INTERCULTURALIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: possibilidades para reconhecimento da diversidade religiosa
Adecir Pozzer
1 Palavras iniciais A temática da diversidade religiosa está imbricada à história do Brasil e, respectivamente, às concepções e práticas formativas desenvolvidas até os dias atuais. A partir da colonização, grande parte desta história foi marcada pela negação da diversidade religiosa de forma oficial, permanecendo, após a separação entre Estado e Igreja, de forma oficiosa. No entanto, processos de resistência e algumas iniciativas em diferentes áreas do conhecimento, estão possibilitando o desenvolvimento de um pensamento mais amplo em relação à diversidade religiosa, provocando assim, uma releitura das perspectivas formativas com caráter monocultural e técnico-instrumental. Estas iniciativas ancoram-se em entorno do conceito de interculturalidade. A perspectiva intercultural constitui-se como um caminho para pensar uma formação capaz de agregar, integrar e desenvolver processos de reconhecimento do outro, para além das diferenças, aspectos constituintes da identidade dos sujeitos nas diferentes culturas, em que a dimensão da crença religiosa não pode ser subestimada, excluída ou negada. Os processos interculturais no campo da formação humana e, especificamente a formação docente, sugerem a realização de diálogos autênticos e exigem a superação da incapacidade de dialogar que, em certa medida, impede o estabelecimento de relações marcadas pelo respeito e reconhecimento da alteridade dos sujeitos dialogantes. O diálogo ocorre quando há uma participação ativa, tanto na fala quanto na escuta. Visa superar a lógica em que há sujeitos e sujeitados. No diálogo autêntico os sujeitos dialogantes acolhem-se e reconhecem-se em suas alteridades. Não há superiores e inferiores por causa de diferenças de qualquer natureza. Acreditamos ser um aspecto basilar para pensar a formação na perspectiva intercultural, sendo a diversidade religiosa parte integrante dos currículos que tratam da formação docente.
2 Interculturalidade: aproximações conceituais
A temática da interculturalidade é recente no campo das Ciências Humanas e Sociais na América Latina. No Brasil, ingressou sob duas perspectivas com origens diferentes, uma a partir de perspectivas europeias e outra de base latino-americana. No continente Europeu, os estudos e discussões relativas à interculturalidade surgem a partir do fenômeno da imigração, no qual muitos países se defrontaram com inúmeras culturas oriundas dos demais continentes, provocando problemáticas complexas e conflitivas no campo educacional e social. Já nos países Latino-Americanos, as pesquisas, estudos e reflexões desenvolvem-se em outra perspectiva, mais relacionadas aos grupos e às populações indígenas e afro-americanas marginalizadas (CANDAU, 2008). De acordo com Fleuri (2009a, p. 3), a interculturalidade [...] é o reconhecimento do outro na sua cultura como produtores autônomos significativos de conhecimento, de autonomia própria. [...] A grande riqueza, está na interação com o outro, ao buscar compreender o outro em profundidade eu coloco em cheque a própria estrutura do meu pensamento, do meu modo de viver, não no singular, mas no plural.
A proposta da interculturalidade está não em apenas tolerar e possibilitar que o outro enquanto sujeito/grupo ou cultura tenha garantido um espaço geográfico para sobreviver, mas está em (re)conhecer o outro para compreendê-lo e apre(e)nder com ele. A partir desta interação,
é
fundamental
procurar
mudar
radicalmente
as
formas
predatórias,
marginalizadoras e monoculturais de pensar e organizar as sociedades em todos os níveis. Jordán (1996) acrescenta que a interculturalidade abarca os aspectos sociais, políticos, ideológicos, culturais e educacionais/pedagógicos. Neste sentido, pensar a interculturalidade somente na esfera educacional é limitar as possibilidades que ela tem a oferecer de um modo geral. Ela é uma possibilidade pedagógico-educacional que necessariamente precisa estar associada à problemática social e política de e em cada contexto. Necessariamente, precisamos revisitar o conceito de cultura na perspectiva da escola que, de certa forma, reproduz a cultura dominante presente na sociedade. Mas, pela sua natureza, a escola é constantemente desafiada a reler e refletir os pressupostos que a constitui com o intuito de produzir uma cultura própria, a cultura da escola, onde os sujeitos que transitam determinado contexto se sintam parte de um processo criativo e participativo que caracteriza uma determinada escola, com um modo próprio e significativo de desenvolver os processos de ensino e aprendizagem, rompendo assim com o caráter monocultural que reproduz identidades desconectadas da alteridade dos sujeitos. Sacristán e Pérez Gómez (1995, p. 97), ao abordarem o caráter monocultural da cultura escolar afirmam que [...] a cultura dominante nas salas de aula é a que corresponde à visão de determinados grupos sociais: nos conteúdos escolares e nos textos aparece poucas
vezes a cultura popular, as subculturas dos jovens, as contribuições das mulheres à sociedade, as formas de vida rurais, e dos povos desfavorecidos (exceto os elementos do exotismo), problema da fome, do desemprego ou dos maus tratos, o racismo e a xenofobia, as consequências do consumismo e muitos outros temas problemas que parecem “incômodos”. Consciente e inconscientemente se produz um primeiro velamento que afeta os conflitos sociais que nos rodeiam quotidianamente.
Para Méndez (2009, p.101), “a interculturalidade exige não só reconhecer as possibilidades educativas dos variados espaços de interrelação, mas fazer dos espaços educativos – escolares ou não – plataformas para que todos recuperem a palavra”. Neste processo, a formação docente na perspectiva da interculturalidade pode contribuir na recuperação da força histórica da palavra; o direito de falar e o poder/autoridade da palavra1. A formação docente, dentro da perspectiva da interculturalidade é um aspecto crucial e determinante, pois, os formadores precisam recuperar a força da palavra, do direito de falar e do poder/autoridade da palavra no seu processo formativo, a fim de que sejam educados no ouvir/acolher/reconhecer os sujeitos do processo educacional, os educandos. As perspectivas interculturais visam superar o monoculturalismo, as noções da biculturalidade2 e da pluriculturalidade3. O próprio termo multiculturalidade, que segundo Candau (2008), muitas vezes é utilizado como sinônimo de interculturalidade, não responde especificamente ao desenvolvimento de uma dinâmica social informado pelo caráter intercultural, mas provoca na sociedade “apartheids” e guetificações sociais e culturais. Parece-nos que o desafio reside na continuidade e ampliação de projetos que investigam e avaliam em que medida e abrangência a perspectiva da interculturalidade pode contribuir na elaboração de referenciais e encaminhamentos de projetos para a formação docente na tentativa de educar para o respeito e o reconhecimento da diversidade cultural religiosa no contexto educacional de social.
3 Diversidade Religiosa: negação ou reconhecimento?
Compreendemos que a diversidade religiosa está imbricada com as culturas e os processos históricos, políticos e sociais de cada contexto, pois: As tradições, as memórias e as histórias contribuem para a tessitura das culturas, para o modo como as pessoas e os lugares estão ligados e como as pessoas usam
1
Recuperar o direito de falar e o poder/autoridade da palavra é um desafio à educação e perpassa também pela formação de educadores (Cf. Streck, 2005) 2
Biculturalidade - Refere-se às ações institucionais que procuravam considerar a diferença cultural envolvendo as culturas indígenas e ocidentais-europeias (Cf. Silva, 2003). 3
Pluriculturalidade – Diz respeito a uma tentativa de assumir a diversidade como algo positivo, um recurso enriquecedor (Cf. Hamel, 2006).
e valorizam seus tempos, espaços e lugares, constroem-se e reconstroem-se, desenvolvem-se e desenvolvem o seu entorno (OLIVEIRA et. al., 2009, p. 9).
Sidekum (2009) entende que o ser humano vem ao mundo despreparado para viver, pois não vem dotado e predeterminado por instintos irracionais. Por meio da aprendizagem que se dá no âmbito sociocultural, ele aprende a superar as situações contrárias à sua natureza frágil para sobreviver. As culturas vêm e se constituem como arcabouços para a sobrevivência e o desenvolvimento do ser humano. Para o autor (2009, p. 58-59), cultura é, [...] todo o ato de aprender a viver e o processo de humanizar-se. Cultura passa a ser o processo de humanização. Assim, podemos definir a cultura como o modo de viver do ser humano. Pela cultura o homem supera o que lhe é dado pela natureza. Portanto, a cultura é todo o processo com o qual ele se transforma: a sociedade e o mundo material. [...] A cultura compreende-se a partir da criatividade humana. Essa criatividade é sua característica fundamental. O caráter antropológico é a divisa que se estabelece com um mundo dado. [...] A cultura expressa o desenvolvimento das habilidades cognitivas e espirituais do ser humano. Além da ideação do mundo, o ser humano é impulsionado para a transformação do mundo.
Todas as culturas produziram algum tipo de crença ou manifestações religiosas frente aos processos de busca de compreensão dos fenômenos naturais e humanos. A partir da observação e relação com a natureza construíram conhecimentos que exerceram grande influência na organização social, sendo que muitos deles penduram até os dias atuais: As diferentes vivências, percepções e elaborações em relação ao sagrado integram o substrato cultural dos povos, cujos relatos e registros elaborados sistematicamente pela humanidade se constituem em um arcabouço de conhecimentos a instigar, desafiar, conflitar e subsidiar o cotidiano das gerações (RISKE-KOCH, 2006, p. 52).
De acordo com Martini (1995), na raiz de toda criação cultural reside uma possibilidade de transcendência. A capacidade de transcender é uma dimensão inerente ao ser humano e esta integra tudo o que está em seu envolto. Por isso, o ser humano foi deixando marcas ao longo da história que o caracteriza como homo religiosus que, de acordo com Eliade (2001), é a abertura às manifestações inteiramente diferentes das realidades consideradas “naturais”. O religioso, expresso em diferentes religiosidades e tradições religiosas, passa a ser entendido como parte de uma totalidade, corresponsável pela vida. Não pode ser concebido ou tido como algo privilegiado ou mais importante que outros elementos que integram a estrutura das culturas, mas, sim, como algo integrado e comprometido com as realidades sociais (OLIVEIRA et. al., 2007). De acordo com Eliade, buscar conhecer o universo transcendental e as situações assumidas pelo ser humano religioso é fazer avançar seu conhecimento como um todo, embora [...] a maior parte das situações assumidas pelo homem religioso das sociedades primitivas e das civilizações arcaicas há muito tempo foram ultrapassadas pela
história. Mas não desapareceram sem deixar vestígios: contribuíram para que nos tornássemos aquilo que somos hoje; fazem parte, portanto, da nossa própria história (ELIADE, 2001, p. 164).
No Brasil, as crenças religiosas dos povos ancestrais indígenas e africanos foram relegadas, desconsideradas e negadas pelos colonizadores, os quais impuseram outra crença, a cristã. Aos que se negavam a conversão, restava à perseguição e o não reconhecimento social e político. Além dos povos ancestrais indígenas, passaram pelas mesmas restrições e perseguições integrantes das religiões afro-brasileiras, judaicas e protestantes. A diversidade cultural religiosa era tida como uma ameaça ao fundamento em que a sociedade brasileira estava organizada (FONAPER, 2000). O modelo etnocêntrico e monocultural impregnado pelo processo de colonização não permitia ver/aceitar a diversidade cultural e religiosa que constituía a nação brasileira. Com o processo de imigração iniciado no século XIX e intensificado no século seguinte, juntamente com as lutas de movimentos étnicos, sociais e religiosos, ocorreu um processo de ampliação e percepção da diversidade cultural religiosa. Mesmo assim, tal processo se mostrou insuficiente e lento enquanto reconhecimento social e político. Mesmo após algumas reformas e políticas educacionais, o modelo etnocêntrico e monocultural persiste nas propostas pedagógicas, nos currículos formativos de docentes, nos materiais didáticos e nos ritmos e ritos da escola. Na educação monocultural, pode-se dizer que oficialmente ou oficiosamente os valores da cultura religiosa eurocêntrica, judaicocristã permanecem de forma hegemônica e, não raro, em detrimento da diversidade presente no substrato das diferentes culturas. Na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural publicada pela UNESCO em 2001, a diversidade cultural é reconhecida como um patrimônio da humanidade. Do conjunto de elementos que constituem as culturas, não é possível excluir a dimensão das crenças religiosas, pois são partes estruturantes e, de uma forma ou de outra, exercem influência na formação das identidades dos sujeitos. Neste sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. II, afirma que toda pessoa tem o direito de gozar das liberdades fundamentais, independente das diferenças de “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (ONU, 1948). Tais premissas desafiam significativamente a educação para que amplie suas reflexões, estudos e práticas a fim de superar processos que invizibilizam, discriminam e colonizam o outro em sua alteridade. A perspectiva intercultural tem despertado o interesse de educadores que, comprometidos com o respeito e reconhecimento da diversidade religiosa no campo educacional, procuram refletir e desenvolver práticas interculturais.
Reconhecer o outro é reconhecer o diferente, o não-eu. De acordo com Oliveira (2003, p. 166), o diferente é aquele “que anda diferente, fala diferente, vê o mundo com outros olhos, tem cor da pele diferente, crê de modo diferente, deseja e se identifica de outro modo, pertence à outra cultura, a outra geração ou a outro grupo social”. Assim, o reconhecimento não se reduz a processos distributivos como forma de equiparação de desigualdades de condições sociais e econômicas. Perpassa pela questão ética chegando à justiça.
4 Formação docente: o currículo em perspectivas interculturais Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem poderia ver: câmaras de gás construídas por engenheiros formados, crianças envenenadas por médicos diplomados, recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas, mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a educação. Meu pedido é: ajudem seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e aritmética só são importantes para fazer nossas crianças mais humanas (OLIVEIRA, 2006, p. 63).
Este texto é uma carta anônima encontrada em um dos muros do campo de extermínio nazista de Auschwitz, na Alemanha. O autor revela a indignação, o desconforto e os desafios à educação, denunciando e implorando outros olhares à formação docente que, fundamentalmente perpassa pelas questões curriculares e pelos tipos de relações que se estabelecem nos processo formativos. Decorre daí a exigência em repensar outros paradigmas para a formação docente frente ao monoculturalismo que, mesmo diante dos inúmeros movimentos em prol das diversidades, tende a se manter nos processos formativos em seus conteúdos, metodologias, discursos e valores. Não estamos defendendo a mera substituição de uma perspectiva por outra, mas sim, refletindo em que medida a interculturalidade pode contribuir na desacomodação e elaboração de outras possíveis respostas aos desafios atuais que afligem a humanidade. Moreira e Candau (2003, p. 161) atestam esta perspectiva ao afirmarem que: A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar.
Se a escola é compreendida como um espaço no qual os diferentes se encontram e as diferenças se identificam e/ou se (re)produzem, não pode negar ou omitir a discussão referente à diversidade religiosa, assim como as demais. Neste sentido, cabe perguntar:
como os currículos abordam a temática da diversidade cultural religiosa? A partir de que olhares, intencionalidades e perspectivas? Primeiramente é preciso refletir sobre o que é/são currículo(s). Segundo Moreira e Candau (2008, p. 86), [...] existem várias concepções de currículo, as quais refletem variados posicionamentos, compromissos e pontos de vista teóricos. As discussões sobre currículo incorporam, com maior ou menor ênfase, debates sobre os conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações sociais, os valores e as identidades dos nossos alunos e alunas.
Dentre muitas compreensões e enfoques, Silva (1999) recorda que o currículo é lugar, é território. Portanto apresenta significados que ultrapassam teorias tradicionais, pois, se dá nas e pelas relações de poder. Neste sentido, o currículo se configura no caminhar, pois, é trajetória, é percurso. Na perspectiva de o currículo integrar e articular diferentes contextos educativos que contemplem a diversidade cultural, Fleuri (1999b, p. 288) afirma que, O currículo e a programação didática, mais do que um caráter lógico, terão uma função ecológica, ou seja, sua tarefa não será meramente a de configurar um referencial teórico e o repasse hierárquico e progressivo de informações, mas terá a tarefa de prever e de preparar recursos capazes de ativar a elaboração e circulação de informações entre sujeitos, de modo que se auto-organizem com relação à reciprocidade entre si e com o próprio ambiente.
A compreensão de currículo acima desafia para uma avaliação da maneira hegemônica que a escola define e trata os conhecimentos. Neste sentido, Gomes (2008, p. 24) questiona: Podemos indagar que histórias as narrativas do currículo têm contado sobre as relações raciais, os movimentos do campo, o movimento indígena, o movimento das pessoas com deficiência, a luta dos povos da floresta, as trajetórias dos jovens da periferia, as vivências da infância (principalmente a popular) e a luta das mulheres? São narrativas que fixam os sujeitos e os movimentos sociais em noções estereotipadas ou realizam uma interpretação emancipatória dessas lutas e grupos sociais? Que grupos sociais têm o poder de se representar e quais podem apenas ser representados nos currículos? Que grupos sociais e étnico/raciais têm sido historicamente representados de forma estereotipada e distorcida?
De acordo com a autora é necessário sair do imobilismo e agir, repensando as práticas pedagógicas, a fim de que elas contemplem as diferentes identidades e diferenças culturais que transitam o cotidiano escolar e que estão presentes na sociedade. Para inserir nos currículos tais discussões, é necessário compreender as causas políticas, econômicas e sociais de fenômenos como o etnocentrismo, racismo, sexismo, homofobia e a xenofobia. Falar sobre a diversidade e a diferença, pressupõe um posicionamento literalmente contrário aos processos de colonização e dominação: É perceber como, nesses contextos, algumas diferenças foram naturalizadas e inferiorizadas sendo, portanto, tratadas de forma desigual e discriminatória. É entender o impacto subjetivo destes processos na vida dos sujeitos sociais e no
cotidiano da escola. É incorporar no currículo, nos livros didáticos, no plano de aula, nos projetos pedagógicos das escolas os saberes produzidos pelas diversas áreas e ciências articulados com os saberes produzidos pelos movimentos sociais e pela comunidade. Há diversos conhecimentos produzidos pela humanidade que ainda estão ausentes nos currículos e na formação dos professores [...] (GOMES, 2008 p. 25).
Neste sentido, podem-se citar conhecimentos da comunidade negra e afro-brasileira na luta pela superação do racismo; conhecimentos referentes à luta dos povos indígenas pela terra, já que a mesma foi literalmente invadida e roubada pelos colonizadores; conhecimentos produzidos pelas mulheres no processo de luta pela igualdade de gênero; conhecimentos da juventude expressos em diversos momentos sócio-político-culturais; conhecimentos e ensinamentos das tradições religiosas orientais, africanas e indígenas, dentre tantos outros. Incorporar de forma integrada a produção histórica das diferenças e das desigualdades é uma maneira de saldar simbolicamente a dívida da própria educação brasileira com os grupos sociais historicamente tratados de forma desigual. Sacristán (1997) ao ser interrogado sobre como contemplar num currículo os conhecimentos do cotidiano e os científicos, indica três possibilidades: a) é preciso estudar o contexto social dos educandos na sala de aula, sua cultura próxima, isto é, os sujeitos precisam compreender o que se passa ao redor deles para compreender questões mais distantes e complexas. b) é necessário nas práticas pedagógicas dar lugar para que os educandos analisem e compreendam as crenças presentes no contexto e no cotidiano em que vivem para assim respeitar as diferentes culturas. A vida cotidiana e as crenças sobre elas dão sentido a vida aos sujeitos. Tais crenças possuem sentidos que são comuns, cultura e irracionalidades que, por vezes, precisam ser corrigidas. c) Faz-se necessário contemplar o dia-a-dia para transcendê-lo, ou seja, precisa-se ir além do imediato e isso se alcança pelo conhecimento mais particular e também sobre o universal. De acordo com Oliveira (2003), será preciso considerar uma mudança nos métodos pedagógicos assim como propiciar outra formação de docentes, que estimule uma perspectiva cultural que contemple a complexidade da cultura e da experiência humanas e conduza à discussão, reflexão e encaminhamento de uma prática educativa comprometida radicalmente com a vida solidária num contexto marcado pela alteridade. Urgente se faz superar as marcas de um currículo monocultural, estabelecendo processos de reeducação do olhar sobre o outro e sobre nós mesmos a partir das diferenças. Deve-se superar o apelo romântico ao diverso e ao diferente e construir políticas e práticas pedagógicas e curriculares nas quais a diversidade possa ser uma dimensão constitutiva do currículo, do planejamento das ações e das relações estabelecidas nos contextos formativos.
A formação docente em perspectivas interculturais perpassa fundamentalmente pelos processos de construção do currículo e o respectivo desenvolvimento e envolvimento dos sujeitos.
5 Considerações finais
Não nasci, porém, marcado para ser um professor assim. Vim me tornando desta forma no corpo das tramas, na reflexão sobre a ação, na observação atenta a outras práticas ou a prática de muitos sujeitos (FREIRE, 1993, p. 87).
É relevante considerar que todo docente é um sujeito que, antes de ser educador, teve uma formação e continua se formando cotidianamente. Seu corpo traz as marcas indeléveis da construção de sua própria história. História como ser social, religioso, familiar, político e acadêmico. Formal e informalmente, o ser humano incorpora cotidianamente e (res)significa conceitos e práticas que, ao longo da vida, serão decodificados e ancorados a outros esquemas que, por sua vez, construirão e constituirão o ser educador (OLIVEIRA e RISKE-KOCH, 2008). Neste sentido, para tratar da diversidade religiosa em perspectivas interculturais em contextos formativos e educacionais, a formação docente precisa se pautar em pressupostos da interculturalidade que, analogicamente, provocará mudanças nas “lentes” pela quais olhamos o outro em suas diferenças. Não basta mudar apenas a “armação” destas lentes sem transformar o olhar, sob o risco de continuar reproduzindo invisibilizações. Uma formação docente na perspectiva intercultural possibilita ver-olhar a diversidade cultural religiosa de forma mais abrangente, para além dos preconceitos e estigmatizações reproduzidos historicamente. Por meio de outra formação docente é possível romper com as visões monoculturais presentes em processos formativos, superando “daltonismos culturais” que não permitem reconhecer o “arco-íris de culturas” que transitam o contexto escolar (MOREIRA, 2008, p.31). Neste “arco-íris”, a diversidade religiosa está presente e tem de ser tratada com o intuito de potencializar a capacidade de diálogo entre docentes e formandos, de forma autêntica e responsável. No que tange a diversidade cultural e religiosa, esta perspectiva encontra-se presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso (FONAPER, 2009), segundo o qual o profissional do Ensino Religioso é um dos responsáveis diretos pelo tratamento pedagógico e respeito à diversidade cultural religiosa, em suas múltiplas manifestações.
Portanto, os profissionais da educação têm de nortear-se pela sensibilidade à pluralidade e, conscientes da complexidade sociocultural da questão religiosa no contexto escolar, procurar garantir eticamente a liberdade religiosa, promovendo uma educação para o diálogo inter-religioso e intercultural, na constante busca pela promoção dos direitos humanos.
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Sobre o Autor: Adecir Pozzer
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Formação de Professores para o Ensino Religioso pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Graduado em Ciências da Religião - Licenciatura em Ensino Religioso pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Membro do grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Coordenador do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER 2012-2014). Atua como docente no PARFOR/FURB, na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina e na Associação Franciscana Senhor Bom Jesus. Tem experiência na área da educação, com ênfase em diversidade cultural religiosa, ensino religioso, formação de formadores e direitos humanos.