguarda do século vinte:a busca da transparência E frequente argumentar que apenas no século vinte o positivismo e o racionalismo estrutural do século dezenove deram frutos. Se a lei da evolução histórica e do progresso tiver que ser demonstrada, a arquitetura deveria finalmente cortar seus laços com os estilos do passado e tirar seus significados e sua linguagem exclusivamente das condições objetivas da técnica e do programa. Foi somente no fim do século dezenove que certos arquitetos começaram a colocar em prática esses princípios. Entre eles, H. P. Berlagc e Otto Wagner destacaram-se pela maneira através da qual transformaram sua herança estilística (o revivalismo gótico e o neo-classicismo respectivamente) com a aplicação de princípios construtivos racionais. Os dois "halls" paradigmáticos do início do século vinte, o da Bolsa de Amsterdam e dos Correios de Viena, assimilam os halls de exibição do século dezenove ou as coberturas de estações ferroviárias para uso em programas socioculturais e os firmaram numa arquitetura que, embora reconhecida mente tradicional no conjunto da forma, tenta desenvolver um novo tipo de ornamento derivado da construção. Embora os princípios de tipo artesanal empregado nesses edifícios fossem incorporados à doutrina da vanguarda do século vinte, o racionalismo do "movimento moderno não pode ser compreendido somente nestes termos. O racionalismo do século vinte difere radicalmente do racionalismo do século dezenove, e, para atender essa diferença é necessário analisá-lo em termos de três conceitos: o atomismo lógico, o funcionalismo e o formalismo, que apesar de não serem absolutamente novos, tomam agora uma forma inteiramente nova.
Atomismo Lógico A lógica foi enfatizada no pensamento positivista, mas vimos que para Viollet-le-Duc havia sempre uma passagem da lógica, via técnica, para o sentimento subjetivo e a natureza orgânica. Viollet falava da máquina como um paradigma para a arquitetura, mas para ele a mecanização não implicava mudança na relação entre os componentes da arquitetura e o edifício como um todo. O ferro podia substituir a madeira ou a pedra, mas essa substituição, embora acarretasse substanciais transfor mações formais, era feita porque esses materiais tinham propriedades análogas e
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podiam ainda ser "trabalhados" de maneira artesanal. Foi precisamente essa ligação entro lógica e técnica que perm itiu a Viollet ver a arquitetura como um processo contínuo de evolução, cujos princípios permaneciam constantes, ainda que sua feição material mudasse. Uma série de desenvolvim entos na teoria estética, na filosofia, na constru ção e na produção no final do século dezenove e início do século vinte, interviu para alterar radicalmente essa conccituação fundam entalm ente tradicional da arquitetura. Não se trata de assinalar causas e efeitos; iremos m eram ente justapor alguns desenvolvi mentos paralelos que têm "prim a facie" sem elhanças. As condições construtivas e de produção da arquitetura do século vinte foram lançadas na segunda m etade do século dezenove pelos engenheiros usando ferro fundido e forjado na construção de pontes, estufas, estações de trem, m ercados e estruturas para exposições. Em todas essas construções foi possível desenvolver méto dos pragmáticos e analíticos com um mínimo de interferência da ideologia arquitetônica. Um exemplo crucial é o Palácio de Cristal de Paxton de 1851, onde pela primeira vez, e dentro do âmbito do típico pragm atism o inglês, a divisão do trabalho e a standardização das ferramentas e materiais tornou-se uma parte essencial do conceito do projeto. Na torre que Custa v Eiffel construiu para a exposição de Paris de 1889, a estes procedimen tos produtivos adicionou-se m étodos de desenho em pírico-matemáticos, usados para produzir formasde novas transparência edinam ism o. Um desenvolvimento ulterior da construção é encontrado nas pontes de Kobert M aillart nas quais um conceito com ple tamente novo de planos de concreto armado é desenvolvido. A primeira aplicação, em escala substancial, desses novos tipos de procedimentos empíricos na arquitetura foi a introdução do esqueleto de aço em edifícios de escritórios construídos em Chicago nos anos de 1880. No esqueleto de aço os elementos de construção são determ inados mais pelas necessidades do processo de produção do que por uma forma de "lógica" construtiva que formava a baseda filosofia de Viollet. O esqueleto introduz um sistema generalizado que minimiza diferença precisamente quando Viollet as teria maximizado: por exemplos, as diferenças entre elementos suportantes e suportados e seus pontos de conexão. As formas resultantes estão mais próximas da abstração cartesiana do que das leis quase "orgânicas do material eda expressão visual destas leis. Há paralelos am plos entre esses desenvolvim entos e alguns desen volvimentos contemporâneos em filosofia, notadam ente as teorias de Bertrand Russell do Construcionismo e A tom ism o Lógicos a d esenvolverem torno de 19ÜÜ. Na sua teoria doconstrucionismo lógico Russell tentou mostrar que todas as entidades problemáticas do ponto de vista da experiência empírica e do senso com um poderiam ser reduzidos a (ou "construído" a partir de) entidades mais sim ples e não - problemáticas: "a suprema máxima no filosofar científico é esta: quando possível, contruções lógicas devem ser substituídas por entidades inferid as". A teoria do atom ism o lógico que Russell desenvolveu pouco depois, era um esforço para dar "statu s" metafísico a este princípio puramente epistemológico postulando uma linguagem ideal, de base em pírica, que corresponderia à estrutura da realidade. - O mundo consiste de entidades elem entares que possuem somente propriedades elementares conectadas através de relações elementares.
- Nossa visão científica do mundo deve ser composta analogicamente a partir de proposições elementares. O paradoxo do projeto é que, para satisfazer às necessidades da verdade empírica, o mundo tem que se sujeitar a uma análise puramente formal e estar despido de todo significado imediato. Ele procura reduzir toda operação mental àquelas apropri adas às ciências físicas. Há um forte paralelo entre essa visão e aquela dos fundadores do movi mento moderno na segunda década do século vinte, que aspiravam de maneira semelhante a decompor as figuras herdadas da arte e da arquitetura a seus elementos irredutíveis. Fossem tais elementos considerados como "form ais" (como em Kandinsky, Mondrian e o movimento "deStijl") ou "construtivos" (como na vanguarda russa), eles constituíam um léxico de entidades irredutíveis conectadas entre si através de relações elementares. Do mesmo modo, no "construcionismo" de Russell totalidades são substituídas por unidades cujo significado é imanente e auto-evidente. Esta elementarização certamente pode ser pensada como um empobreci mento dos significados estabelecidos pelas convenções culturais. Fique sublinhado, contudo, que esta não foi a interpretação dada pelos círculos da vanguarda artística; ao contrário, isto foi elaborado como um meio de se obter significados mais profundos porque mais primitivos - e de distanciar o artista de uma concepção burguesa "degene rada" da arte. Estas tendências tiveram início antes dos eventos que estamos descreven do. Podem ser vistas, por exemplo, nas pinturas impressionistas e pós-impressionistas, onde a multiplicidade da percepção é analisada e reconstruída a partir de unidades atômicas.
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Podem ser vistas no formalismo germ ânico, nas estéticas neo-kantianas, de Herbart a Fiedler, (23) nas quais uma lógica da apercepção artística é desenvolvida. Tais desenvolvimentos devem ser considerados como parte de um programa "racionalista", pois buscam aplicar a metodologia da ciência à análise da experiência subjetiva. Foi dos herdeiros dessa tradição analítica em pintura - principalmente o Cubismo - que os modernistas arquitetônicos dos a nos vinte retiraram sua inspiração forma l,quaisquer que fossem suas outras fontes, positivistas ou metafísicas. Uma conexão ainda mais direta com a filosofia do atomismo lógico, entretanto, pode talvez ser vista na obra de Adolf Loos, cujo "Raumplan Analysen" começara por volta da virada do século. Aqui o espaço da casa é construído a partir de "salas atômicas" cada qual com sua especificidade. O utro exemplo é a casa que Lud wig Wittgenstein construiu para sua irmã em 1926 em colaboração com o arquiteto Paul Engelmann. Nesta casa todos os elementos são redefinidos em termos de funções elementares e parecem refletir a teoria da linguagem de Wittgenstein, descrita no "Tractatus Logico-Philosophicus" (e desenvolvida sob a influência de Russell) segundo a qual existe uma relação de um-para-um entre as sen tenças e as coisas. Esta casa pertence igualmente ao espirito da vanguarda dos anos vinte e às próprias preocupações filosóficas de Wittgenstein; nada poderia expressar m elhor seu lema: "O significado é o uso". A insistência sobre o "valor de uso" na arquitetura de Loos e W ittgenstein vincula a idéia do atomismo lógico à noção de "fu n ção".
O Funcionalismo A idéia, fundam ental para o movimento moderno, de que há uma indis cutível relação causal entre funções e formas na arquitetura é parte de uma tradição que remonta a Vitruvio. Até o final do século dezoito, com o vimos, essa idéia estava intimamenteunida à idéia de im itação no sentido dado por Aristóteles. Mas, na primeira metade do século dezenove, sob a influência do rom antism o e do historicismo, ficou associada à noção de desenvolvim ento genético. A "necessidade interna tomou o lugar da "analogia" como gerador de formas expressivas do programa ou da estrutura do edifício. Esça "necessidade interna" era passível de uma interpretação idealista (um espírito invisível dirigido a causalidade material) ou de uma interpretação científica (baseada em causas eficientes e na investigação em pírica). Pelo fim do século dezenove o sentido da palavra "função" usado nas diferentes disciplinas perdeu muito de seu conteúdo idealista. Em matemática, por exemplo, uma função deixa de ser uma relação entre uma variável e um objeto fixo conhecido, é a relação entre duas variáveis. De acordo com Ernst Mach, a noção de função deve substituir a de causa. Quando a ciência reúne vários elementos em uma equação, cada elemento torna-se uma fu nção dos outros; a dependência entre elementos torna-se reciproca, e a relação entre causa e efeito torna-se reversível. (24) Esta noção de função, com suas explicações de um sistema mdependente de "valores" externos, está estritam ente relacionada à antropologia funcionahsta de Bronislaw Malinowski. Segundo as hipóteses de M alinow ski as sociedades devem ser
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vistas como sistemas auto-organizados, e a função de um elemento é o papel que desempenha na manutenção do sistema. Malinowski dizia: "Avisão funcional... insiste no princípio de que em cada tipo de civilização, cada costume, objeto material, idéia e crença, preenche alguma função vital... dentro do todo em funcionamento. (25) A circularidade deste argumento é evidente: o sistema é definido como a soma dos fatores, enquanto o "fato" é definido como o que é relevante para o sistema. Algo análogo a essa visão é encontrado da idéia de uma arquitetura "funcional". Não deve haver interferência, no projeto ou na avaliação de um edifício, de noções pré-concebidas do que é "arquitetura". O projeto se define estritamente em termos de elementos interagindo uns com os outros "dentro" do (empiricamente fundado) sistema, que por sua vez só pode ser definido com a soma desses elementos. O grupo de arquiteto modernos "N eue Sachlichkeit" apresenta, em sua teoria, um exemplo extremo desse tipo de "funcionalism o". Quando Hannes Meyer definiu arquitetura como função x economia tentava reduzí-la a um sistema absoluta mente primitivo queexcluía todos os "valores" a priori. (26) Mas, éclaro, a natureza deste sistema já estava dada pela própria restrição arbitrária dos fatos relevantes que seriam: a estrutura, a economia, e as "necessidades" fundamentais, que poderiam ser empirica mente testados pelo método "científico". Num campo completamente "axiomatizado" do conhecimento, como a matemática, essas limitações arbitrárias são justificadas, de fato essenciais. Mas num campo afetivo e ideológico como a arquitetura, sua rígida aplicação só pode ser explicada por motivos ideológicos que são os agentes invisíveis de sua auto-exclusão. O termo "funcional", com oé empregado na arquitetura moderna, tomou a sua coloração usual por causa desta arbitrária limitação ao que poderia ser logicamente deduzido ou empiricamente verificado. Os resultados, ao invés de serem entendidos como aspectos de uma operação meramente formal, como o são na matemática, foram tomados por descrições objetivamente verdadeiras do mundo real. Uma situação similar permeou o "funcionalism o" na antropologia, onde o registro dos comportamentos observáveis foi considerado o único meio para se chegar a proposições verdadeiras sobre uma sociedade particular. Nos anos quarenta, na antropologia e algum tempo depois na arquitetura, desenvolveu-se uma crítica estruturalista, cujo propósito era demonstrar que não havia correlação necessária entre formas e estruturas, de um lado, e entre "funções" e "padrões de comportamento" de outro. As formas, afirmava-se, eram independentes das situa ções empíricas e emprestavam a elas "significado em qualquer tempo ou lugar.
O Formalismo Pode-se definir o formalismo como esse tipo de pensamento que enfatiza relações governadas por regras ao invés de relações de causa e efeito. Segundo esta definição, o formalismo está associado a uma definição de função puramente matemá tica. Ele estuda as estruturas de campos dados, independentemente do que existe fora deles, interessa-se pelo como das coisas não pelo "porqu e". Esta parece ser a caracterís tica do pensamento do final do século dezenove e do início do século vinte, em diversas
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disciplinas - filosofia, matemática, arte e arquitetura. Já mencionamos este "approach" em conexão com a teoria estética ger mânica do século dezenove. Pode-se também notar, algo semelhante, mais tarde, na história da arte. Aqui uma concepção formalista restringe o objeto de estudo às estruturas formais das obras de arte e evita a discussão sobre o que estas obras "significam " em cada período histórico particular. Do mesmo modo, procura a lógica da mudança histórica nos problemas especificamente artísticos que os artistas enfrentaram em diferentes épocas, ao invés de vê-los com o o (indemonstrável) resultado de eventos históricos externos. Os historiadores da arte Franz Wickoff, Alois Riegl, e Henrich Wolfflin representam este ponto de vista. Todos foram fortemente influenciados pela teoria da "visibilidade pura" de Konrad Fiedler e todos por sua vez influenciaram a atmosfera intelectual da vanguarda artística do início do século vinte. Embora um dos objetivos da história da arte formalista fosse romper a estética normativa clássica, eles som ente podiam ser alcançados pelo estabelecimento de normas mais gerais que se aplicassem a toda as artes, em qualquer período. Tendia portanto ao estabelecimento de leis a-históricas e assim fazendo assemelhava-se à própria teoria clássica. A teoria formalista da arte concentrou-se no "com o" da arte ao rejeitar o tipo de explicação do "porque", sempre dada para justificar um sistema particular de valores (ou um estilo particular). Mas a doutrina clássica também concen trava no "porque" (as regras da boa poesia, da retórica, etc.) precisamente porque aceitavam sem questionar, um sistema particular de valores. As tendências form alistasda vanguarda no século vinte contradiziam pois as interpretações historicistas da arquitetura moderna dadas por Viollet-le-Duc e seus seguidores. Ao invés de verem a arquitetura como um contínuo desenvolvimento de acordocom uma lei histórica da evolução técnica eso cial, sustentavam quea arquitetura moderna era um rompimento radical com a história - e que tinha atingido um patamar que lhe permitia dar formas as leis eternas da estética. Dessa maneira podia ser vista como um tipo de classicismo, mas que rejeita as formas específicas, historicamente determinadas, do estilo clássico. Esta visão estava apesar de tudo, estreitam ente ligada ao desenvolvimento das técnicas construtivas, que eram vistas libertando o arquiteto das restrições técnicas que am arravam a estética arquitetônica a épocas e a tradições artesanais particulares. Um dos prim eiros arquitetos a vincular explicitamente a arquitetura industrializada ao classicismo foi Hermann M uthesius, que viu nisto os meios para se chegar a uma tipologia de form as arquitetônicas correspondente às leis universais da percepção estética. A racionalização da construção em termos de produção industrial, recriaria, um nível mais abstra to, as verdadeiras tradições e valores culturaisqueajudara a destruir. (27) Nos anos vinte a maioria dos arquitetos de vanguarda, começou a aceitar asubstituiçãodoartesanato pela máquina como o preço qu ea arquitetura tem que pagar para atacar as urgentes tarefas sociais que se apresentavam . Mas, embora envolvesse uma certa simplificação das m assas e a ênfase sobre o típico acima do individua este Incipiente classicismo foi encoberto por princípio de composição elementares, tip montagens, que nega vam as hierarquias formaisdo sistema clássico. Istoé particularn verdadeiro nos arquitetos da "N eueSachlichkeit trabalhando na Repúblicade
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Hannes Meyer, Ernst May, Mart Stam, e Hans Schmidt entre outros. Há, no trabalho desses arquitetos, e especialmente nos planos urbanos de Ludwig Hilbersheimer, um esquematismo extremo, que tranpõe diagramas resultantes de operações, puramente analíticas para objetos do mundo real percebido. É uma espécie primitiva de formalismo que interrompe o processo de abstração a meio caminho, sem permitir que ele opere no sentido de uma imagem adequada. Nas obras de Le Corbusier e de M ies Van Der Rohe, entretanto, esse formalismo esquemático combinou-se a tendências clássicas mais abertas. O classicismo de Le Corbusier, em particular, era bastante explícito e baseado numa aceitação generalizada da tradição clássica francesa. Na maior parte de seus trabalhos ele estava preocupado em reconciliar a idéia clássica de uma ordem artística "a priori" com a noção de progresso contínuo que herdara das tradições positivistas e historicistas. Os desenhos da ossatura "Do-m ino" foram a primeira demonstração do princípio dialético que viria dominar todo o seu trabalho subseqüente. Aqui a ossatura de concreto traz toda a certeza do "a priori" cartesiano. Neste esqueleto, os volumes e o equipamento da casa podiam ser arranjados de maneira independente, segundo as necessidades práticas. A organização dessas necessidades seguiria uma determinação empírica cujas leis são tão rigorosa quanto as do esqueleto platônico e o seu envelope cúbico (embora, de fato, seja precisamente aqui que a invenção do arquiteto/artista entra em jogo, com toda a sua liberdade de alusão metafórica). O diálogo entre o esqueleto e o seu preenchimento fica aparente por meio das técnicas cubistas de simultaneidade espacial, elas mesmas tornadas possíveis pelas novas técnicas construtivas. A arquitetura de Le Corbusier dá expressão artística ao conflito entre as duas tradições de racionalismo que acompanhamos: o "a priori" e o "empírico". De um lado, encontramos as "idéias claras e distintas" que, traduzidas da metafísica cartesiana para objetos sensuais de arte, têm sido promovidas pelos teóricos clássicos franceses de Boileau a Durand. De outro lado, encontramos as idéias empíricas e científicas do positivismo, expressas como o funcional, o acidental e o contigente. Ambos os racionalismos são redutíveis a um tipologia: o primeiro aos tipos que estão inscritos em nossa própria consciência, o segundo aqueles tipos resultam de uma evolução teleológica. Um formalismo que tende igualmente ao clássico é encontrado tanto no modernismo escandinavo quanto no italiano. Na Escandinávia está presente na obra de Gunnar Asplund e nos primeiros trabalhos de Alvar Aalto - em ambos os casos devido a existência de uma forte tradição neoclassicista que data da primeira década do século vinte. Na Itália esta tendência é inseparável das demandas culturais do facismo e da tentativa de reconciliar os ideais progressistas e a tradição. O exemplo dos escritos e da arquitetura de Le Corbusier foi provavelmente a influência mais importante na vanguarda italiana dos anos trinta (os "autodenominados" do Cruppo 7). Em seu livro 'Vers une Architecture , publicado em 1923, Le Corbusier havia igualado os produtos da moderna tecnologia, tais como os automóveis, com o Partenon - sendo cada um apresentado como o resultado de um processo evolucionista que terminava numa perfeita forma tipo . Esta imagem permitiu aos arquitetos italianos reconciliar os aspectos dinâmicos e mecanicistas do futurismo com a tradição clássica. Antonio Sant Elia, em seu "Cittá Nuova" de 1914, sintetizou as idéias de
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>, I liromichi Matsui e Franco I’urini Vottorio Gregotti, Franco Amoroso, Salvatore ßisogne Quateirào Zen Palermo, 1970
Henri Sauvagee da "W agnerschule" para produzir a sublime imagem de uma cidade moderna mecanizada e congestionada. Se com pararm os as imagens neste livro com as obras dos racionalistas, tais com o a "Casa do Faseio" de Ciuseppe Terragni e certos trabalhos de Eduardo Pérsico e Gino Pellini, veremos que o expressionismo romântico de Sant'Elia cedeu lugar a um classicism o calmo e atem poral. A este classicism o, no entanto, falta a iconografia estilística característica do "novecento Giovanni Muzio e Marcelo Piacentini. Reduziu-se tudo a um "fram ew ork' abstrato e de deliberada neutralidade.
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Pós-Modernismo: cm busca de significado O movimento moderno dos a nos vinte foi marcado por um fervor evangélico que lhe emprestava todos os atributos de um movimento religioso. Como em todos os movimentos religiosos seus adeptos tinham que passar por uma "Conversão" a um estado mental em que os menores e mais mundanos aspectos da vida eram transfigura dos. O racionalismo da vanguarda do século vinte era envolto por um antiracionalismo dogmático e idealista que só podia, talvez, sobreviver em forma pura por um curto período de tempo. Já nos anos trinta começa um processo de "liberalização" que culmina nos anos cinquenta. Esta liberalização no abandonou a posição racionalista fundamental, mas buscou "humanizá-la. Nos anos trinta Le Corbusier começou a introduzir em suas obras materiais naturais e elementos vernaculares. J. J. P. OUD, que tinha se associado ao movimento "De Stijl", procurou reintroduzir o ornamento em seus edifícios, e Alvar Aalto desenvolveu um estilo que explicitamente concedia espaço aos fatores "irracio nais" e "psicológicos". Após a segunda guerra esse processo continuou sob diferentes rubricas, tais como "neoem pirism o", "brutalismo" e "neorcalism o". Ao mesmo tempo, particularmente nos Estados Unidos, o desenvolvimento técnico atingiu um estágio no qual era possível ligar o aspecto racional/construtivo do modernismo às necessidades ideológicas do desenvolvimento imobiliário, minando assim os princípios utópicos do modernismo. Nenhuma destas tendências questiona va as premissasbásicas no Modernis mo racionalista. Elas viam o modernismo como capaz de reforma-se gradualmente a si mesmo "de dentro", de modo a absorver as necessidades pragmáticas e "humanistas" que tinham sido excluídas do seu programa original. Um desenvolvimento paralelo pode talvez ser visto dentro da filosofia analítica. Wittgestein e seu "jogos de linguagem" introduziu em "Philosophical Investigations", a filosofia da "linguagem comum" de L. Autin, e o conceito de "sociedade aberta" de Karl Popper, todos eles, por caminhos diversos, rendendo-se às tentativas de equiparar os processos de análise racional ao mundo real. Em meados dos anos sessenta, no entanto, houve uma forte reação ao discurso arquitetônico, que, ao invés de tentar reformar a arquitetura "por dentro" de uma interpretação estritamente racionalista modernista, buscava antes redefinir o racionalismo enquanto uma tradição autônoma de arquitetura. Este movimento origi nou-se no círculo de jovens arquitetos agrupados em torno de Ernesto Rogers, o editor da revista Casabella . A transformação específica à qual o racionalismo esteve sujeito ao longo do desenvolvimento histórico foi visto como algo secundário, dependendo de uma tradição mais profunda segundo a qual o que é "racional" em arquitetura é o que conserva a arquitetura como um discurso cultural através da história. Estas idéias eram baseadas em grande parte na linguística estrutural, que enfatiza o valor paradigmático das estruturas típicas e invariáveis que serviu de base aos atos inviduais da fala. Embora haja uma evidente conexão histórica entre essa visão e os aspectos formal is tas do modernismo, eles diferem num aspecto crucial. O formalismo modernista supunha que a arquitetura podia ser reduzida a formas que correspondem à estrutura da mente humana (Les Constants Humains) enquanto o novo formalismo que estamos
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descrevendo acha os elementos invariáveis da arquitetura são irredutíveis para além da própria experiência da arquitetura, como realidade social e cultural. Esta visão implica que devamos olhar para a história da arquitetura - ou um amplo segmento dela - com o se fosse um instante contínuo no qual o pensamento e a memória seriam coextensivos. O modelo desta visão é o pensamento Iluminista, que tomava o progresso não com o um desenvolvimento im previsível e sem fim, com oocorre no positivismo, mas como arranjo racional eexploraçãod o material existente. D cacordo com esta visão, as características tipológicasde uma arquitetura racional não são aquelas criadas pela tecnologia ou por formas especificam ente modernas de comportamento social, mas aquelas que persistem através de mudança social e tecnológica e que nos ancoram a uma imagem perm anente do homem. Há um retorno à visão da razão do século dezoito como a faculdadequeexiste, ela mesma, fora da historiara história fornece à razão modelos mutáveis de realizações humanas (no caso, arquiteturais) entre os quais se é capaz de escolher livremente. Os arquitetos que exemplificam tais atitudes mais claramente são Ciorgio Brassi e Aldo Rossi. O primeiro enfatiza os aspectos mais ontológicos e tectônicos da tradição racionalista, enquanto o último enfatiza as im agens poéticas e subjetivas às quais pode dar origem. (28) Com o parte de uma tecnologia "pós-m oderna" mais geral, esse tipo de racionalismo deve ser visto como uma reação defensiva às condições sociais atuais de consumo e produção. Não é um acidente que, em ambos os casos, a produção seja pequena e deliberadamente modesta em escala. Atingim os um estágio na evolução social em queos produtos da razão humana estão m aise mais divorciados da experiência do fazer, construir ou imaginar. Falando em 1894 da distância entre o pensamento conceituai científico moderno e nossa capacidade de reduzir o mundo à imagens sensíveis de ordem, Paul Valéry escreveu: "Porque somente uma pequena parte do mundo pode ser assim reduzida? Há um momento em que o figurai torna-se tão com plicado, ou os eventos parecem tão novos, que precisamos abandonar a tentativa de considerá-los como um todo, ou de prosseguir sua tradução em valores contínuos. A que ponto nossos Euclides paralizaram sua apreensão da forma?" (29) Quase cem anos depois, o problema tornou-se ainda mais ofuscante. Podemos ainda usar palavra "racionalism o" em arquitetura no sentido em que sempre foi usada, a despei to de todas as mudanças de significado: como a tentativa de prover um análogo sensual, a presença em blem ática, para aquela razão que um dia se supôs permear o universo?
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NOTAS (1) ARISTÓTELES, Física, 199a, 1 5 - 1 9 . (2) John Wood O Velho. The Origin o f Building, or the Plagiarism o f the Heathens Detected (London, 1741). (3) Quatremère de Quincy, Caractère, em Architecture (Paris, 1788). Também, "Caractère", no Dictionnaire historiqued'architccturc(Pans,\S32). (4) Veja-se Wolfgang Herrmann, The Theory o f Claude Perrault (London, 1962). (5) Charles-Etienne Briseaux, Traite du beau essential dans les arts (Paris, 1752). (6) Veja-se Joseph Rykwert, The First Moderns. (Cambridge, The MIT Press, 1980), cap.8. (7) Para esta e outras opiniões sobre Saint-Geneviève, veja-se R. D. Middleton, "The Abbé de Cordemoy and the Graeco Gothic Ideal", "Journal o f the Warburg and Courtauld Institutes 25 (1962): 111. (8) A busca durante o Iluminismo das leis de uma grámática universal era baseada no trabalho de Port Royal Grammarians, Arnaud and Lancelot, cuja Grammaire generale et raisonnée foi publicada em 1660. O grâmatico inglês James Harris (1709-80) definia a gramática universal como "A gramática que sem desconsiderar os vários idiomas de linguagens especí ficas, somente respeita os princípios que são essenciais a todos eles". As principais personalidades desta tradição era Cézar Chesneau Dumarsais (1676-1746), Nicolas Beau/ee (1717-89),eDestutt de Tracy (1754-1836). (9) J.N.L. Durand, "Introduction", Precis des leçons d'architecture données à l'École Royale Polytechnique (Paris, 1819). (10) Jacques-Guillaume Legrand, Essai su ri'histoire générale de l'architecture (Paris, 1800). (11) Thomas Hopes,/)// Historical Essay on Architecture, 3rd ed.(1840), vol. 1, p. 495, citado em D. Watkin, Thomas Hope and the Neoclassical Idea (London, 1968), p. 214. (12) O documento crucial da doutrina romântica da arquitetura é a revista Das Athenaeum (1798-1800). Escrita principal mente por Friedrich e August Wilhelm Schlegel. Esta doutrina foi disseminada na França e Inglaterra pela Madame de Stáel, cujo livro De F Allemagne foi publicado em 1813. (13) Veja-se Peter Collins, Changing Ideals in Modern Architecture (Toronto; McGill University Press, 1967), cap. 19, "Rationalism". (14) Léonce Reynaud, Traite d'architecture (Paris, 1860-63), p. IX. (15) Veja-se Colins, Changing Ideals, cap. 19. (16) As principais afirmações teóricas de Viollet-le-Duc são encontradas
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no Dictionnaire raisonné d'architecture française, du Xlcau XV le siècle (Paris, 1858-68) e Entretiens su r l'architecture (Paris, 1863-72). (17) Viollet-le-Duc, Entretiens, nu 10. (18) Veja-se Philippe Junod, "La terminologie esthétique de Viollet-leDuc", em Viollet-le-Duc., centenaire de la mort à Lausanne (Lausanne, 1979) p. 57. (19) Viollet-le-Duc, "Style", em D ictionnaire raisonne. (20) Veja-se Junod, "L a terminologie". (21) A. W. Schlegel. U lvr Draniatischc Kunst and Literatur, 2nd ed. (H eidel berg, 1817), III, p. 8; citado por Rene W ellek, A History o f Modern Criticism (Cambridge, 1981), vol. 2, p. 148. (22) Louis Sullivan, Kindergarten Chats and Other Writings (New York, 1979), p. 194. (23) Os filósofos estéticos formalistas alem ães foram contrários a teoria clássica da imitação. De acordo com Johann Friedrich Herbart (1776-1841), a beleza é uma sensação irredutível que não significa nada além de si mesma. O approach de Herbart foi desenvolvido de maneiras diversas e em diferentes artes, por Wilhelm Unger, Robert Zimmermann, Eduard Hanslick, Konrad Fiedler, e outros, no fim do século dezenove. (24) Ernst Mach, Die Meclianik in Hirer Entxoicklung. (25) Bronislaw M alinowski. "A nthropology", em Encyclopaedia Britannica, 13th ed., suplem ento I (Chicago, 1926). (26) Veja-se C laude Schnaidt, Hannes M eyer (Arthur Nigli, 1965), p. 23. (27) Veja-se Hermann M uthesiu's "P roposition" nos Proceedings o f the Dcutscher Werkhund Congressat Cologne ( 1914). Em 1912o crítico inglês T.E. Hulme fez também uma analogia en treo classicism o e a máquina ao atacar a poesia expressionista. Veja-se Raymond Williams. Culture and Society (New York, 1958). (28) Veja-se Ignacio Sola-M orales, "C ritical Discipline", Oppositions 23 (Winter 1981 ). Este é um estudo de sensibilidade sobre as idéias de Giorgio Grassi. Veja-se também Aldo Rossi, The Architecture o f the City (Cam bridge: The M IT Press, 1982) A Scien ti fie Autobiography (Cambridge: The MIT Press, 1981). (29) Paul Valéry, "Introduction à la m éthode de Leonard de Vinci , La Nouvelle revue française, August 15,1895; traduzido em James R. Lawler, ed., Paul Valery, An Anthology (Princeton: Princeton University Press, 1976), p. 61.
NÚMEROS PUBLICADOS (os números 1, 2 e 3 encontram-se esgotados). ALBERTINA M. CARVALHO Ambigüidad e: O Enigma de Volpi.
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MARIA LUISA LUZTAVORA O Concurso de Fachadas de 1904 no Rio de Janeiro.
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ENTREVISTAREI
BERENICE CAVAl.CANTE Etiqueta, Estética c Poder: a Cultura do Barroco.
Lúdo Costa sobre Aleijadinho.
RODRlCONAVÉS ’B L O Olhar Difuso. Notasssobre a Visualidade Brasileira.
MARGARIDA M. RODRIGUEZ RAMOS Elcmoatos do Barroco Italiano na Talha Joanina.
KATIA MURICY Tradição e Barbarie eni Walter Benjamim.
SONIA^fARIA GONÇALVES SIQUEIRA a/Tcairalidade no Barroco Religioso Brasileiro.
HAROLD ROSENBERG Willem de Kooning.
FRA n” õ IS LYOTAR^BÍ Barnett Newman - O Instante.
CLEMENTCREENBERG
JACQUES IIENRIC Barnett Newman - Com Deus sob a Gramática.
DejJ^TOTjcpressionismo Abstrato. EUGENIO D'ORS O Paraíso Perdido.
PHILIPPE JUNOD O Futuro no Passado.
ROBERTO CONDURU
MARCAKETI! DA SILVA PEREIRA A Arquitetura Brasileira e o Mito.
MARIA HELENA DE CARVALHAL JUNQUEIRA A Pintura Profana no Rio de Janeiro Setecentista.
ILEANA P RA DILL A CERÓN Castagneto: O Jogo do Ambíguo.
ELIZABETH CARBONE BAEZ A Pintura Religiosa e o Universo Colonial. MARTA QU EI ROGA AMOROSO ANASTACIO Arquitetura G v il no Rio de Janeiro Setecentista. ANA MARIA E. MONTEIRO DE CARVALHO O Passeio Público e o Chafariz das Marrecas de MestwValentim. SUELY DE CJÒDOY WEISZ Um Estudo da Imaginária Setecentista Carioca. VERA REGINA LEMOS FORMAN Dois Mestres Imaginários: Simão da Cunha e Pedro da Cunha. CLAUDIA MORENO DE PAOLI LUE ANTONIO LOPES DE SOUZA Um Olhar sobre a Arquitetura Religiosa do Rio no Século XVIII. ANA MARIA MESQUITA Azulejaria Setecentista no Rio de Janeiro. HELOÍSA MAGALHÃES DUNCAN A Talha Religiosa da Igreja do Mosteiro de São Bento. MARIA EDUARDA CASTRO MAGALHÃES MARQUES VERA BEATRIZ CORDEIRO SIQUEIRA A História da Construção da Capital.
TITotíARQUES PALMEIRO A Estética de Kant. ROBERTO CONDURU "O Pails Inventado" de Antonio Dias. C E R P A. BORNHEIM Introdução à Leitura de Winckelmann. NOEMI SILVA RIBEIRO /vObraCráfica de Coeldi. O EsboÇò dé uma Cronologia. BERNARD BLISTÈNE Fontana: O Heliotrópio Contemporâneo. ENTREVISTA Anselm Kiefer - Pintar como Feito Heróico.
O Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em nível de pós-graduação lato senso, foi formado há 11 anos. O Curso se inscreve em uma visão da História da Arte e da Arquitetura como um processo de rupturas, o que implica uma relação entre a produção da arte e a trama global da cultura brasileira. A proposta do curso objetiva não apenas desenvolver um saber sobre a arte e a arquitetura brasileira aprendidas em seu contexto universal, mas insiste na formação de uma visão ampla do campo cultural. Dentro desta orientação, o estudo e pesquisa de arte são encaminhados juntamente com outras áreas de conhecimento, favorecendo uma formação interdisciplinar.
Coordenador Acadêmico: Margareth da Silva Pereira Professores:
Ana Maria Monteiro de Carvalho Antonio Abranches Antonio Edmilson M. Rodrigues Carlos Zilio Fernando Cocchiarale Jorge Czajkowski José Thomaz Brum Margareth da Silva Pereira Paulo Sérgio Duarte Ronaldo Brito
Produção: PVDI DESIGN Revigoração do Projeto Gráfico Paginação Produção Gráfica GRAFICA RIEX EDITORA S.A. Editoração Eletrônica Impressão PIRÂMIDE LASER FOTOLITO Fotolito das Fotos
A Revista Gávea aceita propostas de artigos, mas todas as colaborações não encomendadas são submetidas ao conselho editorial a quem cabe a decisão final sobre sua publicação. Os artigos deverão ser enviados nos meses de abril e de novembro.
Correspondência: Editor Responsável, Revista Gávea Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de História Rua Marquês de São Vicente, 225 sala 515-F CEP 22453, Rio de Janeiro, Brasil
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