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CATEQUESE POÉTICA PAG
CATEQUESEPOÉTICA
Exatamente no dia 18 de maio os frequentadores da boate Ela, Cravo e Canela, templo da MPB, foram surpreendidos por uma apresentação diferente que entraria para a história da literatura brasileira.É que o poeta catarinense Lindolf Bell dava início, naquela noite, a um dos mais importantes e expressivos movimentos de distribuição de poesia: a Catequese Poética. “O lugar do poeta é onde possa inquietar. O lugar do poema são todos os lugares.” Seguindo esse lema, a Catequese levou a poesia ao conhecimento do grande público por meio de leituras de poemas em lugares previsíveis e imprevisíveis: praças, teatros, livrarias, colegios, clubes, universidades, bares. sindicatos--e até em estádio.
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Publicou seu primeiro livro de poesia, Os Póstumos e as Profecias, em 1962. Na época, cursava Dramaturgia na Escola de Arte Dramática, em São Paulo. Em 1963 publicou Os ciclos. Em 1964, logo depois do golpe militar, criou a Catequese Poética, movimento que reaproximou o poeta da povo, da praça, da comunidade. Em 1968 declamou poemas no Show Contra, no Teatro Ruth Escobar.No mesmo ano casou e viajou para os Estados Unidos, onde integrou o grupo brasileiro no International Writing Program, na Universidade de Iowa.
O POEMA DAS CRIANÇAS TRAÍDAS O poema das crianças traídas Eu vim da geração das crianças traídas Eu vim de um montão de coisas destroçadas Eu tentei unir células e nervos mas o rebanho morreu. Eu fui à tarefa num tempo de drama. Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado.
Eu fui às cidades destruídas para viver os soldados mortos. Eu caminhei no caos com uma mensagem. Eu fui lírico de granadas presas à respiração. Eu visualizei as perspectivas de cada catacumba. Eu não levei serragem aos corações dos ditadores. Eu recolhi as lágrimas de todas as mães numa bacia de sombra. Eu tive a função de porta-estandarte nas revoluções. Eu amei uma menina virgem. Eu arranquei das pocilgas um brado. Eu amei os amigos de pés no chão. Eu fui a criança sem ciranda. Eu acreditei numa igualdade total.
Eu não fui canção mas grito de dor. Tive por linguagem materna, roçar de bombas, baionetas. Eu fechei-me numa redoma para abrir meu coração triste. Eu fui a metamorfose de Deus. Eu desci ao centro da terra para colher o girassol que morava no eixo. Eu descobri que são incontáveis os grãos do fundo do mar mas tão raros os que sabem o caminho da pérola. Eu tentei persistir para além e para aquém do contexto humano, o que foi errado.
Eu procurei um avião liquidado para fazer a casa. Eu inventei um brinquedo das molas de um tanque enferrujado. Eu construí uma flor de arame farpado para levar na solidão. Eu desci um balde no poço para salvar o rosto do mundo. Eu nasci conflito para ser amálgama. II Eu sou a geração das crianças traídas. Eu tenho várias psicoses que não me invalidam. Eu sou do automóvel a duzentos quilômetros por hora com o vento a bater-me na cara na disputa da última loucura que adolesceu. Eu sou o anti-mundo à medida que se procura o não-existir. Eu faço de tudo a fonte para alimentar a não-limitação. Eu sei que não posso afastar o corpo que não transcende mas sei que posso fazer dele a catapulta para sublimar-me.
Meu coração é um prisma. Eu sou o que constrói porque é mais difícil. Eu sou o que não é contra mas o que impõe.
Eu sou o que quando destrói, destrói com ternura e quando arranca, arranca até a raiz e põe a semente no lugar. Eu sou o grande delta dos antros Os amigos mais autênticos são as águas que me acorrem.
Eu sou o que está com você, solitário. Quando evito a entrega, restrinjo-me. Quando laboro a superfície é para exaurir-me. Quando exploro o profundo é para encontrar-me. Quando estribo braços e pernas na praça sobre o não alterável É para andar a galope sobre a não-liberdade.
III Sem bandeira que indique morte qualquer, avanço das caliças. Sem porto fixo à espera, nem lar de maternas mãos ou rua de reencontro. Ostento meus adeuses. Sem credo a não ser à humanidade dos que amam e desamam, anuncio a catarse numa sintaxe de construção.
Eu escreverei para um universo sem concessões. Eu saberei que a morte não é esterco,mas infinda capacidade de colher no chão menos adubado, que poderei sorvê-la como à laranja que esqueceu de madurar, que serei alimento para o verme primeiro da madrugada, que a vida é a faca que se incorpora em forma de espasmo, que tudo será diferente, que tudo será diferente, tão diferente...
Eu quero um plano de vida para conviver. Eu ostentarei minha loucura erudita. Eu manterei meu ódio a todos os cetros, cifras, tiranos e exércitos. Eu manterei meu ódio à toda arrogante mediocridade dos covardes. Eu manterei meu ódio à hecatombe de pseudo-amor entre os homens. Eu manterei meu ódio aos fabricantes das neuroses de paz. Eu direi coisas sem nexo em cada crepúsculo de lua nova. Eu denunciarei todas as fraudes de nossa sobrevivência. Eu estarei na vanguarda para conferir esplendores. Eu me abastardarei da espécie humana. Eu farei exceções a todos os que souberem amar.
A PAZ Eu conheço a paz A rotunda paz A paz pregada A paz relegada
Conheço a paz pregada à pele das ruas Ao muro de Berlim países A paz com bolor A paz histérica das nações fortes A paz imposta aos pequenos
Conheço a paz preta Não a branca paz da pomba
A homeopática paz A pálida paz A paz do cartaz A paz do púlpito A paz política
Conheço a ridícula paz da gorda senhora chamada ONU
Conheço o cachimbo da paz Que é uma bomba sem paz Que é uma paz pontiaguda
Esta é a paz que eu conheço Aonde estará a paz?
Poeta e jornalista paulstano, nasceu em 1946 e ingressou na Catequese Poética em 1965. Nesse mesmo ano participou do Comício Poético da Praça da Sé. Publicou poemas em várias antologias aqui e no exterior. É autor de três livros de poemas: Ultimatum (1966), Espelho Riscado (1978) e Cantares da Paixão (2008). Organizou e publicou Jorge,80 Anos, pontapé inicial do Ano Jorge de Lima (1973). Participou da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília (2008), das comemorações dos 70 Anos da Guerra Civil Espanhola,(2009) e da Revolução dos Cravos (2013).Pesquisou e publicou As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (2021)
Entre o ato e o fato eu constato meu tempo seus silêncios seus impactos. Não negarei as pontes incendiadas, nem os rumos desfeitos. Eu vim para conhecer as fontes e recompor os rios. Não vim para explodir a bomba, nem ferir a pomba. Vim para me incorporar aos desabrigados, aos que perderam a terra o pão a pá. Não vim para dizer a palavra nova ou descobrir a lua nova. Vim para cumprir os chamados e assistir o meu povo. Não vim para me resguardar ou resguardar minha poesia. Vim para expor meu coração e revelar que o poeta não ficará de braços cruzados porque nós ainda construiremos o mundo novo nós ainda acreditamos no mundo novo!
OPÇÃO À força ou a forca?
Nossa opção
entre cedilha e ce VARIAÇÕES Eu duvido da vida
da vida devida
da dívida da divisa
(Deve Davi dever a vida?) Não dou ouvido ao vidro da vida
Eu di vi do a vi da
e dou o pão di vi di do
O INVISÍVEL POEMA Aqui se cruzam os caminhos de épocas remotas e atuais. Neste espaço finco os beirais desta casa onírica. Meu ninho
é esta escrita em pergaminho. São as fantasmagorias banais, os sons obsessivos das vogais e as libações efêmeras do vinho. Não falo de casas em burburinho, nem de monumentos e catedrais. Registro, apenas, nesta escrivaninha o invisível poema em redemoinho, capturando o lido e o olvido e os ais escutados na partição dos caminhos
AUTO-RETRATO Até que enfim não dei em nada Dei em mim
Poeta e jornalista paulistano, nasceu em 1945 e morreu em outubro de 2000, vítima de câncer pulmonar. Ingressou na Catequese Poética logo depois de Rubens Jardim quando o movimento ainda estava levantando voo e ampliando seus quadros e suas repercussões. Publicou 4 Novos Poetas na Poesia Nova (1965); Ex-Exercícios (1966); Antologia da Catequese Poética (1968); Lapidário Geral, (1978). Teve poemas traduzidos para o italiano na antologia Poesia de Brasile d’Oggi (1968).
VAMOS BRINCAR DE HERÓIS? Vamos brincar de heróis? Atamos verdades verdes pelas veredas, falamos das falhas e das mortalhas. A canalha rompe, range e age na medida de ação da reação: CASSAÇÃO CALADA (não convoca-ação) RUGE corre-se risco. Mas nós não corremos rápido talvez pelo hábito de enfrentar de tentar e de estar na terra e não no ar NOSSOS HÁBITOS Mas nos habituaremos (um dia) com uma cidade casual que procura um álibi para explicar o abismo? Um ISMO? Uma solução decrépita ou demente? Ou dissolvida pela mente? Nao se sabe ao certo. Aliás, não se sabe nada ao certo. Ou mais aliás ainda, não está nada certo. Nem há nada perto, e há que se nadar muito para alcançar qualquer ilha. Com nosso barco sem quilha neste mar acidental, no acidente entre o ocidente e o oriente nesse mapa emocional. Será que vale a pena ser herói (nacional)?
A PASSEATA Uma bandeira nova passava pela rua (pensamos: muito importante era o dia) julgarás: renovado Saía a passeata depois veio o cansaço / aço / aço construiam ao nosso lado pensarás: arquiteturas passava a passeata / ata / ata a ata na mesa do congresso / esso / esso pensarás: progresso protesto petróleo / óleo / óleo olhamos tudo e não pudemos dizer nada.
INVENTÁRIO DE BRASÍLIA Bassa basílica digo lago ao longo Regina Advocata et Mater na catedral sem vidros
ilha em terra enterrada nas marés de suas savanas a oração rompe na tarde da ilha nova é tarde o brilho se transfigura face ao tempo face a face em minha face refletida no brilho vidro da janela face norte do Hotel Nacional em Brasília
Brasil minha locação: W 3 SQ 303 (evitar saída sul) a esplanada dos ministérios R 13
sem mistérios ou equações
este o caminho mais curto (passando pela casa de Maria) para se chegar ao Palácio da Alvorada presidência da república dos Estados Unidos do Pindorama terra dos marujos e dos papagaios.
Poeta nascida em Barra Mansa, Rio de Janeiro, viveu a maior parte de sua vida em São Paulo. Era também artista plástica e foi uma das primeiras poetas a integrar o movimento Catequese Poética, iniciado em 1964 pelo poeta catarinense Lindolf Bell. Na década de 70 foi morar em Salvador e criou uma galeria de arte que acabou sendo ponto de encontro de muitos artistas. Publicou apenas um livro: Os Rumos(1964)
A TUDO DIREI SIM A tudo direi, sim, Sem nenhuma importância. Saberá alguém dos silêncios dos cofres cheios de miçangas Em símbolos de vidro, mais que a verdade caberá. A tudo sorrirei Recolhendo as esperas. Ninguém perceberá a urgência de ontem. Às noites com piedades tão cruas Pedirei que antecipem as anmarras do voo. Caminharei cansada, sem flores nos meus cantos, Pois cairemos, eu sei, Folha por folha, E o verde se perderá num excesso de odor. Quem armazenará o fruto, nestes campos estéreis, Se as flores distribuem-se vestidas de verdade? A tudo hei de jazer calada Num silêncio pletórico de cardos. Alguém inventará gestações de mármores e bronzes. BRANCOS SÃO OS OLHOS Brancos são os olhos das mulheres Brancas as paisagens O céu todo branco arqueando-se em horizontes. Brancos homens? Brancas ruas? Onde estão as cores da vida?
O sol quer se por e nada mudou! Sempre a alvura infinita Distendendo-se em toda a parte Os olhos cansam de ver Sempre a mesma paisagem. Ele,—o que tinha azul nos olhos Que tanto me assombraram Que branca lembrança me deixou! Ah! Este tédio branco ao meu encalço Onde tudo é loucura, Este longínquo marulhar de vozes veladas Que passam por mim
Poeta nascido no interior de São Paulo, Santa Cruz do Rio Pardo, viveu por quase uma década em Florianópolis e participou da Catequese Poética, movimento iniciado em 1964, ano de publicação de seu primeiro livro, Um Anjo Morto na Encosta, seguido por Ao Corpo Circunscrito, de 1966. Érico, em Florianópolis, colaborou com poemas e artigos no jornal Ilha, uma raridade editorial, como também no jornal O Estado.
Esse é o vale e esta a mão que o desmancha para que ainda maior seja a identidade entre os guardiões e os guardados. Por muito tempo te distanciaste, vertebrado na crônica dos parentes, e agora ressurges um nível das noites.
Onde os anciãos cultivam velas e palavras cansadas, onde framboezas contaminam a frágil dança dos amantes, onde o gato continua subterrâneo, à espreita dos que se uniram sob a proibida imagem. Talvez aqui, a lua manchada pelos feiticeiros, deuses ainda percorram jardins e clavicórdios. O vale é como o poema ou a folha,--apalpados, transmitem-nos o impoderável tremor de seu ser.
Vale, célebre vale, tanto cresceste em minha origem, alimentando-me de silêncio e certos momentos evocando um passado não compartilhado. Quantas vezes será preciso cantar-te, ó vale, até que eu fique inteiramente submerso em teu dorso?
3-O GOMO Asperge sobre mim a tua face, unindo os gomos de fruta silente, replanta aqui a primitiva máscara, que à força de existir se desmembrou. Não o tempo, mas certo intermédio gosto, primeira e mais leve certeza, úmida folha em membrana exposta, onde a insegura forma se completa. Em todo gesto sobrenada um outro, o anterior, sonhado, gêmeo encoberto. algum canto de remota ternura. Porém o último permanece intato, sombra retida na inculta semente, e vibra, desperto do sereno ato.
Poeta, jornalista, professor de marketing e planejamento estratégico. Nasceu no Rio de Janeiro em 1944, mas quatro anos depois já estava vivendo em São Paulo. Em 1959 organizou a Semana da Poesia Novíssima, em São Paulo, Publicou em 1965 o livro de poemas Ao compasso de Marcha (Brasil Editora, capa de Lindolf Bell). Participou do movimento da Catequese Poética, cursou o mestrado de Literatura Portuguesa na USP, sob a orientação de Carlos Felipe Moisés.Foi executivo e hoje vive em Vitória, Espírito Santo.
LAR essa rua é minha rua essa casa é minha casa esse é o povo que eu amo e que traí tanto tempo. esse céu de madrugadas, essas vozes da cidade, essas ruas que anoitecem sonhos, mortes, serenatas, tudo isso eu vivo em mim, tudo isso me pertence. essa rua é minha rua, em que desfilo meus sonhos em que me vejo menino correndo atrás de meu sonho, em que me vejo sonhando a liberdade de um dia. e tudo isso eu entendo, é minha língua que falam, o mais é tudo estrangeiro e quase nem me interessa. essa rua é minha rua, nessa calçada eu amei, nessa rua eu me criei, chorei, brinquei, morrerei. o mais é muito distante a minha luta é aqui, a minha pátria é aqui, e aqui meu povo que sofre. aqui tenho minha luta, minha flauta, minha roupa, minha verdade amanhã.
essa rua é minha rua nela que eu luto e trabalho, nela eu ensino e discurso, nela faço meus poemas, nela eu tenho a namorada, o pai, a mãe, a esperança. nela se resume inteiro tudo o que sonho prá mim. minha rua companheiro, com meu povo companheiro, minha ideia e destino. essa rua é minha rua, de cores e amores cheia, essa casa é minha casa, de livros e sonhos cheia, essas coisas livres todas é o meu sonho de um dia, a liberdade sonhada para essa rua e esse povo é tudo que hoje eu tenho. é minha luta e me basta.
ROBERTO PIVA Morreu o Piva. meu grande amigo, companheiro, e mestre da minha juventude. Que me apresentou a Nieztsche. Massao Ohno (que morreu também outro dia), Carlos Felipe, Cesário Verde etc... Tem muita gente morrendo... Mas, olha, se você me ama, não se preocupe. Há muitos anos, eu decidi que não vou morrer nunca.
TUDO BEM escrever poesia como se fosse uma solução uma saída? canções, modos estranhos de ser
danço na rua canto no chuveiro
a menina do andar de baixo diz: puxa que voz bacana! vontade de chorar
Poeta, é professor titular da área de semântica argumentativa da Unicamp. Foi reitor da Unicamp. Foi vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) Foi presidente da Fapesp, de 2002 a 2007, e Secretário de Ensino Superior do Estado de São Paulo, entre 2009 e 2010. Participou da Catequese Poética e publicou os livros de poemas: Cantografia (1982). Prêmio de Revelação em Poesia, APCA;Paisagem doméstica (1984); Geração (1985);Metalurgia (1991);Mascarada (1997);Pisca Alerta (2008).
SINGULARIDADE
Todo homem tem ao menos um direito e uma esquerda menos eu que perdi minha mão em São Simão
3 AFORISMOS PARA O PRIVADO PÚBLICO I A imprensa observa acordada vinte e quatro horas e cria os acontecimentos observados na vigésima quinta hora do dia II Pública no que presta a imprensa é privada quando empresta III O cidadão privado de seu direito público é como a imprensa privada de seu serviço público
ANFITRIÂ Não se decepcione: a vida o convidará para outros fracassos.
O GRÃO Ponha-se no meu lugar: pedido Ponha-se no seu lugar: ordem Ponha-se no lugar dele: compreensão Ponha-se no nosso lugar: entrega Ponha-se no lugar que quiser: desprezo Ponha-se no lugar de todos: BIOBIBLIOGRAFIA PRECOCE Fui aprender lingüística para entender as palavras ensinei semântica ao acreditar que tudo tem sentido escrevi livros sobre a linguagem buscando não perder as farpas das circunstâncias traduzi textos de hermética lógica e mitológicas depois de viajar por binarismos e termos médios sem deixar de girar por gerações de frases bobas volto ao ponto de que partia: vejo-me gramaticalmente indecifrável diante da técnica da poesia
IDENTIDADE Um homem tem muitas mortes: aquela que irá morrer porque nasce aquela que matará o seu batismo ou o simples nome que lhe é atribuído enfim todas aquelas em que morrerão as máscaras sociais com que foi sendo vestida sua vida
AFRESCO No banco de jardim da praça Santa Rita de Cássia em Sales Oliveira sentados meu pai e eu ambos ausentes: um pela morte outro pela vida resolvemos lembrar as velhas sombras que abrigam os esquecidos
PROVERBIAL O silêncio é de moscas ausentes, completo, geral, irrestrito, por isso, de ouro, quebrado apenas pelo atrito
Poeta, escritor, professor, jornalista, publicitário, é natural de Paramirim, Bahia.Na década de 60 viveu em São Paulo e fez parte da Catequese Poética, levando a poesia às ruas, bares, boates, clubes e estádios. Mais adiante foi viver em Curitiba. Publicou, em poesia: Jô, o Andarilho (livros 1,2, e 3); Opus Inconcluso; Anjo Silencioso – Contraponto Elegíaco à Rilke; Ailina - Auto de Amor; Poetamente e In Illo Tempore. Em prosa, Ravina (Romance); Menino-Espantalho (Memorabília); Tio Nochas – Havenças e Revivências (romance); Espectadores da Eternidade I (romance);
A primavera está chegando nos olhos, no rosto. Subo a escadaria, atravesso a rua, a chuva, atravesso a melancolia.
CANTAR DE SÓ Estou perplexo. Da minha solidão ecoa um grasnar de cisne ferido. Escrevo e o poema cessa.
HORA SECRETA Sinto no rosto tuas mãos e canto Eu te amo, eu te amo Ainda que minhas asas se estendam para o zodíaco Eu te amo, eu te amo Em beatitude, absorvido pelo espectro Que passa num leve sopro Eu te amo, eu te amo A inquietude envolve meu coração E esta é a hora secreta Quando o ferido bebe o vinho Consuma-se o mistério A barca adentra a baía Minha alma se dilata Enquanto deslizo pelo asfalto Não sei me conter Esta luz, este órgão imenso Tangido pelo anjo de sempre Liberta melodias que aprendi Quando uma pata de tigre Arrancou-me as entranhas.
PROCURANDO VIOLETAS Ah, meus agitados sonhos A voz falando e eu sentindo vertigens O Universo possui o silêncio Eu possuo o êxtase, nunca desejei o escuro ou luz Para emergir nesta cidade, mas tudo aconteceu Quando meu grito ecoou no último céu Xerxes, Buda, Maomé ou Antônio Conselheiro Sou mesmo Yusha, sem rival no meu delírio Dolorido como os feridos Mas como pétalas dos velhos tempos: Van Gogh, Nietzsche ou Bosch Loucos na ânsia de comunicar Mas as paredes estão ruídas! Eu não voltarei ao pó Entrei aqui por vontade própria Por ela sairei quando quiser Que ladrem no delírio da crença Continuarei emitindo clarões Ainda que cercado de ídolos Foi ontem, sim Eu procurava violetas no asfalto Sem nenhuma preocupação Nenhum temor Apenas procurava violetas.
SÃO LUIZ A noite é uma concha rolando narcotizada.
A prostituta de azul rompe com seu riso o hímen da alvorada.
Volto pra casa e descuibro
a primavera chegando em grossas bátegas.
Poeta, psicóloga, jornalista e artista plástica, Nilza Barude atua no jornalismo desde 1970, quando iniciou sua carreira em São Paulo. Antes disso, integrou a Catequese Poética. Em 1979 foi viver em Salvador. Trabalhou quase 20 anos no jornal A Tarde.Nessa longa trajetória também criou, apresentou e dirigiu programas de TV, telejornais, debates e reportagens em diversas emissoras da capital baiana Publicou os livros Contos & Cartas Memórias de um Coração e Amor/ Ação (1995). Recebeu o Título de Cidadã da Cidade do Salvador, concedido pela Câmara Municipal.
6 Calcei os chinelos velhos de deus E caminhei pelas águas Pela mão de todos os meus irmãos, E dançamos a ciranda das ondas junto com todos os peixes Depois, Exaustos E em paz, Deitamos no leito marinho Entre algas. Adormecemos para acordar Ao lado dos velhos chinelos.
44 Eu tenho todas as raças liquidadas em meu sangue, Eu tenho todos os povos tombados em meus braços, Eu tenho o estigma desse tempo, E tenho o sangue e a terra misturando-se e restaurando-se In memorian. Eu tenho as trincheiras nas costas e asas nos pés, Que me levam a todos os continentes. Eu tenho em cada olho uma bomba detonada, E na boca uma granada por explodir. Eu sou o produto desse tempo discutido em dialética. Eu sou a hipótese e a síntese matemática dos acontecimentos. Eu sou a criança metralhada, Eu sou a angústia da humanidade toda, Que se desfaz, Aprendendo a morte, Dia a dia. eu sou a que morre a cada momento e a que nasce no segundo imediato. eu sou a quem tem muito a dizer e cala. eu sou a que luta sem preocupação de vitória mas traz a mensagem da guerra e da paz. eu sou a que é mais difícil. a que toma pelas mãos banha com os olhos e ama sem lua. eu não sou a estranha mas a telúrica. eu sou a que morre a cada momento e a que nasce no segundo imediato. eu sou a que tem muito a dizer e cala. eu sou a que cala.
QUANDO A TRISTEZA É MUITA quando a tristeza é muita escorre em correntes de lágrimas até lavar o coração. depois deixa na alma uma espécie de mancha roxa que minha avó chamava de melancolia...
Sou um andarilho. Pedestre ou passageiro, nunca o condutor. Do interior de São Paulo, para espaços do Brasil e do mundo. Olhar e ver. Deixar o mínimo de pegadas. Mais a busca que a fuga. Decidir com o coração, sempre. Felicidade importa menos que a verdade. A beleza é a essência de todas as coisas. Poesia é o que me arrebata como ator, escritor, diretor, músico ou empregado de infindáveis patrões./ Agora, aos 73, começar a re-ver, passar adiante, olhar nos olhos do meu filho e ter uma certeza: passei adiante. Minha geografia: seres vivos, a humanidade.
POEMA Trago-vos um penis ereoto pela urgência da vida. Habito-vos em prostíbulos psicodélicos escancarando minhas portas, abertas desde o ventre para a tormenta. ................................................... Está próxima a hora em que, um distante do outro, sem psicotrópicos, nus, conseguiremos dizer, banhados de simplicidade: Tenho a impressão de que estou te amando. ................................................ Na borda de um prato escrevi a palavra amor. A palavra amor, comi-a. O prato espatifou-se. .................................................. Fui correndo ao passado buscar meu sorriso menino. Na porta, encontrei uma velha. A seu lado, um velhinho sorrindo. O sorriso que eu tenho é roubado do velho que deixei dormindo.
LABAREDA.
I
queima tronco folha pata queima estala fogo reina tosta pele viva
II
queima gente bicho pássaro queima onça roça cobra anta frágil vida
III
mata era casa era cabra era tribo mata eram olhos eram asas eram bicos todos eram carne viva
IV
mata vira cinza vira osso vira pasto mata vira praga vira cova vira verme vira adubo foge vida
V
água teme o fogo no pantanal corumbrasa cuiabrasa brasaxingu houve tempo quando a terra do alto era azul mato a minha sede na tua água limpa estupro teu corpo mineral e garimpo meu corpo recebe teu ar puro e chora
Poeta, atriz, professora, pesquisadora e tradutora, cursou Letras na UNESP de São José do Rio Preto. Foi premiada por sua interpretação de Catarina, em A Megera Domada, de Shakespeare. Trabalhou no IDART como pesquisadora e supervisora. Fez mestrado e doutorado na USP, quando foi se aproximando cada vez mais do Teatro Russo, tema que pesquisou apaixonadamente e no qual se tornou grande especialista. pelo que escreveu. Participou da Catequese Poética Antologia(1968) e publicou Uma poética em cena: Meierhold, Blók, Maiakóvski: 358.
O CAMINHO Não é medo de chegar sozinha: é medo de não chegar. Não é angústia de saber longa a estrada: é de não saber escolher entre todas a verdadeira. Oh! Meu segredo inviolável! O longo mapa a percorrer! Quantas vezes penso ter chegado à paz e é apenas uma encruzilhada.
CARTAS A ALESSANDRO
1
O trem partiu. A princípio pensei No teu rosto. Depois, que não existias. No final, deixei de sentir. Tua mão acenou E vi que eras incomparável -o único.
2
Ontem à noite Fui colher uvas E a uveira não deixou.
Hoje de manhã Os meninos roubaram Minhas uvas -todas.
3
Estou como num hotel. Redescubro conversas de um dia anterior E sei que alguma festa está no fim. Converso com tua voz De trás de uma coluna Para sempre.
É professor titular de língua e literatura grega na USP e um dos mais prolíficuos tradutores de textos gregos para a língua portuguesa. Já traduziu e publicou autores como Hesíodo (o poema épico, Teogonia, 1981), todas as tragédias de Esquilo, alguns poemas de Safo e as tragédias Medéia e Bacantes, de Eurípides . Também publicou um livro de poemas, em 2009: A esfera e os dias. Pois bem: Jaa Torrano foi, também, companheiro nosso de Catequese Poética nos anos 60. Os poemas divulgados aqui estão no livro Lindolf Bell – 50 anos de Catequese Poética (Patuá,2014).
PRO Amor Fati, na minha experiência, é a íntima raiva ou júbilo ante os dados do aqui & agora. Fatum é nada & nenhum evento necessariamente ser o que é, mas necessariamente ser-&-não. Ao Kháos convém os atributos do Ser: infinito em todos os sentidos, & em cada sentido infinitamente definível. À fala convém os atributos do Fogo: a revelação, o brilhar & a aparição. O Fogo & o Kháos são o mesmo. E nesta identidade de revelação & revelado, encontra seu fundamento o Amans Fati para decidir entre o (que deve) Ser & o (que deve) Não Ser, segundo está dito no primeiro capítulo do Tao-Te-King: Ser & Não-Ser, provindo de um só fundo, distinguem-se apenas pelo nome. E tanto quanto nós próprios somos & não somos e, nos mesmos rios, entramos & não entramos, – esta atividade do Amans Fati é, radicalmente, po(i)ética.
AMOR ME CHAMASTE Amor, me chamaste ao amanhã onde resides, mas nós não saímos de nossa reminiscência, tudo permanece irreal cujas raízes todas se aprofundam no real cujas raízes irreais são todas as coisas, e quando amanhecer a próxima noite o ontem será hoje. Amor, copulamos envoltos pelo plenilúnio do agora quando eu procuro a sós o dia em que estarei comtigo e de que com tanto júbilo agora me recordo simulvisíveis o vindouro e o ido. Amor, me chamaste ao amanhã onde resides, mas nos caminhos da terra marinhos celestes caminhos e os mesmos pássaros espalmados no ar.