Abrindo Caixas: o Ensino Religioso no Currículo Escolar

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ABRINDO CAIXAS: o Ensino Religioso no Currículo Escolar1 Adecir Pozzer2 Elcio Cecchetti3

Resumo: Este trabalho apresenta o percurso histórico do Ensino Religioso no Brasil, desde a sua constituição como ensino da religião até o surgimento de outras perspectivas que o conceberam como responsável pelo estudo dos saberes e conhecimentos religiosos e não religiosos, sem proselitismo. Na primeira parte, utiliza-se a metáfora da caixa para ilustrar as experiências de fechamento e abertura adotadas pelos sujeitos nas relações com os diferentes e as diferenças. Na sequência, apresenta-se como o Ensino Religioso passou a ser um abridor de caixas ao possibilitar o acesso ao conjunto de saberes e conhecimentos produzidos por diferentes culturas e tradições religiosas. Palavras-claves: Ensino Religioso; Currículo Escolar; Diversidade Religiosa. Resumen: Este trabajo presenta el recorrido histórico de la Enseñanza Religiosa en Brasil, desde su constitución como enseñanza de la religión hasta la emergencia de otras perspectivas que lo concibieron como responsable por lo estudio de los saberes y conocimientos religiosos y no religiosos, sin proselitismos. En la primer parte, se utiliza la metáfora de la caja para ilustrar las experiencias de cierre y de apertura adoptadas por los sujetos en las relaciones con lo diferente y las diferencias. Después, se presenta como la Enseñanza Religiosa cambió en un abridor de cajas al posibilitar el acceso al conjunto de saberes y conocimientos producidos por distintas culturas y tradiciones religiosas. Palabras-claves: Enseñanza Religiosa; Currículo Escolar; Diversidad Religiosa.

Abstract: This paper presents the historical background of Religious Education in Brazil, since its incorporation as teaching of religion to the emergence of other perspectives. These perspectives made it responsible for the study of knowledge and religious and non-religious knowledge without proselytism. First, we use the metaphor of the box to illustrate the experiences of opening and closing adopted by subjects in relations with different ones and differences. Second, the paper presents how the Religious Education became a box opener as it allows the access to the set of knowledge produced by different cultures and religious traditions. Key Words: Religious Education; School Curriculum; Religious Diversity.

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Texto publicado no livro Ensino Religioso na Educação Básica: Fundamentos epistemológicos e curriculares, Editora Saberes em Diálogo, 2015. 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Coordenador do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER). Assistente técnico-pedagógico da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED) e Professor substituto do Centro Universitário Municipal São José (USJ). Contato: pozzeradecir@hotmail.com 3 Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação e Instituições Escolares de Santa Catarina (GEPHIESC/UFSC). Contato: elcio.educ@hotmail.com


1 Palavras Iniciais

A diversidade cultural é um dos principais elementos que identificam, caracterizam e desafiam as sociedades latino-americanas. Diferentes grupos, etnias e culturas expressam cotidianamente uma intensa rede de produções e elaborações simbólicas, produzindo uma rica diversidade de saberes, conhecimentos, valores e práticas. Dentre essa multiplicidade de expressões, encontram-se inúmeras crenças, movimentos e tradições religiosas, que configuram uma inesgotável diversidade religiosa. Entretanto, na história da nação brasileira e, de modo similar, em boa parte da história dos países latino-americanos e caribenhos, as relações que envolveram diferentes identidades religiosas foram marcadas por inúmeros conflitos, intolerâncias, dominações e violações praticadas contra o Outro4, sobretudo no processo de colonização, quando os europeus utilizaram diferentes mecanismos para impor sua crença religiosa aos demais habitantes do território, valendo-se inclusive, dos processos educativos formais. Foi neste contexto que, em países como o Brasil, o ensino da religião cristão-católica configurou-se em um dos instrumentos de difusão de uma única tradição religiosa e de negação sistemática de outras formas de crer, pensar e viver. Infelizmente, tal prática reflete a tendência adotada por vários grupos culturais, os quais acreditam que sua visão de mundo é universalmente válida a ponto de justificar sua imposição sobre as demais. Este trabalho objetiva apresentar o percurso histórico do Ensino Religioso no Brasil, desde o momento histórico em que era concebido como ensino da religião - praticado com o intuito de homogeneizar a diversidade cultural religiosa dos povos indígenas, africanos e dos grupos europeus e asiáticos não cristãos – até o momento em que emergiram outras perspectivas legais e epistemológicas, que o conceberam como componente curricular e área de conhecimento da educação básica, responsável pelo estudo dos saberes e conhecimentos religiosos e não religiosos, de modo a assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa da sociedade, sem proselitismo.

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O termo Outro (com a inicial em maiúsculo) quer representar os Outros e Outras, que, na compreensão de Levinas, representam aqueles que não podem ser contidos, nem reduzidos a um conceito; é rosto, presença viva que interpela, convoca, desafia e constrói. Emmanuel Levinas. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005.


Para isso, na primeira parte, utiliza-se a metáfora da caixa, que corresponde as cosmovisões culturais e religiosas construídas historicamente pelos diferentes sujeitos e grupos sociais, com suas experiências de fechamento e abertura nas relações com os diferentes e as diferenças. Na sequência, apresenta-se como o Ensino Religioso, historicamente criado para promover o enclausuramento cultural e religioso, pode agora ser um abridor de caixas ao possibilitar o acesso ao conjunto de saberes e conhecimentos produzidos por diferentes culturas e tradições religiosas, promovendo diálogos e intercâmbios entre sujeitos, etnias, culturas, religiões e áreas de conhecimento no cotidiano escolar.

2 O Humano e suas Experiências de Fechamento e Abertura

Enquanto seres históricos e sociais, os seres humanos se constroem pelas e nas relações estabelecidas com o Outro e a natureza, em determinados contextos históricos, e em processos permanentes de apropriação e produção cultural. Da interpretação da realidade, repleta de desafios e possibilidades, e da elaboração de sentidos e significados, cada coletividade (re)presenta, (re)cria e (re)elabora um conjunto de conceitos e práticas sociais que perpetuam-se de geração em geração, compondo sua própria cosmovisão. Esta integra um conjunto de elementos simbólicos, que inclui saberes, conhecimentos, crenças, valores e práticas, os quais, diante da instabilidade e das problemáticas que afetam a vida cotidiana, funcionam como se fossem moradas, tocas, cavernas ou caixas que protegem, abrigam e dão segurança às presentes e futuras gerações. Originalmente, segundo Wickert5, a palavra grega ethos, mais tarde entendida como um sistema de valores que sustenta uma visão de mundo, designava morada ou lugar de resguardo, de refúgio, de espaço vital seguro. No cotidiano de nossos antepassados, era corriqueiro a busca de abrigo em uma caverna quando da incidência de uma tempestade ou do iminente risco de ser atacado por animais ferozes. Mas, com o passar do tempo, a dimensão material do habitar foi ampliada para a dimensão existencial, e o ethos começou a representar “o lugar onde se vive e se torna humano”6, configurando um modo de ser e estar no mundo. Essa morada “[...] já está ali antes de o indivíduo nascer. E, uma vez nascido, cada ser será

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Tarcísio Alfonso Wickert. Ethos e direitos humanos: um legado da diversidade cultural. In: Reinaldo Matias Fleuri et al (orgs). Diversidade religiosa e direitos humanos: conhecer, respeitar e conviver. Blumenau: Edifurb, 2013, p. 39-55. 6 Idem: 42.


moldado pelo conjunto de relações fazendo com que sua existência se desenvolva a partir de uma maneira específica”7. A cosmovisão (ethos) produzida e compartilhada por determinado grupo social, tornou-se, ao longo do tempo, a toca segura, a caixa simbólica balizadora das identidades e referência para estabelecimento das fronteiras culturais. Compartilhar certa visão de mundo, e vivenciar um modo específico de ser, além de atribuir certa segurança e previsibilidade aos sujeitos, possibilita a criação de marcadores da diferença, limites, linhas e traços de distinção entre nós e os outros. Nas relações com a natureza, com o Outro e com os demais grupos sociais, os seres humanos, a partir de suas caixas, vivenciam experiências de abertura ou fechamento, enquanto estratégias de defesa ou ataque, acolhida ou hostilidade, a tudo o que lhe é exterior, desconhecido ou diferente. Quando os sujeitos se deparam com caixas que se distinguem da sua, não raro, sentem-se inseguros, espantados, surpreendidos ou ameaçados. Alguns logo partem para o confronto, fechamento, desencadeando, frequentemente, conflito, dominação, subalternização e até aniquilação. A tendência do fechamento em nossa caixa ancora-se na compreensão equivocada de que a nossa caixa é melhor que a caixa do outro, e na pretensão, tão presente na história, de querer que os Outros se encaixem em nossa caixa. Assim, as relações com os diferentes e as diferenças são marcadas pela tensão, competição e dicotomia entre nós e os outros. Historicamente, cada grupo social, na relação com os Outros, elaborou sua própria caixa cultural, integrando elementos simbólicos e territoriais singulares, assim como características étnicas, linguísticas, religiosas, políticas e econômicas específicas. Mas, o movimento de constituição dos estados nacionais, inicialmente na Europa e depois nos demais continentes, e o processo de mercantilização e colonização dos América e da África, por parte dos europeus, acabaram por colocar em contato, forçosamente, diferentes culturas em um mesmo território. Embora tal problemática possa ser identificada na Antiguidade, seja pela disputa territorial, seja pela atitude imperiosa de subjugar outros povos para impor a sua caixa, durante toda a Idade Média, Moderna e Contemporânea não faltam exemplos de desencontros entre diferentes sujeitos, etnias, culturas e religiões: guerras, perseguições, escravidões, genocídios, violências, discriminações, preconceitos e inúmeras outras posturas de fechamento, que procuraram negar, invisibilizar, desprestigiar, submeter, colonizar, converter, subestimar e desvalorizar o Outro em sua alteridade.

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Idem: 42.


Complexificando ainda mais este contexto, a partir das últimas décadas do século XX, o fenômeno da globalização8 tem provocado o deslocamento de fronteiras culturais e a difusão de valores, línguas, tecnologias, ciências, hábitos e formas massificadas de produção e consumo. Em busca de melhores condições de vida, milhões de pessoas se descolocam para regiões economicamente atrativas, e outras centenas de milhares são obrigadas anualmente a migrar por conta de conflitos armados ou por catástrofes ambientais, contribuindo para a diversificação cultural das sociedades receptoras. Tal fluxo migratório caracteriza-se por intensos processos de desterritorização e por novas territorializações em realidades muito distintas dos territórios originários. Neste processo, nas localidades receptoras, os migrantes são frequentemente vistos como os indesejados, sendo sistematicamente rejeitados, por conta das diferenças marcadamente distintas dos habitantes dos locais de destino. Ou seja, perpetua-se as atitudes de fechamento perante o desconhecido, que agora não se encontra apenas no outro país ou no outro continente; o diferente reside no mesmo condomínio, na mesma rua, compartilha o mesmo lugar de trabalho, lazer e consumo. Essa é uma problemática latente nos países europeus e norte-americanos, dada as grandes levas de migrantes que adentraram as fronteiras destas nações, bem como, das nações latino-americanas e caribenhas, que além da miscigenação entre indígenas, africanos e europeus, provocada pelo processo histórico da colonização, também são receptores de fluxos migratórios provenientes de inúmeras regiões do mundo. Diante da mobilidade humana em escala global, e a crescente hostilidade para com os migrantes, assim como, da manutenção de processos de exclusão e desigualdades à que determinados grupos sociais foram submetidos, como é o caso dos indígenas, afroamericanos, ciganos, entre outros, a questão-problema, que tem preocupado diferentes governos, líderes, pensadores, educadores e pesquisadores em escola global, é: como garantir o respeito à diversidade de identidades culturais em sociedades cada vez mais multiculturais? Como promover o diálogo e à cooperação entre os diferentes, em um clima de confiança e de entendimento mútuos, para garantir vida digna para todos? Como incentivar os sujeitos a complementarem-se a partir da experiência de abertura e conhecimento daquilo que lhes é exterior ou desconhecido?

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Segundo Coll (2002, p. 20), a globalização parece expressar a última etapa do processo de tentativa de homogeneização cultural iniciado pela modernidade ocidental há pelo menos 500 anos: “Que essa homogeneização tenha sido levada a efeito mediante estratégias distintas (colonialismo, desenvolvimentismo, globalização) ou estandartes distintos (cristianismo, modernização, democratização) não muda nada do essencial: o sonho de uma só cultura humana universal, a mais homogênea e uniforme possível, como única maneira de assegurar uma vida digna e a paz para todas as nações”.


Para o pensador Fornet-Betancourt9, é necessário capacitar o humano a desenvolver posturas ou disposições que o habituem a viver suas referencias identitárias em relação com os Outros, convivendo com eles. Trata-se de uma atitude que retira os sujeitos de suas caixas teóricas e práticas, possibilitando que percebam o analfabetismo cultural produzido pela falsa percepção de que somente uma cultura, a nossa, é a mais apropriada para ler e interpretar o mundo. Para ele, é necessária a produção de “[...] uma atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um processo de reaprendizagem e recolocação cultural e contextual”10. Diante disso, a educação, principalmente em sua dimensão formal, é desafiada a propiciar atividades de aprendizagem que estimulem a experiência de abertura de caixas, na tentativa de reconhecer a diversidade cultural em seus múltiplos aspectos, rostos, nomes e manifestações. Neste sentido, a escola, enquanto espaço sociocultural, constituída diariamente por inúmeros sujeitos, cada qual com sua caixa e com suas respectivas experiências de fechamento e abertura, é desafiada a contribuir na promoção do acolhimento, respeito e convívio com o diferente e as diferenças presente em seu cotidiano e no contexto social que a envolve. O desafio consiste na construção de relações e posturas que ultrapassem os limites e fronteiras culturais estabelecidas, reconhecendo o Outro, o diferente, o desconhecido, em sua alteridade, rompendo preconceitos cristalizados, práticas estigmatizadoras e etnocêntricas (enclausuramento na caixa).

3 O Ensino da Religião e a Histórica Experiência de Fechamento na Educação Brasileira

O elemento religioso é uma das bases fundamentais na estruturação das visões de mundo ou, na metáfora empregada até aqui, das caixas culturais sobre a qual cada grupo humano alicerça seu modo de vida. Isso porque, segundo Coll 11, nenhuma sociedade é resultado somente de seu logos (racionalidade), mas, sobretudo, da soma de outras duas dimensões: a mítico-simbólica e a do mistério. A primeira corresponde a um nível da realidade “mais profundo do que aquele que se pode atingir a partir da razão reflexiva, 9

Raúl Fornet-Betancourt. Interculturalidade: críticas, diálogo e perspectiva. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004. 10 Idem: 13 11 Agustí Nicolau Coll. Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização. São Paulo: Instituto Pólis, 2002.


conceitual e lógica”12 e, por isso, “não pode ser definida nem explicitada pela razão, dado que se trata daquilo que não pode ser pensado, nem dito, mas que é tão real quanto aquilo que percebemos valendo-se da razão”13. Por sua vez, a dimensão do mistério está relacionada “àquilo que não pode ser pensado nem definido, e que excede a toda conceitualização e simbolização que possamos propor”14. Assim, toda cultura veicula uma concepção de humano, do divino e do cósmico, já que a própria realidade é constituída por esses elementos e pelas relações tecidas entre si. Portanto, as crenças, conhecimentos e valores religiosos são elementos simbólicos de grande influência social que acabam por caracterizar e estruturar cosmovisões de mundo. Tais elementos, expressos de modos diversos nas diferentes religiosidades, credos e tradições religiosas, são um dos referenciais utilizados pelos sujeitos e grupos para (re)construir sua existência e responder às diferentes situações e desafios cotidianos. Entretanto, os embates e conflitos por questões religiosas foram/são profundamente dramáticos na história humana, sendo, muitas vezes, fomentadores e justificadores de guerras, genocídios e processos de colonização. A implantação do Cristianismo nas Américas, através da invasão europeia, principalmente por espanhóis e portugueses, suplantaram, somente em território brasileiro, mais de 1.400 grupos indígenas15. A imposição de uma única caixa religiosa, neste caso, o catolicismo, foi responsável pela quase erradicação completa das religiões dos povos originários das Américas. No Brasil, com poucas exceções, a conjugação entre cruz (poder espiritual) e espada (poder político) esteve a serviço da conquista e dominação dos povos indígenas e da extração de matérias-primas de interesse à Coroa Portuguesa. A Ordem Jesuíta, por delegação da Coroa Portuguesa, ficou responsável pela educação dos habitantes do território em processo de conquista, pelo exercício da catequese e instrução, até porque, segundo Mattos, [...] dele dependeria [...] o êxito da arrojada empresa colonizadora; pois somente pela aculturação sistemática e intensiva do elemento indígena aos valores espirituais e morais da civilização ocidental e cristã é que a colonização portuguesa poderia lançar raízes definitivas 16 [...] .

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Idem: 35 Idem: 35 14 Idem: 36 15 Eduardo Hoornaert. A Igreja no Brasil. In: Henrique Dussel, (Org.). História Liberationis: 500 anos de história da igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992. 16 Luiz de Mattos. Primórdios da educação no Brasil: o período heróico (1549 – 1570). Rio de Janeiro: Gráfica Aurora, 1958: 31. 13


Neste processo, a Igreja não estava à parte, mas “[...] continuamente assimilada à forma social de ser: todas as partes do todo social, cada qual com sua exclusiva competência, se complementando para o bem-estar do todo, sob o rei, cabeça de todo o corpo”17. O religioso estava profundamente incorporado ao poder político, cabendo à Igreja, por ofício, pregar e doutrinar, especialmente, os não-cristãos. Tanto o rei como o clero sentia-se responsável pela instrução do povo, por isso, ambos preocupavam-se em instalar escolas, entendidas como locais privilegiados para o ensino da fé. O reino precisava de gente letrada para levar a cabo as diferentes tarefas coloniais e, para isso, precisava de colégios. Mais que uma escola, o colégio era “[...] o ponto de ligação com a Coroa e as demais repartições de governo [...], era o instrumento da obra da religião. Assim o sentiam os portugueses. O clero devia se envolver com colégios, porque o colégio significava letras; letras significava o suporte da fé”18. Tais concepções e práticas não foram rompidas com a instalação da Monarquia. Durante este período, a Igreja continuou sendo o principal respaldo do poder do Estado, estabelecido por conta do regime do padroado, que fazia do Imperador a autoridade maior da Igreja Católica do Brasil. A primeira Constituição do país, outorgada em 1824, em “nome da Santíssima Trindade”, previa, em seu art. 5º, que a “religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império”19. O ensino da religião é oficializado na educação escolar pelo Decreto Imperial de 15 de outubro de 1827, primeira lei geral relativa ao ensino elementar, a qual ordenava, no artigo 6º, que os [...] professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmética, prática de quebrados, decimaes, proporções, as noções, mais geraes de geometria prática, a gramática da língua nacional, e os princípios de moral christã e da doutrina da religião cathólica apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a história do Brasil20.

No padroado, a Igreja mantinha uma relação privilegiada com o Estado, cabendo-lhe, dentre outras tarefas, a responsabilidade pela educação. Assim, ordens religiosas, tais como os

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José Maria de Paiva. Igreja e educação no Brasil Colônia. In: Maria Stephanou; Maria Helena Câmara Bastos (Orgs.). Histórias e memórias da educação no Brasil. Petrópolis, Vozes, 2004: 80 (vol.1). 18 Idem: 83-84 19 Brazil. Constituição Política do Imperio do Brazil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. 20 Brazil. Lei de 15 de outubro de 1827.


Jesuítas e os Franciscanos, foram responsáveis pela instrução dos habitantes do território em processo de conquista, por meio da catequese e do ensino da religião. Durante praticamente todo o período colonial e imperial, Estado e Igreja Católica formaram uma parceria indissociável. Os professores eram obrigados a prestar juramento de fidelidade à religião oficial, caso contrário, poderiam ser punidos21. Nas poucas escolas públicas do país, o ensino da religião deveria fazer parte do plano de estudos a todos os alunos, pelo menos até 1879, quando os não católicos puderam requerer a dispensa dessas aulas. A implantação do Regime Republicano (1889) e a aplicação do princípio constitucional da laicidade resultaram na separação formal Estado e Igreja. Até aquele momento, os seguidores das religiões indígenas e afro-brasileiras, judeus, ciganos, islâmicos e protestantes, entre outros, não só estavam proibidos de manifestar publicamente suas crenças e práticas, mas também tinham seus direitos sociais e religiosos restringidos. A diversidade religiosa era combatida como um perigo e uma ameaça ao próprio fundamento sobre o qual estava construída a nação brasileira. O ensino da religião católica, portanto, estava a serviço da expansão cultural, política e religiosa dos colonizadores europeus, que assim o fizeram por adotarem uma postura de enclausuramento em suas próprias caixas, e por práticas de sistemática de encaixamento forçado dos demais à esta cosmovisão. Como bem afirma Fleuri, Os referenciais culturais dos missionários colonizadores não eram apropriados para entender os significados peculiares de outras culturas, porque sua visão de mundo era pautada pela unicidade. Pressupunha que a verdade, o ser, identificava-se com o todo, o universal. Desse modo, o diferente (em sua diversidade e alteridade) era entendido como a falta de ser e deveria, portanto, ser reduzido à mesmidade22.

Na década de 1930, mesmo sob a égide do Estado laico, o ensino da religião foi mantido no sistema público de ensino, sob a forma de disciplina escolar. Regulamentado pelo Decreto N° 19.941/1931, que dispunha sobre a instrução religiosa nos cursos primário, secundário e normal, o Ensino Religioso era de oferta obrigatória, mas de frequência facultativa para os estudantes. Tal normatização foi assegurada na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, no artigo 153, na qual o Ensino Religioso, ministrado de acordo com a convicção religiosa do aluno, constituía matéria nos horários normais das escolas públicas. 21

Luiz Antônio Cunha. Confessionalismo versus laicidade no ensino público. In: Demerval Saviani. Estado e políticas educacionais na história da educação brasileira. Vitória: EDUFES, 2010, p. 187-215. 22 Reinaldo Matias Fleuri, Relações interculturais, diversidade religiosa e educação: desafios e possibilidades. In: Reinaldo Matias Fleuri; et al (orgs). Diversidade religiosa e direitos humanos: conhecer, respeitar e conviver. Blumenau: Edifurb, 2013: 60.


Desde então, apesar dos grandes embates travados pelos movimentos contrários e a favor da permanência do Ensino Religioso na educação brasileira, em todas as Constituições do século XX, a disciplina foi assegurada nos horários normais das escolas oficiais, mas de matrícula facultativa. Sem ruptura do paradigma histórico, a disciplina foi regulamentada de cunho confessional ou interconfessional pelas duas primeiras Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961 e 1971) e continuava a ser um elemento eclesial no ambiente escolar - exceto algumas iniciativas diferenciadas realizadas na região sul do país, as quais buscaram uma aproximação ecumênica com outras igrejas cristãs, embora o Cristianismo continuasse sendo o marco referencial da proposta. A prevalência da confessionalidade, através da formação de grupos de alunos de acordo com as respectivas confissões religiosas, provou na prática, o desencontro entre professores e estudantes de diferentes credos, uma vez que não fomentava experiências de abertura e diálogo entre as diferentes crenças religiosas e com os grupos não religiosos23. Além dos desafios de natureza pedagógica, problemas administrativos e operacionais foram constantes no cotidiano das escolas, principalmente em relação à divisão das turmas em grupos de acordo com as confissões religiosas, à ausência de espaço físico para acomodação dos diferentes grupos e às dificuldades de entrosamento entre os setores envolvidos no processo. Com o fim da ditadura e a instauração do processo de redemocratização do país, e com as transformações do campo educacional brasileiro, o debate em torno da permanência e natureza do Ensino Religioso reascendeu, principalmente em face da promulgação da Constituição de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996. A diversificação religiosa da sociedade, assim como, o movimento empreendido por diferentes setores marginalizados, em prol do reconhecimento de seus direitos culturais, civis e políticos, ratificaram a percepção de que a nação não cabia mais em uma única caixa. Isso fez com que educadores, pesquisadores, gestores e lideranças sociais buscassem outros referenciais teórico-metodológicos que proporcionassem o rompimento do caráter monocultural e religioso ainda presente no campo educacional. A necessidade de assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa, sem proselitismo, foi o vetor principal para abertura da caixa. Um dos pontos decisivos neste movimento foi a fundação, por parte de professores e pesquisadores de várias regiões do país, do Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso (FONAPER), em 1995. Desde então, o

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Anísia de Paulo Figueiredo. Ensino Religioso: tendências, conquistas, perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1995.


Fórum tem assumido uma importante função no fomento e construção de uma proposta de Ensino Religioso que possibilite o reconhecimento da diversidade cultural religiosa sob uma perspectiva intercultural.24 Entretanto, apesar de todo o processo de discussão e construção nacional, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB nº. 9.394/1996, em seu artigo 33, apresentou (novamente!) o ensino religioso como disciplina de caráter confessional ou interconfessional, nos seguintes termos: Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter: I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa25.

A necessidade de assegurar o conhecimento da diversidade cultural religiosa presente no cotidiano da escola pública; a compreensão de que o Ensino Religioso deveria ser componente curricular responsável por trabalhar a diversidade do fenômeno religioso, contribuindo para o pleno desenvolvimento do educando; e o respeito ao princípio constitucional da laicidade, suscitaram inúmeros questionamentos sobre a concepção de Ensino Religioso presente na nova Lei.

4 Abrindo a Caixa: o Ensino Religioso como Chave de Abertura

No início de 1997, despontou no Brasil uma grande mobilização da sociedade, envolvendo educadores, representantes de entidades civis, religiosas, educacionais, governamentais e não governamentais, de diferentes setores de atuação. Sensibilizados e 24

Neste sentido, Pozzer (2010:98) afirma que “[...] pesquisas e temáticas propostas e discutidas em eventos tanto do FONAPER quanto de outras instituições relacionadas e comprometidas com a pesquisa e a formação de docentes em Ensino Religioso, estão buscando novos paradigmas que se aproximam às discussões relacionadas à interculturalidade, aos direitos e deveres humanos, ao currículo e à formação docente sob novas perspectivas, a fim de romper com os processos educacionais monoculturais, que reproduzem discriminações, preconceitos e silenciamentos no cotidiano escolar”. 25

Brasil. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.


comprometidos com a diversidade religiosa, estes sujeitos ratificaram a importância de disponibilizar aos educandos, no conjunto dos conhecimentos escolares, conteúdos sobre a diversidade cultural religiosa, como uma das formas de promover e exercitar a liberdade de concepções e a construção da autonomia e da cidadania. As solicitações e discussões resultaram no encaminhamento de três proposições de mudança do Artigo 33 à Câmara Federal. A partir destes, foi redigido um projeto de substitutivo, o qual foi aprovado sob a forma da Lei nº. 9.475, de 22 de julho de 1997, alterando significativamente a concepção e encaminhamentos desta disciplina: Art. 33 - O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas do ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1. Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2. Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso26.

A partir da referida legislação, vários sistemas estaduais e municipais de ensino implementaram a disciplina do Ensino Religioso como uma das áreas do conhecimento do currículo escolar, com o objetivo de oportunizar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas do contexto dos educandos, valorizando a diversidade cultural religiosa presente na sociedade27. A abertura da caixa, tem possibilitado um crescente conhecimento dos diferentes saberes, conhecimentos, práticas e valores religiosos e não-religiosos no cotidiano escolar. O movimento eclodiu no momento histórico de abertura de outras caixas da escola, que levaram a repensar os fundamentos e as práticas que historicamente menosprezaram a diversidade cultural, étnica, social e religiosa. Nas unidades escolares onde estão estas concepções estão sendo postas em práticas, o Ensino Religioso tem se tornado chave de abertura para a diversidade cultural religiosa. No entanto, perpetuam-se estratégias de fechamento da caixa, tanto na sociedade em geral, quanto em determinados contextos educacionais, que produzem intolerâncias, discriminações, 26

Brasil. Lei Nº 9.475, de 22 de Julho de 1997. Dá nova redação ao art. 33 da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, Diário Oficial da União: Brasília, 23 set. 1997. 27 Fonaper. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso. São Paulo, Mundo Mirim, 2009.


hostilidades e até violências às diferentes identidades culturais e religiosas. Apesar destas posturas, o Ensino Religioso assume a tarefa de abridor de caixas, ao possibilitar o conhecimento do Outro, de suas cosmovisões, identidades, crenças, práticas e maneiras próprias de elaborar respostas frente aos desafios da vida contemporânea, tensionando estratégias padronizantes de identidades fundadas em concepções e práticas monoculturais. Os saberes e conhecimentos religiosos elaborados pelas culturas e tradições religiosas são as chaves de abertura que possibilitam acessar, compreender e reconhecer o conjunto de elementos constituintes das diferentes identidades religiosas, seus mitos, ritos, símbolos, ideias de divindades, textos sagrados (orais e escritos), espaços sagrados, doutrinas, linguagens, valores e comportamentos. Conhecendo, respeitando e convivendo é possível superar a tendência cultural ao fechamento, que legitima o enclausuramento religioso, o fundamentalismo e o exclusivismo. E mais: está contribuindo para um processo de superação do analfabetismo religioso, causado pelo pouco conhecimento da própria caixa e pelo desconhecimento da caixa dos Outros. Ao longo da história, inúmeras estratégias foram desenvolvidas para instaurar e reproduzir o analfabetismo religioso, depreciando e negando aspectos que constituem as crenças religiosas, especialmente daqueles grupos e etnias subjugados, excluídos e dominados. A abertura das caixas possibilita entrar em contato com outras realidades, cosmovisões e identidades para (re)construir outras relações de convivialidade na dialogicidade. O diálogo é o método provocador dessas aberturas, uma vez que exige o reconhecimento do Outro como legítimo interlocutor. Relacionar-se ou conhecer os diferentes não ameaçam as identidades, porque não deve provocar fusão ou negação. Ao contrário, representa a afirmação das mútuas identidades nas suas diferenças, mesmo diante de possíveis estranhezas. O diálogo com o diferente pode produzir, em dado momento, sentimentos de espanto, temor ou tremor, diante do mistério que o Outro revela. Alguns elementos, desconhecidos, podem representar diferenças incompreensíveis. Mas, quanto mais profundo o diálogo, maior é a possibilidade de reconhecimento da singularidade do Outro.

Dessa experiência de

abertura, também pode despontar o sentimento de fascínio e encantamento à novidade que o Outro apresenta. “Aquilo que é diverso, que escapa à compreensão, é aquilo que ao mesmo tempo seduz e realiza a possibilidade de enriquecimento”28. 28

Faustino Teixeira. O desafio da mística comparada. In: Faustino Teixeira (Org.). No limiar do mistério: mística e religião. São Paulo: Paulinas, 2004:18.


Nesta perspectiva, o diálogo não elimina ou camufla a diferença, mas possibilita aprofundamento e ampliação de seus horizontes. Para que seja efetivo, o diálogo exige real abertura e distanciamento de uma auto-suficiência que obstrua a consciência de que cada religião é um “fragmento” em processo de crescimento e de afirmação. [...] No processo de abertura às outras tradições religiosas, surge uma “oportunidade maravilhosa” de aprofundamento das potencialidades e virtualidades presentes na própria tradição, mas que escapam da vista de seus participantes29.

Oportunizar o estudo dos saberes e conhecimentos religiosos na escola, sem proselitismo, possibilita o desenvolvimento de atitudes abertas e sensíveis em relação à alteridade. Como o objetivo não é a doutrinação, mas o conhecimento, o Ensino Religioso torna-se um abridor de caixas, um componente curricular de fundamental importância para o exercício do diálogo respeitoso, investigativo e intercultural, sem proselitismos. O acesso e a aprendizagem crítica dos conhecimentos religiosos das diferentes culturas e tradições religiosas contribuem para a formação integral dos sujeitos, na medida em que possibilitam experiências de abertura, respeito e acolhimento dos diferentes e das diferenças.

5 O Ensino Religioso como Abridor de Caixas no Currículo Escolar

Durante o processo de abertura de caixas, é inevitável que apareçam inúmeros questionamentos, principalmente daqueles que, por inúmeros motivos, preferem fecharem-se diante da novidade, do desconhecido. O fechamento é decorrente da imobilidade dos sujeitos diante do conhecimento do ou sobre o Outro, da dificuldade de interagir e envolver-se com outras visões de mundo, ou de aceitar a validade de outras crenças religiosas. O fechamento se assemelha à fase da vida de uma borboleta quando ainda está presa em seu casulo, impedida de conhecer o mundo em sua diversidade. Gradualmente, o conhecimento instaura possibilidades de e para a abertura das caixas, proporcionando a compreensão das razões que levaram o Outro a pensar, agir e manifestar-se religiosamente diferente, ampliando seu ponto de vista30.

29

Idem: 19 Marilac Loraine R. Oleniki; Viviane Mayer Daldegan. Encantar: uma prática pedagógica no ensino religioso. 2.ed. Petrópolis,RJ: Vozes, 2004. 30


Considerando o direito dos educandos de acessarem os saberes e conhecimentos religiosos produzidos historicamente pelas diferentes culturas e cosmovisões religiosas, faz-se necessário considerar alguns pressupostos que, nesta perspectiva, podem promover a abertura das caixas e problematizar concepções e práticas prosélitas, etnocêntricas e monoculturais. O primeiro pressuposto está relacionado à compreensão de que as diferentes vivências, percepções e elaborações relacionadas ao religioso, integram e estabelecem interfaces com o substrato cultural da humanidade. Elas contribuem, e por vezes determinam, os modos de como o ser humano se define e se posiciona no mundo, orientando o relacionamento com seus semelhantes, com o mundo imanente e transcendente, atribuindo sentidos e significados. O segundo pressuposto diz respeito a concepção teórico-metodológica do Ensino Religioso, que não pode ser confundido com o ensino de uma religião ou das religiões na escola, porque visa construir experiências de abertura e atitudes de valorização e respeito à diversidade cultural religiosa, por meio do conhecimento e diálogo sobre culturas e tradições religiosas. Ao mesmo tempo, se propõe subsidiar a problematização das relações de saber e poder de caráter religioso, presentes em distintas concepções e práticas sociais. O estudo dos fenômenos religiosos, presentes em contextos sociais cada vez mais diversificados, contribui para a formação integral dos estudantes, na medida em que favorece a liberdade de expressão religiosa e não-religiosa, a convivência com a pluralidade de ideias, crenças e convicções, e o respeito aos diferentes e às diferenças. Considerando as identidades e os contextos socioculturais nos quais os educandos estão inseridos, outro pressuposto está relacionado à aprendizagem promovida pelo Ensino Religioso, a qual ocorre de modo processual e permanente, tendo em vista a apropriação gradual dos conhecimentos religiosos, sem comparações, confrontos ou hierarquizações. Desta maneira, conhecer é valorizar a trajetória particular de cada grupo e sujeito, contribuindo para a formação de atitudes que promovam a dignidade humana. Uma aprendizagem ampla sobre os fenômenos religiosos requer abordagens interdisciplinares, o que exige do professor de Ensino Religioso, no tratamento das diferentes temáticas, a capacidade de mobilizar e articular conhecimentos tratados e desenvolvidos por outros componentes curriculares, especialmente das áreas das Ciências Humanas e das Linguagens. Este quarto pressuposto assegura os distintos olhares referentes à diversidade de caixas, extirpando tentativas de homogeneização das diferenças culturais e religiosas. No intuito de ampliar a compressão da questão do como abrir caixas, apresentamos uma proposta de abordagem metodológica sobre a temática alimentação. No Ensino Religioso, este tema pode ser estudado a partir de diferentes situações de aprendizagem,


dependendo do contexto sociocultural e dos recursos didáticos pedagógicos disponíveis em cada escola. Como exemplo, sugerimos que no início da abordagem, seja considerado que os alimentos são indispensáveis à vida dos seres vivos e que cada sujeito, em geral, tem um alimento que considera especial, preferido. Do mesmo modo, as tradições religiosas possuem alimentos considerados sagrados, pois estão presentes em suas celebrações e rituais. Para contextualizar e problematizar a temática pode-se realizar uma dinâmica na qual os educandos são convidados a escreverem ou desenharem os alimentos que mais gostam. Em formato de círculo, cada estudante é convidado a apresentar seu alimento predileto, colocando sua produção no centro do grupo. É importante propiciar um ambiente em que todos tenham a liberdade de falar e de serem ouvidos pelos demais. Com esta atividade, espera-se que os educandos percebam a diversidade de opiniões e gostos distintos presentes no grupo. Por fim, as produções dos estudantes podem ser organizadas em forma de painel e fixadas na parede da sala. Na sequência, sugerimos realizar questionamentos relacionados à problemática da desigualdade social, que se expressa na escassez de alimento em escala local, regional e mundial. Por meio do diálogo, o educador tem a possibilidade de indagar sobre: o desperdício de alimentos; os cuidados que devem ser tomados com o preparo das refeições; o direito humano a uma boa alimentação diária; as mudanças climáticas e a produção de alimentos no mundo; exploração do trabalho humano e a expropriação dos recursos naturais na produção dos alimentos, entre outros. Verifica-se aqui a possibilidade de estabelecer relações com outras áreas do conhecimento e componentes curriculares, ao propor a elaboração, por exemplo, do mapa da fome no mundo, de gráficos comparativos sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em diferentes estados e países, dos elementos químicos, fertilizantes e agrotóxicos utilizados nas plantações, entre outros. Na etapa seguinte, pode-se subdividir a turma em pequenos grupos para que identifiquem e pesquisem os alimentos sagrados de distintas tradições religiosas (por exemplo: o milho e a mandioca para as populações indígenas; a pipoca, carnes, farinhas, mel e óleos para as religiões afro-brasileiras - cada orixá possui um alimento que lhes é predileto; o pão e vinho para o Cristianismo; os vegetais e cereais para o Hinduísmo e o Budismo; a dieta Kasher para o Judaísmo; os alimentos Halal (lícitos) para o Islamismo; etc). O estudo consiste em encontrar informações a respeito dos alimentos, assim como seus significados para cada tradição religiosa. A partir daí, cada grupo poderá organizar uma apresentação criativa para socializar aos demais colegas o que descobriram durante a pesquisa. Como síntese e registro da atividade,


cada educando poderá elaborar uma dissertação, evidenciando a importância dos alimentos na vida humana e o caráter sagrado que adquirem nas tradições religiosas, inclusive na sua, se for o caso, de modo a organizar e sintetizar os conhecimentos apreendidos. É possível ainda, verificar como esses alimentos estão presentes na comunidade em que se inserem os educandos, relacionando-os com aspectos históricos, geográficos, culturais e religiosos da localidade. A partir daí, abrem-se inúmeras outras possibilidades de temáticas e conceitos específicos que integram o estudo dos fenômenos religiosos na diversidade cultural que, se abordadas em nível de análise investigativa, possibilitam a aquisição de novos conhecimentos, atitudes, vivências e valores, favorecendo a ampliação de olhares e leituras – em suma, experiências de abertura da caixa. À medida que os educandos vão expandindo seus conhecimentos, faz-se necessário assegurar o direito de identificar e compreender as diversas manifestações religiosas do seu contexto social, disponibilizando instrumentais teórico-práticos para problematizar as relações de poder que permeiam a história, a cultura e as religiões constituintes das sociedades. Deste modo, os estudantes têm a possibilidade de questionar preconceitos, discriminações e processos de exclusão e desigualdades permeadas ou motivadas por questões de cunho religioso. Por fim, outro aspecto fundamental a ser considerado é a linguagem utilizada no estudo dos fenômenos religiosos. É recomendável e ético evitar todo tipo de análises generalistas que excluam determinada crença ou denominação religiosa, bem como de situações que impeçam a livre manifestação dos educandos. A ênfase no respeito pelas diferentes expressões religiosas e não religiosas desenvolve-se paralelamente ao conjunto de ações desenvolvidas visando à apropriação do conhecimento, no diálogo e na convivência entre as distintas identidades, culturas e valores religiosos e não religiosos.

6 Considerações finais

Como vimos, ao viabilizar o estudo dos saberes religiosos e não-religiosos na escola, a partir de pressupostos científicos, o Ensino Religioso promove o conhecimento das diferentes crenças, grupos e tradições religiosas, enquanto patrimônios culturais da humanidade, que necessitam ser intencionalmente abordados com vistas à compreensão e interpretação da realidade social.


Nesta perspectiva, o Ensino Religioso é abridor de caixas na medida em que contribui para a prática do respeito, acolhida e valorização das diferentes cosmovisões culturais e religiosas, a partir de uma abordagem pedagógica que estuda, pesquisa e reflete os fenômenos religiosos, sem proselitismos. Esse tratamento didático subsidia a construção do conhecimento e fomenta experiências de abertura ao diferente e as diferenças, possibilitando a

superação

do

analfabetismo

religioso,

produtor

de

hostilidades,

intolerâncias,

discriminações e violências motivadas por questões religiosas, favorecendo a convivialidade e o mútuo reconhecimento das distintas identidades de sujeitos e coletividades presentes na escola e na sociedade. Diante dos desafios e dilemas contemporâneos, conclui-se que o Ensino Religioso, ao libertar-se de experiências de enclausuramento, apresenta uma relevante contribuição social às presentes e futuras gerações: o exercício do diálogo, o reconhecimento das alteridades, o respeito à diversidade, a promoção da liberdade religiosa e da dignidade humana.

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