O Cテグ DOS BASKERVILLES
Sir Arthur Conan Doyle
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PREFÁCIO Sir Arthur Conan Doyle nasceu em Edimburgo, a 22 de Maio de 1859, de ascendência aristocrática anglo-irlandesa. Seus pais, com poucos recursos financeiros, tiveram de fazer consideráveis sacrifícios para oferecer-lhe o que, então, se considerava uma educação condigna. Assim, como fidalgo pobre, entre colegas privilegiados, Doyle estudou nas escolas qualificadas de Hodder e Stoneyhurst; depois em colégios de Jesuítas, tanto na França, como na Alemanha. Aos dezessete anos dominava o latim e o grego, falava fluentemente francês e alemão, além do inglês e irlandês, e adquirira uma formação metodológica que viria a ser-lhe útil como investigador e escritor. O polivalente Doyle acabou se formando em Medicina, na Universidade de Edimburgo, após o que resolveu embarcar num veleiro, como cirurgião de bordo, para uma expedição predatória à baleia, no Mar Ártico. No final desta viagem, ele percorreu as costas da África, ocidental e oriental, como médico de um navio mercante. Em 1885, casou-se com Jane Hawkins que, vítima de uma enfermidade crônica, ficou inválida durante muitos anos, até falecer em 1906. Foi no ano seguinte ao seu casamento que, sempre escrevendo para a Imprensa, Doyle criou a famosa figura de Sherlock Holmes. Recordando-se do professor de Cirurgia, Dr. Joseph Bell , com o seu nariz aquilino que lhe dava uma expressão de ave de rapina, a sua inclinação frustrada para a música e os seus hábitos peculiares, Doyle moldou Sherlock Holmes à imagem daquele médico com quem estudou na “Enfermaria Real” de Edimburgo, anexa à Universidade. O Dr. Bell, com base nas autópsias, contribuiu com algumas descobertas no campo da Medicina Legal, fundamentando-as na Anatomia, na Antropometria e até na nova teoria científica da Frenologia, correlacionando as deformações cranianas com a Psicopatologia; e soube encantar os discípulos com as suas faculdades de análise e dedução lógica. Assim, à imitação do mestre, Doyle dedicou a atenção a alguns casos criminais, chegando, posteriormente, a ser convidado a participar de vários inquéritos policiais. Mas não foi só à influência do Dr. Bell — e sim a todo um conjunto de circunstâncias — que se deve o seu interesse pela criminologia. Em 1807, foi criada, na Universidade de Edimburgo, a cadeira de Jurisprudência Médica (Medicina Legal). O professor catedrático era Sir Henry Littlejohn, Cirurgião-Chefe da Polícia daquela cidade. Embora Doyle tivesse se apaixonado pelos métodos dedutivos e confessasse ter se inspirado no Dr. Bell ao criar Sherlock Holmes, não foi com Bell, mas sim com Sir Henry Littlejohn que estudou investigação criminal e que, como seu assessor, teve vontade de ser “testemunha da Coroa” (Acusação) em casos de homicídio debatidos no tribunal. Enquanto o personagem de Sherlock Holmes, pelo seu temperamento idiossincrático, não podia ser considerado encantador; o Dr. Bell, pelo contrário, possuía um coração terno e um vivo senso de humor.
Contribuíram para a escolha do nome, Sherlock Holmes: um detetive particular chamado Wendell Scherer que ficou famoso em Londres, pois, em tribunal, se recusou a revelar o segredo de um cliente, alegando — tal como os médicos — o sigilo profissional. E Wendell Holmes, o autor cuja leitura Doyle preferia. Ora, o apelido Scherer assemelhavase ao termo alemão Shearer, que significa “barbeiro”, assim como Sherlock na gíria inglesa. Assim, a personagem que Doyle criou à semelhança do Dr. Bell foi batizada com o nome de Sherlock Holmes. Na realidade, Doyle fez de Sherlock Holmes uma espécie de cavaleiro andante na luta do Bem contra o Mal, embora profissionalmente, o herói apenas procurasse a verdade, sobrepondo a análise científica a qualquer tipo de sentimentalismo. Foi realmente pelo indiscutível mérito de Doyle que, em 1902, o governo britânico induziu a Coroa a homenageá-lo com um título de nobreza . Outro fato significativo que altamente dignifica a obra de Sir Arthur Conan Doyle reside na adoção, por parte de todas as Polícias do mundo civilizado, dos métodos e investigação estruturados pelo genial personagem fictício Sherlock Holmes. Nas palavras do seu companheiro, Dr. Watson: “(...) a dedução elevada à categoria de ciência exata”. Publicando no “Strand Magazine” a sua primeira novela, “Um Estudo em Vermelho”, Doyle recebeu por ela apenas 25 libras, ou seja, quinhentas vezes menos do que hoje se paga por um exemplar dessa edição. O interesse manifestado pelo público inglês não parecia prometedor. Mas, um editor americano encomendou-lhe outra obra que veio a se chamar “O Signo dos Quatro” e que, sendo publicada em 1890, obteve um êxito surpreendente. No ano seguinte, o “Strand Magazine” propôs-lhe a edição de doze contos, e depois outros doze e, então, o sucesso de Sherlock Holmes não teve limites, verificando-se a constante procura por suas obras, não só seqüentes, mas também anteriores, mesmo após a morte do autor, na sua casa de Sussex, a 7 de Julho de 1920, com 71 anos de idade. Mais tarde fundaram-se sociedades e clubes em várias cidades da Europa e da América, e muitos outros escritores têm feito análise “biográfica” sobre esse investigador da Baker Street, como se este tivesse realmente existido. Atualmente, nos Estados Unidos, o preço de cada exemplar das primeiras edições de Sherlock Holmes chega a atingir, conforme a sua raridade, 7500 dólares. Assim, a Editora Rideel lança agora a “Coleção Sherlock Holmes”.
O CÃO DOS BASKERVILLE CAPÍTULO 1 – SHERLOCK HOLMES
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sr. Sherlock Holmes, que geralmente se levantava tarde, com exceção das ocasiões freqüentes em que permanecia acordado toda a noite, estava agora sentado à mesa do café matinal. De pé, diante da lareira, peguei na bengala que, na noite anterior, o nosso visitante ali deixou por esquecimento e notei que era pesada, de madeira de boa qualidade, com castão esférico do modelo conhecido por Penarg Lawyer. Logo abaixo do castão esférico, numa tira de metal de dois centímetros de largura, estava gravado: “Ao dr. James Mortimer, LM, recordação dos seus amigos do C. C. H. - 1884” Era o tipo de bengala que costumavam usar os velhos médicos que assistiam as boas famílias: distinta, sólida e tranqüilizadora. — Então, Watson, que é que isso lhe diz? Holmes estava sentado, de costas para mim, e eu não entendi o que pensava. — Como adivinhou o que estava fazendo? — estranhei. — Você parece ter olhos na nuca! — Pelo menos, tenho diante de mim um bule de prata muito bem polido — replicou. — Mas diga-me o que pensa da bengala do nosso visitante. Já que tivemos a infelicidade de não o encontrar aqui e não fazemos idéia do motivo que o trouxe, este objeto torna-se importante. Gostaria que você me descrevesse o homem, de acordo com o exame da bengala. Procurando seguir os métodos do meu companheiro, comecei: — Creio que o dr. Mortimer é um médico idoso e bastante estimado, pois aqueles que o conhecem lhe deram esta prova de apreço. — Muito bem — elogiou Holmes. — Excelente! — Creio também — prossegui — que se trata de um médico da província e que faz grande número de visitas a pé.
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— Por que diz isso? — Porque esta bengala, embora ainda bonita, está tão usada que não deve pertencer a um médico da cidade. A grossa ponta de ferro está gasta; por isso, ele deve ter caminhado muito com ela. — Perfeito! — Além disso, está aqui escrito: amigos do C. C. H. Calculo que se trate da sigla de um clube de hipismo, por ele ter prestado serviços a sócios cavaleiros que lhe retribuíram com este presente. — Francamente, Watson, você está se superando — apreciou Holmes, afastando a cadeira e acendendo um cigarro. — Sou levado a dizer que, em todas as descrições que gentilmente fez aos meus dons de investigação, tem sido excessivamente modesto a seu respeito. Talvez você não seja luminoso, mas é um excelente condutor de luz. Há pessoas que, sem possuírem gênio, têm o extraordinário poder de estimulá-lo. Desde já lhe declaro, meu caro Watson, que me considero seu devedor. Holmes nunca falou tanto e confesso que as suas palavras me causaram intenso prazer, pois eu fiquei várias vezes magoado com a indiferença que ele manifestava pela minha admiração e pelas tentativas que tenho feito para tornar conhecidos os seus métodos. Senti-me também orgulhoso por ter assimilado o seu sistema tão perfeitamente que já conseguia aplicá-lo merecendo a sua aprovação. Então Holmes pegou a bengala e observou-a durante alguns minutos. Depois, com expressão interessada, pousou o cigarro, levou a bengala para junto da janela e começou a examiná-la com uma lente. — Interessante, ainda que elementar — concluiu, voltando para o seu canto preferido na poltrona. — A bengala apresenta realmente alguns indícios que nos servem de base para deduções. — Alguma coisa que me tenha escapado? — sondei. — Espero não ter desprezado um indício importante. — Para falar francamente, meu caro Watson, receio que a maioria das suas conclusões seja errônea. Quando disse que você me estimulava, quis dizer que, ao notar as suas falhas, me sentia ocasionalmente conduzido para a verdade. Não quero dizer que, neste caso, você esteja completamente enganado, pois não há dúvida de que se trata de um médico da província e que anda muito a pé. — Então, acertei! — Sim, até esse ponto.
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— Só nesse ponto? — Não apenas nesse ponto. Porém, acho que este presente foi oferecido ao médico pelos colegas de um hospital e, quando vejo as letras C. C. antes do H., penso que indiquem a Charing Cross Hospital. — Talvez tenha razão... o hospital de Charing Cross. — As probabilidades são a favor deste raciocínio e, se admitirmos essa hipótese, encontramos uma nova base para imaginar as características do nosso visitante desconhecido. — Muito bem, Holmes. Supondo que C.C.H. sejam as iniciais de Charing Cross Hospital, a que novas conclusões poderemos chegar? — Não faz uma idéia? Você já conhece os meus métodos. Portanto, procure aplicá-los. — Só me ocorre uma conclusão óbvia: o médico exerceu clínica na cidade antes de se mudar para a província. — E podemos ir ainda um pouco mais longe. Que ocasião seria mais propícia para um presente deste gênero? Em que circunstâncias se reuniram os amigos, para manifestar o seu apreço? Provavelmente, quando o dr. Mortimer se retirou do serviço hospitalar para estabelecer uma clínica por conta própria. Podemos assim admitir que o presente lhe foi ofertado nessa ocasião em que deixou de ser “interno do hospital”. — Parece realmente provável. — Agora, podemos acrescentar que não devia fazer parte do corpo de professores do hospital, pois só um médico importante, estabelecido em Londres, poderia ocupar tal posição de destaque; nesse caso, não iria fazer clínica na província. Sendo assim, que funções desempenharia o nosso dr. Mortimer? Se estava no hospital e não fazia parte do corpo de professores, não devia ser mais do que um estagiário interno. L.M.: licenciado em medicina. Ora, pela data da bengala, saiu de lá há cinco anos. Portanto, meu caro Watson, a sua dedução de médico idoso também cai por terra, pois ele é um rapaz com menos de trinta anos, amável, pouco ambicioso e um tanto ou quanto distraído, e dono de um cão que descrevo como sendo maior do que um fox-terrier, mas menor do que um mastim. Ri, incrédulo, enquanto Sherlock Holmes se reclinava na poltrona, expelindo baforadas de fumo para o teto.
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— Quanto à última parte — repliquei —, não tenho meios para verificála. Em todo o caso, não é difícil descobrir a idade do sujeito e a sua carreira profissional. Tirei da estante o livro Medical Directory e folheei-o. Havia vários Mortimers, mas um só susceptível de interessar-nos, e li em voz alta: Mortimer, James, licenciado em medicina, em 1882; estudos em Grimpen, Dartmoor e Devon; médico interno no Charing Cross Hospital, de 1882 a 1884. Foi distinguido com o prêmio Jackson para Patologia Comparada, com um ensaio intitulado: “As Enfermidades São Atávicas?”. É membro correspondente da Sociedade Sueca de Patologia e autor de “Algumas Aberrações da Atavismo” (ed. Lancet, 1882), e de “Conseguiremos Progredir?” (Jornal de Psicologia, 1883). É médico sanitarista das freguesias de Grimpen, Thorsley e High Barraw. — Como vê, Watson, não há a menor referência ao clube de hipismo — sublinhou Holmes, com um sorriso irônico —, mas é médico da província, como você tão judiciosamente observou... E, pelo visto, as minhas deduções estavam certas. Quanto aos adjetivos, creio ter mencionado “amável”, “pouco ambicioso” e “distraído”; sei por experiência própria que só um homem amável recebe homenagens e que só um médico sem ambições troca uma carreira em Londres por uma clínica de província. Por outro lado, só um indivíduo distraído deixa a bengala e não um cartão de visita depois de esperar uma hora pelo dono da casa. — E quanto ao cão? — Esse tem a hábito de ir atrás do dono, levando a bengala. Como é pesada, o animal transporta-a com firmeza, e as marcas dos dentes estão bem visíveis nela. Como pode ser notado, pelo espaço, entre as marcas dos dentes, a mandíbula do cão parece demasiado larga para se tratar de um fox-terrier e demasiado estreita para se tratar de um cão de guarda. Deve ser... é com certeza... um cão vulgar de pêlo crespo. Enquanto falava, Holmes levantou-se e começou a andar pela sala. Parou diante da janela e havia tal convicção na sua voz que ergui os olhos, surpreso. — Mas como pode estar tão certo disso, meu caro amigo? — Pelo simples fato de estar vendo o cão à nossa porta... Ora, ouça o
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toque da campainha do dono. Por favor, Watson, não se ausente... Vamos receber um colega seu e a sua presença poderá ser útil para mim. Este é o mais dramático momento do destino, quando se ouvem passos que ignoramos se vão entrar na nossa vida para o bem ou para o mal. Que desejará o cientista, dr. Mortimer, de um Sherlock Holmes especialista em crimes?... Faça o favor de entrar! A aparência do nosso visitante surpreendeu-me, já que eu esperava ver um típico médico da província. Este era muito alto, magro, com um nariz adunco sobressaindo entre os olhos cinzentos, vivos e muito juntos, que brilhavam por detrás de uns óculos de aros de ouro. Vestiase decentemente, mas com certo desmazelo, pois o seu casaco estava sujo e as calças bastante surradas. Embora jovem, já tinha as costas ligeiramente encurvadas e andava com a cabeça um pouco inclinada para a frente, com ar de quem observa o mundo benevolentemente. Ao entrar, os seus olhos pousaram na bengala e ele soltou uma exclamação de alegria. — Ainda bem! — exultou. — Não tinha a certeza se a tinha deixado aqui ou na Companhia de Navegação... Por nada deste mundo quereria perder esta bengala. — Um presente, não é verdade? — Exatamente. — Do Charing Cross Hospital? — Sim... de alguns colegas meus amigos, por ocasião do meu casamento. — Isso veio a calhar mal! — proferiu Holmes, abanando a cabeça. O dr. Mortimer piscou os olhos, por detrás das lentes, inquirindo, admirado: — Calha mal por quê? — Porque veio desmentir as nossas breves deduções. Por ocasião do seu casamento, não foi o que disse? — Sim. Casei-me e decidi deixar o hospital para montar uma clínica particular. Tornava-se necessário ter um lar próprio... — Perfeitamente. Nesse caso, não erramos muito — considerou Holmes. — E já agora, professor Mortimer...
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— Apenas dr. Mortimer... Só me licenciei. Não cheguei a defender tese de Doutoramento. — Vejo que é um homem de uma precisão indiscutível... — Digamos antes, sr. Holmes, que sou um curioso da ciência, que continua estudando, como quem apanha conchas nas praias do grande oceano do desconhecido. Creio que estou me dirigindo ao, sr. Holmes e não a... — Sim, sou Holmes. Este aqui é o meu amigo, dr. Watson. — Tenho muito prazer em conhecê-lo. Já ouvi o seu nome ligado ao do sr. Holmes, cujos métodos me despertam o maior interesse. Não esperava, sr. Holmes, que tivesse um crânio tão dolicocéfalo, nem um tão grande desenvolvimento supra-orbitral. Permita-me que passe o dedo pela sua fissura parietal? Gostaria de possuir um modelo do seu crânio, antes que seja possível obter o original genuíno... Seria um belo troféu para o Museu Antropológico... Não quero ser desagradável, mas confesso que cobiço o seu crânio. Sherlock Holmes ofereceu uma cadeira ao visitante e percebi que se sentia lisonjeado. — Vejo que tem tanto entusiasmo pelo seu ramo de estudos como eu pelo meu — declarou. — Pelo seu dedo indicador, percebo que costuma fazer os seus cigarros. Não faça cerimônia. Queira enrolar um e acendê-lo. O médico tirou do bolso uma carteira de mortalhas e uma onça de tabaco e começou a enrolar um cigarro, com surpreendente destreza. Tinha dedos longos, ágeis e irrequietos, como as antenas de um inseto. Holmes mantinha-se calado, mas os seus olhos manifestavam grande interesse pelo incomum visitante. Finalmente, observou: — Espero que não tenha sido unicamente pelo prazer de examinar o meu crânio que se lembrou de me dar a honra de me procurar, ontem à noite, e hoje, novamente... — Não... Claro que não, embora me sinta satisfeito por ter tido essa oportunidade. Vim procurá-lo, mr. Holmes, porque reconheço que sou um homem pouco prático e porque me encontro, inesperadamente, diante de um problema extraordinário. Ora, como reconheço que o senhor é o segundo perito da Europa... — O segundo? — estranhou Holmes, com certa aspereza. — Posso indagar quem tem o mérito de ser o primeiro?
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— Bem... No campo do raciocínio puramente científico, o trabalho de monsieur Bertillon (1) tem um valor indiscutível... — Nesse caso, não teria sido melhor o senhor consultá-lo? — Mas, sr. Holmes... Eu disse “no campo do raciocínio puramente científico”. Contudo, como homem de senso prático e de ação, o senhor é reconhecidamente o primeiro. Espero não ter, inadvertidamente... — Apenas um pouco — replicou Holmes. — Creio, dr. Mortimer, que seria mais sensato explicar, sem mais demora, a natureza exata do problema que o levou a pedir o meu auxílio.
CAPÍTULO 2 – A MALDIÇÃO DOS BASKERVILLE
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ou portador de um manuscrito — anunciou o dr. James Mortimer. — Reparei nisso ao vê-lo entrar — replicou Holmes. — É um velho manuscrito... — Sim, dos princípios do século XVIII, a não ser que se trate de uma falsificação. — Por que diz isso? — Porque, enquanto falava, o senhor permitiu que eu visse alguns centímetros do papel. Pobre do perito que não puder determinar o período de um documento, com uma margem de dez anos! Não sei se o senhor teve ocasião de ler a minha pequena monografia a esse respeito. Pelo aspecto, calculo que esse documento seja de cerca de 1740. — A data exata — precisou Mortimer, extraindo-o do bolso do casaco —, é de 1742. Foi-me confiado por sir Charles Baskerville, cuja morte trágica, há três meses, causou a maior excitação no Devonshire. Além de ser seu médico, tive a honra de ser seu amigo íntimo. Sir Charles era um homem de caráter, com força de vontade, inteligente e prático... um homem tão pouco imaginativo quanto eu. Apesar disso acreditou no teor deste documento e já estava preparado para o fim que teve. —
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Alfonse Bertillon, sábio francês (1853-1914) que criou um método antropométrico para identificação de criminosos (N. do T.)
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Holmes estendeu a mão para pegar o manuscrito e desdobrou-o sobre os joelhos. — Veja, Watson — apontou —, por que me permiti referir uma data. Olhei por cima do papel amarelado e li, no topo superior, “Baskerville Hall” e, logo abaixo, em largos caracteres, “1742”. — Parece ser um relatório. — Sim. É a narrativa de uma lenda referente à família Baskerville. — Mas, decerto, deseja me consultar acerca de algo mais atual e prático, não? — Sim... Trata-se de um assunto atual, prático e urgente, que tem de ser resolvido em vinte e quatro horas. O manuscrito é breve e está intimamente relacionado com o motivo que me trouxe aqui. Se me dá licença, passo a lê-lo. Holmes reclinou-se na poltrona, juntou as pontas dos dedos e fechou os olhos, com ar resignado. O dr. Mortimer virou o documento para a luz e leu: Tem havido muitas versões acerca da origem do Cão de Baskerville. Porque descendo em linha direta de Hugo Baskerville e porque ouvi a história contada por meu pai que, por sua vez, a ouvira de meu avô, aqui a transmito, no convencimento de que assim aconteceu. E desejaria, meus filhos, que acreditásseis que a mesma justiça que castiga o pecado, pode também benignamente perdoá-lo, e que nenhuma maldição seja tão tenaz que não possa ser redimida pela prece e pelo arrependimento. Aprendei, pois, a não temer os frutos do passado, mas a ser ajuizado no futuro, para que as vis paixões que afligiram a nossa família não voltem a desencadear a nossa ruína. Assim, sabei que, por ocasião da Grande Rebelião (e chamo a vossa atenção para o seu relato, historiado pelo ilustre lorde Claredon), este solar de Baskerville pertencia a Hugo, desse mesmo sobrenome, homem violento e ímpio. Os vizinhos poderiam perdoar-lhe essas imperfeições morais, já que nunca houve santos ali naquele lugar, mas possuía um caráter tão cruel e corrupto que o seu nome ficou infamemente célebre por toda a região. Sucedeu que Hugo se apaixonou pela filha de um lavrador que tinha propriedades nos arredores de Baskerville. A donzela, de reputação imaculada, sempre evitou se encontrar com o senhor do
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solar porque tinha medo de ficar mal falada. Ora, sabendo que o pai e os irmãos da jovem se encontravam ausentes, Hugo, com cinco ou seis dos seus companheiros, decidiu raptá-la. Quando a trouxeram para o solar, Hugo fechou-a num quarto do piso superior e em seguida foi, como era seu costume, a uma orgia com os seus amigos de devassidão. A donzela quase enlouqueceu com as trovas torpes e os ditos obscenos que lhe chegavam aos ouvidos; e já era sabido que as palavras que Hugo Baskerville proferia, quando se achava embriagado, eram de arrepiar. Finalmente, o pavor que a jovem sentia levou-a a cometer aquilo que o mais bravo dos homens teria receado praticar. Firmando-se na hera que cobria (e ainda hoje cobre) a parede da fachada sul, conseguiu descer ao terreiro e fugir em direção à casa de seu pai, que ficava a quase cinco quilômetros de distância, através do pântano. Passados alguns momentos, Hugo se separou dos amigos para ir levar comida e bebida... e talvez tivesse más intenções... à sua prisioneira. Encontrou a gaiola vazia e a ave ausente. Então foi como se tivesse ficado possesso do Diabo. Desceu ao salão, saltou para cima da mesa, fez voar pratos e garrafas e afirmou aos companheiros que, nessa mesma noite, daria a alma aos poderes do inferno se estes o ajudassem a recuperar a donzela. Perante uma tal fúria, todos ficaram estarrecidos. Contudo, um deles, o que era mais cruel, ou talvez o mais ébrio, bradou que deveriam largar os cães no rasto da fugitiva. Hugo correu para fora do solar, ordenando aos lacaios que lhe selassem a égua negra e soltassem a matilha. Deu aos cães um lenço da donzela para farejar e lançou-os no seu encalço, através do pântano. Durante alguns instantes, os parceiros ficaram atônitos, mas logo perceberam a tragédia horrorosa que iria consumar-se no pântano. O clamor generalizou-se, gritando uns por suas pistolas, outros por seus cavalos, alguns ainda por mais vinho. Finalmente, recuperando um pouco de bom senso, partiram no rasto do anfitrião. Eram treze, ao todo. A lua iluminava-os, enquanto cavalgavam em disparada, enveredando pela trilha que a donzela devia ter tomado para voltar para casa.
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Tinham já percorrido cerca de três quilômetros, quando toparam com um pastor noturno e indagaram se vira a caçada. Tão apavorado estava pobre homem, que mal conseguia falar, mas acabou por declarar que tinha visto a infeliz donzela com a matilha no seu encalço. — Vi mais do que isso! — acrescentou. — Vi Hugo Baskerville na égua negra, correndo em disparada, e atrás dele, silencioso, um cão do inferno... tão medonho que espero que Deus jamais permita que criatura assim corra algum dia atrás de mim. Os cavaleiros, embriagados, amaldiçoaram o pastor e prosseguiram na carreira, mas logo sentiram o sangue gelar-se em suas veias, pois ouviram um tropel de galope e viram a égua negra, empastada em suor, passar por eles com as rédeas soltas e a sela vazia. Então, os homens cavalgaram lado a lado, pois estavam apavorados. Seguiram ainda a passo lento através do pântano, se bem que qualquer deles, se estivesse só, teria dali fugido o mais rápido possível. Finalmente, encontraram os cães e, ainda que estes fossem conhecidos pela bravura da sua raça, ganiam agora, unidos no topo de um precipício, fitando as trevas do vale. Ao conterem as montarias, os cavaleiros se encontravam mais lúcidos do que quando haviam partido. A maioria se recusava a avançar, mas três deles, mais afoitos ou mais embriagados, adiantaram-se para a ravina. A trilha alargava-se no ponto onde se erguem aquelas duas grandes pedras, ali içadas por gente de tempos remotos. À luz da lua, via-se a infeliz donzela caída de bruços, varada de medo. Mas não foi a imagem do seu corpo, nem o de Hugo, estendido a seu lado, que apavorou os fanfarrões. Foi, sim, verem uma coisa asquerosa cravando as presas na garganta do senhor de Baskerville. Era um cão enorme, descomunal. A fera rasgava a garganta de Hugo e, quando se virou, com os olhos brilhantes e as faces sangrentas, os três parceiros fugiram aos berros, pelo campo afora. Um deles morreu nessa mesma noite e os outros dois ficaram meio dementes até o fim dos seus dias. Esta é, meus filhos, a história do advento do cão que dizem ter, desde então, atormentado a nossa família. Aqui o relato porque aquilo que se conhece é menos apavorante do que aquilo que apenas é sugerido ou adivinhado. Nem pode ser negado que muitas pessoas
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da nossa família tiveram morte súbita, sangrenta e misteriosa. Apesar disso, confiemos na infinita bondade de Deus, que não há de punir eternamente os inocentes, além da terceira ou quarta geração, conforme está prescrito na Sagrada Escritura. A esta Divina Providência vos recomendo, meus filhos, e dou-vos por avisados para que tenham a prudência de não atravessarem o pântano, às horas tenebrosas em que os Poderes do Mal estão exaltados. De Hugo Baskerville, para seus filhos Rodger e John, com a recomendação de nada transmitirem a sua irmã Elizabeth. Quando terminou a estranha narrativa, o dr. Mortimer subiu os óculos para a testa e fitou Sherlock Holmes. Bocejando, o detetive lançou o cigarro para as chamas da lareira. — Não acha interessante? — sondou Mortimer. — Sim, para um colecionador de contos de fadas. Mortimer tirou do bolso um recorte de jornal e disse: — Pois agora, sr. Holmes, vou mostrar algo mais recente. Eis o Devon Country Chronicle de 14 de junho deste ano. Insere uma breve notícia do que se deduziu da morte de sir Charles Baskerville, ocorrida poucos dias antes. Holmes inclinou-se ligeiramente para a frente, mostrando certo interesse. O nosso visitante tornou a ajeitar os óculos e começou: O recente falecimento de sir Charles Baskerville, cujo nome começava a ser citado como provável candidato liberal por MidDevon nas próximas eleições, causou grande consternação na vizinhança. Embora tivesse residido em Baskerville por período relativamente breve, sir Charles soube conquistar o respeito e a amizade de todos, graças à sua gentileza e ampla generosidade. Nestes dias em que imperam os “novos ricos” é saudável deparar com um caso em que um jovem de uma velha família que sofreu adversidades conseguiu fazer fortuna e teve o bom senso de investila na restauração da grandeza da sua decaída linhagem. Sir Charles, após ter feito fortuna na África do Sul, mostrou-se mais consciente do que aqueles que continuam imersos em especulações, até a sorte lhes ser adversa. Adquiriu consideráveis bens e regressou à Inglaterra, tendo há dois anos fixado residência em
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Baskerville. Contudo, os planos de reconstrução do solar dos seus antepassados foram interrompidos com a sua morte. Como não tinha descendentes, era desejo de sir Charles que todo o condado se beneficiasse da sua prosperidade. Assim, muitos conterrâneos terão razões pessoais para lamentar o seu falecimento prematuro. Os generosos donativos que efetuou a instituições de caridade foram com freqüência comentados nestas colunas. As circunstâncias da morte de sir Charles não foram completamente esclarecidas no inquérito, mas procura-se dissipar rumores da superstição local. Sir Charles era viúvo e um pouco excêntrico. Apesar da grande fortuna, tinha hábitos simples e mantinha a seu serviço apenas dois criados: o casal Barrymore — o marido era mordomo, e a mulher, governanta. Pelo depoimento deste casal, confirmado por vários amigos, sabemos que ultimamente sir Charles sofria de uma lesão cardíaca, revelada pela alteração da coloração do rosto, por falta de ar e por crises de depressão nervosa. O dr. James Mortimer, amigo e médico do extinto, prestou depoimento acerca do seu estado de saúde. Segundo o depoimento dos Barrymore, sir Charles Baskerville tinha o costume de todas as noites, antes de se deitar, passear pela famosa Alameda dos Teixos do solar. No dia 4 de junho, sir Charles manifestou a intenção de ir, no dia seguinte, a Londres, e ordenou ao mordomo que lhe fizesse a mala. Nessa noite, ainda deu o seu passeio habitual e fumou um charuto, mas não voltou desse passeio. À meia-noite, como Barrymore visse a porta do átrio ainda aberta, pegou uma lanterna e foi procurar o patrão. Foi fácil seguir-lhe as pegadas, pois chovera durante o dia. Na alameda, a meio caminho, existe um portão que dá acesso à charneca. Foram notados indícios de que sir Charles parou nesse ponto, durante alguns minutos. Depois, teria continuado o passeio, pois o seu corpo foi encontrado no fim da alameda. Não se sabe explicar a particularidade, apontada por Barrymore, de que os passos do patrão tinham se alterado, a partir do portão, já que parecia ter começado a andar na ponta dos pés.
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Um tal Murphy, cigano, encontrava-se não longe desse lugar, mas confessou estar completamente embriagado, acrescentando ter realmente ouvido gritos, mas sem saber de onde provinham. Não se viam sinais de violência no corpo de sir Charles, tendo o exame médico apenas registrado uma incrível distorção facial (tão forte que, a princípio, o próprio dr. Mortimer chegou a duvidar de que se tratasse do seu amigo) e concluído se tratar de um sintoma comum em casos de dispnéia e morte por exaustão cardíaca. Após a autópsia, confirmou-se uma lesão grave e a decisão do juiz ratificou a opinião do médico legista. Agora, espera-se que o herdeiro de sir Charles se instale em Baskerville e possa continuar a sua obra, tão lamentavelmente interrompida. Se a decisão do magistrado não tivesse posto um fim aos rumores românticos que correram acerca do caso, difícil seria tornar-se morador em Baskerville. Parece que o herdeiro, caso se encontre vivo, é o sr. Henry Baskerville, filho do irmão mais novo de sir Charles. Quando, pela última vez, se ouviu falar deste rapaz, encontrava-se nos Estados Unidos da América, pelo que atualmente se procede a investigações no sentido de descobrir o seu paradeiro e informá-lo da herança a que tem legítimo direito. Mortimer dobrou o recorte e guardou-o no bolso do casaco. — Aqui tem, sr. Holmes, os fatos conhecidos acerca da morte de sir Charles Baskerville. — Devo lhe agradecer por ter chamado a minha atenção para um caso que, realmente, apresenta aspectos interessantes — reconheceu Holmes. — Li alguns comentários nos jornais, mas nessa altura estava tão ocupado com o caso dos camafeus do Papa e empenhado em servir Sua Santidade, que me alienei de alguns casos ocorridos na Inglaterra. Diz o senhor que esse artigo contém todos os fatos conhecidos do público? — Exatamente. — Nesse caso, pressupõe-se a existência de fatos ainda não conhecidos. Pode citá-los? — solicitou Holmes, inclinando-se para diante e juntando a ponta dos dedos, mas conservando a expressão impassível. O dr. Mortimer, que começou a dar sinais de emoção, declarou:
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— Vou lhe confidenciar pormenores que não transmiti a ninguém. A razão que me levou a ocultá-los no inquérito baseou-se na repulsa que um cientista sente em aceitar publicamente uma superstição. Animava-me também outro motivo: não desejava que Baskerville ficasse desabitado, só porque uma ocorrência insólita viera denegrir ainda mais a sua reputação. Achei ser meu dever não dizer tudo quanto sabia, mas com o senhor não vejo motivo para não ser absolutamente sincero. O pântano é pouco habitado e aqueles que moram nos arredores costumam se reunir. Por isso eu via sir Charles com freqüência. Com exceção do sr. Frankland de Lafter Hall e do sr. Stapleton de Merripit, que é naturalista, não há qualquer outra pessoa educada numa área de vários quilômetros. Sir Charles era um homem retraído, mas a sua doença nos aproximou, assim como um interesse comum pela ciência. Ele trouxe muitas informações científicas da África do Sul e passamos bastantes noites agradáveis, discutindo a anatomia comparada dos boximanes e dos hotentotes. Nos últimos meses, notei que sir Charles se achava num estado de extremo esgotamento nervoso, em virtude de ter levado muito a sério a lenda que acabei de ler, a ponto de recear andar, à noite, por aquele lugar. Por incrível que pareça, convenceu-se de que uma terrível maldição pesava sobre a sua família e, na verdade, os casos que relatava nada tinham de animadores. A idéia de uma presença terrível, sobrenatural, obcecava-o e mais de uma vez me perguntou se, em qualquer das minhas visitas profissionais, eu teria visto alguma criatura estranha ou ouvido latir de um cão. Fez esta pergunta repetidas vezes e sempre num tom emocional. Lembro-me de ter ido uma noite a sua casa, três semanas antes da tragédia. Ele estava à porta no momento em que eu descia do coche. Notei que os seus olhos estavam aterrorizados e fixos em qualquer coisa que via atrás de mim, por cima do meu ombro. Virei-me rapidamente e tive ocasião de avistar, apenas de relance, uma espécie de bezerro negro que passava no alto da alameda. Sir Charlie ficou tão alarmado que decidi ir até o local onde avistei o animal, mas quando lá cheguei ele havia desaparecido. O incidente apavorou o meu amigo, por isso fiquei lhe fazendo companhia durante toda a noite e foi então que ele me mostrou o documento que acabei de ler. Menciono este episódio porque, após a tragédia que se seguiu, tornou-se importante. Contudo, na ocasião, eu me convenci de que a excitação de sir Charles não era justificável. Foi a meu conselho que resolveu ir para Londres. Eu sabia que ele sofria do coração, e a constante
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ansiedade em que vivia, por pueril que fosse a causa, estava lhe afetando gravemente a saúde. Pensei que alguns meses de distração na cidade lhe fossem benéficos. O sr. Stapleton, nosso amigo em comum, também preocupado com o estado de sir Charles, foi da mesma opinião. Porém, no último momento, ocorreu a tragédia. Logo que Barrymore, o mordomo, verificou a morte do patrão, mandou Perkins, um dos cavalariços, me buscar a cavalo. Eu ainda não havia me deitado e cheguei a Baskerville uma hora depois do acontecimento. Analisei todos os fatos que vieram a ser mencionados no inquérito. Segui as pegadas impressas na alameda e examinei o lugar junto do portão que dá para o pântano, onde parecia que sir Charles tinha parado. Notei, realmente, a mudança da forma das pegadas; a partir desse ponto verifiquei que não havia outras, a não ser as de Barrymore. Finalmente, observei com cuidado o corpo em que ninguém ainda tinha tocado. Sir Charles estava deitado, de bruços, com os braços abertos, tendo os dedos cravados na terra macia, e os traços do seu rosto estavam de tal maneira convulsionados pela emoção que mal o reconheci. Não se via qualquer sinal de agressão. Contudo, no inquérito, Barrymore fez uma declaração falsa ao afirmar não haver quaisquer sinais no chão, perto do cadáver. Ora, eu os vi ainda frescos e nítidos, a pequena distância. — Pegadas? — Sim. — De homem ou de mulher? Mortimer fitou-nos estranhamente e respondeu, quase num murmúrio: — Eram pegadas de um cão enorme.
CAPÍTULO 3 – O PROBLEMA
C
onfesso que ao ouvir estas palavras senti um calafrio percorrer minha espinha. Na voz do médico havia uma vibração que indicava estar profundamente emocionado, e os olhos de Holmes apresentavam o brilho intenso que lhe era peculiar, quando estava vivamente interessado num assunto. — Tem certeza de que viu essas pegadas? — Vi tão claramente como estou vendo o senhor agora, sr. Holmes. — E não disse nada?
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— Que adiantava alarmar ainda mais os presentes? — E ninguém mais notou essas pegadas? — Os outros estavam a mais de seis metros do corpo e ninguém prestou atenção. De resto, se eu não conhecesse a lenda, provavelmente também não lhes atribuiria qualquer significado especial. — Há muitos cães pastores lá? — Bastantes, mas aquilo não era de cão de pastor. — Pegadas grandes? — Enormes. — Mas não tinham se aproximado do corpo? — Não. — Como estava a noite? — Úmida e fria. — Mas não chovia? — Não. — Essa alameda, que forma tem? — É constituída por duas alas de velhas árvores, que formam uma cerca impenetrável de quatro metros de altura. O caminho tem cerca de três metros de largura. — Há alguma coisa entre as cercas e o caminho? — Sim, uma faixa de relva de cerca de dois metros de largura. — E há um portão nessa sebe? — Sim. Como lhe disse, um portão de vime, que dá acesso à charneca. — Existe qualquer outra entrada? — Não. — Isso significa que, para alguém entrar na alameda, tem de vir do solar ou entrar por esse portão? — Bem... há uma saída pela estufa, que fica no fim da alameda. — Mas sir Charles não chegou até lá? — Não. Caiu antes, uns cinqüenta metros. — A relva não apresentava marcas de pegadas. — Só havia marcas visíveis na areia do caminho.
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— Ao lado do portão? — Exatamente. — Isso me interessa muito. E o portão estava fechado? — Sim, a cadeado. — Que altura tem? — Cerca de um metro e meio. — Nesse caso, qualquer pessoa poderia passar por cima. — Sim, seria possível. — E que marcas viu junto do portão? — Nenhuma digna de interesse... — Que diabo! Ninguém examinou esse local cuidadosamente? — Estava tudo muito pisado, mas não há dúvida de que sir Charles esteve ali parado durante cinco ou dez minutos. — Como chegou a essa conclusão? — Porque a cinza do seu charuto caiu duas vezes no chão. — Bravo! Aqui temos um colega, Watson, e dos bons! — Só havia pegadas na areia. Não vi mais nada. Batendo com a mão no joelho, Holmes mostrou-se impaciente. — Se ao menos eu tivesse estado lá! É realmente um caso extraordinário. Agora, essa faixa de areia onde eu poderia ter descoberto tanta coisa foi deteriorada pela chuva e pelas pegadas dos curiosos. Pensar que não me chamou, nessa altura, dr. Mortimer. Isso deve pesar na sua consciência! — Não pude chamá-lo na ocasião, pois isso tornaria públicos os fatos. Além disso, receio que... — Por que hesita? — Creio que existe um reino onde o mais hábil e experiente detetive ficará impotente. — Refere-se a algo sobrenatural? — Não disse isso precisamente, mas... — ...É evidente o que pensa. — Confesso, sr. Holmes, que depois da tragédia tenho ouvido falar de vários incidentes que dificilmente poderão ser considerados naturais... — Como por exemplo...
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— Já antes dela, várias pessoas tinham visto no pântano um ser estranho, cuja descrição corresponde à do demônio de Baskerville e não à de nenhum animal conhecido. Todos concordam em que se trata de um ser enorme, luminoso, horrível e espectral. Interroguei alguns desses homens: um deles é um aldeão inteligente; outro, é ferreiro; outro ainda, agricultor. Todos descrevem identicamente a terrível aparição que corresponde ao cãofantasma da lenda. Posso garantir, sr. Holmes, que o terror se espalhou pelo condado. Atualmente, só um homem muito corajoso se atreveria a atravessar o pântano durante a noite. — E o senhor, dr. Mortimer, um cientista experiente, acredita que se trate realmente de um ser sobrenatural? — Não sei o que pensar. Holmes encolheu os ombros. — Até hoje, as minhas investigações se limitaram às fronteiras deste mundo terreno. Tenho, embora modestamente, combatido o mal... e talvez seja excessiva ambição de minha parte ousar desafiar o Pai do Mal. Contudo, doutor, o senhor terá de admitir que uma pegada é um vestígio material. — Sim, mas o primeiro cão a que a lenda se refere também era suficientemente material para dilacerar a garganta de um homem, não deixando de ser diabólico. — Estou vendo, doutor, que passou para o campo dos sobrenaturalistas! Se tem essas idéias, por que veio me consultar? Considera inútil investigar a morte de sir Charles e, ao mesmo tempo, pretende que eu o faça? — Não declarei pretender que o senhor a investigue... — Nesse caso, de que maneira poderei ser útil? — Aconselhando-me sobre o que poderei fazer quando sir Henry Baskerville chegar à estação de Waterloo... Mortiner consultou o relógio e acrescentou: — Precisamente, dentro de uma hora e quinze minutos. — Sir Henry é o herdeiro? — Sim. Após a morte de sir Charles procuramos o beneficiário e descobrimos que o sobrinho possuía uma fazenda no Canadá. Pelas notícias que nos chegaram, trata-se de uma ótima pessoa. Interessei-me a seu respeito, não como médico, mas como inventariante da herança. — Há mais algum pretendente?
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— Nenhum. O único parente vivo que se conhece de sir Charles é este rapaz. Dos três irmãos, sir Charles era o mais velho; o do meio, que morreu, é pai do atual sir Henry: quanto ao mais novo, sempre foi a ovelha negra da família, reunindo as antigas características dos Baskerville e, segundo consta, retrato fiel do seu antepassado Hugo. Como já não lhe era possível continuar vivendo na Inglaterra, fugiu para a América Central, onde morreu de malária, em 1876. Portanto, sir Henry é o atual baronete, como último dos Baskerville. Dentro de uma hora e cinco minutos, irei me encontrar com ele na estação de Waterloo pois recebi um telegrama anunciando que chegaria a Southampton, hoje de manhã. Agora, sr. Holmes, que me aconselha? — Por que motivo o herdeiro não iria viver no solar dos seus antepassados? — Parece lógico que o faça... Contudo, todos os Baskerville que foram para lá tiveram uma morte trágica. Estou certo de que, se sir Charles tivesse falado comigo antes de morrer, pediria que não levasse para aquele lugar fatídico o último da sua raça, herdeiro de uma grande fortuna. No entanto, não há dúvida de que a prosperidade da região depende da sua presença. A obra benéfica de sir Charles cairá por terra, se não houver um morador em Baskerville. Porém, como receio me deixar influenciar pelo meu próprio interesse, decidi solicitar o seu conselho. Holmes refletiu durante alguns segundos. — Na sua opinião, doutor, existe realmente um agente diabólico que torna essa região demasiado insegura para que um Baskerville a habite? — Ouso pelo menos dizer que há indícios de que assim seja. — Mas se a sua teoria, baseada no sobrenatural, é exata, não há dúvida de que esse agente diabólico poderia ser maléfico para o herdeiro tanto no Devonshire como em Londres, não é verdade? Não é lógico conceber um demônio que só tenha permissão de exercer o seu poder num local restrito. — Sr. Holmes, está considerando este caso com uma ironia que certamente não empregaria se tivesse lidado diretamente com o fenômeno. Parece que, na sua opinião, o rapaz estará tão seguro no Devonshire como em Londres. Ele chega dentro de cinqüenta minutos. Portanto, que me aconselha? — Aconselho-o a apanhar um coche, chamar o seu cão, que está arranhando a minha porta, e a dirigir-se para a estação, ao encontro de sir Henry. — O vou dizer? — Não diga coisa alguma, até eu ter tomado uma resolução.
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— Quanto tempo isso levará? — Vinte e quatro horas. Gostaria que amanhã, às dez, o dr. Mortimer tivesse a gentileza de vir aqui me procurar, e seria vantajoso que sir Henry o acompanhasse. — Plenamente de acordo, sr. Holmes. Mortimer anotou a hora no punho engomado da camisa, e saiu apressadamente com o seu modo peculiar e distraído. Quando já ia na escada, Holmes o deteve. — Mais uma pergunta, doutor. O senhor disse que, antes da morte de sir Charles, já várias pessoas tinham visto a tal aparição? — Três pessoas, pelo menos. — Alguma delas a viu depois disso? — Não, que eu saiba. — Obrigado, doutor. Até amanhã. Holmes voltou para o seu canto com uma expressão de íntima satisfação, que indicava ter diante de si uma tarefa a seu gosto. — Vai sair, Watson? — Tencionava dar uma volta, a menos que passo lhe ser útil. — Não, por ora, meu caro amigo. Só no momento de agir precisarei do seu auxílio. Agora, quando passar pelo Bradley’s, queira me fazer o favor de recomendar que me mandem um quilo do mais forte tabaco para cachimbo que tiverem. Agradeço-lhe. Seria preferível que não voltasse antes da noite. Nessa altura, terei muito prazer em comparar as nossas impressões acerca do interessante problema que hoje nos foi apresentado. Eu sabia que o meu amigo precisava de solidão nessas horas de intensa concentração mental, em que analisava todas as premissas, arquitetava teorias, comparava-as entre si e selecionava os indícios essenciais. Portanto, passei o dia no clube e só à noite regressei à Baker Street. Eram nove horas em ponto quando fui falar com Holmes. Ao entrar em casa, a minha primeira impressão foi de que havia um incêndio: a sala estava tão cheia de fumo que a luz do candeeiro de mesa tornava-se obscurecida. Mas logo verifiquei que o fumo era de tabaco forte, que me fez tossir. Através da névoa, distingui vagamente o perfil de Holmes, de roupão, encolhido na sua poltrona favorita, com o cachimbo negro nos dentes. Em sua volta, estavam espalhados vários rolos de papel.
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— Constipou-se, Watson? — Não, mas esta atmosfera poluída me faz tossir. — Está realmente meio pesada! Só agora que você chamou a atenção para o fato é que me dei conta disso. — Meio pesada, Holmes? Intolerável, é o termo! — Nesse caso, abra a janela. Vejo que passou todo o dia no clube... Acertei? — Sem dúvida... mas... Riu-se da minha expressão atônita. — Você possui, Watson, um modo de ser tão brando que faz com que seja um prazer exercitar, à sua custa, as minhas tênues faculdades dedutivas. Pois bem: um cavalheiro sai de casa, num dia chuvoso, e volta à noite com o chapéu e os sapatos ainda reluzentes. Portanto, concluí que esteve resguardado dentro de uma casa, todo o dia. Ora, você não tem amigos íntimos em cujo lar se instale demoradamente. Onde poderia ter estado? Não é óbvio, meu caro Watson? — Sim... é óbvio. — Esta vida está recheada de coisas óbvias que ninguém observa. Já agora, onde pensa que tenho estado? — Em casa. — Engana-se. Estive em Devonshire... — Em pensamento, claro. — Exatamente. Nessa fugaz ausência espiritual, o meu corpo ficou nesta poltrona e consumiu dois grandes bules de café e uma incrível quantidade de tabaco forte. Depois de você ter saído, mandei buscar um mapa daquela região e o meu espírito andou por lá todo o dia. E, modéstia à parte, posso afirmar que não me perdi. — Arranjou um mapa com o pântano? — Tal e qual! Holmes desenrolou uma parte do mapa e estendeu-a sobre os joelhos. — Aqui temos o condado que nos interessa. O solar de Baskerville situase mesmo no meio. — Cercado pelo bosque?
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— Sim! Creio que a alameda, que não está aqui indicada, se estende ao longo desta linha, com o pântano à direita. Aqui, este grupo de casas é a aldeia de Grimpen, onde reside o dr. Mortimer. Numa área de cinco quilômetros de diâmetro, apenas se vêem algumas casas dispersas. Aqui está Lafter Hall, que Mortimer mencionou na sua narrativa e quando se referiu a um tal Frankland. Aqui, ainda, vemos uma casa que deve ser do naturalista Stapleton: Merripit, se não estou errado. Deste lado, temos duas casas rurais, já no pântano: High Tor e Foulmire. E agora repare: a catorze quilômetros de distância, situa-se a grande penitenciária de Princetown. Entre esses pontos e em seu redor, estendese a parte do pântano deserta de vida humana. Este é o palco onde foi representada a tragédia dos Baskerville e onde, com o nosso auxílio, talvez seja possível evitar uma outra. — Deve ser um lugar selvagem. — Sim. Creio que, se o Diabo desejasse interferir no destino dos homens, acharia este lugar muito apropriado. — Também você está inclinado para uma explicação sobrenatural? — admirei-me. — Bem... Admitamos que os agentes do Diabo possam ser de carne e osso. Duas perguntas pairam no ar: terá realmente havido um crime? Se houve, como o cometeram? Claro que, se a suspeita do dr. Mortimer for pertinente e estivermos lutando com forças sobrenaturais, a nossa investigação termina já. Mas temos de esgotar todas as outras hipóteses antes de nos conformarmos com uma desistência. Creio que será melhor fechar essa janela. Acho que um ambiente fechado é mais propício à concentração mental. Ainda não cheguei ao extremo de me encerrar dentro de uma caixa, mas este é o lógico resultado das minhas conclusões. Você já se deu ao trabalho de estudar o caso? — Sim. Estive meditando sobre ele durante o dia. — Qual a sua opinião? — Bem... O caso é desnorteante. Não há dúvida de que apresenta estranhas particularidades. Mas tem alguns pontos definidos. Por exemplo, aquela alteração das pegadas. Que me diz disso? — Mortimer concluiu que nesse trecho da alameda sir Charles andara na ponta dos pés. — Ao fazê-lo, limitou-se a repetir o que qualquer idiota declarou no inquérito. Por que teria ele andado na ponta dos pés? — Sei lá? Na sua opinião, o que aconteceu?
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— Sir Charles fugia, Watson! Fugia desesperadamente, para salvar a vida. Correu até que o seu coração estourou... e sir Charles caiu já sem vida. — Mas fugia de quê? — Aí está o nosso problema. Há indícios de que já estava louco de medo, mesmo antes de começar a correr. — Por que diz isso? — Suponho que a causa do seu terror provinha do pântano. Se foi esse o caso, só um homem completamente desvairado correria no sentido contrário ao de sua casa, em vez de procurar se proteger nela. Se acreditarmos no depoimento do cigano, Sir Charles começou a correr gritando por socorro, na direção de onde teria menos chances de obter auxílio. Além disso, quem ele estaria esperando nessa noite? E por que motivo esperava por essa pessoa na alameda e não no solar? — Você acha que ele estava esperando alguém? — Certamente. Repare que sir Charles era velho e doente. É compreensível que quisesse dar um pequeno passeio noturno, mas nessa noite o tempo estava péssimo e o chão estava úmido. Acha natural que, nessas condições, ele tenha parado durante cinco a dez minutos, conforme a dedução do dr. Mortimer, que provou ter mais senso prático do que seria de esperar? — Bem... O homem tinha o hábito de sair todas as noites... — É pouco plausível que parasse todas as noites junto do portão. Pelo contrário, sabemos que evitava aquele lugar. Nessa noite, ficou esperando alguém. Note que era a noite da véspera da sua partida para Londres. Assim, a história começa a se mostrar coerente. Peço-lhe, Watson, que traga o meu violino. Vamos adiar as meditações sobre o assunto até termos ocasião de falar, amanhã de manhã, com o dr. Mortimer e sir Henry Baskerville.
CAPÍTULO 4 – SIR HENRY BASKERVILLE
A
mesa do café matinal já tinha sido retirada, e Holmes, de roupão, esperava a chegada dos visitantes. Estes foram pontuais, pois o relógio acabava de dar dez horas quando o dr. Mortimer entrou, acompanhado pelo jovem baronete. Sir Henry era baixo, de olhos escuros, aparentando cerca de trinta anos. Possuía espessas sobrancelhas negras, realçando um rosto forte e guerreiro. Vestia um traje de tweed castanho-avermelhado e tinha uma pele bastante bronzeada, de quem passou a vida ao ar livre. Apesar disso, o seu olhar firme, de tranqüila segurança, era o de um cavalheiro.
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— Apresento-lhe sir Henry Baskerville — disse Mortimer. — Deixe-me lhe dizer, sr. Holmes — acrescentou sir Henry — que, se o meu amigo não tivesse sugerido esta visita, eu a teria feito espontaneamente. Ouvi dizer que o senhor consegue resolver charadas e deparei hoje com uma que, para ser decifrada, precisa de alguém que saiba entendê-la melhor do que eu. — Por favor, queira se sentar, sir Henry. Quer dizer que algo de extraordinário lhe sucedeu, desde que chegou a Londres? — Nada de extremamente importante, pois creio que se trata de uma mera brincadeira de mau gosto. Recebi hoje esta carta, se é que a isto se pode chamar carta. Colocou sobre a mesa um envelope e nos inclinamos para vê-lo. Era um envelope comum, acinzentado. O endereço de sir Henry Baskerville, Northumberland Hotel foi escrito em caracteres vulgares, e o carimbo, com a data da véspera, era do correio de Charing Cross. — Quem sabia que o senhor iria se instalar no Northberland Hotel? — sondou Holmes, encarando o visitante. — Ninguém sabia. Só depois de me encontrar com o dr. Mortimer é que ambos tomamos essa decisão. — Mas, nesse caso... com certeza, o doutor já estava hospedado lá, não? — Não, sr. Holmes. Estava na casa de um amigo. Ainda não pensava em ir para esse hotel. — Parece que alguém se interessou muito pelos seus passos. Tirou do envelope meia folha de papel, dobrada em quatro, e estendeua em cima da mesa. Continha uma única frase, feita com letras de jornal, recortadas e coladas. se der ou
valor
à sua
deverá
à sua
vida
sanidade mental
afastar-se do
PÂNTANO
Só a palavra PÂNTANO estava manuscrita, a tinta. — Agora, sr. Holmes, talvez o senhor possa me dizer o que significa isto e quem poderá estar tão interessado do nos meus assuntos pessoais? O meu amigo preferiu sondar Mortimer:
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— Qual a sua opinião, doutor? Concordará em que, pelo menos nisto, nada há de sobrenatural. — Bem... — hesitou o médico — a mensagem pode ter sido enviada por alguém que acredita que a história seja realmente sobrenatural. — Que história? — estranhou o baronete. — Parece que os senhores sabem mais dos meus assuntos do que eu próprio! — Prometo-lhe, sir Henry, que antes de sair daqui ficará a par de tudo quanto sabemos — afiançou Sherlock Holmes. — Agora, se nos permite, vamos nos ocupar deste documento que foi posto, ontem, no correio. Tem aí o jornal de ontem, Watson? — Sim, tenho. Está aqui neste canto. — Quer fazer o favor de me passar a folha central, com as páginas que contêm os longos textos dos artigos principais? Lançando o olhar pelas colunas compactas, Holmes dobrou o jornal e exclamou: — Ótimo artigo este acerca do comércio livre e da subida dos preços! Vou ler um trecho: ○
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grande público. Se der agora crédito a que uma nova tarifa de preços venha a ser favorável à sua indústria, ou à sua atividade comercial, podemos concluir, sem grande esforço mental, que os aumentos se refletirão nas exportações, fazendo com que a economia se afaste ainda mais da prosperidade, na medida em que irá reduzir o já tão baixo valor das vendas para o exterior e, por conseqüência, deverá degradar irreversivelmente a já precária sanidade da balança de pagamentos e as condições de vida na Ilha. ○
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— Que me diz disto, Watson? — indagou Holmes, esfregando as mãos de contentamento. — Não acha admirável? Mortimer olhou para o meu amigo, com curiosidade profissional, e sir Henry fitou-me com expressão perplexa. — Não entendo coisa alguma de tarifas, nem nada desse gênero — protestou —, e parece-me que estamos nos afastando do assunto a que essa carta se refere.
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— Pelo contrário, sir Henry, creio que estamos no caminho certo. Watson conhece os meus métodos melhor do que o senhor, mas receio que nem ele tenha percebido o significado deste texto. — Confesso não ver qualquer relação entre a mensagem e o artigo — declarei. — No entanto, meu caro Watson, existe uma relação íntima, já que a primeira foi extraída do segundo. Repare nas palavras, juntas ou isoladas: “se der”; “à sua” (que aparece repetida); “mental”; “afastar-se da”; “deverá”; “sanidade” (e finalmente) “vida”. Está vendo de onde foram recortadas as palavras que compõem a mensagem? — Puxa! Tem razão! É francamente brilhante! — espantou-se sir Henry. — Se restasse alguma dúvida — prosseguiu Holmes —, logo seria dissipada pelo fato de as expressões “se der”, “à sua” e “afastar-se da” terem sido recortadas numa só tira, pois já se achavam juntas, respectivamente, no texto do artigo. — Tem razão! É isso mesmo! Fitando o meu amigo, com surpresa, Mortimer elogiou: — Francamente, sr. Holmes, isto excede tudo quanto eu poderia imaginar! Qualquer pessoa teria percebido que as palavras tinham sido recortadas de um jornal... Mas, como pôde o senhor descobrir que provinham de um artigo das páginas centrais do Times? — Suponho, doutor, que o senhor não teria dificuldade em notar as diferenças entre o crânio de um cafre e o de um esquimó? — Certamente... — Por quê? — Porque essa é a minha especialidade, e as diferenças antropométricas são óbvias. A crista supra-orbitrária, o ângulo facial, a curva do maxilar... — Pois também esta é a minha especialidade, e as diferenças são óbvias. A meus olhos, há tanta diferença entre a impressão cuidada de um artigo do Times e a má impressão de um jornal da tarde, barato, como a seus olhos o crânio de um cafre é diferente o de um esquimó. O conhecimento dos tipos de impressão é uma das matérias elementares para o perito em criminologia, embora eu confesse que, quando era muito novo e inexperiente, cheguei a confundir o Jornal Leeds Mercury com o Western Morning News. Porém, o artigo principal do Times tem sempre uma composição inconfundível, com
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letras mais negras, e essas palavras da mensagem não poderiam ter sido extraídas de nenhum outro jornal. Ora, como foi redigida ontem, era mais provável terem as palavras sido recortadas também ontem. — Pelo que deduzi das suas explicações, sr. Holmes — concluiu sir Henry —, essas palavras foram recortadas com uma tesoura... — Sim, uma pequena tesoura de unhas, de lâmina muito curta e ligeiramente curva, visto que quem compôs as frases viu-se obrigado, em alguns dos casos, a dar duas tesouradas para recortar as palavras. — Estou vendo... E depois, colou-as... — Com grude — especificou Holmes. — Com grude, no papel!... Mas, por que motivo, a palavra “charneca” foi escrita à mão? — Porque o autor da mensagem não a achou impressa. As restantes palavras eram mais comuns, podendo ser encontradas nos artigos do jornal, mas o termo “charneca” já não é tão freqüente nas colunas do Times. — Evidentemente!... Notou mais alguma coisa, na mensagem? — Apesar de o seu compositor ter tido o cuidado de remover tudo quanto pudesse denunciar uma pista, ainda descobri alguns indícios. Como vêem, o endereço foi redigido em caracteres grosseiros. Contudo, o Times praticamente só é lido por pessoas educadas. Portanto, podemos deduzir que a mensagem foi composta por um homem educado que desejou se passar por inculto; e o cuidado que teve em dissimular a sua própria grafia indica que o seu tipo de letra é conhecido, ou poderá a vir a ser conhecido pelo senhor. Note, também, que as palavras não foram grudadas em linha perfeitamente reta e que algumas estão visivelmente mais altas do que outras. Por exemplo, “vida” está muito desalinhada, o que pode indicar descuido ou pressa, por parte do remetente. Inclino-me mais para esta segunda hipótese. Visto que, tratando-se de um assunto muito importante, seria pouco provável que o autor da mensagem não lhe dedicasse o merecido cuidado. Portanto tinha urgência de enviá-la. Mas, por que estaria assim com tanta pressa, se uma carta colocada de manhã no correio, chegaria às mãos de sir Henry antes que ele deixasse o hotel? Recearia o autor da mensagem uma inoportuna interrupção? E quem poderia interrompê-lo? — Estamos entrando no campo das hipóteses — observou Mortimer. — Mais precisamente, no campo onde podemos avaliar as diversas probabilidades e escolher as mais válidas. Este é o uso científico da
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imaginação, mas também temos uma base material para o início das nossas especulações. Vão agora pensar que estou tentado adivinhar, mas quase tenho a certeza de que esse endereço foi redigido num hotel. — Por que supõe tal coisa? — Porque, analisando o envelope, percebemos que tanto a pena como a tinta perturbaram o redator do endereço. Repare que, numa mesma palavra, a pena fez espirrar a tinta, duas vezes; também se nota que, numa só linha, a tinta acabou, por três vezes! Ora, uma caneta ou um tinteiro particulares raramente chegam a esse estado de desleixo, e a acumulação simultânea dessas duas deficiências é bastante rara, a não ser nas escrivaninhas dos hotéis, cujas canetas e tinteiros se encontram geralmente numa lástima. Portanto, não hesito em dizer que, se pudéssemos revistar os cestos de papéis dos hotéis que se situam nas imediações de Charing Cross, até encontrarmos os restos desse exemplar do jornal recortado, não seria difícil descobrir o autor dessa estranha mensagem... Opa! Que é isto? Holmes, mantendo o papel a poucos centímetros dos olhos, examinou atentamente as palavras grudadas. — O que é? — Nada de especial — respondeu, impassível. — É um simples pedaço de papel, sem qualquer marca de fabricação. Creio que, a partir desta carta, já deduzimos tudo quanto era passível de análise. Agora, sir Henry, digame, aconteceu mais alguma coisa estranha desde que chegou a Londres?... — Não notei nada, sr. Holmes. — Não foi seguido nem notou que alguém o espiasse? — Até parece que vim cair no meio de um melodrama medíocre — comentou o baronete. — Por que desejariam me seguir? — Nada tem realmente a nos contar? — Depende daquilo que o senhor considera merecedor de ser contado. — Qualquer ocorrência, fora da rotina normal. Sir Henry sorriu. — Bem... pouco sei sobre a vida na Inglaterra, já que passei quase toda a minha existência no Canadá e nos Estados Unidos, mas creio que perder um sapato não é coisa que aconteça todos os dias. — Perdeu um sapato? Mortimer interveio, admitindo:
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— Deve estar apenas fora do lugar. Acabará encontrando-o quando chegarmos ao hotel. Não vale a pena incomodar sr. Holmes com essa insignificância. — Como falou de qualquer coisa fora da rotina... — Precisamente — animou Holmes. — Por mais tolo que pareça o incidente, pode ser importante. Perdeu realmente um dos sapatos? — Desapareceu. Deixei o par fora do quarto, ontem à noite, para que o engraxassem, e, hoje de manhã, só estava um lá. Não consegui obter qualquer explicação por parte do engraxador. O que me aborrece é que os comprei ontem, no fim da tarde, e nem sequer cheguei a usá-los. — Se não tinham sido usados, por que motivo mandou limpá-los? — Eram sapatos de sola, para o campo, que nunca tinham sido engraxados. — Quer dizer que, mal chegou a Londres, saiu logo para comprar sapatos para andar no campo? — Fui fazer várias compras. O dr. Mortimer teve a gentileza de me acompanhar. Já que vou ser o proprietário de Baskerville, tenho de andar vestido em condições, já que no oeste americano me tornei um pouco descuidado. Além da roupa de cerimônia e de uso corrente, comprei esses sapatos para o campo, que me custaram o equivalente a seis dólares, e um deles foi roubado antes que tivesse oportunidade de estrear o par! A expressão de Holmes era enigmática quando respondeu: — Realmente, um só sapato parece um roubo inútil. Concordo com o dr. Mortimer: esse sapato aparecerá logo. O baronete pareceu impaciente. — Creio que já falei bastante sobre o pouco que sei. Já é tempo de me contarem o que se passou... — Tem razão — concordou Holmes. — Acho que seria melhor o dr. Mortimer contar a sua história. O cientista tirou os papéis do bolso e expôs o caso, como já tinha feito naquela manhã. Ouvindo com a máxima atenção, sir Henry soltava, de vez em quando, uma exclamação de surpresa. — Parece que recebi uma herança perigosa — considerou o baronete, quando o médico terminou a longa narrativa. — Já ouvi falar dessa história do cão-fantasma nos meus tempos de menino. Era a lenda predileta da
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família, embora eu nunca a tivesse levado muito a sério. Quanto à morte de meu tio, me sinto confuso, e parece, sr. Holmes, que o senhor ainda não decidiu se é assunto para um policial ou para um padre. — É verdade... — E agora surge essa carta que enviaram para o hotel... certamente faz parte do mesmo quadro... — Parece que alguém sabe melhor do que nós o que se passa no pântano — observou Mortimer. — Alguém que, no fundo, não lhe quer mal, por isso o avisa do perigo. — Ou talvez queira me afastar de Baskerville no seu próprio interesse — objetou o baronete. — Também é possível — admitiu Holmes. — Estou-lhe muito grato, dr. Mortimer, por ter me apresentado um problema com tantos aspectos interessantes. Agora, temos de decidir se convém ou não que sir Henry vá para Baskerville. — Por que diabo eu não iria? — Parece existir um certo perigo. — Refere-se a esse diabólico inimigo da família ou a uma intervenção de seres humanos? — É o que teremos de averiguar. — Seja como for, estou decidido a ir para as minhas terras. Não há demônio do Inferno, nem homem na Terra que possa me impedir de tomar posse do lar dos meus antepassados. Pode considerar, sr. Holmes, esta resposta como sinceramente sentida. Franzindo as sobrancelhas, com uma expressão resoluta, sir Henry ainda acrescentou: — Contudo, gostaria de refletir durante uma hora. São onze e meia e vou regressar ao hotel. Suponho, sr. Holmes, que o senhor e o dr. Watson aceitam almoçar conosco às duas horas... Poderei, então, lhes comunicar a minha decisão definitiva. — Está bem para você, Watson? — sondou o meu amigo. — Perfeitamente. — Nesse caso, sir Henry, pode contar conosco. Quer que chame um coche?
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— Prefiro ir a pé, pois este assunto me deixou um pouco perturbado. — Faço-lhe companhia com prazer — ofereceu-se Mortimer. — Obrigado. Encontro vocês às duas horas, no hotel. Até logo. Ouvimos os passos dos nossos visitantes descendo a escada e a porta da frente se fechar. Num instante, Sherlock Holmes se transformou de calmo pensador em homem de ação. — Depressa, Watson! O seu chapéu! Não temos um minuto a perder. Correu ao quarto e, segundos depois, reapareceu já vestido para sair. Descemos as escadas correndo e já na rua vimos Mortimer e Baskerville a uns duzentos metros à nossa frente, em direção à Oxford Street. — Quer que eu corra e lhes peça para esperar? — propus. — De jeito nenhum, caro Watson. Estou imensamente satisfeito com a sua companhia, caso você se satisfaça com a minha. Na realidade, está uma bela manhã para um passeio a pé — apressou o passo até termos reduzido à metade a distância que nos separava. Agora, a cem metros deles, percorríamos a Oxford Street e depois a Regent Street. A certa altura, os nossos visitantes pararam para olhar para uma vitrine e logo Holmes me deteve para fazer o mesmo na loja mais próxima. No instante seguinte, soltou uma exclamação de alegria. Seguindo o seu olhar, avistei um coche que, no lado oposto da rua, andava lentamente atrás de Mortimer e Baskerville. — Aquele é o nosso homem, Watson! Venha! Vamos dar uma olhada no sujeito. Nesse momento, um par de olhos perspicazes, por cima de uma barba negra, viraram-se para nós através da janela do coche. No mesmo instante, a janela se abriu e o homem falou qualquer coisa ao cocheiro, que meteu o cavalo a galope pela Regent Street. Holmes olhou ansiosamente ao redor, procurando um coche, mas não havia nenhum disponível. Então, correu em perseguição ao sujeito pelo meio do tráfego, mas a dianteira que o coche nos levava já era grande e depressa o perdemos de vista. — Droga! — exclamou Holmes, saindo da vaga de trânsito. Estava ofegante e pálido de desapontamento. — Que pouca sorte, Watson! E que idiotice a minha! Se você é um cronista honesto, também deve anotar este meu desastre, para contrapor aos meus sucessos.
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— Quem era o homem? — Não faço idéia. — Um espião. — Pelo que sabemos, não há dúvida que sir Henry tem sido espiado desde que chegou a Londres. De que outra maneira poderiam ter descoberto que se instalou no Northumberland Hotel? Se puderam segui-lo no primeiro dia da sua estada aqui, nada os impede de continuarem a segui-lo. Deve ter observado, Watson, que, enquanto Mortimer lia a lenda do cão, me aproximei por duas vezes da janela da sala. — Sim, reparei nisso. — Queria ver se algum “vagabundo” nos espiava, mas estamos lidando com um homem astuto. Quando os nossos amigos saíram, quis segui-los imediatamente para ver se descobria o invisível perseguidor, mas ele teve a astúcia de arranjar um coche para poder ir atrás deles, ou mesmo à sua frente, sem ser notado, podendo até prosseguir na sua perseguição, caso eles também utilizassem qualquer transporte. Contudo, esse método teve um inconveniente... — Deixou o perseguidor à mercê da indiscrição do cocheiro... — Exatamente. — Que pena, não termos anotado o número do coche! — Por mais tolo que eu tenha sido, meu caro Watson, não vai pensar que eu tivesse deixado escapar uma precaução tão elementar! É o 2704. Porém, por agora, isso de nada vale. — Não sei o que mais poderíamos ter feito... — Ao ver o coche, eu deveria ter ido imediatamente na direção oposta. Então, poderia ter alugado outro para segui-lo a uma distância conveniente, ou ir até o hotel e esperar lá pelo perseguidor. Poderíamos imitar o seu jogo, a fim de ver para onde ele seguia. Em vez disso, manifestamos uma ansiedade indiscreta que o homem soube aproveitar... e o perdemos de vista. Caminhávamos devagar, de maneira que sir Henry e o dr. Mortimer já tinham desaparecido. — Agora, já não interessa irmos atrás deles. O perseguidor não se atreverá a voltar. Temos de arranjar outros trunfos e jogá-los com destreza. Você seria capaz de reconhecer o homem do coche?
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— Só poderia reconhecê-lo pela barba. — Eu também, mas provavelmente era falsa. Vamos entrar aqui, Watson. Entrou num escritório de mensageiros, onde foi recebido amavelmente pelo gerente. Holmes cumprimentou-o. — Vejo, Wilson, que não se esqueceu do caso em que tive a oportunidade de ajudá-lo. — Claro que não, sr. Holmes! O senhor salvou minha reputação e, talvez, a vida! — Ora, o meu amigo está exagerando. Lembro-me de que, entre os seus empregados, havia um moço de recados chamado Cartwright que se mostrou bastante hábil durante as investigações. — Sim, senhor. Esse rapaz ainda trabalha aqui. — Quer chamá-lo? E agradeceria se me trocasse esta nota de cinco libras. À chamada do gerente, apareceu um rapaz de rosto vivo, cerca de catorze anos. Olhou fixamente para o detetive. — Deixe-me ver a lista dos hotéis — pediu Holmes. — Obrigado! Agora, Cartwright, aqui estão os nomes de vinte e três hotéis nas imediações de Charing Cross. Está vendo? — Sim, sr. Holmes. — Vá dar uma volta por todos eles. — Sim, senhor. — E, em cada hotel, começará por dar um xelim ao porteiro. Aqui tem vinte e três xelins. — Sim, senhor. — Dirá aos porteiros que deseja revistar os cestos dos papéis de ontem, com o pretexto de que se perdeu um telegrama importante e que o mandaram à procura dele. Compreende? — Sim, sr. Holmes. — Porém, o que vai procurar é um exemplar do Times, cuja página central foi recortada à tesoura. É uma página igual a esta... Está vendo? Será capaz de reconhecê-la? — Certamente. — Nesses hotéis, o porteiro da entrada principal mandará chamar o porteiro do fundo, de maneira que você terá de dar a este outro xelim.
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Portanto, aqui tem mais vinte e três xelins. Decerto, vão dizer por vezes que o lixo de ontem já foi jogado fora, ou queimado. Mas pode dar sorte e encontrar a página do Times. Embora as chances sejam poucas, não deve desistir da sua busca. Aqui tem dez xelins para casos de emergência. Depois, mande-me um telegrama para a Baker Street, antes da noite, relatando-me os resultados das suas pesquisas. E agora, Watson, só nos resta descobrir, por telegrama, a identidade do cocheiro do trem 2704. Entretanto, podemos ir visitar as galerias de pintura da Bond Street, e ainda chegaremos a tempo de almoçar no Northumberland.
CAPÍTULO 5 – TRÊS FRACASSOS
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uando queria, Sherlock Holmes tinha o extraordinário poder de se afastar de um assunto preocupante. Durante duas horas, pareceu esquecer o estranho caso em que nos achávamos envolvidos e se interessar exclusivamente pelos quadros dos mestres flamengos. Embora pouco entendesse do assunto, desde que saímos da galeria até que entramos no hotel, limitou-se a falar de arte. — Sir Henry Baskerville está lá em cima, à sua espera — informou o recepcionista. — Pediu que os conduzisse logo que chegassem. — Posso dar olhada pelos registros do hotel? — solicitou Holmes. Percebi que o recepcionista conhecia o meu amigo, pois se prontificou a atendê-lo: — Oh!... Certamente! O livro das entradas nos indicou que dois nomes tinham sido registrados após o de Baskerville. Um deles era um tal Theophilus Johnson e família, de Newcastle; o outro, uma tal de sra. Oldmore e dama de companhia, de High Lodge, Alton. — Creio que conheço este sr. Johnson — observou Holmes ao recepcionista. — Não se trata de um advogado de cabelos grisalhos, que manca um pouco? — Oh, não senhor! Este sr. Johnson é proprietário de uma mina de carvão e pessoa muito ativa; não deve ser mais velho que o senhor, sr. Holmes. — Tem a certeza disso?
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— Absoluta. Há vários anos que é cliente deste hotel e todos o conhecemos perfeitamente. — Bem, não insisto, já que é assim! E a sra. Oldmore? O seu nome também não me é estranho! Desculpe a minha curiosidade, mas, às vezes, ao visitarmos um amigo num hotel, deparamos com outro... — Sim, é natural. Sra. Oldmore é uma senhora inválida, cujo marido, há tempos, foi prefeito de Gloucester. Hospeda-se sempre aqui, quando vem a Londres. — Obrigado. Parece que não a conheço. Ao subirmos as escadas, Holmes inclinou-se para mim e murmurou: — Com estas perguntas, Watson, ficamos sabendo que as pessoas tão interessadas em sir Henry não estão hospedadas neste hotel. Isto significa que, embora ansiosas por segui-lo, têm também o cuidado de não ser vistas. É muito sugestivo... — É? Sugere o quê? — Sugere que... Olha! O que é isso? Ao chegarmos ao topo da escada, deparamos com sir Henry, vermelho de raiva, segurando um sapato velho, cheio de pó. Estava tão furioso que, ao falar, apresentava a nítida pronúncia do oeste americano ainda mais acentuada do que a que tínhamos ouvido de manhã. — Parece que andam brincando comigo, neste hotel! Mas estão muito enganados a meu respeito! De brincadeira, já chega. Se esse criado não conseguir encontrar o meu sapato, armo uma confusão dos diabos! Desta vez, sr. Holmes, foram longe de mais! — Ainda procurando o sapato? — Certamente, e hei de encontrá-lo! — Mas... não me falou num sapato de sola, novo? — Isso foi antes. Agora se trata de um sapato velho, preto! — Quer dizer que... — Quero dizer que eu só tinha três pares de sapatos: os de sola, novos, os pretos, já bastante usados, e estes de vitel, castanhos que trago nos pés. Ontem à noite, levaram um dos de sola e hoje roubaram-me um dos pretos! Virou-se para um criado alemão que surgira naquele instante e inquiriu: — Então? Já o encontrou?
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— Não, senhor! Perguntei a todo o mundo aqui no hotel, mas ninguém sabe como isso aconteceu! — Pois bem, ou esse sapato aparece até o fim da tarde, ou saio desta espelunca. — Há de aparecer, senhor! Queira ter um pouco de paciência. — Então, trate disso. Parece que caí numa toca de ladrões!... Desculpe, sr. Holmes, por incomodá-lo com uma ocorrência tão insignificante... — Acho que tem razão em se incomodar com isso. — Leva o caso a sério? — Certamente. Como explica um caso tão estranho? — Nem procuro explicação. É a coisa mais estranha que me aconteceu! Que pensa o senhor desta brincadeira de mau gosto? — Talvez se insira no conjunto de eventos em que todos se mostram muito complexos. Entre os quinhentos casos que investiguei, talvez este da morte de seu tio seja o mais obscuro. Mas já temos alguns fios de meadas que nos dão uma esperança de descobrirmos a verdade. O almoço foi agradável e pouco falamos do assunto que ali nos reuniu. Na saleta privativa para onde depois nos retiramos, Holmes perguntou a sir Henry quais eram as suas intenções. — Estou decidido a ir para o solar de Baskerville. — Quando? — No fim da semana. — Considero essa sua decisão acertada — apoiou Holmes. — Tenho certeza de que aqui em Londres está sendo seguido e que, no meio de milhões de pessoas, será difícil descobrir quem o persegue e com que objetivo. Se as intenções dos seus perseguidores são maléficas, sir Henry, não estaríamos em condições de protegê-lo. Sabia, dr. Mortimer, que hoje de manhã foram seguidos logo após terem saído de minha casa? Mortimer sobressaltou-se: — Seguidos? Por quem? — Infelizmente, não posso informá-lo. Conhece, em Dartmoor, algum homem que tenha a barba negra e cerrada? — Não... A não ser Barrymore, o mordomo de sir Charles. — Onde se encontra esse Barrymore?
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— Tomando conta do solar. — Temos de verificar se está realmente lá, ou se veio a Londres. — Como poderemos saber? — Por telegrama. Quer me passar esse impresso? Vou redigir uma pergunta simples: “Tem tudo preparado para receber sir Henry?” “Envie esta mensagem para sr. Barrymore, Solar de Baskerville... Qual é o posto de correio e telégrafo mais próximo?... Grimpen. Perfeito. Então envie o telegrama para Grimpen, mas com a seguinte recomendação: O telegrama tem de ser entregue pessoalmente ao sr. Barrymore. Se este estiver ausente, o telegrama será devolvido imediatamente a sir Henry Baskerville, Northumberland Hotel, Londres.” Desta maneira, ficaremos sabendo se Barrymore está ou não no solar. Pode explicar melhor, dr. Mortimer, quem é esse Barrymore? — É filho do velho caseiro, já falecido, e sir Charles lhe atribuiu as funções de mordomo. Há, pelo menos, quatro gerações que os Barrymore trabalham para os Baskerville. Segundo consta, tanto ele como a mulher são de toda a confiança. — Naturalmente, quando o solar está desabitado, devem levar uma vida boa. Esse mordomo recebeu alguma coisa pela morte de sir Charles? — Ele e a mulher receberam quinhentas libras cada um. — E estavam a par desse testamento, antes da morte do patrão? — Sim. Sir Charles gostava de falar das cláusulas do testamento. — Eis um hábito pouco saudável para um velho rico! Espero que não suspeite de toda a gente que recebeu herança de sir Charles — ironizou Mortimer. — Eu próprio recebi mil libras. — Sim?... E houve mais contemplados? — O meu amigo fez vários donativos, menores, a diversas pessoas, e outros, mais vultosos, a instituições de caridade... Mas o grosso da fortuna ficou para sir Henry. — E de quanto é essa fortuna? — Setecentas e quarenta mil libras. Holmes ergueu as sobrancelhas, admirado. — Não imaginava que fosse tanto. — Realmente, sir Charles tinha fama de ser rico, mas nunca supusemos que possuísse uma tão grande fortuna. O total quase chegava a um milhão.
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— É, na verdade, uma parada que pode tentar qualquer aventureiro a fazer um jogo desesperado. Dr. Mortimer, suponhamos que aconteça qualquer coisa a sir Henry... Desculpe-me esta desagradável hipótese... Se tal sucedesse, quem seria o herdeiro? — Como Rodger Baskerville, irmão mais novo de sir Charles, morreu solteiro, a herança iria para os Desmond, primos afastados dos Baskerville. James Desmond é um clérigo idoso, que vive em Westmorland. — Esses pormenores são muito interessantes. Conhece pessoalmente sr. Desmond? — Encontrei-o uma vez, quando fui visitar sir Charles. É um pastor religioso, muito respeitável, que leva uma vida santa. Lembro-me de que recusou a doação que sir Charles pretendia lhe fazer. — E esse homem, tão santo, seria o único herdeiro dessa fortuna? — Certamente. Herdaria o solar e a propriedade que está vinculada a ele, e também o dinheiro, a menos que o atual proprietário fizesse novo testamento, em outros termos. — E o senhor já fez testamento, sir Henry? — Ainda não, sr. Holmes. Não tive tempo, pois só ontem soube dos acontecimentos, mas acho que o dinheiro deve pertencer a quem herdar a propriedade. Era essa a vontade de meu tio. De que outra maneira poderia o solar ser restaurado? Casa, terra e dinheiro devem permanecer juntos. — Perfeitamente! Concordo com o senhor ao declarar que deseja ir para o Devonshire, sem demora. Baskerville precisa do senhor, mas convém tomar uma precaução. Não deverá ir só. — O dr. Mortimer vai comigo... — Mas o dr. Mortimer tem de tratar dos seus pacientes, e a sua casa fica a vários quilômetros de Baskerville. Por muito boa vontade que tenha, talvez não possa ficar junto com o senhor. Não, sir Henry. O senhor precisa ter sempre a seu lado uma pessoa de confiança. — Está disponível para vir comigo, sr. Holmes? — Só num caso extremo poderei ir em seu auxílio, pois tenho a minha vasta clientela e recebo chamadas constantes, de todo o lado, por isso é impossível deixar Londres. Agora mesmo, um dos nomes mais respeitados da Inglaterra está sendo manchado por um chantagista e parece que só eu poderei evitar o escândalo. Como vê, é impossível eu ir para Baskerville neste momento.
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— Nesse caso, quem me recomenda? Holmes colocou a mão sobre o meu ombro. — Se o meu amigo estiver disposto a ir, será um ótimo parceiro numa situação de perigo. Ninguém melhor do que eu poderá afiançá-lo. A proposta me apanhou de surpresa e, antes que tivesse tempo para responder, Baskerville apertou minha mão e sacudiu-a calorosamente. — É muito gentil de sua parte, dr. Watson — exultou. — Está a par de todo o assunto e, se quiser me acompanhar ao solar, fico-lhe imensamente grato. A expectativa da aventura sempre me fascinou, e senti-me lisonjeado com as palavras de Holmes e com o entusiasmo que o baronete tão prontamente manifestou. — Terei muito gosto em acompanhá-lo — respondi. — É uma ótima maneira de empregar o tempo. — Não deixe de me mandar relatórios pormenorizados — recomendou Holmes. — Quando o momento crítico se aproximar, direi como deverá agir. Espero que, neste sábado, já esteja tudo preparado. — Concorda, dr. Watson? — indagou sir Henry. — Perfeitamente. — Então, no sábado, a menos que o avise do contrário, podemos nos reunir na estação de Paddington, para tomarmos o trem das dez e meia. Já estávamos de pé, para sairmos, quando o baronete soltou uma exclamação de alegria. Num dos cantos do quarto, havia um armário entreaberto e, à vista, um par de sapatos. — Aqui está o sapato de sola que andava perdido! — É estranho — comentou Mortimer. — Antes do almoço, revistei o quarto cuidadosamente e esse par ainda estava incompleto! — E eu também já o tinha passado a “pente fino” — afirmou Baskerville. — Nesse caso, durante o nosso almoço, o criado repôs o sapato no seu lugar. Quando foi chamado, o criado alemão jurou que nada sabia sobre o reaparecimento do sapato, e nada mais pudemos apurar. Além da triste ocorrência do falecimento de sir Charles, tinha-se verificado, no período de dois dias, uma série de incidentes, desde o
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recebimento da mensagem ao espião barbudo, ao desaparecimento do sapato novo e depois do velho e, finalmente, o reaparecimento do primeiro. Ao regressarmos de coche à Baker Street, Holmes se mantinha calado e, pela sua expressão grave, de sobrancelhas carregadas, eu sabia que se achava ocupado em conceber um quadro no qual fosse possível encaixar, como num quebra-cabeça, todos os episódios estranhos e aparentemente desconexos. Chegando em casa, ficou até tarde sentado na sua poltrona, fumando, pensativo. Depois, ainda antes do jantar, chegaram dois telegramas. O primeiro anunciava: “Acabo ser informado. Barrymore está no solar Baskerville.” O segundo telegrama informava: “Fui 23 hotéis. Lamento não conseguir encontrar páginas Times. Cartwright.” — Assim se quebram duas pontas das minhas meadas — resmungou Holmes. — Nada é mais estimulante do que um caso em que tudo se apresenta adverso. Temos, meu caro Watson, que procurar uma outra pista. — Resta o cocheiro que transportou o homem da barba — lembrei. — Já telegrafei para o registro municipal indicando o número do coche, e aguardo que me informem o nome e endereço do cocheiro... Nesse momento, tocaram a campainha... — ...Talvez venha aí a resposta à minha indagação...— concluiu. O toque da campainha correspondeu a algo mais satisfatório do que uma simples mensagem, pois entrou um indivíduo de aspecto rude que era, evidentemente, o cocheiro, em pessoa. Este proferiu. exaltado: — Recebi um recado da gerência informando que um senhor, nesta casa, andava perguntando quem conduzia o coche 2704. Ando com esse carro há sete anos e nunca houve a menor queixa contra mim. Vim diretamente da estação para cá para perguntar, cara a cara, que tem o senhor contra o meu serviço. — Nada tenho contra o senhor — serenou-o Holmes. — Pelo contrário, tenho aqui meio soberano para lhe oferecer se quiser me responder com franqueza. — Nesse caso, estou com sorte — entusiasmou-se o cocheiro, sorrindo. — Que o senhor deseja saber?
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— Antes de mais nada, qual o seu nome e endereço, para o caso de tornar a precisar do senhor. — Sou John Clayton e moro no número 3 da Turpey Street, em Borough. O meu coche estaciona, habitualmente, diante do Shipley’s Yard, junto da estação de Waterloo. Sherlock Holmes tomou nota e propôs: — Agora, Clayton, fale-me do passageiro que hoje, às dez da manhã, veio espiar esta casa e depois esteve seguindo dois senhores que saíram daqui. O homem ficou surpreso e embaraçado. — Bem... Creio que não adianta mentir, porque o senhor parece estar inteirado do assunto... O meu passageiro explicou que era detetive e recomendou-me que não falasse dele a pessoa alguma. — Este caso é muito sério, Clayton, e você ficará em maus lençóis se tentar nos esconder a verdade. O seu passageiro declarou ser detetive? — Sim, senhor. — Quando ele declarou isso? — Quando me pagou, no momento de descer. — Acrescentou mais alguma coisa? — Sim. Disse-me como se chamava. — Essa é boa! — admirou-se Holmes. — Cometeu uma imprudência! Como disse ele que se chamava? — Sr. Sherlock Holmes. Nunca vi o meu amigo tão desconcertado como naquele momento. Emudeceu, durante alguns momentos, mas logo desatou a rir. — Golpe de mestre, Watson, golpe de mestre! — reconheceu. — Esse tipo joga tão bem quanto eu. Então, disse se chamar Sherlock Holmes, hem? — Sim, senhor. — Perfeito! Onde ele apanhou o seu coche e que mais aconteceu? — Subiu às nove e meia em Trafalgar Square e ofereceu-me dois guinéus para eu ficar ao seu serviço, durante todo o dia, sem fazer perguntas. Concordei e fomos para o Northumberland Hotel, onde esperamos que saíssem dois senhores e tomassem um coche, diante do hotel. Então, os seguimos até aqui.
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Parece que o meu passageiro sabia o que estava acontecendo, pois paramos no fim da rua e esperamos uma hora e meia. Depois, quando os dois senhores passaram por nós, mandou-me segui-los devagar até a Regent Street. No meio da Regent Street, o meu passageiro abriu a janela e mandou seguir para a estação de Waterloo o mais depressa possível. Chicoteei a égua e chegamos lá em dez minutos. Foi então que me pagou os dois guinéus e, antes de entrar na estação, virou-se para mim e disse: Talvez lhe interesse saber que teve hoje como passageiro Sherlock Holmes. — E não tornou a vê-lo, depois disso? — Nunca mais o vi depois de ter entrado na estação. — Muito bem. Diga-me agora como descreveria o sr. Sherlock Holmes? O cocheiro coçou a cabeça. — Bem... Não é um cavalheiro fácil de descrever. Aparentava uns quarenta anos, era pálido e talvez alguns centímetros mais baixo do que o senhor... Estava muito bem vestido e usava barba preta, cortada em quadrado. Não sei explicar mais do que isto. — Qual era a cor dos olhos? — Não reparei. — Muito bem. Aqui tem meio soberano e fica outro à sua espera para o caso de conseguir me trazer mais informações. Boa noite, Clayton. — Boa noite, senhor, e muito obrigado. O homem saiu satisfeito e Holmes, virando-se para mim, sorriu aborrecido. — Lá se quebrou a nossa terceira ponta da meada! Ficamos no mesmo ponto em que estávamos. Um tipo astuto! Conhecia a nossa casa, já sabia que sir Henry me consultou, reconheceu-me no meio da Regent Street, calculou que eu anotaria o número do coche e que iria procurar o cocheiro, de maneira que lhe transmitiu este recado. Garanto-lhe, Watson, que, desta vez, temos um adversário audacioso e digno de nós. Acabo de ser derrotado em Londres, mas espero ter melhor sorte no Devonshire. Contudo, não estou tranqüilo quanto à segurança em Baskerville. — Tem medo de que aconteça alguma coisa a sir Henry? — E a você, Watson. Este caso é realmente perigoso e, quanto mais o analiso, menos me agrada. Sim, meu caro amigo, deixo-o ir, mas lhe juro que ficarei mais satisfeito quando o vir de regresso, são e salvo, à nossa Baker Street.
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CAPÍTULO 6 – O SOLAR DE BASKERVILLE
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o dia marcado, sir Henry e o dr. Mortimer estavam prontos para partir e, conforme tínhamos combinado, tomamos o trem para o Devonshire. Sherlock Holmes me acompanhou à estação e me fez as últimas recomendações: — Não quero, meu caro Watson, lhe sugerir teorias ou lhe inculcar suspeitas. Pretendo apenas que me faça, da maneira mais completa, o relatório dos fatos que presenciar. Pode deixar as conclusões por minha conta. — Que espécie de fatos? — Tudo quanto possa se relacionar, mesmo indiretamente, com o caso; principalmente, as relações entre Baskerville e os seus vizinhos; também qualquer novo aspecto acerca da morte de sir Charles. Eu próprio tenho feito, ultimamente, algumas investigações nesse sentido, mas receio que os resultados se mostrem negativos. Uma coisa, porém, parece certa: esse clérigo, o sr. James Desmond, presumível herdeiro imediato, é um velhote afável, de maneira que não pode ser o autor da perseguição que presenciamos. Creio que podemos eliminá-lo das nossas suspeitas hipotéticas. Restanos averiguar cuidadosamente o comportamento e identidade das pessoas que vivem no pântano, em redor do solar. — Não seria prudente nos livrarmos do casal Barrymore? — De maneira alguma. Se o marido e a mulher estiverem inocentes, seria uma injustiça. Em contrapartida, se forem culpados, perderíamos a oportunidade de desmascará-los. Ambos continuam na nossa lista de suspeitos. Temos também, no solar, um cavalariço e, no pântano, dois fazendeiros e temos o dr. Mortimer, embora eu me incline a considerá-lo absolutamente honesto, e ainda a mulher dele, de quem nada sabemos. Depois, temos o naturalista, o sr. Stapleton, e a irmã que, segundo consta, é uma jovem muitíssimo atraente. Resta-nos ainda o sr. Frankland de Lafter Haff, que constitui, para nós, um fator inteiramente desconhecido, e mais dois ou três vizinhos de importância relativa. De qualquer modo, todos eles devem ser alvo da sua atenta observação. — Farei o melhor que puder... — Está levando uma arma com você, não é verdade?
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— Sim. Achei que devia levar o revólver... — Conserve-o noite e dia em seu poder e nunca deixe de tomar as devidas precauções. Mortimer e sir Henry já tinham reservado lugares no vagão de primeira classe e nos aguardavam na plataforma da estação. Respondendo a Holmes, Mortimer informou: — Nada de especial aconteceu e posso jurar que não fomos seguidos, durante estes dois dias. Andei sempre atento a essa possibilidade. — Andaram sempre juntos? — Exceto ontem à tarde, quando vim à cidade; reservo sempre um dia para me distrair um pouco... de maneira que passei a tarde no Surgeons College Museum. — Quanto a mim — interveio o baronete — , fui passear pelo parque, mas não tive o menor aborrecimento. — Foi uma imprudência — censurou Holmes, preocupado. — Suplicolhe, sir Henry, que não volte a sair só, pois corre um grande risco... Conseguiu descobrir o outro sapato preto? — Creio que esse está irremediavelmente perdido. — Eis um pormenor interessante! Então, adeus! — despediu-se Holmes, quando o trem começou a rodar ao longo da plataforma e, acompanhando-o ainda, alguns passos, acrescentou: — Lembre-se de um dos conselhos da lenda: evite atravessar o pântano durante as horas tenebrosas em que os poderes do mal estão exaltados. Quando, momentos depois, tornei a olhar paraa plataforma já bastante distanciado, ainda vi o vulto de Holmes, alto e austero, olhando na nossa direção. A viagem foi rápida e agradável. Procurei conhecer mais intimamente os meus companheiros e brinquei um pouco com o cão do dr. Mortimer. Horas depois, a terra cinzenta tornou-se avermelhada, o tijolo das construções foi substituído por blocos de granito e apareceram as primeiras vacas pastando em cerrados de árvores altas, onde a erva e a vegetação indicavam um clima que, embora úmido, tornava a terra muito mais fértil. O jovem Baskerville observava a paisagem pela janela e acabou por soltar exclamações de prazer, ao reconhecer o cenário familiar do Devonshire.
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— Tenho viajado muito pelo mundo, dr. Watson, desde que saí daqui, mas nunca encontrei um lugar que se comparasse a este! — comentou, extasiado. — E eu nunca encontrei um nativo do Devonshire que não elogiasse o condado em que nasceu! — ironizei. O dr. Mortimer sentenciou: — Depende sempre da etnia do nativo e da região que foi seu hábitat. O nosso amigo aqui possui a cabeça arredondada dos celtas, que corresponde ao entusiasmo e dom de fidelidade dessa etnia à terra do seu clã. Mas o senhor, sir Henry, ainda era muito jovem quando saiu de Baskerville, não é verdade? — Sim. Deixei o Devonshire na ocasião da morte de meu pai, e nunca tive oportunidade de visitar Baskerville, pois vivíamos na costa sul. Depois, parti para a América e instalei-me lá na casa de um amigo da família... Para mim, o solar constitui uma novidade tão grande como para o dr. Watson, e confesso que estou curioso por ver o pântano. — Eis um desejo bem fácil de satisfazer — disse Mortimer, apontando pela janela da carruagem. Acima dos quadriláteros verdes do pântano e da pequena elevação de um bosque, erguia-se um morro cinzento e melancólico, de crista estranhamente recortada, tão impreciso como um cenário maravilhoso. Durante algum tempo, sir Henry contemplou a paisagem e notei, no seu rosto, quanto para ele significava aquele lugar onde os varões do seu sangue tinham vivido ao longo de séculos, deixando tão profundos vestígios. Ali ficou sentado, no seu traje de tweed, no canto do prosaico vagão. Apesar do notório sotaque americano, o seu rosto bronzeado e expressivo indicava ser um verdadeiro descendente daquela longa linhagem de homens impetuosos, ardentes e dominadores. Adivinhava-se, na sua expressão, de olhos castanhos e sobrancelhas espessas, um certo orgulho e, sobretudo, energia e bravura. Se, nesse pântano assustador, nos aguardasse um perigo mortal, ali estava um indivíduo com o qual poderíamos nos aventurar a correr qualquer risco, na certeza de que se portaria com coragem. O trem parou numa minúscula plataforma, onde descemos. Para além de uma cerca baixa, nos aguardava uma carruagem puxada por uma parelha de cavalos. Parecia que a nossa chegada constituía um acontecimento raro, visto que o guarda da plataforma e dois bagageiros logo nos rodearam para transportar as malas.
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Era um lugarejo simples e tranqüilo, mas fiquei admirado ao ver, junto do portão, dois homens de uniforme escuro, apoiados a curtas carabinas, que nos fitaram atentamente quando passamos. O cocheiro, de rosto enrugado e bronzeado, saudou sir Henry e, em breve, seguíamos velozmente pela estrada larga. Víamos pastos e casas velhas, de altas laterais, espiando-nos através da folhagem. E, por detrás da paisagem pacífica, avistava-se a curva sombria e ameaçadora do pântano, apenas entremeada pelo sinistro recorte dos montes. A carruagem entrou numa estrada lateral e atravessamos os atalhos calcados por milhares de rodas, vendo-se de ambos os lados penhascos cobertos de musgo úmido, e sarças esparsas brilhavam aos últimos raios de sol. Passamos por uma ponte de granito e contornamos um riacho ruidoso que corria, rápido e espumante, por entre rochas escuras. Tanto a estrada como o riacho enveredavam por um vale coberto de abetos e de carvalhos atrofiados. A cada curva do caminho, sir Henry soltava uma exclamação de prazer, fazendo numerosas perguntas. A seus olhos, tudo parecia belo, mas eu notava, na paisagem, a marca de um outono que terminava com folhas amarelas atapetando as veredas e esvoaçando à passagem da carruagem. O ruído das rodas diminuiu quando entramos numa zona coberta de vegetação apodrecida: imagem triste que a natureza oferecia ao herdeiro de Baskerville, na ocasião do seu regresso ao condado dos antepassados. — Olha! — exclamou Mortimer. — Que é isso? Sobre uma elevação coberta pela vegetação, via-se um soldado, que mais parecia uma estátua, com a carabina apoiada no antebraço. Compreendi que se estava montando guarda na entrada por onde passávamos. — O que é, Perkins? — inquiriu Mortimer. O cocheiro virou-se para nós, e elucidou: — Fugiu um preso de Princetown, senhor. Há três dias que anda por aí. Os guardas vigiam todas as estradas e todas as estações, mas ainda não conseguiram prender o homem. Os fazendeiros têm razão para se mostrarem preocupados... e recusam-se a cooperar... — Mas é costume as autoridades oferecerem cinco libras a quem der informações...
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— Sim, senhor, mas cinco libras são muito pouco, comparado ao risco de ficar com a garganta cortada. Este condenado não é como os outros, pois não vacila perante coisa alguma. — Quem é ele? — Selden, o assassino de Notting Hill. Lembrava-me do caso, pois fora um dos que tinham despertado o interesse de Holmes, pela ferocidade do crime e brutalidade que caracterizara todos os atos do malfeitor. A comutação da pena de morte em prisão perpétua resultara de certas dúvidas quanto à sua sanidade mental. Diante de nós, o pântano fazia-nos emudecer. Num recanto daquela planície desolada, encontrava-se um monstro, escondido numa toca como um animal selvagem, com o coração raivoso contra a humanidade que sentenciou a sua segregação. Só faltava isto para completar o cenário sombrio. Mesmo sir Henry permaneceu silencioso, aconchegando mais o sobretudo ao corpo. Tínhamos deixado para trás as terras férteis onde os raios oblíquos do sol poente transformavam os ribeiros em filetes de ouro, resplandecendo através da terra vermelha que os arados haviam revolvido. À nossa frente, a estrada tornava-se mais escura e bravia, com rampas rubras e cor esverdeada, incrustadas de pedregulhos. De vez em quando, passávamos por uma casa de granito, sem qualquer folhagem de trepadeira alegrando a fachada. De súbito, vimos uma depressão de terreno, em forma de taça, salpicada de abetos e pequenos carvalhos, quebrados e retorcidos pela fúria do vento e do tempo. Duas torres, altas e estreitas, erguiam-se acima da copa rala das árvores. Então, o cocheiro apontou com o chicote: — O solar de Baskerville. Sir Henry soergueu-se do banco e olhou para a casa, com os olhos brilhantes e o rosto corado. Minutos depois, atravessávamos os portões de ferro forjado, com volutas fantásticas, ladeados por pilares cobertos de líquen e arrematados por cabeças de javali, timbre das armas dos Baskerville. A portaria era uma ruína de granito escuro, com vigas rompendo a fachada descamada; porém, defronte, via-se um novo edifício, embora ainda inacabado: o primeiro fruto do ouro africano de sir Charles. Atravessamos a avenida, onde o ruído das rodas foi novamente amortecido pela folhagem morta e onde as copas das velhas árvores
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formavam um túnel sobre as nossas cabeças. Ao ver a casa, que brilhava como um fantasma no fim da avenida, sir Henry não pôde disfarçar um estremecimento. — Foi aqui? — inquiriu. — Não, senhor — respondeu Perkins. — Foi na alameda dos teixos, que fica do outro lado. Olhando em redor, o jovem herdeiro comentou: — Não é de admirar que o meu tio previsse que algo de mau pudesse vir a acontecer... num lugar como este! É realmente assustador. Dentro de seis meses, farei com que instalem aqui uma fileira de candeeiros e, então, ninguém reconhecerá esta alameda com lâmpadas de mil velas Swan & Edison diante da fachada. A avenida alargava-se próxima ao pântano e a casa erguia-se, agora, defronte de nós. À luz crepuscular, vi que a fachada era um bloco pesado de onde se projetava o portal saliente. Toda a fachada estava coberta de hera, com manchas mais claras nos pontos onde uma janela ou um brasão rompiam o fundo escuro. Neste bloco central, erguiam-se as antigas torres gêmeas, com ameias e seteiras. A direita e à esquerda das torres, estendiam-se alas mais recentes, de granito escuro. Através das janelas fortemente gradeadas, escoava-se uma luminosidade tênue e, pela esguia chaminé que se erguia do telhado inclinado, subia uma nuvem de fumaça. — Seja bem-vindo, sir Henry! Bem-vindo ao solar de Baskerville! Um homem, surgindo da sombra do pórtico, viera abrir a portinhola da carruagem. Destacando-se no clarão amarelo do átrio, via-se um vulto de mulher. Também esta se aproximou e ajudou o homem a carregar as malas. — Não se importa, sir Henry, que eu vá diretamente para casa? — perguntou Mortimer. — Minha mulher está à minha espera... — Não quer ficar para jantar, doutor? — Não, sir Henry. Tenho certamente trabalho à minha espera. Gostaria de lhe mostrar o solar, mas Barrymore é melhor guia do que eu. Até logo. Se precisar de mim, não hesite em mandar chamar-me, a qualquer hora do dia ou da noite. Quando o baronete e eu entramos no átrio, fechando-se a pesada porta atrás de nós, encontramos uma bela sala espaçosa, de pé-direito alto, com
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grandes vigas de carvalho, no teto, enegrecidas pelo tempo. Na grande lareira antiga, crepitavam grossas achas de lenha. Fomos aquecer as mãos, pois nos sentíamos gelados após o longo percurso de carruagem. Depois, olhamos em redor e vimos a janela alta de vitrais, painéis de carvalho, as cabeças de veado, as armas brancas e armaduras, nas paredes, tudo foscamente desbotado, à luz débil do candelabro central. — Tal como eu imaginei — proferiu sir Henry. — O típico lar de uma família antiga. Pensar que, nesta mesma sala, durante quinhentos anos, viveram os meus antepassados! Notei que o seu rosto bronzeado se iluminou com um entusiasmo juvenil. Barrymore, que tinha ido levar as nossas malas para os quartos, já regressava e estava agora diante de nós, com a atitude respeitosa de um servente bem formado. Era um indivíduo alto, de feições muito corretas, embora muito pálidas, usando a barba negra, aparada em quadrado, e tinha maneiras distintas. — Vossa Senhoria deseja que sirva o jantar? — Já está pronto? — Dentro de poucos minutos. Os senhores encontrarão água quente nos quartos. Minha mulher e eu, sir Henry, teremos muito gosto em ficar com Vossa Senhoria, até que o serviço do solar esteja reorganizado. Contudo, esta casa é muito grande e vai exigir muitos criados... em condições normais. — Que quer dizer com “condições normais”? — Quero dizer, senhor, que sir Charles levava uma vida muito retirada, de maneira que minha mulher e eu bastávamos, nessas circunstâncias, para dar conta do serviço. Porém, Vossa Senhoria vai, decerto, querer receber visitas e então será necessário ampliar o serviço. — Quer dizer que você e a sua mulher pretendem ir embora? — Sim, mas apenas quando for da conveniência de Vossa Senhoria. Por instantes, sir Henry mostrou-se perplexo. — Mas a sua família, Barrymore, tem vivido aqui há várias gerações!... Seria difícil começar a minha vida no solar, quebrando essa velha tradição! — Também penso assim, sir Henry, e o mesmo sucede com minha mulher, mas, se Vossa Senhoria me permite falar francamente, éramos muito dedicados a sir Charles, e o seu falecimento nos causou um profundo pesar, fazendo com que o solar se tornasse penoso... Creio que jamais teremos tranqüilidade em Baskerville.
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— Nesse caso, que pretendem fazer? — Pensamos em nos estabelecer com um pequeno negócio. A generosidade de sir Charles franqueou-nos essa oportunidade. Agora, talvez convenha que só acompanhe os senhores aos seus quartos... Uma galeria quadrangular corria por cima do vestíbulo com acesso por duas escadas. Daquele ponto central, partiam dois corredores, ao longo das duas alas do edifício. Todos os quartos davam para esses corredores. As alas pareciam muito mais modernas do que a parte central do solar e os numerosos candelabros conseguiam atenuar a sombria impressão que eu tive na chegada. Contudo, a sala de jantar que dava para o vestíbulo, embora vasta, era um aposento melancólico, quase triste. Alongava-se com um estrado, ao fundo, onde os convidados se sentavam, separados da parte mais baixa, reservada aos seus dependentes. Num dos extremos, havia uma galeria destinada aos músicos e, sobre as nossas cabeças, viam-se vigas negras de um teto enegrecido pelo fumo de antigas tochas. É possível que, com estas a iluminá-lo e com o estridor hilariante dos banquetes, o ambiente noutras eras tivesse sido mais acolhedor. Porém, agora, só com dois cavalheiros vestidos de preto, sentados sob o pequeno circo de luz projetado pela lâmpada velada, era deprimente. Instintivamente, a nossa voz quase se reduzia a um murmúrio e nos sentíamos oprimidos. Uma galeria de quadros, representando antepassados, com grande variedade de trajes, desde o isabelino ao peralvilho da Regência, intimidavanos com a sua silenciosa companhia. Falamos pouco, e eu, pelo menos, fiquei satisfeito quando a refeição terminou e pudemos ir para a ala moderna a fim de fumarmos um cigarro. — Não me parece um lugar muito alegre — comentou o baronete. — Com certeza acabaremos por nos habituar, mas sinto-me desnorteado! Não me admiro que meu tio se sentisse assustado ao viver isolado num casarão como este. Em todo o caso, dr. Watson, se lhe convier, podemos nos deitar cedo. Talvez, amanhã, tudo nos pareça mais alegre. Antes de deitar-me, afastei as cortinas da janela e olhei para fora. O relvado se estendia diante da porta da entrada. Mais além, vi dois grupos de árvores que gemiam e balançavam ao vento que começava a soprar. A meia-lua surgiu por entre nuvens velozes. Para lá das árvores, avistei penedos irregulares e a longa curva do pântano.
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Estava cansado, mas apesar disso mantinha-me acordado, revirando-me na cama sem conseguir conciliar o sono. A não ser a badalada esporádica de um relógio, reinava um silêncio absoluto em toda a casa. Contudo, já no meio da noite, ouvia-se distintamente um som inconfundível. Era um soluço de mulher vivamente emocionada. Sentei-me na cama, para melhor escutar. Não havia dúvida de que os soluços provinham do interior do solar. Esperei durante meia hora, com os sentidos alerta, mas nada mais ouvi, a não ser o ruído do relógio e o barulho da hera, na fachada fronteira.
CAPÍTULO 7 – OS STAPLETON DA MERRIPIT COTTAGE
A
suave frescura da manhã seguinte conseguiu apagar a soturna impressão da véspera. Sentados à mesa do café, sir Henry e eu vimos o sol penetrar pelas janelas gradeadas e nem parecia estarmos na mesma sala que, na noite anterior, parecia tão agressiva. — Creio que a culpa é nossa e não da casa — observou o baronete. — Estávamos cansados da viagem, de maneira que encaramos tudo sob um prisma lúgubre. Agora, que já nos achamos descansados, tudo nos parecerá mais jovial. — Contudo, não se tratou apenas de imaginação minha — objetei. — Não ouviu, sir Henry, uma mulher soluçando no meio da noite? — Na verdade, quando estava meio adormecido, pareceu-me ouvir qualquer coisa desse gênero, mas o ruído não se repetiu e julguei ter sonhado. — Pois eu o ouvi distintamente e tenho a certeza de que eram soluços de mulher. — Vamos verificar isso imediatamente — tocou a campainha e perguntou a Barrymore se poderia nos dar uma explicação para os soluços que tínhamos ouvido. — Só há duas mulheres, nesta casa, sir Henry — respondeu o mordomo. — Uma é a criada que dorme na outra ala. A outra é minha mulher, e posso garantir que não foi ela. Verifiquei que Barrymore havia mentido, quando, depois do café, encontrei a mulher dele no corredor com a luz batendo-lhe no rosto. Era alta, imponente, de feições graves e boca firme, mas tinha as olhos vermelhos de choro e me olhou de relance por entre as pálpebras inchadas. Foi portanto ela quem chorou no meio da noite, e o marido devia saber, embora tivesse
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preferido se arriscar a ser desmentido. Em torno daquele homem atraente, de barba negra, pairava uma atmosfera de mistério e tristeza. Foi ele quem descobriu o corpo de sir Charles e, ao acreditarmos na versão da morte do velho, dependíamos da sua palavra. Seria possível que Barrymore fosse o mesmo homem que tínhamos visto no coche, na Regent Street? A barba podia ser a mesma. O cocheiro tinha-nos descrito um homem mais baixo, mas a sua impressão podia ser errônea. Para esclarecer essa dúvida, a primeira coisa a fazer seria interrogar o empregado do telégrafo de Grimpen e averiguar se o telegrama foi realmente entregue ao próprio Barrymore. Fosse qual fosse a resposta, teria pelo menos alguma matéria a relatar a Sherlock Holmes. Como sir Henry tinha numerosos documentos para examinar, a ocasião se tornou propícia a essa minha diligência. Fiz uma agradável caminhada de quatro quilômetros, ao longo das árvores que me separavam do pântano, e cheguei a um lugar onde sobressaíam dois prédios de maior estrutura: a estalagem e a casa do dr. Mortimer. O telegrafista, que também era o comerciante da aldeia, confirmou ter sido o telegrama entregue a Barrymore. — Quem o levou? — Meu filho... Foi você, James, que entregou o telegrama, em Baskerville, ao sr. Barrymore, não é verdade? — Sim, pai. — Entregou em mãos? — Não, pai. Ele estava no sótão, de maneira que entreguei a mensagem à sra. Barrymore. — Mas a mulher certamente o levou ao marido — resmungou o comerciante, num tom impertinente. — Se o sr. Barrymore não recebeu o telegrama, compete a ele reclamar. Parecia inútil insistir, mas se tornava evidente que não tínhamos provas de que Barrymore não tivesse ido a Londres, na véspera. Se foi o mordomo quem seguiu sir Henry, que sinistro plano tramava? Foi ele o último a ver sir Charles vivo... Se decidiu espiar o sobrinho... que interesse teria em perseguir a família Baskerville? Lembrei-me do estranho aviso feito com recortes de jornal. Seria obra sua ou de alguém que procurava acabar com seus planos? O único motivo concebível já tinha sido sugerido por sir Henry: se o proprietário do solar fosse afastado da região, o casal Barrymore poderia
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gozar de uma vida tranqüila e confortável. Porém, esse motivo era absurdo demais para explicar o plano complexo que parecia tecer uma rede invisível em redor do baronete. Ao voltar para casa, desejava que Holmes se libertasse dos seus afazeres e viesse me aliviar da responsabilidade que pesava sobre os meus ombros. De súbito, os meus pensamentos foram interrompidos por passos apressados que me seguiam e por uma voz que pronunciava o meu nome. Virei-me, esperando ver o dr. Mortimer, mas me surpreendi ao deparar com um estranho. Era um homem baixo, magro, de rosto barbeado, entre os trinta e os quarenta anos, de terno escuro e chapéu de palha. Trazia no ombro uma caixa de folha de estanho para acondicionar espécimes de botânica e, numa das mãos, uma rede com cabo para caçar borboletas. — Espero que me desculpe o atrevimento, dr. Watson, mas, aqui no pântano, somos pessoas simples e não esperamos por apresentações formais... Talvez o senhor já tenha ouvido falar do meu nome pelo nosso amigo comum, dr. Mortimer... Sou Stapleton, da Merripit Cottage. Como sabia que Stapleton era naturalista, repliquei: — Essa rede e a caixa já me teriam elucidado, mas... como é que me reconheceu? — Eu estava na casa de Mortimer, quando o senhor passou junto da porta e ele o apontou, da janela do consultório. Como seguimos pelo mesmo caminho, pensei que poderia alcançá-lo e me apresentar. Espero que sir Henry não esteja muito cansado com a viagem... — Está bem, obrigado. — Após a trágica morte de sir Charles, receávamos que o novo baronete se recusasse a vir viver aqui. Não era de esperar que um homem jovem e rico quisesse se enterrar num lugar como este, e desejá-lo seria quase egoísmo de nossa parte, mas a verdade é que a sua presença significa muito para a gente daqui. Espero que sir Henry não seja supersticioso... — Não creio que o seja. — Naturalmente, o senhor já conhece a lenda do cão que persegue a família dele... — Sim, já me contaram. — É extraordinária a credulidade dos camponeses da região! Qualquer deles é capaz de jurar que viu essa tal fera!
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O homem sorria, mas pelos seus olhos percebi que levava o caso a sério. — A história causou uma grande impressão a sir Charles e não duvido que isso o tenha matado tão tragicamente — prosseguiu Stapleton, animadamente. — Os seus nervos estavam já tão abalados que bastaria o aparecimento de qualquer cão para exercer o mesmo efeito fatal sobre o seu coração enfermo. Creio que, na sua última noite na alameda, viu realmente qualquer animal corpulento. Confesso que já receava que lhe acontecesse uma desgraça, pois gostava muito do velho e sabia que estava prestes a sofrer um ataque cardíaco. — Como soube dessa enfermidade? — Pelo meu amigo Mortimer. — Acha então que um cão perseguiu sir Charles e que, por esse motivo, morreu de medo? — O senhor tem alguma explicação mais natural? — Ainda não cheguei a conclusão alguma. — E o sr. Sherlock Holmes? Fiquei perplexo, mas a expressão de Stapleton provava-me que não teve a intenção de me surpreender. — É inútil, dr. Watson, fingirmos ignorar quem é o senhor, visto que não teria podido tornar Holmes célebre, sem ficar identicamente famoso. Quando Mortimer me disse o seu nome, não pôde negar sua identidade. Ora, se o senhor veio para cá, isso deve significar que Holmes também se interessa pelo caso e, naturalmente, senti curiosidade de conhecer o seu ponto de vista. Tínhamos chegado à entrada de uma vereda de erva que saía da estrada e penetrava no pântano. Tinha, à direita, um morro íngreme, que, pelas rochas espalhadas, indicava ter sido uma antiga pedreira. Ao longe, erguiase uma nuvem de fumaça. O meu dever era me manter ao lado de sir Henry, mas me lembrei da quantidade de papéis que lhe enchiam a escrivaninha e sabia que nesse assunto não poderia ajudá-lo. Por outro lado, Holmes recomendou que observasse o comportamento dos moradores do pântano. Aceitando o convite de Stapleton, entramos na vereda. — Veja como este pântano é um lugar maravilhoso — apreciou o meu parceiro, apontando para os montes ondulados e verdejantes, com as suas
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cristas de granito, em recortes fantásticos. — Nunca me canso de olhar para ela! Não é possível imaginar os segredos que guarda, vasta e misteriosa! — Parece conhecê-la bem...— sondei. — Estou aqui há apenas dois anos, de maneira que os meus vizinhos devem me considerar um recém-chegado, mas o interesse pela botânica me levou a explorar todos os recantos, e creio que poucos homens a conhecem tão bem como eu. — É assim tão difícil explorá-la? — Não é tarefa para qualquer um. Por exemplo, aquela grande planura, ao norte, com os estranhos penedos incrustados nos montes... Nota neles alguma coisa extraordinária? — Parece-me um ótimo lugar para cavalgar. — Pois isso já custou a vida de muito cavaleiro... e até peões têm desaparecido ali, para sempre. Vê aqueles pontos verdes, brilhantes, que surgem por todo o lado? — Sim... Parecem zonas muito férteis. — Pois trata-se do grande pântano de Grimpen. Ali, um passo em falso é a morte certa para homem ou animal. Ainda ontem vi um potro se afundar naquele local. Durante algum tempo, a cabeça do animal ainda se manteve fora da lama, mas acabou por ser sorvida pelo lodo movediço. Mesmo durante a seca, é perigoso atravessar o atoleiro mas, depois destas chuvas de outono, torna-se um sorvedouro terrível. Apesar disso, sou capaz de atravessá-la e regressar, são e salvo... Olhe... Lá está outro potro se debatendo... Vi realmente um vulto se agitando convulsivamente, no meio dos juncos verdes: um pescoço se contorcendo desesperadamente. Depois, ouvi um relincho angustiado que ecoou pela planície. Fiquei horrorizado, mas os nervos do meu parceiro pareciam mais fortes do que os meus. — Mais um que se perdeu — comentou. — O lamaçal o tragou, tal como costuma acontecer, quase de dois em dois dias. Os animaizinhos se sentem tentados a ir para lá por causa da frescura do pasto e acabam afundando. Este atoleiro de Grimpen é na verdade um lugar perigosíssimo. — E o senhor consegue atravessá-lo? — Descobri duas ou três trilhas de piso firme, por onde um homem ágil pode passar.
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— Mas por que motivo se empenhou em explorar o pântano? — Porque naqueles montes isolados, como ilhas verdes, posso encontrar as plantas e borboletas que procuro. — Gostaria de me aventurar um dia até lá... — comentei. — Nem pense nisso! Não quero me sentir responsável pela sua morte! Asseguro-lhe que não teria a mínima chance de sair dali vivo! Mesmo eu só consigo me orientar porque conheço algumas trilhas naturais... Subitamente, ecoou uma espécie de uivo triste pela planície. De um murmúrio surdo, se transformou num verdadeiro rugido, para logo diminuir como uma espécie de soluço. — Que raio é aquilo? — espantei-me. — Os camponeses dizem ser o cão de Baskerville, chamando sua presa. Já ouvi este uivo mas nunca assim tão forte. Olhei para o centro do pântano, mas nada vi entre os juncos, a não ser um par de corvos, grasnando a nossa retaguarda. — O senhor, sr. Stapleton, é um homem culto, portanto não deve acreditar em tal disparate. Na sua opinião, qual é a causa desse estranho ruído? — Bem... Já alguma vez ouviu o grito do algarvão? — Nem sei o é que isso. — É um pernalta, agora quase extinto na Inglaterra. Mas, como no pântano tudo é possível, talvez tenhamos acabado de ouvir o grito de um dos últimos algarvões da ilha. — É o uivo mais horrível que ouvi até hoje! — confessei. — De fato, o pântano é um reduto misterioso que nos desperta a crença em seres malignos sobrenaturais. Que me diz daquela encosta, ali adiante? — São currais de ovinos ou caprinos? — Não, meu caro doutor. São ruínas, onde moraram os nossos ancestrais pré-históricos. O homem neolítico habitava o pântano e, como depois dele ninguém mais se atreveu a ocupá-la, podemos encontrar aí os seus utensílios, tal como os deixou. Se se der ao trabalho de visitá-las, poderá ver o forno de pedra onde defumavam os alimentos, para conservá-los. — Mas é quase uma vila, pelo número de construções! — admirei-me — Como viviam esses neolíticos?
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— Pastoreavam gado nas encostas e pescavam nos cursos de água, antes de se formar o pântano, com o decorrer dos séculos. Nesse período, quando a arma de bronze substituiu o machado e as pontas de flecha de sílex do paleolítico, começaram a extrair o estanho e o cobre e a fundi-los conjuntamente. Olhe para aquela fossa, do lado oposto. É uma escavação para fundição de estanho. Poderá, dr. Watson, encontrar muita coisa singular neste pântano, mas nunca se aventure nela sozinho... Olha! Queira desculparme um momento... Não há dúvida de que se trata de uma cyclopides! Uma pequena mosca ou borboleta esvoaçara à nossa frente e logo, com muita energia, Stapleton correu atrás dela. Vi o inseto se dirigir para o imenso atoleiro, mas o naturalista não vacilou um instante e, saltando de moita em moita, sacudia no ar a sua rede. Nos seus movimentos bruscos e ziguezagueantes, também ele parecia uma mariposa. Estava admirando a destreza dele, quando ouvi passos do lado da estrada. Vinham da direção da casa onde eu vi fumaça na chaminé, a Merripit Cottage, que a curva do pântano ainda ocultava. Virei-me e vi se aproximar uma mulher, certamente a srta. Stapleton, cuja beleza já me tinham elogiado. Não podia haver maior contraste entre irmão e irmã, pois o naturalista tinha cabelos claros e olhos cinzentos, enquanto ela era morena, de um tom bronzeado, verdadeiramente raro entre as mulheres inglesas. Alta, fina e elegante, tinha um rosto orgulhoso e tão regular, nas suas linhas perfeitas, que pareceria impassível, se não fosse a vivacidade dos seus olhos negros e a expressão sensual dos seus lábios carnudos. Era realmente uma estranha aparição naquele deserto de vida humana. Tinha os olhos postos no irmão, mas, vendo que eu me virava para ela, veio ao meu encontro. Tirei o chapéu para me apresentar, quando as suas palavras me detiveram. — Volte imediatamente para Londres! — proferiu. — Imediatamente! Não pude deixar de encará-la, surpreendido. Os seus olhos luziam e bateu o pé no chão, impaciente. — Por que motivo quer que eu volte para Londres? — sondei. — Não posso explicar — respondeu num murmúrio. — Mas, pelo amor de Deus, faça o que lhe peço. Nunca mais venha à charneca e regresse a Londres, logo que possa. — Mas... acabei de chegar...
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— Santo Deus, homem! Não percebe que estou lhe avisando, para seu bem? Agora, silêncio... Meu irmão vem aí! Por favor, não mencione uma só palavra do que lhe disse... E, em voz alta, continuou: — ...Quer fazer o favor de apanhar aquela orquídea? Temos lindas flores no pântano, mas, evidentemente, já é muito tarde para o senhor poder apreciá-las... Stapleton abandonara a perseguição e regressava, vermelho e ofegante. — Olá, Beryl — saudou, e pareceu-me que o seu tom não foi muito cordial. — Olá, Jack! Parece estar sem fôlego! — Estava correndo atrás de uma cyclopides. É rara, especialmente no fim do outono. Que pena, tê-la deixado escapar! Stapleton falava despreocupadamente, mas os seus olhos claros passavam vivamente do rosto da irmã para o meu. — Vejo que já se apresentaram — concluiu. — Sim — respondeu ela. — Estava dizendo a sir Henry que já é muito tarde para poder apreciar as belezas do pântano. — Quem supôs que eu era — perguntei, sorrindo do engano. — Bem... pensei que fosse sir Henry Baskerville! — Não sou, não — retifiquei. — Sou apenas um amigo de sir Henry... dr. Watson, para servi-la, srta. Stapleton. O rosto da jovem ruborizou-se. — Houve um mal-entendido... — Vejo que não tiveram muito tempo para conversar — observou o irmão, sempre com o mesmo olhar interrogativo, embora mais atenuado. — Falei como se o dr. Watson morasse aqui, em vez de ser um visitante temporário. Portanto, pouco lhe importarão as muitas variedades de orquídeas do pântano. Quer dar-nos o gosto de vir até a nossa Merripit Cottage? Uma curta caminhada nos conduziu à residência isolada que devia ter sido, outrora, nos tempos prósperos, a casa de um abastado negociante de gado, pois tinha um largo pátio no fundo, com cavalariças, estrebaria e ampla vacaria. Foi transformada em residência moderna, cercada por um pomar cujas árvores, tal como os do pântano, estavam bastante atrofiadas.
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Fomos recebidos por um criado velho, criatura estranha de casaco cinzento, que parecia condizer com a parte antiga da casa. A parte nova tinha salas amplas, elegantemente mobiliadas, decerto ao gosto da dona da casa. Ao olhar para a planície, através da janela, não pude deixar de pensar no motivo que teria induzido um homem tão culto e uma mulher tão bela a viverem num lugar tão isolado. — Isto aqui é um lugar estranho, não é verdade? — comentou Stapleton, como se tivesse adivinhado os meus pensamentos. — Mas, apesar disso, Beryl e eu nos sentimos felizes, não é, irmãzinha? — Muito felizes — respondeu ela, embora o seu olhar não exprimisse essa convicção. — Tive uma escola, no norte — explicou o naturalista —, mas, para um homem do meu temperamento, essa ocupação era rotineira demais, e desinteressante. Só o privilégio de conviver com gente jovem e de ajudar a desenvolver os seus jovens cérebros, moldando-os ao nosso caráter e aos nossos ideais, compensava essa rotina mecânica. Contudo, houve uma epidemia, e morreram três dos meus alunos. Nunca me conformei com isso e parte do meu capital ficou irremediavelmente comprometida. Mais tarde, apesar da tristeza que me causou a perda dos rapazes, cheguei a me regozijar com o meu infortúnio, visto que o meu gosto pela botânica e pela zoologia veio encontrar aqui um campo de trabalho ilimitado. Minha irmã também ama a natureza, principalmente as flores... Estou lhe falando disto, dr. Watson, porque vi a maneira como contemplava a planície... — Realmente, achei o lugar muito monótono... embora talvez menos para o senhor, do que para sua irmã. — Nunca o acho monótono — apressou-se ela a intervir. Mas o seu olhar a desmentia. — Temos os nossos livros, os nossos estudos — justificou o irmão —, e também vizinhos muito interessantes. No seu ramo, o dr. Mortimer é muito culto. O pobre sir Charles, pelo seu lado, era um companheiro agradável... Nos conhecíamos bem e tenho sentido a sua falta, mais do que sou capaz de exprimir... Acha que seria indiscreto da minha parte ir, ainda hoje, desejar boas-vindas a sir Henry? — Estou certo de que ele ficaria encantado... — Então, dr. Watson, ficaria grato se o avisasse da minha visita. Talvez, de certo modo, possamos facilitar-lhe a vida, até que se habitue a esta região.
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Ah! já que está aqui, dr. Watson, quer ver a minha coleção de lepidópteros? Creio que seja a mais completa do sudoeste da Inglaterra. Após tê-la examinado, o almoço deverá estar pronto para ser servido. Sentia-me ansioso por voltar para junto de sir Henry. A melancolia do pântano, a morte do infeliz potro e o grito estranho que foi associado à lenda de Baskerville tinham-me entristecido. A essas impressões, mais ou menos vagas, sobrepunha-se o aviso da srta. Stapleton, feito com tanta intensidade que eu não podia duvidar de que ela teria uma séria razão para transmiti-la. Recusei o insistente convite para almoçar e meti-me a caminho de Baskerville, seguindo pela mesma vereda por que viera. No entanto, havia decerto um atalho, visto que, antes de chegar à estrada, tive a surpresa de ver a srta. Stapleton à minha espera, atrás de uma rocha. — Cansei de correr para alcançá-lo, dr. Watson — disse, cansada pelo esforço da carreira. — Nem tive tempo de pôr o meu chapéu... Não posso me demorar, pois não quero que meu irmão dê pela minha ausência... O almoço está quase pronto... Vim dizer-lhe que lamento o estúpido engano... Pensei que o senhor fosse sir Henry... Por favor, esqueça as minhas palavras que não se relacionavam com o senhor... — Mas não posso esquecê-las srta. Stapleton — retorqui. — Sou amigo de sir Henry e me interesso muito por ele. Por que deseja, tão ansiosamente, que o proprietário de Baskerville volte para Londres? — Creio que se trata de um mero capricho feminino... Nem eu mesma compreendo, muitas vezes, a verdadeira razão daquilo que digo ou faço... — Custa-me a acreditar que assim seja, srta. Stapleton. Lembro-me da emoção da sua voz e da expressão dos seus olhos... Por favor, seja franca comigo. Conte-me o que sabe e eu prometo transmitir o seu aviso a sir Henry. Pelo rosto da jovem passou uma sombra de dúvida. Hesitou, mas acabou dizendo: — Não queira dar um valor exagerado ao que eu lhe disse... sir Charles estava profundamente impressionado com a maldição que pesava sobre a sua família e, quando a tragédia ocorreu, fiquei naturalmente muito perturbada... Agora, que soube que um outro membro da mesma família vinha morar para Baskerville... Bem... Achei que devia avisá-lo do perigo que corre... Foi tudo quanto quis dizer... — Mas que perigo? — Não conhece a lenda do cão? — Não posso dar crédito a essas fantasias...
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— Mas eu acredito nelas... Se o senhor tiver alguma influência sobre o novo baronete, afaste-o do solar... O mundo é vasto e ele possui uma grande fortuna. Por que não vai gozá-la longe daqui, protegido do perigo que o ameaça? — Para convencê-lo a afastar-se daqui, preciso saber de que perigo se trata, já que não é suficiente essa lenda criada por espíritos imaginativos. Haverá outro perigo, mais concreto? — Nada mais posso lhe dizer, doutor... — Se apenas queria me avisar desse risco diabólico, por que motivo se calou, assustada, receando que seu irmão a ouvisse? — Porque o meu irmão pretende que o solar permaneça habitado, para bem dos pobres da região... Ficaria furioso, se soubesse que eu tentei induzir sir Henry a partir... Agora, tenho que ir embora, para que Jack não dê pela minha falta... Ai de mim, se desconfia... Adeus! Virou-se e partiu, desaparecendo por entre as rochas esparsas. Quanto a mim, prossegui a caminho de Baskerville, com um vivo sentimento de apreensão.
CAPÍTULO 8 – PRIMEIRO RELATÓRIO DO DR. WATSON
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assarei a seguir o curso dos acontecimentos, transcrevendo as cartas que dirigi a Sherlock Holmes e que tenho sobre a mesa, à minha frente. A este conjunto falta uma página, mas, mesmo assim, exprime com maior precisão o meu estado de espírito, na ocasião vivida, do que se eu fizesse um relato de memória, apesar de estar convencido de que ainda recordo tudo com clareza. Solar de Baskerville, 13 de outubro Meu caro Holmes, Os meus telegramas e cartas anteriores informaram-no de tudo quanto ocorreu neste lugar esquecido de Deus. Quanto mais nos demoramos neste local, mais o espírito do pântano nos invade a alma, com o sombrio encanto e melancolia da sua imensidão. Quando penetramos no pântano, sentimos ter
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deixado para trás os padrões da moderna Inglaterra e que, por todo o lado, está presente o trabalho do homem pré-histórico. Rodeiamnos os lares dessa gente remota e os seus túmulos, altos monumentos que, segundo consta, tiveram função de templos. Ao olharmos as casinhas de pedra cinzenta, incrustadas nos morros, sentimos ter deixado para trás a nossa era e, se víssemos um homem surgindo, encurvado, peludo como um animal selvagem, de uma das portas baixas, poderíamos considerar a sua presença, nesse ermo, mais natural do que a nossa. Como explicar que tanta gente tenha vivido, durante tantos séculos, num local tão árido? Imagino que se trata de um povo primitivo, pacífico, escorraçado de melhores lugares e forçado a aceitar este espaço que os outros desprezavam. Contudo, meu caro Holmes, nada disto tem a ver com a missão de que me incumbiu e certamente pouco interesse despertará no seu espírito prático. Lembro-me da sua total indiferença pelo fato de o Sol girar em torno da Terra e, portanto, passemos aos fatos relacionados com sir Henry Baskerville. Se nos últimos dias não enviei relatório algum, isso deveu-se a nada ter sucedido de relevante. Porém, agora ocorreu algo interessante que adiante mencionarei. Para começar a pô-lo a par de outras ocorrências, entre as quais a do preso que fugiu de Princetown e a quem eu mal me referi. Acredita-se agora que tenha conseguido escapar definitivamente, o que não deixa de constituir um alívio para o povo do distrito. Já faz quinze dias que fugiu, sem que pessoa alguma o tivesse visto. É inconcebível que tenha podido permanecer no pântano todo este tempo. Quanto a ter encontrado um esconderijo, seria plausível, visto que qualquer das remotas casas de pedra lhe daria abrigo, mas não teria com que se alimentar, a menos que matasse um carneiro dos que pastam nos campos. De qualquer modo, os fazendeiros, partindo do princípio de que se afastou para longe, já dormem tranqüilos. Aqui no solar, somos quatro homens válidos, bem capazes de nos defender, mas confesso estar apreensivo em relação aos Stapleton, já que se encontram a quilômetros de distância, sem qualquer auxílio.
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Vivem apenas com um velho criado e uma criada, e o naturalista não é muito forte. Ficariam à mercê de qualquer bandido, como esse de Notting Hill, se ele entrasse em sua casa. Tanto sir Henry como eu ficamos preocupados com isso e sugerimos que o cocheiro Perkins passasse a dormir lá, mas Stapleton opôs-se à nossa sugestão. A verdade é que o nosso baronete começa a manifestar um especial interesse pela vizinha, o que não é de admirar, já que o lugar é vazio e, para um homem tão ativo, o tempo custa a passar. Além disso, a jovem Beryl Stapleton é realmente fascinante. Possui algo de exótico, frio e pouco emotivo. O sr. Stapleton exerce uma grande influência sobre a irmã, que não desvia o olhar quando ele fala e que, quando se exprime, parece sondar receosamente a sua aprovação. Espero que Stapleton seja bom para ela, embora a sua expressão pareça indicar tratar-se de um homem de temperamento austero e talvez brutal. Seria, para você, um interessante objeto de estudo. No primeiro dia, Stapleton veio visitar o solar e, no dia seguinte, insistiu em nos mostrar o local onde teve origem a lenda do cruel Hugo Baskerville. Fizemos uma excursão de alguns quilômetros, através do pântano, a um lugar tão lúgubre que, só por si, poderia ter inspirado essa história da maldição. Entre penedos, deparamos com um pequeno vale onde se erguem duas grandes pedras, tão afiladas nos topos que parecem garras de uma fera monstruosa. Como correspondessem exatamente ao cenário da tragédia, sir Henry mostrou-se muito interessado e, por mais de uma vez, sondou Stapleton acerca da possibilidade de uma intervenção sobrenatural na vivência humana. Cautelosamente, Stapleton falou de casos semelhantes, em que várias famílias haviam sofrido influências maléficas, e pareceu compartilhar da crendice popular. No regresso, almoçamos em Merripit, onde sir Henry conheceu a jovem Stapleton, mostrando-se, desde logo, atraído por ela, e me pareceu que esse sentimento era recíproco. Contudo, o olhar do naturalista exprimia reprovação. Na realidade, se a irmã se casasse, ele passaria a viver terrivelmente isolado, mas, por outro lado, seria
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extremamente egoísta de sua parte opor-se a um casamento tão brilhante. Mas a verdade é que se empenhou em que os dois nunca se encontrassem a sós. Pensando nisto, destaco que, se sir Henry se apaixonar, será muito difícil, meu caro Holmes, seguir as suas instruções de nunca o deixar só. Se as cumprir, arrisco-me a desagradar ao nosso baronete. Para ser exato, na quinta-feira passada, o dr. Mortimer almoçou conosco no solar. Esteve pesquisando um túmulo, em Long Down, e descobriu um crânio do período neolítico que o deixou encantado. Mais tarde, apareceram os Stapleton e, a pedido de sir Henry, Mortimer levou-nos ao local onde aconteceu a tragédia da noite fatídica. Foi um passeio lúgubre pela alameda de teixos, ao fundo da qual se encontra uma estufa em ruínas. A meio do caminho vê-se o portão branco, de madeira, junto do qual o velho acendeu o cigarro. Lembrei-me da sua teoria acerca do caso e imaginei que o velho, olhando para a planície que se estende em frente, viu surgir do pântano a criatura que o aterrorizou e o levou a fugir correndo, até cair morto de pavor ou de exaustão. Mas que diabo terá visto ele, antes de tombar sob o túnel de arvoredo? Um mero cão pastor ou um ser espectral, monstruoso? Será que Barrymore sabe mais do que quis relatar? Apesar de tudo parecer muito vago, paira no meu espírito a sombra de um crime. Depois de lhe escrever, tive ocasião de conhecer outro vizinho: o sr. Frankland, de Lafter Hall, que vive a cerca de quatro quilômetros ao sul do solar. É um homem idoso, de cabelo branco, rosto vermelho e expressão colérica, que tem a paixão dos processos jurídicos em que gastou parte da sua fortuna. Briga pelo mero prazer de brigar e toma qualquer partido nas disputas, pelo que deve ter aprendido que isso é um brinquedo caro. Ora fecha uma estrada considerada legalmente como serventia pública e desafia a autoridade paroquial a forçá-lo a abri-la novamente, ora se atreve a derrubar, pessoalmente, o portão de acesso a uma propriedade, alegando ter existido ali, em tempos remotos, uma passagem pública, e incita o proprietário a mover-lhe um processo por transgressão.
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Frankland é entendido em Direito Civil e de Propriedade e tanto aplica os seus conhecimentos em defesa dos interesses dos aldeões de Fernworthy, como contra eles. Por esse motivo, ora o transportam nos ombros, triunfalmente, pelas ruas da aldeia, ora queimam a sua imagem. Recentemente, consta que está implicado em sete processos judiciais que, provavelmente, acabarão com o que resta da sua fortuna, esgotando seu o veneno e tornando-o inofensivo. Tirando a sua mania por pleitos legais, é um homem bondoso e bemhumorado e apenas me refiro à sua pessoa porque o meu amigo me pediu que descrevesse todas as pessoas que cercam o nosso baronete. Como é astrônomo amador, Frankland possui um bom telescópio, com o qual, do telhado da sua casa, consegue abranger toda a planície e pode, assim, durante o dia, procurar o bandido que anda por aqui. Mais ainda, consta que pretende processar o dr. Mortimer, por este ter aberto um túmulo sem autorização do mais próximo parente do defunto. Ora, trata-se de um túmulo, situado em Long Down, onde Mortimer descobriu um crânio da Idade da Pedra. Portanto, este sujeito contribui para que a nossa vida não decorra monotonamente, aliviando-nos a tensão. Finalmente, depois de lhe ter falado do foragido, dos Stapleton, de Mortimer e do cômico Frankland de Lafter Hall, passo a me referir mais particularmente aos Barrymore e aos acontecimentos da noite passada. Em primeiro lugar, mencionarei os telegramas que expediu como teste, para se certificar de que Barrymore se encontraria realmente no solar. Segundo o testemunho do telegrafista, esse teste ficou invalidado e não temos qualquer outra prova. Relatei o sucedido a sir Henry e este interrogou logo o mordomo, que confirmou ter recebido as mensagens, esclarecendo não lhe terem sido entregues pessoalmente pelo rapaz, mas por sua mulher que levou as mensagens ao sótão. Esclareceu ainda que ditou a resposta à sra. Barrymore e que esta desceu para redigi-la. Mais tarde, o mordomo voltou ao assunto, dizendo não ter compreendido bem o objetivo do interrogatório da manhã e perguntado se teria desagradado o patrão por qualquer erro cometido, mas sir Henry tranqüilizou-o e lhe ofereceu parte do seu antigo guardaroupa, pois as novas encomendas de Londres já tinham chegado.
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A sra. Barrymore tem sido alvo do meu interesse. É uma mulher pesada, sólida, de espírito aparentemente limitado, respeitável e inclinada para o puritanismo. Não se pode imaginar pessoa menos emotiva. Lembrei-me de, na primeira noite, tê-la ouvido soluçar, e no dia seguinte ter notado na sua expressão indícios de que tivesse chorado. Portanto, estou convencido de que algo lhe amargura a alma. Não sei se tem algum remorso, ou se o marido a tiraniza. Creio que Barrymore tem um caráter singular e duvidoso, e a ocorrência da noite passada fez com que as minhas suspeitas se concretizassem... Mas talvez não se trate de um fato importante. Como sabe, o meu sono é leve e, desde que vigio esta casa, tornouse ainda mais leve. Na noite passada, por volta das duas da madrugada, acordei com passos furtivos diante do meu quarto. Levantei-me e fui espiar pela porta, que entreabri sem ruído, e vi a sombra de um homem, de pijama e descalço, que avançava silenciosamente pelo corredor. A sua atitude era evidentemente suspeita. Esperei que virasse a esquina dessa galeria e o segui, podendo ver que o vulto entrou num quarto. Ora, esses quartos do corredor estão desocupados e sem mobília. Pela imobilidade da luz, pareceu-me que o indivíduo permanecia imóvel e fui espiá-lo. Barrymore estava agachado junto da janela, com a vela quase toda colada à vidraça, e olhava atentamente a planície. Depois soltou um gemido abafado e apagou a vela. Regressei, sem ruído, ao meu quarto e, segundos depois, tornei a ouvir os passos furtivos. Mais tarde ainda, depois de ter outra vez adormecido, fui novamente acordado pelo ruído de uma chave rodando numa fechadura, mas não descobri de onde provinha o som. Não sei o que isto possa significar, mas teremos de averiguar o mistério que envolve esta casa. Como só me pediu que revelasse fatos, não quero entediá-lo com as minhas teorias. Hoje de manhã relatei a ocorrência a sir Henry, e planejamos uma próxima ação, baseada nas minhas observações de ontem à noite. Por agora é tudo, mas creio que o meu próximo relatório terá maior interesse.
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CAPÍTULO 9 – SEGUNDO RELATÓRIO DO DR. WATSON UMA LUZ NO PÂNTANO Solar de Baskerville, 15 de outubro Meu caro Holmes, Se, na minha carta anterior, o deixei sem notícias de vulto, reconhecerá agora que estou recuperando o tempo perdido e que os acontecimentos se sucedem rapidamente. Acabei o meu relatório de anteontem com a ação de Barrymore à janela de um dos quartos e tenho aqui uma resma de folhas cujo teor o surpreenderá, já que os fatos tomaram um rumo muito imprevisível. Na manhã seguinte, antes do café, percorri o mesmo corredor e fui examinar, à luz do dia, o quarto onde surpreendi Barrymore de vela acesa. A janela por onde espiava é a que apresenta melhor visibilidade para o pântano, pois uma abertura na ramaria das árvores fronteiras nos permite olhar diretamente para a planície, o que não acontece nas outras. Portanto, concluí que o mordomo a escolheu devido a essa particularidade, a fim de poder procurar alguma coisa ou se comunicar com alguém que estivesse no pântano. Naturalmente, pensei que se tratasse de um enredo amoroso, o que justificaria os seus movimentos furtivos e também a inquietação da mulher. Já o descrevi como sendo um homem atraente, muito capaz de enfeitiçar qualquer camponesa, e como o ouvi sair depois de eu ter regressado ao quarto, admiti que tivesse um encontro clandestino. Seja qual for a explicação do comportamento de Barrymore, achei que não devia arcar com a responsabilidade de guardar segredo e transmiti a ocorrência a sir Henry, quando após o café, o procurei no escritório. Ficou menos surpreendido do que eu esperava e confirmou:
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— Já sabia que Barrymore andava à noite pelo corredor, mais ou menos à hora a que o meu amigo o seguiu. Ouvi-o passar, pelo menos, há duas ou três noites consecutivas. — Talvez o faça todas as noites. — Nesse caso, podemos tentar surpreendê-lo, em flagrante — sugeriu. — Não seria o que Holmes faria, nas mesmas circunstâncias? — Certamente, mas nos arriscamos a que nos ouça... — adverti. — Tomaremos as nossas precauções. Esta noite, ficaremos sentados no meu quarto, aguardando a sua passagem pelo corredor. Era evidente que considerava essa ação como uma compensação para a vida sedentária que levava no solar, apesar de já ter entrado em contato com um arquiteto e um empreiteiro de Londres, para um projeto de grandes mudanças que, em breve, se iniciarão. Entretanto, vieram decoradores e tapeceiros de Plymouth, pois o nosso baronete não quer poupar esforços para restaurar a antiga grandeza da família. Quando a casa estiver remobiliada e confortável, só lhe faltará uma esposa, para ficar completa. Particularmente, confidencio-lhe que tal hipótese já se aproxima, visto que raras vezes tenho visto um homem tão fascinado por uma mulher, como sir Henry pela nossa encantadora vizinha, a srta. Stapleton. Mas as águas do amor nem sempre são tão mansas e propícias como desejam os namorados, e ainda hoje a sua superfície foi agitada por uma onda inesperada, que deixou o nosso baronete desolado. Depois da nossa combinação acerca de Barrymore, pegou o chapéu para sair e, obviamente, fiz o mesmo, mas vi-o hesitar, confuso. — O senhor também vem, doutor? — Certamente, se pretende ir à charneca. — Bem... é essa a minha intenção... — Lamento me intrometer, sir Henry, mas bem sabe quais são as instruções que recebi de Holmes, a esse respeito. Com um sorriso cordial, pôs-me a mão no ombro e objetou: — Apesar da sua sabedoria, o sr. Holmes não pôde prever certos eventos afetivos que se verificam após a minha chegada... Sei que o
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doutor me compreende e, certamente, não tem vocação para ser desmancha-prazeres... Preciso sair só... Senti-me numa posição embaraçosa e, antes de tomar uma resolução, ele já tinha pegado a bengala e partido em direção à alameda. Censurei-me intimamente por ter cedido àquela solicitação e imaginei como ficaria constrangido, se tivesse de lhe confessar, Holmes, que por minha culpa, sir Henry fora vítima de uma desgraça. Portanto, na esperança de conseguir alcançá-lo, saí prontamente em direção à Merripit Cottage. Segui pela estrada o mais depressa possível até chegar a uma bifurcação na planície, sem vislumbrar sir Henry e, para não errar, subi a uma pequena colina. Logo o avistei, a cerca de trezentos metros, na companhia de uma jovem. Era a srta. Stapleton, com quem ele devia ter marcado esse encontro. Conversavam animadamente e fiquei observando-os, de longe. Não queria ser indiscreto, mas também não podia perdê-lo de vista. Apesar disso, se algum perigo viesse a ameaçá-lo, achava-se muito longe para que eu pudesse socorrê-lo. Mas que mais poderia fazer, dadas as circunstâncias? A certa altura, quando o par estava absorto na sua conversa, verifiquei que não era a única testemunha do encontro. Vi, de relance, uma rede de caçar borboletas, naturalmente segurada por Stapleton, que se achava muito mais perto deles do que eu. Nesse momento, sir Henry puxou a jovem para si, e ela, embora não lhe resistisse, desviou a cabeça, evitando o beijo e olhando para o local onde se achava o irmão. Este correu para ambos, que logo se separaram. Estava colérico, enquanto sir Henry parecia dar-lhe explicações. O naturalista acabou se acalmando um pouco e se afastou com a irmã, deixando o baronete cabisbaixo, aparentemente infeliz. Desci a colina e fui ao seu encontro, achando-o desolado e, ao mesmo tempo, furioso. — Olá, Watson! Como diabo veio parar aqui?... Não me diga que veio atrás de mim... Expliquei-lhe que a minha missão era cuidar da sua segurança e que, embora de longe, assisti a toda a cena. A sua indignação diminuiu e, perante a minha franqueza, acabou rindo.
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— Julguei que, neste ermo, pudéssemos encontrar uma certa privacidade, mas parece que toda a região presenciou o meu namoro. Que lugar reservou para o espetáculo? — Estava lá adiante, naquela colina. — Na “galeria”, hem?... Pois o irmão estava bem à frente, na “platéia”! Viu-o correr para nós? Não ficou com a impressão de que o sujeito é doido? — É possível. — Eu o julgava um homem normal, mas a partir de hoje creio que estaria melhor enfiado numa camisa-de-força! Você já me conhece, Watson, há algumas semanas. Com franqueza, acha que tenho algum defeito que me impeça de vir a ser um bom marido para a mulher que amar? — Claro que não. — Nesse caso, o que ele tem contra mim? Nunca fiz mal, fosse a quem fosse, mas o sujeito não quer que eu me aproxime da irmã dele. É verdade que só a conheço há pouco tempo, mas os olhos daquela mulher e tudo o mais que vejo nela me enfeitiçaram. Concordou alegremente em se encontrar comigo, mas não me deixou falar de amor, pois parece obcecada em me mandar embora, para longe daqui. A certa altura, tive oportunidade de desabafar e a pedi em casamento. Ora, foi nesse preciso momento que o irmão entrou em cena, pálido de raiva, como um louco furioso. Afiancei-lhe ter a intenção de pedir a mão da srta. Stapleton, caso ela me aceitasse para marido, mas isso não melhorou muito a situação e, como você presenciou, pegou-lhe um braço e levou-a com inesperada estupidez. Você consegue entender uma atitude destas, Watson? Confessei-me perplexo. A fortuna, o título, a juventude, o aspecto atraente e a boa índole de sir Henry só abonavam em seu favor. Era incompreensível que Stapleton se opusesse ao namoro do baronete com a irmã, sobretudo depois da proposta de casamento. Contudo, nessa tarde, o homem apareceu no solar para se desculpar da sua grosseria e, após uma longa conversa particular com sir Henry, acabou por nos convidar para jantar na Merripit Cottage, na próxima semana.
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— Deu-lhe alguma explicação válida para o seu estranho procedimento? — sondei. — Sim, mas continuo pensando que não regula bem. Disse que a irmã é tudo quanto possui na vida e lhe parece insuportável a idéia de poder vir a se separar dela. Compreende que os seus sentimentos são realmente egoístas e reconhece que se comportou vergonhosamente. A certa altura, concedeu: — Se tiver de perdê-la, ao menos que a deixe confiada aos cuidados de um vizinho, como sir Henry. Mas foi um golpe terrível para mim e preciso de algum tempo para me habituar à idéia de uma separação. Entretanto, durante três meses, consentirei que cultive a amizade de minha irmã, mas não em termos amorosos. Como vê, meu caro Holmes, um dos mistérios deste lamaçal em que patinhamos já está esclarecido. Passo agora a esclarecer outra ponta da meada, que também desenredei eficientemente, pelo que creio merecer o seu aplauso. Refiro-me aos soluços de mulher e às deslocações noturnas de Barrymore à janela que dá para o pântano. Esclarecemos esse outro mistério, numa noite, ou melhor, em duas, embora a primeira fosse improdutiva, pois fiquei no quarto de sir Henry, até as três da manhã, sem que nada acontecesse... e acabamos adormecendo nas poltronas. Na noite seguinte, ficamos fumando na penumbra, com o mesmo interesse de um caçador à espera de que a presa caia na armadilha. A certa altura, quando já começávamos a ficar desiludidos, ouvimos passos furtivos no corredor. O baronete abriu suavemente a porta e saímos, silenciosos, em perseguição de Barrymore, que voltou a entrar no quarto vazio da ala oeste. Apesar de avançarmos descalços, o sobrado rangia, parecendo-nos impossível que o mordomo não percebesse a nossa aproximação. Acabamos por surpreendê-lo, agachado junto da janela, com a vela acesa na mão, tal como eu o já o vira anteriormente. Não tínhamos combinado qualquer plano de ação, mas o baronete é um jovem com iniciativa e avançou pelo quarto adentro, de maneira que Barrymore deu um salto de espanto e virou-se para nós, branco como a cal e com a respiração ofegante.
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— Que está fazendo aqui, Barrymore? — inquiriu sir Henry. — Na...da senhor! — titubeou, e a sua agitação era tão forte que mal conseguia articular as palavras. — Fui apenas... veri... verificar se a janela estava bem fechada... Faço... faço isso todas as noites... — Em todas as janelas deste segundo piso... tão alto? — Bem... Verifico sempre todas as janelas. Receio que... — Ouça, Barrymore — cortou sir Henry, severamente —, sabemos que está mentindo. Conte-nos já o que costuma vir olhar desta janela. O mordomo ficou desarmado e aflito. — Não me pergunte, senhor. Juro a Vossa Senhoria que este segredo não me pertence e não poderei divulgá-lo. Decidi então intervir e, pegando a vela que Barrymore deixou no peitoril, comecei a fazer com ela sinais para fora. Para lá do negrume do denso copado das árvores, avistava-se o pântano, mais claro, banhado pelo luar que rompia as nuvens. Então, avistei uma pequena luz amarela, na zona plana, a distância. — Lá está! — gritei. — Não! Não é nada!... — lamuriou o mordomo. — Veja, Watson! A outra luz também se move, em resposta ao seu sinal. E virando-se para Barrymore: — Então, seu miserável, ainda o nega? Vamos, fale! Que conspiração é esta e quem é o seu cúmplice? A expressão do mordomo se alterou, tornando-se desafiadora. — Nada tenho a dizer! Este assunto só a mim diz respeito. — Nesse caso, sairá imediatamente desta casa. — Muito bem, senhor. Se essa é a vontade de Vossa Senhoria, paciência! Só resta me conformar! — Devia ter vergonha, Barrymore! A sua família tem vivido com a minha há mais de cem anos, sob este teto, e o senhor atreve-se a conspirar contra mim! — Não! Nunca contra Vossa Senhoria! Não foi o mordomo, mas uma voz feminina que pronunciou esta frase.
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Na porta, via-se a pesada figura da sra. Barrymore, de saia e lenço, intensamente emocionada. — Temos de partir, Elisa — avisou o marido. — É o fim... Pode ir arrumar as nossas coisas. — Oh, John, John! A culpa foi minha! Sou a culpada de tudo, sir Henry! O John só se comprometeu por minha causa, porque eu pedi. — Então fale. Que significa tudo isto? — O meu irmão está morrendo de fome, no pântano. Não podemos deixá-lo acabar dessa maneira, praticamente à nossa porta! Os sinais da vela indicam que ele pode dirigir-se a um local combinado, para recolher a comida que John lhe leva. — Quer dizer que o seu irmão é o... — ...o preso que se evadiu, senhor. É Selden, o criminoso. — É a verdade — confirmou o mordomo —, mas o segredo não era meu e, por isso, me recusava a contá-lo... Mas, como vê, nunca conspirei contra Vossa Senhoria. Era aquela a explicação das expedições furtivas de Barrymore. Olhamos para a mulher, atônitos, pois custava a crer que o mais célebre assassino do país tivesse o mesmo sangue que aquela respeitável mulher. — O meu sobrenome de solteira é Selden — declarou esta. — Ele é o meu irmão mais novo, que foi muito mimado e se convenceu de que podia fazer tudo o que quisesse. Começou a andar com más companhias, arrastou o nosso nome para a lama, e, dessa maneira, contribuiu para a morte de nossa mãe. Tornou-se um criminoso, mas para mim nunca deixou de ser o irmãozinho de caracóis, de quem cuidei quando era pequeno. Deus permitiu que ele escapasse da forca e que fugisse da prisão. Uma noite, arrastou-se até aqui, morto de fome, suplicando-me que o auxiliasse, pois encontrava-se escondido no pântano... Então, pedi a John que me ajudasse... que lhe levasse, sempre que possível, um pouco da nossa comida. Notava-se, pelo tom ardente da mulher, que estava sendo sincera. — Isto é verdade, Barrymore — inquiriu sir Henry. — Sim, senhor.
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— Bem... Não posso censurar a decisão de ter ajudado sua mulher e respeitado um tão dramático segredo. Esqueça o que eu disse e vão ambos para o seu quarto. Amanhã decidirei o que devemos fazer. Depois de eles saírem, olhamos pela janela que sir Henry abrira, deixando penetrar o vento frio da noite. O ponto de luz amarela continuava a brilhar no pântano. — Não sei como esse homem tem coragem... — observou o baronete. — A que distância calcula você que ele se encontre? — Creio que perto de Cleft Tor. — Nesse caso, está a mais de dois quilômetros. — Talvez menos... — Que diabos, Watson, vou até lá capturá-lo... Essa idéia também me ocorreu, já que aquele bandido em liberdade era um perigo para a comunidade. Teria de voltar para a prisão. O seu temperamento brutal podia levá-lo a assassinar mais alguém e a assaltar a casa de qualquer um dos nossos vizinhos... Certamente, sir Henry, ao propôr-se prendê-lo, pensava no terrível perigo que ameaçava Beryl Stapleton. — Vou com o senhor — decidi. — Nesse caso, vá buscar o seu revólver e calce as botas de campo. Não podemos nos demorar, caso contrário, ele apagará a vela e se esconderá nas trevas. Cinco minutos mais tarde, atravessávamos as moitas, por entre as folhas que o vento fazia cair, nessa noite fria de outono, que cheirava a umidade e a plantas putrefatas. A lua só de vez em quando rompia as nuvens e um nevoeiro gelado começara a se formar. — Também está armado? — indaguei. — Trago esta arma de caça — disse sir Henry, fustigando o ar com ela. — Temos de saltar em cima dele, de surpresa, pois consta que é um tipo extremamente violento. Devemos acabar logo com qualquer resistência. — Certamente, Watson... Que diria o sr. Holmes, se soubesse desta expedição, “às horas em que os poderes do Mal andam exaltados”?
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Mal acabara de pronunciar esta pergunta irônica, ergueu-se no meio da planície, como que em resposta, o uivo horrível que eu já tinha ouvido à beira do pântano de Grimpen. — Santo Deus! — espantou-se o baronete. — Que diabo é aquilo, Watson? — Não sei ao certo. Já o ouvi uma vez... — Foi um uivo de lobo... ou de cão... Senti um arrepio, pois o tom de voz do baronete denunciava terror. — Que pensam os habitantes da região, quando ouvem este urro pavoroso? — Pouco importa o que pensam... São gente ignorante... — Que dizem eles, Watson? Hesitei mas não quis mentir. — Que é o uivo do cão de Baskerville. — De onde vem esse som? — Creio que do atoleiro de Grimpen. Estava com Stapleton, da primeira vez que o ouvi, mas ele o atribuiu a uma ave pernalta, o algarvão. — Pois eu estou certo de se tratar do uivo de um cão. Veja, Watson! Não sou um covarde, mas repare como minhs mãos se gelaram. Estou pensando na morte de meu tio e nas pegadas do cão, perto do cadáver... — Não acha melhor regressarmos ao solar? — sugeri. — Não, diabos! Viemos aqui para caçar um assassino. Mesmo que esse cão do inferno venha atrás de nós, temos o dever de ir diante. Prosseguimos lentamente, tropeçando, sempre com a luz amarela na nossa frente. Por fim nos aproximamos o suficiente para vermos uma vela, protegida do vento, entre duas rochas. Um penedo ocultava a nossa aproximação. — Ele deve estar perto da vela. Tentemos descobri-lo. Mal eu pronunciara estas palavras, vimos o fugitivo abrigado numa fenda de um rochedo, sujo de lama, com a barba e os cabelos imundos, num rosto diabólico, quase animalesco, de homem animado pelas mais vis paixões. Olhava ferozmente para um e outro lado, como uma fera acossada que pressentisse os passos do caçador.
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Algo lhe havia despertado suspeitas: talvez o fato de não termos feito qualquer sinal convencionado entre ele e Barrymore. Antes que fugisse, lancei-me para a frente, logo imitado por sir Henry, mas o assassino blasfemou e atirou-nos uma pedra, que felizmente foi bater na rocha que momentos antes nos ocultava. De relance, vi o seu vulto, atarracado e forte, fugir encurvado. Corremos atrás dele, mas saltava entre as pedras como um cabrito montês. Era tão ágil que, em breve, a distância que o separava de nós aumentou consideravelmente. Talvez eu o tivesse atingido com um tiro, mas me repugnava disparar contra um homem desarmado. Depressa compreendemos que, apesar de bons corredores, nunca conseguiríamos alcançá-lo. Já sem fôlego, paramos e sentamos sobre duas pedras, vendo-o desaparecer na noite. Nesse momento, sucedeu uma coisa estranha e inesperada. Quando nos preparávamos para regressar ao solar, avistei sobre um penhasco, recortado em silhueta no circo prateado da lua, o vulto negro de um homem que me pareceu muito alto e magro. Pode crer, Holmes, que não se tratou de ilusão ótica. Tinha as pernas ligeiramente afastadas, os braços cruzados e a cabeça baixa, como que pensativo. Parecia o espírito daquele lugar pavoroso. Decerto não podia ser Selden, que já estava muito longe. Apontei o vulto a sir Henry, mas ele logo se desvaneceu nas trevas. Sir Henry não chegou a ver e limitou-se a observar: — Deve ser um dos guardas que andam por aí em busca do evadido. Talvez a explicação fosse essa, mas gostaria de ter verificado o fato. Hoje, pretendemos comunicar à diretoria da penitenciária de Princetown a ocorrência que relatei, porém lamento não ter podido prender Selden. Talvez, meu caro Holmes, muito do que lhe tenho contado não tenha a menor importância, mas você me encarregou de transmitirlhe todos os pormenores das nossas ações... e cabe a você selecionálos. Não há dúvida de que já fizemos alguns progressos, ao desvendarmos o segredo do casal Barrymore. É possível que o meu próximo relatório contribua para esclarecer o, até agora, inescrutável mistério do pântano. Contudo, bem melhor seria que o meu amigo pudesse vir para junto de nós.
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CAPÍTULO 10 – EXTRATO DO DIÁRIO DO DR. WATSON
A
té agora, tenho relatado os fatos, baseado nos relatórios que enviei a Sherlock Holmes, mas cheguei a uma fase da narrativa em que me vejo forçado a abandonar este método e a passar ao diário que, nessa altura, tive o cuidado de redigir. Prosseguirei, portanto, a partir da manhã seguinte à nossa fracassada caçada ao criminoso. 16 de outubro Dia feio e nublado. O solar está cercado de nuvens que, de vez em quando, se esfiapam e entreabrem para nos mostrar as lúgubres curvas do pântano, os riachos como veias de prata serpeando nas encostas e as rochas polidas e molhadas que brilham à luz do sol. Um sentimento de melancolia reina, tanto no exterior como dentro de casa. Desde ontem que o baronete se mostra sombrio e eu pressinto um perigo que não sei definir, mas para o qual contribui grandemente o uivo pavoroso que já tive ocasião de ouvir, por duas vezes. Não acredito que se trate de um fenômeno sobrenatural, pois não é admissível que um cão fantasma deixe vestígios materiais, como pegadas, e solte uivos atroando os ares. O meu bom senso me impede de acreditar nessa fantasia, embora tanto Stapleton como o próprio Mortimer se mostrem inclinados a admiti-la, como quaisquer camponeses incultos que chegam a descrever o cão diabólico expelindo fogo pela boca e pelos olhos. Holmes não acreditaria em tal tolice, eu concordo com seu raciocínio positivista. Contudo, não posso negar o fato de ter ouvido o horrível uivo, o que me leva a supor que anda por aí um cão enorme, no pântano. Mas de que se alimenta e por que motivo só é visto de noite? Além do cão, deparamos com o fator humano: o homem da barba que, em Londres, seguiu de coche sir Henry e Mortimer. E vimos uma carta, que tanto podia ter sido enviada, como aviso, por um amigo quanto por um inimigo. Neste último caso, onde é que ele está? Em Londres... ou seria o homem cujo estranho vulto vi ontem, sobre o penhasco, no pântano?
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Apenas o vi de relance, mas fiquei com a impressão de que era mais alto do que Stapleton e mais magro do que Frankland. Quanto a Barrymore, o tínhamos deixado no solar e, com certeza, não teria corrido atrás de nós. Se há realmente alguém que nos persegue desde Londres, devo dedicar todas as minhas faculdades a descobri-lo e a pegá-lo. Estive para contar esta minha decisão a sir Henry, mas achei melhor agir sozinho, já que o vejo silencioso e distraído. O caso de a srta. Stapleton afligiu-o e o uivo que ouviu no pântano deve ter lhe perturbado os nervos. Portanto, para não aumentar as suas preocupações, tentarei alcançar sozinho o meu objetivo. Hoje, depois do café matinal, Barrymore pediu para falar com sir Henry e, durante algum tempo, estiveram fechados no escritório. Do salão de bilhar, onde me sentei, ouvi vozes, por vezes num tom exaltado, e quando o baronete abriu a porta, comunicou-me: — Barrymore considera injusto perseguirmos Selden, já que foi ele quem, confiadamente, nos contou o segredo. De pé, diante de nós e muito pálido, o mordomo articulou: — Peço desculpas... a Vossa Senhoria, pois receio ter-me excedido... Mas a verdade é que, quando vi os senhores voltando de madrugada, compreendi que tinham ido atrás de Selden. Ora, o desgraçado já tem sofrido muito e muito terá que sofrer, sem que seja necessário sair em seu encalço mais gente com quem lutar. — Se você nos tivesse contado os fatos espontaneamente, o caso seria diferente, mas a verdade é que foi sua mulher quem se viu forçada a nos pôr a par do que se passava, quando ameacei despedilos. — Mas não pensamos que Vossa Senhoria fosse se aproveitar da nossa confissão para... — ... cumprir com a minha obrigação. Esse homem é uma ameaça pública e não se deterá perante coisa alguma... Ora, há casas isoladas, nesta região... Por exemplo, a Merripit Cottage, onde apenas o sr. Stapleton poderá defender a irmã... e nem sempre está lá para protegê-la. Enquanto o seu cunhado não for preso, ninguém estará seguro...
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— Ele não assaltará casa alguma, nesta região. Posso lhe garantir, senhor, que dentro de poucos dias tudo estará pronto para que ele siga para a América do Sul. A polícia já desistiu das buscas no pântano. Por isso, suplico a Vossa Senhoria que não ponha os guardas no seu encalço. Deixem-no sossegado até poder embarcar. Se for denunciado, minha mulher também fica comprometida... e difamada. Suplico-lhe, senhor, que nada transmita à polícia. — Qual é a sua opinião, Watson? Encolhi os ombros. — Se ele sair do país, será um alívio para quem paga impostos — respondi. — Mas e se ele, antes de partir, decidir assaltar mais alguém? O mordomo interveio, esforçando-se por manter-se calmo: — Selden nunca faria uma coisa dessas, senhor! Já lhe fornecemos tudo de que precisa. Se cometesse agora um crime, denunciaria o seu esconderijo e estaria perdido! — Isso parece-me lógico. Muito bem, Barrymore... — Deus o abençoe, senhor! Minha mulher morreria de desgosto, se ele voltasse a ser preso... por nossa culpa. — Que me diz, Watson? Ficamos na situação de cúmplices de um criminoso! Porém, depois do que ouvi... Muito bem, Barrymore, pode se retirar. O mordomo agradeceu e ia saindo, mas após uma breve hesitação declarou: — Vossa Senhoria tem sido tão generoso para conosco, que gostaria de poder retribuir de qualquer modo... Sei de um fato que não relatei a ninguém... e do qual só tive conhecimento depois do inquérito... Trata-se ainda da morte de sir Charles... O baronete e eu ficamos de pé. — Sabe como ele morreu? — Isso não sei, senhor. — Então, que sabe a esse respeito? — Soube que sir Charles, àquela hora, se dirigia para junto do portão a fim de se encontrar com uma mulher.
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— Com uma mulher?... O meu tio? — Sim, senhor. — Que mulher? — Desconheço o nome, senhor, mas sei que as suas iniciais são L. L. — Como descobriu isso? — Sir Charles recebia muitas cartas, pois, sendo um homem influente e generoso, muita gente o procurava para pedir auxílio. Nessa manhã, só tinha vindo uma carta. Fora expedida de Coombe Tracy, e o endereço fora redigido com uma grafia tipicamente feminina. Isso chamou minha atenção... — Diga o resto, Barrymore. Por que motivo essa grafia lhe despertou a atenção? — Porque, no dia seguinte ao inquérito, ao limpar o escritório, minha mulher encontrou cinzas de uma carta no fundo da lareira. Estava praticamente queimada, exceto uma extremidade em que ainda se podia ler... talvez em post-scriptum: “Por favor, se for um verdadeiro cavalheiro, queime esta carta e esteja junto do portão, às dez horas. Logo abaixo, figuravam as iniciais ‘L.L.’.” — Guardou esse pedaço de papel? — Não, senhor, porque, como estava meio carbonizado, logo se desfez ao ser manuseado. — E o meu tio recebeu outras cartas com a mesma grafia? — Nunca prestei muita atenção à correspondência de sir Charles. Só reparei nessa carta por ser a única que ele recebeu na manhã da tragédia. — E não faz idéia de quem seja essa senhora que se assina “L.L.”? — Não, senhor, mas, se conseguíssemos descobri-la, talvez pudéssemos elucidar mais alguma coisa acerca da morte de sir Charles. — Não compreendo, Barrymore, por que motivo me ocultou esse fato! — censurou sir Henry. — Porque, tanto minha mulher como eu gostávamos muito de sir Charles e não pensamos que fosse conveniente desenterrar um assunto, talvez muito pessoal, que de resto, não poderia ressuscitálo. Tratava-se de uma senhora envolvida no caso...
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— Receou prejudicar a reputação do seu falecido patrão? — Bem, naquela altura, pensei que não haveria vantagem em revelar esse assunto... mas como o senhor tem sido tão bom para nós... achei que talvez tivesse interesse em estar a par desse fato... — Muito bem, Barrymore, pode se retirar. Depois de o mordomo sair, sir Henry me consultou: — Que pensa, Watson, deste novo aspecto do caso? — Que ainda o torna mais obscuro. — Sim... mas se descobríssemos quem é esta “L. L.”, talvez alguma coisa mais se esclarecesse... Que devemos fazer? — Contar o fato a Holmes, imediatamente. Se considerar esta carta uma pista digna de interesse, talvez se decida a aparecer por aqui — vaticinei. Fui para o meu quarto e incluí esta nova pista no meu relatório para Holmes. Este devia andar muito ocupado, visto que os seus bilhetes da Baker Street eram brevíssimos e raros, sem o mínimo comentário às informações que eu enviava. Provavelmente, o caso da chantagem continuava lhe absorvendo todo o tempo, mas tinha uma esperança de que este novo fator lhe renovasse o interesse por Baskerville, e eu bem desejava que ele estivesse lá. 17 de outubro A chuva continuou a cair, durante todo o dia, escorrendo pelas goteiras e fazendo sussurrar a hera da fachada. Pensei no fugitivo, escondido no pântano, e naquele outro vulto que, à contraluz da lua, tanto me impressionou. Estaria também, sob o dilúvio, esse incógnito vigilante das sombras? À tarde, vesti uma capa e fui à charneca, com a chuva batendo no meu rosto e o vento a zunir-me nos ouvidos. Que Deus ajudasse os que andavam pelo grande pântano de Grimpen, naquela altura em que a própria terra firme se transformava num imenso charco! Subi o penhasco negro onde, duas noites antes, avistei o vulto solitário e dali lancei o olhar pela planície desoladora. A chuva, em rajadas, varria a superfície da terra avermelhada, e nuvens muito
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baixas pairavam sobre as encostas dos montes. À minha esquerda, no vale distante, erguiam-se, acima do arvoredo as estreitas torres do solar de Baskerville. Eram os únicos sinais visíveis de vida humana, além das casinhas da aldeia pré-histórica e, em parte alguma, encontrei vestígios do observador solitário. No meu regresso, deparei com o dr. Mortimer, cujo coche acabava de sair da estrada de Foulmire Farm. Mortimer, que tem sido muito atencioso conosco, visitando o solar diariamente, insistiu em me trazer aqui. Estava preocupado com o seu cão que foi para o pântano e nunca mais voltou. Tentei animá-lo, embora me lembrasse do potro que vi ser tragado pelo lodo movediço de Grimpen. Para mudar de conversa, sondei: — Praticamente, Mortimer, você conhece quase toda a gente das redondezas, não é verdade? — Creio que conheço todos os habitantes. — Sabe, porventura, se há alguma mulher cujas iniciais sejam “L.L.”? Após refletir alguns segundos, respondeu negativamente e acrescentou: — Evidentemente, há por aí alguns ciganos que desconheço... mas, entre os fazendeiros e aldeões, ninguém tem essas iniciais... Fez uma pausa e reconsiderou: — A não ser que se trate de Laura Lyons, mas essa não é daqui, pois reside em Coombe Tracy. — Quem é essa senhora? — indaguei, dissimulando o meu entusiasmo. — É a filha de Frankland. — Do maluco por demandas jurídicas? — Exatamente. A jovem se casou com um artista francês, Lyons, que veio pintar no pântano. Mas o sujeito era um lunático e a abandonou. Segundo consta, não foi o único culpado, porque o pai, furioso por eles terem se casado sem o seu consentimento, cortou relações com a filha. A pobre moça tem sofrido bastante... — De que vive ela?
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— Creio que o velho lhe dá alguma coisa, mas deve ser uma ninharia, visto que está em má situação financeira, devido aos gastos com os tribunais. Várias pessoas têm tentado ajudá-la a ganhar a vida honestamente. Stapleton e sir Charles apoiaram-na muito e eu também contribuí... Laura abriu um pequeno escritório de datilografia... Como era de esperar, Mortimer quis saber o motivo do meu interesse, mas não me abri muito. Amanhã de manhã, irei a Coombe Tracy e tentarei falar com essa Laura Lyons. Parece que adquiri alguma astúcia, visto que, quando Mortimer me fez algumas perguntas indiscretas, me lembrei de perguntar de que tipo era o crânio de Frankland. Desta maneira, durante o resto do percurso até o solar, só falou de craniologia. Bem se vê que tenho convivido com Sherlock Holmes! Neste dia, moroso e melancólico, só tenho outro incidente a mencionar: a minha recente conversa com Barrymore, que me forneceu um novo trunfo a jogar oportunamente. Depois do jantar, Mortimer e sir Henry decidiram jogar o écarté (2). Fiquei sozinho na biblioteca, onde o mordomo me trouxe o café e aproveitei para fazer algumas perguntas. — O seu cunhado já partiu ou continua a vaguear pelo pântano? — Não sei, senhor, mas espero que já tenha partido, pois só nos causou aflições. Há três dias que não tenho notícias dele. — Esteve com ele, nessa ocasião? — Não estive, mas a comida desaparecia do lugar habitual. — Nesse caso, ainda deve andar por lá. — É possível, a menos que outra pessoa tenha levado a comida... Fiquei suspenso, com a chávena a caminho da boca, e fitei Barrymore atentamente. — Outra pessoa?... Sabe que há um outro homem vagueando pelo pântano? — Sim, senhor. — Você o viu?
(2)
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jogo entre dois parceiros, com 32 cartas.
— Não, senhor, mas Selden me falou dele. Também anda escondido, mas não é um fugitivo da penitenciária. Confesso, dr. Watson, que não estou gostando destas ocorrências... — São realmente estranhas, e o meu interesse no caso reflete apenas os interesses do seu patrão. Diga-me, francamente, Barrymore, que mais o preocupa? Barrymore hesitou, quer porque estivesse arrependido do seu impulso para um tal desabafo, quer porque tivesse dificuldade em se exprimir. — Aquelas idas e vindas do desconhecido... Receio que esse homem esteja projetando qualquer coisa contra o meu patrão que, certamente, estaria mais protegido em Londres do que aqui. — Mas por que se alarma dessa maneira? — Apesar das conclusões do delegado da Justiça, acerca da morte de sir Charles, a verdade é que a origem da tragédia não ficou esclarecida... Os uivos diabólicos que ecoam no pântano fazem com que já ninguém ouse penetrar nela de noite nem que lhe paguem. Esse homem, que anda por lá, deve constituir uma ameaça para sir Henry... para Baskerville... e creio que me sentirei aliviado no dia em que outros criados vierem nos substituir, a mim e a minha mulher, no serviço do solar. — Que disse Selden a respeito desse desconhecido que viu escondido no pântano? — Selden é um homem avesso a prestar informações, pois é muito reservado. Limitou-se a dizer que o viu, duas ou três vezes, e que não se tratava de um rústico, ou foragido da Justiça, mas de um cavaleiro, muito ágil e ginasticado, alto, magro e trajado adequadamente para andar no campo e se proteger da intempérie. — Onde é que ele se abriga? — Numa das casas daqueles homens antigos. — Como consegue se alimentar? — Há um rapaz que lhe leva comida, numa espécie de bornal. Parece que, às vezes, se desloca a Coombe Tracy, ou, pelo menos, parte nessa direção. — Está bem, Barrymore. Talvez em outra ocasião voltemos a falar neste assunto.
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Depois de o mordomo sair, contemplei pela janela as nuvens deslizando velozmente e o vento sacudindo a ramaria do parque. Se a noite já era ameaçadora para um ser humano abrigado numa casa, como se sentiriam aqueles dois homens que se ocultavam naquele local tenebroso de penedos e pântanos? Que ódio poderia mover alguém a encarar um tempo tão agreste, só para vigiar o solar, e qual seria o seu misterioso objetivo? Estou realmente decidido, antes que termine o dia de amanhã, a explorar o coração do pântano, em busca de uma explicação.
CAPÍTULO 11 – O HOMEM NO PENHASCO
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texto anterior ao meu diário abrangeu o período que antecedeu o dia 18 de outubro, data em que os estranhos acontecimentos começaram a convergir para o terrível desenlace. De tal maneira esses incidentes se gravaram na minha memória, que poderei relatá-los, sem recorrer a quaisquer notas. No dia seguinte, verificaram-se dois fatos de primordial importância: Laura Lyons realmente havia escrito uma carta, marcando um encontro com sir Charles no lugar e hora em que ele morreu, e não havia dúvida de que um desconhecido se escondia na aldeia neolítica do pântano. Na noite anterior, não tive oportunidade de contar ao baronete o que Barrymore me comunicou sobre Laura Lyons, porque Mortimer permaneceu até tarde jogando o écarté com ele. Mas, durante o café da manhã seguinte, informei-o dessa ocorrência e lhe perguntei se estaria interessado em me acompanhar a Coombe Tracy. A sua primeira reação foi vir comigo; contudo, depois de refletirmos, concluímos que talvez eu obtivesse melhores resultados se fosse sozinho visitar Laura Lyons. Ao chegar a Coombe Tracy, desci da carruagem e mandei Perkins dar descanso aos cavalos. Não tive dificuldade em encontrar a residência da filha de Frankland, bem no centro da aldeia. Quando entrei na sala de recepção, deparei com uma senhora sentada diante de uma máquina de escrever. Levantou-se, animadamente, para dar-me as boasvindas, como se eu fosse um presumível cliente ou alguém já seu conhecido. Ao notar que eu era um estranho, sua expressão sombreou-se e perguntou qual era o motivo da minha visita.
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Era uma mulher realmente bela, de cabelo castanho e pele morena a que pequeninas sardas não deixavam de dar certa graça; os seus lábios eram sensuais, mas, observando-a bem, notei que por vezes contraía-os numa expressão de dureza que correspondia à agudez do seu olhar. Ao encará-la, apreciando sua indiscutível beleza, ainda não tinha me dado conta da dificuldade da minha missão. Depois de me apresentar, preambulei: — Tenho o prazer de conhecer seu pai — mas logo compreendi ter optado por uma introdução desastrosa. — Entre mim e meu pai nada existe de comum — replicou duramente. — Nada lhe devo e não tenho motivo para considerar meus amigos aqueles que invocam a amizade. Se não fosse o generoso auxílio do falecido sir Charles Baskerville e de mais alguns nobres corações, raros, eu teria morrido de fome, sem que isso pudesse perturbar o egoísmo de meu pai. — Bem... Não vim falar-lhe de seu pai, mas de sir Charles. — Que quer que lhe diga a seu respeito? — indagou, tateando nervosamente as teclas da máquina, mas sem as apertar. — Conhecia-o bem, não é verdade, minha senhora? — Sim. Repito que apenas sobrevivi graças à sua generosidade. — Correspondia-se com ele? — Não compreendo o objetivo das suas perguntas... — retorquiu, asperamente. — Procuro evitar um escândalo, minha senhora. Laura Lyons empalideceu, e seus olhos exprimiram desafio. — Que mais perguntas tem a me fazer? — Desejava que me confirmasse ter-lhe escrito uma carta... — Sim, escrevi-lhe algumas vezes. — Lembra-se em que datas lhe escreveu? — Já não me recordo. — Encontrou-se com ele em algum lugar? — Sim, aqui, em Coombe Tracy, quando teve a bondade de me visitar, mas generosamente preferia fazer o bem discretamente, evitando mostrar-se... — Como ele tomou conhecimento dos seus problemas, minha senhora, se tão pouco se viam e se tão raramente lhe escrevia?
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— O sr. Stapleton teve a atenção de lhe contar a minha triste situação financeira. — E, então, minha senhora, escreveu um bilhete a sir Charles, marcando um encontro na alameda dos teixos? Corou, encolerizada. — É uma pergunta impertinente, senhor! — Talvez, minha senhora, mas as circunstâncias me forçam a insistir. — Nesse caso a minha resposta é não! — Receio que a sua memória esteja lhe traindo, minha senhora — persisti. — Posso mesmo citar um trecho dessa carta: Por favor, se for realmente um cavalheiro, queime esta carta e esteja junto ao portão, às dez horas. Não foi, mais ou menos, este o teor do final da sua carta? — Vejo que já não existem cavalheiros, neste mundo! — Está sendo injusta para com sir Charles, minha senhora! Ele teve o cuidado de queimar a carta que, contudo, não ficou inteiramente reduzida a cinzas, de maneira que, apesar de praticamente destruída, ainda dela restou um pequeno pedaço, meio carbonizado, mas legível. Confessa que escreveu essa carta? — Sim, escrevi... Então Laura Lyons desabafou, numa torrente de palavras: — ... Escrevi-a e não tenho motivo para me envergonhar. Suplicava-lhe que me ajudasse e pensei que, se pudéssemos conversar pessoalmente, melhor compreenderia a minha situação. Foi por esse motivo que marquei aquele encontro. — Mas por que escolheu aquela hora? — Porque acabava de saber que ele ia partir para Londres, no dia seguinte, talvez por muito tempo... E também porque não foi possível ir falar com ele mais cedo... — Qual o motivo desse impedimento? — É um assunto íntimo que não posso divulgar. — E foi a esse encontro? — Não! Não me foi possível comparecer. Insisti neste ponto, mas não obtive qualquer outra resposta. Então argumentei:
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— Compreende, minha senhora, que se eu solicitar a intervenção da polícia, ficará seriamente comprometida? Se está realmente inocente, por que negou no início ter escrito essa carta a sir Charles? — Receei que alguém chegasse a conclusões errôneas... Não quis me envolver num escândalo. — Por que pediu a sir Charles que queimasse a carta? — Se a leu, deve saber o motivo. — Só li o post-scriptum, de maneira que insisto na pergunta: qual a razão da destruição da carta? Só relutantemente cedeu às minhas insistências e confidenciou: — A minha vida tem sido uma constante perseguição, por parte de meu ex-marido... um homem odioso. A lei britânica está do lado dele, e todos os dias receio que me force a voltar para junto dele. Quando escrevi a sir Charles, tinha a intenção de poder recuperar a minha liberdade, por meio de um divórcio, desde que ele pudesse me auxiliar nas despesas do processo. Pensei que, se sir Charles me escutasse pessoalmente, concordaria em contribuir para que eu reencontrasse alguma tranqüilidade de espírito. — Nesse caso, por que não compareceu à entrevista? — Porque esse auxílio me veio de outra pessoa. — Mas não seria correto, de sua parte, minha senhora, ter escrito a sir Charles explicando a razão do seu não comparecimento? — Não tive oportunidade de fazê-lo, já que no dia seguinte li a notícia da sua morte. A justificação era coerente, e Laura Lyons não caíra em contradição. A única diligência que me restava era verificar se, realmente, ela instaurara um processo de divórcio litigioso, por ocasião da tragédia. Se a sra. Lyons tivesse ido a Baskerville, teria sido obrigada a alugar um coche e não seria possível que regressasse a Coombe Tracy antes da madrugada. Ora, seria impraticável manter um encontro secreto nessas circunstâncias. Tudo indicava que a filha de Frankland falava a verdade e, novamente, a minha missão achou-se perante um obstáculo intransponível. Porém, quanto mais me lembrava da expressão a sra. Lyons, mais me convencia de que ela me escondeu alguma coisa. Por que ficou tão pálida, se recusando a dizer a verdade, antes que eu conseguisse persuadi-la?
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Como não pude progredir nesse sentido, decidir seguir a outra pista que parecia partir das casas neolíticas. Barrymore limitou-se a declarar que o tal desconhecido se escondia numa das ruínas daquele sítio. Ora, havia centenas de casinhas daquele gênero, circulares, espalhadas pelo montes, mas eu já tinha visto o homem no topo de Klake Tor, de maneira que iniciaria por aí minha busca, antes de explorar a aldeia pré-histórica. Se o homem se encontrasse dentro de uma das arcaicas habitações, eu o obrigaria a confessar, nem que fosse sob a ameaça do revólver, por que motivo nos perseguia há tantos dias. Em Londres, na Regent Street, conseguiu fugir de Holmes. Seria, para mim, um belo triunfo desmascarálo, depois de meu mestre ter fracassado. Desde o início a sorte não estava do nosso lado, mas finalmente veio em meu auxílio na pessoa do sr. Frankland, que encontrei junto ao portão do seu jardim que dava para a estrada real, por onde eu ia passando. — Bom dia, dr. Watson! — saudou, com bom humor. — O senhor precisa dar um pouco de descanso aos cavalos. Entre, beba um copo de vinho e venha me felicitar. Desde que eu soube da maneira como ele tratava a filha, antipatizei-me com aquele velho de suíças e cara vermelha, mas era conveniente aproveitar a ocasião para mandar Perkins regressar ao solar com a carruagem. — É o maior dia da minha vida — exultava Frankland. — Consegui matar dois coelhos com uma cajadada, ou melhor, com duas cajadadas! Fiz com que esta gente se capacitasse de que a Lei foi escrita para ser respeitada. Consegui que o caminho através do parque do velho Middleton voltasse a ter serventia pública, ainda que passe a cem metros da porta de sua casa e que as autoridades fechassem o bosque onde essa “malta” de Fernworthy ia “armar” piqueniques, como se a lei da propriedade privada fosse letra morta! Duas causas ganhas, dr. Watson! Nunca tive dia mais feliz na minha vida, desde que apanhei sir John Morland em transgressão, caçando em seu próprio pasto. — Como conseguiu isso? — Consulte o processo, que vale a pena: “Frankland versus Morland — Tribunal da Corte da Rainha”. Período proibido é período proibido, mesmo em terras privadas, pois foi criado para proteção das espécies cinegéticas! Custou-me 200 libras, mas consegui uma sentença a meu favor. — E teve alguma vantagem nessa decisão judicial?
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— Eu?... De maneira alguma. Sinto orgulho em poder afirmar que, como sempre, apenas agi por dever cívico. Não duvido que essa gente de Fernworthy fique danado comigo e torne a queimar a minha imagem. Da outra vez, fiz queixa à polícia do condado, mas os agentes não souberam cobrar essa exibição vergonhosa. Agora, esta nova causa vai chamar a atenção do público para o respeito devido à Lei, e eles acabarão por se arrepender... — Arrepender-se... de quê? — estranhei. O velho fez uma careta malandra. — Porque, se eu quisesse, podia informá-los de uma coisa que andam loucos para saber... Eu já pensava numa maneira de escapar à tagarelice daquele velho que quase se arruinou com a mania dos processos judiciais, mas ainda indaguei: — Refere-se a caçadores furtivos? — Caça mais graúda do que essa, meu amigo. Refiro-me ao assassino que anda no pântano. Sobressaltei-me. — Sabe onde ele está? — Não sei precisamente onde se encontra, mas poderia ajudar a polícia a prendê-lo, pois bastaria seguir quem lhe leva a comida. — Mas, como sabe que lhe levam mantimentos no pântano? — Porque vi o portador, com os meus próprios olhos. — Ah, sim? Como aconteceu isso? — Vejo-o todos os dias, lá do meu telhado, com o telescópio. É um rapazote, dos seus treze a quinze anos, que passa sempre na mesma hora. A quem irá ele levar comida, no pântano, a não ser ao foragido da justiça? Barrymore informou que o desconhecido era servido por um rapaz. Portanto, Frankland estava na pista daquele e não na do assassino. Fingi não acreditar para levá-lo a entrar em pormenores. — E não será simplesmente o filho de um pastor, que leva o almoço ao pai? A menor contradição enfurecia o velho. Fitou-me iradamente e as suas suíças estremeceram. — Que pastor!... Está vendo o Black Tor?... Vê o monte mais adiante? É a parte mais pedregosa do pântano. Acha que um pastor iria levar para lá o seu rebanho? Como vê, a sua sugestão é totalmente absurda!
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Desculpei-me brandamente, alegando não conhecer os fatos, e Frankland se acalmou. Convinha-me induzi-lo a me fazer novas confidências. — E viu esse rapaz várias vezes? — Certamente... duas vezes por dia... Olhe, dr. Watson... Ou os meus olhos me enganam, ou estou vendo alguém se movendo naquela encosta... Venha... — convidou Frankland, correndo pela escada acima. — Vai ver com os seus próprios olhos. Tinha um telescópio formidável instalado sobre um tripé e, depois de regulá-lo na direção devida, soltou um grito de satisfação. — Depressa, dr. Watson. Olhe antes que ele desapareça. Vi, realmente, um garoto com um embrulho nos ombros, subindo lentamente o monte. Ao chegar ao topo, olhou para trás como se receasse ser seguido. — Então? Tinha ou não tinha razão? — exultava o velho. — Bastava uma palavra minha e até um guarda rural o caçaria, mas de mim... compreende, dr. Watson?... nem um “pio”! Trataram-me vergonhosamente!... O quê?... já vai embora, doutor?... Não quer esvaziar uma garrafa para celebrar este grande dia? Eu me despedi e consegui ainda dissuadi-lo de me acompanhar ao solar. Depois de sair e enquanto pensei que os seus olhos me seguissem, continuei ao longo da entrada. Numa curva do caminho, enveredei pelo pântano. O sol morria, quando atingi o topo do monte. Pairava uma tênue neblina sobre a linha do horizonte, onde sobressaíam as formas fantásticas de Belliver e de Vixen Tor. Na planície, tudo estava mudo e quieto. Uma grande ave, talvez uma gaivota, cortou o céu. Parecia que ela e eu éramos os únicos seres vivos naquele cenário deserto. A solidão e a urgência da minha missão me causavam uma sensação de frio na alma. Não via o garoto em parte alguma, mas avistei ao longe uma casinha que conservava um resto de telhado rudimentar, decerto improvisado por um caçador. Alegrei-me, pois devia ser ali que o desconhecido se ocultava. Finalmente, ia desvendar o seu segredo. Aproximei-me cautelosamente e verifiquei que a cabana estava sendo utilizada como habitação, pois a entrada apresentava numerosas pegadas de dias recentes. A porta estava semidestruída pelo tempo. Andaria o
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desconhecido pelo pântano, ou estaria lá dentro à minha espreita. Senti os nervos vibrarem de emoção, joguei fora o cigarro que fumava e apertei firmemente a coronha do revólver. Então, avancei para a porta resolutamente. A casinha estava vazia. Mesmo assim, não segui uma pista falsa, pois encontrei dois cobertores e uma capa de oleado estendidos sobre a laje onde, antigamente, se deitara o homem neolítico. Ainda havia cinzas num fogão rústico. Viam-se utensílios de cozinha, um balde com alguma água e uma pilha de latas de conserva, já vazias. Quando os meus olhos melhor se adaptaram à escuridão, vi ainda, num canto, um copo de metal e uma garrafa de brandy. No meio do recinto, sobre uma espécie de mesa de pedra, achava-se um saco, provavelmente aquele que eu vi nos ombros do rapaz. Revistei-o e encontrei um pão, uma lata com língua em conserva e outras duas de compota de pêssego. No fundo, estava um papel, com qualquer coisa escrita. Sobressaltei-me, ao ler: “O dr. Watson foi a Coombe Tracy”. Com o papel entre os dedos, fiquei meditando no significado de tão curta mensagem. Afinal, o misterioso indivíduo andava me perseguindo... a mim, e não a sir Henry. Mandou um cúmplice, provavelmente o rapaz que eu vira pelo telescópio... e ali estava o seu relatório. Revistei a cabana mais rigorosamente, mas nada descobri de importante a não ser que o seu habitante esporádico tinha hábitos espartanos, abstendose de qualquer conforto. Quando olhei para o teto destroçado, lembrei-me das chuvas e compreendi que o objetivo que o trouxe para aquele local inusitado devia ser, para ele, de uma importância fundamental. Jurei não sair dali antes de desvendar o mistério. Lá fora, o sol poente manchava o céu de ouro e púrpura. Os seus raios oblíquos projetavam sombras nos pontos de Grimpen. Ao longe, avistavam-se as torres do solar de Baskerville. Entre este e a aldeia de Grimpen, que se adivinhava pela fumaça das lareiras, situava-se Merripit Cottage de Jack Stapleton. Tudo à minha volta parecia tranqüilo, mas o meu espírito não compartilhava da paz da natureza sob o dourado crepuscular. Estremeci ao pensar no momento que não tardaria e esperei, sentado a um canto escuro, a chegada do desconhecido. Finalmente, ouvi seus passos: som de calçado sem carda, num andar compassado. Enfiei a mão no bolso, onde tinha o revólver, pronto a disparar se fosse preciso, e me inclinei para a sombra, de maneira a não ser visto, antes de vê-lo entrar.
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Uma pausa mais demorada me indicou que o desconhecido parou diante da casinha. Depois, subitamente, uma sombra obscureceu a entrada. — Uma bela tarde, meu caro Watson! — saudou uma voz muito minha conhecida. — Talvez se sinta mais confortável aqui fora do que aí dentro.
CAPÍTULO 12 – MORTE NO PÂNTANO
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or alguns momentos fiquei com a respiração suspensa, mal podendo acreditar no que ouvia. Depois, senti que o fardo da responsabilidade se aliviou dos meus ombros. Aquela voz fria e incisiva só podia pertencer a um homem: — Holmes! — exclamei, entusiasmado. — Venha e tenha cuidado com esse revólver. Lá estava ele, agora sentado numa pedra, com um brilho divertido nos olhos cinzentos, pousados no meu rosto pasmo. Pareceu-me mais magro e mais queimado do sol. Com o seu terno de fazenda e o seu boné habitual, lembrava um turista em viagem e, graças ao seu amor pela limpeza, estava tão asseado e bem barbeado, como se passeasse em Londres. — Nunca senti maior prazer em ver uma pessoa — exultei. — Nem maior espanto, hem? — Sim, confesso que não esperava vê-lo aqui. — Pois a surpresa não foi só sua, Watson. Nunca imaginei que descobrisse o meu esconderijo, nem que viesse me esperar aqui a não ser quando cheguei a alguns metros da porta. — Viu as minhas pegadas? — Não, meu caro Watson, o chão pedregoso não permitiria reconhecer pegada alguma, mas, se você pretende despistar alguém, precisa mudar de marca de cigarros; encontrei uma ponta de Bradoley da Oxford Street, e isso o denunciou. Deve tê-lo jogado fora, quando decidiu entrar nesta casinha. — Exatamente. — E, como conheço a sua admirável tenacidade, admiti que estivesse emboscado, com o revólver em punho, à espera do ocupante da fortaleza. Pensou, realmente, que eu seria o criminoso? — Bem... Estava decidido a descobrir quem era o ocupante. — Excelente, Watson! Como conseguiu me localizar? Decerto pôde me
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ver, quando vocês dois perseguiram o condenado. Por imprudência, deixei a lua erguer-se atrás de mim... — Sim. Era você, naquela ocasião... — E, depois disso, revistou todos os casebres. — Não, mas viram o seu abastecedor... e eu próprio também avistei o rapaz. Isso me indicou a pista... — Provavelmente, foi o velho com o telescópio inspecionando as redondezas. Quando, pela primeira vez, vi aquela luz brilhando no telhado da casa, não percebi que era uma lente. Holmes espreitou dentro da casa neolítica e entrou. — Vejo que Cartwright trouxe mantimentos... Que bilhete é este?... Quer dizer que você foi a Coombe Tracy? — Fui. — Falar com Laura Lyons? — Exatamente. — Muito bem. Pelo que vejo, a nossa investigação tem ido em linhas paralelas e, quando confrontarmos os resultados, espero desvendar o caso definitivamente. — Alegro-me imensamente por vê-lo aqui, Holmes... Mas, como veio parar aqui e o que anda fazendo? Pensei que ainda estivesse na Baker Street, ocupado no caso da chantagem. — Foi o que pretendi que se pensasse. — O quê, Holmes! Você se utiliza dos meus préstimos, mas não confia na minha pessoa? — espantei-me, desiludido. — Pensei que lhe merecesse maior consideração! — O meu caro amigo, neste caso, teve uma ação de incalculável valor, e peço-lhe que me perdoe se o enganei, mas foi por avaliar o perigo que você corria que apressei a minha vinda. Se eu estivesse junto de você e de sir Henry, o meu ângulo de visão dos problemas seria idêntico ao seu e a minha presença no solar alertaria o nosso poderoso inimigo. Em contrapartida, vindo para cá, pude me movimentar em plena liberdade, constituindo um fator desconhecido com que ele não conta, pronto a atuar no momento crítico. — Mas por que motivo não me comunicou esse segredo? — Nada adiantaria que você conhecesse o meu plano, e poderia prejudicá-
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lo, se porventura se lembrasse de querer comunicar-se comigo ou trazer algo para o meu conforto. Você está sob vigilância do nosso inimigo, não esqueça! Correríamos um risco desnecessário. Por isso, preferi trazer comigo o rapaz que trabalha no Express, lembra-se? O jovem Cartwright tem cuidado das minhas simples exigências: um bocado de pão e um colarinho lavado. De que mais precisa um homem? Além disso, me auxiliou com mais um par de olhos e umas pernas ligeiras. — Quer dizer que os meus relatórios têm sido inúteis? Holmes tirou do bolso um maço de papéis. — Aqui os tem, meu caro amigo, e bem manuseados. Foram-me utilíssimos e devo felicitá-lo pela sua inteligência e pelo zelo demonstrado num caso tão complexo. Eu ainda me sentia magoado, mas o elogio de Holmes suavizou o meu despeito, tanto mais que reconhecia que ele tinha razão. — Agora, Watson, queira me contar como foi a sua visita a Laura Lyons. Já esperava que fosse entrevistá-la, pois é a única pessoa que pode nos interessar, em Coombe Tracy. Se você não tivesse ido lá hoje, eu a visitaria amanhã. O sol já havia se escondido, e as sombras invadiam a planície. Entramos na casinha para nos abrigarmos, e ali sentados, ao lusco-fusco, narrei a conversa que tive com a sra. Lyons. Quando terminei, Holmes apreciou: — Foi uma investigação muito importante. Eliminou uma lacuna que eu ainda não consegui preencher. Provavelmente, já sabe que existe uma grande intimidade entre essa senhora e Stapleton... — Não, não sabia disso. — Encontram-se e escrevem-se com freqüência. Parece que existe um entendimento afetivo entre eles. Talvez isso constitua uma arma para eu poder afastar a mulher dele. — Mulher dele? Stapleton é casado? — Em troca das informações que me deu, Watson, dou-lhe esta, que para sua reação surpreendeu-o: a jovem que tem se passado por irmã de Stapleton é, na realidade, sua mulher. — Santo Deus, Holmes! Tem certeza disso? Como é que Stapleton permitiu que sir Henry se apaixonasse por ela? — A paixão de sir Henry só poderia prejudicá-lo, visto que Stapleton
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teve o cuidado de proibir que falassem de amor. Posso garantir que a jovem é mulher dele e não sua irmã. — Nesse caso, com que intenção o homem forjou essa fraude? — Porque, para atrair o baronete, teve de apresentá-la como se ela ainda fosse livre. — Então, foi ele quem nos perseguiu, em Londres? — É assim que interpreto o enigma. — Portanto, o aviso dirigido a sir Henry partiu dela e não dele? — Exatamente. Uma pequenina tesoura de lâminas curvas é um utensílio feminino. — Tem certeza, Holmes?... Está certo de que a jovem é realmente mulher de Stapleton? — Absoluta. Ele mesmo se revelou a você ao lhe falar sobre sua vida. Foi, realmente, professor e proprietário de uma escola no norte da Inglaterra, conforme investiguei nos serviços escolares. Houve um caso de intoxicação alimentar, e não epidemia, que terminou em tragédia, e o responsável fugiu com a mulher. Embora, nessa altura, tivessem outro sobrenome, a sua sinalética correspondia à dos Stapleton. Bastou-me saber que ele era apaixonado por entomologia, para identificá-lo. — Mas então, se ele é casado, qual o papel de Laura Lyons, em todo este enredo? — Esse ponto foi praticamente esclarecido com a sua investigação, Watson. Essa senhora está convencida de que Stapleton é solteiro e pretende desposá-la. — Mas vai ficar tremendamente desiludida. — Por isso temos de visitá-la, o quanto antes. Quando souber a verdade, poderá tornar-se nossa aliada. E agora, Watson, não acha que deixou sir Henry desprotegido por muito tempo? O seu posto é no solar de Baskerville. A noite caía e, no céu rubro-violeta, algumas estrelas começavam a luzir sobre o pântano. Levantei-me, prestes a partir, e ainda perguntei: — Mas que será que pretende esse Stapleton? — Não posso ainda lhe expor todos os pormenores, mas desde já lhe afirmo que o objetivo desse indivíduo é o assassinato, a sangue-frio, de sir
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Henry. E só poderemos detê-lo se a nossa intervenção preceder o seu golpe infame. Dentro de um dia ou dois, terei provas suficientes para eliminá-lo. Até lá, Watson, trate de protegê-lo, como uma fêmea protege a cria. A sua diligência de hoje está bem justificada, mas preferia que o não tivesse abandonado por tanto tempo. Nesse momento, um grito prolongado cortou o silêncio dos campos. — Santo Deus! — exclamei, estarrecido. — Que foi isso? Holmes também se ergueu, observando a escuridão. O terrível grito soou novamente, agora, mais perto de nós. — Consegue localizá-lo, Watson? — Creio que veio dali. O brado de pavor e angústia repetiu-se, como se o seu autor corresse na nossa direção. — Não, Watson; o grito vem dali... Neste momento, um outro som chegava aos nossos ouvidos: um medonho rosnar intermitente, num tom crescente. — O cão! — exclamou Holmes. — Corramos, Watson, antes que seja tarde demais! Saímos em disparada pelo terreno acidentado, e ouvimos um derradeiro grito desesperado. — O cão alcançou-o antes de nós! — proferiu Holmes, raivosamente. — Você não devia ter abandonado sir Henry!... já não conseguiremos salvá-lo! O silencio sucedeu a um pavoroso ruído de luta. Depois, ainda ouvimos um gemido rouco logo seguido do som de um corpo que tombava com violência, no solo. — Ali, à nossa esquerda! Corremos ofegantes e vimos um vulto estendido no chão. Quando nos aproximamos, deparamos com um homem caído de bruços, com o corpo disformemente contorcido. Apesar da escuridão, reconhecemos o traje de tweed de sir Henry, que já tínhamos visto em Londres, quando nos visitou na Baker Street. Para melhor identificar a vítima, Holmes acendeu um fósforo e apalpou-lhe a roupa, úmida do nevoeiro. Em volta do crânio esmagado do homem, alargava-se uma poça de sangue. O fósforo apagou-se e Holmes soltou um rugido de desalento. — Miserável! — exclamei. — Nunca me perdoarei por ter abandonado o nosso amigo à mercê do destino!
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— Maior culpa foi a minha, Watson! É o maior desastre da minha carreira! Mas como poderia adivinhar que sir Henry, apesar de todas as minhas advertências, viria se aventurar no pântano? — E Stapleton? Onde é que ele está? — Hei de fazer com que pague com juros o seu crime! — jurou Holmes. — Sir Charles morreu de pavor; na fuga desesperada, caiu de um rochedo. Mas temos de provar quem provocou estas duas mortes aparentemente acidentais. Por mais esperto que seja este diabólico assassino, hei de caçá-lo antes que passe mais um dia! Permanecemos ao lado do corpo mutilado, amargurados pelo irreparável desastre que anulou todos os nossos esforços. A lua rompeu as nuvens e subimos ao rochedo de onde caiu o baronete. Ao longe, avistamos uma luz fixa, na direção de Grimpen. Provinha, certamente, da Merripit Cottage. Soltando uma blasfêmia, ergui o punho e propus, exaltado: — Por que não vamos caçar Stapleton, imediatamente? — Ainda não temos provas concretas que concluam este caso — objetou Holmes. — Se nos precipitarmos, talvez esse bandido astuto ainda consiga escapar. Amanhã me esforçarei para que ele caia numa armadilha, definitivamente. Agora, só nos resta prestar os últimos serviços ao nosso amigo. Tornamos a descer para junto do vulto, e Holmes, debruçando-se, tocoulhe no rosto. Então, pareceu enlouquecer. Erguendo-se, começou a rir e a saltar. Depois, apertou minha mão efusivamente. Já não era o Holmes frio e comedido, mas um demente, possesso. — O homem tem barba, Watson! Tem barba! — Barba? — Sim. Não é o baronete!... É o meu vizinho do pântano, o condenado! Febrilmente, viramos o corpo e a barba úmida ficou apontada para a lua. Não havia dúvida de que a testa abaulada e os olhos encovados eram do mesmo indivíduo que sir Henry e eu tínhamos visto, na fenda do rochedo, alumiado pela vela: Selden, o assassino. Tudo se esclareceu imediatamente. Lembrei-me de que o baronete me contou ter oferecido os seus trajes e calçados usados a Barrymore. Decerto, o mordomo deu-os a Selden para ajudá-lo na fuga. Expliquei a ocorrência a Holmes, que logo concluiu: — Nesse caso, a roupa e os sapatos foram a causa da sua morte. Deram para o cão farejar uma peça de roupa ou um sapato... com
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certeza o que foi roubado no hotel, para que o animal o perseguisse. Só não percebo como foi que Selden, na escuridão, percebeu que a fera vinha no seu encalço. — Ouviu-o correr ou rosnar — sugeri. — Um homem acostumado ao perigo e de ânimo endurecido, como Selden, não entraria dessa maneira em pânico, a ponto de gritar tresloucadamente, arriscando-se a ser capturado. Como ele teve, a distância, a noção de que o animal o perseguia e por que se apavorou tão alucinadamente? — Não sei. Na minha opinião, o maior mistério reside no fato de esse cão andar à solta. Stapleton nunca o larga à noite. Se o fez, foi por pensar que sir Charles se achava no pântano. Holmes não comentou a minha sugestão e, debruçando-se sobre o cadáver de Selden, declarou: — Não podemos abandonar o corpo deste desgraçado aos corvos e às raposas. — Podemos guardá-lo num dos casebres, até informarmos a polícia. — Certamente... Curvamo-nos para transportá-lo, mas Holmes parou, apontando para a planície. — Aí vem ele, Watson, com a sua incrível audácia! Não diga uma palavra sobre nossas suspeitas, para não o alertarmos! O vulto aproximava do ponto onde nos encontrávamos, e vi a ponta incandescente do cigarro. Ao luar, distingui o caminhar um pouco saltitante do naturalista. Por momentos, parou ao ver-nos, mas logo prosseguiu direto para nós. — Olá... dr. Watson?... Nunca pensei encontrá-lo no pântano, a uma hora destas!... Mas... que é isto? Uma pessoa ferida? Não me diga que é o nosso amigo sir Henry? Correu para o vulto, debruçou-se sobre ele e soltou uma exclamação ofegante. O cigarro caiu-lhe dos dedos. — Quem... quem é este homem? — inquiriu, pasmo. — Selden... O assassino que fugiu de Princetown. Muito pálido, mas conseguindo dissimular o desapontamento, olhou para Holmes e para mim e balbuciou: — Que coisa... que coisa horrível! Como morreu este homem? — Parece ter fraturado o crânio e o pescoço ao cair desse penhasco.
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Quando o meu amigo e eu passávamos pelo pântano, ouvimos seu grito... — Também ouvi os gritos e até pensei que se tratasse de sir Henry. Ora, Stapleton não correu na nossa direção. Supunha que fosse sir Henry, de quem se dizia amigo; isso explicaria o seu vagar. Mas não achei conveniente “levantar essa lebre” e limitei-me a estranhar: — Por que pensou que fosse sir Henry, sr. Stapleton? — Porque lhe tinha sugerido que viesse visitar-nos. Como não apareceu, fiquei um pouco apreensivo e, ao ouvir os gritos, me alarmei. Olhou novamente para Holmes e indagou: — Além dos gritos, ouviram mais alguma coisa? — Não — respondeu Holmes. — E o senhor? — Também não. — Nesse caso, por que nos faz essa pergunta? — Bem... Devem estar a par das histórias que os camponeses têm andado espalhando acerca de um cão-fantasma que uiva à noite, no pântano... Como explicam a morte deste desgraçado? — Deve ter se assustado... Decerto receou que alguém viesse capturá-lo. Correu, tropeçou e caiu do penhasco. Stapleton pareceu aliviado e suspirou: — Coitado... Sim... é natural... E o sr. Holmes, que pensa a este respeito? Com uma reverência, o meu amigo apreciou: — Vejo que é rápido em identificar uma pessoa estranha. — Bem... desde que o dr. Watson veio para Baskerville, todos temos estado à sua espera. Chegou a presenciar a tragédia? — Sim, mas tenho de regressar a Londres, ao romper da manhã. Creio que o testemunho do meu amigo será suficiente no inquérito. — Ah! Vai voltar para Londres... E esta sua visita lhe permitiu vislumbrar qualquer explicação para as ocorrências que nos têm deixado perplexos? Encolhendo os ombros, Holmes mostrou-se modesto. — Nem sempre se consegue obter o almejado sucesso. Um investigador tem de basear-se em fatos e não em lendas. Este caso ainda não me apresentou uma face satisfatória. Virando-se para mim. Stapleton declarou:
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— Não sugiro que levem o cadáver para minha casa, porque minha irmã certamente ficaria assustada. Creio que o melhor é tapar seu rosto e deixá-lo aqui até amanhã. Concordamos e recusamos a hospitalidade que ele nos ofereceu. Deixamos Stapleton voltar para casa, sozinho, e regressamos a Baskerville. Atrás de nós ficou o vulto escuro que o luar prateava. — Aquele homem — comentou Holmes — tem realmente um sanguefrio formidável e conseguiu disfarçar a sua decepção quando percebeu que a vítima não era sir Henry, como tanto desejava. — Foi mau ele tê-lo visto, Holmes. — Sim, em parte, mas não podia ser evitado. — Esta ocorrência irá alterar os planos de Stapleton? — Ficará mais cauteloso... ou poderá precipitar os acontecimentos, desesperadamente. Como a maioria dos criminosos inteligentes, deve pecar por excesso de autoconfiança e pensar que nos iludiu completamente. — Por que não vamos prendê-lo, imediatamente? — Você, meu caro Watson, nasceu para homem de ação, sempre impulsionado pela energia física, por instinto. Mas, mesmo que esta noite, por hipótese, o prendêssemos, de que nos adiantaria isso? Ainda nada podemos provar contra ele. A diabólica astúcia desse homem reside em não agir diretamente, nem por intermédio de um ser humano, mas sim pela intervenção de um enorme cão que não levaria juiz algum a pôr a corda em torno do pescoço do dono. — Mas temos o caso de sir Charles... — Ririam de nós, em pleno tribunal. O velho baronete foi encontrado morto, sem o mínimo sinal de violência. Todos sabemos que morreu de susto, mas onde estão as pegadas do cão? No relatório policial não há qualquer referência a marcas no solo. Todos sabemos que sir Charles já estava morto, quando o cão se aproximou... e os cães não atacam cadáveres. Não estamos ainda em condições de provar coisa alguma. — E hoje? Pelo menos, testemunhamos a morte de Selden. — Mas nem sequer vimos o cão, e o que ouvimos não justifica o fato de o condenado ter caído do penedo. É essencial descobrirmos o motivo. — Que podemos fazer para isso?
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— Resta-nos esperar que Laura Lyons nos auxilie, quando souber da verdadeira identidade e das intenções de Stapleton. Arquitetei um plano, mas ainda é cedo para falar nele. Nada mais disse, e foi mergulhados nos nossos pensamentos que chegamos aos portões de Baskerville. — Entra também, comigo? — perguntei. — Sim, visto que não há razão para me esconder. Stapleton já me viu. Agora, meu caro Watson, nada diga a sir Henry a respeito do cão. É preferível que ele pense que Selden morreu acidentalmente. Dessa maneira, não ficará com os nervos abalados, e convém que esteja calmo e capaz de suportar, o melhor possível, a prova que terá amanhã, quando for jantar com os Stapleton, conforme você referiu no relatório. — Também fui convidado — lembrei. — Mas arranje uma desculpa para que ele vá só. Estamos atrasados para o jantar, mas estamos prontos para uma ceia.
CAPÍTULO 13 – ARMANDO A REDE
A
o ver Sherlock Holmes, sir Henry ficou mais alegre do que admirado, pois naqueles últimos dias muitas vezes desejou que ele viesse de Londres. Estranhou, naturalmente, que o meu amigo não trouxesse bagagem, e ambos tivemos de lhe fornecer a roupa necessária. Depois, enquanto ceávamos, explicamos ao baronete a ocorrência dessa noite, sem falarmos na culpabilidade de Stapleton. Antes de sentar-me à mesa, relatei a Barrymore a morte de Selden. Embora para este a notícia devesse constituir um alívio, a mulher chorou amargamente, com a cara imersa no avental. No fim da ceia, sir Henry informou: — Estive trabalhando em casa o dia inteiro e mereço parabéns, pois, cumprindo a minha promessa a Watson, não saí sozinho, embora tivesse recebido um convite de Stapleton para ir à Merripit Cottage. Perdi uma noite animada. — Não duvido que o fosse — replicou Holmes, secamente. — Talvez não saiba que estivemos lamentando a sua morte. — Que me diz? — admirou-se o baronete. — Barrymore deu algumas das roupas que o senhor lhe ofereceu ao cunhado. Quando a polícia investigar o caso, o seu mordomo é capaz ter problemas.
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— Não é provável, pois as roupas que lhe dei não tinham qualquer marca. — Ainda bem, porque, tanto ele como nós, calando-nos acerca de Selden, não estávamos agindo de acordo com a lei. Os relatórios de Watson, nesse ponto, são realmente muito comprometedores. — E quanto ao nosso caso? Já conseguiu progredir alguma coisa? Watson e eu não temos avançado muito. — Creio que, dentro de pouco tempo, estarei em condições de esclarecêlo totalmente, mas há alguns pormenores que precisam de ser esmiuçados. — Passamos por uma experiência desagradável, como Watson já lhe deve ter contado. Ouvimos o cão no pântano, e não se trata de uma mera suspeita. Familiarizei-me com os uivos dos cães e dos coiotes, no oeste americano, e sei reconhecê-los quando os ouço. Se o senhor for capaz de conter este, jurarei que é o maior detetive do mundo! — Não só poderei contê-lo, mas até acorrentá-lo, se o senhor se dispuser a me ajudar. — De que maneira? — Terá de me obedecer cegamente, sem perguntar os motivos. — Pode contar comigo. — Se agir dessa maneira, creio que todo o enigma será solucionado, de uma vez para sempre. Subitamente Holmes calou-se, ficando absorto, olhando para a parede. — O que foi ? — estranhou sir Henry. Quando Holmes olhou para nós, parecia emocionado. Apontando para os retratos a óleo, suspensos da parede, comentou: — Tem uma bela coleção de quadros. Embora Watson me critique, dizendo que eu nada entendo de arte, a verdade é que sou um apreciador de retratos antigos. — Alegro-me muito com isso — replicou sir Henry —, embora eu entenda mais de cavalos e novilhos do que de telas a óleo. Não pensei que o senhor ainda tivesse tempo para dedicar-se à arte. — Sei distinguir as boas obras. Poderia afiançar que aquela senhora de vestido azul foi pintada por Kneller e que o cavalheiro de peruca branca deve ser da autoria de Raynolds. São retratos de família, não é verdade?
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— Sim, todos eles foram meus ancestrais. — Sabe o nome deles? — Barrymore deu-se ao trabalho de me dizer. — Quem é aquele oficial de Marinha, com os óculos de ver ao longe? — É o contra-almirante Richard Baskerville, que serviu sob as ordens de Rodney, nas Índias ocidentais. O que está no quadro ao lado, de casaca azul e um rolo de papel na mão, é William Baskerville, que foi presidente da Câmara dos Comuns, no tempo de Pitt. — E aquele, com gibão de veludo negro, gola e punhos de renda? — Sobre esse, sr. Holmes, o senhor tem realmente o direito de ser informado: é o causador da desgraça da nossa família, o infame Hugo, que deu origem à lenda do cão de Baskerville. Dificilmente poderemos nos esquecer dele. Olhei interessado para o retrato, de meados do século XVII, e Holmes exclamou: — Santo Deus! Parece um cavalheiro calmo, brando, mas não há dúvida de que o pintor o representou com uma expressão maligna no olhar. Contudo, pela narrativa, tinha-o imaginado mais forte e orgulhoso. — Mas não pode haver dúvida quanto à autenticidade da tela. No verso, está datada de 1647. Pouco mais se falou e, enquanto sir Henry permaneceu na nossa companhia, Holmes parecia atraído pelo retrato de Hugo. Passamos à sala de bilhar e, só depois de o baronete ter subido para o quarto, o meu amigo pegou um candelabro e me arrastou para a sala dos banquetes. Iluminando a parede, indagou: — Nota alguma coisa de especial nesse retrato, Watson? Examinei mais atentamente o largo chapéu de plumas, os cabelos ondulados, a gola branca com um friso rendado, a espada de copos e o rosto alongado, severo. A sua atitude era tranqüila, mas, efetivamente, o olhar era frio, intolerante. — Parece com alguém que você conheça, Watson? — Tem ligeiras semelhanças com sir Henry, especialmente no queixo. — Sim... talvez alguma semelhança, mas pouco acentuada. Agora, espere um momento e repare... Subiu numa cadeira e, passando o candelabro para a mão esquerda, tapou com o braço direito, encurvado, o chapéu e os cabelos.
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— Minha nossa! — exclamei, admirado. O rosto de Stapleton realçara-se do quadro. — Está percebendo, Watson? Os meus olhos estão mais treinados a examinar rostos do que adornos. Uma das primordiais qualidades de um investigador é poder identificar alguém, mesmo através de um disfarce. — É extraordinário! Diria, realmente, que é um retrato de Stapleton! — Estamos diante de um interessante caso de atavismo, Watson. Estamos agora prestes a apanhá-lo na nossa rede, tão impotente como uma das suas borboletas. Pregado a um cartão, com um alfinete, poderá fazer parte da nossa coleção da Baker Street. Holmes soltou uma das suas raras gargalhadas que, geralmente, eram de mau agouro para alguém. No dia seguinte, acordei cedo, mas Holmes foi mais madrugador, pois já voltava pela alameda. — Vamos ter um dia frutífero — disse, esfregando as mãos, radiante por poder passar à ação. — As redes já estão armadas e só falta puxar. Antes do fim do dia, teremos a presa enroscada nas malhas, a menos que consiga furá-las. — Já esteve no pântano? — Fui a Grimpen expedir um telegrama para Princetown, informando a polícia da morte de Selden. Ninguém será incomodado por cumplicidade. Também mandei avisar o jovem Cartwright para que não ficasse à minha espera, como um cão fiel pelo seu dono, na porta da casinha de pedra. — Qual o próximo passo a dar? — Falar com sir Henry... Aí vem ele! — Bom dia, Holmes! — saudou o baronete. — Parece um general com o seu mestre-de-campo, planejando uma batalha. — É precisamente essa a situação. Watson estava me pedindo instruções. — E eu também estou. — Muito bem. Creio que se comprometeu a ir jantar com os Stapleton... — Exatamente, e espero que os meus amigos me façam companhia. Eles são muito hospitaleiros e por certo apreciariam a vossa presença. — Infelizmente, Watson e eu temos de ir a Londres. — A Londres? — Na situação presente, convém-nos investigar alguns pormenores, na capital.
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O baronete mostrou-se decepcionado. — Tinha esperança de que o senhor me acompanhasse neste caso, até o fim. Quando se vive só, o solar e o pântano são lugares desoladores. — Tem de confiar em mim, sir Henry — retorquiu Holmes —, e fazer precisamente o que lhe digo. Por favor, transmita aos seus amigos da Merripit Cottage que teríamos muito gosto em acompanhá-lo, mas que negócios urgentes exigem a nossa presença em Londres. Em breve estaremos de volta ao Devonshire. Não se esqueça de dar este recado. Pela expressão do baronete, percebi que o nosso abandono o magoava. — Quando partem? — inquiriu. — Logo após o café. Watson deixará aqui as malas, como prova de que a sua demora não será longa. Tomaremos o trem em Coombe Tracy... Watson, faça o favor de escrever um bilhete a Stapleton, justificando a sua falta ao jantar. — Não me agrada muito ficar aqui sozinho — confessou o baronete. — Tenho vontade de acompanhá-los até a cidade. — Não, sir Henry. Agora, o seu posto é em Baskerville. Prometeu cumprir o que eu lhe sugerisse e convém que vá na sua carruagem até a Merripit Cottage. Quando chegar lá, mande Perkins de volta ao solar. Desta vez, convém que saibam que voltará a pé, pelo pântano. — Pelo pântano? — espantou-se o baronete. — Mas o senhor recomendou-me sempre que não o fizesse! — Desta vez, não há perigo. Confio nos seus nervos e na sua coragem; é imprescindível que siga as minhas instruções. Contudo, se preza a vida, não se afaste do caminho entre a Merripit Cottage e a estrada de Grimpen. Regresse ao solar diretamente, sem nunca penetrar no pântano. — Seguirei as suas instruções. Embora, na noite anterior, tivesse ouvido Holmes anunciar a Stapleton que partiria na manhã seguinte, aquele programa deixava-me aflito, assim como o seu pedido para acompanhá-lo. Porém, competia-me obedecer sem discussão, e nos despedimos do nosso amigo. Duas horas depois, estávamos em Coombe Tracy e mal chegamos à estação de trem, Holmes mandou o cocheiro regressar a Baskerville. Na plataforma da estação, vimos Cartwright, que perguntou a Holmes: — Tem ordens a dar-me, senhor? — Sim, meu rapaz. Tome o trem para Londres e, quando chegar lá, expeça um telegrama dirigido a sir Henry Baskerville pedindo-lhe, em meu
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nome, o favor de me enviar, por correio registrado para a Baker Street, o caderno de apontamentos que, por esquecimento, deixei no solar. — Sim, senhor. — Agora, faça o favor de perguntar na estação se veio alguma mensagem para mim. Momentos depois, Cartwright reapareceu, entregando um papel a Holmes, no qual seria: “Recebi telegrama Ponto Chego aí cinco quarenta com mandado de prisão em branco Ponto Lestrade.” — Eis a resposta ao meu telegrama desta manhã — elucidou Holmes. — Lestrade é um bom profissional e talvez venhamos a precisar da sua colaboração. Agora, Watson, não percamos tempo. Vamos visitar essa formosa senhora, já sua conhecida, a sra. Laura Lyons. Agora, o plano se esclarecia. Holmes usou o baronete para convencer Stapleton de que tínhamos partido para Londres. A sra. Lyons estava no escritório, e Sherlock Holmes iniciou a entrevista com uma franqueza que a surpreendeu. — Estou investigando as circunstâncias da morte de sir Charles Baskerville. O meu amigo Watson transmitiu-me o que a senhora lhe contou e também aquilo que preferiu ocultar. — Que foi que lhe ocultei? — indagou ela, num tom de desafio. — Ocultou a relação entre o fato de ter pedido a sir Charles que a esperasse junto do portão, às dez horas da noite, e o fato de ele ter morrido precisamente nesse local e a essa hora. — Não existe qualquer relação entre esses fatos. Foi pura coincidência. — Uma coincidência realmente extraordinária, a menos que descubramos a referida relação. Vou ser franco, minha senhora, e não lhe oculto que a morte de sir Charles foi assassinato e que procuramos obter provas da culpabilidade tanto do sr. Stapleton como de sua mulher. — Sua mulher? — espantou-se a sra. Lyons, erguendo-se da cadeira. — Já não constitui segredo algum: a mulher que passava por irmã de Stapleton é, na realidade, sua esposa. As unhas rosadas de Laura Lyons cravaram-se nos braços estofados do sofá e se tornaram lívidas do esforço que empregava.
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— Jack não é casado! Prove que Beryl Stapleton é sua mulher — desafiou. — Se isso é realmente verdade... Se conseguir prová-lo... Os seus olhos continham uma ameaça mais eloqüente do que as palavras. Tirando uns papéis do bolso, Holmes exibiu-as, especificando: — Aqui tem um retrato do casal, tirado em York, há quatro anos. Como vê, no verso, está escrito “sr. e sra. Vandeleur”, mas a senhora não terá dificuldade em reconhecê-los. E aqui tem também três descrições, assinadas por testemunhas idôneas, da sinalética dos Vandeleur que, em St. Oliver, possuíam uma escola particular. Quando Laura Lyons ergueu os olhos dos documentos, o seu rosto apresentava um sinal de desespero. — Valha-me Deus, sr. Holmes! — exclamou. — Esse homem prometeu se casar comigo se eu me divorciasse de meu marido. Mentiu miseravelmente! Pensei que me amasse, mas vejo que apenas fui um instrumento nas suas mãos. Já não lhe devo fidelidade alguma, já que não me foi fiel. Não me compete protegê-lo do crime que cometeu. Quero que saiba, sr. Holmes, que, quando escrevi o bilhete a sir Charles, nunca pensei que essa mensagem poderia lhe causar algum mal, já que ele se mostrou o meu melhor amigo. Agora pode me perguntar o que quiser. — Acredito piamente na sua inocência, minha senhora. O relato dos acontecimentos será penoso... Peço-lhe que me corrija, se eu me enganar. Foi Stapleton quem lhe sugeriu que enviasse aquele bilhete? — Sim. Ele próprio me ditou. — Convenceu-a de que sir Charles não deixaria de contribuir para as despesas do seu divórcio? — Exatamente. — Depois de a mensagem ter sido enviada, Stapleton aconselhou-a a não ir se encontrar com sir Charles? — Confessou ficar ferido no seu amor-próprio, se um outro homem me desse dinheiro para tal fim e que, embora não fosse rico, estava disposto a gastar tudo quanto possuía para remover os obstáculos que nos separavam. — É um homem muito coerente consigo próprio. E a senhora, sra. Lyons, nada soube da tragédia, até ter lido a notícia no jornal? — Não. Não sabia de nada.
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— E Stapleton a fez jurar que nada diria sobre o encontro com sir Charles, para não ficar envolvida no inquérito? — Jack explicou-me que a morte foi misteriosa e que poderiam suspeitar de mim. Chegou a me amedrontar para que ficasse calada. — E não teve suspeitas? Laura Lyons baixou os olhos e confessou: — Tive, sim... Mas se ele me tivesse sido fiel, eu saberia me calar... — Pois bem, pode dar graças a Deus por ter escapado das garras de um homem assim. Ainda está viva, quase por milagre... Só porque agora não convém a Stapleton a ocorrência de uma nova tragédia nesta região. Pode estar certa, minha senhora, de que tem andado à beira de um precipício, pois sabe demais. Agora, nos despedimos desejando-lhe felicidades... É provável, sra. Lyons, que, muito em breve, tenha notícias nossas. Enquanto esperávamos o trem, Holmes confidenciou-me: — As dificuldades têm sido gradualmente superadas, e o nosso inquérito está prestes a terminar. Será considerado um dos mais sensacionais casoscrime dos tempos modernos. Os estudiosos de criminologia não deixarão de recordar um incidente análogo, em Gordno, na Rússia, em 1866, e naturalmente o caso Anderson, recentemente ocorrido na Carolina do Norte. Contudo, nenhum deles se compara ao enigma de Baskerville, dada a astúcia do criminoso. Espero, Watson, conseguir esclarecê-lo ainda hoje, antes de nos deitarmos. O trem rápido de Londres entrou na estação entre rugidos e jatos de vapor, e vimos descer da primeira classe um homem baixo, entroncado e rijo, que se dirigiu a nós. Pela maneira como Lestrade olhou para Holmes, adivinhava-se quanto o admirava, pelo muito que com ele aprendeu desde que tinham trabalhado juntos, embora, de início esse policial prático reagisse sarcasticamente às teorias do raciocinador. Cumprimentamos Lestrade, e ele indagou: — É um bom caso? — O maior que me apareceu em muitos anos — anunciou Holmes. — Temos apenas duas horas antes de entrarmos em ação. Vamos jantar. Depois, Lestrade poderá lavar os seus pulmões desse nevoeiro de Londres e enchêlos com amplas golfadas deste ar puro de Dartmoor. Nunca esteve lá? Pois bem, creio que nunca esquecerá esta sua primeira visita. Depois do jantar, alugamos um coche e partimos para Baskerville.
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CAPÍTULO 14 – O CÃO DE BASKERVILLE
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m dos defeitos de Sherlock Holmes, se é que a isso se possa chamar defeito, era recusar-se a contar totalmente os seus planos antes do momento crucial da execução. Decerto, isto se deve ao seu gênio dominador, que apreciava dirigir as investigações e surpreender, numa apoteose, quantos o rodeavam. Contudo, tal costume irritava naturalmente os seus colaboradores. Eu próprio sofria com isso, mas nunca o senti tanto, como nessa noite em que avançávamos na escuridão. Finalmente íamos realizar a nossa última arrancada para obter a prova definitiva. Eu apenas podia fazer conjecturas sobre os seus planos, e os meus nervos vibravam antecipadamente, quando o vento frio que nos castigava o rosto e o negrume que se estendia de cada lado da vereda nos indicavam que atravessávamos o pântano. A presença do cocheiro só nos permitia falarmos de assuntos triviais, embora nos sentíssemos tensos pela emocionante expectativa. Após esse constrangimento, senti algum alívio ao passarmos pelo portão da casa de Frankland, já perto de Baskerville e do campo de ação. Depois de pagarmos ao cocheiro e de este ter partido na direção de Coombe Tracy, entramos no caminho de Merripit Cottage. — Está armado, Lestrade? — perguntou Holmes. O detetive ergueu os olhos para o meu amigo e respondeu sorrindo: — Enquanto eu tiver calças e um bolso nelas, trago sempre um protetor dentro dele. — Ainda bem! Watson e eu também estamos preparados para qualquer emergência. — Tem-se mostrado muito reservado sobre o caso, sr. Holmes. De que jogo se trata? — De um jogo de espera. — Puxa! O campo de jogos não é muito alegre — comentou Lestrade, olhando os tristes montes de Grimpen, sob o imenso véu de nevoeiro que nos cobria. — Vejo ali as luzes de uma casa. — É a Merripit Cottage, fim da nossa jornada. Peço que não façam ruído e falem o menos possível, em voz baixa. Quando nos achávamos a trezentos metros, Holmes deteve-nos. — Convém ficarmos aqui. Aquelas rochas, à direita, servem-nos de proteção. — Começa a espera?
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— Sim. É uma emboscada. Você, Lestrade, enfie-se nessa abertura. Quanto a você, Watson, que já conhece a casa, sabe qual é a localização dos quartos? — Mais ou menos. — Que janelas são aquelas, gradeadas e mal iluminadas, que dão para este lado? — Acho que são as da cozinha. — E aquela outra, com a forte luz acesa? — Essa é a sala de jantar. — As persianas estão levantadas. Como conhece melhor o terreno, vá até lá e veja o que eles estão fazendo, mas não deixe que percebam! Na ponta dos pés, aproximei-me do muro baixo que rodeava o pomar de árvores atrofiadas. Pela sombra, atingi um ponto de onde podia espreitar através das vidraças. Só sir Henry e Stapleton se achavam na sala, sentados à mesa redonda, de perfil para mim. Diante de copos de vinho e xícaras de café, ambos fumavam charutos. O naturalista falava animadamente, mas o baronete, pálido, parecia distraído. Stapleton ergueu-se e saiu da sala, enquanto sir Henry enchia de novo o copo e se reclinava na cadeira, fumando. Ouvi o ruído de uma porta e o som de passos no chão lajeado, que seguiam do lado oposto do muro junto do qual me achava. Espreitei por cima deste e vi o naturalista dirigir-se a uma barraca de madeira, no fundo do pomar. Entrou lá dentro e ouvi um ruído estranho. Não demorou mais de um minuto. Fechou a barraca e voltou à sala, para junto do baronete. Achei oportuno ir contar o que vi aos meus companheiros. — A jovem não estava lá? — estranhou Holmes. — Não. — Mas não há outra luz acesa, a não ser na cozinha... O nevoeiro que cobria os pântanos de Grimpen aproximava-se de nós, em fiapos de neblina. A lua ainda brilhava, com contornos bem definidos. Holmes resmungou: — Esta névoa pode frustrar os nossos planos. Já são dez horas. Convinha que sir Henry saísse, antes que o nevoeiro nos cubra completamente. Vamos retirar-nos um pouco mais para cima, naquela elevação. Se ele não sair dentro de quinze minutos, já nem conseguiremos ver as próprias mãos.
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Subimos até uma distância de quinhentos metros, e Holmes considerou: — Não podemos nos afastar mais, para que ele não seja atacado fora do nosso alcance. Ajoelhou, pôs o ouvido no chão e animou-se: — Creio que aí vem ele. Então, começamos a ouvir passos que se aproximavam. Em breve, o baronete subia a rampa que passava por detrás do local onde nos achávamos. — Atenção — recomendou Holmes, ao mesmo tempo que engatilhava o revólver. Ouvimos nesse momento o som de patas a menos de cinqüenta metros. Olhamos nessa direção, numa tensa expectativa. Lestrade soltou um grito de pavor e apertei, na mão, a coronha do revólver. Foi a minha vez de avistar uma coisa horrível, que avançava para nós saindo da névoa densa. Eu nunca vira um cão daquele tamanho nem com aquele aspecto medonho. Parecia que a sua face chamejava e todo o pêlo tinha um brilho de chamas. Vimos então o cão galopar atrás do nosso amigo. Holmes e eu disparamos as armas, ao mesmo tempo. O monstro soltou um rugido pavoroso que nos indicou ter sido atingido. Logo corremos para alcançá-lo, mas ele continuava a avançar para sir Henry. Este, de mãos erguidas, parou horrorizado, fitando o animal que o perseguia. Contudo, o urro da fera provou que ela era vulnerável e que, portanto, poderia ser morta. Corremos e ainda vi o cão saltar sobre o baronete, impotente, petrificado. O animal procurava fixar as enormes presas na garganta do nosso amigo, quando Holmes acertou o lombo com os restantes cinco tiros do seu revólver. O monstro, com uma reviravolta, caiu no chão de patas para o ar, ainda estrebuchando raivosamente. Alcancei-o e encostei-lhe o cano da minha arma na cabeça, mas não precisei de disparar, pois estava morto. Sir Henry caíra no chão e mantinha-se inerte. Alarguei-lhe o colarinho, enquanto Holmes se regozijava por termos chegado a tempo. Lestrade, tirando do bolso traseiro da calça um frasco com conhaque, deu-lhe alguns goles. — Meu Deus! — exclamou sir Henry. — Que coisa diabólica era aquela? — Seja o que for — sossegou-o Holmes —, já está morta. Acabamos, de uma vez para sempre, com o fantasma de Baskerville. O cão tinha o tamanho de uma pequena leoa, misto de alão de caça e de mastim de guarda. Mesmo morto, os seus olhos cruéis estavam rodeados de um círculo de fogo, assim como o focinho. Passei a mão por ele e, ao retirála, meus dedos mostravam-se fosforescentes.
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— Uma fórmula bem escolhida — observou Holmes, cheirando o pêlo do enorme animal. — Este produto não tem qualquer odor que pudesse prejudicar-lhe o faro. Virando-se para sir Henry, acrescentou: — Desculpe-nos por tê-lo exposto a tal pânico. A névoa nos impediu de agir mais prontamente. — Os senhores salvaram minha vida — reconheceu o baronete. — Dêem-me mais um gole de conhaque e ficarei pronto para tudo. Agora, que pretendem fazer? — Deixá-lo aqui, pois não deve estar em condições de agüentar novas emoções. Se quiser, um de nós poderá acompanhá-lo ao solar. Lívido, sir Henry sentou-se numa rocha e escondeu o rosto entre as mãos. — Infelizmente — continuou Holmes, enquanto nos dirigíamos para a Merripit Cottage —, depois de ouvir os tiros, Stapleton deve ter fugido, mas convém fazermos uma busca na casa para nos certificarmos. Como a porta estivesse aberta, entramos e revistamos todas as divisões, uma por uma, perante o espanto do velho criado. Só no piso superior encontramos um dos quartos fechado. — Tem alguém lá dentro — avisou Lestrade, que escutara à porta. — Arrombemos isto. Com o tacão do sapato, Holmes deu uma formidável pancada na porta, logo acima da fechadura; aquela escancarou-se, e os três, de revólver em punho, entramos atropeladamente no aposento. Era uma espécie de museu, com as paredes cobertas com caixas de tampa de vidro, cheias de borboletas e outros insetos: a distração daquele gênio criminoso. Tinha uma viga central, vertical, para suporte do centro do teto, onde vimos, à luz do candeeiro, um vulto amarrado com lençóis. Era Beryl Stapleton, que nos olhava com horror e vergonha. Ao desamarrá-la, notei que tinha um vergão no pescoço, feito por um cavalo-marinho (3). A jovem caiu nos meus braços. — Que patife! — murmurou Holmes. — Dê-lhe um pouco do seu conhaque, Lestrade... Esteja descansada, minha senhora, que ele não há de escapar.
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bengala feita de pele de hipopótamo
— Graças a Deus que vieram! Vejam como o miserável me tratou. E, arregaçando as mangas, a sra. Stapleton mostrou os braços cobertos de vergões e equimoses, algumas sangrentas. — Não só me torturava, como me mantinha num estado de constante pavor. Destruiu-me moralmente e corrompeu-me a alma. Suportei maustratos e solidão, porque estava convencida de que ele me amava... Mas, agora, já sei que até nisso fui enganada. Apenas servi de instrumento para os seus abomináveis desígnios! Rompeu a soluçar. — Diga-nos — pediu Holmes —, onde poderemos encontrá-lo? Se o apoiou no mal, reabilite-se nos ajudando a capturá-lo. — Só pode ter fugido para um único local... Para uma mina de estanho, numa espécie de ilha, no centro do atoleiro de Grimpen. Era ali que costumava guardar o cão, e construíra um refúgio para o caso de estar em perigo. O nevoeiro já alcançara Merripit, mostrando-se compacto através da janela. Erguendo o candeeiro, Holmes apontou para fora, e a sra. Stapleton declarou: — Esta noite, ninguém poderá orientar-se nos pântanos. Talvez ele consiga entrar no atoleiro, mas não poderá sair de lá. O caminho foi marcado por meio de umas canas... Se eu hoje tivesse podido arrancá-las, os senhores o teriam à vossa mercê. Era evidente que, até o nevoeiro se dissipar, seria impossível perseguir o assassino. Lestrade ficou tomando conta da sra. Stapleton e da casa, enquanto Holmes e eu acompanhamos sir Henry ao solar. O baronete estava desolado por saber que os Stapleton eram casados e a emoção daquela noite deixou-o febril, de maneira que, ao amanhecer do dia seguinte, deixamos o dr. Mortimer à cabeceira do seu leito. Ambos iriam dar uma volta ao mundo e, no seu regresso, certamente o baronete se sentiria forte e alegre, para gozar os benefícios da propriedade que herdou. Chego, agora, à breve conclusão desta narrativa. Na manhã seguinte à morte do cão, o nevoeiro levantou e Beryl Stapleton nos conduziu, através dos pântanos, na pista do marido. Várias canas estavam cravadas aqui e ali, em ziguezague, marcando trilha entre as poças fétidas e os juncos viscosos, numa atmosfera viciada de putrefação. Ali, um passo em falso seria morte certa.
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Uma só vez notamos vestígios de alguém ter passado por lá, antes de nós. Holmes viu um objeto, a distância, e teve de mergulhar, até a cintura para conseguir recolhê-lo. Era o sapato preto que tinham roubado de sir Henry, no hotel. — Foi atirado lá por Stapleton, na fuga — observei. — Certamente. Deu-o para o cão farejar para que perseguisse o nosso amigo. Quando ele ouviu os tiros, fugiu e conservou o sapato na mão, para só se desfazer dele onde ninguém viesse a encontrá-lo. Saímos do lamaçal, onde nos seria impossível detectar pegadas, e alcançamos terra firme, mas também não as vimos. Teria o assassino sido sorvido pelo lodo movediço do pântano, que ele se atreveu a atravessar, à noite, com nevoeiro cerrado? Na espécie de ilha, que fora uma antiquíssima mina de estanho, encontramos vários utensílios da arcaica exploração. Nas ruínas das cabanas desses mineiros de outros tempos, nada havia especial, com exceção de uma delas, onde encontramos uma forte corrente, com grampo de prisão para coleira e grande quantidade de ossos. Foi ali que viveu o cão-fantasma. Junto desses ossos, bem esburgados, achava-se também um esqueleto, ainda mal descarnado, com pedaços de pele de pêlo castanho. — Um cão! — exclamou Holmes. — Um cachorro de pêlo crespo! O nosso amigo dr. Mortimer nunca mais verá o seu querido animal. Stapleton tinha de esconder aqui o enorme alão, para que os uivos não denunciassem a sua existência na Merripit Cottage. Só o levaria para casa em situações de emergência, como sucedeu ontem, e certamente, na noite da morte de sir Charles. A lenda do cão de Baskerville serviu perfeitamente para o seu objetivo, tanto mais que os habitantes da região, não ousando entrar no pântano, estavam impossibilitados de descobrir que o alão era um animal natural; assim, a sua imaginação levou-os a acreditar no cão-fantasma. — Tal como lhe disse, em Londres, meu caro Watson, nunca tivemos inimigos mais perigosos do que este que, decerto, o atoleiro de Grimpen sorveu para a sua pestilenta profundeza. E, ao proferir este epitáfio, Holmes apontou para os pântanos verdejantes, de enganosa beleza, que se estendiam até as vertentes vermelhas do pântano.
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CAPÍTULO 15 – RETROSPECÇÃO
N
uma noite fria e nevoenta de fins de novembro, estávamos Holmes e eu sentados à lareira, na nossa saleta da Baker Street. Depois do trágico epílogo da nossa estada no Devonshire, o meu amigo investigou dois casos de grande importância. No primeiro, desmascarou a infame conduta do coronel Upwood, em relação a um escândalo de jogo no Nonpareil Club; no segundo, provou a inocência da infeliz madame Montpensier, injustamente acusada do assassinato da sua enteada, mademoiselle Carère, que, seis meses mais tarde, apareceria viva e casada, em Nova York. Como Holmes se achava contente com o sucesso de tão importantes inquéritos, consegui induzi-lo a confidenciar-me os pormenores, ainda não revelados, do caso Baskerville. Ao espírito lógico do meu amigo repugnava abstrair-se de um problema atual, para reavivar reminiscências de ações passadas. Acidentalmente, sir Henry e o dr. Mortimer encontravam-se em Londres, prestes a partir para a longa viagem que foi recomendada ao baronete para restabelecimento da sua depressão nervosa. Naquela tarde, tinham vindo nos visitar e, naturalmente, falamos do caso. — Para Stapleton — discorreu Holmes —, o curso dos eventos foi simples e direto, mas para nós, que ignoramos o móbil dos seus atos, mostrou-se extremamente complexo. Em relação a você, meu caro Watson, desfruto da vantagem de ter conversado duas vezes com a sra. Stapleton após os dramáticos acontecimentos. Tudo ficou esclarecido e, se estiver interessado, pode encontrar na letra B do meu arquivo algumas notas referentes ao caso. — Preferia que me relatasse, resumidamente. — Bem... Não posso garantir que a minha memória retenha ainda todos os pormenores. Um advogado que estudou uma causa e é capaz de debatêla, sem o menor deslize, com um casuístico oponente, pode esquecer-se dela ao cabo de duas semanas em que se embrenhou nas premissas de outro processo. Identicamente, cada um dos meus casos sobrepõe-se aos anteriores e, por exemplo, o inquérito sobre a mademoiselle Carère fez enfraqueceremse as minhas recordações do caso Baskerville. Por sua vez, um novo enigma que venha ocupar o cérebro tenderá a apagar os pormenores destes meus últimos inquéritos dos casos Upwood e da bela francesa.
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Quanto ao cão de Baskerville, vou narrar-lhe aquilo de que me lembro e talvez você possa sugerir-me algum fato que eu tenha esquecido ou omitido. A minha investigação, sobretudo após ter observado o retrato de Hugo Baskerville, provou que Stapleton era, sem nenhuma dúvida, um parente de sir Henry. Verifiquei que se tratava do filho de Rodger, irmão mais novo de sir Charles... aquele que, devido à sua má reputação, se viu forçado a fugir para a América do Sul, onde, erroneamente, pensou-se que havia morrido solteiro. Na realidade, Rodger casou-se na Costa Rica e teve um filho, John (4) Baskerville, que veio a desposar Beryl Garcia, uma das mais belas jovens daquele país. Contudo, tendo enriquecido com uma considerável verba pública, mudou o sobrenome para Vandeleur e fugiu para a Inglaterra, onde montou uma escola, a leste do Yorkshire. Esta idéia surgiu após ter conhecido um professor, a bordo do navio que os trouxera. O professor Fraser era um excelente pedagogo, mas estava tuberculoso. Enquanto viveu, a escola obteve notável êxito, mas depois da sua morte, sob a gerência única de John Vandeleur, esse estabelecimento de ensino foi decaindo gradualmente e, após um caso de intoxicação alimentar que vitimou alguns alunos, verificando-se dois óbitos, ficou mal-afamado. Então, os Vandeleur decidiram instalar-se em outra região. Com o que lhe restava da fortuna, ilegitimamente adquirida, John mudou-se para o sul da Inglaterra, dedicando-se lá à entomologia, ciência que já era a sua paixão e em que se tornara perito. No British Museum fui informado de que ele não só era uma autoridade na matéria, mas também que o nome Vandeleur foi atribuído a um inseto raro que ele descobriu no Yorkshire. Por esta época, John Baskerville, pseudo Vandeleur, começou a investigar a sua origem familiar e descobriu que apenas duas vidas se interpunham entre ele e os bens dos Baskerville. Embora, inicialmente, os seus planos ainda fossem vagos, resolveu, por uma questão de segurança, tornar a mudar de nome, e, quando se mudou para o Devonshire, os Vandeleur já se chamavam Stapleton. Como as intenções de John já eram criminosas, fez a mulher se passar por sua irmã no intuito de utilizála como isca nas relações com sir Charles. Com esse objetivo, instalou-se perto do solar. Familiarizou-se com os vizinhos mais notáveis e dispôs-se a utilizar todos os meios para se apoderar de Baskerville. Quando sir Charles lhe contou a lenda do cão-fantasma, planejou a própria morte. Veio a saber, por meio do dr. Mortimer, que o tio sofria do coração e que uma forte comoção o mataria. Soube também que o velho baronete era doentiamente supersticioso, acreditando na lenda sinistra. (4)
Jack (nome anteriormente dado a Stapleton) é a forma popular de John (N. do T.)
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A imaginação engenhosa de John Baskerville, agora Stapleton e familiarmente conhecido por Jack, montou um plano para eliminar o tio, sem que o crime lhe pudesse ser atribuído. E logo começou a preparar a sua execução. Enquanto qualquer criminoso vulgar se satisfaria com o emprego de um cão feroz, o naturalista teve o rasgo genial de criar um monstro diabólico. Dirigiu-se a Londres e, no estabelecimento zoófilo Ross and Mangles, da Fulham Road, adquiriu o mais descomunal e mais selvagem cão que lá se encontrava, resultante do cruzamento de pastor-alemão com grand-danois. Transportou o animal, discretamente, pela linha de North Devon, evitando dessa maneira passar por Coombe Tracy. Teve de fazer uma longa e arriscada caminhada, através dos pântanos de Grimpen, para levá-lo para a Merripit Cottage. Nas suas excursões para capturar insetos, explorou cuidadosamente o atoleiro e, para que a presença do cão não provocasse comentários, arranjou-lhe um esconderijo na antiga mina de estanho, e ali o manteve, aguardando uma oportunidade propícia. Mas estava demorando muito. Era difícil, à noite, atrair o velho tio à charneca, e as suas várias tentativas para surpreendê-lo com o animal fracassavam. Numa dessas excursões, em que o tinha largado, já devidamente transformado em monstro, por meio do genial produto fosforescente, o animal foi visto por camponeses, que logo reavivaram a lenda do cão diabólico. Stapleton contava com a colaboração da mulher para atrair sir Charles ao desastre fatal, mas estava relutante em usar a generosidade do velho para atraí-lo a uma morte horrível. Nem as terríveis ameaças, nem as agressões físicas conseguiram fazê-la mudar de idéia, recusando-se a ajudar o marido na consumação do seu crime. Assim, Stapleton viu os seus planos fracassarem. Então, entreviu nova oportunidade quando sir Charles, que lhe manifestava sincera simpatia, lhe pediu que servisse de intermediário no seu caridoso auxílio à infeliz sra. Lyons, filha rejeitada de Frankland que fora abandonada pelo marido. Fazendo-se passar por solteiro, Stapleton soube se insinuar no espírito da pobre senhora e, ganhando a sua estima, foi adquirindo sobre ela uma crescente influência. Por fim, convencendo-a de que estava profundamente apaixonado, pediu-a em casamento caso ela obtivesse o divórcio. Entretanto, quando soube que sir Charles, dominado pela superstição e apavorado com os rumores que corriam sobre o cão lendário, decidiu ir para Londres a conselho do dr. Mortimer, receou que os seus planos se frustrassem e decidiu agir imediatamente, antes que a vítima fugisse. Portanto, insistiu com a sra. Lyons, para que esta escrevesse uma carta a sir Charles, implorando-lhe um encontro, no pântano, na véspera da partida para Londres. Finalmente, com um argumento convincente, impediu-a de comparecer e promoveu, assim, a almejada oportunidade.
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Ao voltar de Coombe Tracy, foi buscar o cão na mina de Grimpen, trouxe-o pelo pântano à Merripit Cottage e aí untou-o com o produto fosforescente. Em seguida, levou-o para perto do portão onde o tio aguardava a sra. Lyons. Atiçada pelo dono, a fera pulou a cerca e perseguiu o velho ao longo da alameda dos teixos. Devia ter sido um espetáculo pavoroso esse monstro negro, soltando “fogo”, pelas faces e pelos olhos, no encalço da vítima. Sir Charles tombou morto com uma síncope no extremo da alameda e, como o cão correu pela trilha gramada, não deixou vestígios de pegadas no solo, a não ser quando se aproximou do cadáver, não chegando a se aproximar muito, porque os cães não atacam um homem que já esteja morto. Só aí deixou as marcas observadas pelo dr. Mortimer. Stapleton, então, chamou o cão e reconduziu-o à mina de Grimpen. Dessa maneira, o mistério deixou as autoridades perplexas e alarmou toda a região, fazendo com que, finalmente, o caso nos fosse confiado. Essa diabólica astúcia tornava praticamente impossível provar a culpa do verdadeiro assassino de sir Charles, tanto mais que o único cúmplice jamais poderia traí-lo e também porque a natureza inconcebível do composto fosforescente mais fomentava a crença popular numa intervenção fantasmagórica. As duas mulheres relacionadas com o caso, Beryl Stapleton e Laura Lyons, suspeitaram de que se tratava de uma intervenção homicida. A primeira já sabia que o marido planejava eliminar o tio e conhecia a existência do cão; a segunda, embora ignorasse a intenção do falso noivo, o seu motivo para o crime e a intervenção do animal para praticá-lo, ficou alarmada com a coincidência de sir Charles ter morrido precisamente no local e na hora da entrevista que marcou, por sugestão de Stapleton, e que foi, por este, oportunamente cancelada. Talvez Stapleton ignorasse a existência de um primo, herdeiro mais próximo do falecido tio comum e que, naquela altura, residia no Canadá. Deve ter tido conhecimento desse fato através do dr. Mortimer. Este, naturalmente, durante uma conversa ocasional com o naturalista, pode ter-lhe contado sobre o próximo embarque de sir Henry para a Inglaterra, ou, mais tarde, a necessidade de ir a Londres, esperá-lo. A primeira idéia de Stapleton foi liquidar o primo, em Londres, antes que este viesse se instalar no Devonshire. Contudo, como já não confiava na mulher, que se recusara a colaborar na armadilha para matar o velho, não ousou deixá-la só por muito tempo, na Merripit Cottage. Por isso, levou-a consigo para a capital. Tive o cuidado de investigar que se hospedaram no Mexborough Private Hotel, na Craven Street, que foi um dos visitados por Cartwright, quando procurava o tal jornal. Mantendo a mulher presa no quarto do hotel, disfarçou-se com uma barba postiça, que colou no rosto com uma espécie de grude. Seguiu o dr. Mortimer até nossa casa e, depois, até o Northumberland Hotel. Beryl Stapleton tinha tanto
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medo do marido que não se atreveu a avisar o homem cuja vida sabia que estava em perigo, por meio de uma carta redigida com a própria grafia. Por isso, adotou o método das letras recortadas daquele artigo de uma das páginas centrais do Times do próprio dia, provavelmente o único jornal que tinha à mão. Para tal, serviu-se da sua tesourinha de unhas e da espécie de grude com que Stapleton colou a barba postiça. Depois, disfarçando a letra para escrever o endereço no sobrescrito, pediu a uma mulher que passava na rua o favor de postar, no correio, a carta que lhe lançou pela janela, juntamente com uma moeda compensadora. Essa mensagem chegou às mãos do baronete e foi o primeiro aviso do perigo que corria. Para que o cão pudesse perseguir sir Henry, no momento oportuno, tornavase imprescindível a Stapleton obter uma peça de roupa ou, de preferência, um sapato da futura vítima. Deve ter subornado um dos criados do hotel, com um pretexto qualquer, para furtar um dos sapatos daquele hóspede. Para seu azar, o sapato furtado era novo, ainda não impregnado do odor característico e pessoal de sir Henry. Então, teve de mandar furtar outro sapato, de outro par, já usado, devolvendo o primeiro. Este incidente foi, para mim, muito elucidativo, porque quanto mais grotesco é um pormenor, mais merece ser analisado... e este pormenor do sapato velho sugeriu-me a existência de um cão, não fantasma, mas bem real, ao qual seria dado aquele objeto para farejar. No dia seguinte, quando da visita dos nossos amigos, procurei ver se eram seguidos, o que se confirmou. Entretanto, estranhei que o homem que os seguia já conhecesse a nossa casa e o meu nome. Isso me levou a pensar que a sua carreira criminosa talvez não se tivesse restringido a Baskerville. Podia ter-se estendido a outras regiões. Averigüei que, nos últimos três anos, tinham ocorrido quatro grandes roubos na região oeste, sem que o criminoso tivesse sido preso. O último assalto, efetuado em maio, em Folkstane, causou sensação pelo sangue-frio com que o ladrão mascarado assassinou um dos criados. Não há dúvida de que Stapleton, após ter perdido a escola, teve de restabelecer as suas já anêmicas finanças, tornando-se assim um homem cada vez mais perigoso. Apesar da sua audácia, tinha a esperteza da prudência e, sabendo que eu me encarregara do caso, preferiu deixar Londres e ir aguardar o primo em Dartmoor. Neste ponto da narrativa, senti-me impelido a interromper o meu amigo: — Um momento, Holmes! Reconheço que você explicou os fatos com exatidão, exceto um: como poderia um cão daquele tamanho, que devia consumir grande quantidade de alimentação, sobreviver naquela casinha tão pequena de Grimpen, durante a estada do seu dono em Londres?
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— Também investiguei esse enigma. Stapleton tinha um confidente e cúmplice, que já o havia auxiliado nos assaltos anteriores, apesar da sua avançada idade. Esse velho criado, que encontramos na Merripit Cottage, desapareceu logo a seguir. Chama-se Antony, nome pouco comum na Inglaterra, enquanto Antônio já é comum nos países hispânicos e hispano-americanos. Notei que, tal como a sra. Stapleton, falava bem o inglês mas com notória pronúncia espanhola. Viera da Costa Rica com os patrões e se manteve ao seu serviço quando, com o falso nome de Vandeleur, tinham a escola perto do Yorkshire. Naturalmente, na ausência do patrão, tratava do cão que então estaria na barraca da Merripit Cottage. Note, Watson, que esse velho criado não podia ignorar que Stapleton batia cruelmente na mulher, que a aterrorizava e que a amarrara no aposento transformado em museu, no dia em que revistamos a casa, conseguindo salvá-la. Agora, Watson, deixe-me explicar a minha posição naquele momento. Talvez se lembre de que, ao analisar o papel do aviso que sir Henry recebeu e ao examinar as palavras coladas, procurei uma qualquer marca de fabricação... — Lembro-me disso, perfeitamente! — Pois bem, ao fazê-lo, tendo-o bem perto dos olhos, não notei marca alguma mas percebi um ligeiro perfume, conhecido por “essência de jasmim branco”. Existem, atualmente, no mercado, setenta e cinco perfumes, e um especialista criminólogo tem de saber distingui-los uns dos outros. Já várias vezes a solução de um caso dependeu da rápida identificação de um odor. Esse perfume sugeriu-me a intervenção de uma dama e, então, a minha atenção convergiu para os Stapleton. Isso me levou a investigar a existência do cão, de maneira que antes de ir para o pântano, já sabia quem era o criminoso. Cumpria-me vigiar Stapleton e, se eu estivesse com você, não poderia fazê-lo eficazmente, pois a minha presença bastaria para pô-lo de sobreaviso. Portanto tive de enganá-los, e a você também, meu caro Watson, fazendo-os julgar que me achava em Londres. Não vivi tão desconfortavelmente como pôde pensar, pois instalei-me em Coombe Tracy e só ia para o pântano quando se tornava conveniente estar perto do campo da ação. Cartwright me acompanhou e, disfarçado de jovem camponês, muito me auxiliou, me levando mantimentos e roupa lavada... E quando eu vigiava Stapleton, Cartwright vigiava você, meu caro amigo, mantendo-me ao par de tudo o que se passava. Os relatórios que você expedia para a Baker Street eram logo remetidos para Coombe Tracy. Um deles permitiu-me descobrir a identidade do casal, após uma oportuna investigação.
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Não há dúvida de que incidentes paralelos, como a fuga do condenado e a sua relação familiar com os Barrymore, me dificultaram o inquérito. Mas outro relatório seu contribuiu para confirmar as conclusões a que eu já tinha chegado. Quando você me descobriu no pântano, já eu tinha esclarecido o caso, mas ainda não tinha provas convincentes para um júri. Mesmo a morte de Selden, resultante da tentativa de Stapleton para assassinar sir Henry, não constituía prova concludente. Tornava-se necessário apanhá-lo em flagrante e, para isso, teria de usar o baronete como isca. Confesso que expô-lo daquela maneira ao perigo foi um expediente muito arriscado... quase uma falha no meu processo de conduzir o caso... mas eu não tinha outro meio de atingir o fim desejado. Também o nevoeiro veio complicar a situação, e o terror que a cena do cão nos causou teve infelizes conseqüências para sir Henry, mas o dr. Mortimer asseguroume que os efeitos seriam passageiros e que uma longa viagem o faria esquecer as emoções... e sobretudo a causa principal: a sua mágoa sentimental, já que o amor que o baronete sentia pela sra. Stapleton era realmente profundo. O saber-se enganado por ela teve, para ele, um efeito traumatizante. Não há dúvida de que Stapleton exercia sobre a mulher uma enorme influência, quer com causa no amor antigo, quer pelo medo que lhe causava. Assim, a jovem esposa consentiu em passar por sua irmã... talvez também movida pela necessidade de apagar das suas vidas a identidade anterior de Vandeleur. Ora, uma vez mais, isto prova a cumplicidade de Antony, que sabia que eram casados, fazendo-se passar por irmãos. Contudo, a consciência de Beryl Garcia, agora Stapleton, embora não desejando denunciar o marido, impeliu-a a tentar avisar sir Henry do perigo que corria. Por outro lado, Stapleton era susceptível de sofrer ciúme e, apesar de fazer parte do seu plano que sir Henry namorasse sua mulher, afligia-se quando presenciava uma maior intimidade entre ambos. Mesmo assim, consentiu que o baronete freqüentasse a Merripit Cottage. No dia decisivo, a sra. Stapleton virou-se contra o marido, acusando-o de premeditação... ainda mais que sabia que o cão já se encontrava na barraca da casa... e estava a par da trágica morte do condenado. Seguiu-se uma cena violenta, em que ele, para dominá-la, mencionou poder trocá-la por uma rival... Laura Lyons. Esta nova ameaça transformou a fidelidade da mulher em ódio. Percebendo que ela o trairia, espancou-a a chicotadas e amarrou-a onde a encontramos para impossibilitá-la de prevenir sir Henry. Precisava que todos atribuíssem a morte do baronete à maldição da família Baskerville. Talvez, depois do fato consumado, tencionasse reconquistar a mulher. Porém,
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neste caso, deveria estar redondamente enganado, já que, pelo que sei, uma mulher de sangue espanhol não perdoa facilmente uma ofensa dessa natureza. E agora, meu caro Watson, sem consultar as minhas notas, não julgo ser possível dar-lhe mais pormenores sobre este estranho caso... Mas penso que o essencial ficou devidamente explicado. — Claramente, Holmes!... Parece-me, porém, que sir Henry não era pessoa para morrer de susto, como aconteceu ao tio, ao ver o cão fantasma — objetei. — Talvez a presença do monstro não bastasse, mas o animal estava faminto, e uma fera com fome, quando ataca, pode anular a resistência humana... Seria capaz de liquidá-lo, cravando-lhe as presas na garganta. — Não duvido, Holmes... Mas há um outro fator que me deixa perplexo: se Stapleton pretendia reclamar a herança, como poderia explicar ter vivido tão perto de Baskerville, com uma falsa identidade? Como poderia apresentar-se como herdeiro sem levantar suspeitas e investigações? — Esse argumento, Watson, é, de fato, pertinente, e não tenho meios fundamentados que me induzam a uma conclusão exata. Só o passado e o presente me dizem respeito, não me competindo adivinhar o futuro. Contudo, a sra. Stapleton confidenciou-me ter o marido se referido a esse assunto: tinha considerado três vias hipotéticas para realizar os seus intentos. Poderia regressar à América do Sul e, daí, reclamar os seus bens, provando a verdadeira identidade às autoridades locais. Dessa maneira, entraria na posse da fortuna, sem ter necessidade de regressar à Inglaterra. Poderia permanecer em Londres, durante o período necessário, adotando um disfarce; ou ainda, entregar a um cúmplice a sua documentação comprovativa de que era John, filho de Rodger Baskerville, e estabelecê-lo como herdeiro. Depois receberia grande parte dos rendimentos. Decerto, arranjaria um meio de suprir as dificuldades. E agora, meu caro Watson, após estas semanas de trabalho intenso, creio que merecemos, por uma noite, nos distrairmos um pouco. Tenho um camarote para Les Huguenots. Já ouviu De Reske cantar? Se a idéia lhe agrada peço-lhe que esteja pronto dentro de meia hora, para jantarmos no Marcini, antes de irmos para a Opera House.
FIM
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ÍNDICE O CÃO DOS BASKERVILLE CAPÍTULO 1 – CAPÍTULO 2 – CAPÍTULO 3 – CAPÍTULO 4 – CAPÍTULO 5 – CAPÍTULO 6 – CAPÍTULO 7 – CAPÍTULO 8 – CAPÍTULO 9 – CAPÍTULO 10 – CAPÍTULO 11 – CAPÍTULO 12 – CAPÍTULO 13 – CAPÍTULO 14 – CAPÍTULO 15 –
SHERLOCK HOLMES .......................................................................... 5 A MALDIÇÃO DOS BASKERVILLE .................................................. 11 O PROBLEMA ..................................................................................... 19 SIR HENRY BASKERVILLE ................................................................ 27 TRÊS FRACASSOS .............................................................................. 38 O SOLAR DE BASKERVILLE ............................................................. 47 OS STAPLETON DA MERRIPIT COTTAGE ................................... 55 PRIMEIRO RELATÓRIO DO DR. WATSON ................................... 65 SEGUNDO RELATÓRIO DO DR. WATSON .................................. 71 EXTRATO DO DIÁRIO DO DR. WATSON ..................................... 81 O HOMEM NO PENHASCO ............................................................ 89 MORTE NO PÂNTANO ..................................................................... 97 ARMANDO A REDE ......................................................................... 106 O CÃO DE BASKERVILLE ............................................................... 114 RETROSPECÇÃO............................................................................ 120
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